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DIREITOS HUMANOS, DIVERSIDADE CULTURAL E DIÁLOGO 1 Claudia Fonseca, UFRGS I. Comentários introdutórios As discussões sobre os direitos humanos giram, em geral, em torno de uma preocupação humanista - a de promover a justiça social. Tratando-se de um assunto praticamente consensual nas democracias ocidentais, não haveria em tese muitas diferenças quanto aos princípios básicos desta justiça. O problema surge, no entanto, quando propõe-se implementar esses princípios. A questão permanece em aberto: como produzir transformações que garantem a justiça social ? Como agir na sociedade para alcançar estes objetivos? E por que, apesar das melhores intenções, as campanhas e projetos parecem falhar? Ao propor falar, nesse artigo, de “Direitos humanos, diversidade cultural e diálogo”, proponho apontar para algumas questões metodológicas que surgem na implementação de programas cunhados para promover a justiça social. Depois de introduzir, na primeira parte do artigo, noções centrais, passo então a considerar dois exemplos voltados para a proteção dos direitos da criança e adolescente no contexto brasileiro. A. Os direitos humanos Existe, dentro da Antropologia, uma trajetória nada desprezível de teóricos fitando a relação desta disciplina com o ideário dos direitos humanos (Arantes 1992, Oliveira 1996 Wilson 1997, Leite 1998, Novaes e Lima 2001, Novaes 2001, Turner 1994, etc.). Não pretendo trazer toda a sutileza dos vários argumentos aqui, mas, antes, resumir algumas das reflexões mais ou menos consensuais dentro da área. 1 1999 “Direitos humanos, diversidade cultural e diálogo”, palestra proferida durante a IV Semana de Antropologia: Cidadania e o (re)conhecimento do outro, Universidade Católica de Goias, 16-20 de agosto.

Direitos humanos, diversidade e diálogo, 1999 · fitando a relação desta disciplina com o ideário dos direitos humanos (Arantes 1992, Oliveira 1996 Wilson 1997, Leite 1998, Novaes

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DIREITOS HUMANOS, DIVERSIDADE CULTURAL E DIÁLOGO 1

Claudia Fonseca, UFRGS

I. Comentários introdutórios As discussões sobre os direitos humanos giram, em geral, em torno de uma preocupação humanista - a de promover a justiça social. Tratando-se de um assunto praticamente consensual nas democracias ocidentais, não haveria em tese muitas diferenças quanto aos princípios básicos desta justiça. O problema surge, no entanto, quando propõe-se implementar esses princípios. A questão permanece em aberto: como produzir transformações que garantem a justiça social ? Como agir na sociedade para alcançar estes objetivos? E por que, apesar das melhores intenções, as campanhas e projetos parecem falhar? Ao propor falar, nesse artigo, de “Direitos humanos, diversidade cultural e diálogo”, proponho apontar para algumas questões metodológicas que surgem na implementação de programas cunhados para promover a justiça social. Depois de introduzir, na primeira parte do artigo, noções centrais, passo então a considerar dois exemplos voltados para a proteção dos direitos da criança e adolescente no contexto brasileiro.

A. Os direitos humanos Existe, dentro da Antropologia, uma trajetória nada desprezível de teóricos fitando a relação desta disciplina com o ideário dos direitos humanos (Arantes 1992, Oliveira 1996 Wilson 1997, Leite 1998, Novaes e Lima 2001, Novaes 2001, Turner 1994, etc.). Não pretendo trazer toda a sutileza dos vários argumentos aqui, mas, antes, resumir algumas das reflexões mais ou menos consensuais dentro da área.

11999 “Direitos humanos, diversidade cultural e diálogo”, palestra proferida durante a IV Semana de Antropologia: Cidadania e o (re)conhecimento do outro, Universidade Católica de Goias, 16-20 de agosto.

Quando um termo como “direitos humanos” vira moda, parece que basta botar esse rótulo num projeto e está garantida sua eficácia. Estes projetos conseguem então mobilizar gente com as melhores intenções, pessoas idealistas, abnegadas que querem bem aos outros. Mas é preciso lembrar que não bastam as boas intenções. Quantas campanhas foram feitas ao longo da história em nome do “bem dos outros”? Como esquecer as cruzadas da Idade Média que, em nome da salvação espiritual dos infiéis, provocaram o massacre e tortura de centenas de milhares de indivíduos? Como esquecer que o empreendimento colonialista foi feito em nome do “fardo do homem branco” - de nações “civilizadas” que queriam compartilhar com povos “atrasados” os benefícios da civilização...? E, chegando mais perto de casa, como ignorar a terrível ironia de políticas orquestradas pelas forças do OTAN no Kosovo que - mais uma vez - em nome dos direitos humanos, bombardeiam hospitais e fazem boicotes provocando a morte e mutilação de milhares de civis2? É óbvio que, hoje, a maioria de nós teria dificuldade em classificar essas investidas bélicas como campanhas a favor dos direitos humanos. A uma distância histórica ou geográfica bem confortável, reconhecemos sem dificuldade a manipulação cínica do termo. Mas não devemos esquecer que as pessoas mais próximas dos eventos nem sempre têm o recuo que permita tal lucidez. Há, apesar de tudo, indivíduos bem intencionados que embarcam nestas histórias - as cruzadas, o colonialismo, a guerra de Kosovo, o boicote contra Irã - acreditando que, a longo prazo, é essa ação a mais justa, a melhor para a humanidade. Houve, em diferentes momentos da história ocidental, movimentos para superar falhas particularistas e garantir, através de convenções internacionais, uma versão universalmente reconhecida dos direitos humanos. No entanto, basta olhar para a história para ver a que ponto essas tentativas foram orientadas (e limitadas) pelos valores da época e do lugar em que foram produzidas. Por exemplo, não ocorreu aos autores da primeira Declaração dos Direitos do Homem (promulgada em 1789 durante a revolução francesa) de estender os princípios do documento às mulheres francesas. Não há dúvida quanto ao caráter proposital dessa exclusão: Olympe de Gouges, a mulher que - na época - ousou aspirar à igualdade, escrevendo uma Declaração dos Direitos da Mulher, foi guilhotinada (Scott 1996). Cento e cinqüenta anos

2 Esse texto foi originalmente redigido em 1998, mas os paralelos com a situação do fim de ano de 2001, o bombardeio de Afganistão, são evidentes.

depois, em 1948, os autores de uma nova Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas preocuparam-se em procurar além da burguesia européia para as bases de uma filosofia universal. No entanto, não houve entre os autores dessa Declaração nenhum representante das populações indígenas do mundo, nem dos povos islâmicos do chamado “Terceiro Mundo”, e, como um todo, a participação de mulheres ainda era pouco expressiva (ver Nader 1999). O processo de formulação desses princípios deixava margem à acusação que refletiam, antes de tudo, os valores de homens brancos (e heterossexuais) das classes dominantes. Estes casos nos lembram que o lema dos direitos humanos é um discurso produzido num contexto preciso por determinadas pessoas. Tal fato não tira a validade das campanhas empenhadas em nome de causas humanitárias, mas ajuda a colocá-las em perspectiva e lembrar que como qualquer outro slogan que tem um forte apelo emotivo, o de direitos humanos também se presta a manipulações mais ou menos conscientes. Boaventura Souza Santos é apenas um entre muitos pesquisadores que, apesar de simpatizar com o espírito dos direitos homens, assumem uma postura cautelosa diante de sua universalidade:

“Conçus de manière universelle, comme ils l’ont été, les droits de l’homme resteront un instrument du (...) choc des civilisations”, c’est-à-dire de la lutte de l’Occident contre le reste du monde. Leur validité globale sera gagnée au prix de leur legitimité locale.”

Em outras palavras, a definição do quê é “universal”, o quê é “local” é uma questão que toca tanto na diversidade cultural quanto na política. Cabe agora entender melhor o que representa essa “diversidade”.

B. A diversidade cultural A diversidade cultural parece, em princípio, um conceito simples, mas, ao refletir melhor, podemos levantar no mínimo três problemas de interpretação. Em primeiro lugar - devemos considerar a retórica da globalização que produz, em muitas pessoas, a impressão totalmente errônea, que – diante de forças como a CocaCola e a TV a cabo – as diferenças culturais estão se tornando um fenômeno do passado. Em resposta a essa noção, temos

múltiplas pesquisas antropológicas sobre o (res-)surgimento de identidades regionais e nacionais (Ver Oliven, 1992; Arruti, 1997) que parecem cada vez mais destacadas justamente por causa do intercâmbio intensificado. O grande interesse dos antropólogos hoje em questões que dizem respeito a margens, fronteiras e fluxos (Augé 1991, Hannerz 1992) é parcialmente devido ao reconhecimento que a diferença se define justamente através do contato. Mas, temos uma prova ainda mais convincente e certamente mais trágica da continuada importância da diversidade cultural nas guerras étnicas que não param de assombrar o planeta (a “guerra santa” entre Bush e Bin Laden sendo apenas um, mesmo que espetacular, exemplo). O fato é que, mesmo se porventura as diferenças culturais estivessem diminuindo por causa da mundialização da cultura, os ódios, preconceitos e formas de discriminação em nome dessas diferenças parecem crescer com cada novo dia. Uma segunda idéia errônea freqüentemente ligada à diversidade cultural é que essa noção diz respeito unicamente a territórios nacionais ou tribais. O “diferente” cultural é associado àquele bantu ou trobriandes do outro lado do globo ou, eventualmente, àqueles países (geralmente vizinhos) vistos como, de alguma forma, atrasados - os argentinos arrogantes, por exemplo, ou os paraguaios corruptos. Em todo caso, a diferença cultural é normalmente concebida como algo distante, ou, em todo caso, algo com a qual não é preciso lidar no dia a dia. Clifford Geertz (1999) é um de muitos antropólogos que contraria essa visão, frisando que a diversidade cultural que deve nos preocupar hoje não é necessariamente ancorada em grupos nacionais ou étnicos. Geração, gênero, orientação sexual e classe (entre outros) podem ser fatores igualmente decisivos, multiplicando os critérios de diferença ao mesmo tempo que pulverizam os grupos potenciais. Rompendo assim com a idéia de que exista um “nós” versus um “eles”, o autor coloca a questão da alteridade dentro da sociedade complexa. Nessa perspectiva, a lógica particular de quem mora na esquina pode ser tão “exôtica” (e tão digna de nossos esforços interpretativos) quanto a dos aborígines que vivem do outro lado do globo. Finalmente, devemos nos prevenir contra a folklorização da diferença cultural. Nesta, abre-se lugar apenas para aquelas figuras - aqueles “italianos”, “afro-brasileiros” ou “ciganos” – que correspondem pacificamente à nossa imagem deles. Aplicando uma noção completamente estanque de cultura, reduzimos a alteridade a alguns adereços folclóricos - danças, músicas, roupas -

rotulando todo o resto e, em particular, aquilo que não nos agrada, como resultado da degradação cultural, da perda de alguma pureza mítica que imaginamos ter existido no passado. Esta folklorização tem conseqüências seríssimas quando pensamos os direitos legais de nossas minorias “emblemáticas” - sociedades indígenas e descendentes de quilombos. Por exemplo, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) garante aos “remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras” o reconhecimento à propriedade definitiva. Conforme Leite (1999), uma antropóloga especializada nesse tema, o problema é definir quem entra na categoria de “remanescente”. Existem imagens extremamente exóticas sobre “o descendente de quilombos”. Quem não corresponde ao estereótipo – quem não tem pele escura por exemplo – tem boa chance de ser excluído. É possível dizer a mesma coisas de grupos indígenas que atualmente usam calça jeans e tênis. Basta um juiz resolver que não são “verdadeiros” indígenas para estas pessoas serem excluídas da categoria, e ver negados seus direitos constitucionais. É preciso lembrar que a história é levemente mais complicada do que as imagens folclóricas (ou normas jurídicas) nos levariam a crer. Nenhum grupo pára no tempo. Os membros de uma comunidade migram, casam com pessoas de fora, abandonam alguns costumes, adquirem outros … Enfim as várias culturas humanas são, antes de tudo, dinâmicas - passam por mutações. Em que momento as pessoas deixam de ser “remanescentes de quilombo” e passam a ser classificadas como “aqueles peões morenos”? É relativamente fácil imaginar como esses comentários se estendem a populações indígena (por exemplo) que, tão logo saem da selva e ocupam as esquinas urbanas, correm o real perigo de ser classificados como "meros" mendigos3. Devemos, no entanto, lembrar que outros estereótipos (tal, por exemplo, da criança inocente) também podem obscurecer nossa apreensão de pessoas em carne e osso. Será que tal atitude não explica por que, nos documento da CPI sobre a prostituição infantil, existe uma falta surpreendente de referências a casos concretos: "Apesar de os depoentes terem sido

3 Em outro lugar, cito o caso do índio pataxó, Galdino, assassinado por estudantes que agiram por engano, imaginando que tratava-se de um "mero" mendigo. A discussão remete-se ao perigo de classificar as pessoas em categorias de "mais ou menos humanos" (Fonseca 1999).

convocados para falar sobre a situação de vida das crianças/adolescentes, [...] a grande maioria preferiu abordar outros temas, como pobreza, políticas públicas, família" (Souza 2001: 186). Esse paradoxo lembra a experiência de outra pesquisadora que foi a Tailandia para estudar os jovens envolvidos na prostituição infantil. Ficou meses dentro das ONGs especializados no combate a essa atividade sem encontrar uma única criança prostituída (finalmente, resolveu se aventurar sozinha nos bairros pobres da cidade e só então fez contato com as crianças). É como se as organizações, não encontrando casos que correspondessem à sua imagem de criança inocente ou vitimizada, preferia trabalhar com abstrações (Montgomery 2000). Justamente para se afastarem das imagens pacatas e folclorizadas da diferença cultural, os antropólogos têm cunhado novos termos: falam em “alteridade radical” (Ramos 1991) ou “multiculturalismo crítico” em oposição ao “multiculturalismo enciclopedíaco” e ao pluralismo neo-liberal (ver T. Turner 1994); falam da diferença em vez da diversidade (Bhaba 1998). Em todo caso, querem deixar claro que a alteridade cultural que hoje se constitui como objeto de interesse antropológico, antes de nos entreter, é algo que nos incomoda. Diz respeito não a figuras exóticas, mas, sim, a pessoas morando perto, até em nossas casas, com quais devemos lidar no dia a dia. Nesse cenário, o papel do antropólogo seria o de explorar o terreno, muitas vezes minado, que existe entre um entendimento do mundo e outro. Seria o de fornecer uma espécie de mapa ou guia para transcorrer a distância que existe entre “subjetividades variantes” (Geertz 1999), aquele espaço conturbado de “entre-lugares” (Bhaba 1998) que ressalta a diferença. Fazendo assim, seguiria o projeto de uma Antropologia Semiótica – visando tornar a comunicação possível.

A diversidade cultural: Três falácias

A resposta antropológica

1. Que a globalização acabou com as diferenças culturais

1. Que as diferenças se acentuam no contato. (Logo, a importância de margens e entre-lugares)

2. Que as diferenças significativas dizem respeito apenas a territórios distintos e pessoas distantes

2. Que as alteridades começam não do outro lado do mundo, mas, antes, “à flor da pele” (classe, gênero,

geração, raça)

3. Que as diferenças culturais dizem respeito a traços folclóricos, herança de uma fase “mais pura” da cultura.

3. Que a cultura é dinâmica, constitui-se de “discursos múltiplos” em situações de interação e conflito

A compreensão dessa visão de diversidade cultural é fundamental se quisermos evitar os ardis conservadores do relativismo caricato4. Quem não conhece as desculpas estapafúrdias oferecidas para justificar situações grosseiras do status quo? Oferece-se, muitas vezes, o exemplo de lugares longínquos -- governos totalitários que, em nome da tradição cultural, perpetuam sistema políticos que vão de encontro aos interesses e desejos de boa parte da população. Mas temos exemplos mais perto de casa. Arrepio-me, por exemplo, quando vejo manchetes em jornais brasileiros, afirmando que corrupção (assim como esquadrões da morte e violência doméstica) é “uma questão de cultura”. Tais afirmações, freqüentemente parecem encorajar uma atitude fatalista diante da violência e injustiça, desculpando a ineficácia de políticas sociais ou, pior, promovendo a impunidade de criminosos. Ora, tais fenômenos são certamente complexos, exigindo uma análises que leva em consideração a história política, econômica, e social do contexto específico em questão. Mas justamente, por revelar qualquer “prática cultural” como altamente ambígua, conflituada e mutante, tal análise impede uma visão reificada da cultura. Insistir na complexidade dos valores não significa negar a importância de diferenças culturais, mas, sim, trabalhar com elas de forma dinâmica e criativa.

A. O diálogo entre teóricos e ativistas O enquadramento de diferenças em termos da diversidade cultural é fundamental para que haja um diálogo entre partes em desacordo. Veremos mais adiante exemplos dessas diferences em lugares surpreendentes. Aqui, ainda cabe discutir um outro tipo de diálogo necessário para a realização de políticas públicas eficazes, o diálogo entre teóricos e ativistas.

4 Conforme R. Wilson (1997: 7), o relativista Ronaldo Dworkin seria um exemplo de alguém que, trabalhando com um conceito reificado de cultura (internamente homogênea, com fronteiras bem delimitadas), estaria absolutamente alheio aos recentes avanços teóricos no campo de ciências sociais.

Quando é anunciada uma conferência sobre direitos humanos, parece que a platéia vem esperando denúncias -- informações que provocam indignação e que inspiram as pessoas a agir. Esse é o papel, indispensável, dos militantes dos direitos humanos. Embora muitos cientistas sociais não se enquadrem neste estilo, ainda são cidadãos sinceramente incomodados pela desigualdade e injustiça da sociedade em que vivem, e que querem contribuir, com suas pesquisas, para a melhoria da situação. A distinção entre militante e acadêmico é importante. Lá onde o militante deve agir rapidamente para denunciar situações específicas de violência, o pesquisador está sempre “parando para pensar”. Tal atitude não deve ser confundida com a versão caricata de relativismo cultural que corre por aí (Geertz 1988). Quando na presença de violência descarada, o pesquisador agirá, como qualquer outra pessoa, conforme sua consciência de cidadão. No entanto, a maioria esmagadora de violações de direitos ocorre dentro de uma zona cinzenta de relações complexas. Justamente porque o pesquisador procura ir além do caso individual, contribuindo assim para uma análise mais abrangente, ele recua temporariamente, para repensar o contexto, as relações e, em particular, os significados atribuídos pelos atores envolvidos a estas situações. Para o pesquisador, não há nada evidente de antemão, nem mesmo o alvo da denúncia. Para não cair nos velhos estereótipos de seu próprio senso comum (Bourdieu 1989), tem a responsabilidade de duvidar, criticar, e desconstruir seu objeto de estudo. O militante, planejador ou administrador – isto é, a pessoa que tem “a mão na massa” – deve manter o norte de um programa de intervenção muitas vezes dentro de um contexto político conturbado em que admitir erros seria dar munição ao inimigo. Que seja do serviço público, tentando mostrar o mérito da proposta do atual governo, ou de alguma ONG, querendo demonstrar para patrocinadores potenciais a superioridade de seu trabalho, o ativista deve não somente conceber e executar seu plano, ele também deve dar ampla publicidade a seus benéficos resultados. Tende portanto, no discurso público, a ressaltar pontos fortes de seu programa. Faz propaganda positiva, tanto para levantar a moral da equipe diante de situações extremamente árduas quanto para angariar as simpatias da opinião pública. Dúvidas e uma certa autocrítica existem, mas são mantidas a um mínimo. O pesquisador faz quase o oposto. Concentra-se nos problemas do programa de intervenção. Acredita que a análise de erros ensina tanto senão mais do que a análise de casos bem sucedidos, justamente porque revela elementos

inesperados da realidade, dinâmicas locais, que não foram contemplados pelo modelo teórico original. A análise crítica de programas de intervenção ensina, antes de tudo, que não basta ser “polticamente correto” para promover, na prática, a justiça social. A antropóloga britânica, Marilyn Strathern, resumindo o diálogo entre militantes e acadêmicos, opõe a “política radical” à “pesquisa radical”. Enquanto este, quer dizer, o “radicalismo acadêmico”, comprometido com dúvidas e questionamentos, parece produzir ações tímidas ou até mesmo nenhuma ação, o radicalismo político é fadado a um “conservadorismo conceitual” (1988, p. 27). Isto é, procurando agilizar ações para promover a “igualdade”, a “mulher” ou a “criança” (por exemplo), o militante toma como dadas ou naturais justamente aquelas categorias que os acadêmicos visam desconstruir. Esquematizei as abordagens de militante e de pesquisador da seguinte maneira: Tarefas do Militante - Ativista Tarefas do Pesquisador Denunciar

Compreender

Mobilizar a ação

Incitar à reflexão

Fazer propaganda

Fazer autocríticas

Ora, as pessoas muitas vezes sentem incomodadas pelas tensões esboçadas aqui entre o papel de ativista e o de analista. Em resposta, tentam ou negar a diferença (vide determinadas vertentes da pesquisa ação), fazendo uma espécie de amalgama das diferentes posturas, ou, pior, tentam estabelecer a superioridade de uma postura sobre a outra. Na primeira solução, é a enganadora aparência de consenso que estanca a discussão; na segunda, é o clima autoritário que não abre lugar para o diálogo. Entre as mais populares técnicas para estabelecer a hierarquia é o uso de “especialistas universitários” chamados para iluminar a prática dos “técnicos”. Contudo, quando, como é freqüentemente o caso, não há tempo e oportunidade para aqueles dialogarem com estes -- escutar suas análises e experiências, para juntos criarem uma

nova prática adequada àquele contexto em que atuam -- há de duvidar dos resultados dessa consulta.

II. Quando as mudanças chegam de pára-quedas Trarei agora dois exemplos para ilustrar minhas preocupações. O primeiro coloca questões sobre um programa de reforma institucional que propunha implementar os princípios do ECA numa rede estadual da FEBEM. Nesse exemplo, as “diferenças culturais” dizem respeito a nada tão exótico quanto etnias e povos; dizem respeito, antes, ao choque de percepções entre administradores cosmopolitas, inspirados em princípios internacionais dos direitos da criança, e funcionários locais – muitos de origem modesta – trazendo sua bagagem cultural própria. O segundo exemplo diz respeito a um desencontro entre a lei federal sobre adoção e os valores de famílias pobres de onde a maioria de crianças disponíveis para a adoção são tiradas. Nos dois casos, sugiro que os ideais da justiça social (e, até mesmo, boa parte das metas dos direitos humanos) não são alcançados por não haver diálogo entre os planejadores e as pessoas diretamente afetadas.

Exemplo 1: Escudo numa guerra santa A reforma da rede institucional da FEBEM-RS5 voltada para o atendimento a jovens privados de liberdade, realizada em meadas da década de 90, consistia basicamente na formação dos quadros conforme os princípios da “Doutrina de Proteção Integral”, estipulada no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Mas no caso específico, a nova doutrina encontrou diversos problemas que não atípicos nesse tipo de reviravolta institucional. O “novo” foi introduzido às custas de uma rejeição quase total do “antigo”. A época pré-reforma era vista como uma época de “represssão total” à infância. Certamente a reforma trouxe mudanças duradouras e positivas à rede de instituições. Entre outras, os princípios do ECA passaram a ser conhecidos por praticamente todos os funcionários da rede institucional. Mas, ao mesmo

5 Essas observações são tirada de pesquisas realizadas pelo NACI (Núcleo de Antropologia e Cidadania) - UFRGS dentro da rede institucional da FEBEM-RS (tanto com funcionários e administradores, quanto com internos) entre 1997 e 2001. Sintentizo aqui elementos da análise do quadro funcional durante o início desse período.

tempo, parecia que anos de história e experiências diversas eram esquecidos, sendo ressaltados, da época anterior, apenas os malogros - os episódios de abuso e violência institucional. Como resultado dessa abordagem, o pessoal que atendia aos jovens internos acabou sendo percebido como dividido em dois blocos: os “novos” funcionários - muitos dos quais eram jovens universitários sem experiência prática mas que incorporavam sem muita dificuldade a retórica da reforma em andamento - e os “antigos” funcionários. Em vez de pesquisar os conhecimentos acumulados da instituição para tentar incorporar certos deles no novo esquema, a administração passou a culpar este grupo de “antigos funcionários” como obstáculo principal à reforma. Visando sanar irregularidades e dar prioridade absoluta às necessidades dos adolescentes internos, a administração passou a suprimir uma série de “privilégios” aos quais os antigos funcionários tinham se acostumado: horas-extra, refeitório, creche para os filhos, etc. Numa das instituições criou-se um impasse entre a administração e alguns dos “funcionários antigos”. Diante da “des-integração” das partes da equipe funcional, instalou-se um clima de indisciplina que deu origem a repetidos motins e violências perpetradas entre jovens. Nesta situação, é irônico que quem mais sofreu era exatamente os jovens em cujo nome corria a reforma. A reforma foi orquestrada com a assessoria de especialistas internacionais com longa experiência numa agência da ONU, conforme os princípios mais esclarecidos dos direitos humanos. Segundo estes conselheiros, o mesmo tipo de reforma já tinha surtido efeitos sumamente positivos em outros países da América Central e Sul. Se não funcionava na instituição gaúcha em questão, era sem dúvida a culpa daquela parte retrógrada dos funcionários que sabotaram a reforma. O que, me pergunto, deduzir desse diagnóstico? Que nossa realidade não está à altura da teoria? O problema é que os funcionários - estes funcionários - fazem parte da realidade concreta. E mais, observou-se num momento posterior que muitos dos considerados “retrógrados” (que não conseguiam trocar o termo “menor” por “criança e adolescente”) ostentavam qualidades (facilidade de estabelecer vínculos com os adolescentes, por exemplo) que os mais novos e politicamente corretos não possuíam. No entanto, usando o ECA como um escudo simbólico numa guerra santa contra o « inimigo interno », os autores da reforma não foram, neste caso, capazes de dialogar com os “nativos”, isto é com os antigos funcionários. Estes foram

bombardeados de cursos e retórica para convertê-los à nova doutrina, mas não houve espaço para eles fazerem emendas ou modificações à política nova a partir de sua própria experiência. A teoria falava dos vícios da “cultura institucional” que deviam ser extirpados para acontecer uma verdadeira mudança - vícios sem dúvida muito reais. Mas não abria espaço nenhum para resgatar as qualidades – fruto de longa experiência neste contexto. Quando sugeri para um dos assessores internacionais que talvez pudesse existir uma certa escuta dos antigos funcionários para levantar elementos relevantes deste contexto, ele olhou perplexo para mim, como se não tivesse entendido bem o comentário. Depois, como se tivesse acendido uma luz, lembrou que eu era antropóloga, e saiu falando de cultura. Garantiu que já tinha contemplado os aspectos “culturais” da situação. Falou então da “cultura híbrida” da América Latina que incluiria elementos ibéricos, africanos e indígenas - uma cultura tão abrangente que, evidentemente, prescindia de qualquer nova pesquisa empírica. A especificidade latino-americana já fora diagnosticada (a partir de um estudo no México, ou em Costa Rica, ou...). Para que haveríamos de recomeçar? Ora, a perspectiva antropológica lembraria justamente que o Brasil não é igual a Costa Rica, Goias não é igual a Rio Grande do Sul, nem Porto Alegre a Brasília. Para planejar uma política de interação em qualquer situação é preciso saber com quem estamos lidando, é preciso ter dados precisos tanto sobre os funcionários quanto sobre os adolescentes e suas famílias. De onde vêm (nível educacional, situação social, econômica...) ? para onde vão (elementos identitários, aspirações, etc.) ? Quais seus entendimentos de noções tais como direitos e justiça ? Quais suas formas de solidariedade, sociabilidade e hierarquia ? Quais, em suma, os elementos capazes de fornecer elementos para uma política educacional adequada ? É este tipo de informação que abre o caminho para uma política dialógica de reforma. Não se trata de simplesmente repetir o “tradicional”, mas, sim, de estabelecer um diálogo entre os princípios abstratos da reforma e a realidade concreta, num contexto local. E, a partir desse diálogo, aceitar a possibilidade de uma transformação de atitudes por parte de ambos lados da conversa. Infelizmente, o sistema de administração pública não parece encorajar o resgate da experiência funcional. É típico de nosso sistema político cada novo administrador querer fazer uma reforma de cima para baixo através de novas regras. Num espírito quase messiânico, demoniza-se o passado para ressaltar a importância do “novo”, e - por extensão - o prestígio e originalidade dos

inovadores. Estes agem como se estivessem criando uma sociedade nova a partir de uma tabula rasa, quando muitas vezes estão simplesmente redescobrindo a roda (os “direitos da criança” estão presentes entre nós, no mínimo, desde a declaração de Genebra, em 1923 – e muitos outros elementos da “doutrina de proteção integral”, anunciados como “novos”, já vêm sendo ensaiados, com resultados mistos, há muito tempo -- ver Guy 1998, Rizzini 1997, Marquez 1999). O erro do agente social seria privilegiar uma atitude política em vez de profissional - uma atitude profissional calcada na avaliação nada maniqueista de experiências práticas. É esta (auto-)avaliação lúcida - de atividades passadas e presentes - que nos ajuda a encontrar maneiras para realizar os princípios de justiça social em contextos concretos. Sem ela, nem os ideais mais utópicos têm resultado garantido. O problema levantado aqui nos remete mais uma vez à questão dos diferentes papeis – do militante-ativista e do pesquisador universitário -- distintos mas complementares: um não vai longe sem o diálogo com o outro. Tal perspectiva é estranha ao pensamento autoritário que invade boa parte do campo de ação social. Neste tipo de pensamento (que chamo aqui “legalista”), os teóricos (que sejam oriundos das agências internacionais ou das faculdades locais) são vistos como seres iluminados, que trazem soluções de cima, na forma de regras abstratas. A realidade empírica, neste caso, é vista como mera contingência. Quando uma política social não dá o resultado esperado, a tendência é voltar a estudar a teoria, com zelo dobrado, para diagnosticar erros na sua aplicação. Raramente volta-se a questionar a teoria, ou a procurar, através do estudo do contexto local, elementos capazes de mostrar os limites da proposta teórica. Sabemos que, no colégio ou na universidade, é mil vezes mais fácil o professor ensinar uma teoria abstrata do que um método investigativo voltado para a realidade. De forma semelhante, na área de políticas públicas, sugiro que é mais fácil o planejador transmitir uma receita (importada em geral de um contexto diverso), do que levar os agentes locais - aquelas pessoas que têm longa experiência na prática lidando com problemas de justiça social – a usar seus conhecimentos de forma criativa, em diálogo com as novas teorias. Tal diálogo, que implica em dotar os técnicos não somente do instrumental mas também da autoridade de pesquisador, pode assustar os planejadores que temem perder controle do processo. No entanto, ignorar a riqueza da experiência profissional -- esse patrimônio do corpo técnico -- é entregar-se a uma atitude totalitária, com soluções que vêm “de paraquedas”, fadadas a naufragar na areia branca da teoria abstrata.

A adoção à brasileira: a legislação e a diversidade cultural Nosso segundo exemplo envolve ainda outro tipo de contato "intercultural". Em vez de ver claramente duas categorias em confronto, como no caso da administração da FEBEM, agora, consideramos o desencontro entre uma forma de legislação, aparentemente progressista, sobre a adoção de crianças e a vivência de certos grupos que essa legislação afeta. Mais uma vez, chama-se atenção a maneira como tantas coisas (políticas públicas, leis...) são resolvidas sem nenhuma consideração da realidade, sem consulta às pessoas, em carne e osso que são mais implicadas. Assisti, recentemente, a três dias de seminário sobre a adoção em que 95% das atenções eram voltadas para os pais adotivos da criança. Sobre os genitores houve quase nada. Dá-se a impressão de que as criancas adotadas nascem num repolho. Outro silêncio que faz eco ao primeiro - considerações sobre a particularidade brasileira. As conversas (como criar uma cultura de adocao, como assessorar os pais adotivos) parecem iguais àquelas que ouviríamos se estivéssemos na França ou nos Estados Unidos. Na verdade, uma das únicas referências feitas especificamente ao contexto brasileiro foi de tom inteiramente negativo. Um operador de justiça levantou e deixou, quase como conclusão dos três dias, a dica que : “Nossos grandes esforços devem ser prevenir contra a adoção à brasileira”. Que fenômeno seria isso que inspira tanta indignação? A “adoção à brasileira” é o termo que usamos quando um adulto estabelece o certificado de seu filho de criação como se fosse um filho biológico (ver, também, Abreu 2000). Trata-se de uma prática ilegal ao mesmo tempo que extremamente comum. Conforme algumas estimativas, no Brasil, para cada criança adotada legalmente, existem cerca de dez adotadas “à brasileira”. Esta forma de “falsidade ideológica” é facilitada pelo grande número de certificados “tardios” (atualmente, um terço do total anual) estabelecidos muitas vezes apenas quando a criança inicia as aulas ou mesmo mais tarde. É uma prática arriscada - não somente porque os pais, se descobertos, podem ser processados (e condenados à prisão) mas também porque fragiliza o status da criança. Se, por exemplo, algum parente consanguíneo quiser disputar os direitos hereditários do indivíduo falsamente registrado como filho, basta ele desmascarar a ilegalidade da certidão de nascimento. É paradoxal que esta transgressão cometida, sem dúvida, no intúito de garantir os direitos legais da

criança, acaba tendo o efeito contrário6. A questão é : por que as famílias não passam pelos trâmitos normais de adoção? Para responder, trago algumas reflexões da pesquisa etnográfica de campo em Porto Alegre. Fui trazida ao tema de adoção pela pesquisa que faço, em grupos populares brasileiros, sobre a circulação de crianças - uma prática familiar, velha de muitas gerações, em que crianças transitam entre as casas de avós, madrinhas, vizinhas, e “pais verdadeiros”. Dessa forma, as crianças podem ter diversas “mães” sem nunca passar por um tribunal. No decorrer da minha pesquisa com cerca de 120 famílias em dois bairros diferentes, estabeleci relatos sobre quase cem crianças que tinham “circulado”; nunca soube uma só criança legalmente adotada pela família com que vivia (Fonseca 1995). Na maioria de casos, a criança não perde sua identidade original e, mesmo depois de anos passados junto aos pais de criação, tem sempre uma real possibilidade dela reatar laços, na vida adulta, com seus parentes consanguíneos (pais, irmãos, primos…). Mas em certos casos, os filhos são dados “de papel passado” com o entendimento que a mãe biológica não terá mais direito a contato. Lembro em particular de duas mães que deram depoimentos sobre sua experiência7. Não há nenhuma dúvida quanto à competência materna dessas mulheres que criaram bem outros filhos. Cada uma foi pega num momento desastroso da vida, e vendo que não podia arcar com o onus de um recém-nascido, resolveu abrir mão do nenê. Fizeram essa escolha dolorosa, mas fizeram “pelo bem do filho”. Contemplaram a candidatura dos pais adotivos, pesaram as circunstâncias - escolheram lugares onde poderiam acompanhar (a uma distância) o crescimento de seus filhos, e desta forma, articularam sua “doação” à família adotiva (ver Mauss 1974). Com a adoção à brasileira, tiveram essa opção. A adoção legal não deixaria nenhuma margem de escolha a estas mães. Fala-se da família biológica apenas no processo de destituição de pátrio poder, mas uma vez destituídos, é como se os membros da família biológica não existissem.. De fato, a “adoção legal” tal como a conhecemos hoje (com a cessão de qualquer vínculo entre genitores e seus filhos) é um fenômeno muito recente na história. Desde a antiguidade existem outras formas de adoção que dizem

6 Uma outra objeção à adoção à brasileira é que abre a porta para todo tipo de transação ilegal - inclusive transações comerciais que alimentam o mercado internacional de adoção.

7 Esses depoimentos foram gravados e constam do vídeo “Cirando, Cirandinha”, produção NAVISUAL-PPGAS-UFRGS.

respeito principalmente à transmissão de patrimônio ou de poder político, mas - nestas - em geral a criança simplesmente acrescenta a nova filiação (adotiva) à antiga (biológica). É só nos últimos quarenta anos que vemos surgir a idéia de uma família adotiva que "imita a natureza" a tal ponto que aniquila os laços e a identidade da família biológica. A idéia de filiação substitutiva8 pela qual apaga-se a identidade dos genitores só surgiu depois da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, essa “adoção plena” já esboçada em leis de 1965 e 1979) passou, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a ser a única forma de adoção. Qual é a justificativa, no "sistema moderno", de privilegiar os pais adotivos, fazendo com que os genitores desapareçam da existência de seus filhos? Segundo os argumentos tradicionais dos juristas, o "segredo das origens" tinha o objetivo precípuo de prevenir o infanticídio. A genitora era freqüentemente uma adolescente solteira que desejava refazer sua vida sem o fardo de uma criança bastarda. Eliminar todo traço de ligação entre ela e a criança garantia os interesses da primeira, e a vida da segunda. Mais recentemente, tentou-se dar à adoção uma auréola de nobreza. O gesto "caridoso" das mães adotivas seria o complemento do "nobre" sacrifício da genitora. Mas o efeito é o mesmo: justificar o apagamento da filiação biológica. Ora, segundo minhas experiências no Brasil, as mulheres que colocam seus filhos - na FEBEM ou com uma família de criação - não são motivadas por sentimentos de ordem "tradicional". Sua intenção não é esconder uma vergonha, nem de fazer um nobre sacrifício. Elas colocam seus filhos porque elas não têm as mínimas condições para cuidar deles. Não abrem mão, no entanto, da esperança de revê-los mais tarde. Mesmo quando essa expectativa não é abertamente declarada, é engendrada pelos valores que subjazem as práticas familiares. “Todo mundo sabe” (existem inúmeros exemplos para comprovar o provérbio): o sangue puxa. As crianças podem passar anos longe dos parentes biológicos; é sempre possível que voltem para reatar laços. Ao que tudo indica, a circulação de crianças é, em certas partes do Brasil, uma prática antiga e relativamente bem-sucedida. Será que a legislação do país abre um espaço para qualquer consideração sobre estas tradições locais? Parece que a inspiração que anima a nova legislação é de outra ordem. Os juristas se orgulham em ter formulado um conjunto de leis digno “do

8 Ver Verdier et Delaisi (1994).

Primeiro Mundo”. Será que a legislação “primeiro mundista” é adequada ao contexto brasileiro? Será que já ouviram falar de “pais de criação” ou a circulação de crianças là na Europa ou América do Norte? Minha hipótese é de que essas leis - de inspiração iluminista internacional - são vividas como draconianas por muitos brasileiros. Desta forma, apenas as mães realmente desmunidas aceitam as condições da lei. As outras - aquelas que não são nem debilitadas nem violentas - preferem qualquer coisa menos a adoção legal - essa renúncia permanente e irrevogável a qualquer ligação, até a qualquer informação, sobre seu rebento. Não seriam estas - as relativamente responsáveis que querem participar da escolha da família adotiva - que praticam “a adoção à brasileira”? É interessante como os legisladores escolhem certos elementos a não outros a serem apresentados como sendo “o que praticam no Primeiro Mundo”. Devemos lembrar que existem movimentos nos Estados Unidos e na Europa há tempo para repensar a chamada “adoção plena”. O segredo de origens e a filiação substitutiva são políticas particularmente discutidas. Além do mais, a modalidade de “adoção aberta”, já sendo ensaiada na década de 60, goza de grande legitimidade particularmente na América do Norte. Conforme uma das centenas de agências que intermediam este tipo de adoção, os pais biológicos têm direito não somente de encontrar mas de participar da escolha dos pais adotivos de sua criança. Assim a adoção aberta implicaria “a revelação total de informações e (…) o compromisso com relações duradouras.”9 Em outras palavras, o princípio da “circulação de crianças” que cria elos, em vez de rupturas, na vida de uma criança não é tão inusitado assim e, no entanto, no ano 2000, nem nos serviços de adoção mais avançados do Brasil, não se ouve falar de “adoção aberta”. Os motivos desse silêncio merecem um outro artigo. O importante aqui é de sublinhar o descompasso entre a legislação “ideal” e as práticas e valores dos sujeitos em carne e osso. Faz sentido continuar se queixando das pessoas “irresponsáveis” que derespeitam a lei sem colocar em questão a natureza possivelemente inadequada das leis existentes? Esse é apenas um entre muitos e muitos casos. Será que a lei não seria mais eficaz se admitisse a possibilidade de diversidade cultural no seio da modernidade? Se reconhecesse a possibilidade de diálogo não somente

9 Citação de um entre quase 3.000 sites na internet sobre este assunto: “Values Based Open Adoption Program - A Statement of Beliefs”.

entre os diferentes setores da população mas também entre as leis inspiradas em princípios internacionais de direitos humanos e a realidade local? * * * * * A moral da história é que a justiça social não cai de paraquedas do céu, nem brota espontaneamente dos infindáveis congressos internacionais de juristas. É evidente que os princípios da justiça social exigem uma codificação abstrata e que esta codificação implica em amplas discussões teóricas. No entanto, a teoria desencarnada, isto é desligada de qualquer realidade concreta, nada garante. Seria um erro fatal imaginar que tudo se resolve com o aperfeiçoamente de novos estatutos. Se a nova constituição e seus anexos estatutários mudaram alguma coisa no nosso país, não é por ter produzido um novo dogma. É, antes, graças ao movimento que acompanhou sua redação: os incontáveis encontros que mobilizaram - além de teóricos - pessoas com conhecimentos e experiência práticos, todos engajados na procura de soluções, o exame da realidade, a valorização da prática, a dúvida, o diálogo. Se levanto dúvidas quanto a certas aplicações da legislação progressista (o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo) (Cardarello e Fonseca 1999), não é por rejeitar os princípios dessa legislação, muito menos para propor princípios ou receitas teóricas melhores. Tampouco considero meus comentários superiores aos dos técnicos e administradores, muitas vezes militantes dos direitos humanos, que diariamente enfrentam jagunças de todo tipo para realizar os ideais da justiça social. Pelo contrário, analisar situações concretas, com destaque particular para tensões e resultados imprevistos, é minha proposta para, do lugar do pesquisador, adubar o diálogo entre teoria e prática e, desta forma, fazer uma modesta contribuição acadêmica para a causa, abraçada por todos nós, da justiça social.

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10

10 “O imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais.” (Bourdieu e Wacquant, 1998, p.17)10