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Direitos humanos, movimentos sociais e mídia: apontamentos iniciais e subsídios para debate Fábio Souza de Cruz * Marcelo Oliveira de Moura Índice 1 Introdução 1 2 Visões tradicionais acerca dos Direi- tos Humanos, movimentos sociais e a luta pela garantia da dignidade 2 3 O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), as questões de identi- dade e diferença e o direito a ter di- reitos 7 4 A mídia como palco de disputas 10 5 Análises 13 6 Considerações finais 18 7 Bibliografia 20 * Doutor em Cultura Midiática e Tecnologias do Imaginário (PUCRS). Mestre em Comunicação e Práticas Sócio-Políticas (PUCRS) Professor do Pro- grama de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Católica de Pelotas (UCPEL) e do Curso de Graduação em Comunicação Social da mesma Instituição de Ensino Superior. E-mail: [email protected] Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Doutorando em “Derechos Humanos y Desarrollo” (UPO/Sevilha). Professor de Direito Penal, Criminologia e Intro- dução ao Estudo do Direito na Universidade Católica de Pelotas (UCPEL) e Coordenador do Programa de Estudos de Direito Constitucional e Direitos Hu- manos do Curso de Direito da UCPEL. E-mail: mard- [email protected] 1 Introdução Como nos alerta Zygmunt Bauman, o grande problema da condição contemporânea de nossa civilização moderna é que ela parou de questionar-se. O resultado de nosso con- formismo/indolência é pago na dura moeda do sofrimento hu- mano. Fazer as perguntas certas constitui, afinal, toda a diferença entre sina e destino, entre andar a deriva e viajar. Questionar as pre- missas inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que devemos prestar aos nossos companheiros humanos e a nós mesmos (1999, p. 11). Esse espírito é que nos moveu a cons- truir este artigo, ou seja, vai projetado na perspectiva de formulação de questionamen- tos, de provocação, de disseminação de angústia e desconforto quanto à possibili- dade de responder as demandas sociais con- temporâneas mediante uma percepção do ju- rídico e social, orientada por operações cog- nitivas simplificadoras. Entretanto, enquanto projeto de crítica, encerra compromisso com uma postura afir-

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Direitos humanos, movimentos sociais e mídia:apontamentos iniciais e subsídios para debate

Fábio Souza de Cruz∗

Marcelo Oliveira de Moura†

Índice1 Introdução 12 Visões tradicionais acerca dos Direi-

tos Humanos, movimentos sociais e aluta pela garantia da dignidade 2

3 O Movimento dos Trabalhadores SemTerra (MST), as questões de identi-dade e diferença e o direito a ter di-reitos 7

4 A mídia como palco de disputas 105 Análises 136 Considerações finais 187 Bibliografia 20

∗Doutor em Cultura Midiática e Tecnologias doImaginário (PUCRS). Mestre em Comunicação ePráticas Sócio-Políticas (PUCRS) Professor do Pro-grama de Pós-Graduação em Política Social daUniversidade Católica de Pelotas (UCPEL) e doCurso de Graduação em Comunicação Social damesma Instituição de Ensino Superior. E-mail:[email protected]†Mestre em Direito pela Universidade do Vale

do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Doutorando em“Derechos Humanos y Desarrollo” (UPO/Sevilha).Professor de Direito Penal, Criminologia e Intro-dução ao Estudo do Direito na Universidade Católicade Pelotas (UCPEL) e Coordenador do Programade Estudos de Direito Constitucional e Direitos Hu-manos do Curso de Direito da UCPEL. E-mail: [email protected]

1 IntroduçãoComo nos alerta Zygmunt Bauman, o grandeproblema da condição contemporânea denossa civilização moderna é que ela paroude questionar-se. O resultado de nosso con-formismo/indolência é pago

na dura moeda do sofrimento hu-mano. Fazer as perguntas certasconstitui, afinal, toda a diferençaentre sina e destino, entre andar aderiva e viajar. Questionar as pre-missas inquestionáveis do nossomodo de vida é provavelmente oserviço mais urgente que devemosprestar aos nossos companheiroshumanos e a nós mesmos (1999, p.11).

Esse espírito é que nos moveu a cons-truir este artigo, ou seja, vai projetado naperspectiva de formulação de questionamen-tos, de provocação, de disseminação deangústia e desconforto quanto à possibili-dade de responder as demandas sociais con-temporâneas mediante uma percepção do ju-rídico e social, orientada por operações cog-nitivas simplificadoras.

Entretanto, enquanto projeto de crítica,encerra compromisso com uma postura afir-

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mativa de oposição que “no puede quedarseen la deconstrucción, una vez que ésta,llevada al extremo, cumple el papel de de-construir la propia posibilidad de resisten-cia y de alternativa” (SANTOS, 2003, p.34). Assim, neste texto, pretendemos tra-balhar vinculados a uma política de afirma-tivas que permita critérios capazes de via-bilizar uma releitura da realidade. Permita-nos criar problemas. Problematizar a rea-lidade avaliando. Estabelecer novos pontosde partida para a reinvenção, ressignificaçãodas formas tradicionais de conhecimento ju-rídico e social forjados pela modernidadeocidental.

Nesse sentido, apoiados no arsenal teóricode Joaquín Herrera Flores, sustentamos quenossa (re)construção faz-se desde uma visãode afirmação da diferença, que não reduz arealidade ao existente-dado ou posto, e buscaavançar num viés de abertura de espaço denovas possibilidades, com a tarefa crítica deinterpretação ou (re)significação da naturezae de construção de um âmbito de alternati-vas ao que está dado, ou hegemonicamentedefinido no que tange aos Direitos Humanos,aos movimentos sociais e ao papel da mídiatradicional nesta realidade.

Portanto, pretendemos uma crítica ali-cerçada

en el presupuesto de que lo exis-tente no agota las posibilidades dela existencia, y que, por tanto, hayalternativas que permiten superarlo que es criticable en lo que e-xiste. La incomodidad, el incon-formismo, o la indignación ante loexistente suscita el impulso parateorizar su superación.

Compreendemos, portanto, que não háum princípio único de transformação so-cial, vários futuros alternativos são possíveis(SANTOS, 2003, p. 34). Restamos cons-cientes, também, que são grandes as difi-culdades de tecer uma abordagem crítica nacontemporaneidade frente ao fato de que osproblemas vinculados aos déficits modernostransformam-se em problemas para os quaisnão parece haver solução. Todavia, o fatode “nos enfrentarmos a problemas modernospara los cuales no hay soluciones modernas”(SANTOS, 2003, p. 30), por nós é tomadocomo desafio e, mais ainda, como uma im-posição ética de solidariedade com as víti-mas da injustiça, opressão e exclusão.

2 Visões tradicionais acerca dosDireitos Humanos,movimentos sociais e a lutapela garantia da dignidade

No debate que envolve a justificação e funda-mentação dos Direitos Humanos, no âmbitoda ciência jurídica, encontramos fundamen-talmente duas visões imperantes:

1. uma visão abstrata, vazia deconteúdo, referenciada nascircunstâncias reais das pes-soas e centrada na concepçãoocidental de direito e do valorda identidade;

2. uma visão localista, na qualpredomina o “próprio”, onosso, com respeito ao dosoutros, e centrada na idéiaparticular de cultura e de

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valor da diferença. (HER-RERA FLORES, 2004, p.364)

Duas perspectivas teóricas que determi-nam tipos de racionalidade e de práticasdiferenciadas: a) visão abstrata, raciona-lidade formal e prática universalista; e,b) visão localista, racionalidade material-cultural e práticas particulares; as quais, noentanto, se aproximam em sua tendência àunitariedade,

supõem sempre se situar em umcentro de onde se passa a inter-pretar todo o restante. Nesse sen-tido, torna-se a ser a mesma coisaanalisar uma forma de vida con-creta ou uma ideologia jurídica esocial. Ambas funcionam comoum padrão de medidas e de ex-clusão. Dessas visões deriva ummundo desintegrado. (HERRERAFLORES, 2004, p. 366)

Enfim, nas duas está presente um recorteda realidade a partir do qual se constroempráticas de dominação de todos os espaçosque não alcançam. Assim, podemos perce-ber que tanto as visões abstratas, como as lo-calistas, abominam o contínuo fluxo de in-terpretações e re-interpretações. Cada uma,por seu lado, procura colocar um ponto fi-nal hermenêutico que determine a raciona-lidade em suas análises e propostas (HER-RERA FLORES, 2004): o universalismofecha-se numa expansão contínua e o par-ticularismo/localista enclausura-se em umacontração permanente. (SÁNCHEZ RÚBIO,2000)

Nesse sentido, vemos que a visão lo-calista/particularista se afoga frente à plu-ralidade de interpretações e, a seu modo,ainda constrói outro universalismo, um uni-versalismo de retas paralelas que somenteencontraram-se no infinito do magma das in-diferenças culturais (HERRERA FLORES,2004).

O localismo sistematiza seupróprio “ponto final” sob aspremissas de uma racionalidadematerial que resiste ao univer-salismo colonial, a partir dospressupostos do “próprio”. Fecha-se sobre si mesmo. Resistindoa uma tendência universalista apriori de depreciar as “distinções”culturais, com objetivo de imporuma só forma de ver o mundo, olocalismo reforça a categoria dadistinção, de diferença radical,com o que, em última instância,acaba defendendo uma visãoabstrata do mundo: a separaçãoentre nós e eles, o desapreçopelo outro, ignorância sobre oque nos faz idênticos e a relaçãocom os outros; a contaminação dealteridade (HERRERA FLORES,2004, p. 373).

Isso conduz à prática que respeita as dife-renças, mas torna absoluta a identidade, pos-tura que esconde, como diz Herrera Flo-res (2004), as relações hierárquicas – do-minantes/dominados. Este particularismoradical, como afirma Sánchez Rubio:

entre otras cosas se le critica elhecho de que cuando valora de la

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misma manera a todas las culturas,lo hace ya desde un criterio univer-sal de respecto a todos los gruposparticulares. También al supedi-tar al individuo libre y autónomoa las normas y los hábitos dictadaspor la comunidad, se le está anu-lando su capacidad de decidir li-bremente y rebelarse frente a lasinjusticias cometidas por la colec-tividad. Además, excluye crite-rios para contrastar y distinguirlas sociedades totalitarias de lassociedades democráticas. Final-mente, la esencialización de la co-munidad, la etnia, la raza o lanación, es fuente de marginación ydiscriminación de todo aquello quequeda fuera de su círculo de perte-nencia. Se conforma un nosotrosexcluyente frente a los desprecia-dos (2000, p. 233/234).

Por outro lado, o fechamento operado pelahegemônica visão abstrata, que predominano âmbito acadêmico e alicerça as práti-cas da maioria das “bem intencionadas” pes-soas e organizações que lutam pela garantiados Direitos Humanos, dá-se mediante uma“racionalidade formal” que carrega efeitosextremamente perversos. Mediante um pro-cesso que consiste em redução da

racionalidade à coerência internade regras e princípios, a visão abs-trata dos direitos esquecerá algomuito importante para o entendi-mento da sociedade e dos direitos:regras e princípios reconhecidosjuridicamente estarão submetidosàs exigências de coerência e falta

de lacunas internas. Mas, porsua vez, essa racionalização doreal, em termos jurídicos, não teráem consideração a “irracionali-dade das premissas” sobre as quaisse sustentam e as quais pretendemconformar desde sua lógica e suacoerência. (HERRERA FLORES,2004, p. 371).

Os Direitos Humanos ficam, assim, re-duzidos aos seus componentes jurídicos,sendo que a luta por dignidade resta confi-nada ao espaço judicial. Ocorre um fenô-meno de aprisionamento dos Direitos Hu-manos pela lei. Advertimos, desde já, queconsideramos indispensáveis os embates noâmbito judicial, porém, reduzir a luta aeste locus leva a um aceite da racionali-dade interna e da irracionalidade das premis-sas que subjazem as estruturas institucionais-normativas. (HERRERA FLORES, 2004, p.372)

Não podemos negar a profunda vincu-lação de nossas declarações de Direitos Hu-manos e das instituições – de âmbito na-cional e internacional – com competênciapara tratar essas questões, com um projetopolítico liberal-burguês e individualista e sualógica da acumulação do capital e do bene-fício privado, onde não há espaço consi-derável para a satisfação das necessidades e-lementares das pessoas de carne e osso.

Assim, a visão universal e sua racionali-dade formal, retirando a impureza históricados Direitos Humanos, avança numa pers-pectiva descontextualizada no tempo e no es-paço e tem nos levado a um olhar contem-plativo das relações de poder. Ocultando ascausas reais das desigualdades e, como pode-mos ver, sustentando a expansão irrestrita de

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acumulação de capital em tempos de glo-balização orientada pela agenda neoliberal,universalizando todo um fundamento ético-político liberal e individualista.

Nesse panorama, inserem-se as leiturascorrentes acerca do Direito, do papel da so-ciedade e dos movimentos sociais na lutapela garantia da dignidade que se cons-troem desde uma lógica descontextualizada,à margem do sistema de relações que cons-tituem suas condições de existência.

Convém referir que “no transcurso dahistória, o Estado (Moderno) viu-se envoltoem um largo processo de consolidação etransformação passando, nos dias de hoje,por uma longa desconstrução/exaustão”(MORAIS, 2002, p. 12), o que se refletede forma peculiar nos países periféricos, deorigem colonial, em que o “ente estatal”sempre se prestou aos interesses externos-metropolitanos.

Como nos alerta Herrera Flores, a novafase da globalização, a denominada neo-liberal, tem como uma das característicasfundamentais a proliferação de centros depoder (o poder político nacional se vê obri-gado a compartilhar “soberania” com corpo-rações privadas e organismos globais multi-laterais1). Assim, percebemos que frente ao

1 A título ilustrativo, como nos alerta BOLZANDE MORAIS (Op. cit. pp. 28/29), verifica-seno referente às organizações econômicas suprana-cionais que “não se pode olvidar o papel jogado pelaschamadas empresas transnacionais no bojo de umcapitalismo financeiro que, exatamente por não teremnenhum vínculo com um Estado em particular e, maisainda, por disporem de um poder de decisão, em espe-cial financeiro, que pode afetar profundamente a situ-ação de muitos países, especialmente aqueles débeiseconomicamente, superposto a um modelo produtivode novo tipo onde a produção cede lugar à auto-reprodução do capital, adquirem um papel fundamen-

processo de globalização instrumentalizadoa partir de um discurso neocapitalista, a ins-tituição central da modernidade – o Estado-Nação – é colocada em xeque (2003).

O Estado não mais figura enquanto locusprivilegiado de poder. Em tempos de glo-balização, vivemos o momento de superfra-gilização estatal. Como afirma Bauman, ostrês pés – militar, econômico e cultural – queformam o “tripé da soberania” foram que-brados sem esperança de conserto (1999, pp.71/72). De agente que reivindicava o direitolegítimo e que ostentava recursos suficientespara estabelecer e impor as regras e as nor-mas que ditavam o rumo dos negócios numcerto território, ou seja, que ambicionava im-por um certo modelo de ordem preferido emvez de outros alternativos, o “ente estatal”dá lugar a novos atores – forças anônimas– transnacionais produtores de ordem opres-siva. Tais forças instituem originais espaçosdecisórios – novos sítios legislativos, exe-cutivos e jurisdicionais –, estabelecendo lu-gares e formas diferenciadas de dominação etirania.

Portanto, vivemos um tempo de surgên-cia dos “Novos Leviatãs”, o que nos per-mite afirmar que o “(...) tirano contemporâ-neo não é mais representável no Estado, nemna maioria eleitoral, nem numa classe. Nãohá mais lugar institucional específico quesubstancialize o poder (...)”, sendo esta in-visibilidade talvez um dos maiores desafiosdas organizações políticas contemporâneas.(AGUIAR, 2004, p. 250)

Estas novas dinâmicas “que sacrificam ademocracia no altar do mercado e a justiça

tal na ordem internacional e, em especial, impõematitudes que não podem ser contrastadas sob o argu-mento da soberania estatal”.

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ao invés do lucro” (BORON, 1998 p. 33),têm gerado efeitos específicos nos paísesque ocupam posição periférica na estru-tura geopolítica mundial. As conseqüên-cias nefastas do referido processo, nestesambientes particulares, superdimensionam-se, comprometendo o já escasso coeficientedemocrático – aqui medido a partir da efe-tiva garantia daqueles que o Ocidente con-vencionou chamar Direitos Humanos – dospaíses de modernidade tardia.

Nesse contexto, de novas formas de domi-nação/tirania que se abatem de forma espe-cial sobre as vítimas dos países “eufemisti-camente” chamados de “nações em desen-volvimento”, emerge a exigência de um(re)pensar das balizas abstracionistas e idea-lizadoras de compreensão do Direitos Hu-manos.

As justificações dessa categoria jurídicaproduzidas, na sua maioria, fundamentadas apartir de visões liberais-contratualistas, per-dem consistência neste novo cenário de re-distribuição do poder. Os novos proces-sos que surgem no mundo globalizado es-tão exigindo uma nova perspectiva teóricae política no que concerne aos Direitos Hu-manos, e pondo em questão a natureza indi-vidualista, essencialista, estatalista e forma-lista dos direitos que marcam as construçõesaté a última década do século XX. (HER-RERA FLORES, 2003)

Mais do que isso, os processos devitimização e opressão das populações peri-féricas revelam fundamental uma atualiza-ção do debate referente às estratégias deresistência levando-se em consideração osmovimentos das vítimas e num viés de res-gate da dignidade dos discursos filosófico-jurídicos dos mundos que hoje se situam naperiferia. (DUSSEL, 2002).

As construções abstratas, como vimos,amarram os institutos jurídicos ao espaçoestreito da relação indivíduo-Estado, sendoque os Direitos Humanos somente exis-tem nesta lógica marcada pelas camisas deforça impostas pelas premissas mercadoló-gicas subjacentes a toda construção.

Temos clara a importância dasDeclarações de Direitos, conforme dis-semos anteriormente, e inclusive das leiturastradicionais, entretanto, insistimos na suainsuficiência e nos seus aspectos paradoxaisinsuperáveis. Neste sentido, ratificamos que

A mera judicialização de direitosesquece que as normas jurídicas eos tribunais constituem um subsis-tema do corpo político e que, porisso, resultam débeis ou forçosa-mente limitados ante a “razão doEstado” que se orienta a reproduzirassimetrias como condição de umadominação (econômica-social ecultural) que supõe e produz dis-criminações (GALLARDO, 2000,p. 39)2.

Nesse cenário apresenta relevância o pa-pel jogado por aqueles que no âmbito so-cial, a partir de discursos alternativos, es-capando das amarras universalista e forma-lista dos Direitos Humanos, lutam pela trans-formação das estruturas de poder e alteraçãodas formações sociais e políticas. Os movi-mentos populares e sociais, desde suas lutaspor melhores condições de vida e acesso aosbens que garantem dignidade, oferecem um

2 Tradução livre de fragmento da obra de GAL-LARDO. Helio. Política e transformación social.Discusión sobre derechos humanos. Quito: Serraj,2000.

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novo arsenal de fundamentação capaz de su-perar os limites das teorias anteriormente ex-postas.

Destarte, é forçoso admitir a importânciados movimentos sociais como fonte geradorade produção jurídica que proporcionam umacontaminação do direito por elementos queencontram vínculo radical com as deman-das da sociedade. Rompendo com a per-cepção monista-estatalista, podemos visua-lizar quiçá uma real democratização do ju-rídico, garantindo o protagonismo para osreais detentores do “direito de criar o direi-to”, a sociedade e os seres humanos concre-tos.

3 O Movimento dosTrabalhadores Sem Terra(MST), as questões deidentidade e diferença e odireito a ter direitos

Devido principalmente às mudanças so-ciais e econômicas pelas quais a agriculturabrasileira passou nos anos de 1970, o em-brião do MST surgiu em 1979. O cenárionaquele período era preocupante ao homemdo campo: ao mesmo tempo em que recru-desciam as concentrações de terra, novas tec-nologias eram implantadas no meio rural.Com isso, a mão-de-obra humana diminui e,conseqüentemente, aumentam os chamadoscinturões de miséria no meio urbano.

Foi então com essa preocupação que se de-ram os primeiros passos em torno do sur-gimento do MST. Este movimento socialse originou a partir das lutas que aconte-ceram nos estados do Rio Grande do Sul,

Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso doSul. Além disso, a organização e a disci-plina dos sem terra sofreram forte influên-cia da Comissão Pastoral da Terra3 (CPT), aqual surge em 1975, em Goiânia, capital doestado de Goiás.

Em janeiro de 1984, em Cascavel, Paraná,o MST é criado durante o I Encontro Na-cional do MTRST (Movimento dos Trabal-hadores Rurais Sem Terra). Um ano maistarde, concomitante ao retorno da democra-cia no Brasil, o Movimento foi oficializadodurante o I Congresso Nacional dos Traba-lhadores Sem Terra, em Curitiba, capital doParaná. A partir desse momento, os semterra alternaram bons e maus momentos aolongo da sua caminhada.

Na madrugada de 22 de abril de 1985,logo após o falecimento de Tancredo Neves,o presidente empossado José Sarney (1985-1989) promete implantar a reforma agráriano País, o que não vingou. O governo dopolítico maranhense ficou marcado por ocu-pações4 de sedes do INCRA (Instituto Na-cional de Colonização e Reforma Agrária.)

3 Em pesquisa anterior, relatamos que, “em ter-mos ideológicos, a CPT trouxe consigo a aplicação daTeoria da Libertação” (CRUZ, 2006, p.39). Já esta éuma “corrente pastoral das igrejas cristãs que aglutinaagentes de pastoral, padres e bispos progressistas quedesenvolvem uma prática voltada para a realidade so-cial. Essa corrente ficou conhecida assim porque, doponto de vista teórico, procurou aproveitar os ensi-namentos sociais da igreja a partir do Concílio Vati-cano II. Ao mesmo tempo, incorporou metodologiasanalíticas da realidade desenvolvida pelo marxismo”(FERNANDES e STÉDILE, 2001, p.20).

4 Vale mencionar que, além das marchas e dosacampamentos, a ocupação de terras consiste em umadas principais táticas do Movimento para forçar opoder a atender as suas reivindicações.

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por parte dos sem terra, além de uma sériede desapropriações e assentamentos5.

Em 1989, a eleição de Fernando Col-lor de Melo (PRN – Partido da Recons-trução Nacional) indicaria um futuro difí-cil para o MST. O presidente alagoano en-tra para a história como o que menos as-sentou famílias. Pelo contrário, foi quemmais reprimiu o Movimento, com invasõesda polícia federal a secretarias estaduais doMST, ocasionando roubo de documentos,além de processos judiciais e pedidos deprisão contra membros do Movimento. Como impeachment de Collor, assume, então, oseu vice, o mineiro Itamar Franco (1992-1994), que, entre os presidentes da república,foi o primeiro a receber integrantes dos semterra.

Como presidente do Brasil, FernandoHenrique Cardoso (1995-2002), do PSDB(Partido da Social Democracia Brasileira),assentou milhares de famílias, mas, no en-tanto, a política neoliberal de seu governopromoveu a pobreza no campo o que, en-tre outros fatores, agravou o êxodo rural ea conseqüente miséria no meio urbano6. Porfim, a esperança de novos rumos para o MST

5 Foi durante a segunda metade das décadas de1980 e 1990, que o MST obteve o maior número deassentamentos. No entanto, de acordo com Morri-sawa (2001, p.108), “em 1989, fim do mandato deJosé Sarney, haviam sido assentadas apenas 82690famílias (...)”.

6 No seu primeiro mandato, Fernando HenriqueCardoso fixou uma meta de 280 mil famílias assen-tadas. Entretanto, de acordo com Morrisawa, “con-tra as ocupações de latifúndios pelos sem-terra doMST e outras organizações congêneres, FHC bra-dava ter feito a maior reforma agrária do Brasil. Defato, foram assentadas 264.625 famílias, 70% delasno Norte e no Nordeste. Ele só não contou para osbrasileiros que, em somente dois anos de seu primeiromandato (1995-1996), 450 mil famílias de pequenos

surge através da eleição de Luiz Inácio Lulada Silva, do PT (Partido dos Trabalhadores),em outubro de 2002. Apesar dos esforços donovo presidente brasileiro, o que se seguiufoi uma política agrária que, comparada aomomento anterior, teve pífias mudanças sig-nificativas, o que acabou frustrando os inte-grantes do Movimento.

Assim, em um cenário agravado por umpassado que nunca deixou de existir – eque, portanto, ainda rosna – o de quase totaldescaso para com os diretos dos cidadãos7 –,o MST tenta superar velhos hábitos e formasde tratamento para com os pequenos agricul-tores rurais. Neste sentido, sua batalha delutas e as constantes pressões sobre o poderfazem-se presentes.

O MST possui marcações simbólicas eidentitárias como “a bandeira8, o hino, as

proprietários rurais perderam suas terras para os ban-cos” (2001, p. 112).

7 Segundo Behring e Boschetti (2006, p.79), “sea política social tem relação com a luta de classes, econsiderando que o trabalho no Brasil, apesar de im-portantes momentos de radicalização, esteve atraves-sado pelas marcas do escravismo, pela informalidadee pela fragmentação/cooptação, e que as classes dom-inantes nunca tiveram compromissos democráticos eredistributivos, tem-se um cenário complexo para aslutas em defesa dos direitos de cidadania, que en-volvem a constituição da política social”.

8 Segundo dados do site do MST, na bandeira doMovimento, a “cor vermelha: representa o sangueque corre em nossas veias e a disposição de lutar pelaReforma Agrária e pela transformação da sociedade;cor branca: representa a paz pela qual lutamos eque somente será conquistada quando houver justiçasocial para todos; cor verde: representa a esperançade vitória a cada latifúndio que conquistamos; corpreta: representa o nosso luto e a nossa homenagem atodos os trabalhadores e trabalhadoras que tombaram,lutando pela nova sociedade; mapa do Brasil: repre-senta que o MST está organizado nacionalmente e quea luta pela Reforma Agrária deve chegar a todo o país;

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palavras de ordem, as ferramentas de tra-balho (...) [e o] uso do boné (...)” (STÉDILEe FERNANDES, 2001, p.132). Entretanto, aprincipal marca dos sem terra é criada a par-tir de uma ausência, a de não possuir terra.O Movimento batalha pelo direito à terra,ao trabalho e à sobrevivência. Sem isso, oagricultor perde a sua dignidade.

Tais elementos promovem “laços ima-ginários” (SILVA, 2000, p.85) entre os inte-grantes do MST ao mesmo tempo que de-finem “quem é excluído e quem é incluído”(WOODWARD, 2000, p.10). Nessa cami-nhada, portanto, o Movimento luta pelo di-reito de ser diferente num cenário globa-lizante.

Uma identidade é construída a partir derelações. Ela existe somente se há outraidentidade – diferente – para se contrapor.Só se faz afirmações identitárias quando adiferença existe. Portanto, nota-se que aidentidade é uma negação a outras identi-dades, ou seja, às diferenças. Porém, aomesmo tempo que uma identidade buscaopor-se à outra, também reivindica aquelaidentidade verdadeira e autêntica. Essa lutapela diferença “torna-se, assim, um fator im-portante de mobilização política” (WOOD-WARD, 2000, p.34).

Mas como ficariam as identidades cul-turais dos grupos marginalizados em tempode globalização? Hall (2002) propõe trêspossíveis conseqüências: (1) as identidadesestariam se desintegrando em conseqüênciada homogeneização global; (2) as identi-

trabalhador e trabalhadora: representa a necessidadeda luta ser feita por mulheres e homens, pelas famíliasinteiras; facão: representa as nossas ferramentas detrabalho, de luta e de resistência”. Disponível em<www.mst.org.br/historico/bandeira.html> Acessoem: 15 agosto de 2010.

dades nacionais e outras identidades locaisestariam sendo reforçadas por resistir à glo-balização; (3) identidades híbridas estariamtomando lugar das identidades nacionais.

Segundo Bauman, nessa época de mo-dernidade fluida, manter uma mesma iden-tidade por muito tempo ou por toda a vida,é arriscado. “As identidades são para usar eexibir, não para armazenar e manter” (2005,p. 96). Somos diariamente seduzidos e/ouforçados a assumir outras identidades, e paraassegurarmos alguma pré-existente, é pre-ciso entrar no jogo e moldá-la.

É de senso comum o fato de o MST ser ummovimento posto à margem da sociedade.O que não se reflete, entretanto, é que essaposição “à margem” pode ser a única saídapara uma demarcação das diferenças. Ossem terra se opõem ao modelo político vi-gente e à “elite rural” – fatores primordiaispara a existência da identidade cultural doMST; são a diferença do movimento.

O sem terra não luta apenas para possuirterra, mas contra a desigualdade, a políticaneoliberal, a exclusão etc. Essas mobiliza-ções caracterizam a política de identidade doMovimento. É mediante esses fatores que aspessoas exercem identificação e fazem partedo grupo.

Dentre as três conseqüências do efeitoda globalização sobre as identidades, cu-nhados por Hall (2002), o MST parece seenquadrar naqueles grupos que teriam iden-tidades reforçadas devido à repulsão ao fenô-meno globalizante, porém esse quadro sofrealteração. Atualmente, o Movimento jápassa a se hibridizar e a tencionar-se com oramo do agronegócio, cujos desenvolvedoresdessa atividade representam uma diferençados sem-terra.

Não se pode mais afirmar com convicção

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que o MST possui uma identidade culturalunificada. Assim como as identidades na-cionais, é lícito supor o fato de o Movimentoacompanhar a corrente das identidades pós-modernas, fluidas e fragmentadas. A glo-balização não fortalece mais os sem terra. Odescontentamento com a política do governoatual, originalmente apoiado pelo MST, sótende a mostrar a impossibilidade de se oporcom tamanha veemência à modernidade tar-dia. A tendência é exercer uma constantenegociação com as diferenças. E se essasdiferenças são fluidas e mutantes, é impres-cindível acompanhar a correnteza e adaptaras identidades a fim de assegurar os obje-tivos e os direitos do movimento social edefender-se das identidades impostas. Noentanto, a luta do MST contra esse cenárioassimétrico é, muitas vezes, ou silenciada,ou tratada de forma nem sempre adequadapela mídia, nosso próximo tópico.

4 A mídia como palco dedisputas

Definitivamente, hoje, os meios de comuni-cação consistem nos principais agentes demediação da sociedade em tempos de glo-balização. Através de textos e imagens, acultura midiática corrobora, assim, para umfortalecimento dos laços sociais ao mesmotempo que fornece elementos de homo-geneização de discursos e identidades.

Nesse sentido, a mídia constrói mitos e es-tereótipos, sugere regras, modas e hábitos.Por trás deste véu sedutor, busca audiência e,conseqüentemente, lucros cada vez maiores.Para isso, lança mão de uma mistura de ele-

mentos oficiais com outros artifícios nemsempre palatáveis como, por exemplo, o faitdivers9.

Fomentando uma memória curta eefêmera, o fait divers reflete algumas daspremissas da era globalizante: as infor-mações devem ser líquidas e, ao mesmotempo, atingir o emocional das pessoas.Assim, as relações desta categoria criadapor Roland Barthes (1971) são consti-tuídas pelo excepcional, pelo grotesco,que valorizam o espetacular e podem serreduzidas em dois tipos básicos: causalidadee coincidência. Ambos apresentam sub-tipologias respectivas, direcionadas para acompreensão da excepcionalidade, condiçãodo estabelecimento da noção de conflito.

O fait Divers de Causalidade revela doistipos: a causa perturbada, quando se desco-nhece, ou não é possível precisar a causa, e,ainda, quando uma pequena causa provocaum grande efeito; e a causa esperada, emque, quando a causa é normal, a ênfasedesloca-se para a “dramatis personae” (per-sonagens dramáticos), como, por exemplo,crianças, mães e idosos (Barthes, 1971, p.267-271).

Na causa perturbada, ocorrem fatos ex-cepcionais, espantosos, que implicam per-turbação, conflito. Há um efeito (o con-flito surge daí). No entanto, a causa é des-conhecida, imprecisa, ou, até mesmo, iló-gica, sem sentido. Não obstante, uma pe-quena causa pode provocar um grande efeito.Há uma riqueza de desvios causais. De-

9 Informação sensacionalista. Os “casos do dia”ou “fatos diversos” refletem o capitalismo contem-porâneo que, através dos seus significados e métodos,fornece elementos que tendem a relegar os indivíduosà passividade e à manipulação ao mesmo tempo queobscurece a natureza e os efeitos do poder vigente.

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vido a certos estereótipos, esperamos umacausa e surge outra, mais pobre do que a es-perada. Neste gênero de relação causal, háo espetáculo de uma decepção; paradoxal-mente, quanto mais escondida, mais notadaserá essa causalidade.

Barthes (1971, p.271-274) divide o faitDivers de coincidência em dois tipos: derepetição – quando a informação repetidaleva a imaginar causas desconhecidas, queocorrem em circunstâncias diferentes – ede antítese, quando se aproximam dois ter-mos qualitativamente distantes. A antíteseune dois termos opostos, como se nuncativessem sido, estabelecendo a noção deconflito, disponibilizando a emocionalidade.Em cada termo, pertencendo a um percursoautônomo de significação, a relação de coin-cidência apresenta, como função paradoxal,fundir dois percursos diferentes em um per-curso único.

Passando à frente de instituições como,por exemplo, a família, a escola e a igreja,os meios de comunicação adquirem carátercentralizador na atualidade. Nesta reali-dade, atuam em compasso com as forçashegemônicas da sociedade. Considerandoisso, percebemos que a ideología10 transmi-tida pela mídia nesse caso “é [geralmente]a do branco masculino, ocidental, de classemédia ou superior; são as posições que vêemraças, classes, grupos e sexos diferentes dosseus como secundários, derivativos, inferi-ores e subservientes”. Desta forma, a mídiase constitui em um aparelho responsável pelapromoção simbólica de uma nítida separação

10 Inerente a essa discussão, Thompson (1995) fazmenção ao conceito de ideologia, articulando-o às for-mas como o sentido (significado) serve para estabele-cer e sustentar relações (assimétricas) de poder emcontextos específicos.

entre atores “dominantes/dominados e su-periores/inferiores, produzindo hierarquias eclassificações que servem aos interesses dasforças e das elites do poder” (KELLNER,2001, p.83).

Levando em conta esse cenário, percebe-mos que a mídia consiste em uma espéciede palco por onde desfilam as mais diver-sas forças da sociedade. Neste sentido, osmeios de comunicação reproduzem os em-bates entre os setores hegemônicos e contra-hegemônicos11 – ou de resistência. A partirdisso, procurando estabelecer e verificar asligações entre os atores envolvidos no camposocial, Kellner se utiliza da articulação12.Este conceito traduz, portanto, um ponto im-portante, ligado ao estudo do processo de or-ganização e produção do discurso dos meiosde comunicação em um determinado con-texto. Somente assim, através de um minu-cioso exercício de reconstrução histórica dosfatores em jogo, será possível refletirmos, in-terpretarmos e explicarmos criticamente asquestões relativas à cultura da mídia, seus

11 Fica clara, aqui, a influência da teoria grams-ciana da hegemonia, que prega ser a cultura um autên-tico campo de lutas entre diferentes forças. Esta abor-dagem pressupõe dominação e resistência dos sujeitossociais em um mesmo sistema. Segundo Souza (1995,p.26), “a teoria da hegemonia não elimina a priori-dade da análise dos conflitos sociais e psicossociais,mas destaca os interlocutores do processo de negoci-ação política no interior das classes sociais, identificaos espaços dessa negociação e, dessa forma, atualiza aanálise das modernas interações entre infra-estruturaeconômica e superestrutura política, redirecionando arelação entre ideologia e cultura”.

12 O pensar crítico resulta em investigar a culturamoderna considerando os aspectos históricos, “suasestruturas constitutivas e principais formas de con-duta, sublinhando criticamente as conexões entre re-lações de poder e discursos com pretensão de ver-dade” (RÜDIGER, 2001, p.13).

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desenvolvimentos e relações com o todo so-cial.

Sabemos que toda e qualquer produçãomidiática pressupõe articulações de cunhointerno e externo. Assim, reconhecemos asvisões de mundo da empresa de comuni-cação e do produtor de informação, ambasbaseadas em contextos particulares. Respei-tando determinadas regras e aspectos técni-cos, consideramos, também, que um textoé constituído dentro de um gênero. Alémdisso, as relações externas dos produtoresde informação e das empresas em que tra-balham, em maior ou menor grau, tambéminterferem no produto final – a informação.Tudo isso consiste em um processo com-plexo. Desta forma, percebemos a importân-cia dispensada à mediação e à contextualiza-ção dos fatos em uma atividade de investi-gação crítica, histórica e dialética. Este tipode análise facilita o entendimento dos desdo-bramentos, pois esse método tenta descobriros “comos” e os “porquês” de uma produçãoinformativa e não somente o “o quê” (sensocomum).

Baseado nessas premissas, Kellner (2001)contempla em suas investigações os mais di-versos textos midiáticos com o objetivo deelucidar tendências dominantes e de resistên-cia, vislumbrar perspectivas históricas e tam-bém analisar a forma como os meios de co-municação agem com vistas a influenciar aidentidade dos indivíduos.

Para Kellner (2001), uma leitura críticados meios de comunicação também deve sedar de forma política. Reflete o cenáriode práticas e discursos da sociedade. Con-seqüentemente, torna-se, também, impres-cindível e ao mesmo tempo enriquecedor in-vestigar, de maneira interdisciplinar, os sen-tidos que a cultura da mídia fabrica e, ainda,

quais os movimentos contra-hegemônicosque podem ser originados a partir dessas pro-duções.

Considerando a realidade exposta ante-riormente, ao estudar os textos midiáticossob o prisma das relações entre ideologias,movimentos sociais e o contexto que osenvolvem, inspirado pelo sociólogo RobertWuthnow, Kellner (2001) lança mão de trêscategorias, a saber: horizonte social, campodiscursivo e ação figural.

O horizonte social diz respeito às múlti-plas relações, às práticas e experiências quese desenvolvem dentro do campo social, eque acabam, desta forma, por contextualizaro local, a época e o cenário em que se dáa produção da cultura da mídia. O campodiscursivo contempla todos os elementos(atores hegemônicos e contra-hegemônicos,dominantes e dominados, superiores e infe-riores) envolvidos no discurso da mídia. Jáa ação figural implica mostrar os desdobra-mentos sociais de acordo com o horizontesocial.

Tendo em vista o cenário apresentado atéaqui, nos estudos da cultura da mídia pro-postos por Kellner (2001), em uma deter-minada circunstância social e histórica, sãoanalisados o modo de produção da culturamidiática, a mensagem, que é distribuídaatravés de um canal, a recepção13 dessa pe-los públicos – também dentro de um con-texto específico – e os efeitos do texto nessepúblico.

Portanto, com base nos pressupostosteórico-metodológicos de Kellner (2001),devemos contextualizar a época, o cenárioem que se dão as relações, as práticas e as ex-

13 Para fins de esclarecimento, a recepção não serátrabalhada neste artigo.

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periências sociais. Além disso, é necessárioidentificarmos os atores hegemônicos econtra-hegemônicos envolvidos. Somenteassim, com base nessa contextualizaçãosócio-histórica, poderemos compreender osdesdobramentos, ou seja, as razões quelevam a mídia a produzir, em geral, do jeitoque produz.

5 Análises

Em um cenário globalizante em que a qua-lidade da informação é, muitas vezes, inver-samente proporcional ao índice de audiên-cia, o racional acaba sendo superado comcerta freqüência pelo espetáculo, pelo con-flito e a fantasia das imagens. Através damídia, vislumbramos, atualmente, uma rea-lidade na qual o discurso noticioso é substi-tuído por um tipo de “discurso publicitário”,ou seja, homogeneizador de identidades14,estereotipado e mercadológico, a-histórico esem aprofundamento. Por estes motivos édesprovido de reflexão15.

Ocorre, portanto, a primazia do “o quê”sobre o “como” e o “por quê”, o que traduzum discurso “carente”, superficial e, muitasvezes, “unilateral”, que fere a ética jornalís-tica, pois não contempla todos os lados en-

14 Para Hall (2000, p.109), “é precisamente porqueas identidades são construídas dentro e não fora dodiscurso que nós precisamos compreendê-las comoproduzidas em locais históricos e institucionais es-pecíficos, no interior de formações e práticas discur-sivas específicas, por estratégias e iniciativas específi-cas”.

15 Este tópico remete à uma frase de Habermas,quando este aborda a questão do declínio da esferapública burguesa afirmando que “o jornalismo críticoé suprimido pelo manipulativo” (1984, p.210).

volvidos em uma determinada questão. Re-forçando este argumento, em pesquisa ante-rior (CRUZ, 2006), observamos que o pro-cesso de enfraquecimento de um movimentosocial como o MST, um dos focos do nossotrabalho, é legitimado pela constatação daausência desses “comos” e “porquês” em de-terminados momentos da cobertura da mídia.Neste sentido, Kellner (2001, p.149) salientaque “se deve prestar atenção ao que fica forados textos ideológicos, pois freqüentementesão as exclusões e os silêncios que revelam oprojeto ideológico do texto”.

Nesse contexto de obscurecimento dosverdadeiros objetivos das estratégias políti-cas do MST na luta pela garantia dos DireitosHumanos, a mídia contribui para uma per-cepção inadequada do próprio Movimento ede sua identidade enquanto ator que militanuma perspectiva contra-hegemônica em fa-vor de novos espaços e tramas sociais ca-pazes de gerar maior dignidade para os ex-cluídos. Para além disso, numa orientaçãocriminalizadora e estigmatizante, associa osSem Terra ao crime, ao terrorismo, consti-tuindo uma sensibilidade social deturpada e,em conseqüência, negativa.

A descontextualização dos fenômenos es-tabelece, assim, a noção do inexplicável esem sentido no imaginário social. Nesta di-reção, Lage (1998, p.308) sustenta a hipótesede que “fatos que contrariam versões domi-nantes, de interesse do sistema de poder, po-dem ser desqualificados como fenômenos i-nexplicáveis (...)”. Esta prática de excluir ascausas de determinada ação implica a utiliza-ção do fait divers de causalidade através dosubtipo da causa perturbada.

Também, aqui, percebemos, no que se re-fere às abordagens da mídia tradicional emquestões que envolvem as práticas políticas

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do MST, bem clara a materialização do faitdivers na produção da informação, em es-pecial a partir do ocultamento das razõeshistóricas que legitimam as estratégias porvezes mais incisivas do Movimento. Ocu-pações de propriedades rurais improdutivase de prédios públicos, tratadas como fenô-menos desconectados da história do latifún-dio no Brasil e da relação incestuosa do Es-tado com as elites agrárias do País, são vei-culadas como práticas ilícitas penais, vio-lação do “sagrado” direito de propriedadeprivada, ao invés de compreendidos comopráxis de um movimento social emergente naluta por Direitos Humanos.

Vivenciamos, então, a cultura do efêmero,o triunfo do descartável. São veiculadasinformações superficiais, com carência desubstancialidade nos noticiários televisivos,por exemplo. Nas “notícias” de variedadese nos talk shows, contemplamos o apogeudas fofocas e demais atrocidades do mesmoquilate. Nos programas de cunho inves-tigativo, que buscam única e exclusivamentea audiência sob o véu falacioso da justiça,do ajudar pessoas, assistimos à banaliza-ção da violência. É neste cenário, por-tanto, que os meios de comunicação fomen-tam o pensamento rápido e miserável, pobree acrítico. Além disso, pautas importantescomo a questão da terra e a luta pelos Di-reitos Humanos, entre outras, ocupam umespaço pífio na agenda midiática e, quandoocupam, são apresentados de forma distor-cida, como um “problema de polícia”, re-duzindo a complexidade do tema.

Lembrando Canela (2008), esse cenárioreflete um dos dilemas do jornalismo: de umlado, temos uma defesa dos profissionais es-pecializados nas tecnicidades do jornalismo.São os jornalistas que cobrem e divulgam

as notícias “corretamente”, porém não “vãoalém”. Não há uma adequada problemati-zação das questões conforme abordado an-teriormente. De outro lado, existiriam osprofissionais preparados para trabalhar con-teúdos específicos como, por exemplo, oscitados. No entanto, o momento midiáticode hoje nos mostra que não é tarefa fácil en-contrar um veículo de comunicação que pos-sibilite e/ou tenha condições de possibilitaressa possibilidade.

Existem pessoas que crêem que essa pro-posta de atentar para questões mais “desen-volvimentistas” casa melhor com outros pro-cessos comunicacionais como, por exemplo,os meios alternativos e a internet. Além domais, essa possibilidade correria o risco denão trazer um bom retorno financeiro às em-presas de comunicação, o que, diga-se depassagem, não estaria nos planos dos seusdonos.

Entretanto, a mídia tradicional é peça fun-damental para a “consolidação das demo-cracias (...) [e do] desenvolvimento de todasas nações adeptas, ao menos formalmente,deste regime” (CANELA, 2008, p.11). Se-gundo Canela (2008, p.11), os veículos decomunicação deveriam exercer três funções:1 – contribuir “para o agendamento dostemas prioritários para o desenvolvimentohumano” (e não trabalhar estas questõessomente quando algo de espetacular acon-tece16); 2 – adquirir um papel central no sen-

16 Conforme nos conta Bucci (2008, p.), o MSTapareceu na mídia quando do Massacre de Eldo-rado dos Carajás “não em função da identidade dosmortos”, mas por ter rendido imagens espetaculares.Ou seja: se a mídia defende determinadas forçashegemônicas da sociedade, e se os Sem Terra nãofazem parte deste mundo, não dialogam com estecenário – pelo menos não como os cidadãos de classe

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tido de colaborar para que os governos, ins-tituições privadas e a sociedade civil tam-bém sejam mais responsáveis pela “formu-lação, execução, monitoramento e avaliaçãodas políticas públicas” (2008, p.12); 3 –Informar, “de maneira contextualizada, oscidadãos e as cidadãs de tal forma que estespossam participar mais ativamente da vidapolítica, fiscalizando e cobrando a promoçãode todos os Direitos Humanos” (2008, p.12).Quanto mais esclarecidos estiverem os mem-bros da sociedade civil, mais condições terãode exercer os seus direitos de cidadãos.

Tal cenário fomenta uma discussão sobreo papel dos produtores da informação. Ima-ginemos o dia-a-dia de um profissional decomunicação encarregado de agendar notí-cias para o público receptor. Os chama-dos gatekeepers (filtradores de informações)selecionam o que será tornado de conheci-mento público e o que não será. Este agen-damento pode vir a influenciar a sociedadecomo um todo, ainda que com dinâmicas dis-tintas.

Pensemos, agora, no contexto particularde um profissional da comunicação. Estepossui uma determinada visão de mundo, oque lhe confere um olhar particular sobre ascoisas. Este lugar de fala é tensionado coma visão de mundo da empresa na qual ele– o comunicador – trabalha. Neste sentido,temos que levar em conta inúmeros fatoresque estão presentes na hora de produzir umainformação, a saber: o grau de afinidade daempresa com os atores envolvidos na notí-cia e as pressões internas – dos superioresdentro da própria empresa em que o profis-

média e alta - o logo eles não serão privilegiados pelamídia. Se são é porque algo espetacular – do qual sãoprotagonistas – acontece, pois isso gera audiência. E,se gera audiência, gera lucro.

sional atua – e externas – do poder e de-mais atores hegemônicos da sociedade, dospatrocinadores etc.

No atual estágio da globalização, a mí-dia respira sob a égide do consumo. As-sim, com o objetivo de manter o statusquo, o que, é claro, reforça a ideologia dasforças hegemônicas, os meios de comuni-cação acabam lançando mão de várias for-mas de “violência midiática”, as quais acar-retam um pensar em perfeita sintonia com osinteresses particulares dos veículos de comu-nicação.

Importante referir nesse aspecto que, nocontexto atual, de globalização orientadapelo discurso neoliberal, em que a mídiaserve aos interesses dos poderes que detémas rédeas da economia transnacional, Direi-tos Humanos, seus militantes e movimentossociais tornam-se obstáculos.

Assim, não são raras as vezes, por e-xemplo, que esses produtores de informaçãojornalística divulgam determinado fato, mas,no entanto, direcionam o enfoque da notí-cia segundo objetivos particulares. Lem-brando Lage (1998), essas versões da mídiapermitem construir cenários convenientes àesta mídia e aos seus protegidos. Quandoesta ação ocorre, estabelecem a ideologiadas classes dominantes através do poder sim-bólico.

Uma vez agendada uma pauta importantecomo o MST e a questão dos Direitos Hu-manos, esta deverá ser fiscalizada pela mí-dia. Entretanto, percebemos que inexiste umacompanhamento com relação, por exemplo,à questão dos assentamentos e do tratamentodispensado pelos governos. Segundo Bucci(2008, p.),

um dos indicadores mais comu-

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mente adotados para a verificaçãodo cumprimento da responsabi-lidade social do jornalismo temsido a cobertura dos movimen-tos sociais, entendidos como aque-les movimentos organizados cu-jos protagonistas pertencem às ca-madas mais pobres do país.

Nesse sentido, ter responsabilidade socialno jornalismo não significa engajar-se nosmovimentos sociais levantando a bandeirade suas causas e fazendo um trabalho pan-fletário. Tampouco significa manter-se aolado das forças hegemônicas da sociedade.Significa trânsito e condutas livres. Livresde qualquer força (agente/ator) social. Con-dutas livres e objetivas, pois o que está emjogo é o serviço prestado ao cidadão.

No entanto, nessa realidade, para atenderaos interesses das forças hegemônicas da so-ciedade, os profissionais da mídia utilizaminúmeras técnicas de manipulação da infor-mação. Entre estas, observamos, também, ouso do fait divers de coincidência, atravésdo subtipo antítese, quando, por exemplo,um integrante do MST é ligado à baderna,à contravenção etc. Ou seja, ficamos diantede percursos diferentes que, em um determi-nado contexto, acabam sendo fundidos.

Todo esse cenário colabora para o triunfodo superficial, do condensado e do acrítico.Ao trabalhar com elementos simplificadorespara cobrir questões complexas, ao escolhero fait divers para permear as informações, aolançar mão da banalização de assuntos cru-ciais e, portanto, sérios, ao optar pelo “in-fotenimento”17, o veículo de comunicação

17 Consiste em uma espécie de fusão da informaçãocom o entretenimento.

desinforma, porém ganha audiência18; desin-forma, porém atende aos interesses seus edaqueles que protege.

Desinformar, portanto, parece ser, hoje,uma das grandes tendências da mídia tradi-cional. Como vimos antes, a partir de umdeslocamento ideológico de agendamento dequestões como o MST e os Direitos Hu-manos, ela presta um desserviço à sociedade.E por quê os veículos de comunicaçãocontemplam da maneira como contemplamesses temas? Além das hipóteses aventadasanteriormente, Salomon (2008, p.89) refereque isso acontece porque “há uma preferên-cia pelas notícias que apresentam mudançasdramáticas ou números sensacionais”.

Canellas (2008, p.105) coloca que, infe-lizmente, a questão social não é agendadapela imprensa uma vez que o cenário atualé uma mera oportunidade de negócios paragrupos cada vez menores. Assim, desa-parecem noções universais de solidariedadee de bem comum e aparece o argumentocínico que “lamenta as desigualdades ape-nas para aceitá-las como contrapeso da mo-dernidade”.

Embora muitas pautas da agenda social játenham perdido o ineditismo, isso não retirao “vigor informativo” (CANELLAS, 2008,p.113) das mesmas. Até porque, se for-mos levar este fator em conta, o que assis-timos atualmente não tem nada de inédito.É o mais do mesmo. Somente mudam osatores envolvidos. Portanto, tudo dependeráda maneira como os fatos são tratados pelorepórter. E isso significa atentar, entre ou-

18 Para Bucci (2008, p.), o jornalismo “precisa en-contrar a notícia de interesse público onde não há aaparência ou promessa de espetáculo”.

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tros aspectos, para as questões que estamosdebatendo neste artigo.

Por outro lado, percebemos que quandoa mídia cobre essas pautas, geralmente,as faz simplificando a realidade, portanto,desprovidas de elementos suficientes paraestimular o senso crítico dos receptores.Quando abordamos esse ponto, queremosdizer que, entre outros fatores, a mídia devedar voz e vez a todas as partes envolvidasem uma questão. Até mesmo para que a so-ciedade possa compreender o que realmenteestá em jogo. Conforme Salomon (2008,p.86), “a regra é desconfiar sempre. A re-portagem será mais honesta e rica quantomaior for a quantidade de pontos de vistalevados em consideração”. Quando isso nãoacontece, a sociedade fica impossibilitada deavaliar corretamente uma informação.

Para Almeida (2008, p.254-255), aumen-taram as coberturas midiáticas sobre DireitosHumanos no Brasil. Entretanto, este avanço“não significa estágio ideal”. Neste sen-tido, a autora avista alguns problemas: “li-mitações do processo de produção e trans-missão de notícias” (diz respeito às já faladaspressões dos mais variados tipos – internos eexternos –, sem contar a questão da rapidezna transmissão de informações), “a inexpe-riência” (muitas vezes, também, um profis-sional que tem maior afinidade com outraárea acaba escrevendo sobre Direitos Hu-manos), “a história de vida do profissional”(além de estar atrelado aos ditames da suaempresa e do seu editor, o profissional estaráligado – e isso é inerente – ao seu contextosocial, ao seu lugar de fala) e, também, “ofato de a formação em Direitos Humanos serdeficiente no Brasil em todos os níveis edu-cacionais, da escola à universidade” (não se

discute isso com o devido aprofundamentoque o tema merece).

O direito do cidadão à sua existência dignae ao seu desenvolvimento pleno, questõescentrais quando a pauta são os Direitos Hu-manos, muitas vezes são ignoradas. ParaAlmeida (2008, p.260), além disso, constata-se, também, uma “falta de profundidade nasabordagens” midiáticas sobre o tema.

De acordo com Bucci (2008, p.46), “semo livre fluxo de informações e opiniões, oregime democrático não funciona, a roda nãogira”. Assim, para melhor cumprir seu pa-pel de levar informação ao cidadão, a im-prensa precisa fiscalizar – e não proteger – opoder. Fiscalizar no sentido de vigiar. Mas,segundo o autor, “é assim que, na culturapolítica média do nosso subcontinente, o quetinha de ser óbvio é o oculto. Ou o ocultado”(BUCCI, 2008, p.47).

Mediante abordagens fragmentadas, mar-cadas por silenciamentos e por recortes con-servadores, a mídia encobre o papel impor-tante do MST na sua relação com os DireitosHumanos (fonte geradora e legitimadora) ecria uma imagem do próprio movimento en-quanto instância social que atenta contra osDireitos Humanos. Desde uma orientaçãoliberal individualista, a mídia tradicional tra-balha a imagem dos Sem Terra afastada dasua real identidade, de novo movimento so-cial que afirma sua diferença em relação àsconcepções tradicionais de um mundo coisi-ficado, que mercantiliza a vida e as relaçõesem todas as suas dimensões.

Conforme vimos ao longo deste artigo,ao servir de palco para os embates da atua-lidade, a mídia posiciona-se, portanto, deforma inerente ao poder. Sendo o centrodos acontecimentos do mundo contemporâ-neo, age como um autêntica promotora da

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ideologia das chamadas classes mais favore-cidas da sociedade, as forças hegemônicas.

Tal observação provoca outra reflexão: acultura da mídia pode se dar de duas formas:estimulando a dominação social lançandomão, por vezes, de técnicas que visam a ba-nalização de certos temas e setores da so-ciedade, enfraquecendo-os, ao mesmo tempoque pode incentivar a resistência e a luta con-tra as classes dominantes ao utilizar uma lin-guagem mais isenta, menos comprometidacom o poder.

A cultura da mídia pode consti-tuir um entrave para a democra-cia quando reproduz discursos rea-cionários, promovendo o racismo,o preconceito de sexo, idade,classe e outros, mas também podepropiciar o avanço dos interessesdos grupos oprimidos quando a-taca coisas como as formas desegregação racial ou sexual, ouquando, pelo menos, as enfraquececom representações mais positivasde raça e sexo (KELLNER, 2001,p.13).

Ora conservadora, ora progressista, a mí-dia consiste, assim, em um amontoado decontradições.

6 Considerações finais

Em um contexto globalizante e também cer-cado de interesses, a mídia tradicional pro-duz informação. Neste sentido, como cons-tatamos ao longo deste artigo, os veículos de

comunicação adotam inúmeras técnicas dis-cursivas. Entre estas, o fait divers se faz pre-sente seja para descaracterizar um determi-nado objeto de análise ou para confundir oreceptor ou, ainda, privá-lo de dados maisconsistentes sobre uma determinada questão.

A partir do momento em que a mídia tradi-cional lança mão desses artifícios, ela obs-taculiza a luta do MST no vínculo com aquestão dos Direitos Humanos e, concomi-tantemente, defende/reforça a ideologia dasforças hegemônicas da sociedade. Assim,ligados ao poder, os veículos de comuni-cação não produzem um discurso isento eaté quem sabe progressista. Neste sentido,a questão se impõe: seria esse o verdadeiropapel da mídia?

Acreditamos que a mídia deve dar voz evez às minorias. Deve dar voz a grupos so-ciais que lutam por uma vida mais digna.Que lutam pela sobrevivência. Que lutampela justiça. Que lutam pelo direito de seremdiferentes. Que lutam pelo direito a ter di-reitos.

Os veículos de comunicação necessitaminformar sem discriminar e, também, sem ig-norar a discussão de fundo relativa aos Di-reitos Humanos, a de que todo e qualquercidadão tem direito à sua existência e ao seudesenvolvimento e a utilizar as mais variadasestratégias com a finalidade de alcançar osbens que asseguram a dignidade. E ao fazerisso, a mídia deve ser profunda, deve pro-blematizar à exaustão a temática. Não hámais espaço para o superficial. Não há maisespaço para a banalização de questões sérias.Não há mais espaço para a simplificação deassuntos complexos.

Em verdade cumpre referir, de imediato,que a questão da complexidade ou da sim-plificação da realidade não se esgota na pro-

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dução da informação, tal redução explodeno mundo concreto onde vivem as pessoase seus dramas. O mundo é complexo, aleitura da mídia é que se faz simplificadorada mesma forma que as respostas encon-tradas na construção midiática para os pro-blemas da sociedade. Tal processo, portanto,insere no mundo respostas inadequadas inca-pazes de efetivamente dar conta das deman-das sociais, mormente, aquelas que tratamosaqui, as quais se referem à garantia dos bensque satisfazem as necessidade humanas.

Mas como essa realidade pode ser trans-formada? Ou melhor: esta realidade podeser transformada? Claro que sim. No en-tanto, a tarefa não é das mais fáceis. Paramuitos, talvez o que será colocado aqui soecomo uma utopia. Por outro lado, acredita-mos que vale a pena o esforço.

Em primeiro lugar, temos que deixar claroque a situação pode ser alterada se houveresforço de dois lados: da mídia e do próprioreceptor. Sim, o receptor. Este também é umdos responsáveis – em maior ou menor grau– pela mídia ser mais conservadora e menosprogressista. É evidente que não estamoseximindo os veículos de comunicação dassuas responsabilidades. Apenas queremossustentar que o receptor detém um impor-tante papel nesse processo de transformaçãodas produções midiáticas sobre a questão dosDireitos Humanos.

Primeiramente, no atinente aos profissio-nais da comunicação, estes deveriam co-nhecer melhor a problemática que envolve osDireitos Humanos, bem como a sua relaçãoíntima com os movimentos sociais que arti-culam as tramas que lhes dão sentido e con-tribuem para sua garantia. Tal aspecto en-contra ligação umbilical com a necessidadede um novo perfil dos “donos” dos veícu-

los de comunicação que, ao invés de tratara informação como mercadoria, deveriamencará-la como mais um bem que se traduzindispensável para a realização do homem nasociedade democrática.

Talvez aqui resida um elemento que per-mita um câmbio significativo na compreen-são do papel da mídia, que envolve o re-conhecimento do direito à informação comosustentáculo, quem sabe, conditio sine quanon, para a realização dos próprios DireitosHumanos, na medida em que permite que aprópria sociedade a partir do entendimentodo mundo social na sua efetiva complexi-dade, torne-se sujeito transformador do sta-tus quo referente aos Direitos Humanos.

Indispensável frisar, resgatando o ante-riormente abordado, que a questão da lutapelos Direitos Humanos, não pode ser en-frentada como um problema relativo, ex-clusivamente, ao sistema judicial, estes têmcomo espaço de conquista, talvez mais im-portante, o conjunto de relações e interaçõessociais. Direitos Humanos não devem serpensados apenas como um conjunto de nor-mas de caráter nacional e internacional quese efetivam no espaço do litígio judicial, eminstâncias formais, mas, sim, e, principal-mente, algo que se concretiza no seio da so-ciedade a partir da rearticulação libertatóriados sujeitos sociais.

Outro aspecto, que também se conectacom o acima exposto, diz respeito aos recep-tores, ou seja, a própria sociedade e o con-trole democrático do papel dos veículos co-municacionais. Neste sentido, fica o ques-tionamento que talvez transcenda a propostaformulada e indique a necessidade de avançodo próprio trabalho apresentado: é possíveluma transformação da mídia no sentido deconstrução adequada do debate acerca do

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movimentos sociais, em especial o MST, en-quanto sujeito que contribui para a efetivaçãodas conquistas jurídicas da humanidade econstrução de novos paradigmas relativos àessa temática, numa sociedade “moderna eocidental” com uma sensibilidade diminuídano que tange à importância dos Direitos Hu-manos?

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