26
DIREITOS HUMANOS: UMA RESPOSTA À CRISE ECONÔMICA E FINANCEIRA

Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Neste quarto volume, trazemos uma leitura da crise a partir dos direitos humanos. Com esta nova publicação, desejamos avançar sobre a necessidade de (re)politizar os assuntos econômicos, a partir da participação e vigilância pública sobre as relações entre a economia e a política e buscando o aprofundamento da democracia brasileira – uma agenda a qual tem se revelado de suma importância para a sociedade civil.

Citation preview

Page 1: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

DIREITOS HUMANOS: UMA RESPOSTA À CRISE ECONÔMICA E FINANCEIRA

Page 2: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

DIREITOS HUMANOS: UMA RESPOSTA À CRISE ECONÔMICA E FINANCEIRA

UMA PUblICAçaO DO INSTITUTO bRASIlEIRO DE ANalISES SOCIAIS E ECONÔMICAS (IbASE)Rio de Janeiro, agosto de 2012

Page 3: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

2 Brazilian institute of social and economic analyses

AUTOR

Aldo Caliari Center of Concern – Washington DC

COORDENADORA

Maria Elena Rodriguez Ibase

EDIçaO E REVISaO

Mariana Werneck

ORgANIzAçaO

Mariana Werneck

TRADUçaO

Jones de Freitas

PROJETO gRaFICO E DIAgRAMAçaO

Guto Miranda

IMPRESSaO

3G Gráfica

Produzido pela iniciativa: Liberalização Financeira e Governança Global: o Papel das Entidades Internacionais, desenvolvida em parceria com especialistas e ativistas de 13 países. Coordenação de Fernando J. Cardim de Carvalho e de Jan Allen Kregel.

DIREITOS HUMANOS: UMA RESPOSTA À CRISE ECONÔMICA E FINANCEIRAUma publicação do Instituto Brasileiro de Análise Sociais e Econômicas (Ibase)

Esta publicação foi apoiada por The Ford Foundation

Distribuição dirigida. Pedidos de exemplares:IbaseAvenida Rio Branco, 124 / 8º andarCentro – CEP 20040-916Rio de Janeiro – RJTel.: 5521 2178-9400Fax: 5521 2178-9402E-mail: [email protected]: www.ibase.br

Page 4: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

3HUMAN RIGHTS: A ReSpoNSe To THe ecoNoMIc ANd fINANcIAl cRISIS

Page 5: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

4 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

APRESENTAçaORegulação financeira e direitos humanos não são temas comumente tra-balhados em conjunto. Enquanto percebemos os direitos humanos como uma luta política, travada por meio de articulações, mobilizações e dispu-tas acerca dos conceitos e das práticas políticas, a regulação financeira frequentemente é apresentada como uma questão técnica reservada aos especialistas. E, no entanto, é evidente o impacto das decisões e dos de-sequilíbrios econômicos na vida cotidiana e no bem-estar das populações.

Nesse quarto volume produzido pela iniciativa Liberalização finan-ceira e governança global: o papel das entidades internacionais, coorde-nada pelo Ibase com o apoio da Fundação Ford, trazemos uma leitura da crise a partir dos direitos humanos. Com esta nova publicação, dese-jamos avançar sobre a necessidade de (re)politizar os assuntos econômi-cos, a partir da participação e vigilância pública sobre as relações entre a economia e a política e buscando o aprofundamento da democracia brasileira – uma agenda a qual tem se revelado de suma importância para a sociedade civil. Mais do que nunca, a conjuntura propiciada pela atual crise financeira aponta para um legado desalentador – resultado de um modelo capitalista desigual, excludente e violento – mas também para uma oportunidade histórica – e a responsabilidade para uma gera-ção – de repensar o processo decisório na política econômica.

O enfoque aqui apresentado defende a implementação de políticas eco-nômicas acordadas com o regime dos direitos humanos, e, assim sendo, cada etapa de suas decisões deve estar submetida aos princípios do escrutí-nio público, da transparência e da prestação de contas. Todavia, também é reconhecido que uma mudança de tal estatura não será construída somente a partir da esfera estatal, como deve envolver uma reforma das estruturas da governança global capaz de reduzir o seu déficit democrático.

Gostaríamos ainda de agradecer a Aldo Caliari, parceiro dessa ini-ciativa e representante do Center of Concern, autor do texto que aqui se apresenta, e informamos que as publicações anteriores estão disponí-veis no site do Ibase (www.ibase.br). Desejamos a todos uma boa leitura.

Maria Elena RodriguezCoordenadora

Page 6: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

5Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

INTRODUçaOO que começou, no verão de 2007, como uma crise no setor de hipote-cas subprimeNT nos EUA tornou-se uma crise econômica de dimensões globais, que tem sido considerada a pior desde a Grande Depressão.

A magnitude da crise tem lançado uma nova luz sobre as consequ-ências do enfoque tradicional dado aos direitos humanos e à regulação financeira. De acordo com esse paradigma, os defensores dos direitos hu-manos são levados a crer que as questões de regulação financeira são in-teiramente técnicas e devem ser deixadas para os especialistas, enquanto as políticas e preocupações próprias dos direitos humanos ou devem ser tratadas de forma independente dos temas da regulação financeira ou devem simplesmente estar circunscritas pelo enfoque que os peritos fi-nanceiros decidam adotar. Entretanto, a crise tem revelado as deficiên-cias dessa abordagem e encorajado uma crítica da regulação financeira baseada nos direitos humanos. Embora haja muitas explicações sobre as origens da crise, há um amplo acordo sobre a importância de falhas cau-sadas por uma frouxa regulação e supervisão dos mercados financeiros, dos atores que neles operavam e dos instrumentos que utilizavam.1

NT Empréstimos concedidos a pessoas que não apresentam comprovação adequada de rendimentos.1 Para um levantamento detalhado das principais fontes oficiais (FMI, Banco de Compen-sações Internacionais, Fórum de Estabilidade Financeira), mostrando uma notável simila-ridade no entendimento das causas imediatas da crise financeira, ver Caliari (2009), “As-sessing Global Regulatory Impacts of the U.S. Subprime Mortgage Meltdown: International Banking Supervision and the Regulation of Credit Rating Agencies”, documento preparado para o simpósio sobre Mercados Financeiros e Riscos Sistêmicos: as repercussões globais do “derretimento” do mercado das hipotecas subprime nos EUA, organizado pelo Journal of Transnational Law and Contemporary Problems (Revista de Direito Transnacional e Proble-mas Contemporâneos) na Faculdade de Direito da Universidade de Iowa, juntamente com o Centro de Finanças e Desenvolvimento Internacional da Universidade de Iowa.

O qUE SaO OS DIREITOS HUMANOS?Direitos Humanos são comumente entendidos como direitos inerentes aos seres

humanos. O conceito de direitos humanos confere a cada ser humano a prerro-gativa de usufruir seus direitos sem qualquer distinção de raça, cor, sex, língua, religião, opinião política, nacionalidade, origem social e outros.

Page 7: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

6 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

Ao mesmo tempo, não é difícil encontrar argumentos em favor da noção de que o gozo dos direitos humanos será afetado pela crise de forma significativa e em toda parte. Por exemplo, a queda acentu-ada da demanda agregada global resultou em amplo desemprego e destruição de meios de subsistência. Depois de anos de declínio do desemprego, estarão desempregadas em 2009 cerca de 20 milhões de

Os direitos humanos são legalmente garantidos pela legislação de direitos hu-manos, a qual protege indivíduos e grupos contra ações que interfiram nas liber-dades individuais e na dignidade humana. Eles estão expressos em tratados, no direito consuetudinário internacional, conjuntos de princípios e outras fontes do direito. A legislação de direitos humanos impõe obrigações de conduta aos Estados, proibindo que os Estados se envolvam em certas atividades.

Contudo, o direito não estabelece os direitos humanos; estes são, sim, direitos inerentes que toda pessoa possui, como consequência direta de sua condição hu-mana. Tratados e outras fontes de direito geralmente servem para proteger formal-mente os direitos de indivíduos e grupos contra ações ou negligências por parte dos Estados que impeçam o gozo dos direitos humanos.

Algumas das principais características dos direitos humanos são:• Osdireitoshumanossãobaseadosnorespeitoàdignidadehumanaedignos

de todos;• Sãouniversais,aplicadosigualmenteesemquaisquerdiscriminações;• Sãoinalienáveis,e,portanto,ninguémpodeserprivadodeseusdireitos,

exceto em situações específicas – por exemplo, a restrição do direito àliberdade de uma pessoa que tenha sido julgada culpada de um crime por um tribunal;

• Sãoindivisíveis,inter-relacionadoseinterdependentes,nosentidodequeéinsuficiente respeitar somente alguns direitos, e não outros.

Na prática, a violação de um direito frequentemente afeta o cumprimento de ou-tros direitos. Todos os direitos humanos deveriam, portanto, ser reconhecidos como de igual importância.Fonte: OHCHR. Human Rights: a basic handbook for UN staff.

Page 8: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

7Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

2 OIT. “The Financial and Economic Crisis: A Decent Work Response”. Documento de Discussão, 2009 GB.304/ESP/2.3 ibid.4 Banco Mundial. “The Financial Crisis and Mandatory Pension Systems for Developing Countries”. Washington, DC: Banco Mundial.5 World Bank News, 12 de fevereiro de 2009.6 ver Relatório da ONU sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio, 2009:4-7).7 Banco Mundial. “Swimming Against the Tide: How Developing Countries Are Coping with the Global Crisis”. Washington, DC: Banco Mundial. 2009.

pessoas a mais do que em 2007, de acordo com as previsões da OIT.2 Cerca de 50 milhões de pessoas podem ficar sem emprego se a crise atingir a magnitude do desemprego dos anos 1990.3 Esses números gerais escondem os impactos maiores sobre as mulheres e seus filhos, as pessoas pobres, os grupos indígenas, as minorias étnicas e os tra-balhadores migrantes.

Juntamente com o aumento do desemprego, a proteção social – que em muitos países depende de se ter um emprego – está em declínio. Para aqueles que ainda têm emprego, mais desemprego significa maior pressão sobre seus salários e cobertura social. A seguridade social das pessoas idosas também está sendo afetada pela crise de forma significa-tiva, com fundos de pensões registrando perdas de cerca de 50% em al-guns casos.4 Nas últimas décadas, a diminuição dos sistemas de pensão financiados pelo poder público magnificou esses impactos. Por sua vez, as receitas públicas necessárias para prover cobertura social e pensões vêm caindo substancialmente, o que limita as opções governamentais.

Espera-se que o número de pessoas pobres em escala mundial au-mente em até 53 milhões.5 Mesmo esse número pode ser otimista, pois está baseado na definição de pobreza do Banco Mundial, que é am-plamente questionada, e provavelmente subestima o número real de pobres.6 A piora da situação nutricional e de saúde das crianças, que sofrem com a redução de consumo alimentar (ou com a deterioração de sua qualidade) pode ser irreversível, e estimativas sugerem que a crise alimentar já aumentou o número de pessoas desnutridas em 44 milhões.7

Page 9: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

8 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

Além disso, os efeitos da crise provavelmente levarão a um aumento da desigualdade. O hiato entre os domicílios mais ricos e mais pobres, que tem aumentado desde a década de 1990, aumentará ainda mais. A desigualdade de renda entre os 10% de assalariados que ganhavam mais e os 10% que recebiam menos aumentou em 70%, em amostra de países pesquisados de um relatório da OIT publicado em 2008.8

A DEFINIçaO DE PObREzA DO bANCO MUNDIAlA classificação arbitrária feita pelo Banco Mundial considera pobre a pessoa

quevivecomUS$2pordiaenapobrezaextremaaquelasquevivemcommenosdeUS$1 por dia. Esta classificação tem sidomuito criticadapor não captar arealidade da pobreza em diferentes países, com linhas de pobreza muito distintas, assim como as distintas cestas de produtos que as pessoas com essas rendas podem adquirir nos diferentes países. Em 2008, o Banco atualizou seus antiquados cálculos de paridade do poder de compra e, com base nisso, o número de pessoas que o Banco considera na pobreza extrema (agora os que vivem com menos de US$1,25/dia)foirevisadopara1,4bilhões,quase50%amaisdoqueaprevisãoanterior de um bilhão.

CRISE E DESIgUAlDADE DE RENDAA Grande Depressão de 1929 e a Grande Recessão de 2008, iniciadas nos EUA,

representam as duas maiores crises econômicas dos últimos 100 anos, e a desi-gualdade de renda pode ter tido um papel preponderante na origem de ambas. Tanto em 1929 quanto em 2007, momentos antes de as crises se anunciarem, a sociedade americana apresentava um forte crescimento na desigualdade de renda e um aumento pronunciado no coeficiente de dívida sobre renda das famílias.¹

8 OIT. World of Work Report 2008: Income Inequalities in the Age of Financial Globali-zation. Genebra: Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Page 10: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

9Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

Aparticipaçãonarendanacionaldos5%maisricoscresceude24%em1920para34%em1928;jáem1983,os5%maisricosdetinham22%darendanacio-nal,índicequeextrapoloupara34%em2007.²Emambososperíodos,oíndicededívidasobrearendadasfamíliastambémcresceudramaticamente:quasedobrouentre1920e1932etambémentre1983e2007,atingindonosegundoperíodoovalorde139%paraos95%restantesdapopulaçãoamericana.³

Noperíodomaisrecente(1983-2007),adiferençanoconsumodosmaisricosemrelaçãoaoconsumodascamadasmaispobresedaclassemédianãoseamplioutanto como as diferenças na renda dos dois grupos. O único modo de sustentar taxas deconsumotãoaltasfoipormeiodocrédito.Assim,osestratospobresemédiostêmresistidoàerosãodeseuspadrõesdevidaapartirdeempréstimos,enquantoosricosvêmacumulandomaisemaisativos,incluindoaquelesatreladosàconcessãodecré-dito para a maioria da população. O fato de a desigualdade no consumo ter crescido menos que a desigualdade na renda levou a mais desigualdade.

Porumlado,podeseafirmarquemaiordependênciadocréditoporpartedascategorias mais baixas – e o aumento da riqueza financeira por parte dos grupos mais abastados – levou a fortes demandas por intermediação financeira e tornou a economia mais vulnerável. Por outro, a crise despontada pela intermediação finan-ceira realizada sob a ideologia neoliberal, sem regulação financeira verdadeira e eficaz, pode ser lida como a manifestação última de uma dinâmica social perversa de longo prazo, a desigualdade de renda.

Sobapolíticadecrescimentoeconômicoprópriadaracionalidadeneoliberal,oincremento na qualidade de vida não foi promovido pelo exercício dos direitos, mas sedeuviamercado.Maisagravantefoiofatodeasconcessõesdecréditoteremsido realizadas em condições fraudulentas, ocultando a variação progressiva das taxas de juros em um texto legal longo e complicado. A crise, por sua vez, trouxe aindamaisefeitosnegativossobreosgrupospobresemédios.

¹KUMHOF,Michael.Incomeinequality,debtleverage,andeconomiccrisis.In:PUSCHRA,Werner;BURKE,Sara(eds.).Fixingfinanceisnotenough:thesocialconsequencesofmonetaryandfinancialpolicies.NovaYork:Friedrich-Ebert-Stiftung,2012,p.23.²Ibidem.³Ibidem.

Page 11: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

10 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

Caso os conflitos sociais e as expressões públicas de desespero e frustação sejam enfrentados, como já ocorreu em alguns países, com repressão violenta de forças governamentais, então os direitos civis e políticos também estarão ameaçados pela crise econômica. O aumento de sentimentos de xenofobia e de outras formas de discriminação, já observado em vários lugares, pode também prejudicar os direitos dos trabalhadores migrantes e de grupos minoritários, que são mais vulnerá-veis à discriminação.

Observando esses impactos e aceitando o consenso sobre as origens da crise, chega-se à conclusão que as escolhas feitas em relação à regula-ção financeira trazem consequências tangíveis para o gozo dos direitos. O oposto também é verdade: uma abordagem que busque defender padrões de direitos humanos sem tratar dos impactos das políticas financeiras e das opções regulatórias será lamentavelmente insuficiente e ineficaz.

No entanto, as evidências mostradas por esta crise não são diferen-tes das apresentadas por outras crises financeiras que atingiram perio-dicamente distintas partes do mundo no século passado, especialmente a crise no Leste Asiático no final dos anos 1990. Todas elas causaram privações e sofrimentos extremos aos cidadãos e cidadãs comuns, espe-cialmente aos mais vulneráveis e marginalizados, enquanto aqueles que lucravam com a especulação financeira não eram responsabilizados por seus atos. Por exemplo, nos últimos anos, vimos não somente a continu-ação da tendência à crescente desigualdade de renda, como também o aumento da riqueza controlada pelos “super-ricos”.9 Este fenômeno foi possível com estratégias de investimento agressivas – leia-se especulati-vas – facilitadas pelos fluxos de capital sem controle.10 Contudo, serão os grupos de baixa renda, e não aqueles que lucraram com o boom anterior à crise, que serão desproporcionalmente afetados pela recessão pós-crise.

9 De acordo com um estudo do Merrill Lynch e Capgemini (2007),“O número de pessoas com um milhão de dólares ou mais para investir cresceu 8%, atingindo 9,5 milhões no ano passado, e a riqueza que controlavam alcançou US$ 37,2 trilhões. Cerca de 35% estão em mãos de somente 95.000 pessoas com ativos de mais de US$ 30 milhões. Ver Thal Larsen, P. “Super-rich Widen Wealth Gap by Taking More Risks”. Financial Times, 28 de junho de 2007.10 Thal Larsen (op. cit.), ao citar um executivo do Merrill Lynch declarando que a diferença entre ricos e super-ricos refletia “uma disposição dos muito ricos para assumir maiores riscos”.

Page 12: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

11Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

Nesse sentido, a crise financeira também questiona a crença de que a riqueza ganha nos mercados terminaria beneficiando todos os demais. O economista Joseph Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel, afirmou re-centemente que os mercados financeiros – e o próprio crescimento do PIB como é atualmente medido – não são um fim em si mesmos, mas devem estar a serviço do bem-estar das pessoas. O que é bom para as finanças e para o crescimento do PIB não é necessariamente bom para o bem-estar econômico de todos. O colapso sistêmico requer um novo pa-pel para os governos nacionais na política econômica – tanto no campo doméstico quanto internacional.

UMA RESPOSTA bASEADA NOS DIREITOS HUMANOS – OS PRINCíPIOSUma resposta à recessão financeira e econômica que coloque em posi-ção central as normas dos direitos humanos não é somente necessária em termos de justiça, como também torna as reformas do sistema finan-ceiro e econômico mais sustentáveis e resilientes frente a crises futuras.

Formulá-la não pressupõe um certo tipo de sistema econômico. Con-tudo, ela certamente parte de um marco de referência claro e universal-mente reconhecido – um conjunto de normas fundadas nos instrumen-tos essenciais da legislação internacional sobre direitos humanos – para orientar o desenho e a implementação das políticas e programas econômi-cos que enfrentem a crise. Os direitos humanos não somente estabelecem limites à opressão e ao autoritarismo, como também impõem obrigações positivas aos Estados de defenderem direitos econômicos, sociais e cul-turais. Os Estados têm o dever de respeitar, proteger e implementar os direitos humanos em todas as épocas, especialmente em tempos de crise.

PACTO INTERNACIONAl DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CUlTURAISPARTE IIARTIGO 2º

1. Cada Estado Membro no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto poresforçoprópriocomopelaassistênciaecooperaçãointernacionais,princi-palmentenosplanoseconômicoetécnico,atéomáximodeseusrecursosdispo-

Page 13: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

12 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

níveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropria-dos, o, pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativa.

2. Os Estados Membros do presente pacto comprometem-se a garantir que os direi-tos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direi-tos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que me-didagarantirãoosdireitoseconômicosreconhecidosnopresentePactoàquelesque não sejam seus nacionais.

Os governos têm o dever de assegurar níveis essenciais mínimos de desfrute dos direitos sociais e econômicos como uma questão prioritária, e estão também sob a obrigação específica e contínua de avançar de forma expedita e efetiva, dentro do possível, na direção de sua plena im-plementação. As normas dos direitos humanos requerem que os governos não adotem medidas deliberadamente regressivas como, por exemplo, o corte de programas essenciais, a menos que isso esteja plenamente jus-tificado frente à totalidade dos direitos garantidos nos tratados essenciais sobre direitos humanos, e num contexto de uso pleno do máximo de re-cursos disponíveis. Mesmo diante de limitações nas receitas públicas, os Estados têm a obrigação de dispor do máximo de recursos disponíveis para assegurar que a implementação plena dos direitos econômicos e sociais ocorra a curto e longo prazo.

Além disso, o princípio de não discriminação exige que os governos assegurem que todas as medidas adotadas em resposta à crise evitem efeitos desproporcionais, e que medidas deliberadas e dirigidas sejam tomadas para assegurar uma substantiva igualdade de acesso aos serviços básicos em todo o país e por todos os grupos populacionais. As pessoas

Page 14: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

13Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

que vivem em situação de privação devem ser protegidas como uma prio-ridade, mesmo em épocas de severas limitações de recursos.

Embora as obrigações primárias dos Estados com os direitos huma-nos estejam dentro de suas jurisdições, eles também têm obrigação – no espírito da Carta da ONU e da legislação internacional – de contribuírem para a cooperação internacional no sentido da aplicação plena desses direitos. Ao atuarem em fóruns intergovernamentais, tais como a ONU, Banco Mundial e reuniões ad hoc do G-20, os Estados devem garan-tir que suas políticas sejam coerentes com os direitos humanos e que conduzam à sua aplicação. Neste sentido, aqueles Estados que desfru-taram de posições mais poderosas no processo de decisão das políticas econômica globais tiveram maior responsabilidade por causar, por ação ou omissão, esse desastroso colapso global. Isso significa que também têm mais responsabilidade pela mitigação de suas consequências pela tomada de medidas necessárias que assegurem um avanço justo e sus-tentável. De acordo com a legislação internacional, os governos devem também garantir que os padrões de direitos humanos tenham primazia sobre os compromissos comercias, de investimento ou financeiros.

O gRUPO DOS 20 – O g-20OGrupodos20ouG-20éformadoporEUA,ReinoUnido,França,Itália,Alema-

nha,Japão,Canadá,Rússia(antigosmembrosdoG-8),alémdeArgentina,Austrá-lia,Brasil,China,Índia,Indonésia,México,ArábiaSaudita,ÁfricadoSul,CoreiadoSuleTurquia,contandotambémcomumassentoparaaUniãoEuropeia.Enquantoas 19 maiores economias do mundo tem como seus representantes os respectivos ministrosdaFazendaepresidentesdosBancosCentrais,aUniãoEuropeiaérepre-sentada pela presidência rotativa do Conselho e pelo Banco Central Europeu.

Criadoem1999emdecorrênciadassucessivascrisesfinanceirasdadécadade 1990, o grupo dos 20 surgiu como “um novo mecanismo de diálogo informal nomarcodosistemainternacionaldeBrettonWoodsparaampliarodiálogosobrequestões-chave de política econômica e financeira entre as economias sistemica-mente significativas e para promover cooperação no sentido de alcançar um cres-cimento mundial e sustentável que beneficie a todos”.¹ Para garantir uma ligação

Page 15: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

14 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

efetivacomasinstituiçõesdeBrettonWoods,odirigente-gerentedoFundoMone-tárioInternacional(FMI)eopresidentedoBancoMundial,alémdospresidentesdoComitê Monetário Internacional e do Comitê de Desenvolvimento do FMI e do Banco Mundial participam das reuniões do G-20.

O G-20 ganhou importância a partir da crise de 2008, ano no qual foi realizada a primeira reunião de chefes de Estado ou de governo do grupo desde sua criação, ocorridaemWashington.JáemPittsburg,terceirareuniãodecúpuladogrupo,oG-20declarou-secomooprincipalfórumparaacooperaçãoeconômicainternacio-nal, eclipsando o G-8.

1 Disponível em: <http://www.g7.utoronto.ca/finance/fm992509state.htm> apud CARVALHO, FernandoCardimde;KREGEL,JanAllen.Crisefinanceiraedéficitdemocrático.RiodeJaneiro:Ibase,jan.2009,p.20.

Os princípios básicos de direitos humanos incluem a participação social, transparência, acesso à informação, proteção jurídica e presta-ção de contas. As pessoas precisam poder participar da vida pública e interagir de forma significativa com os processos decisórios que as afetem, para que tenham a possibilidade de contestá-los. Além disso, os Estados devem assegurar que ninguém esteja acima da lei. Os indi-víduos que tiveram seus direitos afetados devem ter acesso a recursos jurídicos eficazes para buscar medidas corretivas. Os responsáveis por danos, incluindo atores privados, devem ser responsabilizados judi-cialmente e atividade futuras que afetem os direitos humanos preci-sam ser evitadas.

REFORMA DOS PROCESSOS DECISóRIOS SObRE POlíTICA ECONÔMICAA crise que enfrentamos apresenta uma oportunidade histórica e é res-ponsabilidade dessa geração repensar o processo decisório na política econômica como ocorreu até o momento. Um enfoque baseado nos di-reitos humanos requer uma reforma das estruturas de governança para assegurar que todas as políticas econômicas, tanto domésticas quanto no plano internacional, sejam implementadas de acordo com o conteúdo legal do regime dos direitos humanos.

Com demasiada frequência, decisões oficiais sobre, por exemplo, a

Page 16: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

15Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

regulação dos fluxos do capital financeiro (ou a necessidade de eliminá--la) são tomadas por uns poucos “especialistas” e, em muitos casos, incluindo representantes das próprias indústrias privadas. Em essência, esse processo bloqueia a participação pública em discussões políticas e jurídicas fundamentais que afetam a todos, especialmente aqueles mais vulneráveis e marginalizados. Uma resposta política baseada nos direi-tos humanos transformaria esse processo, assegurando a participação em todos os níveis e submetendo as decisões ao escrutínio público, com transparência e accountability em cada etapa.

A prestação de contas e a participação na elaboração de politicas econômicas também são prejudicadas quando condições políticas intru-sivas são exigidas por instituições financeiras e doadores internacionais ou por regras de acordos comerciais e de investimentos. Os Estados de-vem ter o poder de assegurar que suas obrigações de direitos humanos tenham prioridade sobre seus compromissos econômicos ou sobre os direitos dos investidores.

Esses mesmos princípios de direitos humanos devem ser instilados no plano internacional, onde a cooperação na realização desses direitos é obrigação de todos os Estados, especialmente daqueles responsáveis por danos. Apesar das amplas consequências das medidas de políti-cas financeiras, os organismos intergovernamentais que estabelecem a agenda e desenham as reformas financeiras, como o Comitê de Basileia de Regulamentação e Supervisão Bancária, o Fórum de Estabilidade Fi-nanceira e o G-20, limitam a participação da maioria dos países. Por seu lado, o FMI e o Banco Mundial, no que diz respeito ao processo decisó-rio, continuam a ser regidos por princípios que reduzem os países em desenvolvimento a um papel marginal e limitam a transparência. Igual-mente importante é o fato de que outras organizações internacionais com mandato expresso para proteger os direitos humanos são excluídas da elaboração de políticas nesses fóruns.

A ONU, como guardiã do marco jurídico internacional, é o fórum mais adequado e legítimo para a discussão das reformas necessárias para reestruturar o sistema econômico e financeiro internacional com fundamento nos direitos humanos. Seu papel seria grandemente refor-çado pelo estabelecimento de um Conselho de Coordenação Econômica

Page 17: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

16 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

Global, como foi recomendado pela Comissão de Peritos da ONU.11 Um organismo como esse, operando sob o princípio de representação de se-tores interessados e no mesmo nível da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, poderia dar maior eficácia, representatividade e transpa-rência ao processo de elaboração de políticas econômicas na sua relação com as prioridades do desenvolvimento, indo além do estreito escopo dos ministérios de Economia e Fazenda.

REgUlAçaO DO SETOR bANCaRIO E FINANCEIROUm aspecto notável da crise é o grau em que as entidades financeiras conseguiram transferir o peso de sua postura irresponsável com rela-ção à tomada de riscos para as pessoas mais vulneráveis da socieda-de. E foram políticas específicas de governo para desregulamentar o sistema financeiro como um todo que possibilitaram isso. Portanto, os governos nacionais em coordenação com outros países devem adotar medidas para proteger os direitos humanos de seus povos por meio de uma regulação robusta dos respectivos setores bancários e financeiros. Eles também devem fortalecer a prestação de contas e o Estado de Direito, controlando comportamentos criminais. Onde certos atos não sejam considerados crimes (como, por exemplo, evasão fiscal em certos países) ou ofensas que acarretem responsabilidade legal, uma legislação apropriada deve ser aprovada e aplicada. Além disso, os governos devem atuar com seriedade para garantir que indivíduos e países afetados, po-rém inocentes no desencadeamento da crise, tenham acesso a recursos e medidas corretivas.

Os bancos são as entidades mais reguladas em todo o setor finan-ceiro. Contudo, seu comportamento tem sido cada vez mais regido por princípios de supervisão que dependem de seus próprios mecanismos internos de administração de risco, no lugar de normas desenvolvidas externamente por supervisores nacionais. Em resposta a pressões dos países industrializados, muitas nações pobres adotaram progressiva-

11 Assembleia Geral das Nações Unidas. “Recommendations of the Commission of Ex-perts of the President of the General Assembly on Reform of the International Monetary and Financial System”. A/63/838. 29 de abril de 2009.

Page 18: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

17Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

OS ACORDOS DA bASIlEIAO primeiro acordo da Basileia, firmado em 1988, era relativamente muito sim-

ples, recomendando aos supervisores nacionais que exigissem dos bancos interna-cionalmenteativosamanutençãodepatrimôniolíquido(capitalpróprio)napropor-çãode8%deseusativosponderadospelorisco.OacordodeBasileiaII(2004),porsuavez,ébemmaiscomplexo:nãosóestabeleceexigênciasdecapitaldistintasparadiferentesclassesdebancos,comotambémestipulafunçõesaossuperviso-resedefinerequisitoscomrelaçãoàdivulgaçãodeinformações.

Todavia, seus três pilares principais – as exigências de capital, a inspeção regulatória e adisciplinademercado– traçavamumcaminho rumoàautorre-gulação,pormeiodeincentivosdadosàsfirmasparaocontroledeseusprópriosriscos,oqualsemostrouineficientefrenteàcrisede2008.Porconsequênciadisso,propostas de reforma da regulamentação financeira foram firmadas no acordo de

mente os mesmos princípios, em parte tentados pela possibilidade de atraírem bancos internacionais. Pelos mesmos motivos, também acei-taram que esses bancos movimentassem capitais de forma irrestrita. No entanto, com frequência a desregulamentação para atrair bancos estrangeiros não teve os retornos esperados. As evidências empíricas não mostram nenhum vínculo entre a liberalização das contas de capital e um maior crescimento econômico. O acesso ao crédito, especialmente dos grupos mais marginalizados, tem melhorado pouco, enquanto os grandes bancos internacionais tendem a eliminar o setor bancário na-cional do qual dependem as pessoas mais necessitadas. Atualmente, os países com maior exposição e dependência dos bancos estrangeiros são os mais afetados pela crise financeira, à medida que aquelas institui-ções se retiram para os países sedes e se recusam a fazer empréstimos a essas economias fragilizadas.

As reformas no setor bancário devem dar espaço para que os governos nacionais regulem os serviços fornecidos por qualquer banco, asseguran-do amplo acesso a crédito e a outras funções sociais importantes. Quando serviços bancários estatais forem considerados uma opção melhor para a garantia de direitos, esse caminho deve ser plenamente explorado.

Page 19: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

18 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

Basileia III, de dezembro de 2010. Com o objetivo de reforçar o sistema financeiro apósa crisedosubprime, Basileia III foi pensado para ser adotado em fases a partirde2013,comimplementaçãoaté2019.

Mesmoassim,osmaiscríticosaoacordoafirmamqueonovoacordoéso-mente uma emenda ao acordo de 2004, uma vez que não apresenta rupturascom a forma de se fazer regulação dos acordos anteriores. O conjunto de novas regras sobre a maior exigência do capital, o padrão de alavancagem e liquidez, bem como a introdução de colchões de capital, não asseguram a estabilidade do sistema financeiro.

OprincipalmotivoparaainsuficiênciadeBasileiaIIIéjustamenteconsiderarque as atividades financeiras são, grosso modo, apropriadas. A partir das respos-tas formuladas no novo acordo, pode-se perceber que o Comitê da Basileia ainda consideraascrisesfinanceirascomoeventosdisfuncionaisealeatórios;nãoobs-tante, tornou-se claro, a partir da crise de 2008, que as condições para crise, na verdade, instituíram-se de modo progressivo durante o período de estabilidade, comoaexacerbaçãodecaracterísticasprópriasdosistemafinanceiro.

Alémdisso,onovoacordofoca-semaisumavezsobreasinstituiçõesban-cárias internacionalmente ativas, deixando inovações financeiras como os fundos de hedge e os derivativos sem uma regulação eficiente, o que compromete, por consequência, todo o regime de regulação financeira.

Os fundos de hedge12, os fundos private equityNT e as agências de classificação de risco foram deixados com seus planos de autorregula-ção. Em muitos países, foi permitido que os fundos de hedge se tornas-sem o mecanismo principal para cidadãos comuns fazerem poupança, colocando em risco seu acesso à seguridade social. Os fundos de hedge

12 “Os fundos de hedge são fundos comuns de recursos privados que investem em instrumentos negociáveis (títulos e derivativos), que podem empregar alavancagem por vários meios, mesmo pelo uso de posições a descoberto, e geralmente não são regulamen-tados. São fundos com estratégias de investimentos tidas como altamente sofisticadas e de alto risco.” (CARVALHO, Fernando Cardim de; KRIEGEL, Jan Allen. Crise financeira e déficit democrático. Rio de Janeiro: Ibase, 2009, p.16).NT Esses fundos compram ações de uma empresa para retirá-la da negociação nas bolsas, “fechando” o capital da empresa até que decidam vendê-la ao público novamente.

Page 20: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

19Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

e os fundos private equity também forçaram desemprego repentino e outras violações trabalhistas por meio de sua influência indevida sobre os processos decisórios na reestruturação de empresas em todo o mundo. Foram fomentados lucros extraordinários por meio de estratégias de ala-vancagem que eram baseadas em isenções fiscais no financiamento da dívida, colocando em risco as fontes de receitas públicas. Isso limitou as possibilidades de expansão fiscal de muitos governos, justamente quando mais necessitavam de recursos para estimular a criação de empregos e fortalecer medidas de proteção social.

Ao reconhecer que as atividades desses atores financeiros têm im-pactos profundos e mensuráveis nos direitos humanos, o Estado não deve abdicar de seu dever de proteger esses direitos. Os governos devem atuar juntos para adotarem todas as medidas necessárias no sentido de evitar que os fundos de hedge, fundos private equity, instrumentos derivativos e agências de classificação de risco afetem negativamente os direitos humanos.

A liberalização dos capitais e a criação de paraísos fiscais impenetrá-veis tornaram mais difícil taxar progressivamente os fluxos de capitais e erodiram ainda mais a base fiscal em países do Norte e do Sul, facilitando o desvio de lucros de onde são obtidos para outros lugares em que os impostos são baixos ou inexistentes. Isso traz resultados negativos para as receitas públicas, o que é um fator crítico para que os governos possam preencher suas obrigações de direitos humanos. Os governos devem cum-prir os deveres com seus povos, protegendo as receitas públicas de forma transparente e com prestações de contas, fechando os paraísos fiscais e tomando medidas adequadas para controlar os movimentos de capitais e fortalecer as contas fiscais.

Por seu lado, os bancos centrais são agências públicas e, como parte do governo, têm obrigações com os direitos humanos. Com demasiada fre-quência, o princípio da “independência do banco central” tem significado independência em relação aos interesses sociais e dos direitos humanos. Entretanto, isso não tem significado a ausência de interferências de gru-pos financeiros privados. Os bancos centrais devem reconhecer que inde-pendência não significa falta de responsabilidade em servir aos interesses da sociedade como um todo. Eles devem contrabalançar a necessidade

Page 21: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

20 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

de atingir uma inflação baixa e estável com suas obrigações de combater as desigualdades de renda e estabilizar os empregos e os meios de sub-sistência das pessoas por meio de diferentes instrumentos de crédito e supervisão.

A CRISE E OS DIREITOS HUMANOS NO SUl

O grau em que a crise compromete o cumprimento dos compromissos de direitos humanos pode ficar evidente de maneira mais dramática no Sul. Durante muito tempo, os países em desenvolvimento foram levados a acreditar no crescimento voltado para a exportação e nas políticas de livre mercado. Estes países são justamente os que mais sofrem com a queda da demanda externa causada pela crise. Uma flexibilidade especial deveria ser permitida, de modo que esses países pudessem contemplar plenamente suas obrigações com os direitos humanos, à medida que de-senvolvessem políticas comerciais as quais pudessem lidar com a crise, prevenindo também vulnerabilidades relacionadas à exportação no futuro. O perfil de exportação e a estratégia escolhida por um país, assim como o equilíbrio entre as necessidades de exportação e dos mercados internos, devem ser cuidadosamente orientados por suas obrigações com os direitos humanos, especialmente a necessidade de assegurar a não discriminação e a implementação progressiva daqueles direitos.

“Ospovosafro-americanoseindígenastêmumahistóriacomumdeexploração e conquista. Eles sofrem os impactos da crise de forma desproporcional.NossoatualImpérioAmericanofoiconstruídocombase no chamado sonho americano, mas sabemos que o roubo deterraseaexploraçãodotrabalhotambémforamutilizadosnaconstrução do país – o mais rico jamais existente. Desde o início, as instituições financeiras ajudaram e encorajaram esses exploradores quebuscavamconstruirumimpériousandotodososmeiosnecessários. Devemos rejeitar a teologia neoliberal e desenvolver teoriasteológicasmaisprogressistas”.

Jean Rice (Picture the Homeless, New York)

Page 22: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

21Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

Os níveis de endividamento dos países em desenvolvimento tam-bém devem aumentar. Não somente a crise vai piorar suas situações financeiras e comerciais, tornando necessário tomar mais empréstimos, como também uma resposta eficaz à crise que não recorra a gastos de-ficitários para acelerar a recuperação provavelmente vai prejudicar os níveis essenciais mínimos de bem-estar. Entretanto, não se pode ignorar as consequências para os direitos humanos e os impactos futuros dos empréstimos. Parte do aumento do endividamento se deve à proliferação de linhas rápidas de crédito das instituições multilaterais, incluindo o Banco Mundial, com o aparente objetivo de ajudar os países em desen-volvimento a lidarem com a crise. Essas linhas de crédito desembolsam quantias vultosas com pouco ou nenhum controle da cidadania ou pres-tação de contas ao público, com risco real de passarem completamente ao largo de salvaguardas sociais e ambientais. Outra parte do aumento dos níveis de endividamento resulta da necessidade de os países refi-nanciarem suas dívidas em meio aos mercados de capitais privados sob estresse, nos quais os recursos estão escassos, conforme os países em desenvolvimento tentam em vão competir com os países industrializa-dos, saneando seus setores bancários em dificuldades e implementando planos de estímulo econômico.

Embora, em curto prazo, essas linhas de crédito possam ser necessá-rias para permitir que os governos estabilizem seus gastos, os princípios dos direitos humanos são críticos para determinar o seguinte: (1) o volume estritamente necessário de empréstimos que precisa ser tomados; (2) as demandas que devem ser atendidas por meio de financiamentos conces-sionais no lugar de empréstimos; (3) os princípios de prestação de contas e transparência que irão assegurar que novos empréstimos sejam feitos de forma responsável, com adequado controle social, de modo a evitar a criação de mais dívidas ilegítimas que as futuras geração terão de pagar.

Alguns preveem que os cortes orçamentários causados pela crise e a transferência de recursos para os pacotes de estímulos fiscais levarão os países doadores a diminuírem sua ajuda ao desenvolvimento. Com o desfrute dos direitos humanos de tanta gente em risco por causa da crise financeira, os governos doadores não devem recuar de suas obriga-ções com a ajuda internacional, cortando a ajuda ao desenvolvimento.

Page 23: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

22 instituto brasileiro de análises sociais e econômicas

PACOTES DE INCENTIVOS ECONÔMICOS ORIENTADOS PElOS DIREITOS HUMANOSO esboço de uma abordagem à crise baseada nos direitos humanos não estaria completo sem uma referência ao papel muito especial que os padrões de direitos humanos devem cumprir nos pacotes nacionais de estímulo econômico. Nesse sentido, são especialmente relevantes os já citados princípios de não discriminação, transparência, prestação de contas e participação.

Os pacotes de estímulo econômico não podem discriminar de ne-nhuma maneira. Os governos devem avaliar as consequências distributi-vas dos pacotes em toda a sociedade, para assegurar que os benefícios recebidos sejam também equitativos em termos de gênero, etnicidade, orientação sexual e classe social. Podem ser necessárias medidas extra-ordinárias para promover igualdade substantiva entre aqueles historica-mente marginalizados e especialmente vulneráveis. Por exemplo, políti-cas sensíveis ao gênero exigem que as mulheres participem do desenho e execução dos pacotes de estímulo. As decisões durante o período do pacote de estímulo também devem estar abertas a questionamentos e serem baseadas na participação e transparência, para fortalecer a pres-tação de contas ao público.

Nos seus pacotes de estímulo fiscal, uma área especial de prioridade para os governos deve ser a estabilização e o fortalecimento dos siste-mas de proteção social para todos, especialmente para as pessoas mais vulneráveis. O direito à seguridade social é reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em numerosos tratados internacionais sobre direitos humanos. Todos os Estados têm a obrigação de estabele-cer de imediato um sistema de proteção social básico e expandi-lo pro-gressivamente de acordo com os recursos disponíveis. O fortalecimento desses sistemas cumpre o dever de curto prazo de proteger as pessoas contra declínios econômicos, assim como contribui para a prioridade econômica de longo prazo de investir nas pessoas.

Entretanto, na atualidade nem todos os países têm a capacidade de apelar para pacotes de estímulo econômico com o objetivo de evi-tar medidas regressivas na implementação de direitos e melhorar suas economias nacionais. Ao assegurarem que esses pacotes preencham os padrões básicos de direitos humanos no plano nacional, os governos

Page 24: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

23Revisão: DiReitos Humanos: uma Resposta à cRise econômica e financeiRa

devem também manter suas obrigações com a cooperação internacional, ajudando a diminuir a brecha financeira no Sul Global.

No esforço para estabilizar o emprego e os meios de subsistência, é importante que os pacotes de estímulo não expandam a demanda de acordo com padrões de consumo superados e insustentáveis – tanto nos países ricos quanto nos pobres. A continuação de uma economia com alto consumo de carbono, que exaure os recursos do planeta e aumenta as emissões de gases de efeito estufa, irá somente piorar os desafios já enfrentados por muitos países que tentam manter seus padrões de direitos humanos.

ObSERVAçõES FINAISDevemos esperar que a atual crise financeira deixe um legado desalen-tador – pior do que qualquer outra crise que esta geração tenha presen-ciado. Ao mesmo tempo, existe um legado de ideias importantes que não podem mais ser ignoradas e que devem estar no centro da reestru-turação do sistema econômico global. Uma dessas ideias é a inegável relevância dos compromissos de direitos humanos endossados desde 1948 pela comunidade internacional para as escolhas de políticas eco-nômicas e financeiras. A humanidade faria bem em não esquecer a que custo foram forjados os instrumentos modernos de direitos humanos.

Page 25: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira
Page 26: Direitos humanos: uma resposta à crise econômica e financeira

apoIo