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1 Metáfora do holocausto: Otto Dov Kulka e a busca da palavra sobrevivente Dirson Fontes da Silva Sobrinho 1 Resumo - O presente artigo propõe uma análise da narrativa testemunhal de Otto Dov Kulka, sobrevivente de Auschwitz; é a partir da atenção ao estatuto do testemunho de uma experiência paradigmática, o Holocausto como grande metáfora da modernidade, que se buscará esboçar como essa escrita, portadora de uma memória traumática, se situa em meio a tensões entre linguagem/silêncio, representação/trauma, memória/história, e confronta outras modalidades discursivas como a historiografia e a prosa literária. Palavras-chave: Auschwitz. Testemunho. Narrativa. Trauma. Literatura. Resume – The present work proposes a analysis of Otto Dov Kulka's testimonial narrative, a survival of Auschwitz; it’s from the attention to the constitution of the testimony of a paradigmatic experience, the Holocaust how great metaphor of modernity, which will seek delineate how this writing, that carrier a traumatic memory, is situated amid tension between, language/silence, representation/trauma, memory/history, and confront with others discursive modes as a historiography and literary prose. Key-words: Auschwitz. Testimony. Narrative. Trauma. Literature. 1- Introdução Nas últimas décadas, com cada vez mais frequência, os sobreviventes de catástrofes contemporâneas vêm externando suas memórias, em forma de narrativas autorreferentes, que durante boa parte do pós-guerra haviam sido silenciadas. Estes sujeitos são reabilitados como autores de um corpus testemunhal transpassado por uma “carga” ético política potencialmente desruptiva e caótica. O Holocausto assim, através do relato dessas experiências e frente à historiografia da “História do Tempo Presente”, pôde se estabelecer como uma experiência paradigmática; os testemunhos, modalidades mediadoras da nossa relação com aquele passado, comportam-se como “meios” de questionamento de eventos traumáticos; permitindo-nos tecer uma análise dessas próprias narrativas testemunhais. 1 Pós graduando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ (PPGHIS) pesquiso as relações entre “testemunho, trauma e Holocausto”; sob orientação da professora Monica Grin, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ-IH), e financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes-MEC). Contato: [email protected]

Dirson Fontes da Silva Sobrinho - Jornada de Estudos ... · 1 Metáfora do holocausto: Otto Dov Kulka e a busca da palavra sobrevivente Dirson Fontes da Silva Sobrinho 1 Resumo -

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Metáfora do holocausto: Otto Dov Kulka e a busca da palavra sobrevivente

Dirson Fontes da Silva Sobrinho1

Resumo - O presente artigo propõe uma análise da narrativa testemunhal de Otto Dov Kulka,

sobrevivente de Auschwitz; é a partir da atenção ao estatuto do testemunho de uma

experiência paradigmática, o Holocausto como grande metáfora da modernidade, que se

buscará esboçar como essa escrita, portadora de uma memória traumática, se situa em meio a

tensões entre linguagem/silêncio, representação/trauma, memória/história, e confronta outras

modalidades discursivas como a historiografia e a prosa literária.

Palavras-chave: Auschwitz. Testemunho. Narrativa. Trauma. Literatura.

Resume – The present work proposes a analysis of Otto Dov Kulka's testimonial narrative, a

survival of Auschwitz; it’s from the attention to the constitution of the testimony of a

paradigmatic experience, the Holocaust how great metaphor of modernity, which will seek

delineate how this writing, that carrier a traumatic memory, is situated amid tension between,

language/silence, representation/trauma, memory/history, and confront with others discursive

modes as a historiography and literary prose.

Key-words: Auschwitz. Testimony. Narrative. Trauma. Literature.

1- Introdução

Nas últimas décadas, com cada vez mais frequência, os sobreviventes de catástrofes

contemporâneas vêm externando suas memórias, em forma de narrativas autorreferentes, que

durante boa parte do pós-guerra haviam sido silenciadas. Estes sujeitos são reabilitados como

autores de um corpus testemunhal transpassado por uma “carga” ético política potencialmente

desruptiva e caótica. O Holocausto assim, através do relato dessas experiências e frente à

historiografia da “História do Tempo Presente”, pôde se estabelecer como uma experiência

paradigmática; os testemunhos, modalidades mediadoras da nossa relação com aquele

passado, comportam-se como “meios” de questionamento de eventos traumáticos;

permitindo-nos tecer uma análise dessas próprias narrativas testemunhais.

1 Pós graduando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ (PPGHIS) pesquiso as relações entre “testemunho, trauma e Holocausto”; sob orientação da professora Monica Grin, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ-IH), e financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes-MEC). Contato: [email protected]

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Portanto, o presente trabalho retoma o Holocausto como experiência traumática

através do testemunho de um sobrevivente de Auschwitz, Otto Dov Kulka. Proponho uma

leitura do testemunho com o objetivo de interpretar como essa narrativa se monta; ou seja, o

discurso daqueles que estiveram sob o jugo das SS são problematizados, de alguma forma, a

partir da “categoria” de evento catastrófico. Grosso modo, o intento é a partir de uma

qualificação da “autoridade” de um testemunho contemporâneo sondar em que medida essa

narrativa se forja indo de encontro com uma prosa ficcional despojada de preocupações com a

“verdade histórica”, ou melhor, com a correspondência entre o que é representado e a

realidade que serve a representação.

Nesse sentido, pensar como funciona o testemunho do Holocausto antecipa a

problemática entre: linguagem/silêncio, representação/factual; que, por sua vez, remete a

questão: Qual o papel que a literatura pode desempenhar no gesto testemunhal de um evento

como o Holocausto? A representação literária difere de outras modalidades discursivas que a

sua maneira dramatizam o mesmo tema? Se por um lado, a referência ao nascimento mítico

da escrita da história indaga o que seria específico do discurso da memória e da escrita do

historiador2; por outro, permito-me mimetizar essa apropriação; a literatura então é o remédio

ou veneno do testemunho de uma experiência como o Holocausto? Como essa modalidade de

discurso teria êxito em suprir as demandas de um evento traumático que se equilibra entre a

autenticidade e a dissimulação?

Essa inquietação só pôde surgir na medida em que venho tecendo certa familiaridade

com exemplares do que a teoria literária define como sendo o cânone de literatura do

Holocausto, ou, “literatura de testemunho” 3. A leitura então serve como porta de entrada

dessa interpretação que pretende trabalhar o texto testemunhal contido em uma historicidade;

é através da leitura que se estabelece não só a interlocução narrativa, mas também à tarefa

historiográfica de contextualização e recontextualização. No entanto, ao que me parece esse

interesse torna-se mais plausível quando se identifica como esses relatos reverberam no leitor,

é nesse feedback que se abre o espaço a ponderação sobre o papel da literatura.

2 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas (SP); Ed. da Unicamp, 2007, p.148-154. A referência ao mito platônico Fedro é feita por Paul Ricouer com o objetivo de questionar e situar a gênese da relação entre o que ele chama de memória viva e história escrita. 3 Refiro-me, sobretudo, as narrativas testemunhais com enfoque no Holocausto. Podem-se citar, a despeito de diferenças de estilo e experiências subjetivas, os seguintes sobreviventes estudados como parte do cânone da literatura de testemunho: Paul Celan, Victor Klemperer, Jorge Semprum, Aharon Appelfeld, Adam Czerniakow, Calel Perechodnik, Robert Antelme, Georges Perec, Charlotte Delbo, Ruth Kluger, Maurice Blanchot, Jean Cayrol, David Rousset, Art Spiegelman. Dentre esses ressalto a importância específica de Primo Levi autor cuja obra foi analisada por mim no trabalho monográfico de conclusão do curso da graduação.

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Uma das minhas primeiras impressões ao ler um testemunho de autoria de um

sobrevivente de Auschwitz 4faz parte da origem da análise aqui proposta já indicando uma

correspondência aonde se quer chegar, ou seja, a aposta é que quando mais o testemunho se

mostra forjado e elaborado, mais ele tende a mobilizar o diálogo. Relembro a referida

reflexão: a escrita parece nos fazer embarcar em uma viagem marcada por angústias, porém

prazerosa, em um fluxo contínuo interminável de busca por perguntas para as quais quiçá

haverá respostas, travessia que ocorre de forma singular, posto que é mediada por uma escrita

não linear, fracionada, utilizada quase como um escape entre a memória e o esquecimento.

Não é fácil questionar como a literatura está imbricada na narrativa testemunhal. Para

situar essa ambição é necessário invocar a condição de sobrevivente de Otto Dov Kulka, ou

seja, como essa condição mobiliza o seu testemunho? 1) Em que medida o testemunho de

Dov Kulka dialoga com os testemunhos estabelecidos como cânone por uma tradição de

representação do Holocausto 2) Como os textos historiográficos, escritos por Dov Kulka,

estão relacionados com que ele chama de sua “reflexão não científica” 3) De que modo essa

reflexão é fruto de uma afinidade literária entre o autor e escritores ficcionais contemporâneos

como W.G Sebald e Elias Canetti; o que poderia ser indício de uma “elevação” das relações

entre a representação histórica e a narrativização ficcional do Holocausto.

2- Jerusalém à Praga: uma estrada a Auschwitz.

Otto Dov Kulka nasceu em abril de 1933, em Nový Hrozenkov pequena cidade da

então Tchecoslováquia, ano em que os nazistas haviam acabado de assumir o poder e iniciado

o processo de promulgação das primeiras leis antissemitas; em 1942 foi mandado ao gueto de

Theresienstadt, situado nos arredores de Praga, e posteriormente, junto à mãe Elly, alistou-se

ao comboio que faria o transporte a Auschwitz. Quando partiram prometeu aos amigos

escrever relatando sobre o campo de concentração. Às vezes, junto a outras crianças, brincava

com o que chama de “pequena morte” se arriscando próximo ao arame farpado na certeza de

que a morte era um destino inexorável; escapou quando seus assassinos o levaram a

enfermaria para tratar de uma difteria. Em janeiro de 1945, com a eminência da derrocada

nazista, Dov Kulka e seu pai foram forçados a deixar o campo nas “marchas da morte” de

onde conseguiram escapar de vez.

Em 1949 ambos embarcaram em um navio em direção a Israel; chegando a Jerusalém

Dov Kulka adquiriu cidadania israelense, foi trabalhar em um kibutz e iniciou os estudos em

4 O livro foi É isto um Homem? Escrito, por Primo Levi, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial.

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história judaica contemporânea; anos mais tarde, como especialista nos estudos do

Holocausto, passou a corresponder-se com preeminentes pesquisadores, entre eles: Saul

Friedlander, Ian Kershaw, Katarina Bader, Omer Bartov, Sussanne Heim, Dan Laor, Dimitry

Shumsky, Susann e Urban e Moshe Shedletzki, Martin Broszat. Em 1978 viajou a Polônia, já

na condição de professor de história judaica da Universidade Hebraica de Jerusalém, ocasião

na qual participou de uma conferência científica internacional e terminou por fazer uma visita

a Auschwitz. Foi a partir desse momento que deu iniciou ao processo de rememoração e

escrita de suas memórias, que permaneceram durante anos “escondidas” do grande público e

só vieram à tona recentemente com a publicação de “Paisagens da metrópole da morte:

reflexões sobre a memória e a imaginação”.

O testemunho, escrito originalmente em hebraico, possui dez capítulos transcritos a

partir de gravações em áudio semelhantes a um “diário falado”; no que se segue, encontram-

se três capítulos com excertos de diários que registraram passagens da memória como sonhos

Kafkianos. Há também um componente visual que acompanha as passagens literárias;

fotografias (em sua maioria de coleções particulares e algumas de arquivo oficial5), gravuras,

desenhos infantis, fac-símiles. O livro resulta em uma forte escrita marcada por alegorias,

prosa poética e metáforas conhecidas desde o título, “Paisagens da Metrópole da Morte”, e

apresentadas em capítulos armados no plano da fantasia e da criação; o relato permite a

reflexão de como a literatura, e os recursos que esta disponibiliza, pode estar contida na

construção de uma narrativa que tenta (re)apresentar o Holocausto.

O percurso biográfico de Dov Kulka se entrecruza com as próprias condições e

circunstâncias de escritura de “Paisagens da Metrópole da Morte” reforçando a possibilidade

que considera que o seu testemunho não só remete, mas exprime certa historicidade

atravessada por experiências de violência, exílio e configuração de uma nova identidade

cultural (individual e coletiva); já que Auschwitz foi para Dov Kulka uma “experiência

infantil” que teve que ser reelaborada em uma nova ambiência social. Com isso quero

enfatizar que a construção do seu testemunho não é autônoma, ela se dá em meio a tensões

entre texto/contexto.

Podemos pensar primeiro até que ponto, ao longo dessa longa trajetória (pessoal e

literária), “Paisagens da Metrópole da Morte” incorpora elementos e técnicas narrativas

provenientes do que a teoria literária convencionou denominar “literatura de testemunho”;

5 Esses arquivos encontram-se sob guarda de diferentes instituições como: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos; Museu Estadual de Auschwitz-Birkenau; Museu Judaico de Praga, Museu de Stutthof, Biblioteca do congresso americano e o Museu Yad Vashem.

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definida como: “uma face da literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes que faz

com que toda a história da literatura – após 200 anos de autorreferência – seja revista a partir

do questionamento da sua relação e de seu compromisso com o real” 6. Portanto, é necessário

o “confronto” com outros testemunhos literários escritos por sobreviventes do Holocausto;

penso, sobretudo, em Primo Levi, Jean Améry, Ruth Kluger e Gerhard Durlacher7. Essa

“comparação” será mediada através da identificação de elementos que parecem se repetir

como uma tópica nesse “tipo de literatura”.

Desconfio que na medida em que a análise literária verifique como esses elementos

aparecem em “Paisagens da Metrópole da Morte” isso facilite perceber uma proximidade da

narrativa de Dov Kulka com a “literatura de testemunho”, ou, ao menos com aquilo que se

reconhece como tal. Wilberth Salgueiro8 elenca alguns desses traços que seriam

característicos da “literatura de testemunho” como: o registro narrativo em primeira pessoa; o

compromisso com a sinceridade do relato pretendido; o desejo incontornável de alguma forma

de reparação e justiça; a vontade de resistir e não se conformar frente à violência e o

autoritarismo; a ênfase em um valor ético da fala em oposição ao valor estético; a dimensão

coletiva do relato; a presença do trauma físico e moral; a existência de certo rancor e

ressentimento; o estreito vínculo com a história político-social; a presença de um sentimento

de vergonha e culpa e a admissão da impossibilidade de representar algo inimaginável.

Em um segundo momento, atentar para o fato de como o texto de Dov Kulka pode

estar contaminado por sua condição não só como um sobrevivente de Auschwitz, mas

também como um pesquisador acadêmico; ou seja, deve ser considerado que a sua busca

“inconsciente” por uma "ética da representação" do Holocausto convergiu, de modo

simultâneo, não só ao debate ocorrido em Israel, durante o pós-guerra, sobre a formação das

identidades socioculturais judaicas, assim como, ao desenvolvimento da sua própria atividade

historiográfica. Há dois aspectos a se observar; 1) Dentre os elementos culturais formadores

de uma identidade israelense contemporânea, como a literatura exerce seu papel diante dos

sobreviventes do Holocausto, como ela se serve e é servida por aqueles que de algum modo

6 SELIGMANN-SILVA. “Testemunho e a Política da Memória: o Tempo Depois Das Catástrofes.” Revista PUC-SP. São Paulo: Proj. História, v. 30, p.85, jun. 2005 7 Esses dois últimos, ambos sobreviventes de Auschwitz, tiveram uma trajetória parecida com Otto Dov Kulka; ainda crianças foram submetidos à experiência do campo de concentração; passaram pelo gueto de Theresienstadt e anos depois, começaram a escrever um testemunho sobre aquilo que haviam vivenciado. Essa escolha de “experiências biográficas” similares serve ao exercício de pensar como a partir de uma mesma vivência a narrativa literária pode apresentar pontos de aproximação em relação ao modo como arranja e representa o passado traumático. 8 Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

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buscam representar o irrepresentável? 2) Como a formação de historiador de Dov Kulka, vista

como produção discursiva, influi no nosso objetivo de “significação literária” dessa narrativa?

No artigo “Jewish Society in Germany as Reflected in Secret Nazi Reports on “Public

opinion 1933-1945”, publicado em On Germans and Jews under the Nazi Regime 9, Dov

Kulka investiga como a cúpula Nazifacista obtinha uma visão panorâmica da sociedade

alemã através de relatórios secretos preparados pelos serviços de segurança da

SS, da Gestapo e de distritos locais; esses documentos serviam como fontes confiáveis de

prevenção ao “humor popular” principalmente em relação a aqueles considerados “inimigos

ideológicos” do regime, dentre eles os distintos grupos políticos judaicos. No momento em

que justifica o seu interesse pelo tema Dov Kulka mobiliza conceitos como imagem da

história e memória; esse impulso a princípio estritamente historiográfico estaria descolado de

sua condição de sobrevivente de Auschwitz? Em que medida a opção em “contornar” a

condição de sobrevivente ao invés de imprimir a sua narrativa historiográfica uma isenção,

pelo contrário, a impregna com o modo como arranja a sua “mitologia particular”?

O artigo parece se corresponder com parábola kafkafina que serve de epígrafe

a “Paisagens da Metrópole da Morte”, “Permaneceu ali a inexplicável paisagem de ruínas – A

história tenta explicar o inexplicável. Como sai de um solo verdadeiro, tem então de terminar

no inexplicável”. Essa referência a Kafka, que é recorrente, não nos exime de qualificarmos

a literatura com a qual Dov Kulka dialoga; ela é uma “herança cultural” pré-

Holocausto ressignificada pelos sobreviventes e mobilizada por contingências político-

ideológicas? Ou é uma literatura que, admitindo semelhanças com a produção narrativa

ficcional da virada do século XX, se forja em um contexto contemporâneo (penso em Sebald)

sob impacto de certo mal-estar (entendido como elemento constitutivo da cultura e da

sociedade pós-moderna) e, portanto informa de algum modo sobre as questões levantadas

pela temática da narrativização do Holocausto?

9 Este livro, apresentado como volume único de uma compilação de artigos acadêmicos e dedicado a Dov Kulka, reúne estudos de autoria de eminentes historiadores alemãs, israelenses e britânicos que se dedicam, ao longo de três gerações, a pesquisa sobre diversos aspectos da vida judaica sob o Nazifacismo. A concepção da política Nazista imposta aos judeus e atividade da sociedade judaica, frente ao processo que veio a ser conhecido como “Solução Final”, é analisada através de três grandes eixos que organizam as seções do livro: 1) o controverso papel historiográfico dos historiadores alemãs que se dedicaram a pesquisa do Holocausto no pós-guerra, 2) o antissemitismo até os anos 50 e o reconhecimento do Holocausto pela sociedade alemã e 3) as novas formas e estratégias de sobrevivências desenvolvidas pela sociedade judaica até o começo das ações de deportação em massa do Gueto de Varsóvia para o campo de concentração de Treblinka (o artigo de Dov Kulka abre esta seção). Há ainda uma última seção dedicada às relações entre a memória e a historiografia onde Dov Kulka reaparece em In search of History and Memory; fragmento este que compõe um homônimo capítulo em “Paisagens de Metrópole da Morte”.

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3- O caso Wilkomirski: uma intersecção entre a história e ficção

Retomo um caso, emblemático na “literatura de testemunho”, que situa de modo

evidente o meu objetivo no trato com “Paisagens da Metrópole da Morte”, e provoca uma

inevitável problematização dos três tipos de discurso (testemunho, literatura e historiografia).

Supondo-se que esse trabalho houvesse desprezado que Otto Dov Kulka é um sobrevivente de

Auschwitz; ou que “Paisagens da Metrópole da Morte” fosse uma reflexão, não acadêmica, de

alguém que só indiretamente foi tocada pela experiência dos campos de concentração como

um professor especialista no tema do Holocausto, ou mesmo um filho de pais que escaparam

do genocídio nazista, portanto herdeiros de “segunda geração” de uma experiência traumática;

essa omissão seria benéfica em relação ao objetivo de identificar/atribuir à especificidade da

narrativa testemunhal? Como se comporta essa narrativa? É uma autobiografia? É um

memorialístico? As respostas a essas perguntas estariam facilitadas? O tencionamento dos

limites entre a história e a ficção poderia assim ser mais bem exposto?

Foi exatamente isto que aconteceu, porém pelo caminho inverso, na recepção da obra

“Fragmentos- Memória de uma infância 1939-1948”, de autoria de Binjamim Wilkomirski. O

livro, publicado em 199510 na Alemanha pela editora Suhrkamp e editado no Brasil em 1998,

fora a princípio recebido, em uma resenha feita para o jornal Folha de São Paulo, pelo

destacado estudioso do Holocausto Márcio Seligmann-Silva, como “um dos exemplos

máximos” da chamada “literatura de testemunho”, esta, segundo ele, “uma das maiores

contribuições que o século XX deixará para rica história dos gêneros literários.” 11 um

entusiasmo é percebido na última sentença da resenha, quando profere; “Num certo sentido,

também nós somos agora levados a escrever como o autor: Eu Vi! Eu Vi!” 12

O vertiginoso sucesso de “Fragmentos”, verificado a época, fez com que o mesmo

fosse traduzido em inúmeras línguas e servisse de inspiração a filmes e peças de teatro. Logo

após a publicação Wilkomirski foi chamado a dar palestras em universidades européias e

norte-americanas, assim como, solicitado a falar em escolas sobre a sua experiência de vida.

Em resumo o livro narra a história da sua primeira infância atravessada nos campos de

concentração nazistas de Majdanek e Auschwitz, ambos na Polônia e, posteriormente, uma

passagem por um abrigo para crianças na Suíça quando o seu nome é trocado, não se sabe por 10 ELMIR, C. P. “O caso Binjamin Wilkomirski: a dupla invenção da memória.” Anos 90. Porto Alegre: UFRGS Impresso, v. 15, n.28, p. 41-55, dez. 2008. Cláudio Pereira Elmir lembra que neste mesmo ano foi comemorada a efeméride dos 50 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, portanto um momento propício à produção cultural relacionada à temática do Holocausto; o que pode ajudar a explicar a ampla recepção positiva ao relato de Binjamim Wilkomirski. 11 SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção.” Revista do mestrado em Letras da UFSM. Santa Maria (RS): UFSM/CAL, n. 16, p. 20, janeiro/julho/1998. 12 Ibid, p.23

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que, para Bruno Grosjean e, depois de adotado, para Bruno Dossekker. Os leitores, portanto

acessam o absurdo da violência e da brutalidade como episódios de comboios de crianças

sendo assassinadas e tantos outros perecendo de fome e frio.

Contudo se descobriu que “Fragmentos” era na verdade fruto de uma fraude literária,

Wilkomirski só havia estado em um campo de concentração na “condição de turista”. O

responsável pela descoberta, publicada em um jornal suíço, foi o escritor judeu Daniel

Ganzfried que fez uma investigação sobre a identidade do autor. Segundo a reportagem

Wilkomirski era um personagem criado por Bruno Dossekker. A reação do editor norte-

americano foi surpreendente: “Artur Samuelson, da Schocken Books, declarou (...)

Fragmentos é um bom livro... Só é fraude se você chamá-lo de não ficção.” Não é o autor que

falsifica, mas sim o leitor, quando afirma que no caso de Fragmentos se trata de um relato

factual.13 Wilkomirski, tentando desembaraçar-se de uma acusação ético-moral, se limitou em

rebater a denúncia acusando Ganzfried de ser um conspirador e justificando que o pósfácio do

livro já indicava incoerências em relação as suas memórias, sendo assim os leitores estariam,

desde o princípio, livres para ler o seu livro como literatura ou como um documento pessoal.

Portanto, Wikomirski falsifica uma identidade e ainda, depois de descoberto, deixa de

assumir seu relato como uma narração literária; justamente o contrário do que faz Dov Kulka,

que diante da ressalva a factualidade de seu testemunho, assume desde o princípio que a sua

narrativa projeta-se aquém de uma mera descrição; “(...) também estou ciente de que estes

textos, mesmo ancorados em acontecimentos históricos concretos, transcendem a esfera da

história.” 14 Se Otto Dov Kulka tivesse omitido a informação que é um sobrevivente de

Auschwitz, dado que Wilkomirski forjou, “Paisagens da Metrópole da Morte” teria tido a

mesma recepção elogiosa que teve quando foi publicado? Nesse caso a fronteira entre a ficção

e história seria mais facilmente traçada?

4-Conclusão

O desmascaramento do embuste literário de Wilkomirski traz algumas considerações à

observação historiográfica das relações entre trauma, testemunho e literatura. 1) A

representação testemunhal do Holocausto desloca a ênfase na “confissão de autenticidade” do

testemunho para a preocupação em se perscrutar essa narrativa; 2) Assim a informação de que

se foi sobrevivente de Auschwitz não basta para atestar essa ou aquela narrativa como um

13“( ...) Fragments is a pretty cool book... It’s a only a fraud if you call it non-fiction.”HEUER, 2006, p.42 apud ELMIR, 2008, p.46. 14 SELIGMANN-SILVA, 1998, p. 30-32.

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bom relato; e nem mesmo “enquadrá-lo” como sendo “literatura de testemunho”; 3) Nenhum

testemunho é fechado em si, ou seja, auto-validável, ele depende de uma intertextualidade, um

diálogo entre texto e contexto, autor e leitor. 4) A dinâmica do testemunho comporta uma

dimensão interna e externa dessa narração que a situa no tempo e no espaço, por isso o

testemunho não deve ser interpretado como uma narrativa sui generis.

Com isso não quero sugerir um relativismo da realidade ontológica e nem tão pouco

desprezar a responsabilidade ético-moral implicada em uma dissimulação literária, como faz

Wilkomirski, no entanto, a questão que se coloca é: o mero acesso a um conteúdo descritivo

factual não basta a uma interpretação literária que pretende ser o mais cautelosa e objetiva

possível; nenhuma reconstrução biográfica, por mais completa que seja, pode por si só

legitimar a qualidade e atribuir o significado de dado testemunho. Isso porque no processo de

leitura ocorre uma troca entre o autor e o público; uma espécie de “pacto literário” sustentado

entre os “mecanismos” internos da obra e as próprias intenções do leitor. Indicando assim,

uma dimensão estética do texto testemunhal que, em certa medida, neutraliza a importância

dispensada a sua dimensão ética.

Nesse sentido, parece ser indispensável, como no caso de Wilkomirski, reconstruir

parcialmente, a recepção a “Paisagens da Metrópole da Morte”, isso porque tanto a crítica

literária, quanto pesquisadores ligados ao estudo do Holocausto operam e observam todo um

aparato narrativo que gira em torno da construção de algum tipo de verdade. A atribuição de

algum significado(s) a narrativa de Dov Kulka pode surgir através da constatação de uma

gradação “compatível” entre “normas literárias” que se esperariam ser mobilizadas pelo texto

testemunhal com as “expectativas de veracidade” criadas antes e durante o processo de

leitura. Portanto, essa “balança literária”, que procura conferir “peso” ao testemunho possui

dois grandes pratos; a recepção à obra e a prescrição de gêneros, é nesse embate que iremos

trabalhar.

A despeito do rápido reconhecimento que fez com que “Paisagens da Metrópole da

Morte” fosse aclamado como “o maior livro sobre Auschwitz desde Primo Levi” e “um dos

essenciais livros que apareceram nos últimos anos”; recebesse prêmios como Jewish

Quartely-Wingate15, onde na opinião da presidente do júri de Rachel Lasserson, “O autor

nascido na Tchecoslováquia conseguiu o impossivel; uma nova linguagem mitológica e

15 O Jewish Quarterly-Wingate Prize, prêmio literário britânico estabelecido em 1977 por Harold Hyam Wingate, é o único prêmio literário de língua inglesa de reconhecimento para escritores judeus e não judeus que exploram, de alguma forma, temas relacionados à história judaica, sendo assim, um dos maiores prêmios de prestigio da área. Dentre os vencedores encontram-se além de Dov Kulka; Amos Oz (2005 e 2011); David Grossman (2004 e 2013); Zadie Smith (2003); Imre Kertesz (2006); Oliver Sacks, que dividiu o prêmio de 2002 com W.G Sebald, entre outros.

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estranhamente linda para viver com Auschwitz "16, ganhasse destaque no The Guardian, na

revista alemã Spiegel, e no site da Universidade de Harvard; escolhi uma resenha de Judith

Lyon Caen onde há alguns apontamentos que correspondem ao objetivo proposto.

Judith Lyon Caen, na revista Lavie des idees, parte justamente de um questionamento

da função da literatura na escrita de “Paisagens da Metrópole da Morte”; atenta para o dilema

em que se situa o testemunho de Dov Kulka entre as preocupações da escrita da história,

advindas da sua formação como historiador, e as especificidades de um testemunho

traumático. Se por um lado a abstenção de Dov Kulka em detalhar sua biografia pode indicar

uma “ambição” literária, por outro essa omissão pode ser vista como um vício de sua

atividade como pesquisador do Holocausto; é como se o terreno do testemunho lhe

provocasse aflição “o que eu estou fazendo aqui, na verdade, contraria todas as minhas

decisões, todos os meus sentimentos, toda consciência das minhas limitações, ou limitações

primordiais que me vem à mente: limitações de linguagem, principalmente dúvidas sobre a

minha habilidade de mesclar essas paisagens mitológicas como paisagens passíveis de serem

transmitidas.” 17

Lyon Caen, pesquisadora das relações entre história e literatura, ressalta que nos

últimos dois capítulos do livro, “Rios que não podem ser atravessados e a Porta da Lei” e “Em

busca da história e da memória”, Dov Kulka discorre sobre as relações entre a dimensão

irredutível da sua experiência e a possibilidade de transmití-las (preocupação de quem se

acostumou durante anos a produzir reflexões acadêmicas); justificando assim o porquê de não

ter tido contato mais estreito com obras artísticas (cinema, literatura, artes visuais) que tentam

descrever Auschwitz, esse distanciamento se deu porque esses trabalhos só lhe causavam

estranhamento, e não um meio de entender e vivenciar o Holocausto; Dov Kulka chega

mesmo a indagar o porquê de outras pessoas conseguirem traçar essa “comunicação” com o

evento e ele não, haveria algo de errado consigo?

Porém, logo em seguida recorre justamente à literatura, mais especificamente ao conto

do homem diante da Porta da Lei, e faz uma analogia em que “Paisagens da Metrópole da

Morte” funciona como a porta de acesso aquilo que havia sido silenciado em suas memórias;

como no conto essa porta está aberta a todos, mas só existe para um só, no caso si próprio, a

possibilidade de que “Paisagens da Metrópole da Morte” sirva a mais pessoas estaria em

aberto, já que a própria porta da lei Kafkafiana, que serviria a uma só pessoa, foi aberta por

16 “Czechoslovakia-born author had "achieve[d] the impossible; a mythological and strangely beautiful new language for living with Auschwitz.” FLOOD, Alison. “ Otto Dov Kulka's Holocaust account wins Jewish Quarterly-Wingate prize.” The Guardian, 28 fev.2014, Culture. 17 KULKA, DOV, 2014, p. 104

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Dov Kulka; “Será que outros conseguirão entrar pela porta que abri aqui, que permanece

aberta para mim? É possível que sim, pois essa porta que Kafka abriu que se destinava a uma

única pessoa, a K, Josef K, na verdade está aberta a quase todos. Mas para ele havia apenas

uma porta que dava acesso a sua mitologia particular.” 18

Essa preocupação com a escolha de uma “abordagem discursiva” que pudesse fazer

ressonância a tensão entre a reflexão pessoal da memória e a pesquisa histórica impessoal é

exposta desde a introdução do livro. Dov Kulka ao apresentar suas “paisagens do Auschwitz

da infância” dirige-se aos leitores de seus textos historiográficos fazendo uma “ressalva” a

impossibilidade de manter a mesma linguagem objetiva diante da tarefa de narração daquele

passado que havia “cindido” da sua atividade como historiador “poucos sabem da existência

de uma dimensão de silêncio dentro de mim, de uma escolha que fiz: separar o biográfico do

passado histórico. (...) este livro revela tensões imanentes: o confronto entre imagens da

memória e a representação da pesquisa histórica.” 19 a sua narrativa possuiria algo da ordem

do imponderável “Essas gravações não são um testemunho histórico, nem um relato

autobiográfico, mas uma série de reflexões de alguém que, dos cinquenta e tantos anos até o

sessenta e tantos, revolveu na mente os fragmentos de memória e imaginação.” 20

Em resumo, do ponto de vista da pesquisa historiográfica, a proposta de análise

literária de “Paisagens da Metrópole da Morte” se desdobra na problemática da verdade do

texto literário, ou seja, em que medida o testemunho do Holocausto é capaz de descrever e

representar aquilo que é o seu referente factual. Essa questão de verossimilhança pode ser

tomada em dois níveis 1) A mediação do que seja essa relação entre o real/ficcional,

trauma/imaginação deve ser concebida sob a lógica moderna de julgamento da lingüística face

a literatura assim não faz sentido indagar sobre a verdade ou falsidade da escrita de Dov

Kulka, antes, retomando a poética aristotélica, a “verdade” se dá entre o testemunho e aquilo

que os leitores reconhecem como sendo a realidade, surge então um “terceiro discurso”,

autônomo ao livro, que funciona como arbítrio narrativo 2) Há ainda a relação do próprio

livro com regras que determinam a divisão em gêneros literários, como “literatura de

testemunho”. Portanto esses dois “níveis de verossimilhança” não são absolutamente

excludentes, eles interagem nas relações autor/leitor, obra/gênero.

18 Ibid, p.107. 19 Ibid, p.12. 20 Ibid, p.11.

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Logo, a “literatura no testemunho”21 parece surgir não no seu sentido estreito de um

discurso subdividido em gêneros e marcador de distinção entre fato e ficção, mas uma

abordagem discursiva peculiar da linguagem; no limite seria uma forma especial de dispor a

palavra, se diferenciando da fala comum e cotidiana. Desse modo, o testemunho de Dov

Kulka parece insinuar um discurso que ao mesmo tempo em que corresponde aos seus anseios

em tornar seu passado inteligível e vivê-lo como uma eterna lembrança no presente, dialoga

com outros “tipos de literatura”: a tradição testemunhal, a escrita historiográfica e a narrativa

ficcional; essas podem até não nos transpor a Auschwitz, mas servem como “portas

kafkafianas” de interpretação a “Paisagens da Metrópole da Morte”; uma narrativa que se

confunde com o próprio sentido da literatura na cultura contemporânea:

Competindo com outras formas de simbolizar (...), falando daquilo que se cala, oposta, por seu excesso, por sua permanente dissipação de sentidos, a economia que rege uma relação normal: a literatura é, pelo menos desde o século XIX, quase sempre incômoda e, por vezes, escandalosa. Acolhe a ambigüidade ali onde as sociedades querem bani-la; diz, por outro lado, coisas que as sociedades prefeririam não ouvir; com argúcia e futilidade, brinca de reorganizar os sistemas lógicos e os paralelismos referenciais; dilapida a linguagem porque a usa perversamente para fins que não são apenas prático-comunicativos; cerca as certezas coletivas e procura abrir brechas em suas defesas; permite-se a blasfêmia, a imoralidade, o erotismo que as sociedades somente admitem como vícios privados; opina com excessos de figuração ou imaginação ficcional, sobre história e política; pode ser cínica, irônica, trabalhar a paródia, dar um caráter cômico a temas, que por consenso ou imposição são dados por sérios ou proibidos; pode, no limite, falar sem falar, usar a linguagem para não dizer nada em particular, exibir essa impossibilidade na cena dos textos; falsifica, exagera, distorce porque não acata os regimes de verdade dos outros saberes e discursos. Mas nem por isso deixa de ser, a seu modo verdadeira. 22

Fontes primárias FLOOD, Alison. “Otto Dov Kulka's Holocaust account wins Jewish Quarterly-Wingate prize.” The Guardian, 28 fev.2014, Culture. KULKA, Dov. Paisagens da metrópole da morte: reflexões sobre a memória e a imaginação. São Paulo: Companhia das letras, 2014. Tradução Laura Teixeira Motta. LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988. Tradução de Luigi Del Re.

Bibliografia

21 Como se refere Terry Eagleton a literatura deve ser vista como uma abordagem discursiva peculiar da linguagem. No limite, a literatura seria uma forma especial de dispor a palavra se diferenciando da fala comum e cotidiana; validada como tal, não por uma essência específica, mas por artifícios que o leitor reconhece que lhe são peculiares. Pensar a literatura desse modo é considerá-la quase como um todo poético. 22 SARLO, B. “Os militares e a história – contra os cães do esquecimento.” Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, p.26-28, 1997.

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ELMIR, C. P. O caso Binjamin Wilkomirski: a dupla invenção da memória. Anos 90 (UFRGS. Impresso), v. 15, n.28, dez. 2008, p. 41-55. KULKA, DOV. Jewish Society in Germany as Reflected in Secret Nazi Reports on Public Opinion 1933-1945, in On Germans and Jews under the Nazi Regime; Jerusalem, The Hebrew University Magnes Press, 2006. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP; Ed. da Unicamp, 2007. Tradução: Alain François. SALGUEIRO, Wilberth. O Que é a Literatura De Testemunho (E Considerações Em Torno de Graciliano Ramos, Alex Polari e André Du Rap). Matraga, Revista de Estudos Lingüísticos e Literários do Programa de Graduação em Letras da UERJ- Vol.19, n.31. jul-dez, 2012, p.284-303. SARLO, B. Os militares e a história – contra os cães do esquecimento, in Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997. SELIGMANN-SILVA. Testemunho e a Política da Memória: o Tempo Depois Das Catástrofes. Revista PUC-SP. Proj. História, São Paulo (30), jun. 2005, p.71-97. Disponivel em http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/2255/1348. SELIGMANN-SILVA. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção. Revista do mestrado em Letras da UFSM. Santa Maria (RS): UFSM/CAL, n. 16, p. 20, janeiro/julho/1998.