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DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A TUTELA DO SER HUMANO (OU DAS FORMAS DE INTERPRETAÇÃO) Adriano Guia Ferraro Bacharel em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES), Especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura (EPM/SP), Professor no “Meta Concursos” (disciplinas: Direito Constitucional, Direito Penal, Processual Penal, Tributário e Administrativo). INTRODUÇÃO O intento desta doutrina, ou simplesmente um pequeno preâmbulo que entendemos importante, é fazer com que o público presente sinta-se confortável ao entrar no terreno da Filosofia. E quando falamos acerca do Direito Constitucional, temos que ter em mente que o alicerce que a Mãe das Ciências nos oferece é deveras forte, praticamente de titânio. Queremos dizer com isso que as tentativas de salvar o Direito Constitucional passam, necessariamente, por aquele terreno. E ignorá-lo seria, sem sombra de dúvida, deixar com que a Magna Carta produzisse o seu último dos estertores. A Constituição Federal precisa, mais do nunca, de um sopro de vida novo – aquele que trará, definitivamente, sossego àqueles que operam o Direito. O sopro de vida, novo, ao qual nos referimos deve ser aquele autêntico, isto é, aquele capaz de tocar a essência dos mais intensos projetos que o Estado Democrático (e Social) de Direito compreende. A ação, portanto, é mais ampla, direcionada, assim podemos revelar, ao mundo. O Século XXI é o século das transformações sociais. E quanto a isto não paira a menor dúvida. Basta, para tanto, observarmos que em nenhum outro momento da história as ONG’S apareceram com tanta força como agora. Elas, inclusive, têm o condão de produzir caminhos alternativos e influenciar nas decisões que o Estado venha a tomar. A consciência do povo, portanto, está mais aberta, mais receptiva às mudanças que se iniciam.

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DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

E A TUTELA DO SER HUMANO (OU DAS FORMAS DE INTERPRETAÇÃO)

Adriano Guia Ferraro

Bacharel em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES),

Especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura (EPM/SP),

Professor no “Meta Concursos” (disciplinas: Direito Constitucional, Direito Penal,

Processual Penal, Tributário e Administrativo).

INTRODUÇÃO

O intento desta doutrina, ou simplesmente um pequeno preâmbulo

que entendemos importante, é fazer com que o público presente sinta-se confortável ao

entrar no terreno da Filosofia. E quando falamos acerca do Direito Constitucional,

temos que ter em mente que o alicerce que a Mãe das Ciências nos oferece é deveras

forte, praticamente de titânio. Queremos dizer com isso que as tentativas de salvar o

Direito Constitucional passam, necessariamente, por aquele terreno. E ignorá-lo seria,

sem sombra de dúvida, deixar com que a Magna Carta produzisse o seu último dos

estertores. A Constituição Federal precisa, mais do nunca, de um sopro de vida novo –

aquele que trará, definitivamente, sossego àqueles que operam o Direito.

O sopro de vida, novo, ao qual nos referimos deve ser aquele

autêntico, isto é, aquele capaz de tocar a essência dos mais intensos projetos que o

Estado Democrático (e Social) de Direito compreende. A ação, portanto, é mais ampla,

direcionada, assim podemos revelar, ao mundo. O Século XXI é o século das

transformações sociais. E quanto a isto não paira a menor dúvida. Basta, para tanto,

observarmos que em nenhum outro momento da história as ONG’S apareceram com

tanta força como agora. Elas, inclusive, têm o condão de produzir caminhos alternativos

e influenciar nas decisões que o Estado venha a tomar. A consciência do povo, portanto,

está mais aberta, mais receptiva às mudanças que se iniciam.

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E enxergar com profundidade, deixando de lado nossas mais

restritas miopias, deve fazer parte do discurso de cada um de nós, operadores do Direito.

Sejamos, portanto, melhores. E revelar o que de mais belo existe quando diante das

mais diversas constatações, revela um impulso maior, qual seja, o impulso para o social.

Compreender a dimensão da sociedade, portanto, é o trabalho do hermeneuta.

Quando nos propusemos a organizar esta doutrina, o fizemos por

uma questão de método, isto é, um caminho. Um caminho duvidoso porquanto há,

aparentemente, desconexão. E a nossa pretensão é justamente fazer com que todos

aqui passem a entender que o Direito precisa ser revisto. Principalmente o Direito

Constitucional, núcleo mais que especial e condutor de todos os demais ramos do

Direito.

Vamos entrar, portanto, em um mundo maravilhoso, repleto de,

segundo ousamos considerar, dúvidas (tão importantes quanto as certezas – à luz dos

conceitos de René Descartes, filósofo).

Passemos, então, a examinar o tema em xeque, a saber,

interpretação e como a Teoria da Linguagem toca toda a estrutura jurídica

(principalmente, frisamos, o Direito Constitucional).

A Teoria da Linguagem sempre nos fascinou. E este entusiasmo

vem antes mesmo do início da faculdade de Direito. Comunicar-se bem é,

definitivamente, o grande sucesso dos profissionais das mais diversas áreas. Frise-se,

por oportuno, que a comunicação é inerente ao ser humano. Por si só esta afirmação já

seria um truísmo. Contudo, é importante colocar algo nesse sentido para que possamos

compreender aonde queremos chegar.

A dogmática jurídica, que passou a imperar por séculos, vamos

assim entender, ainda atrofia a evolução do Direito. Ele, inclusive, desenvolve o seu

último dos estertores – o que compromete, pensamos, a sua estrutura nuclear, qual seja,

os princípios. O Direito dorme ainda na Idade Média. A tentativa da dogmática é

interessante: visa, de uma forma deveras sofisticada (mas sem aplicação imediata em

virtude da estéril tentativa de justificar o injustificável), a enrijecer os princípios,

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tornando-os, por assim dizer, normas. Segundo entendemos, este seria, em sua mais

absurda essência, o mote do (neo)positivismo.

Isso é perigoso. Perigoso porque estes programadores jurídicos,

vamos assim denominá-los, voltam-se para o passado e tendem a construir, no presente,

elementos deveras rijos para moldar um futuro jurídico inócuo – o que traduz o total

desapego as mais edificantes doutrinas humanistas (que tendem, em um esforço

hercúleo, a reformular a estrutura essencial do Direito). Humanistas e positivistas

travam uma guerra sem par. E felizmente, apontamos, deste descontentamento

passamos a discutir para uma melhora da sociedade, o que é saudabilíssimo. É a eterna

guerra entre os positivistas e os naturalistas. Ou melhor: é a eterna guerra entre os

(neo)positivistas e os modernos humanistas, à luz dos mais hodiernos conceitos.

Como se pode perceber lançamos, é evidente, uma crítica

contundente à dogmática jurídica porquanto entendemos que suas ações corroboram

apenas para desenvolver um Direito estéril, como já nos posicionamos. A linguagem,

para estes técnicos, é a positiva, ou seja, aquela que está dentro da norma – excetuando-

se, como conseqüência lógica, toda e qualquer doutrina que tenha o condão de melhorar

o núcleo do Direito, a saber, os seus princípios.

Frise-se, inclusive, que isto toca o cerne da Carta Política do País,

promulgada a 05 de Outubro de 1988.

É uma tentativa insana de se cristalizar o Direito, como se

observa. Esse apego ao positivismo kelseniano nada traduz. Ou melhor: traduz a

possibilidade, caso não se pense em melhorar o Direito, de criarmos algo mecânico,

alheio, portanto, aos pensamentos que, direta ou indiretamente, tocam o seu solo. Por

isso que a Filosofia e a Sociologia vêm desenvolvendo uma gama de esforços para que

possamos, através destas áreas do conhecimento, melhorar o que vem padecendo. É

deveras triste que uma sociedade passe a depender da norma para a produção de efeitos

positivos que, às vezes, não atingem a virtude por excelência, qual seja, a Justiça – à luz

do que preconizou o estagirita, a saber, Aristóteles.

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Anote-se que o positivismo, a título de latente curiosidade,

começa a cair em franca desgraça com o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, a

pérfida hecatombe nazista (como passamos denominá-la). Os acusados de Nuremberg,

por exemplo, para escapar da barbárie que cometeram, sustentam as mortes à luz da lei

e da ordem do superior hierárquico. O mundo começava a perceber, então, que o

positivismo a tudo não respondia. Era preciso mudar...

É fundamental a compreensão dos textos jurídicos. E para

compreendê-los, observamos, lançamos mão da Teoria da Linguagem, especificamente

hermenêutica e interpretação. O hermeneuta, portanto, revela o conteúdo da norma,

melhorando-a, é evidente. Para desenvolver tal trabalho, que é deveras complexo, lança

mão da interpretação, ela que dá a operabilidade para que a hermenêutica atue. Portanto,

hermenêutica é a teoria onde interpretação é a prática, grosso modo.

Apoiar-nos-emos em três pensadores de suma importância. O

primeiro, criador da desconstrução, e bastante controverso, a saber, Jacques-Derrida; o

segundo, Michel Foucault; e o último, e não menos importante, Jürgen Habermas.

Entendemos que é na compreensão destes filósofos que encontraremos a forma de

melhorar o Direito afastando-se, de vez, a nefasta inspiração do (neo)positivsimo.

O Direito repousa em uma linguagem hermética, isto é, fechada.

Por isso que a tentativa de se decodificar a sua estrutura nuclear é deveras árida. E

cumpre ao hermeneuta esta tarefa denominada ingrata. Não pensemos assim. A Teoria

da Linguagem é deveras rica porque dá todos os subsídios necessários para que a norma

passe de rígida a mais humana possível. É evidente que ela não vai ganhar vida no

sentido mais humano que se possa conceber. Contudo, a tarefa de tornar algo árido em

algo palatável é edificante, o que confere ao hermeneuta1 um grau de privilégio. Mas é

bom que haja, sempre, um elevado grau de humildade para que ele possa trabalhar.

Anotamos, também, que é necessário que ele jamais desenvolva atitudes mercantilistas,

quando for chamado à discussão.

1 Quando falamos “o hermeneuta”, devemos ler também a hermeneuta, é evidente. Não se trata de concepção machista e que coloca, portanto, a mulher à margem do pensamento humano. Foi preciso registrar esta passagem.

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À luz do que colocamos no parágrafo acima, vejamos como tudo

está interligado. Durante séculos, especificamente no que diz respeito à Idade Média, a

Filosofia foi culpada porque nos momentos mais importantes ela recuou, permanecendo

nas sombras. Sua atitude, ou melhor, a atitude dos filósofos da época (e de alguns

filósofos do presente que ainda se encontram naquele tempo!), foi omissa – o que

causou, na Filosofia, uma chaga que ainda está por cicatrizar. Os debates filosóficos,

portanto, foram pacificados. A dogmática jurídica, portanto, inspirou até os filósofos

mais renomados, desenvolvendo, na Mãe de todas as Ciências, um comportamento

típico, a saber, pacificar a discussão.

O hermeneuta é um ser humano curioso. Ele constrói, investiga,

desenvolve, aperfeiçoa e traduz, com simplicidade (como deve ser a sua essência), o

significado de um texto (seja jurídico ou não). Porém, poucos lhe dão o devido valor. È

ele quem caminha na completa penumbra e carrega consigo o seu toco de vela. No

entanto, quando esta finda, saca do bolso uma caixa de fósforos e tenta riscá-los

insistentemente para que a escuridão não o devore. O labor do hermeneuta é, portanto,

comparado ao das formigas ou ao das abelhas.

Sua organização é sistemática e, por isso, enxerga mais – mesmo

que, como ser humano, seja míope, astigmático ou hipermetrope. Chega a ser paradoxal

uma afirmação deste porte. Mesmo possuindo a falibilidade (porquanto é humano)

como algo intrínseco consegue, mesmo assim, mudar as coisas que estão inseridas no

mundo. Muda, principalmente, e o mais importante, a postura que, antes, estava

enraizada em argumentações positivistas. É uma vitória para a sociedade e não sua,

argumenta. É deste hermeneuta que precisamos.

Conscientes desta mudança de postura, magistrados passam a

adotar a mesma técnica quando da prolação de uma sentença, por assim dizer. Não seria

propriamente uma técnica, argumentamos. Mas a criação de algo teórico que ganhou

contornos críveis na prática. E, portanto, deu resultado. Ao nosso ver, é uma forma de

arte.

É inegável que as sentenças não mais se baseiam tão-somente na

leitura fria da lei. A lei é inativa. Cumpre, pois, ao magistrado, moldar o seu conteúdo e

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aplicá-la da melhor forma possível. Isto é, em verdade, responsabilidade social – além

do que, quando deste comportamento, toca o cerne da Justiça, a virtude por excelência,

segundo Aristóteles.

Percebemos que este tipo de atuação do magistrado, quando se

posiciona como hermeneuta, minora os problemas sociais. Passa, então, a aplicar a

Justiça em essência – ao invés de ser mero burocrata e pacificador de decisões. Isto

representa um princípio absoluto e que está inserto no inciso III, do art. 1º, da Magna

Carta de 1988, qual seja, dignidade da pessoa humana. E qualquer juiz ou juíza que se

portar como mero pacificador estará por desenvolver uma postura eivada de vícios, ou

seja, sua atuação será definitivamente inconstitucional. E sanar esta postura, frisamos, é

tutelar a sociedade e o Direito.

Desconstruir a dogmática-jurídica, portanto, é o nosso principal

intento. Para isso, frisamos, socorrer-nos-emos aos filósofos já mencionados além de

(jus)filósofos contemporâneos, o que, sem dúvida, trará maior sustentação às nossas

alegações. Além disso, é imperioso fazer um retrospecto histórico e observar as lições

que a História do Direito nos fornece. A utilização da Sociologia também será deveras

importante para compreendermos como esta estrutura foi montada.

O (neo)positivsmo, é interessante frisar, vem ganhando espaço

com a idealização da chamada constitucionalização dos princípios. Isto nos soa como

uma inspiração positivista em essência, observamos. Constitucionalizar algo revela

reduzir os princípios à norma, lato sensu. E como já nos posicionamos, observe-se, isto

é perigoso. O mote deste (neo)positivsmo é engenhoso mas sem a devida aplicação

prática. Trata-se, portanto, de um discurso híbrido, é preciso alertar. Mas a comunidade

jurídica, que passou a tomar a nuvem por Juno, não sabemos o porquê, isto é, passou a

enaltecer esta tentativa sem fundamento, não percebeu que constitucionalizar, à luz de

toda e qualquer interpretação meramente gramatical, revela, como falamos, aprisionar

os princípios e transmutar a sua essência. Vejamos. Quando a Lei Maior, a Constituição

Federal, afirma que o princípio da isonomia está capitulado em seu art. 5º caput,

passamos a perceber algo curioso. É um princípio que está dentro da norma. Ou melhor:

um princípio que se transformou em norma, à luz do que nos fornece a LEI MAIOR,

que é a Constituição Federal.

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Segundo o que a Filosofia nos fornece, este mote criado pelo

(neo)positivismo, que continua a ser a velha e desgastada escola do positivismo, tenta

cristalizar os princípios, tornando-os parte do passado. Sendo assim, fica mais fácil para

os (neo)positivistas transformar os princípios em normas, o que vale dizer: há uma

tentativa de criar um artigo para cada princípio, por assim dizer. Sendo assim, domar a

essência principiológica é pressuposto para controlar a sua estrutura. Nesse sentido, o

que agora passou a ser norma permanece parado. E aquilo que permanece parado fica

no passado. E se fica no passado é mais fácil de se domar. Logo, se podemos domar,

passamos a controlar. E se controlamos, finalmente pode ser aplicado no mundo

jurídico. A impressão que se tem, portanto, é que o princípio já é, sim, norma. Falsa

impressão, sustentamos. Isto é um discurso repleto de sofismas, argumentam os

hermeneutas. Contudo, se não tomarmos a devida cautela, a falsa afirmação tornar-se-á

verídica.

Isto acontece porque lamentavelmente não se estuda a norma

como um todo. Anote-se que os princípios são catalisadores. E por catalisador podemos

entender como todo e qualquer acelerador de uma reação química. É dessa aceleração

que precisamos para que o Direito passe a sobreviver. É preciso, pois, transpassar a

norma e vislumbrar o que está inserido dentro do próprio Direito para que, finalmente,

encontremos o devido sustentáculo no século XXI.

Segundo se nota, estes técnicos2 nada têm de responsabilidade

social. Algo deveras interessante vez que a Faculdade de Direito que freqüentaram

outorgou-lhes o título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Jovens que se (de)

formaram e que foram seduzidos pela norma e que, hoje, renegam aquilo que

aprenderam, ou seja, que o Direito é fonte de transformação social.

O positivismo resta comprometido, não há a menor dúvida. Ele

serve apenas de referência histórica, tão-somente. É preciso esclarecer a comunidade

jurídica e fazê-la acordar deste tormento doutrinário que, ainda, insiste em propalar os

seus discursos. Para nós, o positivismo é imediato. E, sendo assim, comunicamos que o

imediato é falho. Premissa maior, menor e conclusão, que atende pelo nome de

2 Estes técnicos são os (neo)positivistas.

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silogismo3, que fuja ao positivismo passa a ser indeferida – porquanto enxergar a norma

é a razão para se pacificar a sociedade. Os indivíduos, portanto, seriam adestrados a

conviver em seu seio, o que mutila concepções outras, isto é, alheias ao primeiro.

Certo é que o discurso traz uma grande oportunidade de comando

ao positivista, qual seja, o poder. É ele que confere certo grau de domínio – porquanto o

poder está intimamente atrelado àquele. Ordenar o discurso é, sem dúvida, construir

uma sensação ilimitada de poder, o que seduz um sem par número de platéias

(acostumadas, é evidente, com a adesão do espírito).

Se é possível aduzir, temos que é possível, de outro lado, deixar-

se seduzir – quando a platéia, acostumada com toda sorte de especialistas, atesta que

quem lá está a proferir um discurso conhece, em essência, o assunto a ser debatido. Mas

poucos sabem que quem diz conhecer o assunto na verdade o desconhece – vez que para

conhecer o assunto em tela é necessário um estudo de uma vida inteira, às vezes.

Certo é que os ditos especialistas de qualquer área não amam o

assunto. Porém, amam os lucros advindos. Forma-se, é evidente, e à luz dos estudos que

Arthur Schopenhauer realizara4, um sem par número de situações propícias para que se

possa comandar. Quem seduz, aduz. E quem aduz, necessariamente, comanda. Esta

ordem discursiva, portanto, é meramente superficial. Contudo, se elaborada de forma

deveras interessante pode, sim, lembrar os ensaios do pai da oratória, a saber, o grego

Demóstenes.

Devemos compreender que se todos os especialistas acerca de um

assunto não o amam, dizemos que, sem medo de errar, eles são, em essência, sofistas. É

clara a idéia que se vislumbra. É claro, também, que hodiernamente há uma gama de

“estudiosos” e que, curiosamente, aparecem nos momentos em que o mundo parece não

responder aos mais ordinários estímulos. É preciso explicar. Sabe-se que a dogmática

jurídica controla esta forma de discurso e que, de maneira absolutamente engenhosa,

constrói, através da norma, um discurso sucinto. Porém, frisamos, deveras hermético. 3 Segundo o aristotelismo, trata-se de um raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas proposições, chamadas de premissas, das quais, por indução, se obtém necessariamente uma terceira, chamada conclusão. Quando passamos a desenvolver um mecanismo que rompa com a estrutura do verdadeiro silogismo, nasce o sofisma, segundo entendemos.4 A respeito do tema, compulsar A arte de ter razão, do pensador citado.

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Quem passar a conhecer o código, insistimos, tem, nas mãos, um tesouro valioso. E se o

especialista se debruçar mais sobre o código passará a compreendê-lo. A estrutura

codificada, portanto, será decodificada. E o discurso, neste momento, poderá ser,

inclusive, alterado – à luz de todo e qualquer vício que o indivíduo carregue.

Falamos nas distorções, comuns, que tocam o solo da norma. Bem

sabemos que o Código de Processo Civil, justamente para evitar toda e qualquer

distorção, inseriu, em seu artigo 17 e incisos, o instrumento que combate a litigância de

má-fé. Porém, se definitivamente o especialista desenvolver um mecanismo que cause

dúvida, sua forma de pensamento, nesse sentido, mostrar-se-á correta, infelizmente. À

guisa de exemplo, citamos um magistrado que, sem perceber a litigância de má-fé que

se avizinha, em virtude da distorção de um texto legal, acolhe a petição do advogado,

deferindo o pedido. Isto é mais comum do que se imagina, frisamos.

Acerca deste assunto, especialmente no que diz respeito ao

discurso em si, que toca, fundamentalmente, a Teoria da Linguagem, Michel Foucault

pronuncia sua aula inaugural intitulada A Ordem do Discurso, no dia 02 de Dezembro

de 1970, especificamente no Collège de France, que lhe rendeu, mais tarde, uma

publicação5. Inicia dizendo:

“Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa.” (FOUCAULT, A ordem do discurso, p. 2005)

Vamos observar o que nos traz o pensador. O discurso revela uma

grande capacidade de pensamento, organização de idéias e convencimento. Foucault

revela isso e se sente apreensivo em divulgar aquilo que sabe, aquilo que está dentro

dele, ou seja, que o discurso pode, dependendo da platéia, seduzir. Por isso que ele

afirma que ao tomar a palavra suas ações serão comedidas, absolutamente sóbrias,

observamos. E tem um motivo para fazê-lo. Ao assumir a cátedra, com a morte do

5 O título original é L’ordre du discours. Leçon inaugurale au Collège de France ponuncée lê 2 décembre 1970. Por uma tradução literal temos: “A ordem do discurso. Lição inaugural no Collège de France pronunciada a 2 de dezembro de 1970”.

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professor Hyppolite, foi preciso desenvolver uma forma rara de dizer o que se pensa. E

isto está revelado na passagem de que quem toma a palavra, como ele o fez, tem, sim,

algo para dizer, algo para revelar... desde que seja absolutamente contido. Quem escreve

um discurso de setenta e nove páginas, como Michel Foucault fez, mostra, desde já, a

possibilidade de se dizer tudo e ao mesmo tempo nada – porquanto a palavra é deveras

contundente, se utilizada com maestria (vez que pode selar os lábios dos sábios e excitar

a platéia, acostumada, via de regra, com as mais pífias apresentações).

Diz que gostaria de ser envolvido pela palavra, no afã de, talvez,

não revelar o que sabe. Quando se é tomado pela palavra, deixamos transparecer nossa

ignorância. Contudo, se desenvolvemos um sem número de formas para que possamos

colocar em ordem o discurso, manifestamos um controle tamanho de toda e qualquer

palavra empregada. Construir o discurso, à luz de todo e qualquer elemento retórico,

indica técnica, decisão e, conseqüentemente, dominação. Não foi à toa que o livro de

Introdução ao Estudo do Direito, do professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, recebeu o

mesmo nome.

O Direito, apontamos, desenvolve-se desta maneira. E gerar a

linguagem fácil em terreno fértil representa uma ferramenta que o Direito ainda não

dispõem (ou finge não dispor!). O importante é gerar a linguagem, argumenta o jurista.

Cada qual para o seu tipo de comunidade. E se a linguagem, mesmo hermética, ainda

assim não consegue atingir o seu objetivo, na sua própria comunidade, aparece o

paradoxo6, que causa, infalivelmente, teratologias conceituais e que acabam por tocar,

definitivamente, os alicerces da Constituição Federal.

A técnica legislativa, ainda no campo do que estamos a

pronunciar, caminha no sentido de desenvolver, para a sua própria comunidade,

definições de comportamento herméticas. Esse hermetismo, que não guarda consigo

elementos pedagógicos, no intuito de ensinar os que ainda não são versados, destrói os

alicerces de uma sociedade, por exemplo. Coloca Jean-Jacques Rousseau, no Contrato

Social, que seriam necessários deuses para dar leis aos homens.

6 Por paradoxo entendemos como sendo toda a qualquer ruptura, implícita ou explícita, na seqüência lógica de uma frase causando distúrbio na comunidade em que se está inserido ou na própria sociedade. Para o professor Leonel Severo Rocha, por exemplo, é preciso criar mecanismos “desparadoxizantes”.

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Isso fere a isonomia, segundo entendemos. Analisemos. Se o

princípio da isonomia, também chamado de igualdade, aduz, segundo nos informa o

caput do artigo 5º, da Constituição Federal, que todos são iguais perante a lei, é certo

dizer que o conhecimento hermético deve ser partilhado com todos, vez que todos são

iguais. Não revelar o código a quem de direito, isto é, à sociedade, revela uma profunda

desobediência aos ditames constitucionais, segundo uma análise lato sensu. Saber dos

seus direitos é deveras saudável. Contudo, revelar o conteúdo, assim como pretende o

hermeneuta, é basilar. Enquanto a sociedade não tiver acesso aos códigos, e às suas

decodificações, não se poderá falar em isonomia. A isonomia que se observa é,

lamentavelmente, apenas formal (fruto de uma Constituição que ainda não saiu do papel

e que padece, a bem dizer da verdade, de muitos vícios formais, como a nossa).

Na obra A verdade e as formas jurídicas, de Michel Foucault, por

exemplo, o filósofo desenvolve um raciocínio bem interessante. Diz que o Direito é

instrumento de vingança porquanto não se busca a Justiça, ou seja, a suma virtude.

Ninguém neste mundo procura a Justiça. Procuramos, sim, a defesa dos nossos

interesses. E se se procura alguém, um advogado, para defender os nossos interesses,

diz-se que é possível comprar o direito que se alega possuir. Esbarramos, então, em uma

profunda questão de dignidade. Vejamos. Immanuel Kant, pensador, em sua obra

Crítica da razão prática, diz que se atribui valor às coisas através do preço. E se atribui

valor ao ser humano através da dignidade. Porém, quando ao homem for possível

atribuir preço, dir-se-á que ele perdeu a sua dignidade. E ousamos completar: se perdeu

a sua dignidade, porquanto lhe fora atribuído preço, diz-se que ele se coisificou. São

palavras áridas, reconhecemos. Contudo, merecem figurar aqui porque é importante

mostrar como o ser humano pode, segundo seu entendimento, vender-se. Quando ele,

ser humano, perde a sua dignidade, vez que se vendeu por alto ou baixo preço, causou,

em si, um paradoxo. Portanto, todo o seu discurso será com base na parcialidade. Ou

dito de outra forma: todo o seu discurso será indigno de nota. Porém, juridicamente

justificável – o que entendemos ser absolutamente condenável.

Como é possível de se perceber, existem dois tipos de discurso. O

primeiro, o crítico; o segundo, o clínico. Estes dois dão, segundo se pode observar,

sustentação à fala de quem, de maneira fluída, argumenta. Por exemplo, citamos a

poesia e a psicologia. A primeira, crítica; a segunda, clínica. Estes dois tipos de

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discurso, segundo se percebe, são diferentes em essência. Contudo, relacionam-se de

uma forma bastante próxima. E dizemos, sem medo de errar, que dentro destes

discursos existe, sim, o estruturalismo7. Vamos exemplificar. Determinado indivíduo,

que pertence à comunidade jurídica, diz: “o Arcabouço Principiológico, em seu art. 5º

caput, define, em linhas abstratas, a concepção concreta da isonomia como

mandamento nuclear para que possamos conviver em sociedade.” Com o máximo

respeito, ninguém passaria a entender qual o verdadeiro significado destas palavras. O

tecido social, que é quem mais precisa de elucidações para o caso em tela, fica à

margem da Constituição Federal, que é de todos. O certo seria dizer que “a igualdade da

lei é aplicada a todos os seres humanos.” Ou mais sucintamente: “a igualdade é justa.”

Temos um exemplo de um discurso clínico, preso, portanto, a

algo absolutamente áspero e que, por isso, não pode ser decodificado. Frise-se que até

mesmo para quem pertence à comunidade jurídica fica bastante difícil compreender o

significado do que acima foi exposto.

A lei nos fornece um discurso problemático porquanto não

reconhecemos a sua identidade com o tecido social. A lei manifesta, conforme

dissemos, um discurso clínico-jurídico, isto é, um discurso preso à uma técnica sem

expressão, ou seja, inócua. O resultado que se espera mostra-se preso porque não

conseguimos decifrar (revelar o conteúdo) quando tocamos a estrutura principal da

norma. Ela, portanto, fica à mercê daqueles que, de maneira absolutamente técnica,

criam mecanismos para, inclusive, deturpar-lhe o teor. Algo que é condenável fica, à luz

do juridicamente sustentável, louvável. É a aplicação de algo eivado de vícios que se

torna legal.

Expressa Jacques Derrida:

“Ora sentimos bem hoje, de fato, se o comentário clínico e o comentário crítico reivindicam por toda a parte a sua autonomia, pretendem fazer-se reconhecer e respeitar um pelo outro, nem por isso deixam de ser cúmplices – por uma unidade que reenvia por

7 Inicialmente dentro do domínio da lingüística, o estruturalismo saiu deste domínio e migrou para outras áreas do saber, como por exemplo, a sociologia, a filosofia, a economia e a teoria literária. Vem a ser, portanto, toda e qualquer escola que se fundamenta em determinados métodos e concepções ligados à definição de estrutura, ou seja, é o método de análise e pesquisa que tem por objetivo buscar, em determinados ramos do conhecimento, estruturas significantes ou constitutivas, ou, em palavras outras, o conjunto das relações e inter-relações sociais de uma cultura, como família, costumes, ordem jurídica, etc.

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mediações impensadas à que há pouco procurávamos – na mesma abstração, no mesmo desconhecimento e na mesma violência. A crítica (estética, literária, filosófica, etc), no instante em que pretende proteger o sentido de um pensamento ou valor de uma obra contra as reduções psicomédicas, chega por um caminho oposto ao mesmo resultado: faz um exemplo. Isto é, um caso. A obra ou aventura de pensamento vem testemunhar, por exemplo, em martírio, de uma estrutura cuja permanência essencial se procura em primeiro lugar decifrar. (DERRIDA, A escritura e a diferença, p. 109, 2002)

O filósofo ora em análise não poderia ter sido mais claro. Para

que possamos compreender a estrutura da lei devemos compreender os sentidos clínico

e crítico, isto é, aqueles que pertencem à comunidade jurídica devem fazer um esforço

para conjugar os dois sentidos. Assim, revelará o conteúdo, tornando-se um hermeneuta,

como conseqüência natural. Façamos um teste. Pergunte a qualquer indivíduo da

sociedade se ele prefere a leitura áspera, portanto, difícil de se compreender, ou se ele

prefere que lhe revelem o conteúdo, não afã de sanar eventuais dúvidas que possua.

Os sentidos clínico e crítico, portanto, estão atrelados ao

hermeneuta. Fazer relações, investigar, construir, desenvolver atividades poéticas e

psicológicas (sentidos clínico e crítico), e simplificar revelam atividade científica, isto é,

metodológica. A sociedade precisa destes decodificadores. Porém, assinalamos, é

preciso que aquele que enverede pela hermenêutica, quando for revelar todo e qualquer

conteúdo, expresse a realidade da norma, isto é, o seu sentido exato. Dissimular, neste

momento, seria deveras tentador. Mas para quem está atrelado à ciência, e tem

compromisso com a sociedade, a hipótese de sofismar não lhe toca a consciência.

É esta a cumplicidade que buscamos quando de uma

interpretação. Hermenêutica e interpretação, como mecanismos hábeis para se sanar o

discurso complexo que se percebe, deve ser pedra de toque, estando, inclusive, inserto

no discurso constitucional. Deixar de aplicar a cumplicidade à qual nos reportamos

revelaria uma postura diversa, ou seja, uma postura à margem da sociedade.

Ainda neste diapasão, é imperioso demonstrar como o discurso

pode (de)formar a platéia. Seria deveras fácil construir, dentro do art. 5º caput, da

Constituição Federal de 1988, elementos que utilizem os sentidos clínico e crítico como

forma de se justificar, por exemplo, o nazismo. Vejamos. Se todos são iguais perante a

lei, e se homens e mulheres têm os mesmos direitos e garantias, é possível afirmar,

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portanto, que um (neo)nazista tenha direito de expressar o seu ódio ao povo judeu. Seria

juridicamente justificável8. Porém, condenável.

Toda essa violência simbólica que se constrói através do discurso,

e que passa a ser questionada (além de ser visivelmente prejudicial), porquanto a platéia

parece entender que é juridicamente válido sustentar o ódio, sinaliza como a

interpretação de um texto legal pode ser deturpada. Os sentidos clínico e crítico estão

atrelados à hermenêutica. E ela, nesse sentido, deve sanar todo e qualquer equívoco que

possa aparecer, no afã de estabelecer o saudável convívio social.

A dogmática, ou seja, os programadores jurídicos, lançam mão

desta condenável técnica diariamente – porquanto tentam, de uma forma que vem

ganhando espaço cada vez maior, domar o tempo, cristalizando, portanto, o caso em

tela. Para isso, sustentam a comparação com o que já foi julgado. Logo, desse trânsito e

julgado nasce uma tentativa, por vezes aceita, de parar o Direito, impedindo, assim, sua

evolução. E não estamos a propalar nenhuma teratologia conceitual. Basta ver o que

pretende a súmula vinculante.

E é o filósofo Montaigne quem nos revela que interpretar as

informações é mais árido do que interpretar as coisas. A carga valorativa que

desenvolvemos ao interpretar diversas interpretações está enraizada em observações

pessoais. Estas, segundo entendemos, estão relacionadas às nossas vivências. Assim,

uma norma, para o (neo)positivista, estaria intimamente ligada à forma pela qual ele

enxerga o mundo, isto é, sua posição frente à realidade é normativa, o que, segundo

apontamos, não é saudável.

É preciso desenvolver inter-relações (bem como intra-relações)

com os outros ramos do conhecimento que embasam, definitivamente, uma melhor, e

mais acertada, interpretação. Por isso que o hermeneuta, por exemplo, é mais preciso

quando de uma interpretação. Ao revelar o conteúdo, sustentamos, ele se socorre à

Filosofia, à Sociologia, enfim, aos ramos que, direta ou indiretamente, estão enraizados

naquele momento. A norma, fruto de uma construção temporal, não revela toda a 8 Anote-se que esta afirmação demonstra tão-somente um exemplo, não revelando, por certo, o nosso entendimento. Somos radicalmente contra estabelecer o ódio como peça que ainda fomenta, infelizmente, as discórdias entre os seres humanos.

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expressão que podemos buscar. Ela, por ser estática, não está inserida na dinâmica da

sociedade. Para que a produção dos seus efeitos venha à baila, é preciso, em primeiro

lugar, provocar o Poder Judiciário, por exemplo. A inércia está profundamente ligada à

norma. Por isso que os (neo)positivistas sustentam a necessidade de se buscar, no

passado, isto é, em dado momento histórico, a inércia da norma. Eis o porquê da

necessidade de se domar o tempo.

Para os (neo)positivstas, portanto, a sociedade mostra-se estática,

à luz do que preconiza a norma. A função do parar o tempo, para esta corrente do

pensamento jurídico, resta comprometida porquanto a sociedade é dinâmica, antípoda

do conceito que pretendem alegar. Não se pode desenvolver um mecanismo contrário

para uma melhor explicação do tecido social. Ele, como sempre se altera, em virtude

dos infindáveis comportamentos que diariamente se alteram, não pode tomar como

definitiva a expressão de que a norma é o povo. A norma, como dissemos, é o resultado

de um dado momento. Cumpre, pois, ao hermeneuta, expandir este conceito (que até

então mostrava-se cristalizado) e aplicá-lo da melhor forma possível no presente, sem,

no entanto, congelar o futuro. É, portanto, tarefa das mais nobres. Porém, sustentamos:

das mais desgastantes.

Estes conceitos que se encontram enraizados nas profundezas do

discurso revelam, sem dúvida, ruptura. E, nesse sentido, podemos conceber e interpretar

de uma forma mais sadia, isto é, de uma forma mais eficiente. O tecido social necessita

das mais edificantes formas de interpretação para que a norma não padeça. Os

arquétipos montados pelos (neo)positivistas podem, sim, dar a impressão de que os

mecanismos de interpretação baseiam-se apenas no sentido gramatical. É sabido que

existem fins outros, como, por exemplo, o sistemático. É ele que expande a norma,

melhorando-a. O alcance, portanto, mostra-se para além do imediatismo positivista.

Substituir a rigidez pela flexibilidade é importante – porquanto os

meios de se interpretar passam por características pessoais e tocam, a bem dizer da

verdade, elementos objetivamente considerados. A norma não pode congelar o presente,

fazendo-a retroceder (como bem pretende a corrente do positivismo). A sociedade

precisa saber que existem diversas formas de interpretação e que, sendo assim, podem

se socorrer às mais eficientes para dirimir a lide que se avizinha.

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O Novo Código Civil parece que entendeu o significado da

interpretação sistemática e estendeu, de forma bastante coerente, o seu significado

quando diante do conceito de função social do contrato.

O sistema, anote-se, é o todo. Analisar parte da sociedade, através

da norma, não representa avanço. Trata-se, pois, de retrocesso. Quando passamos a

entender que a regra está dentro do tecido social, passamos a conferir-lhe uma melhor

dinamização. No entanto, isso soa deveras prejudicial para a corrente (neo)positivista.

Prejudicial porque não percebem a necessidade de fazer interagir diversos ramos do

conhecimento para melhorar a norma, no sentido de expandi-la.

É o próprio Derrida quem nos informa:

“O substituto não se substitui a nada que lhe tenha de certo modo preexistido. Desde então deve-se sem dúvida ter começado a pensar que não havia centro, que o centro não podia ser pensado na forma de um sendo-presente, que o centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo mas uma função, uma espécie de não-lugar no qual se faziam indefinidamente substituições de signos. Foi então que a linguagem invadiu o campo problemático universal; foi então o momento em que, na ausência de centro ou de origem, tudo se torna discurso – com a condição de nos entendermos sobre esta palavra – isto e, sistema no qual o significado central, originário ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora de um sistema de diferenças. A ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação.” (DERRIDA, A escritura e a diferença, p.232, 2002.)

A norma seria, segundo entendemos, um micro-sistema dentro do

qual pretendem colocar a sociedade (macro-sistema). Esta atitude, à luz de toda e

qualquer percepção, não guarda relação com a lógica, além de ofender, é evidente, a

essência do indivíduo – porquanto o que é maior faz uma espécie de proteção onde o

menor passa a descansar. As observações que aqui são feitas tocam o solo do que pode,

ou não, ser abrigado pela norma. Ela, como integrante de um macro-sistema, parece

conflitar com a norma naturalmente definida. É absurda a concepção que se avizinha,

qual seja, não podemos, com base nos elementos normativos, encerrar toda e qualquer

atividade que tenha o condão de melhorar aquilo que está ao seu redor, isto é, seria

como se a norma extinguisse todas as outras ciências, no desejo de aplicar –

positivamente – sua supremacia.

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Derrida, mostrando-se absolutamente certo, diz que nos

reduzimos ao mero discurso e, sendo assim, acabamos por nos prender a uma relação

cuja qual não podemos definir. O sentido que pretendem aplicar, portanto, violenta, e

muito, a concepção de algo maior, ou seja, algo que está para além do próprio Direito.

Enquanto não se pensar em mais hábeis mecanismos de interpretação, a norma ainda

demonstrará sua força normativa, ditando, portanto, comportamentos. É preciso também

que esta nova consciência toque toda a sociedade. Discutir, portanto, qual o papel da

norma frente ao mundo moderno é tarefa imperiosa. E fugir ao debate representa

omissão, o que deixa de se saudável.

Fato é que se substituirmos a norma pelos princípios cairemos em

franco desespero, porque nada poderá ser regulado. Os princípios, como são deveras

flexíveis, permitiriam até mesmo o que é proibido. Fazer, indefinidamente, substituições

representaria menoscabo, atitude que não combina com os mais renomados cientistas do

Direito.

A mera substituição traduz o discurso deficitário que, em um

primeiro momento, responde aos anseios sociais. Desta afirmação, podemos dizer: é a

norma como se apresenta hoje em dia. Se não está de acordo, revoga-se, ou, para

minorar o efeito drástico, completa-se (mesmo se passarmos a presenciar lacuna ou

imperfeição legislativa). Passa, portanto, a vigorar. E se tece os seus efeitos no mundo

jurídico, até não haver mais espaço, porquanto novamente tornou-se deficitária,

passamos a discutir, de maneira absolutamente infecunda, sua inconstitucionalidade. O

certo seria aplicar as ciências como um todo dentro da norma.

Certo é que o jurista, o técnico propriamente dito, isto é, os

programadores jurídicos, não gostam de alterar o que já está definido. Alterar algo

significa desgastar-se, movimentar a engrenagem que dificilmente é movimentada –

porquanto a desídia é amiga íntima dos juristas. Movimentar a engrenagem, conforme

colocamos, representaria avançar no assunto o que causaria, segundo entendemos,

transtorno, mudança de postura. Mudar a norma representa um esforço sem par para o

técnico. A técnica, insistimos, mutila o verdadeiro labor intelectual (ou como gostamos

de dizer, mutila o verdadeiro devaneio cognitivo).

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Diante destas afirmações, observamos que a estrutura passa de

rígida a tênue, o que compromete o Estado Democrático (e Social) de Direito. Nossa

Constituição Federal, portanto, passa a desenvolver mecanismos não muito eficientes.

Nossa Magna Carta, registre-se, como não é norma, permite que elementos

inconstitucionais se infiltrem (tal como um vírus que destrói as células de defesa,

temporariamente).

É preciso possuir um discurso concreto, isto é, real, que toque –

saudavelmente – os alicerces constitucionais. A norma não pode ser mero joguete que

se constrói ao balanço do mar. A norma precisa ser testada à exaustão, no afã de

responder aos anseios sociais. Não se pode conceber uma sociedade sem a presença do

Direito. Isto não pode ser contestado. Porém, não podemos conceber uma sociedade

refém da norma. Sua aplicação deve possuir responsabilidade social. Os elementos que

passam a definir uma nova norma não devem ser tratados como se fossem uma mera

aventura jurídica. Aventurar-se em terreno desconhecido, mesmo possuindo a técnica

que se diz possuir, representa, também, risco. E ele, sem sombra de dúvida, pode, sim,

deformar a aplicação de algo que foi desenvolvido para o bem da comunidade.

É comum perceber que o grande erro em que repousam os

(neo)positivistas está em fundamentar como é importante a norma. A afirmação que

aqui se faz está intrinsecamente relacionada à defesa dos seus interesses, ou seja,

desenvolvem tal postura no intuito de preservar-se, isto é, levar consigo toda uma

geração que dependa de suas análises. O discurso, portanto, é frágil porque suas

alegações tocam uma estrutura nada convencional. Origem, objetivo e finalidade nada

representam para esta corrente.

O tempo do positivismo findou. Ele não tem o condão de ainda se

sustentar no solo do Direito. À guisa de exemplo, o professor Celso Campilongo9 diz

que os teóricos que nada dizem proclamam e sustentam os seus discursos enquanto

passam pelos mais diversos terrenos. Porém, como estão presos a um discurso, não

percebem que caminham em direção a um atoleiro. E será lá que ainda insistirão em

divulgar as suas palavras mesmo que, para isso, paguem com a vida. Tal atitude é

9 Primeiro dia de aula, aos 11/8/2004, no auditório do Gabinete Unificado dos Desembargadores, em São Paulo, quando cursávamos a Especialização em Direito Público, na Escola Paulista da Magistratura.

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comparada àquele que prega no deserto. Se alguém pára para ouvi-lo será uma vitória.

Contudo, é possível que o ouvinte seja uma miragem.

A ausência de um mecanismo hábil e que forneça subsídios mais

adequados aos (neo)positivistas desestrutura-lhes a essência. O caminho pelo qual

enveredam é deveras árido – porquanto criar a norma não é tarefa das mais fáceis,

reconhecemos. O caminho ora apontado por nós passa por uma análise social,

fundamental para se conceber este novo modelo de sociedade que está em franca

evolução. Não há possibilidade física de se criar algo alheio ao próprio tecido social. É

necessário, pois, soluções que tendem a caminhar neste sentido. E buscá-las, pensamos,

requer método, isto é, um caminho. Pensar a sociedade como objeto é o que pretendem

os adeptos desta corrente. Isto é deplorável – além de ser incompleto. Vejamos. É

preciso pensar a sociedade como sujeito da relação política, no sentido que a expressão

nos revela, ou seja, de polis, a saber, cidade. Quando se passar a conceber a comunidade

como estrutura dinâmica, isto é, que se altera a todo o instante, teremos uma “norma”

melhor, apta, portanto, à compreensão do tecido social.

Possivelmente não interessa aos (neo)positivistas entender desta

forma. A estrutura já edificada ainda produz resultados tipicamente normativos e que,

nesse sentido, geram resultado. E por estar sedimentada, pensamos, requer um esforço

complexo para não se mexer em alicerces tradicionais.

Pensar o Direito não pode revelar uma postura parcial,

observamos. Pensá-lo representa, antes de mais nada, disciplina, organização e

desconstrução para que se aplique, em terreno fértil, o que se pretende, a saber, a

divulgação de um novo Direito à luz das transformações sociais que tocam o solo do

século XXI.

A postura cômoda dos juristas, isto é, dos técnicos, revela

arrogância. Seria necessário desenvolver um movimento dialético capaz de seduzir o

programador jurídico, revelando-lhe o óbvio, qual seja, que a norma puramente positiva

não traduz a essência das transformações sociais. Um exemplo típico e que tocou o solo

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da Carta Política de 1988, é o art. 22710 caput. O Direito não pode produzir monstros

normativos. Ele não pode dormir enquanto a sociedade se transforma. Afinal, diz o

adágio jurídico que o Direito não socorre a quem adormece.

Esta corrente do pensamento jurídico pretende politizar o Direito

e jurisdicionalizar a política. É condenável esta postura, frisamos. Vamos explicar.

Quando se desenvolve tal método de aplicação, passamos a deixar o Direito um pouco

mais flexível. Isto não é saudável e não revela contradição quando assim nos

posicionamos11. O fato de se desenvolver a postura pretendida pelos (neo)positivistas

indica que a atividade legislativa, que é essencialmente técnica (e que agrada, portanto,

àqueles), passa a tutelar, quando desta postura, interesses de determinados grupos

econômicos, o que revela, nesse sentido, parcialidade. Quando houver a possibilidade

de um Poder Legislativo mais preparado para lidar com o trato social, politizar o Direito

e jurisdicionalizar a política será permitido, se se atender às transformações sociais que

se avizinham.

Esta situação desconfortável que é gerada em virtude da produção

deste tipo de discurso, qual seja, o político-jurídico, indica que pouco avançamos no

tema. Foi-se o tempo em que a interpretação gramatical garantia o melhor dos

resultados. Isso causa um verdadeiro paradoxo. Os conceitos estabelecidos, ou a

tentativa de se criar o obsoleto com roupagem nova, traduz a completa despreocupação

com o social, que é deveras gratificante. Fomentar a produção das discussões em terra

fértil revela compromisso a curto prazo. Interessa saber se atitudes desta monta

traduziriam o efeito almejado.

É um ciclo histórico que se repete. O positivismo, ou melhor, o

(neo)positivismo, tenta sobreviver e construir a possibilidade de um mundo normativo

melhor. Cercar a sociedade representaria retrocesso, privação de direitos. E não faz

10 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (grifos nossos) Como se percebe, este artigo, além de outros igualmente importantes, revela o mero discurso, ou seja, o discurso que nada traduz – porquanto a prática, que é deveras importante para que possa ganhar o real significado do que em teoria fora descrito, é mutilada em essência.11 Queremos dizer que flexionar o Direito seria prejudicial à sociedade porquanto alguns direitos e garantias, quando da adoção de determinada conduta, poderiam ser vulneradas ou mesmo se perder no infinito.

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muito tempo que o mundo sentiu os efeitos nefastos desta postura belicosa. Hitler,

Mussolini, e, no Brasil, a Ditadura Militar, apontaram que seria necessário desenvolver

uma saudável mudança. E se possível for, seria necessário transformar o próprio

Direito12.

Torna-se evidente que há muito não mais se fala em revelar o

conteúdo do Direito. Ele, qual seja, o Direito, mostra-se em descrédito – assim como

aconteceu com a Filosofia, por exemplo. Não se pode considerar, quando lançamos um

olhar mais detalhado sobre a norma jurídica, que as ações continuem a produzir os

mesmos efeitos que em outrora. Habermas, a bem dizer, nos traz a informação de que

algo aconteceu com os filósofos em geral. Hegel, Kant e Nietzsche passam a ser

desacreditados, informa-nos o pensador, a Junho de 1981, quando de uma conferência

em Stutgart, Alemanha.

Passa a dizer que se passarmos a olhar sobre o muro deixaremos

de lado nossas miopias e veremos, como decorrência lógica, que algo de funesto tocou o

solo da Filosofia, como anteriormente dissemos. E isso faz nascer em nós a impressão

de que daqui há um século o próprio filósofo, qual seja, Habermas, poderá ser

expurgado e, portanto, a ele não se atribuir nenhuma inovação conceitual.

O Direito passa pela mesma crise. Ou melhor: o Direito está em

crise de identidade e passa a ser entendido como um meio que não oferece a devida

segurança social. Suas ações, portanto, mostram-se desatualizadas, segundo passamos a

observar. O descrédito pelo qual passaram os pensadores tocou, infalivelmente, o solo

dos juristas.

Torna-se truísmo dizer que deram contribuição ao Direito. Isso é

inegável. Contudo, o Direito passou a comprar a idéia de que tudo estava explicado, à

luz das estruturas normativas. E a norma, como dita comportamentos, enfrenta, até

então com bravura, as sedições que tocam o solo da sociedade. Por um breve período,

observamos, tal aplicação surtiu o efeito almejado. Por um breve período...

12 A respeito do tema, compulsar nossa monografia de especialização em Direito Público intitulada “Da epistemologia e hermenêutica – um ensaio para a compreensão do Direito Constitucional (ou da Carta Magna: um resgate de sua pureza a partir da Teoria da Transformação Jurídica).”

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A sociedade evoluiu. Isso também é inegável. Havia o Código

Civil de 1917 que produziu efeitos até então. Surgiu, para uma melhor resposta à

sociedade, o Novo Código Civil, qual seja, a Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002.

Nasce desatualizado, frisamos. Portanto, resposta plenamente efetiva não houve.

Como a analogia é admitida no ordenamento jurídico brasileiro,

nos casos em que a lei for omissa13, cuidamos em desenvolver este vazio existencial que

perturba o Direito.

Esta análise sistemática deve ser feita porquanto é necessário

entender os porquês que insistem em tocar o Direito. Essas lacunas, por exemplo,

podem ser muito bem encontradas na Filosofia. Mas há algo de perigoso nisso tudo: a

Mãe de todas as Ciências vem desenvolvendo um certo receio de revelar o conteúdo,

que atende pelo nome de Verdade.

Habermas critica a posição de Immnuel Kant quando este nos

informa que a Filosofia vem a ser a última das instâncias. E, como tal, sua palavra é lei.

E, se lei, deve ser obedecida, independentemente dos vícios que tocam a sua estrutura14.

Ela representaria, portanto, a cúpula do Poder Judiciário brasileiro. E dessa decisão não

haveria a possibilidade de se impetrar mais nenhum recurso.

Os operadores do Direito enfrentam um grande dilema, a saber:

desconstruir a norma ou continuar a aplicá-la de forma obsoleta e desgastada? Segundo

observamos, face às grandes transformações sociais que se avizinham, não resta dúvida

que a melhor alternativa seria, como já dissemos, desconstruir a norma jurídica e

revelar-lhe o verdadeiro conteúdo. Portanto, pugnamos por uma norma sócio-filosófica

que, observando as diretrizes da transdisciplinariedade, passaria a criar um Direito mais

apto ao social rompendo, em definitivo, com a estrita legalidade.

13 Art. 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”14 À guisa de analogia, seria o mesmo fato que ocorreu com o IPMF que, para fugir da inconstitucionalidade, teve a sua estrutura transmutada em CPMF. É, mesmo assim, inconstitucional e que produz, lamentavelmente, efeitos no mundo jurídico. Sob a pecha da legalidade, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos (nove, na verdade), declarou sua constitucionalidade. É mais um caso de algo juridicamente sustentável. Porém, moralmente condenável!

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Torna-se evidente que a discussão ora apresentada, se bem

enxergamos, toca a questão fundamental, qual seja, os princípios. Estes estariam

desgastados (ou estariam a sofrer mutação, o que pode deformar-lhes o conteúdo).

Façamos a seguinte pergunta: esse desgaste – ou mutação – está intrinsecamente

relacionado aos mais profundos avanços culturais, artísticos, morais, filosóficos,

sociológicos, políticos e tecnológicos? Se a primeira resposta for não, devemos crer que

a sociedade ainda dorme na Idade Média, como assim pretende considerar o

(neo)positivsmo. No entanto, se a resposta for afirmativa diz-se que os modelos

culturais, artísticos, morais, filosóficos, sociológicos, políticos e tecnológicos há muito

sofreram, em suas raízes, alterações e, sendo assim, a questão principiológica restaria

prejudicada, o que vale dizer: como a sociedade avançou de uma maneira ímpar, ela

passou a esquecer que a norma faz, sim, parte da sua estrutura.

Trata-se de um movimento cultural interessante, se é que assim

podemos denominar. Um movimento que afasta a norma, tal como se apresenta, isto é,

em sua estrita legalidade, mas que necessita de um controle normativo, sociológico e

filosófico, mais preparado para lidar com os anseios do século XXI (ou século das

transformações sociais, como ousamos denominar).

Habermas diz:

“Há, portanto, uma conexão entre a teoria do conhecimento fundamentalista, que confere à filosofia o papel de um indicador de lugar para as ciências, e um sistema de conceitos ahistórico, sistema este que é enfiado sobre a cultura como um todo e ao qual a filosofia deve o papel não menos duvidoso de um juiz, a presidir um tribunal sobre as zonas de soberania da ciência, da mora e da arte.” (HABERMAS, Consciência moral e agir comunicativo, pg. 19, 1989.)

Se a Filosofia pudesse responder às questões jurídicas de uma

maneira absolutamente plena, e se declarássemos que somente ela pudesse administrar

os conflitos que estão insertos na sociedade, esbarraríamos na figura do rei-filósofo,

segundo nos informa Platão, em sua obra a “República”. Refutamos essa idéia

sobremaneira (porquanto a construção da figura do rei-filósofo mostra-se eivada de

vícios desde a sua concepção). Não estamos a expurgar a utilização da Filosofia no

Direito. Ela é, sim, deveras importante (e quanto a isso não temos a menor dúvida).

Estamos apenas a considerar que a norma é parte intrínseca da Ciência Jurídica. E como

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tal, é objeto de estudo do próprio Direito. Quer-se dizer que o Direito estuda o próprio

Direito (o que faz surgir severas críticas sobre o seu método de atuação social). Estudar-

se revela parcialidade, o que faz ocultar, inclusive, os defeitos que existem na própria

norma. Talvez o coerente fosse estudar a norma não como objeto, mas como sujeito. Por

isso falamos em uma norma sócio-filosófica.

Kant dizia que a Filosofia ocupava o papel de juiz, ou seja, de um

ente supremo que administraria todos os desejos dos seres humanos. É evidente que o

filósofo deveria padecer de uma febre terçã quando desta alegação, segundo

entendemos. A moderna Filosofia questiona a si própria e refuta todo e qualquer ato

normativo que tenha o condão exclusivo de ditar comportamentos. É preciso que haja

entre as Ciências (Humanas, Exatas e Biológicas) expectativas, isto é, diálogo. O

Direito, à guisa de curiosidade, não cria expectativas em relação aos outros ramos da

Ciência. Sua estrutura é, evidentemente, impositiva, isto é, dita comportamentos. Logo,

cria-se a não-expectativa, o que corresponde à frustração, à luz dos conceitos de Niklas

Luhmann. Isso faz com que o conhecimento desenvolva uma postura linear, o que é

deveras prejudicial à sociedade. O certo seria desenvolver o conhecimento radical, isto

é, profundo, questionador da sua própria essência.

Trata-se do conceito de pós-modernidade. E segundo podemos

entender, a pós-modernidade vem a ser toda a gama de conhecimentos que sofreram

desconstrução em face dos efeitos culturais, artísticos, morais, filosóficos, sociológicos,

políticos e tecnológicos que tocam, fundamentalmente, os anseios do século XXI. Não é

à toa que a obra de Edgard Morin, intitulada Os desafios do século XXI – religar os

conhecimentos, buscou construir uma sociedade mais preparada para lidar com as

vicissitudes que se avizinham. A pós-modernidade, portanto, está intimamente

relacionada às transformações sociais.

O Direito é instrumento de controle social. Basta uma análise

simples para se verificar o que estamos a dizer. A norma, tal como hoje ainda se revela,

governa as ações humanas. A norma seria como Filosofia, à luz dos conceitos

kantianos: exerce a função de dominação. Kant nos traz a informação de que a Filosofia

dita os lugares das ciências. E quando deste comportamento impõe, isto é, delimita o

campo de atuação. Hodiernamente, observamos, o Direito inspira-se nas lições do

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filósofo, o que é deveras prejudicial. A Mãe de todas as Ciências libertou-se da mácula

que a acompanhava. Contudo, esta mudança de postura não se aplicou ao Direito.

Essa técnica jurídica, portanto, atesta que a norma a tudo não

responde, como já havíamos colocado. O desespero dos diversos movimentos sociais15,

por exemplo, demonstra claramente o nosso raciocínio, qual seja, que se faz necessário

desconstruir a técnica jurídica e construir, em terreno mais fértil, a possibilidade de uma

nova norma, mais próxima, assim entendemos, do tecido social.

Todas as Ciências, hoje, passam por crises. E solucioná-las não é

tarefa das mais fáceis. Com o Direito não poderia ser diferente. Ele se encontra dentro

das linhas mais frágeis – porquanto sua linguagem, hermética em essência, remete-nos a

um passado deficitário, propriamente normativo. Esse passado-presente, como ousamos

chamar, traz à baila a velha discussão que será tema corrente em nossa dissertação:

como equilibrar o Direito e fazê-lo produzir a sadia norma? Dizemos que a resposta

encontra-se sustentada na Teoria da Linguagem, mais apta a construir valores reais e

que informam à sociedade.

A produção dos efeitos, portanto, está intrinsecamente ligada à

maneira como o tecido social reage, isto é, como as transformações jurídicas passam a

integrar o grande sistema social. E essa ruptura brusca que se avizinha, ou seja, essa

ruptura com o estritamente normativo, conduz o Direito a um atoleiro. E será lá que a

estrutura normativa decretará o fim das relações sociais. Ou o Direito muda ou as

relações sociais entrarão em franco declínio, desaparecendo gradativamente.

Por fim, apresentamos, pela ordem, os seguintes pontos fulcrais

que orientaram o nosso estudo:

a) aplicar a desconstrução de Derrida na dogmática jurídica,

apontando as falhas nesta estrutura tradicional;

15 Os movimentos sociais aqui estabelecidos não se encontram situados em nenhuma cor partidária. Significa apenas que a sociedade se movimenta, isto é, busca novas formas de interpretação, de construção de um novo Direito que toque, fundamentalmente, os anseios sociais, tão-somente.

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b) socorrer-se ao pensamento de Foucault para desenvolver o

discurso da linguagem e os perigos que ela nos revela;

c) entender o consenso de Habermas e preencher as lacunas que

permeiam o Direito;

d) criar observações nas lições que a Sociologia do Direito

constrói fornecendo, é evidente, mecanismos eficazes para se melhorar a sociedade;

e) compreender a diversidade do tecido social utilizando a

Filosofia e a Sociologia para identificar os problemas estruturais que tocam a raiz do

Direito;

f) avaliar se as lições de Derrida, Foucault e Habermas conduzem

a sociedade para um caminho mais saudável;

g) afastar o raciocínio deficitário da dogmática jurídica que toca o

tecido social, impedindo-o de evoluir;

h) buscar uma possível solução para a imprecisão da linguagem

no Direito;

i) (re)estabelecer o elo de ligação, genuíno (apontamos), entre

sociedade e Direito;

j) introduzir a perspectiva histórica para melhor compreender a

involução do Direito;

k) compreender como a retórica está intrinsecamente ligada ao

Direito e, se dessa poderosa união, restou algum efeito nocivo para a sociedade;

l) estabelecer paralelos e demonstrar, com rigor científico, quais

os problemas mais comuns que tocam o solo do Direito;

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m) revelar, através da Filosofia, especificamente na obra de

Werner Jager, a saber, Paidéia – a formação do homem grego, porque o uso de

sofismas faz surgir um Direito alheio à sociedade;

n) decodificar a estrutura da dogmática jurídica com base nas

principais obras do professor Leonel Severo Rocha;

o) buscar um possível entendimento para as novas perspectivas do

Direito no século XXI;

p) procurar a estrutura deficitária da norma e melhorá-la através

dos ensinamentos de Leibniz;

q) utilizar a hermenêutica como a principal ferramenta no

universo das pessoas e do próprio Direito;

r) entender os motivos que levam ao ruído, isto é, na falha de

comunicação em virtude da má construção da norma.