287
http://bd.camara.leg.br “Dissemina os documentos digitais de interesse da atividade legislativa e da sociedade.”

Direitos Humanos e as práticas de racismo

Embed Size (px)

Citation preview

  • http://bd.camara.leg.brDissemina os documentos digitais de interesse da atividade legislativa e da sociedade.

  • Braslia | 2013

    Conhea outros ttulos da Edies Cmara no portal da Cmara dos Deputados: www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes

    Cmara dosDeputados

    TEMA

    S DE IN

    TERESSED

    O LEG

    ISLATIVO

    Direitos humanos e as prticas de racismoIvair Augusto Alves dos Santos

    Direitos humanos e as prticas de racismo

    Em 2011, a Cmara dos Deputados, com apoio da Procuradoria Espe-cial da Mulher, aderiu ao Programa Pr-Equidade de Gnero e Raa, para fomentar novas concepes na gesto de pessoas e na cultura orga-nizacional e avanar na conquista de maior equidade nas relaes de trabalho.

    A incorporao do programa em sua Poltica de Recursos Humanos evidencia o compromisso da Casa de tornar o ambiente de trabalho mais saudvel, justo e igualitrio. A publicao deste livro insere-se nesse contexto, com intenes mais abrangentes. Visa estender, para alm das fronteiras organizacio-nais, a compreenso sobre o racis-mo institucional, e contribuir com a ampliao do dilogo sobre as consequncias dessa prtica desu-manizante, que se revela corriquei-ra e no assumida por indivduos e instituies.

    A negao do racismo institucional impossibilita o seu enfrentamento e a sua erradicao. Consequente-mente, impede o acesso de grande parte da populao a direitos e ga-rantias constitucionais e restringe o pleno exerccio da cidadania. Cabe s instituies investir na mudan-a, abrindo espao para a discus-so do problema e a adoo de aes afirmativas.

    Reside a a contribuio do presente estudo, razo por que a Cmara dos Deputados apoia e estimula a sua divulgao. Espera-se com isso tam-bm incentivar outros rgos a re-fletirem sobre o tema, discutindo-o interna e externamente, para que a questo racial aflore e mudanas efetivas possam ser promovidas.

    Luiz Csar Lima CostaDiretor de Recursos HumanosBraslia, 12/11/2012

    Milhares de processos penais fo-ram analisados para se chegar s concluses estarrecedoras apresen-tadas neste livro: a cada 17 denn-cias de racismo no Brasil, apenas uma vira ao penal; entre as aes, 92% so enquadradas como injria, no como racismo, o que resulta em uma pena mais branda.

    O livro traz a anlise detalhada desses nmeros, provenientes de processos e sentenas judiciais de 18 capitais brasileiras, no perodo de 2005 a 2007. O seu contedo derivado da tese de doutorado em Sociologia defendida na Universi-dade de Braslia, em 2009, por Ivair Augusto Alves dos Santos, ento assessor da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualda-de Racial da Presidncia da Rep-blica. Este importante estudo j foi tema de matrias em grandes ve-culos de comunicao do pas.

    Os juristas brasileiros ignoram o crime de racismo. (...) E os juzes no veem o crime de racismo por-que no aceitam o fato de que h racismo no pas. Muitas vezes as agresses so entendidas como brincadeiras. No existe a menor sensibilidade da Justia para o quanto isso doloroso para quem sofre o preconceito. (Luciana Aba-de, Uma Justia cega para o racis-mo, Jornal do Brasil, 30/9/2009)

    Falta aos magistrados brasileiros acertar o passo com a legislao antirracista do pas. Do contrrio, a curva ascendente do nmero de aes penais verificada nos ltimos anos tender a se inverter, deses-timulando as vtimas a procurar a Justia. (O racismo minimiza-do, editorial do Correio Brasiliense, 13/10/2009)

    capa_direitos humanos e as prticas de racismo.indd 1 17/06/2013 16:12:21

  • Braslia | 2013

    Conhea outros ttulos da Edies Cmara no portal da Cmara dos Deputados: www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes

    Cmara dosDeputados

    TEMA

    S DE IN

    TERESSED

    O LEG

    ISLATIVO

    Direitos humanos e as prticas de racismoIvair Augusto Alves dos Santos

    Direitos humanos e as prticas de racismo

    Em 2011, a Cmara dos Deputados, com apoio da Procuradoria Espe-cial da Mulher, aderiu ao Programa Pr-Equidade de Gnero e Raa, para fomentar novas concepes na gesto de pessoas e na cultura orga-nizacional e avanar na conquista de maior equidade nas relaes de trabalho.

    A incorporao do programa em sua Poltica de Recursos Humanos evidencia o compromisso da Casa de tornar o ambiente de trabalho mais saudvel, justo e igualitrio. A publicao deste livro insere-se nesse contexto, com intenes mais abrangentes. Visa estender, para alm das fronteiras organizacio-nais, a compreenso sobre o racis-mo institucional, e contribuir com a ampliao do dilogo sobre as consequncias dessa prtica desu-manizante, que se revela corriquei-ra e no assumida por indivduos e instituies.

    A negao do racismo institucional impossibilita o seu enfrentamento e a sua erradicao. Consequente-mente, impede o acesso de grande parte da populao a direitos e ga-rantias constitucionais e restringe o pleno exerccio da cidadania. Cabe s instituies investir na mudan-a, abrindo espao para a discus-so do problema e a adoo de aes afirmativas.

    Reside a a contribuio do presente estudo, razo por que a Cmara dos Deputados apoia e estimula a sua divulgao. Espera-se com isso tam-bm incentivar outros rgos a re-fletirem sobre o tema, discutindo-o interna e externamente, para que a questo racial aflore e mudanas efetivas possam ser promovidas.

    Luiz Csar Lima CostaDiretor de Recursos HumanosBraslia, 12/11/2012

    Milhares de processos penais fo-ram analisados para se chegar s concluses estarrecedoras apresen-tadas neste livro: a cada 17 denn-cias de racismo no Brasil, apenas uma vira ao penal; entre as aes, 92% so enquadradas como injria, no como racismo, o que resulta em uma pena mais branda.

    O livro traz a anlise detalhada desses nmeros, provenientes de processos e sentenas judiciais de 18 capitais brasileiras, no perodo de 2005 a 2007. O seu contedo derivado da tese de doutorado em Sociologia defendida na Universi-dade de Braslia, em 2009, por Ivair Augusto Alves dos Santos, ento assessor da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualda-de Racial da Presidncia da Rep-blica. Este importante estudo j foi tema de matrias em grandes ve-culos de comunicao do pas.

    Os juristas brasileiros ignoram o crime de racismo. (...) E os juzes no veem o crime de racismo por-que no aceitam o fato de que h racismo no pas. Muitas vezes as agresses so entendidas como brincadeiras. No existe a menor sensibilidade da Justia para o quanto isso doloroso para quem sofre o preconceito. (Luciana Aba-de, Uma Justia cega para o racis-mo, Jornal do Brasil, 30/9/2009)

    Falta aos magistrados brasileiros acertar o passo com a legislao antirracista do pas. Do contrrio, a curva ascendente do nmero de aes penais verificada nos ltimos anos tender a se inverter, deses-timulando as vtimas a procurar a Justia. (O racismo minimiza-do, editorial do Correio Brasiliense, 13/10/2009)

    capa_direitos humanos e as prticas de racismo.indd 1 17/06/2013 16:12:21

    Braslia | 2013

    Conhea outros ttulos da Edies Cmara no portal da Cmara dos Deputados: www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/edicoes

    Cmara dosDeputados

    TEMA

    S DE IN

    TERESSED

    O LEG

    ISLATIVO

    Direitos humanos e as prticas de racismoIvair Augusto Alves dos Santos

    Direitos humanos e as prticas de racismo

    Em 2011, a Cmara dos Deputados, com apoio da Procuradoria Espe-cial da Mulher, aderiu ao Programa Pr-Equidade de Gnero e Raa, para fomentar novas concepes na gesto de pessoas e na cultura orga-nizacional e avanar na conquista de maior equidade nas relaes de trabalho.

    A incorporao do programa em sua Poltica de Recursos Humanos evidencia o compromisso da Casa de tornar o ambiente de trabalho mais saudvel, justo e igualitrio. A publicao deste livro insere-se nesse contexto, com intenes mais abrangentes. Visa estender, para alm das fronteiras organizacio-nais, a compreenso sobre o racis-mo institucional, e contribuir com a ampliao do dilogo sobre as consequncias dessa prtica desu-manizante, que se revela corriquei-ra e no assumida por indivduos e instituies.

    A negao do racismo institucional impossibilita o seu enfrentamento e a sua erradicao. Consequente-mente, impede o acesso de grande parte da populao a direitos e ga-rantias constitucionais e restringe o pleno exerccio da cidadania. Cabe s instituies investir na mudan-a, abrindo espao para a discus-so do problema e a adoo de aes afirmativas.

    Reside a a contribuio do presente estudo, razo por que a Cmara dos Deputados apoia e estimula a sua divulgao. Espera-se com isso tam-bm incentivar outros rgos a re-fletirem sobre o tema, discutindo-o interna e externamente, para que a questo racial aflore e mudanas efetivas possam ser promovidas.

    Luiz Csar Lima CostaDiretor de Recursos HumanosBraslia, 12/11/2012

    Milhares de processos penais fo-ram analisados para se chegar s concluses estarrecedoras apresen-tadas neste livro: a cada 17 denn-cias de racismo no Brasil, apenas uma vira ao penal; entre as aes, 92% so enquadradas como injria, no como racismo, o que resulta em uma pena mais branda.

    O livro traz a anlise detalhada desses nmeros, provenientes de processos e sentenas judiciais de 18 capitais brasileiras, no perodo de 2005 a 2007. O seu contedo derivado da tese de doutorado em Sociologia defendida na Universi-dade de Braslia, em 2009, por Ivair Augusto Alves dos Santos, ento assessor da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualda-de Racial da Presidncia da Rep-blica. Este importante estudo j foi tema de matrias em grandes ve-culos de comunicao do pas.

    Os juristas brasileiros ignoram o crime de racismo. (...) E os juzes no veem o crime de racismo por-que no aceitam o fato de que h racismo no pas. Muitas vezes as agresses so entendidas como brincadeiras. No existe a menor sensibilidade da Justia para o quanto isso doloroso para quem sofre o preconceito. (Luciana Aba-de, Uma Justia cega para o racis-mo, Jornal do Brasil, 30/9/2009)

    Falta aos magistrados brasileiros acertar o passo com a legislao antirracista do pas. Do contrrio, a curva ascendente do nmero de aes penais verificada nos ltimos anos tender a se inverter, deses-timulando as vtimas a procurar a Justia. (O racismo minimiza-do, editorial do Correio Brasiliense, 13/10/2009)

    capa_direitos humanos e as prticas de racismo.indd 1 17/06/2013 16:12:21

  • Direitos humanos e as prticas de racismo

  • Mesa da CMara dos deputados54 Legislatura 3 Sesso Legislativa 2011-2015

    presidenteHenrique Eduardo Alves

    1 Vice-presidenteAndr Vargas

    2 Vice-presidenteFbio Faria

    1 secretrioMrcio Bittar

    2 secretrioSimo Sessim

    3 secretrioMaurcio Quintella Lessa

    4 secretrioBiffi

    Suplentes de Secretrio

    1 suplenteGonzaga Patriota

    2 suplenteWolney Queiroz

    3 suplenteVitor Penido

    4 suplenteTakayama

    diretor-GeralSrgio Sampaio Contreiras de Almeida

    secretrio-Geral da MesaMozart Vianna de Paiva

  • Cmara dosDeputados

    Ivair Augusto Alves dos Santos

    Centro de Documentao e InformaoEdies CmaraBraslia | 2013

    Direitos humanos e as prticas de racismo

  • CMARA DOS DEPUTADOS

    DIRETORIA LEGISLATIVAdiretor: afrsio Vieira Lima Filho

    CENTRO DE DOCUMENTAO E INFORMAOdiretor: adolfo C. a. r. Furtado

    COORDENAO EDIES CMARAdiretor: daniel Ventura teixeira

    DIRETORIA DE RECURSOS HUMANOSdireo: rogrio Ventura teixeira

    Projeto grfico racsow

    Atualizao de projeto grfico renata Homem

    Capa e diagramao Giselle sousa

    Reviso seo de reviso e Indexao

    A primeira edio da obra Direitos Humanos e as Prticas de Racismo foi patrocinada pela Fundao Cultural Palmares.

    Cmara dos DeputadosCentro de documentao e Informao CediCoordenao edies Cmara Coedianexo II trreo praa dos trs poderesBraslia (dF) Cep 70160-900telefone: (61) 3216-5809; fax: (61) [email protected]

    IsBN 978-85-402-0021-0 (brochura) IsBN 978-85-402-0022-7 (e-book)

    SRIEtemas de interesse do Legislativo

    n. 19

    dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIp)Coordenao de Biblioteca. seo de Catalogao.

    santos, Ivair augusto alves dos.direitos humanos e as prticas de racismo / Ivair augusto alves dos santos [recurso eletrnico].

    Braslia : Cmara dos deputados, edies Cmara, 2013.298 p. (srie temas de interesse do Legislativo ; n. 19)

    IsBN 978-85-402-0022-7

    1. racismo. 2. discriminao racial. 3. direitos humanos. I. ttulo. II. srie.Cdu 323.12

  • Agradecimentos

    Agradeo a minha esposa Cecilia, pelo apoio e o incentivo perma-nente para elaborao da tese de doutorado. Cecilia me ajudou e par-te deste trabalho que agora se transforma em livro.

    A Mafoane, Husani, Handemba, Tetembua e Kwame, filhos fonte de inspirao permanente e de debate. Aos sobrinhos Jorge e Felipe, pela presena e tambm inspirao. Aos irmos Ivani, Ilsa e Ivamar para contar a histria vivida por muito de ns. Ao tio Itamar, presente e testemunha de uma vida de sacrifcios e perdas e muitas alegrias. A Flavia e Luciano, Christiane e Rafael no trabalho de acompanhamento e sugestes.

    Professora Lourdes Bandeira, que me orientou e me ajudou nesta caminhada. Aos membros da banca de doutorado, Profa Dra. Petronilha Beatriz Gonalves Silva (UFSCar), Profa Dra. Zlia Amador de Deus (UFPA), Prof. Dr. Arthur Trindade Maranho Costa (UnB), Prof. Dr. Carlos Alberto Reis de Paula (UnB) e Prof. Dr. Jos Geraldo de Sousa Jnior (UnB), pelas crticas e comentrios preciosos.

    Agradeo ao companheiro Carlos Moura, pelos anos de convivncia e aprendizado, e pelo apoio na produo do livro.

    Agradeo ao Prof. Dr. Valter Silvrio, que desde o primeiro momen-to mostrou-se um aliado e um incentivador na elaborao deste livro.

    Os agradecimentos so muitos, pois, ao longo dos anos, fiquei deve-dor de muitas atenes e apoio de familiares, bibliotecrias, funcion-rios da Secretaria de Direitos Humanos, do Ministrio da Justia e dos Tribunais de Justia.

    Aos meus pais Ivo e Hilda pela alegria de viver.

    Ivair A. A. Santos

  • Sumrio

    Prefcio ................................................................................................... 9

    Apresentao ...................................................................................... 13

    Captulo 1 O racismo institucional .......................................... 21

    1.1 Criminalidade e racismo institucional ........................................ 28

    Captulo 2 O Movimento Negro Unificado na luta contra a violncia policial ............................................................ 35

    2.1 Violncia e racismo ........................................................................ 40

    2.1.1 Medo da polcia ................................................................... 41

    2.1.2 O uso da fora policial letal maior na populao negra do que na branca ....................................................... 43

    2.2 Racismo Institucional e a Comisso Interamericana de Direitos Humanos .......................................................................... 45

    2.3 As persistncias .............................................................................. 49

    Captulo 3 Direitos Humanos e antirracismo ....................... 53

    3.1 A Constituio de 1988 e o Centenrio da Abolio da Escravatura ...........................................................................................59

    3.2 O papel das Organizaes No Governamentais ...................... 66

    3.3 A padronizao do pensamento judicial brasileiro nos casos de prticas de racismo (a exploso litigiosa) ................... 72

    3.4 O artigo 140 do Cdigo Penal: a questo da injria .................. 77

    3.5 O artigo 20 da Lei no 7.716: prticas de racismo ........................ 83

    3.6 Anlise das informaes dos demais estados da Federao ................................................................................... 85

    3.7 A vitria do movimento negro Vicente Francisco do Esprito Santo: a exceo ....................................................... 101

    3.8 Consideraes sobre o antirracismo em crescimento ............. 105

  • Captulo 4 Que faremos com os brancos? .............................. 111

    4.1 O medo dos brancos .................................................................... 125

    4.2 O privilgio de ser branco ........................................................... 132

    4.3 O silncio e a invisibilidade do branco ..................................... 143

    4.4 O pacto narcsico dos brancos .................................................... 154

    4.5 Consideraes sobre a branquitude .......................................... 165

    Captulo 5 Lutas e resistncia das mulheres negras ......... 167

    5.1 As mulheres negras foram luta ............................................... 178

    5.2 Consideraes sobre as lutas e a resistncia das mulheres negras ........................................................................... 202

    Captulo 6 Direitos Humanos: uma nova abordagem na luta antirracista ....................................................................205

    6.1 A visita dos relatores especiais da ONU sobre Formas Contemporneas de Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia .............................................................. 208

    6.2 A Conferncia de Durban ........................................................... 221

    6.3 O caso Simone Diniz .................................................................... 231

    6.4 Problemas na aplicao da Lei Antirracismo no Brasil .......... 237

    Referncias ........................................................................................ 249

    Anexos .................................................................................................. 289

    Sobre o Autor ................................................................................... 298

  • Prefcio

  • Temas de Interesse do Legislativo | 11

    Ivair Augusto Alves dos Santos, ou simplesmente Ivair como assim conhecido e tratado, exemplo do Brasil novo. Um pas que, aos poucos, vai se redefinindo nos marcos da democracia um pouco mais de vintenria mas, tambm, em igual perodo em que se lutou para reconquist-la.

    Pertence a um grupo que no tanto por gerao mas por opo mais intuitiva que cultural no aceitou o Brasil potncia dos militares e que foi para a linha de frente, ajudando a construir a democracia atual. As referncias partidrias, para esse grupo existem sem dvida, mas no isso que enraza suas convices, mas a ideia de que a democra-cia brasileira deve ser abrangente ou inclusiva como est na moda di-zer , enlaando todos os setores e classes A marginalizao, tanto so-cial como a de gnero ou de etnia, incomoda e comea a no ser aceita.

    Essa viso multifacetada de democracia que uma das foras do que denominei Brasil novo. O que, por anos e at sculos, se aceitou com o leve muxoxo do beneplcito de questes perifricas, j merece outro olhar, ou sendo mais exato, uma outra atitude que vai da incon-formidade ao militante. nessa ltima que, desde que o conheo, se coloca Ivair.

    Ainda delgado de fsico, era figura obrigatria dos movimentos de anistia, carestia e outros temas que agitvamos a pretexto de criticar o regime militar. S que para Ivair tinha uma especificidade: colocar sempre a discriminao, e, nessa, a que seus companheiros de pele, sofriam, mesmo entre os que lutaram contra a ditadura. Essa viso tor-nou-se a opo de sua vida.

    Na hora em que a oposio ao regime foi para o governo, Ivair foi junto, e hoje dificilmente se encontrar alguma poltica pblica, nos trs nveis de governo, contra a discriminao de cor que no tenha a colaborao de Ivair.

    Fez-se combatente respeitado e um dos lderes na luta pelo respeito aos direitos dos afrodescendentes.

    Eu, em minhas jornadas pelo poder pblico, sempre o tive como cola-borador resoluto e crtico. O instante pioneiro da Comisso Interministe-rial contra a discriminao teve nele um executor, que ajudou para valer a mim e ao Vilmar Faria, incumbidos por Fernando Henrique Cardoso de transferir para o setor estatal a seiva resultante dos Conselhos dos Negros, onde sempre de justia lembrar Carlos Moura, Abdias do Nascimento, Helio Santos e o ex-governador Franco Montoro.

  • 12

    A preocupao de Ivair levou-o a juntar a prxis do militante complementao acadmica, o que resultou na tese sobre as prticas de racismo.

    Como de praxe, tais trabalhos esparramam-se mais nas linhas de-marcadoras do imenso territrio da questo em estudo no foco em que seja mais fcil identificar o seu histrico, suas causas e eventuais so-lues. Mais vale, e muito, ler o trabalho de Ivair, pois, muitas vezes, mesmo o ativista dos Direitos Humanos no sente insuficincias e de-sigualdades ainda presentes em uma questo que, nesses vinte anos de democracia, deu um enorme avano que, em alguns aspectos, foi quase um salto. No obstante...

    No obstante o ciclo democrtico no vai se completar enquanto os problemas do que no fim do sculo passado chamvamos de mino-rias no atingirem patamares de maior igualdade. claro que essa luta no fcil e nem vem por decreto. Mas ajudam, e muito, lutas como a do Ivair.

    Jos Gregori Ministro da Justia 2000-2001

    Embaixador Secretrio Especial de Direitos Humanos da Prefeitura de So Paulo

    e Presidente da CMDH-SP.

  • Apresentao

  • Temas de Interesse do Legislativo | 15

    No presente livro, Direitos humanos e as prticas de racismo, Ivair Augusto Alves dos Santos analisa a persistncia de violao dos direitos humanos sob o olhar das prticas e situaes de racismo envolvendo diversos grupos/segmentos da populao negra. Discute as dificuldades de reconhecimento, proteo e promoo dos direitos humanos, em relao populao negra, independentemente de sua situao criminal ou no, alvo da violao dos direitos huma-nos, com maior persistncia pelas foras policiais.

    Trata-se de uma publicao relevante, na medida em que o funda-mento terico aponta para discusses entre o potencial emancipat-rio dos direitos humanos e a complexidade causal das relaes raciais brasileiras, interligadas a vrios problemas histrico-sociais e polticos. Ao tratar dos direitos humanos, o autor consegue pens-los para alm de uma compreenso restrita rea da segurana pblica, relativa criminalidade e, de pronto, enfatiza o reconhecimento institucional da existncia do racismo e da discriminao racial como um pressuposto para se analisar a dinmica da sociedade brasileira. Ao mesmo tem-po, questiona, por vias diversas, a persistente imagem disseminada de um Brasil considerado como uma democracia racial, uma vez que de conhecimento-geral a impossibilidade de dissociao de desigualda-de racial e desigualdade de direitos; em outras palavras, sabido que na sociedade brasileira todas as pessoas no so tratadas da mesma maneira. E muito tem sido realizado para destruir o mito da demo-cracia racial, seja pelas polticas pblicas, pelas pesquisas acadmicas, pela contribuio trazida pelos movimentos negros, pela mdia, enfim, seja pela valorizao e difuso da cultura negra. No entanto, ainda no se conseguiu evitar a dimenso racial da desigualdade social, mesmo sabendo-se que a populao negra representa em torno de 50% da po-pulao brasileira na atualidade.

    O texto apresenta, creio, uma unidade interessante, na medida em que articula o exerccio dos direitos humanos e as prticas do racismo, presentes e transversalizadas, em suas diferentes faces e manifestaes, nos diversos captulos que compem o livro. Eles propem questes instigantes que vm preocupando o autor atravs de dcadas, evidenciando que as existncias de direitos formais, e de cunho igualitrios, constitucionais e universais no tm expressado a capacidade de alterar imediatamente a realidade racializada.

    O autor discute essas questes e seus desdobramentos no livro que compreende seis captulos articulados, embora possam ser lidos de forma independente. Inicialmente, analisou o racismo nas prticas

  • 16

    penais, o que denomina de o racismo institucional, tema ainda tabu em sua configurao e extenso na sociedade brasileira. Discute e explici-ta a presena do racismo institucional atravs de exemplos histricos e de como se revela, sobretudo, atravs de mecanismos sutis de exclu-so implcitos ou explcitos, presentes na atuao de agentes institui-es em mbito dos organismos pblicos e privados que dificultam e inviabilizam o acesso e o tratamento menos desigual entre as pessoas brancas e pessoas negras.

    Em dois contextos institucionais, a circulao dessa prtica racista aflora no tratamento desigual: o sistema policial-judicirio, largamente exemplificado pelo autor, em relao s situaes de criminalidade, vio-lncias e de atrocidades que envolvem homens negros, cujo tratamento policial-penal tende a ser mais rigoroso e desigual. As elevadas taxas de homicdios envolvendo homens negros destacam-se entre os dados esta-tsticos oficias. A violncia policial e os grupos de extermnio existentes que causam medo s pessoas pretas e pardas constituem-se no padro de prticas policiais que remontam o perodo da ditadura militar, no Brasil, as quais no esto ainda plenamente prescritas. No geral, a atu-ao dos policiais ainda no deixa de levar em considerao a cor da populao. Os dados apresentados no livro so prdigos em evidncias.

    Um dos pressupostos da anlise centra-se na ideia de que o sistema de justia deve garantir os mesmos direitos de defesa e de proteo a todos os indivduos, princpio constitucional, ao mesmo tempo, fun-damento das sociedades modernas ocidentais. Longe disso, se situa a realidade; ao analisar a participao do Movimento Negro Unificado contra a discriminao racial (MNU) no combate violncia policial, durante os anos de represso, no Brasil, a articulao do movimento viu-se obrigada a recorrer Comisso Interamericana de Direitos Hu-manos (CIDH/OEA), assim como a outras entidades de direitos huma-nos, solicitando a condenao do Estado brasileiro, seno pelo descaso e descompromisso do sistema de justia em relao ao assassinato de homens negros por policiais. Um dos casos mais eloquentes foi o do jovem negro Wallace Almeida, membro do Exrcito brasileiro, assas-sinado por policiais. A atuao combativa do MNU contra a violn-cia policial representou a luta pela erradicao de qualquer diferena em uma sociedade democrtica e pelo reconhecimento dos direitos humanos. A atuao de certos segmentos da Igreja Catlica tambm foi analisada pelo autor, na medida em que expressavam profundas contradies no interior da Instituio; enquanto alguns setores assu-

  • Temas de Interesse do Legislativo | 17

    miam a luta pelo combate ao racismo, outros permaneceram no con-servadorismo do silncio.

    Foi no curso desses processos que se observaram os avanos da Constituio de 1988, sobretudo, na prevalncia dos princpios dos Direitos Humanos como paradigmtica ao ordenamento jurdico. A constituio incorporou no art. 5o. inciso LXII a prtica do racismo constitui crime inafianvel e imprescritvel, sujeito pena de recluso nos termos da lei. Assim, ao transformar a discriminao racial e o preconceito de cor em crime inafianvel e imprescritvel (atravs do art. 20 da Lei no 7716, de 1989), ensejou-se que esses avanos fossem as-similados pelo sistema penal. No entanto, o sistema penal, na viso do autor, ainda exerce a funo social de reproduzir as relaes sociais e de manter a estrutura vertical da sociedade e os processos de margina-lizao das populaes negras (Santos, 2009: 44).

    Ivair Augusto Alves dos Santos apontou o quanto a ao das Orga-nizaes No Governamentais (ONGs) desempenhou um papel fun-damental ao combater os crimes de racismo tanto no enfrentamento ao sistema de justia, uma vez que respondia (sic) de maneira insatisfat-ria aos processos de racismo, a exemplo da extensa anlise realizada pelo autor sobre a situao dos chamados crimes de injria, assim como do enorme descrdito no trato que envolve os crimes relativos a violncias contra as mulheres negras.

    Nessa mesma lgica, observou-se que no h outro espao institucio-nal de exemplaridade de maior concentrao de denncias de racismo do que no sistema penitencirio brasileiro, em cuja superlotao visvel a presena de negros. Ao analisar um extenso conjunto de quase trs cen-tenas de documentos jurdicos (sentenas judiciais, despachos, pareceres, inquritos, entre outros), disponibilizados e que constituem parte do acer-vo do Conselho Nacional de Combate Discriminao da Secretaria de Direitos Humanos, o autor verificou que, embora o processo de judicializa-o no pas tenha passado por mudanas a partir de 1988, ainda possvel perceber como geralmente as situaes de racismo so consideradas como incidentes. A propsito, o autor analisou, detalhadamente, os crimes de racismo ocorridos em dezesseis unidades da Federao, com base nos do-cumentos e registros coletados junto aos Tribunais de Justia. Das diversas concluses a que chega evidencia-se a forte ausncia de pessoas negras nas carreiras jurdicas, por um lado; por outro, registra a volumosa lista de expresses nominativas aos insultos raciais ofensivos, comumente encon-tradas nos processos que desrespeitam, desqualificam e reforam precon-ceitos e estigmas em relao aos negros.

  • 18

    Vale destacar a presena da subjetividade do autor posta a nu, no captulo quarto: Que faremos com os brancos? A condio do sujeito, que faz a anlise ao tratar dos registros/aes penais e das sentenas deriva-das das prticas de racismo e o inevitvel confronto com a sua prpria experincia identitria de ser homem negro, feita narrativa acentua uma dor coletiva presente em muitos, seno em toda a populao negra. Em outras palavras, o processo da anlise das informaes esteve permeado pela experincia do curso de vida do prprio autor como militante ne-gro, como combatente das prticas de racismo, lembrando com dor das histrias que escutou, reconhecendo nas sentenas situaes e sofrimen-tos de muitas pessoas, com as quais conviveu e que aprendeu a construir a sua prpria histria. Ao afirmar que reviveu momentos de dor e de solido j experimentados por milhes de pessoas negras que sofreram humilhaes, que foram torturadas e injustiadas. E a pergunta que no o fez calar: e os brancos? E o medo dos brancos? Foi suficiente mant-los como aliados no interior do movimento negro ou a presena do siln-cio repercutiria mais fortemente? A resposta se encontra nos escassos estudos apontados pelo autor referentes s relaes raciais dos brancos com os negros. Simultaneamente, o autor discute tambm a ideologia do branqueamento, como to bem expressou Iray Carone (2002), ao afirmar que: No posto nem dito, mas pressuposto nas representaes que exaltam a individualidade e a neutralidade racial do branco a branqui-tude reduzindo o negro a uma coletividade racializada pela intensifica-o artificial da visibilidade da cor e de outros traos fentipos aliados a esteretipos sociais, culturais e morais (apud: Santos, 2009: 124).

    A condio de existncia racializada ainda assusta, causa medo aos brancos. A criminalidade racializada aparece cotidianamente de fren-te na mdia, enquanto as demais aparecem de costas. Ao enfatizar estas questes, o autor buscou analisar a construo histrica do medo branco, que remonta o prprio processo de colonizao-formao das socieda-des latino-americanas, assim como do privilgio de ser branco, trao de uma colonialidade expressiva que ficou impregnada no tecido social da sociedade brasileira. So inmeros os exemplos a partir dos quais o texto foi desenvolvido, permitindo entrever as situaes de racismo nos contextos escolares, na esfera do trabalho, nas aes policiais, no sistema penal, na mdia, a serem iguais aos das manifestaes expressi-vas dos brancos. Sem dvida, h menos de teoria e muito de descritivo no presente livro, porm, seu mrito est justamente na descrio e detalhamento desse enorme volume de situaes, fatos, depoimentos, sentenas, enfim, de muitos registros histricos sobre prticas de ra-

  • Temas de Interesse do Legislativo | 19

    cismo, que o autor nos possibilitou conhecer cavoucados em arquivos pblicos empoeirados e esquecidos. Com certeza, somente a dedicao obstinada e afinada poderia garimpar tantas informaes.

    Ivair Augusto Alves dos Santos tambm dedicou um captulo s lu-tas e resistncias das mulheres negras, sobretudo, destacando a criao de organizaes de mulheres negras, de ONGs, da presena no mo-vimento negro-feminista, religioso-afro, todos expandidos na maioria dos estados brasileiros. O movimento negro-feminista teve participa-o de destaque no processo constituinte, sobretudo lutando por uma legislao antidiscriminatria. A trajetria de luta das mulheres negras pelo reconhecimento de seus direitos vem de um passado longnquo, pontuada por omisses e esquecimentos. Da luta resultou uma das maiores conquistas destacadas pelo autor a Conferncia de Viena (1993), na qual foram afirmados os direitos humanos das mulheres, transcendendo-as da invisibilidade dos direitos humanos universais.

    Foram muitas as demandas das entidades de mulheres negras des-tacadas por Ivair Santos; desde as desigualdades fortemente presentes no sistema educacional, na luta pela garantia de direitos s trabalhado-ras negras nas diversas inseres profissionais, sobretudo as emprega-das domsticas, na resistncia manter a cultura de matriz africana e pelo combate violncia racial. Os relatos de situaes de racismo vi-venciadas por mulheres negras, em diferentes contextos sociais, foram muitos, como tambm o autor analisou alguns dos smbolos da negri-tude que, no caso das mulheres negras, ganham maior visibilidade, ao estabelecer a desigualdade, dentre eles o cabelo.

    Na ltima parte, o autor retoma uma discusso mais ampla sobre os direitos humanos na luta antirracista; por um lado, destaca a impor-tncia do combate ao racismo, no contexto internacional, viabilizado pela resistncia negra frente s novas agendas polticas que se fizeram presentes sobre a questo racial, em mbito planetrio. E nesse sen-tido, destacou a realizao da Conferncia Mundial de Direitos Hu-manos, em Viena (1993), da Conferncia Mundial sobre a Mulher, em Beijing (1995) e da Conferncia Mundial contra o Racismo, em Durban (2001). Destaca as mudanas internas ocorridas, tanto no posiciona-mento da diplomacia brasileira sobre a realidade racial, uma vez que no foi mais possvel ignorar o envio de relatrios peridicos do Brasil ao Comit para a Eliminao da Discriminao Racial, em cumpri-mento ratificao dos acordos e convenes assinados pelo Estado brasileiro, como em relao ao Ministrio da Justia, que se defronta, cotidiana e estatisticamente, com as informaes sobre a realidade da

  • 20

    desigualdade racial disseminada pelo pas tendo que dialogar com os relatores especiais enviados pela ONU a fazer visitas ao Brasil, como ocorreu em junho/1995 e outubro/2005, respectivamente.

    O motivo da visita dos relatores da ONU centra-se na verificao de que o tratamento dispensado questo das formas contemporneas de racismo e de discriminao racial, xenofobia e intolerncia so de-siguais e precrias. Em outras palavras, ainda no Brasil, se desconhece a impessoalidade da aplicao de qualquer lei, uma vez que para mui-tos brasileiros e brasileiras o respeito aplicao das leis, aos direitos est subordinado lgica das moralidades, das redes de sociabilidades hegemnicas, as quais entrecruzam-se com os afetos e identificaes pessoais ou subjetivas. Em outras palavras, ainda permanecem as vio-laes de direitos em relao ao racismo vivido pela populao negra.

    Por fim, o autor nos informa sobre os resultados das visitas, cujos relatores reconhecem a presena forte de discriminao racial como es-truturadora e inerente ordem socioinstitucional e jurdicos presentes. Paradoxalmente, destaca: que, no obstante esse aparato legal forte [existente no Brasil], a populao negra continua sendo vtima de racismo e de discriminao racial e a mais desfavorecida, carente de instruo, e, muitas vezes, desconhece a existncia da lei e no confia na justia.

    No deixou de ser um enorme prazer escrever essa apresentao do presente livro, resultado da tese de doutorado de Ivair Augusto Alves dos Santos. Trata-se do resultado de um empreendimento de meia d-cada realizado pelo autor, no apenas movido pela curiosidade de uma pesquisa acadmica, sem dvida importante ao oficio de pesquisador, mas, sobretudo, por ser um homem negro, militante, ativista e pesqui-sador pertencente ao movimento negro, o qual tem dedicado sua vida e canalizado todos seus esforos pessoais e profissionais para lutar por um dos maiores desafios desse pas o de conceber-se como um pas for-mado por uma populao multirracial.

    Braslia, fevereiro de 2011

    Lourdes Bandeira, Professora Titular do Depto. de Sociologia

    Universidade de Braslia (UnB)

  • Captulo 1O racismo institucional

  • Temas de Interesse do Legislativo | 23

    Na dcada de 1960, a luta pelos direitos civis nos EUA, a luta contra o apartheid na frica do Sul e o fim do colonialismo nos pases africanos e asiticos representaram mudanas profun-das nos estudos sobre o racismo no mundo. Reconheceu-se que as insti-tuies, prticas administrativas e estruturas polticas e sociais podiam agir de maneira adversa e racialmente discriminatria ou excludente. Tambm se reconhecia que os processos discriminatrios tm vida pr-pria causalmente, de modo independente da ao de uma pessoa indi-vidualmente racista. O conceito de racismo foi ampliado para cobrir as formas de racismo institucional e racismo estrutural. O racismo passou a ser identificado como uma situao que poderia ocorrer independen-temente da vontade das pessoas, e se reconheceu que certas prticas, realizadas por instituies, no tm atitudes, mas podem certamente discriminar, criar obstculos e prejudicar os interesses de um grupo por causa de sua raa, de sua cor.

    Conceber a existncia de racismo no Brasil ainda um tema tabu para parte significativa da sociedade. Reconhecer que esse racismo resultar decorrente de prticas ou da omisso de instituies ainda no faz parte do conceito das agncias do sistema de justia, por exemplo. Mas este enfoque sobre o racismo faz parte das interpretaes da realidade do negro brasileiro, como a apresentada por Abdias do Nascimento (1978).

    Em 1968, Abdias do Nascimento foi convidado pelos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, pela primeira vez, para fazer uma palestra no auditrio principal, de histrico pelas manifestaes ocorridas naquela Faculdade. O diretor, quando soube, negou autorizao para uso daquele espao nobre. Abdias fez a pa-lestra no ptio da faculdade e, naquele momento, percebeu que era necessrio deixar o pas.

    A ida para o exlio nos EUA, em 1968, possibilitou-lhe estar em contato com grandes lideranas do movimento negro americano, par-ticipar de diversos eventos e viajar para o continente africano. Abdias retornou ao Brasil no final da dcada de 1970, inicialmente expondo suas pinturas, mas com um discurso renovado e estimulante. Publi-cou, j em 1980, a primeira edio do livro Quilombismo, que traduz a reflexo de um homem sexagenrio, disposto a reinventar a si mesmo. A crtica dura, renovada e inspirada no dilogo com estudiosos, pes-quisadores, cientistas, filsofos e criadores de literatura e arte, pessoas do continente africano e da dispora africana: Cheikh Anta Diop, do Senegal; Chancellor Williams, dos Estados Unidos; Ivan Van Sertima e George G. M. James, da Guiana; Yosef Ben-Jochannan, da Etipia;

  • 24

    Theophile Obenga, da Repblica do Congo; Wole Soyinka e Wande Abimbola, da Nigria.

    Trabalhou com um sentimento de urgncia no resgate da memria do negro brasileiro e com uma disposio de ferro para combater a elite dominante, que, segundo o autor, sempre negou o passado histrico e desenvolveu esforos para evitar ou impedir que o negro brasileiro pudesse assumir suas razes tnicas, histricas e culturais, desta forma seccionando-o do seu tronco familial africano.

    Stokely Carmichael e Charles V. Hamilton (1967), dois militantes do movimento negro norte-americano, ao escreverem o livro Black Power: the politics of liberation, em 1967, apresentaram a distino entre racis-mo individual, racismo estrutural e discriminao racial nos Estados Unidos. Para os autores, o racismo apresenta-se de uma forma aberta e associada aos indivduos, e, de outra forma, no declarada e institu-cional. O importante dessa anlise que ela permite dissociar o racis-mo de atos e intenes ou da conscincia de alguns atores. Esse texto foi considerado uma referncia para alguns autores, como Wieviorka (2007), Rex (1988) e Jones (1973), que o identificam como um dos que influenciaram sobremaneira a adoo daquela terminologia, utilizada em uma situao muito especial da realidade americana, para descre-ver o racismo.

    Nos Estados Unidos, uma deciso do Departamento de Educao em 1945 ps em prtica uma lei para corrigir as condies dos negros americanos. Sequencialmente, foi institudo o Programa dos Direitos Civis, para penalizar a discriminao, e programas assistenciais, para assegurar a pobres brancos e negros o recebimento de um mnimo de auxlio social. Segundo a crtica dos ativistas negros, e de Carmichael e Hamilton, mesmo parecendo que o racismo estivesse sendo atacado e a discriminao racial penalizada, os negros permaneciam em situa-o de inferioridade. Ento, argumentaram que, embora o governo no estivesse nas mos de racistas e a discriminao racial estivesse sendo penalizada, as prprias instituies normais para o funcionamento da sociedade americana estavam a provocar consequncias que eram prejudiciais para os Negros e representavam uma espcie de racismo institucional (Rex, 1988: 170).

    Segundo anlise realizada pelo ingls John Rex (1988), o uso popu-lar do termo racismo era indiscriminado e este hbito cresceu medida que as situaes de conflitos no Reino Unido e nos Estados Unidos se agravaram, mas reconhecia certa evoluo no uso do conceito de

  • Temas de Interesse do Legislativo | 25

    racismo institucional, embora ainda com diversos significados e am-biguidades, o que tambm aponta, resumidamente, Wieviorka (2007):

    mesmo que as instituies sejam administradas, governadas por pessoas no racistas ou crentes em teorias racistas, elas podem estar sujeitas ao racismo inconsciente;

    a admisso da existncia do racismo hoje muito grande, mas prov-la muito difcil, como j foi dito anteriormente. Contu-do, a prova mais importante da sua existncia est na condio de inferioridade dos negros, que pode ser evidenciada por qual-quer indicador social que se escolha;

    as razes pelas quais os negros esto fora do mercado de traba-lho so complexas, difceis de compreender, e o resultado, dif-cil de corrigir, a no ser intervindo nos processos do mercado com critrios que assegurem a presena do negro. Programas universalistas tm efeitos residuais, s h mudanas quando so claramente focalizados na populao negra;

    a constatao de que entre os mais pobres encontra-se em maior proporo a populao negra.

    Para Wieviorka (2007: 31), o conceito de racismo institucional traz uma ideia de que o racismo pode funcionar sem que opinies ou preconceitos estejam em causa; haveria uma dissociao entre o ator e o sistema:

    Em Portraits of White Racism (Retratos do Racismo Branco), David T. Wellman mostra que a hostilidade e o preconceito com respeito aos negros podem muito bem estar ausentes de um discurso que nem ao menos leva sua segregao ou discriminao. Quando os brancos querem manter um status quo que os beneficia em detrimento dos ne-gros, recusando mudanas institucionais que poderiam modificar a situao, eles no adiantam argumentos racistas (...) ningum milita na Frana em favor das discriminaes das mulheres na vida poltica, mas todos os indicadores mostram que seu acesso s responsabilida-des ou representao poltica singularmente desigual, inscrito no funcionamento das instituies apesar das declaraes igualitrias de todos os atores polticos ou institucionais.

    Esta abordagem leva a se imaginar uma sociedade cujos segmen-tos dominantes no tenham conscincia do seu racismo e, no limite, aparentemente, tenham at atitudes antirracistas. Isso asseguraria uma posio no mnimo confortvel, um afastamento de qualquer situao de mudana, e se conviveria com um racismo disfarado, invisvel, ao mesmo tempo que aquelas elites auferem vantagens dessas situaes.

  • 26

    As causas do racismo so camufladas, no detectveis aparentemente, enquanto seus efeitos so tangveis. A fora da ideia do racismo insti-tucional est em denunciar a discriminao racial dissimulada, e em le-var conscincia de que no possvel esperar que, espontaneamente e de maneira voluntria, ocorram mudanas nas condies sociais da po-pulao negra; preciso investimento das instituies. , tambm se-gundo Wieviorka (2007:31), um convite para o debate, a investigao, a recusa cegueira que, em virtude das barreiras que as instituies se autoimpem, permite a amplas parcelas da populao beneficiar-se das vantagens econmicas e estatutrias que o racismo ativo pode trazer e, ao mesmo tempo, evitar o reconhecimento de assumir seus inconvenientes morais. Ele preserva, dito de outra forma, a boa cons-cincia daqueles que dele tiram proveito.

    A proposta do racismo institucional sugere que ele atravessa as es-truturas sociais como, por exemplo, o sistema de justia sem ter ne-cessidade de uma forte estruturao ideolgica ou doutrinria, e pode ainda depender de mecanismos que funcionam sem atores sociais. Ten-do o mrito de acentuar as formas no flagrantes ou brutais do racis-mo, suas expresses sutis circulam nas instituies. Wieviorka (2007: 33) chama a ateno para um aspecto da insuficincia do conceito, pois faz do racismo um fenmeno abstrato, a repousar aparentemente so-bre mecanismos abstratos, sem atores.

    Rex (1988) est preocupado em analisar o termo luz das experi-ncias que os ingleses estavam vivenciando ante o agravamento dos conflitos raciais. Reafirma tambm que o racismo institucional, incons-ciente, seria inerente aos sistemas de crenas de uma sociedade que se utiliza do bom senso, voltada para um universalismo e para a igual-dade de oportunidades, mas marcada pelo uso de esteretipos em relao ao negro.

    O que distingue sua anlise e, por isso, torna-a interessante, o re-gistro de planos para combater o racismo institucional. Um deles a proposta de reeducao dos porteiros e do pblico em geral, por meio de cursos sobre conscincia tnica ou racial, que

    para terem sucesso, tm de fazer nada menos do que pr em ques-to as verdades recebidas da linguagem sensata, e de fato propor uma linguagem social inteiramente nova. A tarefa semelhante de livrarmos a nossa linguagem de verdades sexistas (Rex, 1988: 172).

    Rex (1988) no est se referindo a uma forma de se comunicar de maneira correta ou adequada, mas a uma institucionalizao de lin-guagem, que no artificial, maneira de falar que as autoridades da

  • Temas de Interesse do Legislativo | 27

    sociedade querem ver empregada em situaes do cotidiano. Em ou-tras palavras, trata-se de um compromisso que pessoas, personalida-des e autoridades do Estado nas sociedades inglesa e americana dese-jam ver implementado. Professores e policiais, entre outras categorias, devem adotar uma linguagem nova, que inclusive ser reforada por recompensas profissionais em termos de empregos e promoes. Na Inglaterra, no incio da dcada de 1980, os profissionais que domina-vam o tema de relaes raciais tiveram muita dificuldade, pois foram interpretados como pessoas que estariam politizando as profisses de maneira indesejvel, porque o que estavam fazendo ia contra a cultura poltica alimentada pelos polticos e pelos meios de comunicao.

    A dimenso legal no caso britnico ressalta aspectos como o reco-nhecimento de grupos sociais conforme a Lei das Relaes Raciais de 1976. Se uma pessoa discrimina outra,

    aplica a essa outra pessoa uma exigncia ou condio que aplica igualmente a pessoas no pertencentes ao mesmo grupo racial da outra, mas de tal maneira que a proporo de pessoas do mesmo grupo racial que essa outra, que podem concordar com a exigncia ou condio, consideravelmente menor do que a proporo de pes-soas no desse grupo racial que podem concordar com ela (exign-cia), e no pode provar justificadamente independente da cor, raa, nacionalidade ou origem tnica ou racial da pessoa a quem aplica-da e que em detrimento dessa outra pessoa que no pode concordar com ela (Rex, 1988: 174).

    O racismo institucional revelado atravs de mecanismos e estra-tgias presentes nas instituies pblicas, explcitos ou no, que difi-cultam a presena dos negros nesses espaos. O acesso dificultado, no por normas e regras escritas e visveis, mas por obstculos formais presentes nas relaes sociais que se reproduzem nos espaos institu-cionais e pblicos. A ao sempre violenta, na medida em que atinge a dignidade humana. O conceito foi incorporado pelos movimentos negros na Amrica Latina, em especial no Brasil, o que ajuda a explicar a permanncia dos negros em uma situao de inferioridade por me-canismos no percebidos socialmente. Essa concepo de Carmichael e Hamilton (1967) inovou e, ao mesmo tempo, inspirou numerosos pes-quisadores: Nascimento (1982), Gonzalez (1979 a), Hasenbalg (1979), Bertlio (1989), Adorno (1995), Silvrio (1999) e outros.

    H racismo institucional quando um rgo, entidade, organizao ou estrutura social cria um fato social hierrquico estigma visvel, espaos sociais reservados , mas no reconhece as implicaes raciais do processo. O problema no demonstrar a existncia de ideologia

  • 28

    e doutrinas que as pessoas utilizam para justificar suas aes. no funcionamento da sociedade que o racismo se revela como uma pro-priedade estrutural inscrita nos mecanismos rotineiros, assegurando a dominao e a inferiorizao dos negros, sem que haja necessidade de teorizar ou de tentar justific-las pela cincia.

    A discriminao pode ser sistmica em vez de pessoal e, por con-seguinte, mais difcil de identificar e de compreender, quando est internalizada e naturalizada por discursos de que se vive em um pas miscigenado. Algumas vtimas negam que estejam oprimidas ou ento aceitam sua condio, como se fosse um destino que a vida lhes pro-porcionou. Outras reagem oprimindo aqueles que esto abaixo delas.

    O racismo institucional gera hierarquias atravs de prticas profis-sionais rotineiras, ditas neutras e universalistas, dentro de institui-es pblicas ou privadas que controlam espaos pblicos, servios ou imagens (lojas, bancos, supermercados, shoppings, empresas de segu-rana privada).

    1.1 Criminalidade e racismo institucional

    Boris Fausto (1984) realizou um estudo sobre crimes e criminalida-de na cidade de So Paulo, entre 1880 e 1924, perodo em que a cidade passou por um intenso crescimento econmico e demogrfico. A po-pulao de So Paulo, em 1880, era de 35 mil habitantes e, em 1924, j contava com 600 mil habitantes. A populao, no final do sculo XIX, era predominantemente de estrangeiros: cerca de 55%, em 1893; j em 1920, somente 36%.

    Essa transformao urbana veio acompanhada do aumento da vio-lncia urbana. A criminalidade era imputada aos imigrantes e popu-lao pobre, oriunda da periferia. Fernandes (1978) realizou pesquisas enfocando essa transio, com destaque para a populao negra.

    Fausto inspirou-se nas pesquisas de Fernandes relativas ao desen-volvimento econmico e integrao de homens e mulheres negras no mercado de trabalho no incio do sculo. O estudo baseou-se na anlise de processos penais. Utilizando estatsticas criminais, o histo-riador conseguiu retirar dos processos criminais um olhar sobre a vida de homens e mulheres em uma cidade com seus dramas, seus heris e criminosos viajantes, imigrantes, ex-escravos, operrios, empresrios e todos que sofreram ou cometeram algum delito e foram ocupar as

  • Temas de Interesse do Legislativo | 29

    pginas dos autos como acusados, vtimas, testemunhas, delegados, promotores ou juzes.

    Na sua materialidade, o processo penal como documento diz res-peito a acontecimentos diversos: um que produziu a infrao e outro, que tem lugar medida que se instala o aparelho repressivo. Este l-timo tem como objetivo reconstituir o fato originrio e estabelecer a verdade, que pode resultar em punio ou absolvio do acusado. A relao entre o processo penal entendido como atividade do apa-relho policial-judicirio , os diferentes atores e o fato delituoso no linear, nem pode ser compreendida por critrio de verdade. Os autos exprimem a materializao do processo penal como acontecimento no cenrio policial ou judicirio. Fausto (1984) traduz a batalha para pu-nir, graduar a pena ou absolver.

    No momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em verses, o concreto perde quase toda sua importncia e o debate se d entre atores jurdicos, cada um deles usando a parte do real que melhor reforce o seu ponto de vista. Neste sentido, o real que pro-cessado, modo, at que se possa extrair dele um esquema elementar sobre o qual se construir um modelo de culpa e um modelo de ino-cncia (Correa apud Fausto, 1984, p. 22).

    Esse modelo de culpa ou inocncia apresentado aos julgadores segundo uma lgica ordenadora constituda por normas sociais. Tais normas abrangem tanto aquelas violaes que podem acarretar uma sano penal, como outras, que dizem respeito a identidades sociais a conduta adequada segundo o sexo, a conduta esperada de um pobre ou de um negro. Se o comportamento dito ou considerado desviante dessa identidade no implica de per si uma condenao, pode ser tra-zido baila quando vem acompanhado de transgresso legal, transfor-mando-se, nessa atualizao, em preceito penal. Um comportamento considerado inadequado pode significar condenao ou exacerbao da pena; produzindo o comportamento oposto, o resultado inverso.

    O processo se corporifica por meio de uma srie de procedimentos e um conjunto de falas ordenadas por atores diversos. A emisso das fa-las e a forma de registr-las no indiferente construo do processo. Qualquer discurso pode desfigurar mecanismos e contedos interna-lizados, ainda mais quando uma das partes o faz de forma deliberada para condenar ou livrar o ru de uma sano.

    Sobretudo para uma pessoa pobre, o aparelho policial-judicirio re-presenta uma mquina estranha, bastante inibidora, que se movimenta sob regras totalmente desconhecidas do mundo dos leigos. Falar menos

  • 30

    pode ser uma estratgia para errar menos sem contar a manipulao da fala pelos tcnicos, que trabalham no desenrolar do processo.

    Tomando como base informaes acerca de pessoas presas na cidade de So Paulo entre 1904 e 1916, conforme a pesquisa realizada por Fausto (1984), os dados mostram que negros e mulatos so presos em proporo duas vezes superior parcela que representam na populao global da cidade. Constituem em mdia 28,5% do total de presos, representando 10% dos habitantes de So Paulo. Em pesquisa mais recente, realizada so-bre crimes violentos julgados no municpio de So Paulo, no ano de 1990, Adorno (1996: 273) concluiu que, sob o ponto de vista do perfil social:

    a) rus negros tendem a ser mais perseguidos pela vigilncia policial;b) rus negros experimentam maiores obstculos de acesso justia

    criminal e maiores dificuldades de usufrurem do direito de am-pla defesa, assegurado pelas normas constitucionais vigentes;

    c) em decorrncia, rus negros tendem a merecer um tratamento penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem punidos comparativamente aos rus brancos.

    Essa constatao levantou a seguinte indagao: o fato de um maior nmero relativo de prises destinado a um determinado grupo social representaria sua maior propenso a cometer infraes, um vis discri-minatrio das autoridades, ou ambas as coisas? Fausto (1984) caminha para a ltima opo. Em outros termos, Adorno (1996), tambm ao ana-lisar o perfil social, afirma que nada sugere que rus negros revelem po-tencial mais agressivo ou violento comparativamente aos rus brancos.

    O estigma da cor acompanhou o negro, tambm nas primeiras d-cadas do sculo XX, na caracterizao dos suspeitos. Em 1892 um de-legado de polcia descrevia uma jovem suspeita de realizar um furto: trata-se de uma preta, de estatura pequena, de cabelos encarapinhados, de olhos grandes, bons dentes, lbios grossos (Fausto, 1984: 54).

    Em 1924, uma testemunha, ao descrever um ladro como suspei-to, afirmava:

    Viu o referido preto pr em fuga, correndo, perseguido por pessoas da loja e populares ao grito de pega, pega ladro; que, ciente do que se tratava, pois o referido preto havia subtrado algumas peas (...) viu dito preto jogar por terra um embrulho... (Fausto, 1984: 54).

    O racismo de autoridades policiais est presente nas transcries de depoimentos, associando o negro ao cio, violncia e permissivida-de sexual. Ser negro foi construdo como sendo um atributo represen-tacional identitrio negativo.

  • Temas de Interesse do Legislativo | 31

    Testemunhas de defesa de crimes de defloramento de moa branca empregam como elemento de estratgia poluidora da vtima a refern-cia sua amizade com pretos, ter-se abrigado na casa de uma preta.

    Registre-se, ainda, que uma parcela de negros estava presa por questes de contraveno e, devido situao de subemprego em que viviam, ficava estigmatizada como um grupo de pessoas destitudas de qualquer direito quase cidados.

    Para Harris (1967), a maioria dos brasileiros considera abstratamen-te os negros como inatamente inferiores em inteligncia, honestidade e confiana. As caractersticas estticas do negro so consideradas feias em relao aos brancos. Essa afirmao de Harris, realizada na dcada de 1960, encontra alguns problemas, em especial pela generalizao. Entretanto, pesquisas realizadas para verificar o preconceito racial junto ao corpo discente das escolas pblicas no municpio do Rio de Janeiro, durante o ano de 1988, por Figueira (1990), confirmaram a exis-tncia desses esteretipos. Estudos realizados no campo da psicologia social por Carone e Bento (2002) tambm demonstram a reproduo de esteretipos relativos ao negro. Livro recentemente publicado, Racis-mo: So Paulo fala (2008), reproduz 120 cartas retiradas de um conjunto de mais de 10 mil recebidas pela Secretaria Estadual da Cultura de So Paulo, que registram experincias individuais de racismo, em cujos re-latos aparecem esses mesmos esteretipos.

    Retornando ao estudo de Fausto (1984), as sentenas analisadas, le-vando em conta a cor dos acusados, mostram como a absolvio e o arquivamento, tomados em conjunto, constituem um desfecho mino-ritrio quando se trata de negros ou mulatos e majoritrio quando se trata de brancos, conforme a tabela a seguir:

    TABELA 1 Desfecho dos processos segundo a cor. So Paulo, 1880-1924

    Desfecho Brancos (%) Negros ou Mulatos (%)

    Absolvio 27,3 20,2

    Condenao 36,4 57,4

    Arquivamento 36,2 22,4

    Total 100 100

    Fonte: Fausto (1984), p. 236.

    Esta tabela um indicativo de que o maior nmero de condenaes de pessoas negras ou mulatas no pode ser considerado ocasional, mas

  • 32

    fruto da discriminao. a constatao de que, na relao com o Tri-bunal, o negro era considerado como um ser inferior (preto e pobre) e, quando acusado de um delito, defendido apenas formalmente por um advogado, encontrava uma predisposio condenao por parte dos julgadores leigos ou togados.

    Na concluso de Fausto (1984), o balano dos homicdios ocorridos no curso de brigas com um contedo explcito de discriminao racial pende mais para as condenaes. Por sua vez, os resultados da pes-quisa de Adorno (1995) indicam que negros e brancos cometem crimes em propores semelhantes. Tudo indica que a cor um poderoso ins-trumento de discriminao na distribuio da justia. O princpio de equidade de todos perante as leis, independentemente das diferenas e desigualdades sociais, parece comprometido com o funcionamento enviesado do sistema de justia criminal (Adorno, 1995: 63).

    O autor parte das concluses de Hasenbalg (1979), que evidencia a presena de negros nos estratos inferiores da hierarquia social brasileira. Entre os pobres, os negros so aqueles que recebem os mais baixos sal-rios e alcanam nveis inferiores de escolaridade. A desigualdade racial est no ncleo, no corao do que se costuma chamar de naturalizao da desigualdade. Os nmeros mostram que a desigualdade racial est misturada com a desigualdade social. Existe uma sobrerrepresentao da pobreza. Do total da populao brasileira, 54,6% so brancos, 40% so pardos e 5,4% so pretos. Somando pretos e pardos como popula-o negra, o total 45,4%. Sabemos que cerca de 53 milhes de pessoas so pobres, ou 34% da populao pobre. Se a pobreza fosse democra-ticamente distribuda, 54% desses 53 milhes de pobres seriam brancos e s o restante seria negro. Mas dentro da populao pobre, os negros so maioria: 64% dos pobres so negros, enquanto 36% dos pobres so brancos. Os negros so 70% dos indigentes. possvel dizer que a po-breza tem cor. A pobreza no Brasil negra (Henriques, 2001).

    Nos estudos mais recentes, no h comprovao de inclinao dos negros para o cometimento de crimes, comparativamente aos brancos (Ramos, 1995; Adorno, 1995).

    Nenhum estudo contemporneo, contudo, comprova maior inclina-o dos negros para o cometimento de crimes, comparativamente aos brancos. Ao contrrio, desde os fins da dcada de 1920, alguns estudos americanos j haviam demonstrado o quanto os preconceitos sociais e culturais, em particular o racismo, comprometiam a neutralidade dos julgamentos e a universalidade da aplicao das leis penais. Um dos estudos clssicos o de Sellin (1928), que demonstrou a preferncia seletiva das sanes penais para negros (Adorno, 1995: 50).

  • Temas de Interesse do Legislativo | 33

    O sistema de justia criminal est constitudo em torno do inqurito e processo penal. Atravs desse procedimento, realiza-se a apurao de responsabilidade penal. O ponto de partida o reconhecimento da existncia do crime, pois vigora o princpio de que no existe crime sem estar previsto em lei. O crime notificado e levado ao conheci-mento da autoridade policial, que instaura o inqurito. Ao ru so fa-cultados amplos direitos de defesa: pode solicitar assistncia jurdi-ca; juntar documentos e provas; negar a autoria do crime; contestar os depoimentos dos acusados e das testemunhas; reclamar liberdade provisria ou liberdade sob fiana; valer-se do habeas corpus. Uma das explicaes para os negros serem proporcionalmente mais condenados em relao aos brancos que eles enfrentam maiores dificuldades de acesso justia criminal, pois em cada uma das etapas inqurito po-licial e processo penal necessrio o acompanhamento de advogado para evitar que ocorram arbitrariedades nos procedimentos.

    A qualidade da interveno em cada uma das etapas na garantia dos direitos fundamental. O conhecimento da jurisprudncia, a for-mulao de recursos, a coleta de provas, a investigao em paralelo, tudo conta no esforo de exercer plenamente o direito defesa. Uma assistncia judiciria precria realizada por defensores pblicos ou da-tivos, que se prendem exclusivamente a uma limitada atuao legal, est associada a uma probabilidade de o desfecho processual resultar em condenao. O juiz desempenha papel central no sistema de justia criminal. Segundo os procedimentos do processo penal, a deciso final depende da conscincia que o juiz tem sobre os autos do processo.

    A legislao brasileira que rege o processo penal estatui o princpio do livre convencimento do juiz. Segundo juristas brasileiros (...) a referida legislao adotou o sistema alternativo ao da prova legal, que vem a ser o sistema pelo qual o juiz tem a liberdade de tomar a deciso ba-seado exclusivamente em sua prpria conscincia. Segundo o sistema brasileiro (art. 157 e 381, Cdigo do Processo Penal) o juiz deve tomar sua deciso atendendo ao seu prprio julgamento, mas limitando ao que consta dos autos (...) de um juiz espera-se que mostre total impar-cialidade entre acusao e a defesa (Lima, apud Adorno, 1995: 58).

    A conduo do processo penal pelo juiz imperiosa no destino do ru. Ao juiz cabe rejeitar, solicitar ou dispensar a busca de provas, solicitar investigaes, interrogar testemunhas, aceitar ou no novas peties. Enfim, o juiz tem uma margem de discricionariedade, o que leva a verificar que a justia no se atm somente aos fatos e s provas contidas nos autos, mas a viso de mundo do magistrado tem influn-cia no desfecho do processo.

  • 34

    A propsito, Adorno (1995) faz uma indagao importante: em que medida essas caractersticas do sistema de justia criminal brasileiro afetam o desfecho processual?

    A primeira constatao foi ao analisar os processos de roubos quali-ficados no municpio de So Paulo no ano de 1990. Observou-se maior incidncia de condenaes do que de absolvies. A cada trs proces-sos examinados, encontraram-se duas condenaes e uma absolvio; em termos percentuais, 68,8% de condenao e 31,2% de absolvio. Esse resultado questiona a indulgncia do sistema em relao aos cri-mes de patrimnio (Adorno, 1995).

    Quanto ao perfil com base na cor, constata-se que, na prtica de um crime tipificado da mesma forma, o percentual de condenao de 59,4% dos rus brancos e 68,8% dos negros. Quando h absolvio, so 37,5% para os rus brancos e 31,2% para os rus negros (Adorno, 1995).

    Segundo dados do IBGE, da composio racial da populao no municpio de So Paulo, para o perodo estudado por Adorno (1995), a projeo de 72,1% da populao residente era de brancos e 24,6% era de negros (pretos e pardos), o que torna mais impressionante o quadro de condenao de negros.

    Pode-se concluir que o poder do Estado, nas agncias do sistema de justia, monopolizado por um segmento, que nem sequer precisa se autoidentificar como branco e como parte da elite a identificao fica por conta do outro. Esse sistema, que foi construdo em detri-mento da presena dos demais, em certa medida acaba privando-os de qualquer influncia.

    No momento em que o poder pblico, atravs da elite poltica, pare-ce favorecer ou desfavorecer determinados grupos identificados por sua etnia, raa, (...) ele nega a legitimidade de existir e de se exprimir de muitos outros segmentos, deixando as portas abertas s prticas preconceituosas e discriminatrias. Em outras palavras, nega a possi-bilidade do outro (da diferena) de ter acesso seja ao arsenal jurdico de igualdade e de equidade como trao ideolgico dominante, seja ao reconhecimento e participao poltica (Bandeira, 2002: 1).

    Uma sociedade hierarquizada, em que existe uma legislao da qual os negros no podem usufruir de forma equitativa dos direitos nela contidos, gera um cidado sem cidadania, submetido a um racismo institucional, promovido pelas agncias do sistema de justia. Resta, por ltimo, saber se o sistema internacional de Direitos Humanos tam-bm se comportaria da mesma forma nos casos de denncia de discri-minao racial.

  • Captulo 2O Movimento Negro Unificado na luta contra a violncia policial

  • Temas de Interesse do Legislativo | 37

    No perodo em que se iniciou a abertura poltica, no governo Geisel, os rgos de represso, que haviam controlado a luta armada e a guerrilha que existia em algumas regies do pas, passaram a investigar e vigiar aos movimentos sociais, justamente no momento em que surgia o Movimento Negro Unificado (MNU), de cujo dilogo com as foras de oposio e manifestaes pblicas saram artigos e matrias em jornais alternativos, que foram considerados sub-versivos (Kossling, 2007).

    Foto 1 Lanamento do MNU, com Antonio Leite ao microfone Escadaria do teatro Municipal de So Paulo, 18 de junho de 1978

    Fonte: arquivo do Movimento Negro unificado

    O golpe de 1964 havia afetado a mobilizao dos movimentos sociais brasileiros e a represso desmobilizou as lideranas negras, proibindo que o tema fosse abordado1, assim como tambm todos os demais movi-mentos reivindicatrios e contestadores da ordem poltico-sociojurdica, lanando-os numa espcie de semiclandestinidade.2

    1 A Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1967, com a Emenda no 1 de 1969, inclui ou-tras proibies de propaganda no artigo 153, 8o, ao tratar da liberdade de expresso, e preserva a proibio da propaganda de preconceitos de raa: livre a manifestao do pensamento... No sero, porm, toleradas a propaganda de guerra, de subverso da ordem ou preconceitos de raa ou classe, e as publicaes e exteriorizaes contrrias moral e aos bons costumes. Mais tarde, a Lei de Segurana Nacional Decreto-Lei de 26/9/1969, tipificou como crime, no artigo 39, inciso VI, com pena de recluso de 10 a 20 anos, incitar ao dio ou discriminao racial. No jornal O Globo, publicado em dezembro de 1969, a notcia, com o ttulo de: Portela v imprensa a servio da discriminao racial para conturbar, traz um pronunciamento oficial sobre as pre-ocupaes que cercam o tema das relaes raciais. Publicando telegrama procedente de Braslia, o jornal informa que o General Jaime Portela, em Exposio de Motivos ao Presidente da Rep-blica, sugerindo a criao da Comisso Geral de Inqurito Policial Militar, datada de 10/2/1969, refere-se a concluses do Conselho de Segurana Nacional sobre aes subversivas.

    2 As Constituies de 1946 e 1967 j trouxeram no seu corpo a proibio da propaganda de guerra, de subverso da ordem ou preconceito de raa e classe social: da imprensa e da televiso em ligao com rgos estrangeiros de imprensa e de estudos internacionais sobre discriminao racial, visando a criar novas reas de atrito e insatisfao com o regime e as autoridades consti-tudas (jornal O Globo, dezembro de 1969 apud Bertulio, 1989).

  • 38

    No dia 18 de junho de 1978, o operrio Robson Silveira da Luz, ao sair de uma festa em um domingo de madrugada, foi preso e espan-cado at a morte por pegar uma ma de um caminho em uma feira livre. Foi levado preso para o 44o Distrito de Polcia de Guaianazes, na zona leste de So Paulo. Ele tinha 27 anos, era pai de famlia e negro. Torturado pelos policiais, acabou morrendo.

    Nessa poca, ainda em pleno regime militar, quotidianamente, qui-nhentas pessoas protestavam contra o crime em frente ao Teatro Mu-nicipal de So Paulo. Ali, em 18 de junho de 1978, nascia o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminao Racial (MNUCDR), poste-riormente denominado MNU. O processo penal sobre o assassinato levou cerca de 20 anos e os assassinos de Robson, embora tenham sido condenados, jamais foram presos.

    Em 1o de julho do mesmo ano, ocorreu o assassinato de outro jovem operrio negro, Nilton Loureno, cometido por um policial no bairro paulistano da Lapa. Ainda nesse ano, registrou-se a discriminao so-frida por quatro meninos negros impedidos de treinar vlei no time infantil do Clube de Regatas Tiet.

    O Servio Nacional de Informaes (SNI)3, criado em 13 de junho de 1964, com a finalidade de coordenar as atividades de informao e contrainformao em todo o pas, produziu inmeros relatrios sobre assuntos julgados pertinentes Segurana Nacional durante o regime militar. Em um deles, de 14 de julho de 1978, pode-se encontrar um relato sobre a manifestao, nas escadarias do Teatro Municipal de So Paulo, daquilo que se tornaria mais adiante o Movimento Negro Uni-ficado (MNU):

    Realizou-se em So Paulo, no dia 7 julho de 1978, na rea fronteiri-a ao Teatro Municipal, junto ao Viaduto do Ch, uma concentrao organizada pelo autodenominado Movimento Unificado Contra a Discriminao Racial, integrado por vrios grupos, cujos objetivos principais anunciados so: denunciar, permanentemente, todo tipo de racismo e organizar a comunidade negra. Embora no seja, ain-

    3 Esse documento, que se encontra no Arquivo Ernesto Geisel, depositado no Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC) da Fundao Getlio Vargas, no o nico produzido pelos rgos de informao da poca sobre a atividade de militantes e organizaes do movimento negro. Mas ele nos ajuda a situar a atuao desse movimento social na Histria do Brasil, mais especificamente no contexto da abertura poltica, iniciada em 1974. Desde o incio da dcada de 1970, possvel registrar a formao de entidades que, como diz o relatrio do SNI, buscavam denunciar o racismo e organizar a comunidade negra. Por exemplo, o Grupo Palmares, criado em Porto Alegre em 1971; o Centro de Estudos e Arte Negra (Cecan), aberto em So Paulo em 1972; a Sociedade de Intercmbio Brasil-frica (Sinba), inaugurada no Rio de Janeiro em 1974, e o Bloco Afro Il Aiy, fundado em Salvador tambm em 1974 (Alberti & Pereira, 2008).

  • Temas de Interesse do Legislativo | 39

    da, um movimento de massa, os dados disponveis caracterizam a existncia de uma campanha para estimular antagonismos raciais no pas e que, paralelamente, revela tendncias ideolgicas de esquerda. Convm assinalar que a presena no Brasil de Abdias do Nascimento, professor em Nova Iorque, conhecido racista negro, ligado aos movi-mentos de libertao na frica, contribuiu, por certo, para a instalao do j citado Movimento Unificado(Alberti e Pereira, 2008: 1).

    A manifestao contou com a presena de Abdias do Nascimento, militante de longa data, que em 1968 havia se exilado nos Estados Unidos, onde foi professor em vrias universidades. O fato de ser apontado como conhecido racista negro pelo relatrio do SNI um dado interessante e pode ser explicado pela forte atuao do movimento negro, naquela poca, no sentido da denncia do chamado mito da democracia racial, isto , da ideia de que no havia racismo no Brasil. Como Abdias do Nascimento, de acordo com o SNI, denunciava um racismo inexistente, ele mesmo seria racista. Outro documento, de janeiro do mesmo ano de 1978, advertia: Esses movimentos, caso continuem a crescer e se radicalizar, podero vir a originar conflitos raciais (Alberti e Pereira, 2008: 1).

    A violncia policial, uma das mais frequentes situaes de vio-lao dos Direitos Humanos, era preocupao permanente do mo-vimento negro, que em 1978 rompeu com o discurso unssono de combate discriminao racial e incorporou a luta contra a tortura para o preso comum.

    O surgimento de um movimento negro que combatia a violncia po-licial, na abordagem como suspeitos e no atendimento das delegacias, representou um novo posicionamento em defesa e na promoo dos Direitos Humanos. O surgimento do MNU, em 1978, foi um fato novo, pois representava um discurso que reivindicava a identidade negra na luta pela democracia e pelos Direitos Humanos. Um processo difcil.

    A aproximao com as foras de oposio incorporou temas como a luta contra a violncia policial e em defesa da democracia como reivin-dicaes tambm do movimento negro. Mas a reivindicao que mais incomodava o governo era a incorporao da luta contra a violncia policial, o que as foras do regime entendiam como formas camufladas de infiltrao comunista no Brasil (Kossling, 2007).

    Existia uma censura, que era de sutil a explcita, na discusso sobre o racismo no Brasil. A casustica que reforava essa censura era a escu-sa da inatividade, em uma situao que requeria uma ao corretiva. Mais ainda o que este processo encorajava era perpetuar o silncio, sob o risco de ser acusado de incentivar a discriminao.

  • 40

    Na verdade, porm, o governo simplesmente considerava qualquer movimento de conscientizao negra como uma ameaa ou agresso retaliativa, sendo at mencionado que, nessas ocasies, os negros esta-vam tratando de impor ao pas uma suposta superioridade racial ne-gra. Qualquer esforo por parte do movimento negro esbarrava nesse obstculo. A ele no se permitia esclarecer e compreender a prpria situao no contexto do pas, o que significava, para as foras no poder, ameaa segurana nacional, tentativa de desintegrao da sociedade brasileira e da unidade nacional.

    Ao longo da histria das lutas sociais do Movimento Negro no pas, desde a imprensa negra no incio do sculo XX, o Estado brasileiro agia de forma dura e repressiva ante as iniciativas surgidas do meio negro. Diferentemente do perodo ditatorial de Vargas, em que se estabelecia um dilogo mnimo, no houve espaos para dilogo.

    A dcada de 1980 caracterizou-se como um perodo de intensa mo-bilizao da sociedade civil, com a realizao de encontros nacionais e regionais e a formao de partidos polticos como o PMDB, PDT, PT e PDS; centrais sindicais e organizao dos movimentos negros em um movimento nacional o caso do MNU e a constituio de redes na-cionais de movimentos sociais que avanaram na compreenso da luta por Direitos Humanos, como o Movimento Nacional de Direitos Hu-manos (MNDH).

    2.1 Violncia e racismo

    Aparentemente, a violncia cotidiana pode afetar a todos em igual intensidade, independentemente de classe social, fentipo, idade e sexo. As mensagens veiculadas pela mdia reforam essa percepo. Estudos mais recentes, no entanto, mostram que nem todos so atin-gidos da mesma maneira pela violncia. As taxas de homicdio, por exemplo, so mais altas nos bairros de pessoas pobres, em favelas e onde os servios urbanos so mais deficientes. Alm disso, os dados indicam que outro tipo de desigualdade caminha lado a lado com a distribuio desigual de riqueza, educao, sade e saneamento entre brancos e negros no Brasil: os negros em comparao com os brancos apresentam os piores ndices da violncia letal.

    Segundo Zaluar (1999: 28):

    violncia vem do latim violentia que remete a vis (fora, vigor, em-prego de fora fsica ou os recursos do corpo para exercer sua fora

  • Temas de Interesse do Legislativo | 41

    vital). Essa fora torna-se violncia quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tcitos e regras que ordenam relaes, adquirindo carga negativa ou malfica. , portanto, a percepo do limite e da perturbao (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar o ato como violento, percepo essa que varia cultural e historicamente.

    A violncia policial e a ao de grupos de extermnio tinham sido motivo de preocupao para os Agentes de Pastoral Negros (APNs), que tambm confrontavam o racismo na hierarquia da Igreja. Seus membros trabalharam em comunidades como as da Baixada Flumi-nense, no Rio de Janeiro, e nas favelas de So Paulo. Entre suas ativi-dades, ressalta-se o protesto pblico contra o assassinato de crianas negras (o caso Joilson, em So Paulo) e a luta contra os esquadres da morte, em lugares como So Joo do Meriti, RJ. Mas todas essas atividades aconteceram depois da criao do MNU em So Paulo, que foi uma referncia de luta e politizao da luta do movimento negro (Hanchard, 2001).

    Leonardo Boff, ao escrever sobre violncia policial, reproduziu um lugar-comum de que se algum portador de alguns dos seguintes ps (pobre, preto e prostituta) pela polcia preso e, no raro, antes de qualquer pergunta, vtima de violncia fsica (Boff, 1999: 11). Utili-zou-se dessa expresso corriqueira, que frequentemente reproduzida por advogados4, juzes5 e polticos como uma verdade absurda, como pertencente ao imaginrio e incorporada em nossa cultura, fazendo o cidado desacreditar do sistema judicial, e em especial da polcia.

    2.1.1 Medo da polciaA opinio da maioria das pessoas, particularmente da populao

    negra, desfavorvel forma de atuao das polcias. Os motivos es-to baseados na experincia prpria ou no conhecimento do trato das foras policiais. Em dezembro de 1995 o Instituto Datafolha iniciou

    4 O advogado Alberto Zacharias Toron, ex-membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que ficou famoso ao defender o juiz Nicolau dos Santos Neto (ou juiz lalau, como ficou popularmente conhecido), que desviou dinheiro do Frum Trabalhista de So Paulo, foi contratado para defender um dos rus incriminados pela operao Navalha, o ex-procurador-geral do Maranho, Ulisses Cesar, suspeito de participar das fraudes das construtoras. Considerou um escracho o trabalho da Polcia Federal, pois segundo ele, o que se fazia antes contra preto, pobre e puta, agora feito contra seus clientes: brancos, ricos e apaniguados do poder. (Folha de S. Paulo, 24 de maio de 2007).

    5 O juiz Ronaldo Tovani, 31 anos, substituto da Comarca de Varginha, ex-promotor de justia, concedeu liberdade provisria a Alceu da Costa (vulgo Rolinha), preso em flagrante por ter furtado duas galinhas e ter perguntado ao delegado: desde quando furto crime neste Brasil de bandidos?. O magistrado lavrou ento sua sentena em versos, e afirmou, antes, que lei no pas para pobre, preto e puta, enquanto mantm impunes os charmosos autores das fraudes do antigo Inamps.

  • 42

    uma pesquisa sobre a imagem da polcia entre os moradores de So Paulo e do Rio de Janeiro, entrevistando 1.721 pessoas. Logo aps a televiso ter mostrado sucessivamente as imagens a violncia cometi-da na Favela Naval, em Diadema, outra pesquisa, com 1.080 paulistas, foi imediatamente aplicada para conhecer os efeitos dessas imagens nas avaliaes sobre o trabalho policial. As diferenas nas opinies se revelam quando levada em conta a cor dos entrevistados: os brancos referiram-se mais aos problemas da ineficincia e da corrupo, en-quanto negros relacionavam a polcia questo da violncia por ela praticada. Somente onze por cento dos brancos, em contraste com vinte por cento dos negros, revelaram sentir medo da polcia (Khan, 1996).6

    Nas abordagens policiais na rua, situao em que a atuao dos agentes de segurana menos sujeita ao controle de outras esferas do Estado, surgem mais oportunidades para que preconceitos relaciona-dos com o fentipo adquiram maior peso na aplicao da lei e da or-dem. Uma pesquisa de 2003, feita com 2.250 cariocas na faixa etria entre 15 e 65 anos, revelou que 37,8% dos entrevistados, que eram ne-gros, tinham sido parados alguma vez pela polcia. A mera incidncia de abordagens varia significativamente por sexo e por idade, mas no por cor ou raa autodeclarada, nem por renda ou escolaridade.

    No entanto, se todos so parados pela polcia com a mesma frequ-ncia, as pessoas pretas e pardas so revistadas em maior proporo: dos cariocas que se autodeclararam pretos e que haviam sido aborda-dos pela polcia, a p ou em outras situaes, mais da metade (55%) disse ter sofrido revista corporal, contra 38,8% dos pardos e 32,6% dos brancos. Os nmeros indicam que a polcia, quando se depara com transeuntes brancos, mais velhos e de classe mdia (sobretudo quan-do circulam por reas nobres do Rio de Janeiro), tem maior pudor em revist-los procedimento fortemente associado existncia de sus-peio e, em geral, considerado em si mesmo humilhante.

    Esse medo revelado na pesquisa estaria relacionado opinio de que os policiais, quando entram em ao, so violentos, ferem pes-soas inocentes nos tiroteios, abordam qualquer pessoa e confundem bons cidados com bandidos ou ainda s abordam os negros. Final-mente, a pesquisa de vitimizao de dezembro 1997, feita em conjunto pelo Datafolha e o Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para a Preveno ao Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud) corrobora

    6 KAHN, Tulio. Os negros e a polcia: recuperando a confiana mtua. So Paulo: Boletim Informa-tivo do Grupo de Pesquisa da Discriminao da USP 1 (3), 1998.

  • Temas de Interesse do Legislativo | 43

    esses padres: quando se conversa sobre violncia, a referncia po-lcia era maior entre os negros, especialmente no aspecto violncia e abuso de poder.

    Com efeito, quando os entrevistados foram perguntados em 1995 pelo Datafolha se sentiam mais confiana do que medo, ou mais medo do que confiana na polcia, os negros apresentaram a maior taxa de mais medo do que confiana, tanto no que se referia Polcia Militar quanto Polcia Civil. A mesma tendncia se manteve quando a ques-to foi repetida em abril de 1997. Entre os negros, alis, muitos revela-ram ter mais medo da polcia que dos prprios bandidos. A proporo dos que disseram ter mais medo da polcia do que dos bandidos au-mentava entre aqueles que j haviam sido parados alguma vez para serem revistados. Os dados e, sobretudo, as consequncias eram ainda mais dramticos quando se avaliava o fentipo dos mortos pela polcia.

    2.1.2 O uso da fora policial letal maior na populao negra do que na branca

    De acordo com pesquisa do Instituto de Estudos da Religio (Iser), coordenada pelo socilogo Igncio Cano (1997), o papel da raa no uso da fora policial letal talvez seja a fonte das violaes mais severas dos Direitos Humanos no Brasil. Aps avaliar mais de mil homicdios co-metidos pela polcia do Rio de Janeiro, entre os anos de 1993 e 1996, o relatrio conclui que a raa constituiu um fator que influencia a polcia seja conscientemente ou no quando atira para matar. Quanto mais escura a pele da pessoa, mais suscetvel ela est de ser vtima de uma violncia fatal por parte da polcia. Os registros apontam que, entre os mortos pela polcia, os negros e pardos so 70,2% e os brancos 29,8%.

    Cano (1997) dedicou-se a analisar os registros de pessoas mortas ou feridas por policiais na cidade do Rio de Janeiro, entre janeiro de 1993 e julho de 1996, e identificou que os brancos representavam 60% da populao e 30% dos mortos pela polcia; os negros eram 8% da popu-lao e 30% dos assassinados por policiais.

    Em So Paulo, no mesmo perodo, uma amostra das ocorrncias, envolvendo 203 mortos pela polcia, chegou a concluses semelhantes. Os brancos representavam 70% da populao e apenas 53% dos mortos em operaes policiais. Comparando a razo entre mortos e feridos em confrontos armados com a polcia, verificou-se, na pesquisa de Igncio Cano, que no perodo pesquisado (janeiro de 1993 a julho de 1996) essa razo era superior a 1, chegando a superar 3,5 em algumas pocas.

  • 44

    Verificou-se, ainda, o aumento da letalidade nas aes policiais ocorridas em favelas e periferias. Fazendo o corte racial, pode-se constatar que a polcia matou, durante o perodo analisado na pesqui-sa, 2,7 pessoas brancas para cada pessoa branca ferida. Com relao populao negra, essa razo chega a quase cinco: so 4,9 pardos ou negros mortos para cada ferido.

    Analisando esses dados, pode-se dizer que a violncia policial dis-cricionria, pois atinge em maior nmero e com maior violncia os ne-gros. Outro fator determinante dentro da anlise da violncia policial no Brasil a questo econmico-social, pois na grande maioria dos ca-sos as vtimas so pessoas pobres ou moradores de favelas e periferias.

    A probabilidade de negros morrerem em confrontos com a polcia maior nas favelas, que so os locais onde o nmero de mortos maior, mas a diferena entre brancos e negros continua desproporcional, mes-mo quando consideradas outras reas urbanas.

    Alm de ser a maior vtima da violncia policial, a populao negra lidera tambm as estatsticas gerais de vtimas de assassinatos. Segundo o relatrio do PNUD, a taxa de homicdios por 100 mil habitantes para a populao negra (pretos e pardos) de 46,3% (1,9 vez a dos brancos). Em relao aos brancos e amarelos, a probabilidade de ser assassinado quase o dobro para os pardos e 2,5 vezes maior para os pretos.

    A pesquisa de opinio pblica feita pelo Datafolha com 1.080 paulis-tanos, em abril de 1997, encontrou padres semelhantes. Perguntou-se s pessoas se j haviam sido ofendidas verbalmente ou agredidas fisi-camente por algum policial. Do total de entrevistados, 20% afirmaram j terem sido ofendidos verbalmente e 8% agredidos fisicamente por al-gum policial. Quando comparados por escolaridade e renda, no havia diferenas significativas entre os vitimados, mas a dissecao dos dados por sexo, idade e cor revelou diferenas conhecidas: as vtimas em geral eram homens, mais jovens e mais coloridas do que as no vtimas. Os contrastes eram maiores no quesito agresses fsicas: elas atingiram somente 6% dos brancos em comparao com 14% dos negros.

    A pesquisa no deixou claro em que consistiram essas agresses, que podem ter ido de simples empurres e safanes at leses corpo-rais de maior gravidade. Independentemente da gravidade e mesmo um empurro j revela excesso , de um modo geral, o comportamento das foras policiais para com a populao desigual no que diz respei-to a sexo, idade e grupo racial.

    Jovem, negro e pobre. Esse o perfil de quem geralmente morre nas mos da polcia. O racismo um componente fundamental para expli-

  • Temas de Interesse do Legislativo | 45

    car parte da violncia. O racismo institucional se revela por meio de mecanismos de instituies pblicas, explcitos ou no, que dificultam o fim da desigualdade entre negros e brancos.

    2.2 Racismo Institucional e a Comisso Interamericana de Direitos Humanos

    H um caso em tramitao contra o Estado brasileiro na Comisso Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que envolve violncia policial e racismo. o caso de Wallace de Almeida, denunciado pelo Ncleo de Estudos Negros (NEN) e pelo Centro de Justia Global (CJG). Recebeu o n 12.240/Wallace de Almeida, conforme o disposto nos artigos 44 e 46, 2 alnea c da Conveno Americana sobre Direitos Humanos e 26, 27 e 32 do Regulamento da Comisso.

    O assassinato comum na situao de jovens negros vtimas da vio-lncia cotidiana. A morte de Wallace no um fato isol