110
Maria José de Morais Pereira Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da trajetória de vida de duas professoras do Ensino Fundamental. Dissertação de mestrado apresentada ao Mestrado em Educação, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a obtenção do grau em Mestre de Educação Orientadora: Professora Doutora Magali de Castro Belo Horizonte – 2.000

Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

  • Upload
    hatuyen

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Maria José de Morais Pereira

Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da trajetória de vida

de duas professoras do Ensino Fundamental.

Dissertação de mestrado apresentada ao Mestrado em Educação, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a obtenção do grau em Mestre de Educação

Orientadora: Professora Doutora Magali de Castro

Belo Horizonte – 2.000

Page 2: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Dissertação defendida e aprovada no dia ___________________________

______________________________________________________________

Professora Orientadora Doutora Magali de Casto

______________________________________________________________

Professora Doutora Edil Vasconcelos de Paiva

______________________________________________________________

Professora Doutora Ana Maria Casasanta Peixoto

2

Page 3: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“Chama-se violento ao rio que tudo arrasa.

Ninguém diz violentas as margens que o

comprimem.”

Brecht

3

Page 4: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Ao Homero e Maria Virgínia

4

Page 5: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

AGRADECIMENTOS

À Helena e Maria das Graças que deram “vida” às Teorias de

BOURDIEU, DURKHEIM e FOUCAULT.

À Professora Doutora Magali de Castro, mais que orientadora,

incentivadora do meu trabalho.

Ao Licério pelo apoio e paciência.

A todos que facilitaram-me a apaixonante tarefa de pesquisar e

escrever.

5

Page 6: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

RESUMO

A disciplina e o castigo na escola constituem a questão central que orienta os

estudos e a investigação da ação pedagógica de duas professoras do Ensino

Fundamental. Tendo como foco de reflexão a formação dos pilares da

disciplina sob a forma de “habitus” no âmbito familiar e a consolidação desses

“habitus” disciplinares na formação escolar, buscou-se, através do estudo das

trajetórias de vida das duas professoras, analisar a influência, na prática

pedagógica, dos “habitus” disciplinares consolidados durante suas trajetórias.

O estudo foi realizado à luz dos aportes teóricos de Durkheim, Foucault e

Bourdieu. O diálogo dos dados com a teoria de Durkheim e Foucault, que

abordam, respectivamente, a disciplina a partir da noção de moral e da

noção de normalização, permitiu o desvendamento dos conceitos e das

representações que orientam o processo de disciplinamento das duas

professoras. Os estudos sobre “habitus” na teoria de Bourdieu, sustentaram a

análise da influência, na prática pedagógica, dos “habitus” disciplinares

consolidados em suas trajetórias de vida. A sobrevivência dos castigos

escolares, constatada ao longo da pesquisa, aponta para a necessidade da

reflexão sobre ações autoritárias e coercitivas ainda em vigor em algumas

escolas, no sentido da construção de uma prática pedagógica que tenha como

fundamento da disciplina não ameaças e castigos, mas a compreensão do

sentido e da necessidade das regras para a construção de uma sociedade

mais justa e solidária.

Palavras-chave: Castigo, Disciplina, “Habitus” disciplinares, Indisciplina,

Prática pedagógica, Trajetórias

6

Page 7: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

SUMMARY

The discipline and punishment in a school’s development was the central

question that surrounded the studies and investigations of teaching practices

of two teachers who were teaching Basic Education. The reference used in the

formation of the reserch in education. The teachers in this study were analysed

in regard to their teaching pratices to assatain the probability of influences from

the former mentioned disciplines. This research and study was conducted in

accordance to the theories propounded by Durkheim and Foucault. These

theories broached respectively the disciplines of moral obligations and the

adherence to rules and regulations. The two teachers were observed in their

representations of teaching pratices against the Durkheim and Foucault

theories and in addition the theories of Bourdieu where applied to elicit if any

divergence from the two teachers habits according by Durkheim and Foucault.

The Bourdieu theory establishes the likelyhood of personal influences that can

unwittingly be practiced during the two teachers teaching practices. This

investigation and study related these theories to certain shool’s administration

and their establishment of discipline and punishment. The objective of applying

the Durkheim, Foucault and Bourdieu theories was to elict possible links

between authoritarian and coercive rules of threats and punishments with the

need to develop though education a just and friendly society.

Key-Words: punishment, discipline, habitus of discipline, indiscipline, teaching

pratices, trajetory.

7

Page 8: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

ÍNDICE

Introdução ....................................................................................................10

Capítulo 1 – Uma leitura da Disciplina e das formas de Disciplinamento

em DURKHEIM e FOUCAULT. .............................................16

Capítulo 2 – O habitus na trajetória de vida dos professores: uma

abordagem em BOURDIEU. ..................................................26

Capítulo 3 – O Estudo de trajetórias de professores: uma abordagem

da história oral para o estudo da disciplina e do

disciplinamento. .....................................................................32

Capítulo 4 – Os professores e suas trajetórias de vida - Disciplina e

disciplinamento: da concepção à ação ...................................39

4.1 Duas trajetórias em um mesmo tempo: algumas

referências contextuais. ..................................................40

4.2 A vivência da questão disciplinar no âmbito da família:

formação dos pilares da disciplina. .................................44

4.3 Disciplina e disciplinamento na trajetória escolar:

consolidação de “habitus” disciplinares e formação de

novos “habitus”. ..............................................................48

4.4 Disciplina e disciplinamento na trajetória profissional:

reflexo dos “habitus” na prática pedagógica. ..................53

4.5 Conceitos e representações sobre disciplina e

disciplinamento e “habitus” disciplinares consolidados ao

longo da trajetória. ..........................................................68

8

Page 9: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Capítulo 5 – Disciplina e disciplinamento na relação pedagógica: a visão

de outros agentes ..................................................................81

Conclusão ...............................................................................................86

Anexos

1 – A história de vida de Helena: Construção da vida profissional a

partir de um ideal. ................................................................................95

2 – A história de vida de Maria das Graças: ser professora

como conseqüência natural da formação escolar. ..............................98

3 – Roteiro da entrevista com as professoras. ..........................................100

4 – Roteiro da entrevista com os agentes – diretores, supervisores .........104

5 – Roteiro da entrevista com os agentes – ex-alunos. .............................105

Referências Bibliográficas ...........................................................................107

9

Page 10: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

INTRODUÇÃO

A questão da (in)disciplina na sala de aula é familiar para todos aqueles

que se acham envolvidos com o processo educacional. Professores e alunos

de todas as épocas, possivelmente, guardarão na lembrança episódios

relacionados aos prêmios e castigos na sala de aula.

Minha preocupação com essa questão emerge de uma situação natural

de vida. Desde muito pequena convivi com a idéia de castigos escolares e

com histórias de alunos desobedientes, malcriados, sujos, burros. Minha mãe

falava desses alunos como se fossem verdadeiros capetas, a infernizá-la na

sua prática pedagógica. Aos bons alunos cabia a alegria e satisfação de dar

aulas e eram eles, que levavam as varas de marmelo que serviam para

ameaçar e impor a autoridade.

Como aluna do ensino primário, ginasial e normal presenciei e passei

por inúmeras situações embaraçosas de repressões e castigos os mais

diversos. Tive, certa vez, de copiar mil vezes "Tenho que respeitar a sala de

aula". Até hoje, não sei porque fiz essas cópias !

Como professora primária, chegou a minha vez de castigar e de assistir

à aplicação de muitos e diversos castigos. Esses eram incentivados pelo

próprio diretor, que considerava como melhores professores aqueles que

conseguiam maior silêncio e imobilidade dos alunos na sala. "Não dê

beliscões ou reguadas, puxe o cabelo porque não deixa marcas, dizia a

diretora.

Essa trajetória como professora me levou a diversos questionamentos

sobre a disciplina escolar, o que me fez buscar, no estudo acadêmico, as

respostas para os mesmos. A leitura de alguns autores serviu de reflexão para

a definição do que é disciplina e de como essa questão é vista na escola e na

sala de aula.

10

Page 11: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Entretanto, os estudos por mim realizados evidenciaram a escassez de

obras dedicadas à análise da disciplina/indisciplina na escola. Tal fato foi

afirmado por AQUINO (1996: 21), em seu trabalho bibliográfico sobre a

questão da relação professor-aluno. Segundo ele,

"... esse trabalho teve um caráter quase arqueológico, se nos permite a metáfora. Por vezes, as alusões ao tema apresentavam-se como capítulos à parte dos textos, outras vezes, vinham embutidos em extratos isolados".

Também AFONSO (1991:119), afirma que:

"...a problemática da indisciplina na escola e na sala de aula só raramente aparece como unidade temática nos programas de Sociologia da Educação. Esse fato reforça a idéia de que a disciplina na sala de aula é considerada um problema mais prático do que teórico".

Segundo ESTRELA (1994: 15), o termo disciplina tem, ao longo do

tempo, assumido diferentes significações: punição, dor, instrumento de

punição, direção moral, regra de conduta para fazer reinar a ordem,

obediência às normas. Por outro lado, o termo indisciplina é definido como

desordem proveniente da quebra das regras estabelecidas.

Para DURKHEIM (1984: 251), "a disciplina é a moral da classe, como a

moral propriamente dita é disciplina do corpo social." A educação visa, nessa

ótica, a inserção do indivíduo numa sociedade que se pretende ordenada e

harmônica, daí a disciplina transformar-se em caráter educativo. A

aprendizagem e a interiorização de regras prescritas socialmente fazem parte

do cotidiano das práticas escolares.

Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e

o comportamento em relação às regras.

DURKHEIM (1978:74) considera que “a sala de aula é uma pequena

sociedade”. Nela, professor e alunos posicionam-se frente a frente, “ora como

11

Page 12: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

parceiros, ora como inimigos”, dando origem à negociação ou à imposição de

regras que servirão para manter o que consideram um bom clima disciplinar.

A sala de aula não é somente o espaço privilegiado da prática

pedagógica mas, também, o lugar de relações entre pessoas, objetos e

símbolos. Assim, além de lugar de transmissão de saberes, a sala de aula,

enquanto núcleo central das atividades escolares, é o local no qual se

estabelece um processo contínuo de interações. Para ela afluem as

contradições do contexto social, os conflitos psicológicos, as questões da

ciência e as concepções valorativas dos atores do ato pedagógico: o professor

e os alunos. Assim, as relações interpessoais que se estabelecem neste

espaço necessitam de algumas regras de convivência.

As regras desempenham o papel de criar condições de funcionamento

harmonioso da classe. O professor é, dentro da sala de aula, o agente

normativo que exerce essa função, por delegação social. Quando as regras

não são cumpridas, surgem situações imprevisíveis de indisciplina e cabe ao

professor fazer frente a elas e vencê-las. Para isso, ele desenvolve uma série

de habilidades tais como: gestos, tom de voz, ameaças, castigos que o

ajudam a vencer as barreiras da indisciplina. A aprendizagem e a

interiorização de regras prescritas socialmente fazem parte do cotidiano das

práticas escolares. É tarefa do professor, além de selecionar os conteúdos e

os recursos didáticos para o ensino dos saberes escolares, ditar as normas e

controlar o comportamento dos alunos para que as mesmas não sejam

quebradas. Assim, é o professor quem pode determinar onde e como o aluno

vai sentar-se e a postura e atenção que deve ter durante as aulas: o aluno

deve ficar quieto, calado, atento, deve ser obediente e cumprir todas as

obrigações. O certo é que, na escola, vigoram regras sociais e morais que

constituem um patrimônio cultural, geralmente reconhecido e aceito. O aluno,

na medida em que internaliza os valores culturalmente impostos pela estrutura

social, acaba por aceitar o poder do professor e reconhece o direito de lhe

serem ditados comportamentos.

AQUINO (1996) afirma que “não nos é possível passar a largo dos

eventos espasmódicos de indisciplina (e até mesmo de violência), que

12

Page 13: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

atravessam o espaço escolar contemporâneo, sem nos espantar". Contudo,

chama a atenção para o fato de que o fenômeno da indisciplina é um velho

conhecido de todos, mas a sua relevância teórica ainda não é nítida. Segundo

ele, investigações realizadas apontam para o fato de que um dos obstáculos

ao ensino é a conduta desordenada dos alunos, traduzida em termos como:

bagunça, tumulto, falta de limite, mau comportamento, desrespeito à

autoridade, etc.

Relatos nos dão conta de que inclusive castigos físicos são, ainda hoje,

praticados, para controlar a classe, embora esses sejam raramente admitidos

pelo professor:

"Tem professora que bate na gente. Só uma vez eu levei um puxão de orelha, porque estava fazendo bagunça. Eu acho que não precisava agredir a criança assim não." (aluna, escola estadual. ESTRELA, 1994)

Segundo SNYDERS (1988), os alunos são muito mais profunda e

freqüentemente humilhados na escola do que se acredita. Falta-lhes respeito

à dignidade, consideração e valorização.

Relatos de crianças nos dão ciência de puxões de orelha, sacudidelas,

isolamento na sala de aula, ficar de pé olhando para a parede, cópias, etc,

como meios de manter a ordem.

"Eu estudava no Instituto São José. E lá, pela menor coisa, havia o castigo. Nós podíamos optar entre copiar tantas linhas, ou decorar. Uma coisa terrível!" (Hellus Skinner, FONSECA, 1997: 107)

Para ESTRELA (1994), as intervenções, quer sejam de recompensas,

quer sejam de punições, baseiam-se mais na intuição e experiência do

professor do que na aplicação sistemática de uma teoria psicológica ou

pedagógica. Constatando que essas intervenções são relativamente limitadas

em sua variedade, a pesquisadora inventariou as seguintes reações dos

professores:

13

Page 14: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

• De caráter verbal: chama a atenção, repreende, ameaça (inclusive

com notas baixas) ironiza, faz apelos à boa conduta, lembra a regra

que está sendo violada, expulsa o aluno da sala, faz bilhetes ao

pais.

• De caráter não verbal: olha fixamente, desloca-se, faz silêncio,

manda parar com um gesto, intercepta objetos, estabelece contato

físico.

• De caráter misto: desloca-se e repreende, chama à ordem e

estabelece contato físico.

Essas reações fazem parte do cotidiano da sala de aula e são usadas

toda vez que surgem comportamentos desviantes e perturbadores.

Considerada por muitos como um obstáculo ao trabalho educativo, a

indisciplina tem sido abordada enquanto resultado de relações entre

professores e alunos e em termos da postura do professor em sala de aula.

ILDA TABA (1962), apud ESTRELA (1994: 57), afirma que, quando as

relações pessoais são rígidas e bloqueadas, a disciplina e o trabalho são

imediatamente afetados e aparecem os estados de desequilíbrio. Esses

desequilíbrios fazem-se sentir, com maior freqüência, no campo das

comunicações, principalmente quando o ensino tem um caráter verbal.

Das pesquisas sobre punições escolares pudemos constatar que a

função das mesmas não é a de resolver o problema da indisciplina, mas a de

controlar o aluno indisciplinado e fazer com que ele não incomode mais

aquela aula. O professor aplica tantas vezes quanto necessária a mesma

punição, ao mesmo aluno, pela mesma falha. A reincidência da falha

comprova a ineficiência do castigo.

Seja qual for seu foco de análise, os estudos sobre a disciplina revelam

que o aluno nem sempre é uma vítima indefesa, pois é capaz de forçar os

seus esquemas de defesa, de ataque e de retribuição e de entrar numa rede

complexa de negociações, as quais limitam o poder arbitrário do professor.

Daí entendermos que a análise da disciplina e da indisciplina é muito mais

14

Page 15: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

complexa do que, à primeira vista, pode parecer e envolve não apenas a

relação entre professores e alunos, mas uma série de fatores que extrapolam

os limites da sala de aula e até mesmo da escola.

Segundo CASTRO (1994: 275),

"os alunos, considerados por todos como a razão de ser da escola, são os alvos de todos os reflexos das relações de poder existentes: vítimas do mau humor de professores descontentes ou contemplados pela sorte de conviver com mestres satisfeitos e adaptados, sofrem mais diretamente todas as conseqüências do clima estabelecido na instituição."

Este enfoque é muito importante para o presente estudo, que não se

circunscreve prioritariamente às abordagens relativas à disciplina em sala de

aula, mas principalmente à concepção de disciplina que os professores

construíram em sua trajetória e aos reflexos desta concepção nas relações

com os outros atores da escola. Essas relações configuram-se como relações

de poder, dentro das quais se circunscrevem as ações relativas ao

disciplinamento. Para sua análise, recorremos à abordagem do poder

disciplinar em FOUCAULT e em DURKHEIM.

Além das abordagens de DURKHEIM E FOUCAULT, também

são fundamentais os estudos de BOURDIEU sobre “habitus” e “capital

cultural”, na medida em que o estudo parte das trajetórias das professoras.

A interlocução com esses teóricos, a partir de minha experiência

pessoal com a disciplina, gerou algumas questões que nortearam o trabalho:

• o que é disciplina para o professor?

• o que faz o professor utilizar-se de prêmios e castigos como forma

de controle e disciplinamento?

• que tipos de disciplinamentos são utilizados pelos professores?

• que tipo de reações o disciplinamento provoca nos alunos?

• como a história de vida do professor influencia na sua prática em

relação ao disciplinamento em sala de aula?

15

Page 16: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

1 - Uma leitura da Disciplina e das formas de disciplinamento em DURKHEIM e FOUCAULT

O termo disciplina nos reporta a DURKHEIM (início do século) e

FOUCAULT (década de 60/70), cujos estudos, produzidos em tempos e

contextos diversos e alvos de diferentes significações, apresentam um caráter

sempre atual, na medida em que abordam a questão da disciplina a partir da

noção de moral (DURKHEIM) e de normalização (FOUCAULT).

Tais abordagens são necessárias ao entendimento do fenômeno

da (in)disciplina no contexto escolar e servirão de suporte para a análise da

representação de disciplina e disciplinamento, construída pelos professores

em sua trajetória.

A questão da disciplina em DURKHEIM A importância de DURKHEIM para a análise de questões

relacionadas à disciplina é reconhecida nos meios acadêmicos.

Segundo AFONSO (1991: 120)

"...Provavelmente nenhum outro sociólogo da educação terá, melhor do que DURKHEIM, posto em evidência a função do controle social inerente à disciplina escolar, ao relacioná-la, simultaneamente, com a necessidade da educação moral e da ordem social".

Para DURKHEIM, a moral constitui-se num conjunto de regras

definidas e específicas que determinam, de forma imperativa, a conduta. A

autoridade do mestre não vem de fora, mas sim dele mesmo, da fé na missão

que lhe cabe e na grandeza dessa missão. Por isso, da mesma forma que o

sacerdote é o intérprete de Deus, o mestre é o intérprete das grandes idéias

morais de seu tempo e de sua terra. A autoridade do mestre é um aspecto da

16

Page 17: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

autoridade do dever e da razão que a criança deve reconhecer como força

moral.

A moral é essencialmente uma disciplina que tem duplo objetivo: de um

lado conseguir uma certa regularidade na conduta dos indivíduos e de outro

destinar-lhes fins determinados que limitam seu horizonte. A primeira

disposição que é fundamental a qualquer temperamento moral, é o espírito de

disciplina. A disciplina transmite hábitos à vontade, impõe-lhe freios,

regulariza-a e a contém. A limitação da vontade é a condição da saúde moral

e, portanto, da felicidade do homem e, por isso, a disciplina é útil não somente

à sociedade, como meio indispensável sem o qual não poderia haver

cooperação regular, mas também ao próprio indivíduo. É através dela que o

homem aprende a moderação e consegue ser feliz.

DURKHEIM (1984: 251) afirma que a família constitui um

ambiente que, pelo seu calor natural, se apresenta particularmente apto a

fazer despontar as primeiras inclinações altruístas, os primeiros sentimentos

de solidariedade, mas a moral que ali se pratica é sobretudo afetiva. É na

escola que a criança deve adquirir o necessário respeito pela regra e aprende

a cumprir o seu dever.

Assim, a escola desempenha o importante papel de guarda

avançada da moral e é através da escola que a coesão social é assegurada.

DURKHEIM (1984: 250, 251) afirma que, “É necessário que a

criança aprenda o respeito pela regra; é necessário que ela aprenda a cumprir

o seu dever, porque a isso se sente obrigada, e sem que a sensibilidade lhe

facilite desmedidamente a obrigação. Esta aprendizagem seria muito

incompleta no seio da família, é na escola que se deve fazer”.

DURKHEIM (1978: 41) define a educação como a ação exercida,

pelas gerações adultas, sobre as gerações que ainda não se encontrarem

preparadas para a vida social. Tem por objetivo suscitar e desenvolver na

criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados

pela sociedade política, no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança

particularmente, se destine”.

17

Page 18: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Para ele, toda ação educativa é um esforço contínuo para impor

à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais não chegaria de uma

forma espontânea. Desde os primeiros momentos de sua vida, ela é forçada a

comer, a beber, a dormir dentro de horários regulares, a ser obediente, quieta,

caprichosa; mais tarde é obrigada a respeitar os outros, os costumes, as

conveniências; é forçada a trabalhar, etc..

Desse modo, entendo que a ação educativa deve fazer com que

a criança ultrapasse a sua natureza individual, a fim de tornar-se um novo ser,

dando-lhe condições para enfrentar as “duras realidades da vida”. A criança

necessita aprender a controlar a vontade e exercer sobre si mesma a

contenção, quer por força da necessidade física, quer por dever moral.

Para DURKHEIM, a criança só pode conhecer o dever através

de seus pais e de seus mestres e isso exige desses, a encarnação do mesmo.

“É preciso portanto, que eles sejam para o educando o dever

personificado” (DURKHEIM (1978: 54). Assim, para ele, autoridade moral é a

qualidade essencial do educador. É pela autoridade moral que nele se

encarna, que deve tornar-se, de fato, dever.

Ele afirma ainda, que, na escola, existe todo um sistema de

regras que pré-determinam o comportamento da criança: a criança deve

comparecer à hora marcada, com uma apresentação e um porte conveniente

(uniforme); durante a aula, não deve perturbar a ordem, deve fazer suas

obrigações e exercícios com a aplicação necessária, etc.

O conjunto desses deveres constitui a disciplina escolar, cuja

prática possibilita inculcar na criança o espírito de disciplina.

Cada grupo social, cada espécie de sociedade tem, e não pode

deixar de ter, a sua moral, que exprime a sua constituição. A classe é uma

pequena sociedade e deve possuir uma moral própria. A disciplina é essa

moral.

Aprendendo a respeitar a regra escolar, a criança aprenderá,

também, a respeitar as regras sociais, será capaz de conter-se e constranger-

se, adaptando-se para viver harmoniosamente, tanto no mundo físico, quanto

no social. O mestre deve zelar pela disciplina, pois ela constitui-se

18

Page 19: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

essencialmente num instrumento de educação moral. É na firmeza do mestre

que se fundamenta a moralidade da classe. Assim sendo, uma classe

indisciplinada é uma classe que se desmoraliza.

Na visão de DURKHEIM, as crianças são as primeiras a darem-

se bem com uma boa disciplina, pois elas necessitam sentir sobre elas regras

que as contenham e mantenham. E ainda, uma classe bem disciplinada tem

aspecto saudável e bem disposto.

Para manter a disciplina, um dos meios mais utilizados pelos

mestres é o da penalidade.

DURKHEIM (1984) considera que as punições não têm a função

essencial de obrigar o culpado a expiar a sua falta, fazendo-o sofrer, mas sim,

de reafirmar o dever no momento mesmo em que esse é violado. A punição

não serve para normalizar aquele que infringiu a regra e, sim, para dar uma

satisfação ao obediente. Para ele, a função essencial da pena não é, pois, a

de obrigar o culpado a expiar a sua falta fazendo-o sofrer, mas a de impedir

que a disciplina perca sua autoridade.

Qualquer ato que viole a regra deve ser alvo de punição, pois a regra é

sagrada e inviolável. Punir é reprovar, é censurar, é afirmar que a regra foi

negada. A reprovação e o castigo são conseqüências naturais da falta e a

criança só sente haver cometido uma falta moral, quando é moralmente

censurada.

Desse modo, entendo que, apesar do caráter austero da reprovação,

ela não têm a finalidade de fazer sofrer, intimidar ou aterrorizar, mas sim, de

reafirmar o dever no momento mesmo em que esse é violado.

DURKHEIM é contra os castigos corporais. Para ele, como os objetivos

da educação moral consistem em transmitir à criança o sentimento de sua

dignidade de homem, as penas corporais se tornam perpétuas ofensas a esse

sentimento e têm um efeito desmoralizador.

“Não só não se deve bater, como também se deve proibir

qualquer castigo susceptível de prejudicar a saúde da criança”. DURKHEIM

(1994: 303).

19

Page 20: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Para ele, as privações de recreio consistem numa punição legítima e

eficaz, uma vez que a brincadeira, tal como a alegria e a efusão que a

acompanham, são produtos de um sentimento interno de satisfação, que não

pode ser sentido por alguém que cometeu uma falta. De outro lado, o castigo

escolar que obrigava o aluno a repetir a mesma coisa uma infinidade de vezes

deve ser substituído por tarefas suplementares que tenham o mesmo caráter

de seus deveres ordinários.

A privação de divertimentos, deveres suplementares, junto à censura e

reprimendas são considerados por DURKHEIM, como os principais elementos

da penalidade escolar. Deve-se ter cuidado na aplicação do castigo, porque o

que constitui a sua autoridade é a vergonha moral que ele provoca. A virtude

do castigo só é total quando ele se limitar à condição de ameaça porque uma

vez que se chega à severidade extrema, ele produz menos efeito quanto mais

se repetir. Daí, a necessidade de se multiplicar as divisões da escala penal:

reprovação pública, perante os alunos que formam a classe, reprovação

comunicada aos pais, castigo com suspensão.

E ainda, antes da reprovação, o mestre pode se utilizar de meios de

advertência que fazem com que a criança sinta que está errada: um olhar, um

gesto, um silêncio são processos muito significativos e a criança os

compreende.

Além de saber dosar os castigos, é importante saber a forma de

castigar.

DURKHEIM (1984: 307) recomenda que não se deve punir irado, uma

vez que o castigo não pode ser sentido como um ato de cólera e de

impaciência nervosa. É necessário que a criança sinta que o castigo foi

deliberado e resultado de uma decisão tomada a sangue frio e deve revelar

indignação do mestre com a falta cometida. O mestre, nesta relação, mostrará

ao aluno que lamenta as suas faltas e que essas o fazem sofrer.

DURKHEIM, por um lado, defende a disciplina como o mais importante

elemento da moralidade e, por outro lado, considera a penalidade como um

dos meios de os educadores conseguirem que os alunos atinjam o estágio

moral desejável e necessário para a vida em sociedade. Para ele, o processo

20

Page 21: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

educativo através da disciplina, conforma os indivíduos aos grupos sociais a

que pertencem. A internalização das regras e dos valores estabelecidos faz

com que o indivíduo atinja a verdadeira liberdade.

A Disciplina em FOUCAULT

Abordando a disciplina na perspectiva das relações sociais,

FOUCAULT considera que essas relações são fundamentalmente relações de

poder e de resistência.

Talvez, aqui esteja a explicação sobre a falta de bons resultados dos

castigos aplicados repetidamente nos mesmos alunos e, às vezes, pelo

mesmo professor, durante um, dois, três anos escolares. A análise de

FOUCAULT nos faz perceber a resistência que existe nas relações de poder.

Ele afirma que o poder da disciplina está na sua função maior de adestrar. A

disciplina fabrica indivíduos. Ela é a técnica específica de um poder que toma

os indivíduos, ao mesmo tempo, como objetos e como instrumentos de seu

exercício.

O poder é algo que circula, que funciona em cadeia. Ele nunca está

localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado

como uma riqueza ou um bem. Assim, o poder disciplinar está em toda a parte

e sempre alerta. O poder disciplinar é um poder relacional que se auto-

sustenta por seus próprios mecanismos.

Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona sempre um

mecanismo penal. Esse mecanismo funciona como um repressor, através de

toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupção de

tarefas), da atividade (desatenção, etc.), da maneira de ser (grosseria), dos

discursos (tagarelice), do corpo e da sexualidade. A título de punição são

utilizados processos sutis que vão do castigo físico leve a ligeiras e pequenas

humilhações.

A punição, para FOUCAULT, é tudo aquilo que é capaz de fazer as

crianças sentirem a falta que cometeram, de humilhá-las e de confundi-las. Os

castigos físicos, para ele, têm a função de reduzir os desvios, sendo

21

Page 22: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

essencialmente atos corretivos que visam sempre a restauração da ordem.

Contudo, a maneira como se faz esta restauração depende da estratégia de

poder dominante em uma determinada época.

FOUCAULT chama de poder disciplinar a estratégia

predominante de poder da modernidade. Para ele, na modernidade o poder

disciplinar é caracterizado pela não corporeidade da pena. O corpo não é mais

castigado publicamente, de forma direta. Como a liberdade é o valor máximo

na modernidade, retirá-la tornou-se a punição mais utilizada. Na escola, a

palmatória foi substituída por castigos que limitam os movimentos e impedem

a comunicação com os outros. O objeto da punição é o da reeducação do

indivíduo.

É por isso que a disciplina traz consigo uma maneira específica de

punir e sua especificidade está em produzir docilidade e eficiência, servindo-

se da domesticação e moralização.

Por isso, FOUCAULT diz que não basta punir. É preciso vigiar, corrigir,

reeducar, organizando o tempo e o espaço. A punição é aplicada toda vez que

o poder atesta que os corpos estão se afastando das normas. Impõe-se então

um corretivo e um instrumento de hierarquização do desvio. Para isso, é de

grande valia e importância, a boa administração de castigos. “Nada de força

bruta ou de castigos majestosos”. É necessário dar visibilidade aos

comportamentos mais simples e corriqueiros e para isso impõe-se uma “certa”

disposição física do ambiente, o que facilita o controle pelo “olhar”.

Contudo, a punição disciplinar deve ultrapassar o aspecto corretivo pois

deve, através da expiação, exercitar o arrependimento, atuando como um

elemento de um sistema duplo de gratificação – sanção.

FOUCAULT (1987: 127) evidencia a descoberta do corpo como objeto

e alvo de poder, no século XVIII. Para ele, “o momento histórico das

disciplinas é o momento em que nasce uma arte no corpo humano, que visa

não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar

sua sujeição, mas a formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o

torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente”.

22

Page 23: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Portanto, cabe à disciplina fabricar corpos submissos, tornando-os

aptos a uma sujeição estrita. Assim, a disciplina, em primeiro lugar, dirige os

seus atos no sentido de distribuir os indivíduos no espaço. Cada indivíduo

deve ocupar o seu lugar, o que facilita saber onde e como encontrar cada um,

como evitar comunicações inúteis ou indesejáveis, poder vigiar o

comportamento de todos, apreciá-lo ou sancioná-lo.

FOUCAULT (1987: 131) compara o espaço das disciplinas às celas dos

conventos, que são, no fundo, celulares e propiciam a solidão necessária ao

corpo e à alma. Os lugares determinados não servem somente para satisfazer

à necessidade de vigiar e de impedir as comunicações perigosas mas,

sobretudo, criam um espaço de utilidade. FOUCAULT (1987: 135) afirma que

“as disciplinas organizando as “celas”, os ”lugares” e as “fileiras” criam

espaços complexos que propiciam a fixação e permitem a circulação, ao

mesmo tempo em que marcam lugares e indicam valores, o que garante a

obediência dos indivíduos, mas ao mesmo tempo, garante, também, economia

de tempo e dos gestos. Ao lado da marcação do espaço, a divisão do tempo

torna-se cada vez mais detalhada e o planejamento de atividades dentro de

horários bem demarcados, tratando-se de “constituir um tempo integralmente

útil”. (pág. 137)”. As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e

recompõem as atividades, devem ser também compreendidas como

aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.”(pág. 142/143).

O tempo disciplinar foi-se impondo à prática pedagógica. Partindo-se

do tempo de formação, do ofício adquirido, da determinação de programas,

chegou-se ao tempo disciplinar com suas séries múltiplas e progressivas.

Para FOUCAULT (pág. 144) “a colocação em “série” das atividades

sucessivas permite todo um investimento da duração pelo poder: possibilidade

de um controle detalhado e de uma intervenção pontual – de diferenciação, de

correção, de castigo, de eliminação – a cada momento do tempo.” Tudo isto,

possibilita não só caracterizar os indivíduos, mas utilizá-los de acordo com o

nível que alcançam nas séries que percorrem.

O poder se articula sobre o tempo, controla-o e garante a sua

utilização.

23

Page 24: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Para ter sucesso, o poder disciplinar faz uso de instrumentos simples,

como o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num

procedimento que lhe é específico, o exame.

O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar a tudo ver

permanentemente e exige uma especificação da vigilância para torná-la mais

funcional, integrando-a, mesmo, à relação pedagógica. Assim, para ajudar o

mestre a controlar a classe, escolhe-se entre os melhores alunos os

representantes da classe uma série de oficiais, observadores, monitores,

etc. que terão papéis que vão desde à distribuição de materiais até os de

fiscalização.

Graças à vigilância hierarquizada, contínua e funcional, o poder

disciplinar organiza-se como um poder múltiplo, anônimo, automático: “ele não

se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona

como uma máquina” (pág. 158). Assim, o poder que está em toda parte e

sempre alerta, controla, inclusive, aqueles que estão encarregados de

controlar. FOUCAULT (1987: 158) afirma que a disciplina faz “funcionar” um

poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e

substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares

calculados.

Através do mecanismo de gratificação-sanção é possível

qualificar e quantificar os comportamentos e os desempenhos em termos de

boas e más notas e em distribuição de pontos e conceitos.

Por outro lado, esse mecanismo tem também, o papel de

classificar os indivíduos (alunos) e dividi-los em classes: a 1ª classe, dos

muito bons, a 2ª classe dos bons, a 3ª classe dos medíocres e a última classe

dos maus. O mérito e o “bom” comportamento definem, portanto, o lugar do

aluno, podendo esse, mudar de classe, de acordo com os pontos que

conseguir através dos progressos e das mudanças de comportamento.

Para FOUCAULT (1987: 163) “a arte de punir, no regime do

poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a

repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar

os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto que é

24

Page 25: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípios

de uma regra a seguir”. Assim, a penalidade propicia a comparação, a

diferenciação, a hierarquização, a homogeneização e a exclusão, enfim, a

normalização.

Ao longo da história o poder continua sendo inscrito nos corpos

das crianças, mudando apenas a sua forma e os mecanismos por eles

utilizados. O professor continua sendo o “vigia” que zela pela boa disciplina,

impedindo que ocorram faltas nas salas de aula. Contudo, a vigilância envolve

a todos, inclusive o próprio professor: “quem vê é também visível”. É assim

que no jogo do domínio, do poder, surge o jogo da resistência. O professor,

enquanto “vigia” os alunos é por eles, também, vigiado.

25

Page 26: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

2 - O habitus na trajetória de vida dos professores: uma abordagem em BOURDIEU

Em seus estudos sobre a sociedade e os agentes sociais,

BOURDIEU usa a noção de habitus para enfatizar a dimensão de um

aprendizado passado que está no princípio de encadeamento das ações, ou

seja, da prática que resulta do habitus enquanto sinal incorporado de uma

trajetória social.

BOURDIEU (1994: 65-66) se utiliza de uma citação de DURKHEIM

para explicar a natureza histórica do habitus:

“(...) Em cada um de nós, em proporções variáveis, há o homem de ontem; é o mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está predominantemente em nós, posto que o presente não é senão pouca coisa comparado a esse longo passado no curso do qual nos formamos e de onde resultamos. Somente que, esse homem do passado, nós não o sentimos, porque ele está arraigado em nós; ele forma a parte inconsciente de nós mesmos. Em conseqüência, somos levados a não tê-lo em conta, tampouco as suas exigências legítimas. Ao contrário, as aquisições mais recentes da civilização, temos dela um vivo sentimento porque, sendo recentes, não tiveram ainda tempo de se organizar no inconsciente.”

Assim, BOURDIEU (1996: 15) afirma que não podemos capturar a

lógica mais profunda do mundo social a não ser submergindo na

particularidade de uma realidade empírica, historicamente datada e situada,

para construí-la, porém, como caso particular do possível, isto é, como uma

figura em um universo de configurações possíveis.

Portanto, ao mergulhar na análise da trajetória de vida dos

professores procuro encontrar, à luz dos ensinamentos de BOURDIEU, a

compreensão para os comportamentos disciplinares dos professores em suas

26

Page 27: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

práticas pedagógicas. Desta forma, sua abordagem sobre capital cultural e

habitus é de fundamental importância neste estudo.

Para ele (1998), o capital cultural sob a forma de estado incorporado,

"pressupõe um trabalho de inculcação e assimilação. (...) É um ter que se

tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da

pessoa, um "habitus".

BOURDIEU (1998: 41), afirma que “Na realidade, cada família

transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital

cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente

interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes face

ao capital cultural e à instituição escolar.

Assim, os esquemas de percepção, de apreciação e de ação que

são adquiridos por gerações sucessivas, através da prática, num processo de

inculcação e assimilação, tendem a se reproduzir nas práticas.

O capital cultural considerado como um conjunto de recursos

ligados à posse de uma rede durável de relações, garante que os agentes se

reconheçam como pares e possam fazer parte de um determinado grupo.

O capital cultural pode-se apresentar em três estados:

• o estado incorporado

• o estado objetivado

• o estado institucionalizado

No estado incorporado, o capital cultural apresenta-se ligado ao corpo,

o que pressupõe sua incorporação através de um trabalho de inculcação e

assimilação. Esse trabalho de aquisição do capital cultural leva um longo

tempo e supõe um esforço do “sujeito sobre si mesmo”. “Aquele que o possui

“pagou com sua própria pessoa” e com aquilo que tem de mais pessoal, seu

tempo”. A incorporação do capital cultural demanda tempo, daí não poder ser

transmitido por doação, por hereditariedade, compra ou troca. A inculcação e

assimilação do capital cultural só pode acontecer através do investimento

pessoal do receptor.

27

Page 28: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

No estado objetivado, o capital cultural existe sob a forma de bens

culturais tais como: quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas.

Nesse estado, o capital cultural pode ser transmitido para outra pessoa.

No estado institucionalizado o capital cultural é consolidado através dos

títulos e certificados escolares.

BOURDIEU (1983: 105) explica o “habitus” como aquilo que se

adquiriu, que se encarnou no corpo de forma durável sob a forma de

disposições permanentes. O habitus se difere do hábito por ser, esse,

considerado espontaneamente como uma ação repetitiva, mecânica,

automática, “antes reprodutivo que produtivo”. O habitus, por sua vez, é um

produto dos condicionamentos, contudo, introduz neles uma transformação

que faz com que nós reproduzamos as condições sociais de nossa própria

reprodução, mas de uma maneira relativamente imprevisível, de uma maneira

tal que não se pode passar simples e mecanicamente das condições de

produção ao conhecimento dos produtos.

MARTINS (1987), afirma que

"o ‘habitus’, enquanto produto da história, orienta as práticas individuais e coletivas. Ele assegura, portanto, a presença ativa das experiências passadas que, depositadas em cada indivíduo sob a forma de esquema de pensamento, percepção e ação, contribuem para garantir a conformidade das práticas e sua constância através do tempo. Através do ‘habitus’, o passado do indivíduo sobrevive no momento atual, atualizado no presente, e tende a subsistir nas ações futuras dos atores sociais".

Portanto, o professor, nas suas relações com os alunos, tende a

reproduzir a "lógica objetiva dos condicionamentos". O "habitus", enquanto

produto de um trabalho de inculcação e assimilação, construído ao longo da

sua história particular, ao mesmo tempo inserido no coletivo, não será o

princípio gerador da ação do professor na sala de aula?

Os habitus, enquanto "estruturas estruturadas predispostas a funcionar

como estruturas estruturantes", são princípios geradores e organizadores de

práticas e representações. Segundo MARTINS (1987), as disposições

28

Page 29: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

duráveis que a noção de habitus procura enfatizar, permitem à realidade

objetiva, em suas várias dimensões, a atuação sobre o indivíduo produzindo,

através dele, o processo de interiorização da exterioridade. O habitus forjado

no interior das relações sociais, necessárias e independentes das vontades

individuais, possui uma dimensão inconsciente para o ator, uma vez que esse

não detém a significação da pluralidade de seus comportamentos e nem os

princípios que estão na gênese da produção de seus esquemas de

pensamentos, percepções e ações. Assim, o habitus determina o estilo de

vida, o gosto, a propensão e aptidão à apropriação de uma determinada

categoria de objetos ou práticas classificadas e classificatórias, gerando

princípios de visão, de divisão e gostos diferentes. Ele estabelece a distinção

entre o que é bom e o que é mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto

e o que é vulgar, etc. É o habitus, como estrutura estruturada e ao mesmo

tempo estruturante, que integra, nas práticas e nas idéias, os esquemas

práticos de construção oriundos da incorporação de estruturas sociais

resultantes do trabalho histórico de gerações que se sucedem. Portanto, os

habitus são princípios que geram práticas tão distintas e distintivas que fazem

com que um mesmo comportamento ou um mesmo “bem” possa parecer

distinto para um, pretensioso para outro e vulgar para um terceiro.

BOURDIEU (1974), falando sobre a ação pedagógica, afirma que uma

das suas características reside no poder de comandar a prática tanto ao nível

inconsciente – através dos esquemas constitutivos do "habitus" cultivado –

como ao nível consciente, através da obediência aos modelos explícitos.

O fato de o professor ter tido uma educação autoritária pode fazê-lo

tentar repetir ou repelir esta prática?

BOURDIEU (1996) afirma que o habitus como sistema de disposições

para a prática é um fundamento objetivo de condutas regulares, logo, da

regularidade das condutas e, se é possível prever as práticas é porque o

mesmo faz com que os agentes que o possuem comportem-se de uma

determinada maneira em determinadas circunstâncias. Sendo produto da

incorporação da necessidade objetiva, que se torna virtude, o habitus produz

estratégias que mostram-se objetivamente ajustadas à situação. Assim, a

29

Page 30: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

ação que tem como princípio “o sistema de disposições”, o habitus, é produto

de toda a experiência biográfica do indivíduo e funciona como um sistema de

esquemas geradores de estratégias que podem objetivamente, servir aos

interesses de seus autores.

Para BOURDIEU (1990: 26) “construir a noção de habitus como

sistema de esquemas adquiridos que funciona no nível prático como

categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação e

simultaneamente como princípios organizadores da ação, significa construir o

agente social na sua verdade de operador prático de construção de objetos.

A ação de cada agente social é produto, portanto, de toda sua

experiência biográfica o que faz com que não exista duas histórias individuais

e iguais, embora haja classes de experiências que possibilitam o

aparecimento de classes de habitus, ou, melhor dizendo, os “habitus de

classe”.

Para BOURDIEU, as pessoas estão situadas num espaço social – e

não em um lugar qualquer – e, em função da posição que elas ocupam nesse

espaço, pode-se compreender a lógica de suas práticas e, com isso, pode-se,

também, determinar como elas vão classificar e se classificar e ainda se

pensar como membro de uma classe.

Segundo BOURDIEU (1990: 96), para saber o que as pessoas fazem, é

preciso supor que “elas obedecem a uma espécie de “sentido do jogo”, como

se diz no esporte, e, para compreender suas práticas, é preciso reconstruir o

capital de esquemas informacionais que lhes permite produzir pensamentos e

práticas sensatas e regradas, sem intenção de sensatez e sem obediência

consciente a regras explicitamente colocadas como tal”.

É assim que o habitus, enquanto sistema de disposições para a prática,

fundamenta de forma objetiva as condutas regulares. É, pois, a regularidade

das condutas determinadas pelos habitus que faz com que os agentes se

comportem de uma determinada maneira, em determinadas circunstâncias, o

que possibilita prever as práticas. Contudo, a tendência para agir de uma

maneira regular não se origina nem se embasa numa regra específica ou, de

forma explícita, numa lei. As condutas geradas pelos habitus não têm a

30

Page 31: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

regularidade das condutas que são reguladas por um princípio legislativo: “o

habitus está intimamente ligado ao fluido, ao vago, a uma lógica prática, que

define a relação do agente com o mundo.

As condutas cotidianas são, pois, guiadas por esquemas práticos, isto

é, por “princípios que impõem ordem na ação, possibilitando a classificação,

hierarquização e divisão e a percepção das coisas. Depreende-se disso que o

habitus é ao mesmo tempo um sistema de esquemas produtores de práticas e

um sistema de esquemas de percepção e apreciação das práticas.

O habitus, enquanto princípio gerador de visão e divisão, é produto de

toda a história individual. Essa história é produzida através das experiências

formadoras desde a primeira infância, bem como de toda a história coletiva da

família e da classe. Assim, através do habitus, temos um mundo de “senso

comum”, um mundo social que parece evidente, que pode ser entendido e

construído de diferentes maneiras, de acordo com os princípios de visão e de

divisão de cada um. O habitus obedece a uma lógica prática, o que lhe dá o

caráter de indeterminação, de incerteza e isto faz com que, em situações

críticas, perigosas, não seja possível reverter-se inteiramente a ele.

Para BOURDIEU (1998: 98), quanto mais perigosa for a situação mais

a prática tenderá a ser codificada.

Assim, em situações carregadas de violência em potencial, as condutas

regidas pelas improvações do habitus são substituídas por condutas

formalizadas e reguladas, que devem seguir um “ritual metodicamente

instituído e ao mesmo tempo codificado”.

A codificação permite acabar com o fluido, o vago, as fronteiras mal

traçadas. Ela possibilita, através de cortes nítidos, que os limites sejam bem

definidos. A codificação está, desta forma, intimamente ligada à disciplina e à

normalização das práticas.

31

Page 32: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

3 - O estudo das trajetórias de professores: uma abordagem de história oral para o estudo da disciplina e do disciplinamento.

A pesquisa e a Metodologia utilizada. A proposta da Pesquisa

Considerando os habitus enquanto estruturas estruturadas mas,

também, estruturantes e, portanto, geradoras e organizadoras das práticas e

representações dos atores sociais, me propus a, através do estudo da

trajetória de vida de professores, analisar como estes construíram sua

concepção de disciplina e disciplinamento e como essa concepção se

manifesta, ao longo da carreira, no cotidiano do seu trabalho e nas suas

relações com os outros atores do processo pedagógico.

Nos estudos sobre disciplina, na teoria de DURKHEIM e de

FOUCAULT, encontrei os conceitos que orientam o processo de

disciplinamento.

Nos estudos sobre habitus, na teoria de BOURDIEU, procurei desvelar

as estruturas que integram as experiências passadas e que acabam por

determinar as percepções, apreciações e ações dos professores face à

questão da disciplina e do disciplinamento.

À luz desses suportes teóricos, estudei a trajetória de vida de dois

professores, ambos com mais de trinta anos de magistério nas primeiras

séries do Ensino Fundamental, mas com trajetórias diferenciadas. Procurei

identificar a concepção de disciplina construída por esses professores e como

suas experiências influenciam suas ações em relação ao disciplinamento.

A Metodologia utilizada

Para a concretização da pesquisa optei pelo caminho da história oral de

vida, considerando que, como afirma MEIHY (1998), a história oral implica a

32

Page 33: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo

histórico não está acabado. Essa escolha me possibilitou, através dos relatos

da história oral de vida, ir desvelando os habitus que foram ao longo de cada

trajetória compondo o pensar e o agir dos professores.

O relato do professor sobre sua vivência em relação à disciplina e ao

disciplinamento em sua trajetória familiar, social, escolar e profissional e sobre

suas relações com os alunos ajudou a compreender sua visão sobre

disciplina e disciplinamento. Ao estudar os aspectos da vida do professor,

pude identificar sua concepção sobre o que é ser aluno

disciplinado/indisciplinado e o seu modo de atuação frente a essa questão,

uma vez que sua identidade resulta não apenas dos cursos de formação para

o magistério, mas também de suas vivências e experiências pessoais e

coletivas.

CUNHA (1994) afirma que a vida cotidiana é a objetivação dos valores

e conhecimentos do sujeito dentro de uma circunstância. É através dela que

se faz concreta a prática pedagógica, no caso do professor. É tentar descobrir

como ele vive e percebe as regras do jogo escolar, que idéias vivencia na sua

prática e verbaliza no seu discurso e que relações estabelece com os alunos e

com a sociedade em que vive.

Assim, a história oral permitiu a recuperação de informações e

possibilitou a visão particular de processos e vivências coletivos que se

expressam através de sentimentos tais como: medo, alegria, expectativas,

solidariedade, etc.

MICHELAT (1980) afirma que há possibilidade de reconstruir os

modelos de cultura e subcultura presentes numa sociedade através das

trajetórias de vida, levando em conta os processos de socialização vividos e

as influências recebidas, conscientes ou não, de diferentes grupos aos quais

os indivíduos já pertenceram ou pertencem ainda.

Os relatos pessoais, filtrados pelo tempo e pelos recursos individuais,

mostram o modo como as pessoas sentem e vivem o mundo.

A história oral, enquanto método de trabalho, incide sobre o passado

dos atores, sobre os aspectos da vida social, particularmente da esfera do

33

Page 34: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

cotidiano, nos dá o acesso à realidade, sem a exclusão do particular, do

marginal, das rupturas, que normalmente escapam aos trabalhos de cunho

quantitativo. Além disso, mediante a análise dos relatos orais, pude sentir a

interferência dos acontecimentos sociais e políticos nas trajetórias individuais

e as reações dos sujeitos a esses acontecimentos em diferentes momentos de

vida.

FONSECA (1997) diz que, ao estudar o relato da história de vida do

professor e por entender que o mesmo é uma pessoa, a sua maneira de

ensinar aparece diretamente ligada à sua maneira de ser, aos seus gostos,

vontades, rotinas, acasos, necessidades, práticas religiosas e políticas.

Ao ouvir os professores e atores envolvidos no processo de ação

pedagógica, encontrei significação para os fatos relativos às questões da

disciplina/indisciplina na sala de aula.

Segundo MICHELAT (1980: 199),

“numa pesquisa qualitativa, só um pequeno número de pessoas é interrogado. São escolhidas em função de critérios que nada têm de probabilísticos (...). É, sobretudo, importante escolher indivíduos os mais diversos possíveis”.

Portanto, as escolhas dos sujeitos desta pesquisa não foi aleatória,

mas sim, procurei intencionalmente, uma amostra que proporcionasse dados

fiáveis e significativos para o desvelamento do objetivo deste estudo.

Foram escolhidas duas professoras com aproximadamente o mesmo

tempo de percurso profissional (mais de 30 anos de magistério), ainda em

exercício e com histórias de vida diferentes. Tal delimitação permitiu uma

análise de duas trajetórias profissionais paralelas, mas diferentes no modo de

atuação.

As duas professoras escolhidas têm percursos diferentes no modo de

se relacionarem com os alunos. Uma tem fama de ser extremamente

exigente, brava, tradicional. A outra é alegre, gosta de realizar com os alunos

teatro, auditório, excursões. Ambas são consideradas boas professoras pela

comunidade e gozam da confiança dos pais.

34

Page 35: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Entrevistas com as professoras.

Os relatos da história oral de vida das duas professoras foram colhidos

através de entrevistas diretas, com questões abertas, cujo roteiro encontra-se

em anexo. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas.

Foram realizados cinco encontros com cada professora, com duração

entre uma hora e trinta minutos a duas horas cada. O intervalo de tempo entre

os encontros foi pequeno, procurando, com isto, manter vivo o processo de

reconstrução do passado.

Com uma das professoras, as entrevistas foram realizadas com

facilidade. A professora ficou muito feliz e se sentiu valorizada ao receber o

convite para participar da pesquisa. Por sua vez, contou com todo apoio da

direção da escola que cedeu uma sala confortável para a realização das

entrevistas, além de permitir que as mesmas se realizassem no horário de

trabalho da professora. Confiante, a professora falou com desenvoltura sobre

seu passado, sua família e sua carreira.

Com a outra professora, a fase das entrevistas foi mais embaraçosa e

implicou em uma série de contatos telefônicos e conversas informais, uma vez

que a mesma não se sentia segura diante do uso do gravador. Por fim, ao

concordar em participar da pesquisa, mostrava-se no início bastante reticente.

Foi necessário criar, primeiro, uma relação de confiança para que a professora

tornasse o seu relato mais fluente. Constantemente, a professora pedia, ora a

minha opinião, ora a minha aquiescência ao que dizia, com interlocuções do

tipo: Sabe? Você concorda? Não é?

As entrevistas foram realizadas durante o horário de trabalho da

professora, na escola, com a permissão da direção. A sala cedida para a

realização do trabalho era utilizada por várias pessoas que, muitas vezes,

interromperam as entrevistas por terem necessidade de pegar alguma coisa

que deixaram na sala. Essas interferências não foram agradáveis e

dificultaram os relatos que, às vezes, foram interrompidos e tinham que ser

retomados.

35

Page 36: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Na fase ainda de escolha dos atores da pesquisa, a maior dificuldade

dos mesmos era o de encontrar tempo e local para as entrevistas. Daí, a

solução para esse problema ter sido a de pedir a colaboração da direção das

escolas para ceder o tempo e o local para a realização do trabalho. Nos

relatos dos professores temos presente essa questão: “A professora, além do

magistério é dona de casa, lavadeira, passadeira, cozinheira, arrumadeira,

etc, etc; é mãe, é companheira, é..., é... não sobra tempo pra nada”. O

obstáculo do tempo e do espaço pessoal, portanto, foi resolvido com a

ocupação do tempo e do espaço profissional.

A realização das entrevistas, no horário e no local de trabalho das duas

professoras, permitiu dar seqüência e linearidade às mesmas.

Não posso negar que o uso da técnica de entrevistas é, por vezes,

bastante difícil. De fato, concordo com KANDEL (1980), quando afirma que a

entrevista não é simplesmente um trabalho de coleta de informações, mas

sempre uma situação de interação, ou mesmo de influência entre dois

indivíduos. Afirma, ainda, que as informações dadas pelo sujeito podem ser

profundamente afetadas pela natureza de suas relações com o entrevistador.

Assim, reportando a BONAZZI (1996), o entrevistador deve, antes de

mais nada, saber guardar silêncio, aprender a ouvir, respeitar o entrevistado,

estar disposto a tomar, pacientemente, a conversa, suscitar a recordação

através de um questionamento discreto, orientar o entrevistado sem

precipitação, procurar não falar ao mesmo tempo que ele, não insistir quando

ele evita uma recordação dolorosa, não se precipitar em perguntar de novo,

repetir a mesma pergunta de diferentes maneiras para tentar vencer as

barreiras.

É necessário, portanto e sobretudo, ser paciente e procurar criar, entre

o entrevistado e o entrevistador, um clima de cumplicidade. Constantemente,

no decorrer dos relatos, tive que exercer um papel de vigilante do meu próprio

papel de ouvinte imparcial, a fim de conservar o distanciamento necessário

durante a realização do trabalho. Por vezes, as lembranças dos professores

chegaram a me comover.

36

Page 37: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Outras vezes, os relatos chegavam a provocar sentimentos verdadeiros

de contradição, o que dava vontade de discutir e interferir. Foi necessário

lembrar sempre que, acima de tudo, como afirma FONSECA (1997), está o

respeito pelos sujeitos, pelas suas lembranças posições, explicações e,

sobretudo, pela autoridade dos mesmos sobre o que deve, ou não, ser

conservado.

Considero importante esclarecer que, muitas vezes, ao ouvir as

histórias dos dois professores, eu, professora que sou, sentia como se fosse a

protagonista daquela história, por ter vivido situações semelhantes.

Portanto, a imparcialidade e o distanciamento foram dois fatores

importantes para obter sucesso no desenrolar do trabalho. O objetivo das

entrevistas, era o de reconstruir os acontecimentos vividos e as experiências

adquiridas relacionados à questão da disciplina e disciplinamento, ao longo

das trajetórias de vida, e tentar captar como influenciaram na formação dos

habitus e na prática pedagógica dos professores.

As entrevistas com os atores que conviveram com as duas professoras

também demandaram um certo esforço. Ao falar sobre o tema das entrevistas

os atores se mostraram reticentes e alguns alegaram que não se lembravam

do tempo da escola primária.

Contatei vinte atores para realizar oito entrevistas, das quais duas

foram realizadas com diretores e seis com ex-alunos que conviveram com as

professoras.

Organização e Análise dos Dados

Nas investigações qualitativas, a análise dos testemunhos orais

deve-se considerar tanto a fala do sujeito, quanto o momento em que ele se

cala, silencia. Portanto, a análise dos dados teve por objetivo a leitura dos

relatos orais, para além das palavras e ultrapassando a simples descrição.

Através desta análise, procurei desvendar o professor na sua história, a partir

das circunstâncias que interferiam no seu modo de ser e agir, de suas

percepções e da formação de seus conceitos. Assim, ao reconstituir os

37

Page 38: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

acontecimentos vividos e as experiências adquiridas nas trajetórias das

professoras, tentei captar como as mesmas influenciaram e continuam

influenciando as suas relações com os alunos.

Portanto, a análise dos relatos das trajetórias das duas professoras

propiciou a compreensão da ação pedagógica por eles exercida.

38

Page 39: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

4 - Os professores e suas trajetórias de vida

Disciplina e disciplinamento: da concepção à ação.

"Não é apenas uma parte de nós que se torna professor. (...) compromete a totalidade do eu – da mulher ou do homem, da esposa ou do marido, do pai ou da mãe, do apaixonado, do intelectual, do artista que há em cada um, bem como do professor que ganha a sua vida... Coincidiam, misturavam-se afectaram-se uns aos outros, contaminando-se muitas vezes, sendo o próprio ensino a sua caixa de ressonância. Se me sentia feliz, a sala de aula ganhava. Se pensasse que o meu marido não estava satisfeito comigo, não ensinava adequadamente, mas, se ele me beijasse de manhã antes de ir à escola, ensinava de modo adequado. Quando os meus filhos estavam bem, a classe estava bem, mas se um deles estivesse doente, saía e eu ia para casa... a minha descoberta de tudo isto foi o que me levou ao estudo de mim própria e do ser humano” (Ashton-Warner, 1967, pp. 10-11) citado por Nóvoa (1992: 81-82)

Neste capítulo, após a contextualização das trajetórias – Duas

trajetórias em um mesmo tempo: algumas referências contextuais – são

analisados os relatos das duas professoras, considerando quatro eixos.

• A vivência da questão disciplinar no âmbito da família: formação dos

pilares da disciplina.

• Disciplina e disciplinamento na trajetória escolar: consolidação de

habitus disciplinares e formação de novos habitus.

• Disciplina e disciplinamento na trajetória profissional: reflexo dos

habitus na prática pedagógica.

• Conceitos e representações sobre disciplina e disciplinamento e

habitus disciplinares consolidados ao longo da trajetória.

39

Page 40: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

4.1 Duas trajetórias em um mesmo tempo: algumas referências contextuais

A década de 40, época do nascimento de Helena e Maria das Graças,

na História da Educação Brasileira, é marcada pela Reforma Capanema, que

tem início em 1942 e que determina no seu artigo 32:

“Deverão ser desenvolvidos nos adolescentes os elementos essenciais da moralidade: o espírito de disciplina, a dedicação aos ideais e a consciência da responsabilidade (...)”

Ao transpor os limites valorativos do campo social para se transformar

em foro legal, a disciplina alcança o patamar de um preceito. É assim que nas

escolas, nas décadas de 40 e 50 a disciplina é mais que um valor, ela é um

ensinamento que deve ser “cultivado” e inculcado.

Ao final da década de 50, inicia-se o chamado “período áureo do

desenvolvimento econômico brasileiro” que traz em seu bojo algumas

mudanças sociais e, entre elas, começa a delinear-se um novo papel da

mulher.

No campo educacional de um lado continua a luta pela escola pública,

gratuita e laica, de outro lado continua a defesa dos princípios da escola

particular de cunho religioso. Assim, as orientações teóricas predominantes no

pensamento pedagógico, que determinaram o período da formação escolar de

Helena e Maria das Graças, podem ser retratadas nos discursos dos

defensores da escola pública e da escola particular, esta, representada

sobretudo pela Igreja Católica.

A Igreja Católica acusa a escola pública de ter condições de

desenvolver somente a inteligência e, enquanto tal, instrui mas não educa.

Para a Igreja Católica, a escola pública não tem uma filosofia integral de vida.

Assim, a escola confessional seria a única a ter condições de desenvolver a

inteligência e formar o caráter, ou seja, educar. “É preciso antes formar as

almas”. A escola confessional defende a “cultura interior que dispõe as

consciências a qualquer sacrifício no cumprimento fiel dos seus deveres”. É

40

Page 41: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

assim, que nestas escolas, a ação educacional pauta-se na severidade e rigor

e consiste em “ministrar a educação física, intelectual, moral e religiosa” nos

moldes, ainda, de inspiração jesuíta.

Os defensores da escola pública, inspirados pelas idéias da Escola

Nova, demonstravam a necessidade da utilização dos “métodos comuns a

todo gênero de investigação científica” e consideravam que aos grupos sociais

cabia proporcionar condições para que cada um fosse responsável pela

própria formação.

Os seguidores da Escola Nova, ao lado da luta pela escola pública,

gratuita e laica, defendiam a necessidade de participação do aluno no

processo de aprendizagem, o respeito aos direitos individuais e coletivos, uma

disciplina escolar menos rigorosa, assim como o desenvolvimento de outras

formas de expressão além da linguagem oral e escrita, como a música, a

dança, a arte dramática e as artes plásticas.

Uma vez que Helena e Maria das Graças nasceram no início da década

de 40, freqüentaram a escola no mesmo período.

Contudo, a situação social e econômica das suas famílias define o tipo

de escola e, portanto, o tipo de formação escolar de cada uma delas.

Helena é filha de um ferroviário.

Maria das Graças é filha de um fazendeiro que pertence a uma

tradicional e poderosa família do coronel da região. Assim, embora tenham

nascido dentro de uma mesma conjuntura histórica, o capital econômico e

social das duas é completamente diferente.

A rede familiar, nesta época, é essencialmente protetora e,

principalmente as mulheres são cercadas de cuidados especiais potenciados

pelas idéias religiosas.

É assim que Maria das Graças e suas irmãs são enviadas para um

Colégio Religioso e vão estudar num regime de internato. O Colégio Religioso

além da garantia, da proteção e da educação, possibilita, ao mesmo tempo,

que a sua família continue morando na fazenda.

Maria das Graças tem na formação escolar a continuidade da rígida

formação familiar. Ao longo da sua narrativa pode-se notar como ela defende

41

Page 42: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

e preserva a dimensão da vida familiar, onde valores como obediência aos

pais, ordem, respeito, organização se misturam às características da cultura

própria da roça. Nota-se, ainda, que a ida para o internato foi um fato decidido

pelo pai e que os estudos tinham a finalidade de aprendizagens sociais e

culturais e não havia preocupação com a formação profissional.

Assim é que, pode-se perceber, a vida profissional foi claramente

rejeitada por ela, no início da carreira, passando contudo, a ser, ao longo da

trajetória profissional a uma das grandes paixões de sua vida. Dedicada e

responsável, ela é respeitada pelas colegas de trabalho e pela comunidade. É

interessante observar que, apesar dos anos vividos no internato, ela não

perdeu a sua identidade cultural e suas raízes estão fortemente fincadas na

zona rural, que lhe proporciona grandes alegrias e de onde extrai toda a sua

energia. Vivendo de segunda à sexta-feira em função da escola, os sábados e

domingos são dedicados à fazenda e à comunidade rural, onde participa dos

movimentos religiosos e sociais. É também dedicada professora de

catequese, tanto na zona rural quanto na urbana, preparando crianças para a

1ª comunhão.

Se, para Maria das Graças, os estudos não representaram uma

escolha, para Helena representaram, além da escolha, a luta e a força de

vontade. O magistério foi uma escolha de menina e a formação escolar foi a

oportunidade para novas relações e descobertas de novos valores. O conflito

com a mãe faz com que ela busque a realização fora do círculo familiar e,

apoiada pelo pai, vai morar em um Orfanato, dirigido por freiras, destinado a

crianças órfãs e abandonadas. Nota-se, na sua narrativa, que, partindo da

experiência de rígida disciplina, no âmbito familiar e no orfanato, ao freqüentar

a escola pública, foi fortemente influenciada por seu ambiente mais aberto,

especialmente por alguns professores, que tinham comportamento mais

liberal. O espaço de Helena torna-se um espaço aberto às mudanças. Ela

descreve a transição dos anos 50 para os anos 60, quando se começa a

revelar a mudança do papel da mulher e como ela, assimilando as idéias da

época, torna a sua relação com a família predominantemente conflituosa.

42

Page 43: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

O papel da profissão na vida de Helena parece ter um lugar central e,

como fator principal de vida, é por meio dela que se afirma tanto no campo

pessoal quanto no campo social.

Os percursos profissionais de Helena e de Maria das Graças são

completamente diferentes.

Maria das Graças, durante todo o seu percurso profissional, só

trabalhou em duas escolas públicas de 1ª à 4 ª série do Ensino Fundamental.

Nas duas escolas só trabalhou e trabalha ainda com a 1ª, 2ª e 3ª séries do

Ensino Fundamental.

O percurso profissional de Helena é marcado pela diversidade de

papéis, assumidos em diferentes escolas estaduais e particulares, séries

escolares e níveis de ensino. Desde o início da carreira até agora já trabalhou

com classes de pré-escola, com todas as séries do Ensino Fundamental e do

Ensino Médio. Além dos conteúdos das 1ª séries do Ensino Fundamental,

lecionou os conteúdos de Português, Inglês, Francês, Metodologia e Ensino

Religioso. A cada desafio responde sempre com esforço e as leituras e os

estudos autônomos parecem ser elementos fundamentais de conhecimentos

que lhe dão segurança no trabalho.

A importância da profissão é o fator marcante que domina todo o seu

relato. Foi graças aos estudos e à profissão que ela pode sair do mundinho

pequeno da roça e ganhar o mundo através da literatura, enquanto jovem, e

através das viagens já na maturidade, depois da viuvez.

Apesar da diferença dos percursos profissionais, as experiências

relativas à disciplina, vividas durante a infância, projetam-se de forma bastante

visível na relação com as crianças.

A análise detalhada das histórias das duas professoras leva ao

desvendamento dos fios condutores de suas narrativas pessoais e possibilita

perceber os habitus disciplinares que tiveram raízes na cultura familiar e,

consolidados na formação escolar, se tornam presença ativa na vida

profissional delas.

43

Page 44: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

4.2 A vivência da questão disciplinar no âmbito da família: formação dos pilares da disciplina.

Os relatos da vivência da questão disciplinar no âmbito da família são

analisados à luz dos aportes teóricos de BOURDIEU. Segundo ele (1990: 26),

as estruturas dos habitus disciplinares adquiridos na família constituem um

sistema de esquemas adquiridos que funciona, no nível prático, como

categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação e

simultaneamente como princípios organizadores da ação.” Afirma, ainda, que

o habitus nada mais é do que essa lei imanente, “lex ínsita”, depositada em

cada agente pela educação primeira (...) (1994: 71).

Nesse sentido, os habitus disciplinares consolidados na família são os

pilares da conduta disciplinar da pessoa em todos os outros momentos e

setores da vida.

Essa interiorização dos habitus disciplinares na história de vida familiar

das duas professoras é forte e marcante embora, na vivência profissional, elas

sigam caminhos, às vezes, opostos.

A análise dos relatos leva à constatação de que a vivência das normas,

regras e castigos, no âmbito familiar foi diferente para as duas professoras.

Para a professora Helena, a autoridade era representada pela mãe; que

impunha a disciplina, enquanto nos relatos da professora Maria das Graças, a

figura de autoridade na família era o pai. A mãe não apareceu nenhuma vez

nos seus relatos sobre disciplina e disciplinamento:

“Minha mãe mandava e a gente obedecia. Gostasse ou não gostasse...

Agora, papai era o extremo oposto, era a calma feito pessoa. Nem um filho se lembra de ver o papai chateado com alguma coisa. Era impressionante. Ele estava sempre de bem com a vida, sempre com fé que as coisas iam melhorar e nos tratava assim: incentivando e conversando. Claro que ele já deu algumas surras também. Já bateu. Mas, antes ele conversava demais. Se a gente extrapolava, ele falava: “ isso aqui” (ele mostrava a correia) eu não quero usar. Mas se for preciso, eu vou usar. Então, assim, raras vezes, eu pelo menos não me lembro de ter apanhado dele mais do que três

44

Page 45: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

ou quatro vezes. E ele pedia e conversava, chamava, mostrava...” (Helena)

“Meu pai era muito bravo. Quando meus dois irmãos

completaram dez anos, dez anos certinho, o pai levava os dois para o serviço, trabalhavam junto com ele, os empregados sabiam da brabeza do pai, então os empregados protegiam os dois.” (Maria das Graças)

“A mamãe, nós a chamávamos assim, escondidamente,

“a baixinha terrível”, porque com ela era dessa maneira: ela mandava e a gente obedecia. Gostasse ou não gostasse. E era proibido discutir ou questionar. E ela sempre dizia assim: aqui eu mando e você obedece. Filho não tem o direito de perguntar porque pai e mãe estão dando determinada ordem. Era a expressão que ela usava conosco e qualquer indisciplina que ela considerava desobediência, não cumprir exatamente na hora que ela queria, as coisas, do jeito que ela queria, ela apelava mesmo pra castigo físico, ela xingava, ela reclamava, criava um caso.” (Helena)

“Quando era período de férias, a gente preferia ir com

papai para a roça capinar (ele marcava os quadros que cada um tinha que capinar) do que ficar com a mamãe, porque tudo com o papai era festa. Agora, com a mamãe, o melhor dos trabalhos era um flagelo, tanto que ela xingava, reclamava que não saia do jeito dela.” (Helena)

“Minha mãe batia, ela batia mesmo, não tinha

escapatória, sabe? Se alguém fugisse, corresse, ela não ia atrás. Ela ficava quietinha. Ela não ia atrás, quando voltava apanhava em dobro (Helena).

Ela usava a mão, ela usava sapato, ela usava chicote,

que havia chicote, ela usava vara, ela usava de tudo. Então, aprendi a tabuada com vara na perna. Ela tomava a tabuada e não podia pensar. Ela falava 4+7. Eu não lembrava que era 11. “Então, está pensando?” Uma varada. Tinha que aprender assim.” (Helena)

Enquanto esquemas de percepção e apreciação e, ainda como

estruturas cognitivas e avaliativas adquiridas através da experiência durável

de uma posição no mundo social, o habitus, ao mesmo tempo em que produz

práticas também leva à percepção e apreciação das práticas vividas.

45

Page 46: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Os fragmentos dos relatos das professoras, apresentados a seguir,

constituem uma apreciação de práticas vividas:

“A principal regra era: 5 horas da manhã, todo mundo de pé, então até hoje eu me levanto às 5 horas da manhã, mesmo não sendo necessário, porque o hábito faz o monge, né? Todo mundo obedecia. A gente levantava, tomava o mingau, fazia a higiene e ia buscar lenha no terreiro, carregar água. Isto era obrigação nossa. Não podia esperar mandar, já estava determinado, e, depois a gente pegava o trem às 8 horas da manhã, para ir para a aula” (Helena)

“A gente tinha de aceitar as normas da casa. Tinha de

aceitar. Na época de nossa criação era tudo imposto mesmo, tinha de aceitar.” (Maria das Graças)

Também BOURDIEU (1994: 75), utiliza a expressão “o hábito faz o

monge” ao explicar que os indivíduos vestem os habitus como hábitos e assim

como o hábito faz o monge, isto é, faz a pessoa social, com todas as

disposições são, ao mesmo tempo, marcas da posição social. (...)”

O habitus de levantar cedo, adquirido na família, está no princípio de

um hábito que é praticado mesmo quando não é necessário.

As análises da percepção e a apreciação sobre a disciplina e o

disciplinamento vivido pelas professoras no âmbito familiar remetem à reflexão

sobre o “passado que sobrevive na atualidade” e, ainda, tende a perpetuar-se

no futuro.

Essas reflexões podem ser ilustradas em algumas passagens dos

relatos das professoras:

“Ela sentava a gente num banco alto. Eu olhava para baixo e esfriava toda. Então, eu não sou muito amiga de altura, não.” (Helena, referindo-se à mãe)

“A autoridade do meu pai nunca prejudicou a gente.

Tanto que, nós somos dez e todo mundo deu gente nesta vida. (Maria das Graças)

Eu acho que a educação de antigamente era

completamente diferente de hoje. De uns vinte anos para cá,

46

Page 47: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

de duas décadas para cá, mudou. Mudou mesmo! Antes a coisa era melhor. O pai tinha autoridade. A autoridade do meu pai nunca prejudicou. Não. (Maria das Graças)

“Aquele sentimento assim de que ela era opressora.

Contudo, porque eu passei a ver que há certas situações em que você impõe limites, e nós temos que impor limites. Acho que essa debandada que está havendo aí, na área da educação infantil e na adolescência, é falta de limites. Então, ela tinha aquele jeito de impor limites, porque ela não havia estudado, ela havia convivido assim, o que ela aprendeu foi isto. Então, ela fazia do jeito dela. Aí, eu pude entender que esse era o jeito que ela tinha, e não outro.” (Helena referindo-se à mãe)

Para BOURDIEU, as estruturas de um habitus conduzem ao processo

de estruturação de novos habitus que podem vir a ser produzidos fora da

família em outros momentos, em outras situações e em outras agências

pedagógicas. Contudo, o habitus adquirido na família estará no princípio da

estruturação de outros habitus. Mesmo nos habitus transformados pela

escola, o princípio da estruturação estará presente e em todas as experiências

ulteriores do sujeito, a interiorização dos valores, das normas e dos princípios

sociais sob a forma de habitus vão assegurar a adequação entre as ações

daquele e a realidade objetiva da sociedade.

BOURDIEU (1996: 158) fala que o habitus, como estrutura estruturada

e estruturante, engaja nas práticas e nas idéias, esquemas práticos de

construção, oriundos da incorporação de estruturas sociais oriundas, elas

próprias, do trabalho histórico de gerações sucessivas.

Diante disso, evidencia-se que o habitus, estrutura que integra todas as

experiências passadas e que funciona, portanto, como matriz de percepções,

apreciações e ações, possibilita a continuidade e a regularidade de

comportamentos que passam de pai para filho.

Eu era muito rigorosa, não podia, por exemplo, ficar dever para fazer sábado e domingo.

É interessante porque o mesmo castigo que eu dava para minha filha, ela dá à minha neta.

47

Page 48: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Ela diz:: Mãe, a senhora fez a mesma coisa comigo e não fez mal pra mim, porque vai fazer mal para minha filha? (Helena)

Vale pontuar que as duas professoras viveram a fase infantil, anterior à

formação escolar, na década de 40. Note-se que nesta época o contexto

apontava para uma disciplina muito rígida e muito austera. Os pais exigiam

obediência cega de seus filhos. Quando o pai falava, a criança ouvia de

cabeça baixa, sendo considerado ato de rebeldia qualquer tentativa de

resposta. Os castigos físicos eram aplicados e aceitos, naturalmente, como

forma de disciplinamento.

4.3 Disciplina e disciplinamento na trajetória escolar: consolidação de “habitus” disciplinares e formação de novos habitus

Martins (1987) afirma que a cultura escolar, enquanto uma das

agências formadoras de habitus, propicia aos indivíduos a ela submetida, um

corpo comum, de categorias de pensamento, de código comum, de percepção

e de apreciação, que tendem a funcionar como forma de classificação dos

homens e das coisas.

Assim, o sistema escolar faz com que os agentes que estão sob o seu

raio de ação, adquiram um sistema de disposições capaz de funcionar, não só

como esquemas de pensamento particulares e particularizados, mas também

como estruturas classificatórias, possíveis de serem aplicadas em diversas

situações. Desta forma, o sistema de ensino produz estruturas mentais que

são profundamente incorporadas nas mentes dos professores e alunos, de tal

forma que tendem a escapar do domínio consciente desses agentes sociais.

Os relatos de Helena e Maria das Graças sobre a disciplina e o

disciplinamento, nas instituições escolares onde estudaram, deixam evidente

que as regras escolares eram rígidas e estavam em consonância com o modo

de educação familiar. Assim, a consolidação dos habitus disciplinares é

evidente através dos esquemas de percepção e apreciação que as duas,

Helena e Maria das Graças, fazem de seus professores. É possível, ainda,

48

Page 49: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

através da análise dos relatos, perceber o princípio desse habitus na formação

de novos habitus que estão presentes em suas próprias práticas escolares,

reveladas na descrição da trajetória profissional.

Desse modo, as duas professoras relatam a vivência escolar enquanto

alunas, como um período em que a disciplina era rígida e imposta, cabendo

ao aluno “obediência cega”.

“Antigamente a disciplina era imposta pelo professor, professor era autoridade dentro da sala de aula. Hoje, já não é mais.” (Maria das Graças).

“Eu sempre respeitei os professores. Eu acho que a

gente estudou em colégio interno, então tinha as normas. As irmãs eram bravas, então respeitava. Respeitava mesmo!” (Maria das Graças)

“Eu não tive problema disciplinar, eu era Caxias. Se eu

questionava minha mãe em casa, na escola, eu era calada. Como aluna, eu fui muito aquela aluna Caxias, aquela aluna assim bem quietinha, que fazia tudo com perfeição, tinha mania de primeiro lugar.” (Helena)

“Um dia a professora de latim me pegou jogando

papelzinho. Aí ela realmente pegou no meu pé.Eu tive de passar a ser uma santa. Passei a ser uma santa na aula dela para não criar problema. Foi uma experiência positiva, aprendi a proceder dentro da sala dela.” (Maria das Graças)

“Agora, a professora mais brava que eu tive foi a Irmã

Regina. Ela era militarismo mesmo. O negócio com ela era assim: não admitia nada de errado. Eu acho que, até certo ponto, foi bom para nós, porque a gente aprendeu, assim, a ter uma disciplina com ela. Ela entrava na sala de estudo, o mosquito voava e a gente escutava o mosquito voar. Isso foi bom. Eu acho que tem que haver limite.” (Maria das Graças)

“No 2º ano de Magistério tive o primeiro problema

disciplinar. Eu questionei, numa aula de religião, o Padre Waldemar sobre uma questão de evangelho. Ele não gostou e chamou o diretor,O diretor chegou e perguntou o que tinha acontecido. Ele, então falou assim: quanto você tirou em religião ? Eu disse assim: 9. Ele falou: não, zero. Não senhor. Peguei a prova. Ele disse: quem manda aqui sou eu, e como você respondeu, você vai tirar zero nos próximos dois meses e eu mesmo vou ter o prazer de escrever na sua caderneta.

49

Page 50: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

No currículo escolar tem 3 zeros em religião e, hoje eu sou professora de educação religiosa, tenho trabalho de religião publicado em revista. Isto me marcou muito negativamente. Eu acho que os 3 zeros foram suficientes para tudo o que eu fiz. (Helena)

“Tenho lembranças desagradáveis, desagradáveis,

com uma professora do 2º ano. Ela estava grávida e passando muito mal e então nós tivemos um entrevero e eu vomitei na sala. Ela estendeu a vara para eu sair com o meu vomitado. Coitada, ela estava muito mal! Depois ela faleceu, morreu de parto.” (Helena)

Sem o objetivo de me afastar da perspectiva de habitus, reporto-me a

FOUCAULT para analisar o disciplinamento na trajetória escolar e, assim,

busco um melhor entendimento da formação de novos hábitus. Segundo ele

(1996: 160), o castigo disciplinar tem a função de corrigir os desvios. Assim, o

exame sob a forma de argüições, provas e notas, combina as técnicas da

hierarquia que vigia com as técnicas das sanções que normalizam, causando

o efeito corretivo que permeia a punição disciplinar.

Tanto no relato de Helena quanto no de Maria das Graças, percebe-se

um mecanismo de controle rigoroso, sendo que o castigo aparece,

principalmente, aplicado através de argüições, provas e notas.

“Um dia, eu não estava passando bem e a professora de Metodologia me argüiu na sala. Eu tinha tirado cem. A minha nota era cem e ela dividiu minha nota por 2. Ô gente? Eu tive paixão! Fiquei com a nota vermelha na caderneta, coisa que o papai e a mamãe não aceitavam de jeito nenhum” (Maria das Graças)

“O professor Osvaldo. Ele catava até pingos nos “is” em

português, dava centésimos de nota, dava zero em redação, ocupando uma página inteira, mas a gente aprendia português com ele; eu era apaixonada com ele.” (Helena)

“Nossa senhora! Qualquer coisa que a gente fazia na

aula dela, ela chamava lá na frente e fazia uma conversação em inglês e a gente passava o maior aperto. Aí a gente tinha que ficar caladinha. Ninguém queria ir lá na frente para conversar em inglês. Era o castigo dela.” (Maria das Graças)

50

Page 51: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“A professora de Matemática adoeceu e no seu lugar

entrou um professor que era militar. Ele deu a prova, a maioria perdeu nota, então a maioria ficou presa no internato por causa disso. Se a gente perdesse média não saía não, tinha que ficar lá, não vinha para casa no final de semana. Vinha para casa só na semana santa, um feriado maior e férias em julho. Ficava sem ver a família.” (Maria das Graças)

“A professora de desenho e eu nunca tive jeito para

desenho, me chamou lá na frente e me fez fazer um desenho para ela. Ah, meu Deus do céu, nem tirando cola! Eu não dei conta de tanto que eu tremia. E a prova oral era desenho. Isso tudo já melhorou no ensino. Já pensou se tivesse prova oral hoje? Coitado dos meninos. Prova oral de desenho. Isso quase me matou. Quase que eu tomo bomba em desenho.” (Maria das Graças)

O controle normalizante através da vigilância permite qualificar,

classificar e punir, estabelecendo para os indivíduos uma visibilidade através

da qual eles são diferenciados e sancionados. A qualificação dos

comportamentos, a partir dos valores opostos do bem e do mal, vai desaguar

no campo das boas e das más notas e, ainda, da divisão ou diminuição dos

pontos.

Segundo FOUCAULT (1996:), em todos os dispositivos de disciplina, o

exame é altamente ritualizado. A superposição das relações de poder e das

de saber assume no exame todo o seu brilho visível.

Os relatos das duas professoras evidenciam a presença do exame

como dispositivo disciplinar e, ao mesmo tempo, percebe-se a presença de

esquemas adquiridos, funcionando no nível prático, como categorias de

percepção e apreciação e, ainda, como princípios de classificação. Ao relatar

as práticas vivenciadas na trajetória escolar as duas professoras retratam o

balanço positivo do disciplinamento.

“Eu não sabia desenhar. Nem todo mundo tem o dom para o desenho. E tomei segunda época porque eu não sabia desenhar. Eu tomei antipatia e não sei desenhar até hoje. Culpa minha. Eu não culpo o professor. Não.” (Helena)

51

Page 52: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“Agora, lembranças agradáveis? Nossa! Eu tenho demais! Lembrança da minha primeira professora, dona Neide, que me dava aquele apoio. Eu chegava da roça, ela me levava para a casa dela. Eu subia com a pasta dela, pesada. Mas ela era muito brava, muito exigente, mas carinhosíssima. As recordações que eu tenho dela são as mais gostosas.” (Helena)

“Dona Noêmia, professora de 3ª série, uma baixinha

brava para danar. Mas, sabe? Aquela pessoa que levanta o astral de qualquer pessoa. Ela foi assim.” (Helena)

“Dr. Lauro foi história. Eu tinha calo no dedo de copiar

tudo que ele falava. Aquele pessoal todo me incentivou muito, mas havia ponto negativo, havia. O incentivo dos professores era muito grande, a ajuda que eles me davam, tanto na parte emocional como na parte material foi muito boa.” (Helena)

“Todas as pessoas da minha época, aprenderam um

pouco de Francês, porque o professor era tremendamente exigente, brincava muito, mas, era exigente, era rigoroso, e não era muito flexível com falta de responsabilidade no caso de dever, estudo e material, ele não era liberal mesmo. Em compensação, não estou falando mal, porque como pessoa ele era fantástico. O professor de inglês já era aquele bonzinho que a gente esquecia o material, não fazia dever, não queria ler, não queria falar, não falava. O pessoal da época não aprendeu inglês, no entanto o inglês era e sempre foi o mais necessário no sentido de relacionamento entre povos.” (Helena)

“A professora de inglês, eu achava o ensino dela bem

positivo porque, além de ser uma ótima professora, ela dava oportunidade, por exemplo: a gente fazia a prova, aí, ela corrigia, marcava os erros, mandava a gente procurar a palavra no dicionário. Ela era uma das professoras mais queridas da escola Ela era brava. Na aula dela ninguém conversava”. (Maria das Graças)

Aqui, também, vale destacar o contexto e a época. As duas professoras

vivenciaram o período da formação escolar na década de 50 e início da

década de 60. A disciplina nesse período ainda era muito rígida e o professor

não admitia questionamentos dos alunos. Autoridade absoluta na sala de

aula, o professor não só era autorizado, mas também incentivado a se utilizar

52

Page 53: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

de castigos para controlar os seus alunos. O bom professor, nessa época, era

aquele que mantinha os seus alunos quietos e em silêncio.

4.4 Disciplina e disciplinamento na trajetória profissional: reflexo dos “habitus” na prática pedagógica

“As pessoas sabem o que fazem; elas freqüentemente sabem porque fazem o que fazem; mas o que elas não sabem é o que faz (causa) aquilo que elas fazem”. FOUCAULT.

BOURDIEU (1994: 45) afirma que a prática poderia ser definida como

resultado incorporado de uma trajetória social.

É dessa forma que o habitus se encontra no princípio de encadeamento

das ações que são objetivamente organizadas como estratégias. Através do

habitus enfatiza-se, nas ações presentes, a dimensão de um aprendizado

passado que gera, além de práticas distintas e distintivas, esquemas

classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e gostos

diferentes.

Assim, é que percebe-se, na prática das duas professoras, um

distanciamento, por vezes paradoxal, embora, na formação familiar e na

formação escolar tenham experiências próximas com a disciplina e o

disciplinamento rígido e severo. Embora os conceitos e as representações das

duas sobre a disciplina e o disciplinamento, sejam bem semelhantes, na

prática profissional, as suas ações se distanciam bastante.

Para as duas, as questões relativas aos limites, ao respeito e à

responsabilidade são questões desafiadoras no processo educacional.

Para Maria das Graças, contudo, o maior desafio da prática pedagógica

é a indisciplina e para ela esse problema está ligado à abertura da escola aos

pais e à comunidade. Diz ela:

“O maior problema da disciplina, eu acho que é o pai vir à escola e tentar brigar com a professora. Porque tem pai que vem na escola e tenta desafiar a professora na frente do filho. Eu acho que isto aí é um verdadeiro desafio. Nas duas

53

Page 54: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

primeiras décadas eu trabalhei com meninos e nem conheci os pais. Eles não vinham na escola, não. Eles não participavam da vida escolar do filho, não. O professor tinha autoridade.” (Maria das Graças)

Esse desafio não existe para Helena. Desde o início de carreira ela

relata as suas relações com os pais dos alunos e a importância desse contato.

“O contato com os pais eu já estabelecia. Naquela época não havia muita abertura para os pais, mas como eu lecionava para turmas carentes, então eu ia lá, na casa deles, saber como é que era.” (Helena)

Ela reclama, ainda, da falta de envolvimento da família com a escola.

“Os pais estão esquecendo de que a base educacional é na família, a escola é apenas um auxiliar da educação. A família não se envolve e quando a gente chama um pai e diz que está aplicando um determinado castigo na criança e que ele pode nos ajudar, ele vira bicho e diz que nós estamos traumatizando a criança”. (Helena)

Ambas afirmam a necessidade do limite ser colocado na família, pelos

pais. Nesse sentido, percebe-se que os esquemas de percepção e de

apreciação adquiridos na família e na escola, consolidados como habitus se

reproduzem no seu cotidiano escolar. Não é sem razão que as professoras

afirmam que na escola foram alunas aplicadas, obedientes e responsáveis.

“Meu pai não aceitava nota vermelha na caderneta de jeito nenhum.” (Maria das Graças)

Nos relatos de Helena, percebe-se que a consolidação dos seus

habitus são o reflexo do conflito vivido entre a disciplina imposta pela mãe e a

atitude conciliatória do pai.

54

Page 55: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“Eu tinha feito uma promessa a mim mesma, quando adolescente, que tudo aquilo que minha mãe fazia comigo que eu protestava, eu não faria com os meus filhos. E eu fui me fazendo aquela promessa: eu faria diferente, de minha mãe.” (Helena)

Como a noção de habitus não somente se aplica à interiorização das

normas e dos valores, mas, também, inclui os sistemas de classificação, nesta

fala de Helena, pode-se entender o seu esforço, ao longo da sua trajetória

familiar, como mãe, e da sua trajetória profissional, para temperar a disciplina

como faziam seu pai e alguns de seus professores. É assim que, ao tentar

conformar e orientar as suas ações no sentido de compreender as atitudes

das crianças, percebe-se os esquemas generativos que estão presentes na

sua “forma de ver” a disciplina. Não é sem razão que ela afirma a sua

necessidade de estar sempre lendo e fazendo cursos de aperfeiçoamento.

“Você tem que ler, você tem que estudar muito, você tem que buscar apoio em educadores diversos, pra você variar bastante. Você tem que conhecer os processos de aprendizagem, você tem que conhecer a psicologia infantil, e, à medida que a gente vai estudando e vivenciando a prática, regendo turmas, isso vai modificando a gente. Aliás, meu pai sempre dizia que a gente tem que ser como o vinho: quanto mais velho mais gostoso, porque se eu não for um bom vinho, vou virar vinagre, vou azedar”. (Helena)

Nos relatos de Maria das Graças percebe-se que a função da disciplina

e do disciplinamento na prática pedagógica não tem somente um caráter

moralizador mas, também, um caráter de conformação, produção de

docilidade e eficiência. Assim é que os estudos de FOUCAULT se tornam

importantes para a compreensão das ações de Maria das Graças.

Para ela, “menino tem que ganhar castigo mesmo, porque eles têm

medo de castigo”. Esse sentimento reporta à sua própria infância, quando por

“medo dos castigos do pai” ela fazia “tudo o que tinha de ser feito”, “sem

questionamentos.” “O pai mandava e a gente obedecia.”

55

Page 56: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“Eu acho que tem hora que a gente tem que ser dura no castigo. Prometeu? Tem que dar, senão eles tomam conta da gente”. (Maria das Graças)

“Na escola não é lugar de correria. Sala de

aula?Menino tem de ficar calado. Prestar atenção. Não se aprende com bagunça. Eu sempre usei esse método: ninguém aprende com bagunça. Tem que haver ordem para haver progresso”. (Maria das Graças)

FOUCAULT (1996: 127) afirma que o momento histórico da disciplina é

o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não

unicamente o desenvolvimento de suas habilidades, nem tampouco

aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo

mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente.

“A gente tem que dar liberdade para o aluno se manifestar, mas, na hora de aprender, ele tem de obedecer.” (Maria das Graças)

É assim que, através da disciplina, os corpos se tornam submissos,

dóceis e ao mesmo tempo, exercitados, portanto, capazes de professar e

praticar a disciplina.

FOUCAULT, tanto em Microfísica do Poder, quanto em Vigiar e Punir,

fala sobre a distribuição espacial dos indivíduos. “Através da disciplina faz-se

a individualização pelo espaço individualizado, classificatório e combinatório.”

A professora Maria das Graças fala sobre a sua dificuldade em aceitar alunos

“fora do lugar”, em aceitar o trabalho em grupo, em ver aluno andando pela

sala... Para ela só pode haver aprendizagem num ambiente organizado.

“Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo”

“Eu não deixo menino ficar andando dentro da sala de aula, porque eu acho que tem limite para tudo”. (Maria das Graças)

56

Page 57: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Para FOUCAULT, desse modo, evita-se as distribuições em grupos e

anula-se os “efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento

descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação

inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de

antiaglomeração”. As duas professoras falam sobre a utilização do “mapa da

sala”, que possibilita a localização permanente de cada aluno, tornando fácil

controlar as presenças e as ausências, uma vez que se sabe onde e como

encontrar os alunos.

FOUCAULT (1996: 134) fala que a determinação de lugares individuais,

torna possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Isto

organiza uma nova economia do tempo de aprendizagem, o que explica a

preocupação das professoras com a “organização da sala”, porque “ sem

ordem não há progresso”.

“Esse ano, tive problemas com disciplina no princípio do ano porque a professora do ano passado, excelente colega, ela era muito liberal e eu já não sou tão liberal quanto ela. Ela dava aula com um monte de menino atrás dela, eu trabalho em grupo mas, eu não deixo ninguém ficar andando na sala não.” (Maria das Graças)

A lembrança dos horários rígidos do Orfanato (onde Helena viveu) e do

Internato (onde Maria das Graças estudou), estão presentes nos relatos sobre

a impontualidade dos alunos, o que enfatiza, nas suas ações pedagógicas, a

intolerância com os atrasos das crianças. Esse fato, mais uma vez, reforça a

dimensão do aprendizado adquirido e interiorizado sob a forma de habitus.

Assim, o horário, como velha herança do controle, é um detalhe que

preocupa as professoras, porque para elas “tem que ter hora para tudo”. Além

disso, elas falam da importância da pontualidade e reclamam da

irresponsabilidade dos pais, quando os alunos chegam atrasados à escola.

“Tem menino, que se deixar, chega aqui (escola) às sete e meia. Tem que educar os pais, colocar relógio para despertar mais cedo...” (Maria das Graças)

57

Page 58: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

FOUCAULT (1996: 137, 139) afirma que “o tempo medido e pago deve

ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa

qualidade, e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu

exercício. A exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as virtudes

fundamentais do tempo disciplinar. Um corpo disciplinado é a base de um

gesto eficiente: “ordem e progresso”. É assim que, estabelecendo “horário

para tudo”, se afasta o perigo da “perda de tempo”.

O ano passado eu trabalhei com a 1ª série, eu estava dobrando. Então, os meninos eram indisciplinados. Então, a primeira semana que eu trabalhei, foi só para a disciplina. Eu quase não dei nada. Uma mãe reclamou e eu disse: primeiro eu estou colocando-os no eixo, do meu jeito, para depois eu começar a dar a matéria. Essa primeira série foi na base do castigo mesmo. Vou te dizer a verdade: eles estavam sem limites mesmo. Estavam tão sem limite que um menino chegou a sentar a mão na “boca do meu estômago.” (Maria das Graças)

FOUCAULT (1996: 159) diz que “na essência de todos os sistemas

disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal”. E, na escola, “funciona

como repressora, toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências,

interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo),

da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice,

insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da

sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de

punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a

privações ligeiras e a pequenas humilhações.”

Para Maria das Graças, “escola é um lugar para estudar e aprender.

Escola não é lugar de correria, de tagarelice, de bagunça”. É assim que, antes

de “começar a dar matéria”, se torna necessário colocar os alunos “no eixo”, o

que significa que cada um deve ficar ciente do que é “certo” e do que é errado

e do perigo de fazer coisas erradas. A disciplina dialogada, de que fala a

professora, pode ser entendida como uma série de combinados que

58

Page 59: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

constituem uma lista de regras e de punições que são negociadas com os

alunos.

Nesse jogo de combinados, o castigo disciplinar tem por função reduzir

os desvios e corrigir os erros.

Eu ficava com eles na hora do recreio, ficava depois da aula. Conversava com o pai. Conversava com o aluno, com o pai perto dele, mostrava o que estava errado. Em setembro, estavam todos lendo e fazendo produção de texto.

Na realidade, o pai e a criança sentem o valor da disciplina (Maria das Graças).

FOUCAULT (1996: 140) fala sobre isto: “Já a disciplina organiza uma

economia positiva; coloca o princípio de uma utilização teoricamente sempre

crescente do tempo (...).” Controlando, pois, o espaço e o tempo, Maria das

Graças acredita que sua prática pedagógica se torna melhor e é, ao mesmo

tempo, facilitada. Ela fala sobre o aluno indisciplinado como aquele que é

relapso, que larga tudo no meio do caminho, não tem nada em dia, não

obedece às ordens e tudo isto acaba atrapalhando a ele e à turma. Portanto,

para ela, é necessário aplicar os castigos e é por medo deles que os alunos

indisciplinados, às vezes, ficam quietos e cumprem as tarefas e as ordens.

Pode-se distinguir, nas representações e ações das professoras, a

influência dos habitus. Assim, eles asseguram a reprodução das relações que

os engendraram, conformando e orientando as ações pedagógicas das duas

professoras. Elas falam do sofrimento que os castigos provocam, o que faz

com que se reporte ao sofrimento por elas sentido na infância e na escola.

Esse sentimento, contudo, não muda a representação de que o “castigo

seja necessário em alguns momentos” da prática pedagógica.

Os castigos provocam sentimentos “de dor, sabe”? De dor, porque eu estou tirando da criança aquilo de que ela mais gosta. Então, dói em mim e depois falo isso com ele”. (Helena)

DURKHEIM reflete sobre isto ao afirmar que

59

Page 60: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“o mestre não deve esmorecer pelo uso de sua sensibilidade profissional. É necessário que ele se interesse suficientemente pelos seus alunos para não olhar para suas faltas com lassidão, com indiferença; é necessário que ele sofra com elas, que delas se lamente, e que dê mostras de seus sentimentos. Isto, porque, a grande receptividade da criança às influências exteriores, faz com que os sentimentos que perante ela se expressam, nela se repercutam facilmente. A criança acaba por reproduzi-los e, por conseqüência, partilha-os também, sofre com o sentimento que vê exprimido ou regozija-se com a alegria, numa palavra, mostra a sua simpatia para com as outras pessoas.“

As duas professoras falam que, ao demonstrarem os seus sentimentos,

conseguem sensibilizar os alunos, que acabam entendendo que o castigo foi

necessário. As duas falam de alunos indisciplinados que hoje, depois de

adultos, são seus amigos. Esta apreciação nos reporta à suas lembranças dos

ex-professores, que são percebidos, hoje, como bons e responsáveis.

“Aqueles professores que eram mais rigorosos, mais exigentes, que na época a gente considerava que mais atrapalhavam a nossa adolescência, foram aqueles que mais deixaram marcas porque a gente aprendeu mesmo aquilo que eles se propunham a fazer a gente descobrir. “ (Helena)

Embora relatem o sentimento de tristeza que sentem quando aplicam

castigos, as duas professoras relatam situações em que não há outra saída

senão a de aplicá-los e, com a proibição dos castigos físicos, surgem outras

formas de corrigir os erros.

É, especialmente, sobre a disciplina e o disciplinamento na prática

pedagógica, que os relatos das duas professoras mais se diferenciam e, é por

isso que, às vezes, os relatos sobre os castigos nos reportam ao caráter

moralizador e outras vezes ao caráter normalizador da disciplina. Neste

sentido, o reflexo dos habitus consolidados ao longo da trajetória na prática

60

Page 61: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

pedagógica são analisados ora com os aportes teóricos de DURKHEIM, ora

com os de FOUCAULT.

DURKHEIM (1984: 304) destaca como elementos principais da

penalidade escolar a privação de divertimentos, deveres suplementares, as

censuras e as reprimendas. Esses elementos aparecem também, nos relatos

sobre a prática pedagógica das professoras.

“Eu sou totalmente contra machucar uma criança. Agora, castigo: eu acho muito produtivo. Quando você tira da criança o que ela gosta, dá resultado. Ah! Dá mesmo!

Aqui, dentro do colégio, surte muito efeito cortar a educação física, porque nós temos duas aulas de educação física dentro do horário escolar e eles têm paixão por esse horário.

Outro castigo que surte efeito, quando a falta é dever de casa é assim: olha, você vai perder 15 minutos da aula de arte, para colocar o dever em dia”. (Helena)

DURKHEIM chama a atenção para o fato de que o professor precisa ter

todo o cuidado para que o sistema de punições não perca a sua eficácia e por

isso se torna necessário graduar os castigos.

Assim, “a autoridade do mestre deve temperar-se com benevolência,

de forma que a firmeza não degenere em rudeza e inflexibilidade.”

“Qualquer castigo, só é aplicado após três admoestações. Na quarta vez vai ficar 15 minutos da aula de arte ou de informática”. (Helena)

“Quando eu chego a aplicar um castigo, que é incidência mesmo, já é na quarta vez, e eu vi que não resolveram as 3 primeiras chances. Quando falo que eles vão perder, eles pedem assim: “pelo amor de Deus, tia, me dá uma chance, só mais uma”. Então, aí eu amoleço. Olha aqui, você vai hoje, muito cuidado com a próxima vez. Mas geralmente isto resolve. Quando me pedem chance eu dou mesmo”. (Helena)

61

Page 62: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Apesar de considerar os castigos como necessários, as professoras

afirmam que os mesmos são causa de sofrimento e dor também para os

alunos que os recebem.

“Geralmente o aluno que recebe castigo, ele fica extremamente chateado, a gente nota no olhar, nota na expressão facial, nos gestos. É como se ele estivesse pedindo socorro, essa é a sensação que eu tenho.” (Helena)

A constatação desse sentimento faz com que, muitas vezes, o castigo

seja perdoado. “Quando me pedem uma chance eu dou mesmo”.

DURKHEIM considera que, uma vez que o castigo foi dado, só se deve

revogá-lo “nos casos em que a criança resgate a sua falta de uma forma

gritante, mercê de um ato espontâneo. Esta é uma regra pedagógica

relativamente à qual toda firmeza não é demais.” Assim, apesar de considerar

que a firmeza é importante quando se aplica castigo, “o que importa, não é

que a criança sofra e que o seu ato seja energicamente reprovado”. Sem

dúvida, é quase inevitável que a condenação provoque o sofrimento daquele

sobre quem recai, uma vez que na exigência do cumprimento de qualquer

dever existe uma privação, um sacrifício, uma renúncia, que custam sobretudo

quando para os mesmos não estamos naturalmente propensos. Portanto,

“castigar, não é torturarmos alguém no seu corpo ou na alma”; é sim, perante

a falta, afirmar a regra que a falta negou. O castigo deve fazer o aluno refletir

sobre a falta cometida, deve ajudá-lo, sobretudo, a ver o que é certo e o que é

errado.

“Agora, recreio, é expressamente proibido tirar minuto de recreio, porque a criança fica ocupada quase três horas dentro da sala e ainda ficar mais tempo lá? Não.” (Helena)

DURKHEIM recomenda que não só não se deve bater, como também

se deve proibir qualquer castigo susceptível de prejudicar a saúde da criança.

62

Page 63: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Por tal motivo, as privações de recreio só com muita moderação devem ser

utilizadas, e jamais serem completas.

Sobre a privação do recreio como castigo as duas professoras têm

opiniões diferentes. Para Helena ”tirar o recreio é proibido”. Para Maria das

Graças “tirar o recreio é um dos poucos castigos que ainda pode ser

aplicado.”

Maria das Graças repete, nos seus relatos, que hoje o professor perdeu

a autoridade. Entendo que “a perda de autoridade” significa para ela o fato de

não poder utilizar castigos “mais severos” para reduzir os desvios e corrigir os

erros, bem como a interferência do pai nas ações escolares.

“Hoje, por qualquer coisinha, o pai vem na escola. Antes a gente punha menino de castigo na frente, em pé. Hoje, se a gente fizer isso, você pode até ser presa”. (Maria das Graças)

Um tipo de castigo que as duas professoras receberam durante a

formação escolar e que hoje é utilizado por elas é o da cópia. Entretanto, a

cópia utilizada “antes” era diferente. A cópia do tempo delas era, por exemplo,

copiar cem vezes a frase “Não devo conversar na sala de aula.”

Hoje, as professoras dizem que “a cópia só é aceita pelos pais quando,

nela, eles enxergam um objetivo”. As cópias de textos literários, de textos

informativos de ciências, geografia ou história, de questionários, de notícias

são “cópias que têm objetivo”, porque estão fazendo a criança aprender

alguma coisa”.

As professoras observam que essas cópias são diferentes das cópias

feitas no tempo de sua formação escolar e justificam que elas acabam

“ajudando a criança a aprender mais”. Essa representação da cópia como um

exercício é aplicada por FOUCAULT (1996: 160) que afirma: “ao lado das

punições copiadas ao modelo judiciário, os sistemas disciplinares privilegiam

as punições que são da ordem do exercício-aprendizado intensificado,

multiplicado, muitas vezes repetido.”

FOUCAULT (1996: 161), citando J. B. de LA SALLE, descreve:

63

Page 64: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“O castigo escrito é, de todas as penitências, a mais honesta para um mestre, a mais vantajosa e a que mais agrada aos pais; (permite) tirar dos próprios erros das crianças maneiras de avançar seus progressos, corrigindo-lhes os defeitos; (àqueles, por exemplo), que não houveram escrito tudo o que deviam escrever, ou não se aplicarem para fazê-lo bem, se poderá dar algum dever para escrever ou para decorar”.

As duas professoras falam da aceitação da cópia com objetivo pelos

pais.

“ Outro castigo era dar cópias: ”Devo ficar calado na sala de aula”..., aumentar dever de casa. A diretora dizia assim: Está te amolando dentro da sala? Dá uma leitura para ele fazer. Dá uma cópia. A cópia sempre foi usada como castigo. Até hoje. Mas hoje a cópia tem de ser dentro de um objetivo, senão, o pai não vai gostar.” (Maria das Graças)

A cópia foi, também, um castigo que as duas professoras vivenciaram

no tempo da sua formação escolar. Quando relatam essa vivência, elas falam

do resultado do castigo: “a gente aprendia. Aprendia mesmo”.

Maria das Graças fala que os castigos resolvem durante algum tempo,

mas “como brasileiro tem memória curta”, depois de um certo tempo eles

esquecem e voltam a cometer outras indisciplinas.

Também Helena fala sobre isto:

“Os castigos resolvem. O castigo da indisciplina resolve um certo tempo. Por exemplo: no caso de dever de casa, se perderam 15 minutos da aula de arte, que eles adoram, então, o que acontece: durante um mês eles fazem o dever de casa. Depois... “ (Helena)

FOUCAULT (1996: 163) afirma que “a arte de punir, no regime do

poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a

repressão. Na verdade, a penalidade tem a função de normalizar.

64

Page 65: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Além das cópias, outras formas de castigos usados hoje, pelas

professoras, são as argüições sob a forma de leitura e interpretação, deveres

extras e as “notas”. É interessante que estes mesmos castigos foram

vivenciados por elas durante a formação escolar. Através destes castigos,

controla-se o aluno indisciplinado mas, também, coloca-se à prova o que o

aluno sabe. “Eles odeiam esses deveres extras”, dizem as professoras,

principalmente, quando é dada uma nota através deles.

FOUCAULT (1996: 164, 165) fala que o exame combina as técnicas da

hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. “É um controle

normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.”

Sobre o castigo que aplicavam no início e meio da carreira, Helena e

Maria das Graças relatam que os mesmos eram mais severos e eram

incentivados pelos diretores e aceitos pelos pais e pela comunidade.

Helena relata:

“As filas tinham que ser certinhas, cada um olhando para a cabeça do outro e não podia balançar... tinha horário para ir ao banheiro... os pintões ficavam em fila, no sol, no pátio até ficarem quietinhos um olhando a cabeça do outro, tudo certinho, igual militar. A gente podia colocar criança virada para a parede, colocar criança de pé, sentar menino com menina, porque era carteira dupla (eles odiavam isto), podia diminuir nota por comportamento (coisa que eu nunca aceitei), podia dar transferência para o aluno, suspender aluno de aula, dar reguadas, não deixando marcas, podiam ser dadas.” (Helena)

Por sua vez, Maria das Graças narra:

“Era bem mais fácil na primeira e na segunda década manter uma disciplina dentro da sala. A gente puxava o cabelo..., punha o menino de castigo na frente, em pé. Hoje se a gente fizer isso, pode até ser presa.

“Agora, praticamente, a gente não pode dar castigo nenhum. Tem que ser tudo na base do diálogo. Quando muito, tirar recreio, dar dever extra.” (Maria das Graças)

65

Page 66: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

As práticas de disciplinamento utilizadas no início e meio de carreira

das duas se aproximam das práticas vivenciadas durante a formação escolar.

Sabendo-se que o habitus assegura a interiorização da exterioridade,

compreende-se a adequação das ações das professoras no início e meio da

carreira.

Sobre o momento atual da prática pedagógica os relatos das duas

professoras ficam permeados pelas incertezas e insegurança diante das

mudanças. Elas consideram que os pais estão mais relapsos e, ao mesmo

tempo em que “cobram“ da escola um tratamento suave com seus filhos,

entregam a ela a responsabilidade pela educação deles.

“Tem pai que chega perto de mim e fala: conversa com esse menino para mim. A professora, hoje em dia, está sendo professora e mãe ao mesmo tempo. A gente acaba assumindo a responsabilidade de pai e mãe dentro da escola. E os pais vem e dizem assim: “eu não consigo colocar meu filho para fazer dever de casa”. O problema sério que eu acho é que a tarefa de casa é de casa, ela deveria ser castigada em casa, ela deveria ser resolvida em casa.” (Maria das Graças)

“É de madrugada que o dia começa, muita gente diz

que é de manhã, é dia, então, o dia começa de madrugada. Também a educação, ela não começa quando a criança nasce, tenho certeza de que ela começa na gravidez, ou quem sabe até na educação dos pais.” (Helena)

Nos relatos de Maria das Graças, tanto no âmbito familiar, quanto no

âmbito da formação escolar, no “Internato” onde estudou, a vivência da

disciplina e do disciplinamento foi cercada pela vigilância e pelo controle.

A formação dos pilares da disciplina sob a forma de habitus, bem como

da consolidação desses hábitos e a formação de novos habitus na trajetória

escolar aparecem na prática pedagógica das duas professoras sob a forma de

percepções e apreciações que elas vão emitindo ao longo dos seus relatos.

Na prática pedagógica de Helena, as percepções e apreciações sobre

a disciplina e disciplinamento fazem perceber a influência do pai, ferroviário de

visão larga e ampla, talvez proporcionada pelos horizontes sem fim que

66

Page 67: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

percorria guiando o trem de ferro, e, ainda, a influência da trajetória escolar

vivida em uma escola pública, onde teve a oportunidade de conviver com

professores mais liberais que as freiras do Internato onde Maria das Graças

estudou.

Assim, embora tenha por parte da mãe recebido uma educação rígida e

severa, Helena desenvolve uma resistência às formas de disciplinamento

utilizado pela mãe.

Tanto que ela repete em seus relatos que não quer ser igual à mãe,

embora hoje entenda a sua forma de agir no passado, e faz questão de

afirmar que ela mudou totalmente e que a sua relação com a mãe, lúcida e

ativa aos 86 anos, é muito melhor.

Com relação a Maria das Graças, o reflexo dos habitus consolidados na

família e na trajetória escolar aparecem principalmente nos relatos das

dificuldades encontradas na relação com os alunos – que mudaram muito, são

respondões, relapsos - na relação com os pais – que não impõem limites para

os filhos - na relação com os diretores – que querem modernidade - na

relação com os colegas – que não dão conta da disciplina.

Nos relatos de Maria das Graças percebe-se um “quê de saudade” dos

velhos tempos quando o professor era autoridade, era o dono da sala de aula.

As suas percepções e apreciações sobre a disciplina e o disciplinamento

fazem perceber que os habitus consolidados na família e na escola estão no

princípio organizador da sua prática pedagógica. É assim que ela valoriza a

obediência, o silêncio, a ordem, a hierarquia, o capricho (caderno bonito, bem

cuidado, letra bonita).

Apesar de um “certo desencanto” decorrente das mudanças ocorridas

na educação, principalmente com relação ao comportamento dos alunos,

Maria das Graças afirma que pretende trabalhar “mais uns 4 ou 5 anos ainda”.

Helena, por sua vez, afirma que muita coisa mudou, mas ela também

mudou e pretende “trabalhar, ainda, mais uns vinte anos”. Com relação à

questão da disciplina ela mudou muito, aprendendo com as crianças, nos

livros, nos estudos.

67

Page 68: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“Com a evolução dos tempos eu tinha que adaptar, eu tinha que evoluir porque senão eu não seria aceita, como eu continuo sendo, na área educacional”. (Helena)

“Eu tenho essa paixão pela educação. Se nascer de

novo? Volto a ser educadora! Porque a educação é um processo contínuo, e eu acho que até fechando os olhos, pela última vez, eu ainda vou estar recebendo uma aula de educação da vida.” (Helena)

Como se pode observar, ao longo dos relatos, percebe-se que as

representações sobre a disciplina e o disciplinamento sob a forma de castigos

vão mudando de acordo com a época e o contexto. Note-se que até a década

de 70 as duas professoras consideravam que era mais fácil controlar os

alunos. Nessa época, a disciplina também era muito rígida. Vivia-se o

momento político do regime militar e as escolas constituíam o espaço

institucional para a formação do trabalhador para a garantia do milagre

econômico. A partir da década de 80 com a “abertura política” e a volta do

regime democrático, a educação volta-se para a procura de novas alternativas

educacionais.

A tônica dos debates educacionais pauta-se pela crítica à escola

tecnicista e autoritária. É a partir dessa década que as duas professoras, cada

uma a seu modo, apresentam maiores dificuldades para lidar com a questão

da disciplina. É, a partir daqui, que a falta de limite das crianças e a falta de

autoridade dos pais passam a ser o maior problema para a ação pedagógica

na trajetória profissional de Helena e Maria das Graças.

4.5 Representações sobre disciplina e disciplinamento e habitus disciplinares consolidados ao longo da trajetória

Para mudar o mundo, é preciso mudar as maneiras de fazer o mundo, isto é, a visão do mundo e as operações práticas pelas quais os grupos são produzidos e reproduzidos. (BOURDIEU, 1990: 166)

68

Page 69: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

As representações são estruturas estruturadas que exprimem o sentido

que o sujeito dá à sua experiência no mundo social, utilizando-se dos

sistemas de códigos e interpretações fornecidos pela sociedade e projetando

valores e aspirações sociais. As representações têm, deste modo, íntima

relação com a concepção que o agente tem do ser humano e da sociedade.

FERREIRA e EIZIRIK (1994) afirmam que “muitos dos problemas

vividos na escola advêm de formações e conceitos interiorizados, crenças

cristalizadas na rotina do cotidiano, que acabam por naturalizar práticas (...)”.

Assim, ao utilizar o conceito de representações sociais, procuro

elementos essenciais para a análise dos mecanismos que interferem na ação

educativa das duas professoras.

Para Helena, embora afirme sempre a sua repulsa pelas normas

impostas, a representação sobre a disciplina e o disciplinamento revela “a

produção de uma percepção retida na lembrança”.

Esperar-se-ia que, pela ojeriza com que relata as imposições da mãe,

ela não fosse repetir o comportamento daquela. Contudo, ela se vê repetindo

algumas regras e limites impostos pela mãe e, hoje, entende que eles são

necessários. Isto se explica no fato de que, no princípio da representação está

o habitus, que tende a conformar e a orientar a ação, assegurando a

reprodução das relações objetivas que o produziram.

“Na época em que eu era criança, isto tem mais de 50 anos - a gente tinha essa disciplina rígida, até repressora mesmo, com limites até em excesso. Eu sentia repulsa pelo excesso de regras que eram impostas. Por outro lado, hoje acredito que nós caminhamos no oposto. A criança não tem mais regras, não tem mais limites. Parece que os pais perderam... Parece não. Eles perderam realmente a noção de educadores. Eles chegam para a gente, aqui, e dizem: olhe, faça o que quiser com esse menino, porque eu não dou conta dele. O pai tem de dar conta do filho sim, porque a responsabilidade maior é dele. Eu considero a escola como uma auxiliar da educação. O educador é o pai, a educadora primeira é a mãe. Então, eles têm de dar conta dos filhos. Então mudou muito. Eles estão perdidos.” (Helena)

69

Page 70: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Por sua vez, os relatos de Maria das Graças confirmam as idéias de

Helena. Também ela considera que “a educação vem mesmo de berço” e que

a falta de limites é o maior problema da escola.

“Não adianta o pai educar o filho perto da gente. Ele tem de colocar limite nele, dentro de casa. Eu acho que o limite está faltando é na família. Menino toma conversa do pai. É um limite que o pai tem de por: eu estou falando, você tem que ouvir.

A educação vem mesmo do berço.” (Maria das Graças) “Acho que tudo deveria ter limite. Essa falta de limites é

que está gerando tanto conflito dentro da escola. E, ela vem de casa. Não foram estabelecidos limites para a criança dentro de casa. Então, ela chega aqui e quer transferir para a escola aquilo que ela é em casa. Em casa ela faz o que quer, ela grita, ela xinga, ela suja as coisas, ela não guarda nada. Você sente isso: ela é indisciplinada, na convivência, ela é indisciplinada no seu material, ela é indisciplinada interiormente, ela não coordena as obrigações dela. Então, aquela dificuldade resume tudo em conflito com o professor.” (Maria das Graças)

Assim, percebe-se que as representações que as duas professoras têm

da educação familiar exprimem o sentido dado à suas experiências no mundo

profissional, quando interpretam os comportamentos dos alunos como bons

ou maus e traduzem “a crença cristalizada” de que a família é a responsável

pela indisciplina do aluno na escola.

GUARESCHI (1995: 197) afirma que toda explicação depende

primariamente da idéia que nós temos da realidade. É essa idéia que governa

nossas percepções e inferências construídas a partir delas, junto com nossas

relações sociais.

Ao relatar o comportamento das crianças de hoje as duas professoras

relembram a época em que eram crianças, em que obedeciam e respeitavam

os pais e os professores. Para elas isto constitui um valor que se tornou

importante na formação moral das duas.

BOURDIEU (1994: 65, 66) explica esse tipo de comportamento

reportando a DURKHEIM:

70

Page 71: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“(...) Em cada um de nós, em proporções variáveis, há um homem de ontem, é o mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está predominantemente em nós, posto que o presente não é senão pouca coisa comparado a esse longo passado e no curso do qual nos formamos e de onde resultamos. Somente que, esse homem do passado, nós não o sentimos, porque ele está arraigado em nós, ele forma a parte inconsciente de nós mesmos. Em conseqüência, somos levados a não tê-lo em conta, tampouco as suas exigências legítimas. Ao contrário, as aquisições mais recentes da civilização, temos delas um vivo sentimento porque, sendo recentes, não tiveram tempo de se organizar no inconsciente”.

Assim, percebe-se, principalmente, nos relatos das professoras que a

disciplina familiar é essencial para a formação da criança.

“O Estatuto da Criança e do Adolescente foi uma boa, foi, independente de determinados aspectos. Agora, essa empolgação alvoroçada que se faz desse estatuto, dizendo que a criança tem direito a tudo, e o adolescente também, não se pode fazer isso, não se pode fazer aquilo (com a criança e com o adolescente)... Não será isso a causa de tanta violência nas escolas e de tanto desleixo pelos estudos? Quer dizer: falta um limite e quem trabalha diretamente com limite não é quem legisla. Não! É quem está dentro da sala de aula”. (Helena)

“Não adianta o professor aqui estabelecer determinado

limite para a criança e depois, ela não tem limite em casa, ela vai vivenciar esta falta de limite dentro da escola também, que é o problema que estamos vivendo.” (Maria das Graças)

“Os pais estão jogando essa educação toda em cima

da professora, da escola. Agora, menino toma a palavra da gente dentro da sala de aula. Respondem. Esse problema de aluno responder, me tira do sério mesmo. Eu acho assim, atualmente, eles estão mais respondões. Eles estão bem mais relapsos também”. (Maria das Graças)

Distingue-se nas representações das professoras a influência dos

habitus disciplinares vividos na formação familiar. Os habitus disciplinares

71

Page 72: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

fortemente marcados na infância fazem surgir representações que funcionam,

como esquemas de percepção e avaliação da forma como as crianças de hoje

são educadas pelos pais. Esses esquemas, por sua vez, remetem à

apreciação dos comportamentos que as crianças apresentam na escola e que

são diferentes dos comportamentos das crianças com quem trabalharam na

primeira e na segunda década.

“Eu acho que a educação de antigamente era completamente diferente da de hoje. Antigamente o pai sentava com os filhos na mesa, tomava refeição. Hoje o filho serve a sua comida e vai para a frente da televisão. E o pai não faz nada.

Era bem mais fácil na primeira e na segunda década manter uma disciplina dentro da sala. A escola estava mais envolvida e o pai não vinha à escola. Hoje, por qualquer coisinha o pai vem na escola. (Maria das Graças)

“Nós fazemos reuniões:só vêm às reuniões os pais cuja

criança não têm problemas sérios de indisciplina. É a mais pura verdade. A família não se envolve. Então, é uma luta para mostrar para os pais que toda liberdade gera uma obrigação e toda obrigação gera um direito e que a liberdade da criança vai até onde começa a liberdade do outro. E eles, não vêem facilmente isso não.” (Helena)

As representações sobre o papel da família na formação das duas

professoras, forjadas no passado, interferem na definição sobre o papel da

família, na formação das “crianças de hoje”.

É assim que as representações interferem na maneira como elas

observam e interpretam a ação dos pais, as situações de indisciplina na

família e as formas como a realidade familiar é revivida na escola. Encontra-

se, portanto, nos habitus disciplinares das duas professoras o princípio ativo

das práticas pedagógicas e das representações sobre a disciplina e o

disciplinamento, bem como do uso dos castigos como forma de controle e de

ordenação dos alunos. Também suas representações sobre o bom aluno e o

bom professor, são fundamentais na consolidação dos habitus disciplinares.

72

Page 73: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Ao conceituarem o que é “bom aluno” pode-se perceber, em termos de

comportamento e de ações, o que cada uma delas espera desse “bom aluno”.

Helena considera como bom aluno:

“Aquele que é curioso, é aquele que é questionador, é aquele que não só recebe, mas que dá – porque ele tem demais dentro dele -. Então, se ele não se expressar, ele não solta o que está dentro dele. Eu prefiro uma turma de pintões (eu coloco esta palavra entre aspas) do que uma turma de tímidos.” (Helena)

A representação de ‘bom aluno elaborada por ela é diferente daquela

elaborada por Maria das Graças:

“O bom aluno, eu acho que é o aluno responsável, que traz suas coisas em dia, que participa (hoje em dia, nesses cursos que a gente vai, fala-se muito na participação do aluno). Eu acho que o aluno que participa, ele é um bom aluno. O bom aluno, o modo dele tratar o professor dentro da sala de aula, ele trata o professor, assim, com carinho, tem confiança no professor, chega perto da gente, conversa...” (Maria das Graças)

Percebe-se, no conceito elaborado por Helena, a importância dada à

manifestação e participação da criança na sala de aula, o que nos reporta à

sua convivência com o pai, aos diálogos com ele entabulados e à resistência

às imposições da sua mãe e de seus professores. “Eu prefiro uma turma de

pintões”.

Por sua vez, no conceito elaborado por Maria das Graças, percebe-se a

idéia de obediência e de uma solicitude respeitosa que faz lembrar a sua

convivência submissa com o pai e as professoras do internato.

“Ele trata o professor assim, com carinho”.

Quando se trata de falar sobre o professor, o bom professor, (e elas

deixam bem clara a idéia de que bom professor é aquele que sabe manter a

disciplina) as duas professoras afirmam a necessidade de gostar da profissão,

de trabalhar com amor:

73

Page 74: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“Olha, eu não acho que bom professor é aquele que tem um montão de cursos por aí não, eu acho que o bom professor é aquele que trabalha com amor, porque tudo que a gente faz com amor vai para frente.” (Maria das Graças)

“Eu acredito que o bom professor é aquele que é

apaixonado por ser professor, apaixonado por aquilo que tem de fazer, apaixonado pelos educandos. Eu não posso ser educador se eu não gosto dos educandos.” (Helena)

Diante disso, fica evidente que as professoras relacionam a questão do

sucesso profissional, da sua aceitação pelos pais e pela comunidade, à

dedicação e ao amor pelo magistério.

Nas suas narrativas constata-se que viam os seus professores como

modelos de responsabilidade e de dedicação.

“Lembranças agradáveis? Nossa! Eu tenho demais. Lembrança da minha primeira professora que me dava aquele apoio! Eu chegava da roça, ela me levava para a casa dela...” (Helena)

A percepção e apreciação das práticas de seus ex-professores

aparecem sob uma forma positiva, o que faz refletir sobre as estruturas dos

hábitus produzidos não só na família mas, também, na escola. É assim que as

admoestações e castigos recebidos na escola são considerados hoje como

um bem, porque ajudaram a torná-las pessoas disciplinadas e responsáveis.

Sobre os castigos que “sofreram” na escola aparecem comentários assim:

“...mas a culpa foi minha. Eu não culpo o professor por isso não.” (Helena)

“Aqueles professores que eram mais rigorosos, mais

exigentes, que na época a gente considerava que mais atrapalhavam a nossa adolescência, foram aqueles que mais deixaram marcas porque a gente aprendeu mesmo aquilo que eles se propunham em fazer a gente aprender. “ (Helena)

74

Page 75: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

A professora não admitia nada de errado. Eu acho que foi bom para nós porque a gente aprendeu assim a ter uma disciplina com ela...” (Maria das Graças)

Os habitus, portanto, presentes nos esquemas de percepção e

apreciação das práticas pedagógicas de seus ex-professores se encontram

presentes nos esquemas de produção das práticas das duas professoras.

“O bom professor, eu acredito que é ser apaixonado por ser professor, ser apaixonado por aquilo que tem de fazer, ser apaixonada pelos educandos. Eu não posso ser educador, se eu não gosto de ser professor”. (Helena)

“Apenas ser bravo, ser rígido, não leva ninguém à

nada. O aluno pode ficar com medo do professor, tomar pavor dele, antipatia da cara dele. Eu acho que o professor deve ser exigente, ele não pode compactuar com a falta de responsabilidade, mas sobretudo tem de ter paixão por aquilo que ele representa ali, como professor de determinada matéria. Tem que ter paixão por aquela matéria, ele têm de mostrar essa paixão para fazer a gente ficar apaixonada.” (Maria das Graças)

“O professor tem que ser responsável, gostar do que

faz, ser amigo do aluno, eu acho isso muito importante, ser bom para ensinar, porque tem professor que repete, repete e o menino não aprende. Se ele fizer por amor ele sobe na vida. Os pais dão muito valor ao professor dedicado.” (Helena)

As representações que Helena e Maria das Graças têm do bom

professor e sua prática pedagógica remetem a DURKHEIM, que leva o leitor a

refletir sobre a moral como sendo essencialmente idealista.

Segundo ele, “o que é realmente um ideal, senão um corpo de idéias

que pairam acima do indivíduo, solicitando energicamente a sua ação? A

moral ordena-nos que nos entreguemos, que nos subordinemos a algo que

não nós mesmos; e mercê dessa subordinação que nos impõe, ela eleva-se

acima de nós próprios.” Assim, DURKHEIM afirma que, para podermos “tomar

a peito” a obra educativa, “necessário se torna que por ela nos interessemos e

75

Page 76: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

a amemos, e para a amarmos, há que sentirmos tudo que de vivo nela existe.”

(DURKHEIM, 1984: 226, 228)

Para DURKHEIM, a autoridade do professor surge do seu foro íntimo e,

para que isso aconteça, é necessário “que ele creia na sua missão e na

grandeza da mesma”. Essa necessidade é reafirmada pela professora Helena,

para quem a disciplina dos alunos e a autoridade do professor, decorrem da

capacidade de saber conduzir as aulas e está intimamente ligada à questão

da criatividade e do gosto pela atividade docente:

“A gente pensa que criança é boba, tudo que a gente quiser ela faz, e não é desse jeito. Nesse tempo todo em que estou vendo a criança, ela é muito mais ligada, muito mais viva do que já vimos. Ela percebe, muito antes, as coisas. E é por aí que o professor vai manter a disciplina: com trabalho e criatividade, porque se você se apresenta na sala sempre do mesmo jeito, com o mesmo tom de voz, mesmo modo de conversar, mesmo modo de chamar uma criança e de apresentar as coisas, não vai atrair ninguém não. Porque nós temos concorrentes fortíssimos aí fora, na mídia. Então, é trabalhar mesmo a criatividade e a interação.

É muito necessário que o professor tenha realmente gosto por aquilo que faz, saiba planejar atividades dentro de um horário limite, porque a criança não tem capacidade para concentrar sua atenção durante muito tempo.” (Helena)

Diante disso, não é difícil constatar que as duas professoras

consideram que amor à profissão e aos alunos seja a principal virtude do

professor. Assim, quando relatam sobre os castigos aplicados em seus alunos

expressam um sentimento, que traduz o sofrimento que os mesmos

provocam.

“Nesses anos de carreira, eu, lamentavelmente, só não dei conta de dois alunos. Eu tive de apelar para a direção, na época, para tomar uma providência. Até hoje me sinto triste de pensar nisto: o que eu deixei de fazer para chegar ao ponto de eu encaminhar esses dois alunos para a direção?” (Helena)

76

Page 77: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Entretanto, ambas consideram necessários os castigos para que a

criança se torne um adulto responsável e capaz de respeitar a si mesmo e aos

outros. Para ambas o conceito de disciplina está ligado a dois valores:

respeito e responsabilidade.

Maria das Graças fala sobre o que é disciplina:

Eu gosto de repetir: a base da disciplina no meu ponto de vista, está em duas palavras: “respeito e responsabilidade”.

Para Helena, disciplina consiste em:

“Respeito e responsabilidade”. Eu respeito meus alunos, eu respeito meu superior, eu respeito o pessoal que trabalha comigo, eu respeito os nossos serventes, e da minha parte eu procuro cumprir tudo que é inerente à minha profissão.

Maria das Graças diz ainda:

“A partir do momento em que é decidido o que se vai fazer, eu cumpro a minha parte, e acredito, ainda, que o exemplo educa mais que as palavras. E o respeito, a responsabilidade, são as bases de qualquer ação, principalmente na área de educação.”

Nesse sentido, as análises sobre as situações em que os castigos são

aplicados evidenciam o caráter formador e moralizador da disciplina.

Para as duas professoras há certas situações em que só um castigo dá

à criança a dimensão do que ela está fazendo e que não se reflete só contra

ela, mas contra todo o ambiente familiar, contra todo ambiente escolar.

Contudo, ao afirmar o valor do castigo, reflete-se sobre a necessidade de o

mesmo ser dado após “um grande conhecimento de causa”.

“Agora, que o castigo seja dado depois de um conhecimento de causa muito grande do que está levando a

77

Page 78: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

criança à indisciplina.” (Helena, referindo-se à necessidade do castigo)

DURKHEIM (1984: 307) leva à reflexão sobre esse “conhecimento”ao

afirmar que é conveniente deixar decorrer um tempo, ainda que curto, entre o

instante em que a falta é constatada e aquele em que a punição é infligida; um

tempo de silêncio reservado à reflexão. Esse momento de suspensão não é

uma simples simulação, destinado a dar à criança a ilusão de uma liberação; é

sim um meio, para o mestre, de este se precaver contra as resoluções

precipitadas, que seguidamente são tão difíceis de revogar como de manter.”

É necessário que o mestre se precavenha de decisões precipitadas,

uma vez que constitui sempre um problema e bastante complicado, saber se é

necessário punir e, sobretudo, como se deve punir.

“Eu sou totalmente contra espancar uma criança, machucar uma criança. Agora castigo: eu acho muito produtivo quando você tira da criança o que ela gosta, não em relação a alimentação, porque alimentação é fundamental.

Os meus filhos são da era da televisão, os castigos deles eram tirar a televisão, tirar o futebol, era tirar uma ida a casa de um colega. Então, as coisas resultam quando você mantém. Agora, manter mesmo. Se eu falei que hoje não têm televisão, não têm mesmo. Ninguém vê para evitar o castigo relaxado.”

Quando se dá um castigo tem de manter. (Helena) DURKHEIM (1984: 309) menciona essa questão, afirmando:

“Todavia, qualquer que seja a punição, e seja qual for a forma pela qual

a pronunciemos, necessário se torna que, uma vez decidida, seja irrevogável.”

Ao reafirmar ser contra espancamento, a professora enfatiza a

necessidade dos castigos, buscando justificativas para os mesmos na sua

religiosidade.

“Repito, eu sou contra espancamento. Mas há determinados momentos em que sou favorável a que uma palmada bem dada resolva os problemas. Mesmo porque na Bíblia você tem uma citação que diz lá que os pais têm a responsabilidade de usar uma vara quando necessário. Então eu não sou contra umas palmadas bem dadas, a criança

78

Page 79: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

sabendo porque está recebendo aquela palmada. Eu dei algumas palmadas, em casa, poucas vezes, mas dei e sempre assim.

Então não sou contra não quando o pai e a mãe não estão batendo por raiva, para descarregar a raiva. O que é mais difícil de fazer, porque geralmente quando se bate numa criança é descarregando a raiva.” (Helena)

Também sobre esta questão, DURKHEIM (1984: 307) afirma e faz

refletir que não se deve punir “ab irato”. Para ele, a criança deve sentir que o

castigo foi resultado de um ato deliberado e de uma decisão tomada a

sangue-frio. “Um castigo aplicado num impulso de cólera ou de impaciência

nervosa tira-lhe todo o significado moral.”

Para Helena o castigo deve ser precedido, sempre, de avisos que de

fato, constituem forma de ameaça.

“Melhor você dizer, insistir: “olhe, você vai apanhar por isso qualquer dia”. Por aí, a criança não vai perceber que você não está descarregando a raiva nela. Você avisou vários dias. Então, eu sempre avisei e avisei”.

Note-se a semelhança entre a fala da professora e a seguinte

afirmação de DURKHEIM (1984: 305) “a virtude do castigo só é total, quando

ele se limita à condição de ameaça”. É por isto que o professor experimentado

hesita em castigar um bom aluno, mesmo que ele o mereça. Para ele um

castigo inadequado pode contribuir para que aluno venha a reincidir no erro.

Continuando a fala do fragmento anterior a professora diz:

“Você vai levar tantas palmadas pelas vezes que repetiu o erro. E eu dava essas palmadas. Agora, eu dava não era palmadinha de engano não. Ele tinha de sentir minha mão.” (Helena)

As afirmações da professora remetem também à colocação de

DURKHEIM (1984: 308) sobre a forma de castigar: “Se é certo que não

79

Page 80: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

devemos castigar, levados pela cólera, não é menos certo que não devemos

castigar friamente. Um excesso de sangue frio, de impassibilidade não resulta

melhor que um excesso de arrebatamento. Com efeito, punir, dissemos nós, é

reprovar, e reprovar é protestar, é repelir o ato que reprovamos, é darmos

prova do distanciamento que ele inspira. Logo, se a punição for aquilo que

deve ser, ela não se processa sem uma certa indignação, ou, se a expressão

parecer demasiado forte, sem um descontentamento mais ou menos

denunciado.

Os relatos das duas professoras permitem a constatação de que, em

sua trajetória, novos habitus foram consolidados, possibilitando novas

representações sobre disciplina e do disciplinamento, deixando, contudo,

perceber o princípio dos habitus primários e secundários na consolidação

desses novos hábitos. Maria das Graças procura conformar-se às mudanças,

enquanto Helena procura entender e acompanhar as mudanças. Assim, é

possível perceber que a configuração dos novos habitus consolidados na

última década fazem surgir formas de disciplinamento que ganham contornos

mais sutis e mais suaves.

Contudo, percebe-se, ainda, que os castigos não resolvem agora, como

não resolveram no passado, o problema da indisciplina. A análise dos relatos

das duas professoras leva à reflexão de que estudar a disciplina sob o

enfoque dos habitus consolidados na família e na formação escolar dos

professores pode dar uma contribuição importante para a compreensão desse

problema desafiante.

Isto, com certeza, aponta caminhos que levam a uma convivência mais

harmoniosa (ou menos tensa) entre professores e alunos.

80

Page 81: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

5 - Disciplina e disciplinamento na relação pedagógica:

a visão de outros agentes.

Nos relatos acerca das duas professoras os agentes que com elas

conviveram – diretores, supervisores e ex-alunos - referem-se às duas de

forma positiva, destacando a capacidade que cada uma delas tem de ensinar.

As apreciações desses agentes sobre as questões da disciplina e do

disciplinamento parecem conduzir, invariavelmente, à idéia de que sem

disciplina não há possibilidade de uma boa aprendizagem.

As diretoras e supervisores entrevistados restringiram-se aos elogios e

ao destaque aos pontos positivos da prática pedagógica das duas

professoras. Todas elas asseveram o valor da disciplina na aprendizagem e

na formação da criança e a necessidade dos castigos moderados quando a

indisciplina prejudica o próprio aluno e a classe. Já os ex-alunos foram mais

espontâneos ao relatarem os momentos agradáveis e também os momentos

desagradáveis ligados, principalmente, aos castigos recebidos ou apenas

observados. Os relatos de todos os agentes nos reportam as idéias de

DURKHEIM, FOUCAULT e BOURDIEU exploradas nos capítulos anteriores.

Dois ex-alunos de Helena se lembraram, rindo, de que ela os

ameaçava dizendo: “Não me façam ficar com raiva, porque eu viro o Hulk. Eu

só não fico verde!” Os dois dizem que eles realmente acreditavam nisso e

tinham medo, e isto os fazia obedecer as ordens da professora.

81

Page 82: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Por sua vez, os fatos marcantes vividos pelos seus ex-alunos são os

relacionados aos teatros, às encenações, às excursões, enfim, a todas as

atividades extra-classe. Todos eles falam da alegria da professora e das

invenções que eles aprontavam juntos. Os castigos, dizem eles, são os

mesmos de hoje: “Ficar sem recreio, aumentar o dever de casa, ficar sem aula

de educação física. Essas coisas!”

As lembranças dos ex-alunos de Maria das Graças estão ligadas às

suas exigências quanto à organização, ao silêncio, ao “capricho”... Contudo,

um deles fala: “Era muito difícil aceitar os castigos. A gente tinha raiva... raiva

mesmo. Mas que a gente aprendia... aprendia mesmo”.

O sentimento de raiva misturado à apreciação de que o “castigo faz

aprender mais” é o mesmo relatado pelas duas professoras quando falam da

época da formação escolar.

Além da raiva e do medo, os ex-alunos falam da vontade de não ir à

escola. As lembranças de alguns castigos parecem trazer ainda um

sentimento de revolta.

“Um dia uma colega estava distraída brincando com o lápis e por falta de sorte rabiscou a parede. A professora pegou a cabeça dela e aproximando-a da parede disse: lambe, lambe, você vai limpar o que você sujou lambendo. Isso foi terrível. Até hoje esta cena me revolta.”

As descrições dos castigos são muitas e todas elas carregam uma

certa dose de emoção.

Ao narrar os castigos aplicados, um ex-aluno se lembrou de que a

professora falava na sua própria educação, da severidade do pai e rigorismo

do internato. E esse ex-aluno completa: “Ela queria educar a gente como ela

foi educada.”

Os relatos dos agentes sobre as duas professoras são completamente

diferentes e a apreciação que os mesmos fazem a respeito do disciplinamento

possui um sentido ambíguo: de um lado é evidenciado o “lado alegre”, da

professora Helena e, isto, é considerado “legal”, de outro lado é evidenciado o

82

Page 83: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

lado austero e rígido da professora Maria das Graças, e isto é também

considerado “legal”. Assim, curiosamente, as representações dos agentes

remetem às representações sobre a disciplina e o disciplinamento, das duas

professoras e fazem evidenciar a idéia de que a ordem, o respeito e a

responsabilidade são condições inerentes para a aprendizagem do aluno.

Esta visão compartilhada faz com que a concepção de disciplina seja

semelhante. Todos os entrevistados – diretores, supervisores e ex-alunos -

falam da disciplina como respeito às regras, ordem, respeito aos limites.

Há, por parte dos agentes entrevistados, uma forte rejeição aos

castigos físicos e ao “excesso de rigor”, contudo, não há rejeição às cópias, às

argüições, aos exercícios extras, porque “através destes castigos há

aprendizagem”. Curiosamente, considerados como uma “coisa ruim”, os

castigos garantem a ordem e a boa aprendizagem e, isto, é bom.

“Eu estava mal em matemática. Eu estava fazendo muita coisa errada na aula. O professor me mandou fazer 180 exercícios numa semana e eu tinha que fazer, se não me engano, 40 exercícios por dia. Eu ficava com a cabeça quente com tanto exercício. Mas eu aprendi a matéria e passei de ano.” (Sérgio, aluno do Ensino Médio).

O sentimento de raiva misturado, à apreciação de que “o castigo ajuda

a aprender mais” é relatado também pelas duas professoras quando falam do

tempo da formação escolar.

Assim, vale pontuar que a visão sobre a importância do castigo, por

parte das professoras e de seus ex-alunos é semelhante, apesar da distância

entre o tempo e o contexto escolar que as duas professoras vivenciaram.

Assim, percebe-se que as representações que as duas professoras têm de

seus professores que atuaram entre as décadas de 50 e 60, e as

representações dos seus ex-alunos, entre as décadas de 70/80/90,

curiosamente fazem surgir a imagem de um professor capaz de manter a

ordem e o controle na sala de aula.

Nota-se que as representações sobre o bom professor nas

diferentes épocas continuam condicionadas não só ao aspecto pedagógico de

83

Page 84: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

“ensinar bem” mas, também, ao aspecto disciplinar, uma vez que “sem

disciplina não há aprendizagem”. Assim, vale ressaltar que, tanto para os

diretores e supervisores quanto para os ex-alunos, parece não haver

possibilidade de uma boa aprendizagem sem disciplina.

Paralelamente às representações sobre a disciplina, surgem outras

representações sobre os castigos. Embora os próprios alunos demandem a

ordenação e o controle na sala de aula, suas apreciações sobre os castigos

parecem diferentes daquelas relatadas pelas duas professoras. Nas suas

representações sobre o bom professor na atualidade surge a imagem do

professor que sabe fazer com que os alunos tenham vontade de estudar. Os

ex-alunos consideram que um professor assim não precisa se utilizar de

castigos, porque ele é capaz de dar aulas interessantes. Para eles só há

“pintação” quando as aulas são monótonas e o assunto não é interessante.

Eles não se sentem responsáveis pela indisciplina da classe. A disciplina, para

eles, depende unicamente do professor, de sua capacidade em tornar as

aulas interessantes.

As apreciações dos ex-alunos são ilustradas pelos fragmentos dos

seus relatos.

“Não é com medo que se deve educar uma pessoa. A gente não tinha prazer de ir para a escola. A gente tinha medo. Se fosse hoje a gente não ia aceitar os castigos. Naquela época a gente era criança...”

“A professora de quem a gente lembra com saudade é

aquela que fazia uma festa na sala. Lembro-me dela, dos “Três Porquinhos” e a festa que ela fazia com cada capítulo da história. A gente ficava louco para assistir a aula seguinte.”

“O aluno não precisa ficar o tempo todo calado e

quietinho na sala de aula. A criança de hoje é muito mais inteligente. No nosso tempo, a gente apanhava mais. As crianças hoje têm mais liberdade de expressão e mostram o ponto de vista deles”.

“A professora, hoje, tem muito mais condições para

aprender e ser boa professora. A obrigação do professor é tornar a aula interessante e isto ele pode aprender. Hoje tem muitos recursos: tem cursos, palestras, a internet..”

84

Page 85: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Pode-se observar que as apreciações sobre os castigos parecem

pautar-se em diferentes critérios: para as professoras o castigo é

conseqüência da falta de disciplina e de limites dos alunos; para esses, a

indisciplina que resulta em castigos é conseqüência da falta de “capacidade

do professor”.

Assim, para os ex-alunos entrevistados, a questão da disciplina passa

pela competência do professor. Para eles, essa competência depende de

muito estudo e atualização para que o professor possa acompanhar as

mudanças e tornar suas aulas interessantes.

85

Page 86: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Conclusão

86

Page 87: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Conclusão

“Sou um pouco de tudo o que

passou em minha vida”

(Ulisses, personagem

da Odisséia, de Homero).

“Muito longe de nos devermos desencorajar com a nossa impotência,

teríamos mais motivos em nos sentirmos atemorizados com a amplitude de

nosso poderio. Se, de uma forma mais constante, mestres e pais sentissem

que nada se pode passar em presença da criança sem nela deixar qualquer

vestígio, que a formação do seu espírito e do seu caráter depende desses

milhares de pequenas ações, insensíveis, que se produzem a cada instante e

às quais não prestamos atenção devido à sua aparente insignificância como

passariam a acautelar mais a sua linguagem e a sua conduta”.

DURKHEIM (1984: 31)

Duas questões incitantes acompanharam todo o trabalho:

87

Page 88: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Primeira – Por que os castigos continuam sendo considerados

necessários para o controle dos alunos na escola apesar da afirmativa de que

os mesmos não resolvem o problema da indisciplina?

Segunda – Por que, embora se lembrem com desgosto dos castigos

recebidos na sua infância, os professores continuam castigando seus alunos?

Encontrar as respostas para essas questões, a partir dos

pressupostos de DURKHEIM, FOUCAULT e BOURDIEU, foi uma tarefa

instigante e desafiadora.

Ao procurar responder a questão “o que é disciplina para o

professor” concluímos que as representações e conceitos acerca da disciplina

e do disciplinamento emitidos por todos os entrevistados - professoras e

agentes que com elas conviveram não fogem à idéia que perpassa toda a

história da educação. Todos eles relacionam disciplina à idéia de ordem, de

respeito, de responsabilidade, de organização e de obediência. Não se

concebe uma sociedade sem regras, sem respeito pelo próximo, sem

disciplina. Assim, a disciplina é considerada essencial para a vida em

sociedade uma vez que, através dela, se exprime a conduta coerente,

comedida e organizada de seus membros.

A disciplina e, conseqüentemente, a indisciplina é uma questão que

parece atravessar os tempos. Assim, problema da disciplina na escola não é

inerente, somente, aos dias atuais e nem conseqüência da permissividade

familiar e da abertura da escola, à família e à comunidade, a partir da década

de oitenta, como argumentam Helena e Maria das Graças.

Embora as duas professoras tenham histórias de vida diferentes e

ações pedagógicas distintas, as duas apresentam semelhantes conceitos e

representações sobre disciplina, considerada, por elas, como condição

inerente ao processo educacional. Para elas, a indisciplina é o grande

problema da ação educacional.

Assim, parece-me razoável quando as duas professoras proclamam a

disciplina como o requisito fundamental para a ação pedagógica e vêem a

indisciplina como o maior obstáculo a essa ação, ao longo da trajetória

88

Page 89: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

profissional, e este, tem sido cada vez maior e mais difícil de transpor.

Percebe-se, nos relatos, um certo desalento e uma insegurança muito grande

quando falam das mudanças de comportamento disciplinar das crianças, a

partir da década de 80. Elas explicam esse fato como conseqüência da

proibição dos castigos, reforçada pelo Estatuto da criança e do Adolescente e

pela perda de autoridade do professor. Essa perda de autoridade é explicada,

exatamente, como a impossibilidade de poderem conter a indisciplina através

da aplicação de castigos e ainda, pela interferência dos pais e da comunidade

na vida escolar. As duas professoras consideram que antigamente, no início e

meio da carreira, entre os anos 60 e 80, o professor podia e era incentivado a

usar castigos físicos , o que, segundo elas, facilitava a manutenção da

disciplina. A ênfase da maior dificuldade em lidar com a disciplina nos dias

atuais é explicada por ambas como sendo conseqüência da permissividade

que a criança tem na família. Para elas os pais são os grandes responsáveis

pela falta de limites da criança. Elas exprimem, nos seus relatos, a

insegurança em lidar com a indisciplina e o medo da censura, às ações

disciplinares, por parte da família e da sociedade.

“Agora, praticamente, a gente não pode dar castigo nenhum. Tem de

ser tudo na base do diálogo.

“Os pais viram “bicho” quando o filho recebe um castigo.” (Maria das

Graças)

Apesar desse medo, da censura, as duas professoras ressaltam que

sem disciplina não há ensino nem aprendizagem. As citações abaixo

confirmam:

“sem ordem, não há progresso”, para aprender o aluno precisa estar

atento, silencioso,precisa ser organizado, bem educado”, “existem alunos que

merecem castigos e precisam deles para “cumprir o dever e aprender”,

fazem perceber que o castigo continua existindo e continua sendo

considerado como necessário nas salas de aula da escola atual. Contudo, os

instrumentos e as formas de castigar mudaram. A vara de marmelo, que

89

Page 90: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

deixava marcas visíveis foi substituída pela “cadeirinha do pensamento”, pelo

dever extra, pela suspensão do recreio e da aula de educação artística ou

educação física, pelas “cópias com objetivo”. Elas afirmam que os castigos só

resolvem o problema da indisciplina durante algum tempo.

“Os alunos têm memória curta e se esquecem dos castigos” (Maria das

Graças)

Essa ambivalência em relação ao castigo, considerado necessário e,

ao mesmo tempo, ineficaz, reflete-se na relação emocional das professoras

que falam não só do sofrimento que os castigos recebidos na infância

causaram, mas também, do sofrimento que a aplicação dos mesmos lhes

causam ao longo da trajetória profissional

Analisando os relatos dos ex-alunos verifica-se que a lembrança dos

castigos, também, não é nada agradável. Os castigos escolares são

lembrados com terror e os sentimentos provocados por eles são descritos

como sentimentos de raiva e de medo.

Apesar disso, tanto as professoras, quanto os agentes entrevistados –

diretores, supervisores e ex-alunos – afirmam que a disciplina, além de ser

fator importante na aprendizagem é, também importante na formação do

jovem e da criança. Mesmo considerando a professora rígida e os castigos

como lembranças desagradáveis, consideram que esses eram merecidos,

necessários e resultaram em aprendizagem.

Não se nega, em nenhum momento, a necessidade da disciplina. Não

se pode, contudo, ignorar o constrangimento causado pela indisciplina e pelos

castigos utilizados para contê-la.

Parece-me evidente que quanto mais rígida e severa foi a construção

dos pilares da disciplina, na infância e durante a formação escolar, tanto maior

é a exigência com relação à mesma e maiores as dificuldades em adequar as

ações disciplinares ao momento em que a criança vive. Pode-se explicar este

fato, pela inculcação e assimilação dos habitus enquanto “estruturas

estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes”.

90

Page 91: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Portanto, os habitus, produto de toda a história individual, são princípios

geradores de práticas, de representações e, ainda, princípios organizadores

da ação. Enquanto produto da história, o habitus orienta as práticas dos

professores e produz esquemas de percepção, de apreciação e de ação que

tendem a se reproduzir. A presença dos “habitus” disciplinares pode ser

percebida nos relatos das duas professoras: Maria das Graças apresenta

muito mais dificuldade em lidar com as crianças de hoje do que Helena. Esta,

ao longo de sua trajetória familiar, escolar e profissional, foi assimilando outras

formas de apreciação e percepção sobre a disciplina e o disciplinamento que

definiram mudanças visíveis nas suas ações pedagógicas.

Se, “em cada um de nós, em proporções variáveis, há o homem de

ontem e, é esse mesmo homem de ontem que, pela força das coisas, está

predominantemente em nós”, o estudo das trajetórias de vida dos

professores poderá trazer importantes contribuições para mudanças de

esquemas de percepções, apreciações e, conseqüentemente das ações dos

professores face à questão da disciplina e do disciplinamento.

A reflexão de como os habitus disciplinares se formaram e se

consolidaram ao longo das trajetórias de vida dos professores, pode fornecer

dados que permitam uma melhor compreensão de suas experiências

passadas e, isto, pode constituir uma fonte enriquecedora com vista a um

melhor conhecimento da própria natureza do processo disciplinar na sala de

aula.

Constata-se que os pais, professores e, ex-alunos entrevistados se

mostram convencidos de que o castigo é “bom porque faz aprender”. Portanto,

parece que o conceito de educação que os orienta se impõe ainda na

sociedade atual, uma vez que o castigo continua sendo incentivado e aplicado

na escola toda vez que se entende que ele é necessário. Contudo, fica

evidente que a disciplina é um conceito construído pelo próprio professor e,

assim sendo, faz com que o que é indisciplina para um professor, não o seja

para outro professor. A questão da disciplina e indisciplina tem, então, a ver

com o modo como os espaços, o tempo e a voz do professor e alunos são

percebidos e compartilhados na sala de aula.

91

Page 92: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Mais do que esperar a transformação das famílias ou de lamentar a

falta de limites nos dias atuais, é necessário que o professor faça uma análise

dos fatores responsáveis pela indisciplina na sala de aula. O professor não

pode ignorar que cada aluno tem a sua história individual para poder situar o

seu trabalho em direção à realidade do grupo com o qual trabalha. É

importante a revisão das suas representações sobre o que é ser bom ou mau,

sobre o que é certo e errado e, ainda, a consciência de que a obediência, a

não contestação da autoridade conseguida através de práticas coercitivas e

autoritárias resultam nas suas próprias afirmativas de que o “castigo ajuda a

resolver o problema somente naquele momento”.

Assim, o fato de o professor reforçar as regras e os padrões de

comportamento por ele desejados por meio de provas, notas, prêmios,

castigo, cria a submissão, a obediência e a conformidade. Contudo, mais do

que obedecerem e se conformarem com as regras impostas, devido ao medo

das punições, os alunos precisam ter a oportunidade de conhecer e discutir o

porque das regras. Ao se conscientizarem disto as crianças e os

adolescentes poderão avaliá-las e aprenderão a tomar as suas próprias

decisões. A disciplina não pode prescindir da autoridade, mas também não

pode deixar de considerar a autonomia, o conhecimento e a liberdade dos

alunos. Respeitar as crianças como seres humanos, dar-lhes oportunidades

de fazerem opções e apóia-las em suas atitudes cotidianas de autonomia é

garantia de que terão condições de agir com base no respeito aos princípios e

não somente por medo e por obediência. Assim entendida, a disciplina deve

ser encarada não somente como um sistema de normas mas também como

uma “aprendizagem” e, como tal, deve se transformar em um objetivo

educacional, essencial para a orientação da prática disciplinar dos

professores.

O estudo das trajetórias de Maria das Graças e Helena, revela-se que

embora o quadro geral da educação e do pensamento educacional brasileiro

tenha se alterado nas duas últimas décadas – 80 e 90 -, época em que,

gradativamente no Brasil, recrudescem os movimentos pela redemocratização

da sociedade, a sobrevivência dos castigos escolares evidencia a

92

Page 93: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

necessidade da reflexão sobre práticas pedagógicas autoritárias e coercitivas,

ainda em vigor em algumas escolas.

É nesse sentido que o estudo da disciplina e disciplinamento escolar a

partir dos habitus é uma alternativa interessante que pode contribuir para uma

redefinição dos conceitos e representações que o professor possui sobre essa

questão. Certamente a partir disso, suas apreciações e percepções sobre a

disciplina e o disciplinamento poderão ser mais adequadas ao momento atual

e às crianças de hoje que precisam aprender, tanto quanto as da década de

40, 50 , ..., que a ordem, o respeito, a responsabilidade, a cooperação, são

valores inerentes à disciplina.

Conseqüentemente, a prática pedagógica dos professores deve dar

condições para que as crianças interiorizem esses valores, não devido ao

receio de ameaças e punições, mas através de ações que lhes possibilitem

entender que as regras que fazem parte da nossa cultura são importantes

quando se pensa numa sociedade mais justa e solidária.

93

Page 94: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

ANEXOS

94

Page 95: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Anexo 1 A História de Vida de Helena: construção da vida profissional

a partir de um ideal. Helena nasceu na zona rural, de onde saiu ainda bem pequena. O pai

era ferroviário, o que fazia a família mudar, sempre, para diferentes lugares. A

mãe cuidava das “lidas domésticas”. Têm 7 irmãos, dos quais 4 têm o 1º grau,

1 tem o 2º grau e 2 têm o 3º grau.

Na sua narrativa, ela se lembra de quando tinha 6 anos de idade e

“cismou” de ir à escola com o irmão que estava no 2º ano primário. O pai,

ferroviário, colocou-a junto com o irmão, no trem e ao chegar à escola a

diretora não teve outro recurso senão deixá-la ficar na turma da 1º série,

naquele dia. Ficou fascinada pela professora que a deixou desenhar, copiar,

participar do recreio, etc. Ao chegar em casa disse para o pai: “Quando eu

crescer vou ser professora”. A partir dessa data a brincadeira de que mais

gostava era a de dar aulas para a meninada da roça que ajuntava em seu

quintal. O sonho de ser professora começou aqui e se dependesse da

vontade da sua mãe ela não o teria realizado. A mãe achava que somente o

ensino primário bastava. A professora relata o dia de sua formatura assim: “No

dia da festa do diploma da 4ª série a professora tinha combinado que todo

mundo ia cor-de-rosa. Só eu não pude comprar. Eu fui com o meu vestido

verde de bolinha e com o sapato da filha de minha madrinha que calçava 35 e

eu, 30. Cheguei lá, sem vergonha nenhuma, para receber meu diploma. Na

hora que a professora me chamou, ela me deu um abraço tão apertado e

cochichou no meu ouvido: “Helena, você não vai ficar só com esse diploma,

palavra de D. Noêmia.” Isso me deu forças para ir contra mamãe que não

queria que eu estudasse mais.

Parece que por pertencer a uma família que passava por grandes

dificuldades financeiras e sendo a primeira entre os irmãos a continuar os

estudos, Helena fez todos os esforços possíveis para superar a falta de capital

cultural familiar. BOURDIEU fala que as crianças de classes sociais onde

95

Page 96: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

capital cultural têm que demonstrar um êxito excepcional para chegar ao

ensino secundário. E Helena parece, não mediu esforços para chegar aonde

queria. O relato de como conseguiu, sozinha, recursos para estudar comprova

os seus esforços.

Para continuar os estudos, ela foi morar em um orfanato para crianças

órfãs e carentes, dirigido por freiras. Estudou com muita dificuldade mas

sempre foi a melhor aluna da classe. “Fui uma aluna caxias, aquela aluna bem

quietinha, que fazia tudo com perfeição. Tinha mania de 1º lugar.”

Em uma aula de geografia, quando estudava sobre a implantação das

primeiras siderúrgicas no país, ouviu falar da Siderurgia Queiroz Junior e de

uma senhora, pertencente a essa família, Ana Amélia de Queiroz, que era

presidente da Casa do Estudante do Brasil. Escreveu para ela, falando de

suas dificuldades e necessidades e daí para frente obteve a ajuda de que

precisava para terminar os Cursos de Magistério e de Contabilidade.

O pai, diz ela, morreu cedo. Ele era uma pessoa alegre e que gostava

de cantar. Ela se recorda de como doíam os castigos impostos pela mãe: “tirar

de mim, minha mãe tirava. Achava que ela sabia que eu adorava sentar no

terreiro com o papai e cantar. Então, por qualquer coisinha ela tirava uma

semana inteirinha. Então, doía demais em mim, aquilo. Ficou uma marca

muito grande porque papai morreu muito cedo. A gente não aproveitou o

suficiente, sabe, aquela coisa toda”.

Como mãe, se desdobrou para cumprir os “quatro turnos” do

trabalho. Trabalhava de manhã, à tarde e à noite. Estabeleceu um horário só

para as crianças (filhos) de 16:30 às 17:30h que era dedicado às brincadeiras

e para resolver as dúvidas da escola. O quarto turno, de 22:00 às 24:00h era

para arrumar a lida doméstica e o “trabalho de casa” do professor. Acha que a

grande decepção do magistério é a falta de reconhecimento financeiro. “A

gente trabalha, trabalha, trabalha e o reconhecimento financeiro é nenhum.”

Ela se lembra de que ainda “pegou um pedacinho da carreira, “dois,

três anos, quando o professor era valorizado e os rapazes até diziam que

“casar com professora era um bom negócio”.

96

Page 97: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

A professora fez o Curso de Magistério e o Curso de Técnico em

Contabilidade entre os anos de 1957/1959 e fala o Inglês fluentemente.

É viúva e têm 3 filhos, sendo um homem, formado em Curso Técnico, e

2 mulheres formadas em curso superior. Uma é dentista e a outra é pedagoga

e dançarina clássica. A sua religião é a católica e é católica praticante.

Iniciou a sua carreira no magistério em setembro de 1959, antes de se

formar, numa turma de 4ª série primária.

Como professora, tem experiência em todas as séries do Ensino

Fundamental e do Ensino Médio, nos cursos de Magistério e Técnico em

Contabilidade.

Atualmente, além de lecionar o conteúdo de Ensino Religioso no

Ensino Fundamental, exerce a coordenação das quatro primeiras séries do

Ensino Fundamental de um grande colégio particular. É presidente de um

clube de serviços (Rotary) e participa de toda a programação social do

mesmo. Já fez o intercâmbio rotário na Austrália. Conhece o Paraguai, a

Argentina e os Estados Unidos. Acabava de chegar, no início das entrevistas,

de uma viagem às Serras Gaúchas. Adora cinema, música e teatro. Já

trabalhou em rádio, na década de 50, onde fazia um programa infantil e outro

feminino. Fazia teatro também, tendo abandonado estas atividades com o

casamento. Após a viuvez voltou a fazer teatro, participando de algumas

peças, tendo sido premiada como melhor atriz do município em 1998. Ler é a

sua grande paixão. Cita como livros que mais a marcaram, Clarissa de Érico

Veríssimo, Dom Casmurro de Machado de Assis e O Pequeno Príncipe de

Antoine de Saint Exupery. Está relendo Monteiro Lobato e fala sobre a sua

obra com verdadeiro entusiasmo. Gosta muito de escrever e já participou de

vários concursos literários tendo sido premiada algumas vezes.

97

Page 98: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Anexo 2 A História de Vida de Maria das Graças: ser professora como

conseqüência natural da formação escolar Maria das Graças nasceu na zona rural onde foi criada e onde, até

hoje, mora a sua família.

O seu pai era um abastado fazendeiro, dono de grande extensão de

terras. A mãe sempre cuidou das lidas domésticas e teve 10 filhos, sendo 8

mulheres e 2 homens.

Os dois filhos varões só fizeram o curso primário e como era natural na

época (década de 40), “herdaram as lidas do pai, ao qual ajudaram desde

pequenos. Às filhas foi destinado se tornarem professoras mesmo tendo que

se afastar da família.

Assim, Maria das Graças e sua irmãs foram estudar em Belo Horizonte,

em um grande colégio particular, dirigido por freiras, em regime de internato.

Das 8 irmãs somente duas não se tornaram professoras “porque se casaram

antes de formar”. A irmã mais velha se tornou, uma vez formada, professora

do próprio colégio interno que facilitou um pouco a vida das irmãs mais novas,

inclusive a de Maria das Graças. Os relatos sobre o Colégio falam de uma

escola extremamente rígida e austera, onde os castigos eram freqüentes e

severos.

Depois de formada Maria das Graças voltou para a fazenda e não

queria ser professora. Contudo, em 1964, tendo sido convidada para lecionar

em uma escola dirigida por freiras e anexa a um orfanato (o mesmo onde

Helena morou), o pai a obrigou a aceitar o convite. Ela veio para a cidade e

afirma que veio triste porque não queria sair da roça. A sua paixão pelo

campo, pela vida do campo, é patente. Até hoje ela se divide entre a cidade e

a fazenda, para onde vai todos os finais de semana. Não participa de

nenhuma atividade social na cidade. No povoado ao qual pertence a fazenda

ela participa das festas religiosas, barraquinhas, leilões. A sua rotina é

extremamente metódica. Assim como não freqüenta clubes, nunca foi ao

98

Page 99: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

cinema e nunca viajou. Não pratica esportes, mas na fazenda tem uma vida

muito ativa, cuidando das lidas naturais da roça: cuidados com o jardim, com a

horta, com o pomar, com o estábulo, com os animais domésticos, com a

produção de queijo e doces e com o preparo de carnes. Gosta muito da

música sertaneja, “aquela bem da raiz”.

Nos relatos de Maria das Graças percebe-se os esquemas de

percepção e de apreciação oriundos da influência do capital cultural

transmitido pela família. Em seus relatos aparece todo um sistema de valores

implícitos e interiorizados que, definem as suas atitudes e gostos. Mesmo na

literatura apareceu sua ligação com o campo. Ela cita “Chico Bento” e o “Sítio

do Pica-Pau Amarelo”. “Gosto de ler, principalmente livros infantis”. Monteiro

Lobato é um autor do qual não se esquece. Sobre conferências, palestras e

outras atividades ligadas à profissão ela diz: “eu não sou muito de ir não. Eu

sou muito apegada ao serviço de casa, eu gosto de tudo arrumado. Então, eu

não gosto de sair”. A professora fala que embora tenha começado a sua

carreira quase obrigada pelo pai, hoje, ela não quer sair mais. O magistério se

tornou a outra grande paixão de sua vida. Ela dedica todo o seu tempo aos

cuidados com a casa e com os sobrinhos que ela criou e cria ainda, filhos dos

irmãos que continuam morando na roça, e aos trabalhos da escola. “Sabe, se

eu dou uma prova hoje, enquanto eu não corrijo aquela prova, eu não saio e

não faço mais nada”. A sua prioridade é sempre a escola que se tornou,

depois da roça, a outra grande paixão de sua vida..

99

Page 100: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Anexo 3 Roteiro de Entrevista de História Oral de Vida

Entrevistador: Maria José de Morais Pereira

1. Relatos Sobre as Práticas Sócio-Culturais

• Tempo dedicado à família.

• Conciliação entre as atividades docentes e as tarefas domésticas.

• Freqüência à clubes.

• Última viagem (motivo, destino e época).

• Prática de esportes: Qual. Quantas horas semanais

• Gênero de música. Último disco comprado.

• Cinema: qual o último filme e quando o viu.

• Filmes em vídeo: freqüência e tipo de filme.

• Leitura

o Qual o último livro lido. Quando.

o Três melhores livros lidos.

o Assinatura de revistas e jornais. Qual ou quais.

o Qual a revista predileta.

o Programa de televisão preferido.

o Programa de rádio. Qual. Freqüência de escuta.

• Última vez que foi a uma conferência, palestra ou debate.

• Última vez que foi ao teatro, exposição, museu ou galeria de arte.

• Participação em Movimentos, Associações, ou Grupos (popular, sindical,

político, religioso, científico ou cultural).

100

Page 101: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

2. Relatos Sobre a Carreira Docente

• Forma de entrada na carreira docente.

• Melhores momentos da carreira. Piores Momentos. Por quê? Especifique:

início, meio, final.

• Se tivesse de começar agora faria novamente opção pela carreira

docente. (Explique)

• De que mais gosta e de que menos gosta da carreira docente.

• Decepções com a carreira. Por quê?

• Realizações com a carreira. Por quê?

• Conflitos que marcaram a trajetória.

• Dificuldades encontradas: como foram contornadas.

• Objetivo profissional no início da carreira e no momento atual.

• Maior desafio enfrentado na vida profissional.

• Lembrança da primeira aula ou do primeiro dia de atividade docente.

• Fatos que definiram ou modificaram a conduta em sala de aula.

• Relação entre competência, anos de experiência e séries assumidas.

3. Relatos sobre as experiências frente à questão da disciplina/indisciplina

A) Na vida familiar

♦ Anterior

• Como vê a figura do pai em relação ao disciplinamento?

• E a figura da mãe?

• Quem impunha as regras da casa?

• Quais eram as regras impostas?

• Havia aplicação de castigos? Quais?

• Qual o fato relacionado a castigos de que se lembra ou que mais

marcou no disciplinamento familiar?

• Alguém da família infringia mais as regras? (Quem? Que regras eram

infringidas e quais eram as conseqüências).

101

Page 102: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

• Quando criança, quais eram seus sentimentos com relação à disciplina,

às normas, às regras e à autoridade?

• Esses sentimentos mudaram? Como, quando e por que?

♦ Hoje

• Os papéis do pai e da mãe mudaram frente à questão do

disciplinamento

• Como vê a questão das regras, hoje?

• Há aplicação de castigos? Quais? O que mudou?

• Que fatos marcantes com relação à disciplina e ao disciplinamento

vivencia hoje, na vida familiar.

B) No percurso da qualificação profissional

• Experiências positivas e negativas no percurso da qualificação

profissional.

• Lembranças dos professores. Situações envolvidas, o que mais

gostou e o que menos gostou. Por quê?

• Aspectos mais significativos e menos significativos da formação

profissional.

• Fatos relacionados à disciplina/indisciplina de que se recorda.

• Como era o professor mais condescente e bonzinho?

• Como era o professor mais bravo e rígido?

C) na vida profissional

• O que é disciplina para você?

• O que é ser um bom professor?

• O que é ser bom aluno?

• O que é aluno indisciplinado?

• O que faz o professor ser capaz de manter a disciplina?

• A disciplina tem relação com a educação familiar?

102

Page 103: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

• Os castigos são necessários para manter a disciplina? Quais

você aplica em seus alunos?

• Que sentimentos esses castigos provocam você?

• Os castigos resolvem o problema da indisciplina?

• Qual é a reação do aluno que recebe o castigo? E a dos

colegas?

• Como vê a figura do diretor em relação ao disciplinamento nos

diferentes momentos da carreira?

• Quais são as regras da escola e como são criadas e impostas?

Houve mudanças ao longo da carreira? Quais?

• Quais os tipos de castigos permitidos pela escola ao longo da

trajetória?

• Maior desafio com a indisciplina na escola (com a própria

escola, com as famílias ou com o aluno indisciplinado).

• Experiências relativas à disciplina que mais marcaram a sua

trajetória profissional.

• Lembranças dos alunos indisciplinados e sentimentos

envolvidos.

103

Page 104: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Anexo 4 Roteiro de Entrevistas com agentes – diretores, supervisores –

que conviveram com as professoras

1. Representação dobre disciplina e disciplinamento na família e na escola.

• O que é disciplina

• Que é ser bom professor

• Que é ser bom aluno

• Que é ser aluno disciplinado

• O que faz com que o professor seja capaz de manter a

disciplina

2. Necessidade de castigos. Por quê?

3. Tipos de castigo que considerava viáveis e tipos que considera absurdos.

4. Maior desafio com a disciplina na escola.

5. Quais eram os castigos permitidos pela escola?

6. As professoras obedeciam as regras da escola?

7. Houve mudanças de comportamento com relação às regras nas

trajetórias das professoras?

8. Fatos que marcaram a trajetória das professoras na escola.

9. Dificuldades encontradas no convívio com a professora.

10. Como vê a professora com relação ao disciplinamento.

11. Relação entre a disciplina e desempenho na sala de aula.

12. Diferença (ou não) do tempo em que estudou e hoje.

104

Page 105: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Anexo 5 Roteiro de Entrevistas com agentes – ex-alunos –

que conviveram com as professoras

1. Representação sobre disciplina e disciplinamento na família e na escola.

• O que é disciplina

• Que é ser bom professor

• Que é ser bom aluno

• Que é ser aluno disciplinado

• O que faz com que o professor seja capaz de manter a

disciplina

2. Necessidade de castigos. Por que?

3. Tipos de castigo que considerava viáveis e tipos que considera absurdos.

4. Fatos que marcaram a trajetória escolar durante o convívio com as

professoras.

5. Dificuldades encontradas no convívio com a professora.

6. Quais as melhores lembranças da professora.

7. Quais as piores lembranças. (Qual sentimento provocado na época e hoje,

ao lembrá-los)

8. Lembranças do primeiro dia de aula.

9. Fatos que definiram a conduta na sala de aula.

10. Do que mais gostava e do que menos gostava na sala de aula.

11. Que castigo chegou a receber da professora e por quê? Achou justo o

castigo?

12. Reagia aos castigos?

13. Sentimento provocado pelos castigos naquela época e hoje como

consegue vê-los.

105

Page 106: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

14. Contava sobre o castigo recebidos aos pais. Qual a reação dos pais.

15. Tipo de professora de que mais gostava. E de que menos gostava.

16. Como vê a professora com relação ao disciplinamento.

106

Page 107: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

Referências Bibliográficas

AFONSO, Almerindo Janela. Notas para o estudo sociológico da (in)disciplina escolar na formação dos professores. Revista Portuguesa de Educação. Universidade do Minho. Vol. 4, nº 1, p. 119-128, 1991

AQUINO, Júlio Groppa. Relação professor-aluno: do pedagógico ao

institucional. São Paulo: Summus, 1996. AQUINO, Júlio Groppa. Confrontos na sala de aula. São Paulo: Summus,

1996. AQUINO, Júlio Groppa. Indisciplina na Escola: alternativas teóricas e

prática. São Paulo, Summus, 1996. BONAZZI, Chantal de Tourtier. Arquivos: propostas metodológicas. In:

Ferreira, Marieta de Morais e Amado, Janaína (org). Usos e abusos da história oral. Rio de janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo. Livraria

Perspectiva, 1974. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: Ferreira, Marieta de Morais e

Amado, Janaína (org). Usos e abusos da história oral. Rio de janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.

BOURDIEU, Pierre. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema

de ensino. R. J. Francisco Alves, 1992. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. BOURDIEU, Pierre. Questões da Sociologia. São Paulo: Marco Zero, 1983. BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Org. Maria Alice Nogueira e

Afrânio Catani. Petrópolis, RJ: Vozes. 1998. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas.

São Paulo, Papirus Editora, 1996.

107

Page 108: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

BOURDIEU, Pierre. Sociologia. Org. Renato Ortiz. São Paulo: Ática, 1994. BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: elementos

para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro. Editora Francisco Alves, 1975.

CASTRO, Magali de. Relações de Poder na escola Pública de ensino

Fundamental: uma radiografia à luz do Weber e Bourdieu. São Paulo: Faculdade de Educação da USP, 1994 (Tese de Doutorado)

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações.

Lisboa. Portugal. Difel, 1990. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, SA. COSTA, Marisa Vorraber, Org. Caminhos investigativos: novos olhares na

pesquisa em educação. Porto Alegre, Editora Mediação, 1996. CUNHA, Maria Isabel. O bom professor e sua prática. Campinas, S.P.:

Papirus, 1994. DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. 11º ed. Trad. Lourenço Filho.

São Paulo: Melhoramentos, 1978. DURKHEIM, Émile. A Educação Moral. Livro Segundo Porto, Portugal: Res

Editora, 1984. DURKHEIM, Émile. Sociologia, Educação e Moral. Porto, Portugal, Res-

Editora Ltda, 1984. ESTRELA, Maria Tereza. Relação Pedagógica Disciplina e Indisciplina na

aula. Porto, Portugal: Porto Editora, 1994. FERREIRA e EIZIRIK, Nilda Teles e Maria Fabmam. Em Aberto, Brasília, ano

14, nº 61, janeiro março 1994. FERREIRA, Rodolfo. Entre o Sagrado e o Profano: o lugar social do

professor. Rio de Janeiro, Quartet Editora, 1998. FONSECA, Selva Guimarães. Ser professor no Brasil: História Oral de

Vida. São Paulo: Papirus, 1997. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro. Edições Graal,

1979. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis. Rio de Janeiro, Vozes, 1996

14ª edição: org. Roberto Machado. GUARESCHI, Pedrinho A. e JOVCHELOVITCH, Sandra (Orgs.). Textos em

Representações Sociais. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

108

Page 109: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

KANDEL, Liliane. Reflexões sobre o Uso da Entrevista, Especialmente a não

diretiva, e sobre as pesquisas de opinião. In Thiollent, Michel, Michel J. M. Crítica Metodológica, Investigação Social e Enquete Operária. São Paulo: Polis, 1980.

MARTINS, Carlos Benedito. A pluralidade dos mundos e das Condutas

Sociais: A contribuição de Bourdieu para a Sociologia da Educação. Revista Educação e Sociedade, nº 27, set. 1987.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 2ª ed. São Paulo:

Loyola, 1998. MICHELAT, Guy. Sobre a Utilização da entrevista não-diretiva, em Sociologia.

In Thiollent, Michel J. M. Crítica Metodológica, Investigação Social e Enquete Operária. São Paulo: Pólos, 1980.

MORAIS, Ana Alcídia de Araújo. História de Vida: a trajetória

pessoal/profissional de uma professora de leitura. 19ª reunião da ANPED. GT. Formação de Professores, Caxambu, 1986.

NÓVOA, Antônio e outros. Vida de Professores. Portugal, Porto Editora Ltda,

1995, 2ª edição. PEIXOTO, Ana Maria Casassanta. Histoire de l’Education. Service

d’historie de l’education. INRP. Paris, 1995. QUINTANEIRO, Tânia e outros. Um toque de clássicos: Durkheim, Marx e

Weber. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996, p. 15 a 57. RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a

organização escolar. São Paulo. Cortez e Morais, 1978. SÁ, Nicanor Palhares. Política educacional e populismo no Brasil. São

Paulo. Cortez e Morais, 1979. SAVIANI, Dermeval. Educação brasileira: estrutura e sistema. 3ª edição.

São Paulo, Saraiva, 1978. SNYDERS, Georges. Alegria na Escola. São Paulo. Editora Manole LTDA.

1998. VIDIGAL, Luis. Os testemunhos orais na escola. História Oral e projetos

pedagógicos. Portugal: Asa, 1996.

109

Page 110: Disciplina e Castigo na Escola: um estudo a partir da ... · Estudos sobre a disciplina escolar focalizam, em geral, a sala de aula e o comportamento em relação às regras. DURKHEIM

110