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As agruras do personagem-escritor: a busca de si por meio da escrita no romance Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca 1 Cloves da Silva JUNIOR 2 Resumo Este artigo propõe uma análise da escrita diarística no romance Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca. Inicialmente, apresenta alguns comentários sobre as inovações do romance enquanto gênero inacabado e em constante evolução para, em seguida, comentar a intervenção do diário nesse gênero e sua necessidade de teorização. O texto apresenta também algumas perspectivas sobre a escrita diarística com o objetivo de solidificar a análise da narrativa fonsequiana. Por fim, analisa o romance a partir dos dilemas de um personagem escritor que encontra uma série de percalços para constituir seu romance de formação paralelamente ao diário que mantém. Além disso, este texto investiga se a escrita pode revelar o sujeito, a partir das análises sobre a teoria da intimidade, levando em consideração a possibilidade de acesso ao espaço íntimo do sujeito. Como se trata de uma pesquisa bibliográfica, são utilizados os pressupostos teóricos de Barcellos (2004), Blanchot (2005), Picard (1981), Eco (1999), Pino (1996), Lejeune (2008), dentre outros. Palavras-chave: Escrita de si. Escrita diarística. Espaço íntimo. Rubem Fonseca. Abstract This article proposes an analysis of the journaling writing on the novel Diário de um fescenino, written by Rubem Fonseca. Initially, the text presents some comments about the innovations of the novel as an unfinished gender and in constant evolution, to then, review the intervention of the journal in this genre and its need for theorizing. The text 1 Este artigo é produto do projeto de pesquisa Aspectos do romance brasileiro contemporâneo, coordenado pela professora Dra. Renata Rocha Ribeiro, docente do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. A pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação, Cultura e Esporte do Estado de Goiás. 2 Mestrando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Professor efetivo da Secretaria de Educação do Estado de Goiás. Goiânia-GO, 74.663-520. E-mail: [email protected]

Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca1...Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca. A priori são apresentadas algumas notas A priori são apresentadas algumas notas sobre a escrita

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As agruras do personagem-escritor: a busca de si por meio da escrita no romance

Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca1

Cloves da Silva JUNIOR2

Resumo

Este artigo propõe uma análise da escrita diarística no romance Diário de um fescenino,

de Rubem Fonseca. Inicialmente, apresenta alguns comentários sobre as inovações do

romance enquanto gênero inacabado e em constante evolução para, em seguida,

comentar a intervenção do diário nesse gênero e sua necessidade de teorização. O texto

apresenta também algumas perspectivas sobre a escrita diarística com o objetivo de

solidificar a análise da narrativa fonsequiana. Por fim, analisa o romance a partir dos

dilemas de um personagem escritor que encontra uma série de percalços para constituir

seu romance de formação paralelamente ao diário que mantém. Além disso, este texto

investiga se a escrita pode revelar o sujeito, a partir das análises sobre a teoria da

intimidade, levando em consideração a possibilidade de acesso ao espaço íntimo do

sujeito. Como se trata de uma pesquisa bibliográfica, são utilizados os pressupostos

teóricos de Barcellos (2004), Blanchot (2005), Picard (1981), Eco (1999), Pino (1996),

Lejeune (2008), dentre outros.

Palavras-chave: Escrita de si. Escrita diarística. Espaço íntimo. Rubem Fonseca.

Abstract

This article proposes an analysis of the journaling writing on the novel Diário de um

fescenino, written by Rubem Fonseca. Initially, the text presents some comments about

the innovations of the novel as an unfinished gender and in constant evolution, to then,

review the intervention of the journal in this genre and its need for theorizing. The text

1 Este artigo é produto do projeto de pesquisa Aspectos do romance brasileiro contemporâneo,

coordenado pela professora Dra. Renata Rocha Ribeiro, docente do Programa de Pós-Graduação em

Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. A pesquisa foi financiada

pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pela Secretaria de

Educação, Cultura e Esporte do Estado de Goiás.

2 Mestrando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da

Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Professor efetivo da Secretaria de Educação do

Estado de Goiás. Goiânia-GO, 74.663-520. E-mail: [email protected]

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also presents some perspectives about the journaling writing with the objective of

solidifying the analysis of fonsequiana narrative. Finally, it analyzes the novel from the

dilemmas of a character who is a writer and that finds a series of mishaps to constitute

his novel of formation alongside the diary that he keeps. In addition, this paper

investigates whether writing can reveal the subject, from the analysis of the theory of

intimacy, taking into account the possibility of accessing the intimate space of the

subject. As this is a bibliographic research, the theoretical assumptions by Barcellos

(2004), Blanchot (2005), Picard (1981), Eco (1999), Pino (1996), Lejeune (2008),

among others, are used.

Keywords: Writing oneself. Journaling writing. Intimate space. Rubem Fonseca.

Introdução

O romance, segundo Bakhtin (2010), é o único gênero ainda inacabado, que está

em processo de evolução, diferentemente dos demais que já possuem uma estrutura

engessada. “Um plebeu que vingou e que, em meio aos gêneros secularmente

estabelecidos e pouco a pouco por ele suplantados, continua parecendo um arrivista, [...]

um aventureiro” (ROBERT, 2007, p. 11). Nesse sentido, o romance permite a

manifestação de diferentes gêneros, a qual é ocasionada por sua consciência plurilíngue

a partir da diversidade de vozes/discursos que o constituem e que elabora um

macrodiscurso permeado por uma série de microdiscursos.

Esse gênero admite, em sua composição, diversos outros gêneros, tais como

cartas, bilhetes, diários, relatos de viagem, etc., os quais podem atuar como

complementares ao gênero predominante, ou estruturá-lo, como acontece quando o

romance assume a forma de um diário, de uma sequência de cartas, relato de viagens, os

quais trazem para o romance a sua forma própria de linguagem e estrutura, fazendo com

que o romance tome outras proporções e formas, daí a ideia de plurilinguismo.

Este artigo trata especificamente do romance-diário por meio da análise da obra

Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca. A priori são apresentadas algumas notas

sobre a escrita diarística para em seguida proceder à análise da obra citada com vistas a

examinar os dilemas de um personagem-escritor que se vê no impasse de não conseguir

escrever seu romance de formação (Bildungsroman) e, paralelamente, registra em um

diário a sua história, insatisfações e anseios. Com isso, este texto levanta os seguintes

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questionamentos, os quais serão solucionados na análise da obra: a escrita revela o

sujeito? É possível apreender todo o espaço íntimo do sujeito a partir do diário?

1. A escrita diarística: o espaço em que o eu se descobre

O diário íntimo é o espaço que se entreabre para que o sujeito se manifeste em

todas as suas configurações. É no contato entre o papel e a caneta que são extravasados

sentimentos e esperanças; um mergulho no eu que possibilita o conhecimento de si

mesmo e uma análise da existência sob o olhar acurado daquele que escreve.

Entretanto, a conquista desse espaço íntimo não é antiga. Entre os séculos XI e

XIII, como afirmam Duby e Braunstein (2004), os indivíduos não cultivavam essa

espécie de análise existencial, visto que não havia privacidade individual no seio

familiar. As informações eram compartilhadas com todos os membros da família, não

havia espaço físico privado, enfim, não havia meios de enclausurar-se em si mesmo,

pois a todo o momento as pessoas eram acompanhadas por todos os espaços no interior

das casas e fora delas. Até mesmo nas viagens, aquele que não estivesse acompanhado

era considerado insano.

Nos séculos seguintes – XIV e XV –, Duby e Braunstein (2004) afirmam que

começa a se desenhar o espaço íntimo a partir da difusão da escrita no final da Idade

Média, principalmente nas grandes cidades, o que permitiu que uma minoria da

população começasse a se preocupar em moldar uma imagem de si mesmo para a

posteridade. Assim, as primeiras anotações diarísticas eram realizadas em cadernos de

registro de bens imóveis, organização da economia doméstica, lembretes de prazos e

obrigações, com a finalidade de deixar um legado – construção de um ethos – que

permitisse que as próximas gerações soubessem administrar seus bens e sua vida a partir

dos modelos deixados por meio dessas anotações diárias.

E no final do século XV, sub repticiamente, começa a emergir a necessidade de

separar os assuntos anotados nos cadernos de registro em função da variedade do

conteúdo ali disposto. Para isso, criaram-se livros especializados a fim de diferenciar o

livro dos negócios do livro privado, dando início à possibilidade de análise do espaço

íntimo e, posteriormente, de construção da própria identidade de acordo com as

vivências e análises do eu.

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A partir daí começou a se delinear o processo de utilização do diário íntimo para

que o sujeito pudesse refletir sobre seus atos e anotar aquilo que acontecia no cotidiano.

E uma simples, silenciosa e fria folha de papel tornava-se uma compreensível e

atenciosa confidente que não disseminaria aquilo que lhe era confiado diariamente, a

não ser que alguém descobrisse a localização do diário e revelasse seus mistérios. Logo,

o diário constituiu-se como um documento que possui em seu conteúdo apenas a

veracidade das coisas.

E, na literatura, com as inovações do romance mencionadas no início deste texto,

o diário penetrou nesse gênero e inseriu sua linguagem própria. Como exemplo dessa

intervenção na literatura brasileira a partir do século XX, temos os romances Memorial

de Aires (1902), de Machado de Assis; O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos

Anjos; Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso; Informação ao

Crucificado (1961), de Carlos Heitor Cony; A rainha dos cárceres da Grécia (1976), de

Osman Lins; Em liberdade (1981), de Silviano Santiago, Mongólia (2003), de Bernardo

Carvalho; Diário de um fescenino (2003), de Rubem Fonseca – corpus de análise desta

pesquisa – dentre outros.

Nesses romances, com exceção das obras de Bernardo Carvalho e Lúcio

Cardoso, o diário atua como estruturante da narrativa, uma estratégia textual utilizada

pelo autor para tentar prender o leitor nas sequências narrativas que se instauram no

romance de forma não linear, exigindo, desse modo, certa habilidade do leitor para se

embrenhar nas malhas do texto.

E com a intervenção do diário na estrutura do romance houve a necessidade de

teorizar esse gênero, considerando sua liberdade de formas. Nesse sentido, um dos

autores que se destacam no assunto é o francês Philippe Lejeune com sua obra O pacto

autobiográfico: de Rousseau à Internet (2008), que apresenta uma teoria que estabelece

a tentativa de demonstrar os limites da escrita autobiográfica e seus gêneros vizinhos

como a memória, biografia, romance pessoal, poema autobiográfico, diário, autorretrato

e ensaio, bem como evidenciar as fronteiras entre autobiografia e biografia ao

mencionar a complexidade desses gêneros.

De acordo com esse autor, a autobiografia é uma “narrativa em prosa que uma

pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em

particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). E, no texto de

ficção, a escrita autobiográfica se manifesta no narrador-personagem dada a existência

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ficcional na obra da qual faz parte, e tece a narrativa apresentando sua história e

deixando entrever sua personalidade por meio dos relatos e materialização de seus

pensamentos, o que possibilita a construção de um ethos desse personagem, além de

descrever apenas os fatos que lhe interessam com o fim de manipular o leitor.

O diário, enquanto gênero textual, é livre de formas, isto é, não existe um

modelo rígido a ser seguido, considerando também que, inicialmente, não pressupõe

outro leitor que não seja o próprio diarista. No entanto, mesmo apresentando essa

liberdade de formas, o diário “é submetido a uma cláusula aparentemente leve, mas

perigosa: deve respeitar o calendário. [...] O calendário é seu demônio, o inspirador, o

compositor, [...]” (BLANCHOT, 2005, p. 270). Nessa perspectiva, o diarista se vê

motivado a escrever regularmente de acordo com o que ocorre em determinado

momento de sua existência, atento para que os detalhes que deseja registrar não lhe

escapem da memória, fazendo com que a escrita diarística seja fiel ao que o sujeito

deseja transmitir para si mesmo, o que contribui para o caráter de verossimilhança do

texto.

Desse modo, “toda escrita de diário pressupõe a intenção de escrever pelo menos

mais uma entrada que, por sua vez, convocará a seguinte, e assim sucessivamente, [...]”

(LEJEUNE, 2008, p. 270), em um movimento que provoca no diarista a necessidade de

dar vazão àquilo que o sufoca, reprime, alegra, inquieta, e que contribui para a

regularidade da escrita, mesmo quando há ausência de registro durante semanas ou

meses; caso o diarista ache necessário, pode recapitular aquilo que lhe pareceu

importante e que não foi registrado nas datas em que aconteceram por motivos diversos.

Isso acontece, por exemplo, em grande parte dos romances citados e se torna uma

constante na escrita diarística. “O eu narrador não está reconstituindo o mundo narrado

através da memória. O fato, acontecido em passado recente, encontra-se próximo à sua

enunciação, pelo narrador, e essa proximidade assegura a presença da verossimilhança”

(BARCELLOS, 2004, p.115).

Outro ponto a ser comentado é a incoerência, característica desse gênero, o que

torna a escrita não linear. Não existe o compromisso de narrar sequencialmente os fatos

na ordem em que aconteceram: é o sujeito quem seleciona aquilo que deve ser

registrado no diário de acordo com a importância que atribui ao ocorrido. Além do que,

na maioria das vezes, a descrição do cotidiano e as reflexões dessas vivências se

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intercalam e seguem o rumo do pensamento do diarista, o qual pode tratar de diversos

assuntos ao mesmo tempo.

Assim, “[...] cada um inventa seu próprio caminho nesse gênero do qual existem

talvez modelos, mas nenhuma regra. É claro que os diaristas têm, apesar de tudo, em

comum, o gosto pela escrita e a preocupação com o tempo” (LEJEUNE, 2008, p. 258).

Pensando nisso, percebe-se que, ao escrever, o diarista, principalmente o ficcional, entra

em contato com sua língua materna e tenta, de acordo com seu nível de formação e

experiência na arte de escrever, se assemelhar ao ourives que lapida pedras preciosas

para dar as formas que lhe convêm. Sobre isso, é interessante tomar como exemplo os

personagens diaristas que se preocupam em manipular as palavras e dispô-las de forma

que a composição se mostre bem elaborada, com escolha vocabular pertinente para cada

caso, como acontece com os diaristas Graciliano Ramos, do romance de Silviano

Santiago, e Belmiro, de Cyro dos Anjos.

Lejeune (2008) também aponta as possíveis funções que o diário pode assumir,

de acordo com as necessidades do diarista. Segundo ele, o diário pode ter a função de

conservar a memória ao fixar o tempo por meio do registro das vivências; sobreviver,

isto é, uma possibilidade de ser lembrado pela memória coletiva; desabafar, expurgar

aquilo que incomoda e sufoca; comunicar-se e conhecer-se; deliberar sobre fatos

vividos e possibilitar decisões que não sejam precipitadas; resistir à pressão social e à

vida; refletir sobre o que ocorre ao seu redor ou sobre um processo de escrita, por

exemplo; e, sentir prazer em escrever, em selecionar as palavras para que se configurem

as representações que deseja formar.

Em vários casos, o diário não possui uma data limite para que possa ser

encerrado. Observa-se que o início da escrita diarística é motivado pela necessidade de

desabafar, conhecer-se, de “administrar a si mesmo, com seu próprio setor de

contenciosos e seus próprios arquivos” (LEJEUNE, 2008, p. 259). É por meio da análise

do eu, daquilo que foi vivenciado no cotidiano, com os erros e acertos, que o sujeito

consegue se administrar, levando em conta os aprendizados que carrega consigo.

Todavia, outros diários já nascem com data de encerramento, como é o caso do

diário de pesquisa e diário de navegações, ou seja, assim que a pesquisa ou viagem

acaba, não há mais a necessidade de manter o diário, pois ele foi criado para um fim

específico.

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E quando o diário se insere no contexto ficcional, perde seu caráter de autêntico

documento, mas contribui, ao mesmo tempo, para criar a ilusão de se tratar de algo

verdadeiro, mesmo num texto ficcional, já que o texto autobiográfico, como aponta

Lejeune (2008), pressupõe a veracidade dos fatos, o compromisso com a realidade.

Sua carência de forma, sua fragmentação, sua falta de coerência, o

caráter provisório e espontâneo, suas formulações abreviadas, o feito

de estar livre de ação, de contexto de barreiras estilísticas e de

fronteiras temáticas, sua relação com o mundo, com a vida, todas

essas propriedade do uso privado do diário [...] são vistas agora como

procedimentos literários desejáveis, porque tais propriedades são as

que fazem possível o discurso da obra e da “mentira” do ficcional [...]

(PICARD, 1981, p. 04-05).

Ao mencionar que o diário ficcional perde sua autenticidade como documento,

pode-se explicar esse fenômeno pelo fato de que, no texto ficcional, o diarista manipula

a sequência narrativa com um fim específico: construir no leitor uma imagem que lhe

favoreça, que afaste más impressões, por exemplo. E isso pode provocar um conflito de

ideias, um jogo entre mentira e verdade: ao mesmo tempo, a identidade do narrador-

personagem pode se chocar com as verdades ali inseridas.

2. Os dilemas do processo de escrita no romance Diário de um fescenino

Rubem Fonseca, conhecido por suas criações voltadas para a narrativa de cunho

policial, inova-se no romance Diário de um fescenino ao utilizar-se dessa obra a fim de

discorrer, entre outros assuntos, sobre o processo de escrita literária a partir dos

registros de um diário. A experiência com personagens escritores ocorre em outras

obras do autor, como O caso Morel (1973), seu romance de estreia. Suas marcas

registradas como o erotismo, a violência e o tom policial que lhe são comuns se fazem

presentes nessa obra, porém, de forma mais branda.

O romance gravita em torno do narrador-personagem-escritor Rufus, que se vê

no impasse de não conseguir escrever um romance de formação à maneira dos grandes

escritores que são referência para a literatura mundial. Então, a partir da ausência de

inspiração/ideias para a criação do que seria sua obra-prima, Rufus passa a registrar seu

cotidiano e suas reflexões em um diário mantido em seu computador.

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Rufus é um personagem efêmero, ateu e extremamente insatisfeito com a vida e

com as mulheres, transmitindo a imagem de um ser incompleto que sobrevive em meio

a uma transição de identidades, o que é comum na contemporaneidade: um sujeito que

não possui uma identidade única, mas é formado por várias identidades imbricadas.

Sobre a prática da escrita diarística, é importante salientar que Rufus é um

diarista moderno, já que não registra suas anotações em cadernos ou livros destinados

para esse fim: utiliza um arquivo contínuo que permanece salvo em seu computador, um

dos símbolos da tecnologia e, consequentemente, da modernidade. E, por esse motivo,

surge uma inquietação: pressupõe-se que aquilo que foi registrado nas páginas de um

diário não pode ser alterado, a não ser que o diarista volte atrás ou reformule algo que

foi dito em outra entrada do diário. E por utilizar um editor de textos, pode-se pensar na

possibilidade de modificação do texto. No entanto, Rufus afirma que não faz questão de

ler o que já escreveu, e para isso utiliza um recurso de seu computador: “quando abro o

arquivo e o texto inicial entra na tela do monitor, imediatamente eu clico as teclas

control+end e vejo apenas as últimas palavras do arquivo aberto” (FONSECA, 2003, p.

81).

De forma geral, paralelamente à escritura do romance de formação, Rufus

registra em seu diário determinados momentos que lhe são importantes, como os

relacionamentos bígamos que mantém, em momentos distintos, com Henriette e Lucia,

e depois com Clorinda e Virna, filha e mãe, respectivamente; ou seu desejo sexual que

só é saciado quando se envolve com duas mulheres de personalidades distintas, de

modo que uma complete a outra.

Não é fácil empulhar simultaneamente duas mulheres ciumentas e

possessivas. As mentiras ficam cada vez mais complexas, como um

jogo de xadrez, [...]. Sinto-me exausto quando penso nas manobras

ardilosas que preciso realizar, mas por outro lado duas mulheres

mantêm o fogo aceso, e eu obtenho uma certa satisfação com a minha

astúcia (FONSECA, 2003, p. 38).

Além disso, os registros diarísticos também apresentam seu envolvimento na

investigação sobre os pais de Clorinda; as denúncias de abuso sexual levadas a termo

por Virna quando descobre que Rufus se relacionava com sua filha; o aparecimento do

pai de Clorinda, Leandro; a prisão do narrador-personagem; e o início de um novo ciclo

de vida.

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Por ser um narrador-escritor, Rufus se vê em meio a alguns problemas quando se

relaciona com pessoas que são leitoras de seus livros. As mais perspicazes afirmam que

os personagens de suas obras, na verdade, revelam o próprio autor, e para auxiliar nessa

discussão, Rufus relembra um personagem de Philip Roth e dá origem à Síndrome de

Zuckerman. “Sempre preferi que as pessoas que conheço não leiam o que escrevo,

principalmente após descobrir que sou uma irrecuperável vítima da síndrome de

Zuckerman” (FONSECA, 2003, p. 16). Em seguida, após mais algumas entradas, Rufus

explica melhor em que consiste essa síndrome.

Zuckerman é um personagem de Philip Roth que decide escrever um

livro. Quando o livro é publicado, o inferno de Zuckerman começa.

Os leitores, ao se encontrarem com ele, fazem-lhe as piores acusações:

Zuckerman, como você foi dizer aquela coisa horrível da sua santa

mãe, Zuckerman você é um homem mau, chamar o seu melhor amigo

de ladrão; [...] Os leitores acreditavam que o personagem do livro era

o alter ego do autor e que tudo o que ele dizia no seu livro se aplicava

a ele e aos seus amigos e parentes, [...] (FONSECA, 2003, p. 148).

Percebe-se que, no romance de Philip Roth, como mencionado por Rufus, os

leitores dos livros de Zuckerman não conseguem desvincular a imagem do autor de seus

personagens e conceber a ideia de que esses personagens são seres independentes com

existência ficcional na obra em que estão inseridos. E essa confusão também se faz

presente por meio dos livros de Rufus, o qual é acusado de poder ser decifrado a partir

de seus livros, principalmente por preferir escrever na primeira pessoa, o que facilita

essa visão zuckermaniana. Na passagem a seguir, Lucia se revolta com os discursos de

Rufus que, segundo ela, são vozes dos personagens de suas obras: “Seus livros dizem

tudo. Você me diz uma coisa que me deixa encantada e de repente vejo que está num

dos seus livros, igualzinho, faz parte do seu arsenal de torpedos velhos. Eles não

explodem mais, entendeu?” (FONSECA, 2003, p. 62).

Tal fato traz uma importante discussão acerca da concepção do texto literário.

De acordo com os pressupostos de Umberto Eco (1999), ao tratar da representação da

realidade, o texto literário é um parasita do mundo real, visto que o escritor utiliza

elementos vinculados à realidade circundante e acrescenta sua imaginação ao manipular

as palavras para criar a obra literária. Logo, é possível que haja semelhanças de

personalidade entre personagem e autor, ou entre qualquer personagem e um ser real, se

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é levado em consideração o que foi dito por Eco (1999), o qual aponta como o leitor

deve lidar com uma obra ficcional quando está diante dela:

A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o

leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge

chamou de “suspensão da descrença”. O leitor tem de saber que o que

está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve

pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John

Searle, o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o

acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu

(ECO, 1999, p. 81).

Desse modo, faz-se necessário que o leitor encare a obra literária como verdades

ficcionais que existem a partir de personagens, tempo e espaço ficcionais, que podem

ser concebidos a partir de resquícios da realidade, mas que devem ser vistos como

criações imaginárias. O que não acontece com os leitores de Rufus, os quais insistem

em afirmar que ele utilizava seus livros para extravar seus pensamentos e desejos

escondidos. E, por meio da análise do fragmento a seguir, percebe-se que Rufus

comunga das ideias de Eco (1999).

Quanto a mim, se não uso a minha imaginação, como neste instante, e

falo apenas da realidade, estou sendo simplesmente o rabiscador de

um diário, um registrador cotidiano e fidedigno de uma jornada de

ocorrências, experiências e observações. Não sou um verdadeiro

autor, ao escrever este diário. Literatura é imaginação (FONSECA,

2003, p. 158).

Assim, é perceptível que Rufus conceba um valor literário ao diário que

mantém, ao mencionar que usa a imaginação para registrar fatos e reflexões sobre o

cotidiano, fazendo com que o gênero perca a sua autenticidade, já que não há

compromisso com a realidade imediata. Em função disso, o leitor está diante de

construções imaginárias, não apenas descrições exatas da realidade. O autor está, a

partir do diário, construindo um texto literário.

Bakhtin (2010, p. 400) aponta que a romancização dos outros gêneros ocorre,

dentre vários fatores, quando “são largamente penetrados pelo riso, pela ironia, pelo

humor, pelos elementos de autoparodização”. E por meio da autoparodização, percebe-

se que Rufus, além de se valer suas anotações para refletir e deliberar sobre o que fazer,

também utiliza o diário para satirizar uma de suas funções essenciais e que, pode-se

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dizer, seja a função que indique o início ou necessidade de manter um diário: o

conhecer-se.

O Barthes diz que o que um diário postula não é a trágica pergunta do

louco “Quem sou eu?”, mas a cômica pergunta do desnorteado:

“Sou?”. Um comediante, é isso que é o sujeito que escreve um diário.

[...] Quero deixar claro que não estou, à maneira de Kierkegaard,

buscando um caminho para atingir a serenidade espiritual através de

Deus, eu sou ateu, [...]. O que sinto é uma consciência de mim mesmo

[...]. Isso será causado por eu estar escrevendo este meu autorretrato

disfarçado de diário? Estarei, inconscientemente, escrevendo este

diário para descobrir quem sou, trazer à tona os crimes que cometi,

[...], para encontrar um sentido para a minha vida? O mesmo impulso

que leva o poeta a escrever poesia? (FONSECA, 2003, p. 200).

Ao retomar as palavras de Barthes, Rufus utiliza os recursos do humor e da

ironia para apresentar a ideia de que o diário seria uma forma de o sujeito descobrir se

realmente é quem pensa ser, uma inquietação indubitavelmente mais complexa do que

tentar descobrir quem esse sujeito é. Nessa linha de raciocínio, o narrador-personagem

ainda considera o diarista – e a si próprio, já que igualmente mantém um diário – um

comediante em função dessas inquietações.

Além disso, Rufus deixa claro que seu propósito de manter um diário não é

atingir a serenidade espiritual, considerando-se que é ateu, bem como não escreve de

acordo com nenhuma filosofia existencialista.

Observa-se que, na primeira entrada do diário, com a data de 1º de janeiro,

Rufus menciona a decisão de escrever um diário e afirma que não reconhece os motivos

que o levaram a isso. E em seguida, confere aos registros um tom metaficcional ao

escrever que “um diário, como o nome indica, é um registro cotidiano de experiências,

observações, sentimentos e atitudes do seu autor e das suas interações com aqueles que

o cercam. Pode ser que fique algum dia sem nada escrever aqui, [...]” (FONSECA,

2003, p. 14). Ou seja, diz para si mesmo como deve ser utilizado o seu diário, o que

escrever e a regularidade das anotações que possuem alguns lapsos temporais, visto que

o diarista nem sempre consegue anotar o que lhe interessa na data dos acontecimentos.

Um exemplo disso acontece no momento em que Rufus interna-se na Casa de

Repouso Belvedere com o objetivo de ajudar Clorinda a desvendar seu passado e

descobrir se a personagem Virna é sua mãe – e não irmã, como afirma. E, nesse curto

período de tempo em que permanece internado, Rufus escreve seus registros diários em

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um caderno pautado para que possa reservar os momentos mais significantes dessa

passagem pela clínica.

Estou escrevendo num caderno pautado. Detesto escrever à mão,

sempre escrevi batendo em teclados, no início em máquinas de

escrever, depois no computador. Escrever à mão me irrita, me sinto

burro. Mas tenho que fazer isso, não quero ser notado pelos outros,

um sujeito escrevendo num caderno pode muito bem passar por

maluco. Depois vou transcrever tudo para o computador (FONSECA,

2003, p. 93).

De certa forma, ao anotar suas primeiras impressões sobre o lugar e a

necessidade de encontrar Virna, Rufus utiliza essas anotações como meio de reflexão e

de deliberação, duas funções do diário apontadas por Lejeune (2008), para que a escrita

oriente-o qual caminho seguir: “Devia começar logo a procurar por Virna, [...]? Será ela

uma residente bem-comportada? [...] Qual dessas mulheres? [...] Que tipo de abordagem

devo usar?” (FONSECA, 2003, p. 94). E, por meio desses questionamentos, o

personagem constrói um fio de raciocínio estratégico que o ajude a encontrar quem

deseja. Um eu que entra em contato com outro eu a fim de analisar os prós e os contras

da situação para que a melhor decisão seja tomada, livre de erros que o impeçam de

continuar seu plano.

A respeito do assunto, Carlos Castilla del Pino (1996) ao desenvolver sua teoria

da intimidade, comenta que “las actuaciones humanas son representaciones de un yo3

(PINO, 1996, p. 15, grifos do autor), isto é, as ações que executamos no cotidiano

exigem uma dada imagem/personalidade que construímos para atender determinadas

situações de acordo com a necessidade instaurada em cada contexto.

Si las actuaciones humanas son representaciones de un yo, se puede

afirmar, más precisamente, que para cada actuación/representación se

construye un yo. Dado que podemos llevar a cabo muy varias

actuaciones, todos poseemos múltiples yos. Llamo sujeto al «órgano»

que construye el yo para cada actuación, o recupera o restaura un yo,

previamente construido, […]4 (PINO, 1996, p. 15, grifos do autor).

3 As ações humanas são representações de um eu (tradução nossa).

4 Se as ações humanas são representações de um eu, pode-se afirmar, mais precisamente, que para

cada ação/representação se constrói um eu. Uma vez que podemos realizar várias ações, possuímos múltiplos eus. Chamo de sujeito o "órgão" que constrói, recupera ou restaura um eu, previamente construído, para cada ação, [...]. (tradução nossa).

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Como o sujeito, ao longo do dia, executa muitas ações, vários eus são

construídos e acessados de acordo com as demandas das representações estabelecidas

pelo próprio sujeito, o qual é considerado pelo autor um eu principal, uma instância que

organiza e controla os eus. Além disso, armazena e registra os módulos de eus forjados

com antecedência e os dispõe para seu uso.

No contexto da obra de Fonseca é perceptível que Rufus se configura como o eu

principal que reorganiza ou restaura os outros eus a partir das situações instauradas na

narrativa. Por exemplo: quando se encontra com suas namoradas, coloca em evidência o

eu fescenino que se relaciona com duas mulheres ao mesmo tempo e que precisa disso

para se sentir potente/homem; em outro momento, o narrador-personagem acessa o eu

detetive a fim de tentar descobrir informações sobre o passado de Clorinda, utilizando

conhecimentos específicos dessa área, à moda do personagem Mandrake, do romance A

grande arte (1983), também de Fonseca.

Noutro momento, Rufus recupera um eu filosófico e passa a refletir sobre a

natureza das coisas, a vida, as mulheres, e a literatura, buscando possíveis respostas para

suas inquietações, e o diário tem um papel importante nesse diálogo interior. E em outra

situação, quando está diante de seu computador, o narrador-personagem resgata o seu eu

escritor que não consegue escrever seu romance de formação e se frustra por isso,

colocando em evidência suas preocupações relativas ao assunto e a cobrança feita por

seu editor, J. S., o qual está ávido por uma nova obra que traga muitos lucros.

[...] o sujeito do “discurso” pode permitir que a fragmentação de sua

identidade se mostre plenamente ao optar por uma ou outra

identidade, assim como expõe Stuart Hall, ao diagnosticar que o

sujeito “está se tornando fragmentado; composto não de uma única,

mas de várias identidades.” Diante dessa “liberdade de exposição”, o

sujeito pode escolher qual perfil destacar ou enfatizar através de sua

escrita diarística (BARCELLOS, 2004, p.118).

Ainda sobre a teoria da intimidade, Pino (1996) discorre sobre a existência de

um eu íntimo, que é acessado apenas pelo sujeito que o constrói; um eu suposto, aquele

que é visto, imaginado; e um eu mostrado, que se caracteriza como aquele que o eu quer

que seja visto pelos outros. Nesse sentido, pressupõe-se que o diário revela o íntimo,

entretanto, até que ponto uma ação é inteiramente real? Chega-se a conclusão de que em

várias situações o sujeito projeta um eu mostrado, que não é real, mas que tem um

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propósito para determinada ocasião: uma imagem construída para chamar a atenção ou

impressionar alguém, por exemplo.

E na história de Rufus há um jogo bastante dinâmico entre esses três eus:

primeiramente, há a presença de um eu suposto, isto é, como as pessoas caracterizam e

imaginam Rufus de acordo com suas ações e personagens de suas obras; de outro lado,

o eu mostrado, a partir da imagem que o narrador-personagem se esforça para

apresentar à sociedade, negando qualquer possibilidade contrária. Aqui, pode-se

levantar uma hipótese: Rufus não estaria manipulando, por meio do diário, a imagem de

um sujeito pacífico, já que o diário pressupõe uma autenticidade ao se esperar que o

sujeito confidencie em suas páginas aquilo que não compartilha com as pessoas? E, por

fim, o eu íntimo que não pode ser acessado pelo leitor.

El escenario íntimo posee la propiedad de ser observable sólo para el

sujeto. […] La comunicación de lo que imaginamos es, todo lo más, la

verbalización de lo imaginado, pero no la mostración de lo

imaginado. Lo íntimo puede decirse, no mostrarse. […] El escenario

de las actuaciones privadas es necesariamente observable, porque,

aunque se hagan a solas, son actuaciones exteriorizadas. […] El

escenario público, en contraste con el privado y aún más con el

íntimo, se dispone de forma tal que las actuaciones sean precisamente

observables5 (PINO, 1996, p. 19-20, grifos do autor).

O cenário, tomado como um contexto, situação ou ambiente físico é um espaço

elaborado para a representação das ações constituídas pelo sujeito e preparado pelos

agentes (personagens) na medida em que agem, se transformando incessantemente.

Assim, um mesmo lugar físico atua como diferentes ambientes. Uma prova disso é o

relacionamento entre Rufus e Clorinda/Virna: quando se encontravam na casa de Rufus

ou na casa delas para satisfazerem seus desejos sexuais, a primeira era mais centrada,

delicada, ou seja, se portava de forma donzelesca; já a segunda possuía um fogo sexual

insaciável, gostava de falar palavrões e outros impropérios que levavam Rufus à

loucura. Logo, o mesmo espaço físico se transformava segundo a situação e os

personagens que nele estavam.

5 O cenário íntimo possui a propriedade de ser observável apenas para o sujeito. [...] A comunicação do

que nós imaginamos é, no máximo, a verbalização do que se imaginava, mas não a apresentação do que

se imaginava. A intimidade pode ser dita, não mostrada. [...] O cenário das ações privadas é

necessariamente observável, porque, embora sejam isoladas, são ações exteriorizadas. [...] O cenário

público, em contraste com o privado e ainda mais com o íntimo, se dispõe de tal forma que as ações são

precisamente observáveis (tradução nossa).

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No tocante ao romance de formação (Bildungsroman) que Rufus tenta escrever,

percebe-se que o personagem conhece uma variedade considerável de técnicas de

criação literária, baseando-se naquelas utilizadas por grandes autores da literatura

mundial, porém, não consegue desenvolvê-las, talvez por cobrar tanto de si o

desenvolvimento dessas técnicas em seu texto, o que de certa forma elevaria o valor

literário de sua obra, é claro, na visão do personagem.

Esse meu novo livro não terá, como os outros que escrevi,

personagens infelizes enredados nas vicissitudes cotidianas. Será

inflado com detalhes de um episódio importante da história universal,

terá muitas páginas – os leitores gostam de romances grossos, nem

que seja para apenas colocar na estante [...]. O oposto do que estou

escrevendo aqui neste diário chinfrim (FONSECA, 2003, p. 44).

Nesse trecho, vê-se que o narrador-personagem está preocupado em escrever

uma obra de que afete os leitores de qualquer forma, pois não considera aquilo que

deseja imprimir ao texto, mas o que público gosta, como uma literatura de encomenda.

Além disso, Rufus faz questão de inferiorizar o diário, assim como o senso comum

estabelece na sociedade, como se esse gênero fosse algo desnecessário e sem utilidade

para o sujeito. Em seguida, menciona: “estou treinando a forma dialogada de escrever.

Tenho um bom ouvido, acho que estou indo bem, mas depois, na minha ficção,

pretendo usá-la com extrema parcimônia. O diálogo é sabidamente um recurso de

escritores medíocres” (FONSECA, 2003, p. 19).

Rufus utiliza o diário para ponderar e escrever um rol de recursos estilístico-

literários que podem ser utilizados em seu romance de formação, e talvez o romance

não esteja efetivamente sendo escrito justamente porque o personagem-escritor se ocupa

em descrever, listar e classificar categorias de recursos textuais em vez de utilizá-los no

texto. E o diário atua como um meio de deliberar sobre o que fazer, assumindo a forma

de um rascunho do que seria o romance, ou melhor, um projeto de texto interminável

que na verdade não ajuda a elaborar o texto em si.

Em outra passagem, o narrador-personagem explica: “gostaria de narrar tudo

através de diálogos; quando estivesse sozinho dialogaria comigo mesmo. No fundo é o

que os escritores fazem, quando não têm interlocutor, falam consigo mesmos, ou, como

se dizia antigamente, ‘falam com seus botões’” (FONSECA, 2003, p. 100). Mais uma

vez, o diário atua como esse interlocutor que recebe os desabafos dos escritores, nesse

caso os desabafos de Rufus, e permite que ele fale com seus botões.

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Sequencialmente, durante a narrativa, Rufus faz questão de evidenciar que não

consegue escrever seu romance de formação, e até menciona o escritor espanhol Vila-

Matas, autor do romance Bartleby e companhia, que narra a história de Bartleby,

empregado em um cartório de Nova York que se mostrava muito ativo na execução dos

trabalhos, mas que é tomado de uma paralisia que o impede de fazer quaisquer serviços.

Vila-Matas, o espanhol, fala na síndrome de Bartleby, um sintoma

mórbido de inspiração melvilliana que paralisa os escritores, fazendo-

os renunciar à literatura. Eu não me incomodaria de sofrer dessa

doença que acomete tantos dos meus colegas, fazendo-os desistir de

escrever. (FONSECA, 2003, p. 148).

E Rufus não se importaria em sofrer dessa doença, visto que seria uma válvula

de escape que poderia ser utilizada para exemplificar os motivos pelos quais ele não

conseguiu findar seu romance de formação, fazendo-o desistir de escrever. “O diário

pode ser uma forma de expurgar culpas, [...], um relato subjetivo sobre um processo de

escrita paralelo à escrita do próprio diário. Nele, ficariam gravadas as dificuldades, a

contabilidade de erros e acertos na geração de uma outra narrativa” (BARCELLOS,

2004, p.117).

Nesse sentido, essa válvula de escape não serviria, senão, para o próprio Rufus

aceitar sua possível inabilidade para escrever tal gênero literário; uma confirmação da

qual ele necessitava, mas que o acometesse na forma da síndrome de Bartleby para que

ele próprio não reconhecesse essa falta de competência enquanto escritor.

E, no final do romance, na última entrada, datada de 31 de dezembro, Rufus

conta que ficou preso por noventa e sete dias e faz um resumo dos principais

acontecimentos desse período em que esteve preso. Ainda nessa entrada, o narrador-

personagem dá indícios de que um novo ciclo se inicia a partir daquele momento. E, nas

linhas finais, Rufus reconhece o quanto aprendeu com tudo que escreveu no diário, e

termina dizendo: “Bildungsroman: que coisa mais boba” (FONSECA, 2003, p. 148).

Considerações finais

O mérito do romance Diário de um fescenino é desvelar e refletir sobre o

processo de escrita da obra literária e, de modo geral, da função e uso do diário, o qual

pressupõe um compromisso com a verdade imediata. E, nesse labirinto em que se

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constrói o processo de escrita, percebe-se a tentativa que Rufus estabelece para

desvincular-se de seus protagonistas. Desse modo, a escrita revelaria o sujeito?

Com base nos postulados de Pino (1996) é evidente que a escrita diarística

revela o sujeito até certo ponto, visto que existe um espaço íntimo que só pode ser

acessado pelo sujeito, mesmo quando ele verbaliza o que pensa; o leitor, como já foi

dito, se insere no espaço privado, onde as ações são apenas observáveis.

Além disso, o diário pressupõe a manipulação de um eu que escreve. É

perceptível que Rufus manipula uma imagem de um sujeito sossegado, mesmo com as

relações conturbadas que incita em seu cotidiano. E essa imagem tranquila é reafirmada

quando se interna numa casa de repouso apenas para descobrir a mãe de Clorinda, ou

quando trata das acusações de estupro de forma natural. Existe, é claro, um desejo de

resolver os problemas relativos a esse suposto crime, mas Rufus não faz questão de se

exaltar por isso, ou pelo menos, isso não é revelado/descrito no diário.

Ao longo do diário, o narrador-personagem seleciona e organiza os fatos que

deseja mostrar ao leitor no momento em que lhe convém, de acordo com a impressão

que deseja causar. E, sobre o romance de formação, percebe-se que o diário, na verdade,

cumpriu essa lacuna: de uma forma ou de outra, o diário assumiu a função de um

romance de formação ao deixar entrever a personalidade do narrador-personagem, suas

escolhas, seus dilemas, suas insatisfações e reflexões, bem como os seus prazeres.

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