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FERNANDO MARCELO MENDES Discricionariedade administrativa e os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da motivação no controle jurisdicional do silêncio administrativo Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Direito do Estado, na subárea de Direito Administrativo, sob a orientação da Professora Doutora Lúcia Valle Figueiredo. MESTRADO EM DIREITO PUC/SP SÃO PAULO 2005

Discricionariedade administrativa e os princípios da ... · a falta de decisão da administração em um processo administrativo é trazida como ... 2.4 - Direito argentino ... um

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FERNANDO MARCELO MENDES

Discricionariedade administrativa e

os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da motivação no controle jurisdicional do silêncio administrativo

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Direito do Estado, na subárea de Direito Administrativo, sob a orientação da Professora Doutora Lúcia Valle Figueiredo.

MESTRADO EM DIREITO PUC/SP

SÃO PAULO 2005

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BANCA EXAMINADORA

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À Renata.

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RESUMO O trabalho tem por objetivo a análise do controle jurisdicional do silêncio administrativo, o que é feito a partir do estudo da discricionariedade administrativa e dos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da motivação. Estes temas estão diretamente relacionados com o controle jurisdicional do silêncio administrativo porquanto, conjuntamente, delimitam o espaço possível da atuação jurisdicional quando a falta de decisão da administração em um processo administrativo é trazida como causa de pedir em processo judicial. Também é objeto do trabalho o estudo do fenômeno do silêncio administrativo propriamente dito, valendo-se da experiência de seu tratamento no direito comparado, discutindo-se sua origem, natureza jurídica e efeitos que a lei pode legitimamente lhe atribuir, em face da exigência de motivação nos atos administrativos, tudo isso considerado sob a perspectiva de que o exercício da função administrativa é um poder instrumental conferido ao administrador público para tornar possível a perseguição de finalidades públicas. A parte final do trabalho analisa a forma pela qual o controle jurisdicional do silêncio administrativo vem sendo realizado pelos nossos tribunais nos casos concretos. Isto demonstrará que manifestação jurisdicional sobre o tema, como regra, reflete a clara divisão doutrinária entre duas hipóteses: se a omissão administrativa se aperfeiçoa no exercício de competência vinculada ou no exercício de competência discricionária.

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ABSTRACT

The aim of this paper is to analyse the judicial control of the administrative silence, which is done from the study of the administrative discretionarity and the principles of proportionality, reasonability and motivation. These themes are directly related to the judicial control of the administrative silence since, as a whole, they limit the possible space of the judicial act when the lack of a decision of an administrative procedure is brought as a cause of action in a judicial proceeding. This paper also aims to examine the administrative silence phenomenon itself. This is done considering its treatment in the comparative law, discussing its origin, juridical nature and the effects that the law can legitimately attribute to it, according to the motivation requirements of the administrative act. Everything is considered under the perspective that the exercise of the administrative function is only an instrumental power, given to the public administrator to make it possible to achieve public objectives. The last part of the paper analyses the manner the judicial control of the administrative silence has been established by our courts in concrete cases. It is shown that the judicial decisions about the improvement of the administrative omission, as a rule, reflect the clear doctrinaire division between two hypotheses: that it happens in the practice of the binding competence or in the practice of the discretionary one.

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SUMÁRIO

Capítulo I • Introdução e importância do tema pág. 9 Capítulo II • Função Administrativa pág.16

Capítulo III • Discricionariedade administrativa 1. Conceito pág.23 2. Fundamentos da discricionariedade administrativa pág.25 3. Como identificar a existência da discricionariedade pág.31 4. Doutrina que relaciona a discricionariedade. aos conceitos jurídicos indeterminados pág.33 5. Doutrina que nega a relação entre discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados pág.39 6. Doutrina que admite que os conceitos jurídicos indeterminados podem indicar a existência da discricionariedade pág.45 Capítulo IV • Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade pág.52 1. O princípio da proporcionalidade pág.54 2. O princípio da razoabilidade pág.61 3. Distinção entre a proporcionalidade e a razoabilidade? pág.69

Capítulo V • O princípio da motivação dos atos administrativos 1. O due process of law e seu fundamento constitucional pág.80 2. Motivação: requisito para o controle da proporcionalidade e razoabilidade pág.86 3.A motivação dos atos administrativos pág.99

3.1 – Os atos que devem ser motivados pág.101

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Capítulo VI

• Silêncio Administrativo 1. Origem pág.124

1.1 - No direito comparado pág.125 1.2 - No direito brasileiro pág.129

2. Natureza jurídica pág.132 2.1 - Direito português pág.134 2.2 - Direito italiano pág.135 2.3 - Direito espanhol pág.137 2.4 - Direito argentino pág.139 2.5 - Direito uruguaio pág.141 2.6 - Direito brasileiro pág.142

Capítulo VII • Os efeitos jurídicos do silêncio administrativo pág.149 1. Efeitos negativos pág.150 2. Efeitos positivos pág.154 3. Outros efeitos pág.159

Capítulo VIII • O controle jurisdicional 1. Observações necessárias pág.164 2. Atos vinculados pág.172 3. Atos discricionários pág.174 Capítulo IX • Síntese final e conclusões pág.180 Bibliografia pág.189

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Capítulo I – Introdução e importância do tema.

O direito administrativo costumava ser visto como o conjunto de

normas que legitima e disciplina a atuação do poder público sobre os interesses

individuais1.

Não é por outra razão que ao se estudar as formas de atuação do

Estado, ainda hoje se fala em poder regulamentar, poder normativo, poder hierárquico,

o que, para os menos avisados, pode fazer transparecer que prevaleceria a idéia da

existência de um poder fundado em si mesmo e a apto a justificar a prática de

determinadas ações por parte das autoridades estatais, cabendo ao direito administrativo

apenas e tão somente regrar essa forma de atuação.

Como se sabe, não se mostra plausível a análise desse ramo do

direito sob essa perspectiva. A doutrina e a jurisprudência, de algum tempo, vão

firmando o entendimento quanto a ser o direito administrativo, em verdade, o direito

que regula o dever público2, isto é, o conjunto de normas (princípios e regras) que

disciplinam a atividade dos órgãos administrativos aos quais são atribuídos poderes

instrumentais na exata extensão em que se façam necessários para a concretização do

interesse e do bem público3. Nada, além disso.

1Escrevendo sobre as modificações no direito administrativo, Hauriou anotou que “Notre droit administratif classique est un droit du commandement, du privilège, du contrôle et, pour tout dire, de la méfiance” (Le Droit Administratif de l’Aléatoire. in Mélanges offerts à Monsieur le Doyen Louis Tratobas, Paris, Librarie Génerale de Droit et de Jurisprudence, 1970, p. 224 apud Arnoldo Wald. As novas tendências do Direito Administrativo. BDA – Boletim de Direito Administrativo – julho/2003 ). 2 Celso Antônio Bandeira de Mello, ao analisar a questão da supremacia do interesse público sobre o privado, observa: “Aqui, entretanto, é necessária uma importantíssima acotação. Estes caracteres, que sem dúvida informam a atuação administrativa, de modo algum autorizam a supor que a Administração Pública, escudada na supremacia do interesse público sobre o interesse privado, pode expressar tais prerrogativas com a mesma autonomia e liberdade com que os particulares exercitam os seus direitos. É que a administração exerce função: a função administrativa. Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na função não teria como desincumbir-se do dever posto a seu cargo. Donde, quem os titulariza maneja, na verdade, “deveres-poderes”, no interesse alheio.” ( Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 17a edição, 2004 , p. 62 ). 3 Segundo Afonso Rodrigues Queiró: “a essência do direito público, do direito administrativo in specie, está na obrigação para os respectivos agentes de realizarem os interêsses que as leis lhe entregam para

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O enfoque, por conseguinte, passa a ser outro: não é a existência

de um poder público que justifica a atuação estatal, ou melhor, o direito que a

administração tem de agir não se fundamenta na existência de um poder público

previamente conformado; ao contrário, é a existência de deveres públicos e a

obrigatoriedade de perseguí-los que reclama e justifica a existência de um poder

meramente instrumental em relação àqueles.

Por evidente, essa mudança de ótica sob o objeto estudado traz

reflexos nas conclusões que podem ser alcançadas.

Estudaremos, sob essa perspectiva, o problema do controle

jurisdicional do silêncio administrativo, este entendido como o fato administrativo

substantivado na falta de decisão ou de manifestação de autoridade pública, quando, no

exercício da função administrativa, deixa referida autoridade de decidir questão que lhe

é submetida no bojo de um processo4 administrativo.

Para analisar o controle jurisdicional do silêncio administrativo,

precisaremos, inicialmente, definir o que entendemos por função administrativa, dado

que o fenômeno que buscaremos analisar sob esse signo só poderá ser imputado ao

exercício dessa função.

Por outro lado, nesse estudo do controle jurisdicional do

silêncio administrativo tema que merece especial aprofundamento é o da

discricionariedade administrativa.

que deles curem” (A teoria do desvio do Poder em direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Vol. VI, pág. 41/78 ). 4 Esclarecemos que no trabalho é adotada a classificação feita por Lúcia Valle Figueiredo, para quem o processo ( gênero ) divide-se em três espécies: 1) Procedimento ( forma de atuação da administração pública; 2) Procedimento ( seqüência de atos ) e 3) Processo em sentido estrito, que de sua vez teria as seguintes sub-espécies: processo revisivo, disciplinar e sancionatório.

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Explico. Como veremos, é entendimento doutrinário assente que

na hipótese de ficar configurado o silêncio administrativo, a possibilidade do exercício

do controle jurisdicional é informada, sobretudo, pelo tipo de competência

administrativa que deveria ter sido exercida no ato omitido: discricionária ou vinculada.

Contudo, como bem se sabe, a aparentemente simples divisão

entre as hipóteses em que o Poder Judiciário poderia, em face do silêncio

administrativo, suprir a omissão, quando a competência não regularmente exercida fosse

vinculada, ou fixar prazo para que a autoridade competente a exerça, quando

discricionária, cede passo quando se faz a seguinte indagação: mas quando a

competência é verdadeiramente discricionária?

Muito do que já se escreveu sobre a discricionariedade

administrativa, principalmente pela influência da doutrina italiana5, a identificou ao

problema do mérito do ato administrativo e, por conseguinte, a um campo no qual o

controle jurisdicional não poderia adentrar.

Como, então, precisar os exatos contornos da discricionariedade

administrativa de modo a se estabelecer qual a área de atuação possível do controle

jurisdicional sobre a manifestação administrativa ou, no que mais interessa ao estudo a

ser feito, à própria falta dessa manifestação?

O tema da discricionariedade administrativa pode ser - e é -

estudado a partir de diversas perspectivas.

A nosso sentir, uma abordagem da discricionariedade

administrativa que se mostrava essencial para o melhor estudo e compreensão do que 5 Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella di Pietro “Foi no direito italiano que se desenvolveu a doutrina referente ao mérito do ato administrativo, que acabou por influenciar os juristas brasileiros. Estes, ao cuidar do tema da discricionariedade, em regra, o relacionam com o mérito. Não encontramos no direito francês ou alemão a referência ao mérito do ato administrativo, embora se fale no princípio da oportunidade e conveniência. Aliás, entre os próprios doutrinadores italianos nem sempre se encontra referência ao mérito. É o caso de Giannini e Azzariti, que têm obras dedicadas ao tema da discricionariedade, mas não cuidam especificamente do aspecto concernente ao mérito” (Discricionariedade Administrativa. São Paulo: Atlas, 2001).

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sejam os seus próprios limites é a que a relaciona à questão dos conceitos jurídicos

indeterminados.

De fato. Na doutrina, encontramos o entendimento de que a

discricionariedade administrativa tem como campo de ação exatamente aquelas

hipóteses normativas veiculadas por meios dos chamados conceitos vagos,

indeterminados ou discricionários, linha de pensamento fundada cientificamente por

Bernatzik.

Por outro lado, há autores que defendem a tese de que

discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados seriam assuntos absolutamente

independentes, tendo cada um deles campos de atuação distintos, pelo que a presença de

um conceito indeterminado na norma a ser aplicada não poderia ser apontada como

justificativa ao exercício de uma competência discricionária, posição que seria adotada

pela moderna doutrina alemã, segundo Garcia de Enterría e Ramon Fernandez.

Afora essas duas correntes, encontramos também o

entendimento de que os dois temas, apenas podem ou não, em dadas e especiais

situações, se identificar, ou seja, a existência de um conceito indeterminado na norma

pode vir a servir como fundamento a uma valoração de oportunidade e conveniência

pelo administrador para a sua aplicação por meio de um juízo discricionário,

entendimento defendido entre nós por Celso Antônio Bandeira de Mello.

Reconhecemos que o estudo da discricionariedade a partir dessa

premissa poderia ser desenvolvido pelas mais diversas formas.

Propusemo-nos neste estudo, todavia, após elaborar uma breve

exposição teórica sobre o conceito de discricionariedade administrativa, sobre a razão

de sua existência no chamado Estado de Direito e, principalmente, sobre a sua relação

com os chamados conceitos jurídicos determinados, a analisar os reflexos dessa relação

no controle jurisdicional do ato administrativo.

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Para tanto, também se fazia necessário relacionarmos o

problema do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa a partir da

crescente aplicação, pelos nossos tribunais, dos chamados princípios da razoabilidade e

da proporcionalidade, o que, acreditamos, ampliou em muito a possibilidade de o Poder

Judiciário adentrar ao próprio exame do mérito do ato administrativo valorando as

condicionantes da conveniência e oportunidade administrativa através das lentes da

necessidade e adequação, critérios que informam esses dois princípios constitucionais

quando da aplicação da norma no caso concreto.

Mas há mais. O estudo do silêncio administrativo, se nos parece,

pressupunha o exame de outros vetores que informam o exercício da função

administrativa: o dever de decidir que a administração tem quanto às questões que lhes

são postas no âmbito de uma relação jurídico-processual administrativa, e o dever de

motivar essas mesmas decisões.

Como demonstraremos, a obrigatória observância da

administração ao princípio da motivação é fator limitador à possibilidade de ser atribuir,

por meio de lei, efeitos positivos ou negativos, ao silêncio administrativo.

Estudadas função administrativa, discricionariedade e os

princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da motivação, passaremos, então, a

analisar o fenômeno do silêncio administrativo propriamente dito.

O que é o silêncio administrativo? Poderia ser classificado como

um ato administrativo ou não passaria de um fato administrativo? Como é tratado no

direito comparado? Dele podem decorrer conseqüências jurídicas? Quais? Silêncio

administrativo e ato administrativo tácito são a mesma coisa? Trata-se de um

comportamento lícito da administração?

O termo silêncio administrativo costuma qualificar aquelas

situações em que a administração não dá cumprimento à obrigação normativa de se

manifestar, como nas hipóteses em que o particular exerce o seu direito de petição (art.

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5º, XXIV, “a” e “b” ), ou de participação na administração ( art. 37, § 3º, I e II ), ou,

ainda, aquelas situações em que há obrigatoriedade de manifestação administrativa em

decorrência do exercício normal de sua competência de controladora (art. 74, caput ,

CF/88).

Aqui, buscaremos estudar como pode ser classificado o silêncio

administrativo quando a administração deixa de ser manifestar sobre uma postulação

deduzida por um particular. Conquanto as conclusões alcançadas possam ter alguma

aplicação ao fenômeno do silêncio administrativo originado do exercício de

competência controladora, não será ele objeto de nossa preocupação específica.

Assim, quando falamos em silêncio administrativo não

estaremos analisando, ao contrário do que poderia parecer, toda e qualquer omissão

administrativa.

Em verdade, a omissão, o não agir administrativo, pode mesmo

ser legítimo se e quando não houver uma dada finalidade pública, legalmente prevista, a

ser perseguida.

Haverá, por outro lado, hipóteses que a omissão poderá causar

prejuízos a particulares que, no caso concreto, podem trazê-la como fundamento

imediato de uma ação para apuração da responsabilidade administrativa (art. 37, § 6º

CF/88), sem que, contudo, possa ser necessariamente qualificada como silêncio

administrativo.

Temos que o estudo do silêncio administrativo, que já guardava

uma relevância muito grande, ao passo que é o principal sintoma da negligência

administrativa no cumprimento de um de seus principais deveres legais6, ganhou ainda

6 Gordillo, sobre o silêncio da administração, escreveu: “Se há podido también decir que es el símbolo de una administración que non funciona” ( Tratado de derecho administrativo - Tº 3. El acto administrativo. Belo Horizonte y San Pablo: Editora Del Rey y F.D.A,1ª edición Brasileña, 2003, pág. 2).

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maior importância a partir do momento que foram positivadas normas sobre o processo

administrativo, dentre as quais destacamos a Lei 9.784/99, que regula o processo

administrativo no âmbito da administração federal, e a Lei 10.177/98 que o regula no

âmbito da administração do Estado de São Paulo.

Feitas essas considerações, focaremos nossa atenção no

problema do controle jurisdicional propriamente dito sobre o silêncio administrativo.

Como deve agir o Poder Judiciário quando a falta da

manifestação da autoridade administrativa, no bojo de um processo administrativo, for

trazida como causa de pedir de uma ação judicial?

Caberá ao Judiciário suprir essa omissão, declarando a

existência de alguma relação jurídica que a administração até o momento, de forma

expressa, não reconheceu ou o seu papel, na hipótese, será meramente o de fixar prazo

para que a Administração se manifeste?

Finalmente, analisaremos como o Judiciário vem se

manifestando, em casos concretos, sobre o controle do silêncio no direito

administrativo.

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Capítulo II - Função administrativa

Podemos ver no chamado “Estado de Direito” a consagração,

em um modelo jurídico, de duas ordens de pensamento político: a igualdade perante a

lei (Rousseau) e o controle do exercício do poder (Montesquieu)7.

Embora a idéia de separação dos poderes governamentais já

pudesse ser encontrada nas lições de Aristóteles e não fosse estranha aos mais

avançados juristas medievais, foi com Montesquieu que ela ganhou aceitação na

doutrina política do mundo ocidental8.

Se o homem que detém o poder tende a dele abusá-lo, a solução

para controlar o exercício do poder estatal, que é uno, é distribuí-lo entre três funções9

básicas ao modelo de Estado Constitucional.

Nas palavras de Black10:

7 Segundo Afonso Rodrigues Queiró, a própria a idéia rousseauniana de superioridade da lei “postula a existência duma repartição orgânica das funções do Estado , pois só se concebe que a lei seja revestida de superioridade quando há órgãos que na realização das suas funções lhe devam obediência. Quere dizer: Rousseau é insuficiente por si. E só ao lado de Montesquieu o seu pensamento adquire relevância para a ciência do direito público” ( A teoria do desvio de poder em direito administrativo. RDA, vol. VI, pág. 47 ). 8 Black, Henry Campbell. American Constitucional Law. St.Paul, Minn: West Publishing Company, third edition, 1910. 9 Importante, nesse sentido, a lição de Gordillo: “Es de cierta importancia recordar que en el pasado as veces se incurría en el error de suponer que la división de poderes significaba que cada uno de los tres poderes era “soberano en su esfera”, es decir que cada poder legislaba, administraba y juzgaba en lo relativo a su propia actividad. Tal concepción es completamente errada, pues lo esencial de la teoría analizada es la división de funciones y no sólo la división en órganos: una división en órganos no acompañada de una división de funciones no es verdaderamente garantía de libertad ni responde a la finalidad buscada. De tal modo, la división de poderes significa que cada poder, cada órgano del Estado, tenga a su cargo una sola función del Estado... ( Tratado de derecho administrativo. T. 1o, Parte General. Belo Horizonte y San Pablo: Editora Del Rey y F.D.A, 1ª edición brasileña, 2003). 10 No original: “Constitutional government is a government by law. The office of State is to establish and maintain laws. But law in its application to the individual presents itself in three aspects. It is a thing to be ordained, a thing to be administered, and a thing to be interpreted and applied, There is, therefore, a natural threefold division of the power and functions of the state in the idea of government by law. First, there is the power to ordain or prescribe the laws, which includes, incidentally, the power to change, amend, or repeal any existing laws. This is called the “legislative” power. Second, there is the power to

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Governo constitucional é um governo legal. O papel do Estado é o de

estabelecer e manter as leis. Mas a aplicação da lei ao indivíduo se

apresenta sob três aspectos: é algo a ser ordenado, administrado,

interpretado e aplicado. Há, assim, uma divisão natural tripla do poder e

funções estatais na idéia do governo sob a lei. Primeiro, há o poder de

ordenar ou prescrever leis, o qual inclui, incidentalmente, o poder de

alterar, emendar, ou ab-rogar qualquer lei existente. Este é o chamado

poder “legislativo”. Segundo, há o poder para administrar as leis, o que

significa colocá-las em prática e impor o seu devido cumprimento. Este

é o denominado poder “executivo”. Terceiro, há o poder de aplicar as

leis em controvérsia ou disputas relacionadas a deveres ou obrigações

legalmente reconhecidos entre o Estado e pessoas privadas, ou entre

litigantes individuais, nos casos levados a um Tribunal Judicial, o qual

inclui o poder de verificar quais são as leis válidas do Estado,

interpretá-las e definir-lhes o sentido, e fornecer julgamentos

autorizados. Este é o chamado poder “judiciário’’ ( tradução nossa ).

Adiantamos que não será nossa preocupação, neste trabalho,

aprofundarmos os estudos quanto à classificação das funções estatais11, nem tampouco

administer the laws, which means carrying them into practical operation and enforcing their due observance. This denominated “executive” power. Third, there is a power to apply the laws to contests or disputes concerning legally recognized rights or duties between the state and privet person, or between individual litigants, in cases properly brought before the judicial tribunal, which includes the power to ascertain what ate the valid binding laws of the state, and to interpret and construe them, and to render authoritative judgments. This is called “judicial” power”. ( Black, Henry Campbell. American Constitucional Law. St.Paul, Minn: West Publishing Company, third edition, 1910 ). 11 Enquanto a função legislativa é definida como aquela que cria, de maneira originária, normas gerais de conduta e a função jurisdicional como aquela que decide, de forma definitiva, o conflito entre partes, dizendo o direito aplicável, para se definir função administrativa, se tentou, de forma fracassada, a utilização do critério orgânico ou subjetivo ( é aquela realizada pelo Poder Executivo ), o critério negativo ( função administrativa é a atividade estatal que sobra uma vez excluídas as funções legislativa e jurisdicional ) e o critério material ( é atividade prática que o Estado desenvolve para cuidar, de modo imediato, dos interesses públicos ). Às três, Celso Antônio Bandeira de Mello ainda acrescenta uma função que denomina como sendo “política” ou de “governo” que reuniria o exercício daqueles atos que não se alocassem satisfatoriamente em nenhuma das funções do Estado, atos como os de iniciativa de propostas de lei, sanção, veto, decretação de calamidade pública, declaração de guerra etc. Parece-nos que o único critério válido para diferenciar as três funções estatais é o formal, sendo classificadas as funções como administrativa, legislativa ou jurisdicional conforme o regime jurídico que se lhe apliquem. Outrossim, é necessário também reconhecer que cada um dos poderes estatais não exerce com exclusividade quaisquer das funções, e sim as exercem em uma relação de mera preponderância, que, nas palavras de Renato Alessi, traduzem-se no exercício típico ou atípico da função pelo poder. Quanto à função governamental a que refere alguns autores, entendemos que não seria ela uma quarta função estatal, mas muito mais uma faceta da função administrativa que teria por diferencial o fato de que os atos

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pôr em discussão a adequação científica12 dessa divisão de funções e do seu exercício ao

modelo positivo do chamado Estado Social Democrático Direito13.

Sabemos que as dificuldades para se conseguir reunir pelo

menos sob três rótulos - legislativa, executiva e judiciária – as funções estatais são

enormes14, dado que as próprias modificações da concepção de Estado no mundo

praticados no seu exercício encontrariam fundamentação jurídica diretamente no Texto Constitucional, sendo um exemplo típico de seu exercício realmente a decretação da calamidade pública, a decretação de Estado de sítio ou de defesa, a declaração de guerra. Todavia, ao contrário do quanto sustentado por Celso Antônio, parece-nos que não seria próprio identificar atos como os de iniciativa de propostas de lei, sanção e veto à função governamental ou política. Essas três hipóteses não são outras coisas que não a uma etapa da função legislativa, no caso exercida atipicamente pelo Executivo. Com efeito, não parece fazer sentido entender que a votação de um processo de lei no âmbito do Legislativo caracterize o exercício da função legislativa enquanto o início desse processo – proposição – e o seu final – sanção ou veto – sejam tidos como atos estranhos à sua natureza. 12 Benoit sustenta que a classificação das funções estatais em administrativa, legislativa e jurisdicional não tem qualquer validade científica que pressuporia a fiel expressão do direito positivo, ao passo que a lição de Montesquieu “ne procédait pás à une analyse de réalités positives, mais décrivait – sous le couvert da la constitution de l’Angleterre et en empruntant largement à louvre de Locke – ce que lui paraisait devoir entre le régime politique idéal (... )L’analyse de Montesquier n’est doc qu’une vue de l’esprit; elle n’est pás l’expression des réalités du droit positif à um moment donné. Elle relève de l’art politique. ( Le Droit Administratif Français. Paris: Dalloz, 1968. ) 13Escrevendo sobre a princípio da divisão dos poderes anotou Paulo Bonavides que, não obstante a sua importância na formação do Estado Constitucional, deveria agora ser abandonado no museu da Teoria do Estado dado à sua incapacidade de responder aos anseios do Estado Social: “Um desses esquemas foi o da divisão de poderes, que tinha como objeto precípuo servir de escudo aos direito da liberdade, sem embargo de sua compreensão rigorosamente doutrinária conduzir ao enfraquecimento do Estado, à dissolução de seu conceito, dada a evidente mutilação a que se expunha o princípio básico da soberania, uma de cujas características, segundo Rousseau, era a indivisibilidade. No entanto, no anseio de proteger eficazmente a liberdade levava ao esquecimento dessa contradição, sem que se suspeitasse sequer da necessidade de retificar o princípio, com as correções que lhe foram feitas, posteriormente, em ordem a atenuar o rigor de suas conclusões. A lição dos povos que padeceram os abusos do absolutismo explica, por conseguinte, a elaboração daquela técnica sedutora que imperou, por mais de século, no constitucionalismo clássico. Devemos entendê-la, pois, como arma de que se valeu a doutrina para combater sistemas tradicionais de opressão política. Visceralmente antagônico à concentração de poder, foi, portanto, princípio fecundo de que se serviu para a proteção da liberdade o constitucionalismo moderno, ao fundar, com o Estado jurídico, o governo da lei, e não o governo dos homens, ou seja, a “government of law not a government of men”, conforme asseverou judiciosamente, numa locução já histórica, o insigne John Adams, dissertando acerca da Constituição americana. Mas nunca se deve perder de vista que o afamado princípio se gerou também na idéia peculiar ao liberalismo de limitação máxima dos fins do Estado. (...) Com o moderno Estado social cresceram, porém, os fins do Estado. Ora o princípio de Montesquieu, como vimos, compadecia-se com a diminuição, e não com o alargamento, daqueles fins. Daí outro motivo para determinar o recuo necessário, se não o abandono a que se acha exposto, na doutrina política de nossos dias, mencionado princípio, notadamente depois que as necessidades do mundo moderno impuseram ao poder estatal a ampliação de seus fins e o aumento contínuo da esfera de suas responsabilidade”( Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Malheiros, 7a. edição, 2001 ). 14Embora não possamos negar a dificuldade na classificação das funções estatais, a razão parece estar com Gordillo, para quem “os nuevos intentos buscan en general dar un nuevo concepto de función administrativa antes que modificar o precisar específicamente el de función legislativa o

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contemporâneo, ora com o fluxo, ora com o refluxo, em um verdadeiro movimento

pendular15 no que toca à importância de sua participação ativa na perseguição do

interesse público substantivado no desenvolvimento econômico e social de um país,

necessariamente, levam à releitura dos contornos dos poderes que lhe são atribuídos.

Fiquemos em dois exemplos.

De alguns anos para cá, muito se discute sobre a necessidade de

o Estado deixar de ser ator ativo na prestação dos serviços públicos, de modo que

passasse a ocupar uma função meramente reguladora dessa mesma atividade,

exercendo-a por meio das chamadas agências reguladoras independentes.

Sem entrar no mérito da legitimidade e dos limites dessa

reformulação do papel do Estado, a adoção desse modelo de regulação implica o

obrigatório reexame da teoria da tripartição do poderes, pois afora retirar das mãos do

Estado a atividade que outrora definia a sua própria essência jurídica16, tende ainda a

consagrar em um único ente do aparelho estatal o exercício simultâneo das três

funções17 – normatizar, fiscalizar e decidir conflitos - que, na história política, sempre

se entendeu deveriam estar atribuídas a órgãos diferentes18.

jurisdiccional”(Tratado de derecho administrativo. Belo Horizonte y San Pablo: Editora Del Rey y FDA, 1ª. Edición, 2003 ). 15 Anotou Caio Tácito que “A abertura da economia e a relativa retirada da presença do Estado na prestação de serviços econômicos é uma das manifestações desta dança do pêndulo entre extremos em busca do equilíbrio estável da perfeição’’. ( Reforma Administrativa. Carta Mensal nº 520, Rio de Janeiro, julho 1998 apud Arnoldo Wald. As novas tendências do Direito Administrativo. BDA – Boletim de Direito Administrativo – julho/2003. Para Arnoldo Wald: “Há um verdadeiro movimento pendular entre a maior e a menor intervenção do Estado no mercado em decorrência da própria evolução política, econômica e social do mundo. Este movimento pendular tem sido assinalado pela melhor doutrina, tanto no exterior quanto no Brasil. ( As novas tendências do Direito Administrativo. BDA – Boletim de Direito Administrativo – julho/2003 ). 16 Escreveu León Duguit: “Así como el derecho privado deja de estar fundado en el derecho subjetivo del individuo, en la autonomía de la persona misma, y descansa hoy en la noción de una función social que se impone a cada individuo, el derecho publico no se funda en el derecho subjetivo del Estado, en la soberanía, sino que descansa en la noción de una función social de los gobernantes, que tiene por objeto la organización y el funcionamiento de los servicios públicos” ( Las transformaciones del derecho público. Traducción con estudio preliminar de Adolfo Posada. Madrid: Francisco Beltran, Librería Española y Extranjera, 1913 ). 17 Conforme ensina Arnoldo Wald:“Na fase posterior à privatização, o Direito Administrativo é substancialmente modificado, em razão do poder normativo de Agências Reguladoras independentes. Estamos, assim, diante de uma matéria nova, que se aproxima do Direito Econômico, clamando por sua

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Por outro lado, a própria importância do papel do Estado na

prestação de serviços públicos e no implemento do desenvolvimento social deve ser

repensada quando se sabe que grande parcela das atividades que lhes são peculiares vem

sendo, de forma lenta, porém constante, absorvida pelo chamado Terceiro Setor19.

Como dissemos, não vamos aqui aprofundar esse debate sobre

o papel e o exercício das funções estatais, particularmente da função administrativa.

economia. A doutrina discute, principalmente, a terminologia, mas o Direito da Regulação tem regras próprias aplicadas por um órgão dotado de Poderes Executivos, quase Legislativo e quase Judiciário, que, em certo sentido, representa melhor a sociedade em geral do que o próprio Estado” ( As novas tendências do Direito Administrativo. BDA – Boletim de Direito Administrativo – julho/2003). 18 É bom se ter em mente, da mesma forma, que nos Estados Unidos da América, país que com o New Deal testemunhou a criação de um conjunto de agências independentes e a conseqüente redefinição da teoria da divisão dos poderes e do check and balances, esse modelo de regulação e o alcance dos poderes das agências reguladoras é objeto de discussão, anotando Cass R. Sunstein, Professor de Direito e da Faculdade de Direito e do Departamento de Ciência Política da Universidade de Chicago, que: “Nas últimas três décadas, tem-se assistido a uma crescente rejeição da concepção de Administração Pública do New Deal, embora a crítica substantiva ao common law tenha permanecido em larga medida intacta. Por lhes faltarem os mecanismos de freios e contrapesos internos, as agências administrativas apresentam riscos especiais do ponto de vista da distribuição tradicional dos poderes nacionais. Perigo como o facciosismo e a representação de interesses particularistas têm sido a principal preocupação do direito administrativo moderno. Muitas propostas para a reforma regulatória, seja judicial, executiva, ou legislativa, desenvolvem-se a partir dessa preocupação. O declínio da estrutura institucional do New Deal manifestou-se primeiramente no Judiciário, à medida que juízes desenvolveram doutrinas com o objetivo de eliminar fundamentos inadmissíveis para as decisões regulatórias. A conseqüência disso é a moderna hard-look doctrine, que repousa uma concepção deliberativa de Administração Pública. Entendida de forma adequada, a doutrina protege os beneficiários da regulação do mesmo modo que os regulados. Presidentes americanos também têm tido um controle cada vez maior sobre a burocracia, mais recentemente delegando poder de supervisão para OMB. Em adição, o Congresso estabeleceu prazos que são vinculantes, executáveis judicialmente, leis que estipulam metas e diretrizes regulatórias precisas para assegurar que agências reguladoras não subvertam as leis reguladoras do processo de implementação. Os três ramos do governo têm então se intrometido na autonomia das agências por modos que têm restaurado algumas das características da estrutura constitucional original” ( “O Constitucionalismo após o The New Deal”. Regulação Econômica e Democracia – O debate Norte-Americano. George J. Stigler, Richard. A. Posner. S. Peltzman, Cass R. Sunstein, Susan Rose-Ackerman, Jerry L. Mashaw. Coordenação Paulo Matos. São Paulo: Editora 34. Núcleo Direito e Democracia/CEBRAP, 2004, pág. 200/201 ) 19 Escreve Sílvio Luis Ferreira da Rocha que: “O nome Terceiro Setor indica os entes que estão situados entre os setores empresarial e estatal. Os entes que integram o Terceiro Setor são entes privados, não vinculados à organização centralizada ou descentralizada da Administração Pública, mas que não almejam, entretanto, entre seus objetivos sociais, o lucro e que prestam serviços em áreas de relevante interesse social e público. De acordo com Boaventura de Souza Santos, o Terceiro Setor é formado por ‘um conjunto de organizações sociais que não são nem estatais nem mercantis, ou seja, organizações sociais, que, por um lado, sendo privadas, não visam a fins lucrativos, e, por outro lado, sendo animadas pro objetivos sociais, públicos ou coletivos, não estatais.” ( Coleção Temas de Direito Administrativo. Terceiro Setor – volume 7: São Paulo: Malheiros, 2003, pág. 13.)

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As observações anteriores tiveram por objetivo apenas alertar

ao leitor que não desconhecemos esses problemas que envolvem, no direito

administrativo atual, a própria conformação do conceito de função administrativa.

Todavia, como vamos estudar o silêncio administrativo e sendo

essa realidade jurídica, a mais das vezes, um sintoma da impropriedade do exercício da

função administrativa, esse estudo inicial sobre o fenômeno vem ao propósito de

reforçar a idéia já desenvolvida na parte introdutória deste trabalho de que o exercício

dessa função, longe de se consubstanciar em um verdadeiro poder (com a carga

semântica própria da palavra), tem a natureza de um mero dever instrumental que é

conferido ao Estado ou a quem atue fazendo-lhe às vezes como forma de viabilizar a

consecução de finalidades que a Constituição e as normas legais erigiram como sendo

de interesse público.

Daí porque adotamos, como critério informador de todo o

trabalho que será desenvolvido, o conceito de função administrativa colhido na lição de

Lúcia Valle Figueiredo20, para quem:

A função administrativa consiste no dever de o Estado, ou de que aja

em seu nome, dar cumprimento fiel, no caso concreto, aos comandos

normativos, de maneira geral ou individual, para a realização dos fins

públicos, sob regime prevalente de direito público21, por meio de atos e

comportamentos controláveis internamente, bem como externamente

pelo Legislativo ( com o auxílio dos Tribunais de Conta ), atos, estes,

revisíveis pelo Judiciário.

20 Curso de Direito Administrativo, pág. 34. 21 Concordamos com a posição da autora de que o exercício da função administrativo se dá sob o regime prevalente - e não exclusivo - de direito público, pois como ensina Arnold Wald: “A própria distinção entre Direito Público e o Direito Privado, que continua sendo importante para fins didáticos e para boa compreensão dos princípios jurídicos básicos, não tem mais a importância que lhe foi atribuída no passado. Temos situações tangentes entre os dois direitos, sendo semi-públicas e semi-privadas, do mesmo modo que existem atos bifaces, com aspectos de direito comercial e outros de natureza administrativa, como ocorre em relação a diversos negócios jurídicos realizados no campo do direito bancários e nas relações decorrentes da atuação das sociedade de capital aberto” (As novas tendências do Direito Administrativo. BDA – Boletim de Direito Administrativo – julho/2003 )

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Com efeito, a função administrativa substantiva tão somente

um dever público instrumental, pois nas precisas palavras de Ruy Cirne de Lima22 a

atividade administrativa é “a atividade do que não é senhor absoluto” e que tem por

característica principal “estar vinculada, - não a uma vontade livremente determinada, -

porém, a um fim alheio à pessoa e aos interesses particulares do agente ou órgão que o

exercita”.

Essa conotação da função administrativa que pretendemos aqui

ver destacada tornará mais claras as nossas conclusões sobre o próprio fenômeno do

silêncio administrativo, pois se ele se traduz em um exemplo típico do desatendimento

dos comandos legais pelos órgãos que estejam no exercício da função administrativa,

todo o tratamento jurídico que se lhe dê não pode, jamais, ter a intenção de prestigiá-lo

ou de torná-lo um tipo de comportamento aceitável dentro da ordem jurídica.

O silêncio administrativo, como se verá, pode ter

conseqüências legais predefinidas, todavia, por ser nada mais do que um reflexo do

descumprimento de deveres instrumentais e, principalmente, por não atender aos

princípios que informam a atividade administrativa, dentre os quais, com destaque, o da

motivação dos atos administrativos, referidos efeitos não podem ser atribuídos de forma

ampla e livre, devendo, ao contrário, serem tratados como fenômenos excepcionais e

que só se justificam quando presentes estiverem certas circunstâncias especiais que lhe

autorizem a imputação de efeitos legais.

22 Princípios de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 6a edição, 1987.

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Capítulo III – Discricionariedade administrativa

1 - Conceito

Discricionariedade administrativa, de forma resumida, poderia

ser conceituada como o espaço livre de valoração que a lei confere ao administrador

para a melhor aplicação possível da norma ao caso concreto, quando pelos menos dois

comportamentos se mostrariam por tudo e em tudo aceitáveis.

Em geral, nessa linha, posiciona-se a doutrina nacional ao

definir o que seja a discricionariedade administrativa.

A liberdade do agir administrativo, dentro dos limites legais,

por José Cretella Júnior23, é analisado da seguinte maneira:

Dentro da legalidade, os agentes da Administração, balizados embora

por normas jurídicas que lhes regem os movimentos, tomam atitudes,

intervindo ou não, agindo ou deixando de agir. Quando agem,

selecionam, dentre as várias possibilidades que lhes oferecem, a que

melhor traduza, num dado momento, a vontade da administração

orientada para o interesse público. Jogam, para isso, com o livre poder

de apreciação para resolver este ou aquele caso. Ou para não resolver.

Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro24, discricionariedade

administrativa:

é a faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o caso

concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher

uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito.

23 Tratado de Direito Administrativo. Vol. II – Teoria do Ato Administrativo.São Paulo: Forense, 1966. 24 Discricionariedade Administrativa. São Paulo: Atlas, 2001.

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Celso Antonio Bandeira de Mello25 define a discricionariedade

administrativa como sendo:

a margem de ‘liberdade’ que remanesça ao administrador para eleger

segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos

dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de

cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da

finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou

da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair

objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente.

Lúcia Valle Figueiredo26 entende que a discricionariedade:

...consiste na competência-dever de o administrador, no caso concreto,

após a interpretação, valorar, dentro do critério de razoabilidade e

proporcionalidade gerais, e afastado de seus próprios “standards”ou

ideologias, dos princípios e valores do ordenamento, qual a melhor

maneira de concretizar a utilidade pública postulada pela norma.

Essa é a noção de discricionariedade que vamos utilizar para o

desenvolvimento dos demais pontos deste trabalho.

Em verdade, não achamos necessário desenvolver mais a

discussão quanto ao conceito de discricionariedade propriamente dito, pois esse tema

não apresenta maiores divergências doutrinárias.

As dificuldades, como veremos, aparecem quando se trata de

contrastar um determinado comportamento ( ativo ou omissivo ) administrativo em um

caso concreto, decorrente do exercício da chamada competência discricionária, e saber,

ao mesmo tempo, até aonde poderia o seu reexame judicial prosseguir.

25 Curso de Direito Administrativo, pág. 831. 26 Curso de Direito Administrativo, pág. 211.

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2 - Fundamentos da discricionariedade administrativa

Como justificar a existência da discricionariedade

administrativa no Estado de Direito se este é definido como aquele no qual a atividade

da Administração Pública “é uma atividade de subsumpção dos fatos da vida real às

categorias legais”27?

É certo que a discricionariedade administrativa já foi definida

por Buhler como “a ausência de direito subjetivo”, por Laun “como a livre escolha de

fins”, por Pressutti pela sua “insidicabilidade”, ou, ainda, segundo Michoud, pela

“ação livre da autoridade, sem que a conduta a observar lhe seja ditada

antecipadamente por um regra de direito”28.

Todavia, hoje na doutrina29, de forma pacífica, a noção de

discricionariedade administrativa, entendida como a margem de liberdade ao

administrador dentro dos parâmetros legais30, é tida como consubstancial à própria idéia

de Estado de Direito, não havendo fora dele, por conseguinte, sentido em estudar esse

espaço livre do agir administrativo sob essa terminologia.

De fato. O Estado de Polícia, segundo Merkl31:

se apresenta como aquele Estado cuja administração se acha legalmente

incondicionada, enquanto o Estado de Direito oferece uma

administração condicionada legalmente. 27 Afonso Rodrigues Queiró in A teoria do desvio de poder em direito administrativo, RDA vol. VI 28 É o que nos ensina Queiró in A teoria do desvio de poder em direito administrativo, RDA vol. VI 29 Sustentava Duguit que, no moderno direito francês, não haveria lugar para o chamado ‘poder discricionário’: “La limitation de la compétence, non seulement quant à l’objet de l’act, mais encore quant au but qui le determine, constitue une garantie très forte contre l’arbitraire des gens publics. La consequénce en est, en effet, que rien n’est plus laissé à l’appréciation discrétionaire de l’agent administratif”. ( Traité de droit constitutionnel, II, 3a. ed. 1929, pág, 378 apud Afonso Rodrigues Queiró. A teoria do desvio de poder em direito administrativo, RDA vol. VI ) 30 Como escreveu André Gonçalves Pereira: “O poder discricionário não resulta da ausência da regulamentação legal de certa matéria, mas sim de uma forma possível de sua regulamentação” ( Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo. Lisboa: Ática, 1962 ). 31 Teoria general del derecho administrativo. México: Nacional, 1980.

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Se o Estado de Polícia era estruturado em princípios como o da

regis voluntas suprema lex ou o do the king can do no wrong32, irrazoável dizer que

nele haveria, na compostura que hoje se lhe dá, um poder discricionário.

A existência da discricionariedade administrativa no Estado de

Direito, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello33, poderia ser justificada: a) no

deliberado intento legal de conferir à Administração certa liberdade para decidir-se pela

melhor maneira de satisfazer a finalidade da lei à vista do caso concreto; b) na

impossibilidade material de o legislador prever todas as situações, donde deve recorrer

a formulas mais flexíveis e c) na linha de pensamento defendida por Afonso Rodrigues

Queiró34, na inviabilidade jurídica, em regime de tripartição de poderes, da supressão

da discricionariedade, sob pena de o legislador invadir campo de individualização de

norma, o que lhe seria defeso e d) na impossibilidade lógica de obstar a

discricionariedade pela necessária utilização na norma dos conceitos indeterminados .

Marçal Justen Filho35, por sua vez, à idéia que identifica a

discricionariedade à possibilidade de escolha entre pelo menos dois comportamentos, vê

nela, ainda, o instrumento de adaptação da norma legal ao próprio desenvolvimento do

conhecimento humano:

....sua essência reside numa atuação volitiva de cunho funcional,

orientada a selecionar a alternativa mais adequada para realizar os

32 Sobre essa máxima, interessante observação é feita por Richard Posner: “The political uses of the legal fiction are nicely illustrated by Blackstone’s discussion of the maxim, ‘The king can do no wrong’. At first blush it might seem that the purpose of this maxim was to place the king above the law. But Blackstone’s discussion suggests that the real purpose was to make it easier to subject the king to the restraints of law. The fiction that the king could do no wrong, and its corollary that any wrong done by the king was to be attributed to ‘evil counselors’, made it possible to check royal abuses through actions against the king’s agents rather them the king himself; direct confrontations between the courts or the legislature and the king were avoid. The fiction had essentially a face-saving function” (The economics of Justice. Cambridge, Massachusetts and London, England: Harvard University Press ) 33 Curso de Direito Administrativo, pág. 824/825. 34 “O legislador, para se manter tal, tem, pois, que deixar à Administração uma certa margem de discricionariedade. Pode, sim, fazê-la desaparecer, mas, para isso, tem de sacrificar (...) a sua própria qualidade de legislador ” ( A teoria do desvio de poder em direito administrativo, RDA vol. VI ) 35 O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002.

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diferentes interesses em jogo. Nessa linha, no núcleo do conceito de

discricionariedade reside numa avaliação de oportunidade que conduz à

eleição de uma dentre diversas alternativas possíveis. Mas essa escolha

é orientada à realização do interesse público, assim entendido como o

resultado de uma ponderação dos efeitos da decisão sobre os diversos

interesses secundários em vista do fim público a atingir. A

discricionariedade não consiste, ou melhor, não consiste

necessariamente – numa simples escolha de uma dentre várias escolhas

previamente determinadas em nível legislativo. Quando a lei configura

a discricionariedade, também pode fazê-lo pela impossibilidade de

selecionar abstrata e antecipadamente todas as alternativas disponíveis

para resolver um certo problema. A discricionariedade pode resultar da

consideração de que a disciplina de uma relação jurídica ou de um setor

da realidade social deve fazer-se segundo critérios técnico-científicos,

variando as soluções inclusive em face do progresso futuro. Ou seja,

formular legislativamente um elenco de soluções admissíveis

corresponderia ao equívoco de delimitar o exercício da competência

discricionária ao conhecimento consagrado à época da edição da lei.

Todas essas razões e outras tantas, como o puro pragmatismo

político36, podem justificar a existência da discricionariedade administrativa no Estado

de Direito.

E é melhor que seja assim mesmo. Quando definimos

discricionariedade como sendo o espaço livre de valoração que a lei confere ao 36 O Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nelson Jobim, com a reconhecida autoridade de conhecimento de causa de quem participou da Assembléia Constituinte, em diversas palestras que vem proferindo, e aqui me refiro a uma específica transmitida pela TV Senado, em que discutia a reforma do judiciário, confessou que a impossibilidade de consenso político sobre uma determinada matéria é que leva, a mais das vezes, à utilização de conceitos plurissignificativos ou indeterminados nos textos legais, o que faz com que dois efeitos imediatos sejam produzidos: a) encerrar a discussão no Legislativo e b) transferi-la ao Executivo e Judiciário. Deu-nos, naquela oportunidade, um exemplo concreto dessa forma de atuação política, ao comentar a votação do art. 7o, XV da Constituição Federal que regulamenta o repouso semanal remunerado para os trabalhadores. Segundo o Ministro, os representantes políticos dos empregados queriam que fosse assegurado o repouso semanal aos domingos; de outra parte, os representantes dos empregadores queriam que a regulamentação do dia do descanso semanal remunerado ficasse a cargo de acordo coletivo. Como não se chegava a um ponto final, e nenhuma das partes cedia passo em sua posição, o resultado possível foi se garantir, na redação final da norma, o repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos.

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administrador para a melhor aplicação possível da norma ao caso concreto,

destacamos a palavra melhor porque, no Estado de Direito, a razão da existência de uma

margem de liberdade ao agente público aplicador da norma é a possibilidade de

propiciar-lhe, por meio dela, a obtenção de um resultado ótimo que não seria atingido se

as conseqüências jurídicas que se pretendesse emprestar a um determinado ato ou fato

não pudessem ser valoradas após a sua ocorrência.

Essa mesma natureza instrumental que identificamos na

discricionariedade administrativa é também reconhecida por Fernando Sainz Moreno37

na utilização de conceitos indeterminados na norma jurídica:

Assim, a função positiva que cumpre a indeterminação dos conceitos

jurídicos, não é a de criar o vazio normativo dentro de cujos limites

qualquer decisão seja válida, sendo, ao contrário, dar a norma a largura

necessária para que, sendo mais adaptável à realidade, o resultado de

sua aplicação possa ajustar-se com maior exatidão à solução que a

norma preconiza, ao “espírito e finalidade daquela”, como diz o artigo

3o do Código Civil. A indeterminação dos conceitos, por si só, não tem,

pois, outro alcance que fazer possível a mais exata aplicação da norma

(tradução nossa).

Convenhamos, fosse dado ao legislador, melhor, se lhe fosse

possível estabelecer todos os comportamentos que o administrador devesse seguir,

vinculando de forma absoluta a sua atuação e, ao mesmo tempo, garantindo a completa

concretização da finalidade legal, especialmente atendido estaria o princípio da

segurança jurídica a partir dessa pré-definição completa das conseqüências normativas

para os mais diversos atos e fatos que viessem a ser produzidos.

37 No original: “Así, la función positiva que cumple la indeterminación de los conceptos jurídicos, no es la de crear o vacío formativo dentro de cuyos límites cualquier decisión sea válida, sino, por el contrario, dar a la norma la holgura necesaria para que, siendo más adaptable a la realidad, el resultado de su aplicación pueda ajustarse con mayor exactitud a la solución que la norma preconiza, al “espíritu y finalidad de aquélla”, como dice el artículo 3º. del Código Civil. La indeterminación de los conceptos, por si sola, no tienes, pues, otro alcance jurídico que el hacer posible la más exacta aplicación de la norma”. Conceptos Jurídicos, Interpretación y discrecionalidad administrativa. Madrid: Editoral Civitas, 1976.

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A vida em sociedade, contudo, não demanda apenas segurança

jurídica. Demanda, também, Justiça, que, de sua vez, não é conseqüência natural e

lógica da simples subsunção dos fatos às normas.

Daí ter escrito Queiró38, ao fundamentar a existência da

discricionariedade administrativa, que:

É a necessidade social de harmonizar a segurança com justiça que

regula ou deve regular o grau de precisão das normas jurídicas. Isto diz

o mesmo que é geralmente apontado para justificar o poder

discricionário: dar possibilidade de maleabilidade à Administração,

inconveniência de uma rigorosa pormenorização das normas legais. O

nosso ponto de vista, porém, é de que haverá sempre, ainda que se não

desejasse, uma irredutível margem de discricionariedade na execução

das leis.

Sem querer entrar em uma discussão paralela ao tema em

análise, e não se esquecendo, por exemplo, da lição de Celso Antônio Bandeira de

Mello39, há autores que, por esse mesmo motivo, também na atividade jurisdicional

vislumbram o exercício necessário de uma certa discricionariedade40.

38 A teoria do desvio de poder em direito administrativo, RDA vol. VI. 39 “O específico da função jurisdicional é consistir na dicção do direito no caso concreto. A pronúncia do Juiz é a própria voz da lei in concreto. Esta é a sua qualificação de direito. Logo, suas decisões não são convenientes ou oportunas, não são piores ou piores em face da lei. Elas são pura e simplesmente o que a lei, naquele caso, determina que seja. Por isto, ao juiz jamais caberia dizer que tanto cabia uma solução quanto outra ( que é característico da discrição ), mas que a decisão tomada é a que o Direito impõe naquele caso” ( Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992 ). 40 Discutindo o problema dos princípios e da discrição judicial, David Diniz Dantas traz à colação as lições de Hart, Alexy e Dworkin, dizendo: “Em suma, o modelo hartiano conduz à tese da discrição judicial e permite contemplar os princípios extra-sistemáticos como elementos próprios da discrição judicial. Como método, sustenta a inexistência de vínculo conceitual entre o direito e a moral ( tese da separação ), com dois corolários: a tese das “fontes sociais”( o direito é um fenômeno social cuja descrição é possível sem a ajudada de “valores morais”) e a tese da “falabilidade moral”( a validade do direito nada teria a ver com o seu “mérito”ou “demérito” ). O modelo não positivista tende a restringir a discrição judicial ( Alexy ) ou eliminá-la ( Dworkin ), mediante a vinculação do direito ( ou do discurso jurídico ) à moral ( ou discurso moral ). Essa vinculação opera-se por meio de princípios. Portanto, para Dworkin e para Alexy haveria uma relação conceitual necessária entre Direito e Moral. A moral solucionaria os problemas das lacunas e contradições do sistema jurídico e permitiria afastar a tese positivista da “discrição judicial”. ( Interpretação Constitucional no pós-positivismo – Teoria e Casos Práticos. São Paulo: WVC Editora, 2004, pág. 93 ).

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Lúcia Valle Figueiredo41, citando Satta, reconhece que do ponto

de vista lógico Juiz e administrador não desempenham papéis diferentes, ao passo que

desempenham atividade subsuntiva de adequar o fato à norma. A diferença das duas

atividades residiria na situação de que o Juiz se moveria apenas dentro dos limites da

lide proposta, enquanto o administrador poderia ir, com mais liberdade, em busca dos

fatos que motivassem o seu comportamento.

Karl Larenz42, analisando o problema da vinculação à lei e o

modelo subsuntivo, escreveu:

Os autores até agora referidos compartilham sem excepção da ideia de

que o processo de uma dedução da maior parte das decisões a partir da

lei por meio de uma subsunção lógica ( da situação de facto sob a

previsão de uma norma legal) ou é geralmente inadequado ou então só

lhe reconhecem um significado mínimo. O ponto fulcral pelo menos do

achamento do Direito, mas também da justificação da decisão, reside

para eles em outras ponderações do juiz, que se prendam sempre com

juízos de valor. Nisto FIKENTSCHER também não constitui exceção.

De facto, ele decide-se expressamente pelo modelo de subsunção, mas a

subsunção é para ele apenas o último passo de um processo em cujo

termo é o próprio juiz que na maior parte dos casos conforma pela

primeira vez a norma à qual então irá subsumir. É indiscutível que,

nestes termos, a mais recente metodologia reconhece aos tribunais uma

grande participação na conformação e desenvolvimento do Direito no

seu processo de aplicação, a law in action, o que é condicente com a

constatação de qualquer um de que, por exemplo, para se informar

sobre o Direito das Obrigações actual não bastaria contar só com o

Código Civil. Por vezes dá-se a impressão de que o princípio da

vinculação do juiz à lei foi abandonado na prática na metodologia

moderna. Assim, lemos em HASSEMER que mesmo quando o juiz se

queira ater estritamente à lei, ele não o pode fazer.

41 Curso de Direito Administrativo, pág. 208. 42 Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3a edição, 1997.

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Enfim, como disseram Garcia de Enterría e Tomás-Ramon

Fernandez43, a discricionariedade é própria do governo humano:

Há por isto poderes que em si mesmos são e não podem deixar de ser

em boa parte discricionários, por sua própria natureza; assim, o poder

regulamentar, ou o poder organizativo, ou os poderes diretivos da

economia, ou, em geral, todas aquelas que implicam exercício de

opções quanto a soluções alternativas. Tudo isto não é tornado

mecânico em fórmulas fixas e vinculadas. É mais: a atribuição à

Administração de muitas funções se faz buscando justamente para sua

gestão a estimação subjetiva da oportunidade que a somente a técnica

da discricionariedade permitiria ( tradução nossa).

Considerando que não é nossa preocupação principal neste

trabalho justificar a discricionariedade administrativa e sim, na medida do possível, ao

estudar os seus exatos limites, discorrer sobre a possibilidade de seu controle

jurisdicional, ficamos por aqui.

3 - Como identificar a existência da discricionariedade

Pretendemos analisar o problema do controle da

discricionariedade administrativa pelo Poder Judiciário através de uma específica

perspectiva dessa matéria, perspectiva essa que se dará precisamente pela contraposição

das doutrinas que identificam ou negam a relação entre discricionariedade e conceitos

jurídicos indeterminados.

43 No original: “Hay por ello potestades que en sí mismas son y non pueden dejar de ser en buena parte discrecionales, por su propia naturaleza; así, la potestad reglamentaria, o la potestad organizativa, o las potestades directivas de la economia o, en general, todas aquellas que implican ejercicio de opciones respecto de soluciones alternativas. Todo esto no es mecanizable en fórmulas fijas y regladas. Es más: la atribución a la Administración de muchas funciones se hace buscando justamente para su gestión la estimación subjetiva de la oportunidad que la técnica de la discrecionalidad permite y sólo por ello” (Curso de derecho administrativo I. Madrid: Civitas, 1994 ).

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32

A utilização de conceitos plurissignificativos na norma jurídica

pode ser tributada especialmente à limitação de nossa linguagem, incapaz de precisar as

mais diversas realidades sob signos que as identificassem como objetos únicos.

Essa limitação, de sua vez, tem reflexos imediatos no Direito,

pois, como ensina Sainz Moreno44, a relação entre o Direito e a linguagem é de

vinculação essencial: não existe direito sem a linguagem, da mesma maneira que não

existe o pensamento fora da linguagem45.

Feitas essas breves considerações, e tendo em conta o objeto de

nosso trabalho, a pergunta que agora caberia é: qual a relação possível entre uma coisa e

outra, ou melhor, entre conceito jurídico indeterminado e discricionariedade

administrativa?

Vamos analisar esse problema da seguinte forma: primeiro,

analisaremos a doutrina que identifica a discricionariedade administrativa à utilização,

pela norma, dos conceitos jurídicos indeterminados; posteriormente, analisaremos o

entendimento dos que negam a existência dessa relação entre os dois fenômenos;

concluiremos, então, com a exposição do pensamento daqueles que admitem que as

duas coisas podem ou não estar ligadas.

Na medida do possível, a cada linha de pensamento estudado,

procuraremos trazer à colação precedentes jurisprudenciais que espelhem esse ou aquele

entendimento, e isso como forma de tentar situar o posicionamento de nossos Tribunais

quanto ao controle da discricionariedade, ou melhor, se entendida a discricionariedade

administrativa como campo insindicável do ato administrativo, os seus próprios limites

definidores.

44Conceptos jurídicos, Interpretación y discrecionalidad administrativa. Madrid: Editoral Civitas, 1976. 45 Disse Ludwig Wittgenstein: “Os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo”.

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4 – Doutrina que relaciona a discricionariedade aos conceitos jurídicos

indeterminados

Na origem do Estado de Direito, a discricionariedade

administrativa correspondia ao espaço livre de regulamentação legal e que permitia à

administração monárquica a concretização de objetivos e fins próprios, sendo que, em

relação a esses comportamentos, os tribunais administrativos podiam apenas controlar

se houve atribuição de discricionariedade e se o seu exercício foi feito em observância

aos fins legais que justificaram a atribuição dos poderes exercidos.46

Se mesmo sob o Estado de Direito permanecia um campo de

atuação administrativa não contrastável pelos Tribunais, a pergunta que passou a

doutrina administrativa européia a fazer no final do século XIX – e que permanece

pertinente até hoje – era de como delimitar esse espaço livre, é dizer, como saber se e

quando a discricionariedade administrativa teria sido efetivamente atribuída.

É tributada a Bernatzik, na Áustria, em 1886, a fundação

científica da doutrina que começou a identificar a discricionariedade administrativa à

utilização, pela norma, do que então se chamou de conceitos indeterminados ou

discricionários, vale dizer, conceitos cuja interpretação e aplicação não poderiam ser

controlados pelos tribunais administrativos.

Martin Bullinger47 ensina que o Supremo Tribunal Austríaco,

entre 1888 e 1967, por influência dessa doutrina dos conceitos discricionários,

reconhecia à administração um campo livre, ou parcialmente livre, de auto-

responsabilidade e de decisão.

46 Martin Bullinger. A discricionariedade da Administração Pública. Revista de ciência política. Vol.30 nº 2 – abr/jun 1987. 47 A discricionariedade da Administração Pública. Revista de ciência política – vol.30 nº 2 – abr/jun 1987.

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Nessa mesma linha de entendimento, no direito português,

Afonso Rodrigues Queiró48 defendia a tese de que a discricionariedade administrativa

estaria presente quando a norma se utilizasse daquilo que denominou conceitos práticos.

Entendia Queiró que:

A discricionariedade surge, assim, circunscrita aos conceitos de valor

utilizados na norma jurídica, aos conceitos práticos ( não teoréticos ). A

norma administrativa impõe como dever a um órgão uma determinada

atividade que este fica obrigado a realizar, sempre que no mundo das

realidades um certo fato ou condição se verifique. A estes fatos ou

condições do mundo real refere-se-lhes a norma sob a forma de

conceitos, isto é, abstrações. Mas esses fatos, e, portanto, esses

conceitos podem pertencer ou ao mundo dito da realidade empírica e

então esses conceitos, embora necessariamente abstratos podem e

devem ser inequivocamente individualizados, de tal modo que é sempre

teoricamente possível afirmar o caráter necessário, assertórico, do juízo

de subsumpção de um determinado fato num determinado conceito,

com a mesma força de evidência que tem para qualquer homem uma lei

lógica, uma lei natural ou matemática. Ou podem pertencer ao mundo

ou setor da realidade contraposto a este, isto é, ao mundo da

sensibilidade, ao mundo da razão prática, onde domina a incerteza, o

parecer da cada um, onde não existe uma lógica ou valor universal, mas

concepções individuais, acientíficas, subjetivas ( individuelle Antworte),

e então o juízo de subsumpção não mantém já o mesmo caráter de

necessidade lógica, de categoricidade (...) Quando, pois, o conceito

legal relativo às condições de fato requeridas para o exercício duma

determinada competência é um conceito prático, suscetível duma série

mais ou menos determinada de sentidos entre si diferentes, estamos no

domínio da competência discricionária dos órgãos administrativos(...)

Quando essas condições, pelo contrário, são enunciadas em conceitos

teoréticos ( supondo uma Gesetzlinchkeit da natureza ) então incumbe

ao órgão administrativo determinar exatamente o conceito e os fatos, e 48 A teoria do desvio de poder em direito administrativo, RDA vol. VI

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só quando a subsumpção dos fato no conceito legal for precisa ele

deverá agir: a sua competência está vinculada à verificação no domínio

da realidade natural dum fato cujos contornos são exatamente os

implícita ou explicitamente delineados nesse conceito.

Essa concepção de discricionariedade administrativa

desenvolvida pelo jurista português merece ser destacada porquanto teve grande

influência na doutrina do direito administrativo no Brasil, em que pese o fato de que

posteriormente tenha referido autor modificado o seu próprio entendimento sobre a

matéria49.

No direito italiano, Renato Alessi50 também defendeu o

entendimento de que a discricionariedade administrativa fundava-se na idéia de

imprecisão da determinação do interesse público, ao escrever:

Em especial, a determinação do interesse público necessário a legitimar

o exercício potestativo da ação por parte da administração pode ser

precisa ou imprecisa (...). No caso de determinação precisa do interesse

público, para a administração não resta nenhum poder de valoração do

interesse público no que tange à oportunidade de agir ou não, de tal

forma que a sua atividade é tida por vinculada. Por outro lado, somente

49 “O poder discricionário é concebido, entre nós, como uma certa margem de liberdade, concedida deliberadamente pelo legislador à Administração, a fim de que esta escolha o comportamento mais adequado para a realização de um determinado fim público. O poder discricionário não se confunde, portanto, com toda e qualquer margem de imprecisão, ainda a mais ampla, na formulação dos comandos legais. Noutras palavras: não se confunde com os chamados conceitos vagos ou conceitos indeterminados, de que o legislador administrativo tão largamente lança mão para exprimir suas previsões” ( Os limites do poder discricionário das autoridades administrativas. RDA 97/1-8 ). 50No original: “In particolare, la determinazione dell’interesse pubblico necessario a legittimare l’uso della potestà di azione da parte del l’amministrazione, puó essere precisa od imprecisa(...)Nel caso di determinazione precisa dell’interesse pubblico, all’a amministrazione non rimane alcuna potestà di valutazione dell’interesse pubblico in ordine all’oportunità di agire, o meno, onde la sua attività dicesi vincolata. Nel caso, invece, di determinazione soltanto imprecisa, all’amministrazione rimane, in qualche modi, la potestà de valutare l’opportunità di agire o meno, potestà che è più o meno ampia a seconda dei casi, e precisamente sempre più ampia man che si passa dalle prime alle ultime ipotesi. Tale potestà di apprezzamento dell’interesse pubblico ai fini di decidere la convenienza o meno dell’azzione amministrativa, dicesi potestà discrezionale o discrezionalità..”..( Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano. Milano: Dott. A Giuffrè Editore, 1960 ).

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no caso de determinação imprecisa, resta para a administração, de

qualquer forma, a faculdade de valorar a oportunidade de agir ou não,

faculdade que é mais ou menos ampla conforme cada caso, e

rigorosamente sempre mais ampla à medida que se passa das primeiras

às últimas hipóteses. Tal faculdade de apreciação do interesse público,

com a finalidade de decidir a conveniência ou não da ação

administrativa, é dito poder discricionário ou discricionariedade...

(tradução nossa).

Faz-se necessário registrar que, na Itália, o estudo da

discricionariedade administrativa a partir dos chamados conceitos indeterminados,

passou a diferenciar as hipóteses em que haveria a verdadeira discricionariedade

administrativa daquelas que configurariam a chamada discricionariedade técnica51.

Esta estaria presente naquelas decisões que, por sua alta complexidade técnica, eram

subtraídas ao controle jurisdicional, qualificando matérias que apenas o administrador

público teria condições de apreciar de forma adequada.

No direito brasileiro, com entendimento semelhante ao de

Alessi, podemos citar a lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello52:

O Estado, ou quem faça as suas vezes, na prática de atos administrativos

pode se encontrar em duas posições antagônicas: ora deve se cingir a

estritas determinações legais, a obedecer o comando da norma, em se

verificando as condições de fato por ela prescrita, no caso particular

considerado; ora pode apreciar a conveniência e oportunidade dentro

das soluções legais admitidas de forma indeterminada, de modo a

proceder desta ou daquela maneira. No primeiro caso, diz-se que a

Administração Pública a respeito da matéria tem poderes vinculados ou

51 Bernatzik sustentava que algumas hipóteses normativamente previstas por meio de conceitos indeterminados como “adequação”, “utilidade”, “perigo”, só poderiam ser precisadas após um complicado processo interpretativo em cadeia, por ele designado “discricionariedade técnica” ( vide António Francisco de Souza, Os conceitos legais indeterminados no direito administrativo alemão. RDA nº. 166/276 ). A doutrina da discricionariedade técnica, anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro, nascida na Áustria, foi desenvolvida posteriormente na Itália, por Renato Alessi, sendo aceita de forma parcial também em Portugal e na Espanha ( Discricionariedade Administrativa. São Paulo: Atlas, 2001 ). 52 Princípios Gerais de Direito Administrativo.Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1a edição, 1969.

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legais e assim, o ato administrativo é de caráter vinculado ou legal. (...)

No segundo caso, diz-se que a Administração Pública, a respeito da

prerrogativa de emanar ato, ou o seu conteúdo, em poderes

discricionários ou políticos, e, assim, o ato administrativo é de caráter

discricionário ou político.

Não se vai aqui analisar de forma mais detalhada o que cada um

dos autores acima mencionados escreveu sobre os demais aspectos da

discricionariedade administrativa, como os problemas de seus limites, a questão de sua

localização no ato administrativo (hipótese, mandamento, finalidade) ou, ainda, a forma

de seu possível controle.

Não se desconhece, outrossim, que os autores referidos, embora

identificando a discricionariedade na utilização de conceitos indeterminados na norma,

àquela deram certos temperamentos, pois tinham também claro, em graus distintos, que

mesmo um conceito indeterminado possui aquilo que Fernando Sainz Moreno53 chamou

de “zona de certeza positiva” ou “zona de certeza negativa”, hipóteses em que a

própria indeterminação inicial abstrata do conceito não subsistiria quando contrastada

com o caso concreto.

Nosso objetivo aqui, entretanto, é apenas destacar a existência

de uma corrente doutrinária que identifica um fenômeno ao outro, é dizer

discricionariedade aos conceitos jurídicos indeterminados, e verificar se em nossa

jurisprudência tal entendimento encontra-se porventura acolhido.

E nesse sentido a resposta é positiva.

Podemos trazer à colação uma decisão do Ministro Marco

Aurélio de Mello54, que julgou prejudicado o pedido de suspensão de execução de

acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que não anulou o ato de nomeação de

53 Conceptos Jurídicos, Interpretación y discrecionalidad administrativa. Madri: Editoral Civitas, 1976. 54 Pet 1508/RJ – DJ 01/07/2002.

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Conselheiro para o Tribunal de Contas do Estado, por entender que os requisitos da

idoneidade moral e reputação ilibada, cujo preenchimento os autores do pedido

entendiam não atendido pela pessoa nomeada para o cargo, consubstanciavam conceitos

indeterminados cuja valoração pertenceria exclusivamente ao legislativo55.

No mesmo sentido, reconhecendo a existência de

discricionariedade administrativa em razão da utilização, pela norma, de um conceito

jurídico indeterminado (notório saber) e dando, por conseguinte, pela impossibilidade

de seu reexame judicial, encontramos a seguinte decisão do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA: AÇÃO ORIGINÁRIA. CONSTITUCIONAL. TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL. CONSELHEIROS. NOMEAÇÃO. QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL FORMAL. NOTÓRIO SABER. A qualificação profissional formal não é requisito à nomeação de Conselheiro de Tribunal de Contas Estadual. O requisito notório saber é pressuposto subjetivo a ser analisado pelo Governador do Estado, a seu juízo discricionário. AO 476 / RR – RORAIMA AÇÃO ORIGINÁRIA RELATOR(A): MIN. MARCO AURÉLIO REL. ACÓRDÃO MIN. NELSON JOBIM JULGAMENTO: 16/10/1997 ÓRGÃO JULGADOR: TRIBUNAL PLENO PUBLICAÇÃO: DJ DATA-05-11-1999 PP-00003 EMENT VOL-01970-01 PP-00009 RTJ VOL-00171-01 PP-00010

55 Destacamos do referido acórdão, os seguintes trechos de sua ementa: AÇÃO POPULAR E AÇÃO CIVIL PÚBLICA. NOMEAÇÃO DE MEMBRO DO TRIBUNAL DE CONTAS EM VAGA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, NO ÂMBITO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. ATO ADMINISTRATIVO DE NATUREZA COMPLEXA (...). IDONEIDADE MORAL E REPUTAÇÃO ILIBADA, DOIS DOS REQUISITOS EXIGIDOS PARA A ESCOLHA E A NOMEAÇÃO DO CONSELHEIRO DO TRIBUNAL DE CONTAS. EXPRESSÕES DE CONCEITO INDETERMINADO CUJA VALORAÇÃO PERTENCE EXCLUSIVAMENTE AO LEGISLATIVO, EM RELAÇÃO AO PREENCHIMENTO DAS VAGAS QUE LHE SÃO CONSTITUCIONALMENTE DESTINADAS. VALE DIZER, OS CRITÉRIOS PARA AFERIÇÃO DE IDONEIDADE MORAL E REPUTAÇÃO ILIBADA, IN CASU, SÃO POLÍTICOS E PERTENCEM PRIVATIVAMENTE À ASSEMBLÉIA, APRESENTANDO CONOTAÇÃO SUBJETIVA. TRATA-SE DE ATUAÇÃO INTERNA CORPORIS. LOGO, POR SEREM CRITÉRIOS POLÍTICOS, SUBJETIVOS E PRIVATIVOS DA ASSEMBLÉIA, SÃO, POR LÓGICA E TÉCNICA, CONCEPTUALMENTE DISCRICIONÁRIOS, INSUSCETÍVEIS, DESSARTE, AO CONTROLE DO PODER JUDICIÁRIO, PENA DE QUEBRA DAQUELE POSTULADO INSCULPIDO NO ART. 3O DA CARTA DA REPÚBLICA. A OPORTUNA LIÇÃO DO EMIMENTE CONSTITUCIONALISTA PROF. MANOEL GONÇALVES FERRERIA FILHO, INVOCANDO GOMES CANOTILHO (FLS. 365): "... EM PRINCÍPIO, QUANDO A LEI EMRPEGA OS CHAMADOS CONCEITOS INDETERMINADOS ("SEGURANÇA PÚBLICA", "ILIBADA REPUTAÇÃO", "NOTÁVEL SABER"), ISSO CORRESPONDE A UM PODER DISCRICIONÁRIO. É O TITULAR DESTE QUE HÁ DE, EM FACE DE SEU JUÍZO SOBRE O CONCEITO, APLICÁ-LO AO CASO CONCRETO. É ELE QUEM O "VALORA". TAMBÉM A DOUTRINA DE MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (DIREITO ADMINISTRATIVO, S. PAULO, ED. ATLAS, 1989, PÁG. 166): "SE, PARA DELIMITAÇÃO DO CONCEITO, HOUVER NECESSIDADE DE APRECIAÇÃO SUBJETIVA, SEGUNDO CONCEITOS DE VALOR, HAVERÁ DISCRICIONARIEDADE." EM SUMA, "A SELEÇÃO DE CONSELHEIRO PARA INTEGRAR O TRIBUNAL DE CONTAS, AINDA MAIS QUANDO ESTE IRÁ OCUPAR VAGA QUE A CONSTITUIÇÃO RESERVOU À ESCOLHA DO PODER LEGISLATIVO, É ATO DISCRICIONÁRIO DESTE. EM CONSEQÜÊNCIA, DESCABE A INTERFERÊNCIA DO JUDICIÁRIO". E MAIS: "A APRECIAÇÃO DE "IDONEIDADE MORAL" E DE "REPUTAÇÃO ILIBADA" PERTENCE EXCLUSIVAMENTE AO PODER LEGISLATIVO". SÃO AFIRMAÇÕES ACATÁVEIS, DA LAVRA DO SOBREMENCIONADO CONSTITUCIONALISTA PAULISTA. JULGADO QUE SE APARTOU DESSAS DIRETRIZES, ASSIM A MERECER REVERSÃO PARA DAR LUGAR AO PRIMEIRO VOTO VENCIDO, QUE AFASTOU A PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA E ENFRENTOU NO MÉRITO AS LIDES DEDUZIDAS, DANDO PELA IMPROCEDÊNCIA DAS MESMAS.

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5 – Doutrina que nega a relação entre discricionariedade e conceitos jurídicos

indeterminados.

Também na Áustria encontramos a origem da doutrina

administrativa que nega a existência de relação entre discricionariedade e conceitos

jurídicos indeterminados.

Tezner, em 1888, começou a defender o ponto de vista oposto

ao pensamento de Bernatzik, criticando a jurisprudência do Supremo Tribunal

Administrativo austríaco que o acolhia, chamando a doutrina dos “conceitos

discricionários” de “inimiga do Estado de Direito” (rechtsstaatsfeaaindlich) e de

“cientificamente infundada” (unwissenschaftlich), sustentando que entre os conceitos

legais determinados e os conceitos legais indeterminados, haveria apenas uma diferença

de grau de insegurança do sentido da palavra, não reconhecível apenas nestes últimos,

não havendo qualquer distinção de qualidade entre eles, de forma que não deveriam

ficar de fora do controle jurisdicional a pretexto de consubstanciarem

“discricionariedade técnica”.56

Na Alemanha, apoiando-se em Tezner, Bühler57 sustentava que

todos os “conceitos vagos” seriam conceitos jurídicos e que na aplicação deles a

autoridade administrativa deveria apenas decidir pela sua existência ou não existência,

não se lhe restando nenhum espaço residual de valoração.

Na Espanha, a introdução da teoria dos conceitos jurídicos

indeterminados é atribuída normalmente a Garcia de Enterría, em face do que escreveu

em sua famosa obra La lucha contra las inmunidades Del poder en el Derecho

Administrativo; poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes normativos.58

56 Maria Sylvia Zanella di Pietro. Discricionariedade Administrativa. São Paulo: Atlas, 2001. 57 Conforme António Francisco de Souza in Os conceitos legais indeterminados no direito administrativo alemão. RDA nº 166/276. 58 La lucha contra las inmunidades Del poder en el Derecho Administrativo: poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes normativos. Madrid: Civitas, 3ª. ed., 1999.

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Enterría, juntamente com Ramon Fernandez59, desenvolveu no

direito espanhol, sob confessada influência do direito alemão, a doutrina que diferencia

em campos absolutamente distintos a discricionariedade administrativa das hipóteses de

aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados.

A principal preocupação dos autores espanhóis, salto aos olhos,

era a de estabelecer um controle sobre a objetividade e regularidade das apreciações

subjetivas da Administração que são fundamentadas em seu poder discricionário, como

forma de evitar que essa liberdade de apreciação se transmudasse em uma pura e

simples arbitrariedade60.

Em síntese, sustentam os autores espanhóis que a lei, ao utilizar

conceitos de experiência ( incapacidade para o exercício de suas funções,

premeditação, força irresistível ) ou de valor ( boa-fé, padrão de conduta do bom pai de

família, justo preço ), exatamente porque as realidades que pretendem individualizar

não permitem uma significação mais precisa, refere-se a situações concretas, de tal sorte

que na subsunção só pode haver uma solução possível: ou há boa-fé ou não há; ou o

preço é justo ou não é. Tertium non datur. Vale dizer, a indeterminação do conceito na

norma não se traduz em indeterminação no momento de sua aplicação, que só admite

uma solução como possível.

Daí porque afirmam que são fenômenos distintos, não podendo

a existência de um conceito indeterminado na norma justificar o exercício de uma

competência dita discricionária:

A discricionariedade é essencialmente uma liberdade de eleição entre

alternativas igualmente justas, ou se se prefere, entre indiferentes

jurídicos, porque a decisão se fundamenta em critérios extra-jurídicos

(de oportunidade, econômicos etc ), não incluídos na Lei e remetidos ao

juízo subjetivo da administração. Diferentemente, a aplicação de 59 Curso de derecho administrativo I. Madrid: Editorial Civitas S.A, 1997. 60 Citando Hans Huber, qualificam a discricionariedade como “el caballo de Troya dentro Del Estado de Derecho”.

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conceitos jurídicos indeterminados é um caso de aplicação da Lei, posto

que se trata de subsumir a uma categoria legal ( configurada, não

obstante sua imprecisão de limites , com a intenção de delimitar uma

hipótese concreta ) umas circunstâncias reais determinadas; justamente

por isso é um processo vinculado, que se esgota em um processo

intelectivo de compreensão de uma realidade no sentido de que o

conceito legal indeterminado esteja compreendido, processo que não

interfere nenhuma decisão de vontade do aplicador, com é próprio de

quem exercita um poder discricionário ( tradução nossa ) .61 .

Defendem Enterría e Fernandez que o aprofundamento na

técnica dos conceitos jurídicos indeterminados reduz a idéia de discricionariedade da

maneira considerável. As tradicionais hipóteses de isenção de controle em virtude do

exercício de discricionariedade administrativa, assim, passariam a qualificar, no

máximo, simples hipóteses de “dificuldade de controle” por parte dos Tribunais, pelo

que:

Sempre que seja possível oferecer ao Tribunal uma crítica seria e

fundamentada da decisão administrativa em causa sob a perspectiva de

um conceito jurídico indeterminado, explícito ou implícito na Lei, será

juridicamente possível que o Tribunal revise a apreciação do conceito

realizada pela administração em sua função interpretativa e aplicativa

da lei ( tradução nossa ) 62.

61 No original: “La discrecionalidad es esencialmente una libertad de elección entre alternativas igualmente justa, o si se prefiere, entre indiferentes jurídicos, porque la decisión se fundamenta en criterios extrajurídicos ( de oportunidad, económicos, etc. ), no incluidos en la Ley y remetidos al juicio subjetivo de la Administración. Por el contrario, la aplicación de conceptos jurídicos indeterminados es un caso de aplicación de la Ley, puesto que se trata de subsumir en categoría legal ( configurada, no obstante su imprecisión de límites, con la intención de acotar un supuesto concreto ) unas circunstancias reales determinadas; justamente por el es un proceso reglado, que se agota en el proceso intelectito de comprensión de una realidad en el sentido de que el concepto legal indeterminado ha pretendido, proceso en el que no interfiere ninguna decisión de voluntad del aplicador, como es lo propio de quien ejercita una potestad discrecional”. Curso de derecho administrativo I. Madrid: Civitas, 1994. 62 No original: “Siempre que sea posible ofrecer al Tribunal una crítica seria y fundada de la decisión administrativa en causa desde la perspectiva de un concepto jurídico indeterminado, explícito o implícito en la Ley será jurídicamente posible que el Tribunal revise la apreciación del concepto realizada por la Administración en su función interpretativa e aplicativa da ley”. Curso de derecho administrativo I. Madrid: Civitas, 1994.

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No direito brasileiro, Lúcia Valle Figueiredo63, ao examinar a

discricionariedade administrativa sob o ponto de vista da estática e da dinâmica da

norma, adota essa mesma concepção de diferenciá-la dos conceitos jurídicos

indeterminados, e, em abordagem inovadora sobre o tema, transfere a problemática que

sempre envolveu a análise da competência discricionária para o próprio conceito de

vinculação. Afirma a autora:

Afastamos toda e qualquer possibilidade de a discricionariedade de

alojar-se nos conceitos plurissignificativos, elásticos ou indeterminados,

conforme a nomenclatura que se lhes dê. É dizer: a competência

discricionária não emerge do fato de o conceito não ser, desde logo,

preciso. Necessário, primeiramente, buscarmos, na norma, o sentido e

alcance do conceito. Depois da interpretação, deveremos nos alçar aos

princípios e valores do ordenamento jurídico, a fim de precisar o

conceito. Precisado o conceito – ou determinado -, por conseguinte,

localizado na zona de certeza positiva, mister a verificação se a norma

outorgou possibilidade de decisão ao administrador. Verifica-se,

portanto, que se encontra em crise, como brilhantemente afirma Satta, o

próprio conceito de vinculação. Não há competência totalmente

vinculada, ou, por outra, são raríssimas as hipóteses em que a norma

predefine inteiramente única conduta a ser tomada pelo administrador.

(...). No mais das vezes, a norma possibilita condutas para atendimento

de determinados fins, porém utilizando-se dos mais variados conceitos

indeterminados. Mesmo alguns conceitos como “interesse público

relevante”, “nocividade à saúde”, dependerão de juízos técnicos, que

serão variáveis, no tempo e no espaço. Mas não estamos, como já

afirmamos, ainda, diante da competência, de decisão outorgada ao

administrador. Esta exsurge quando houver competência para, no

processo dinâmico, o administrador buscar a solução dentro dos lindes

do razoável para atender o fim postulado pela norma.

63 Curso de Direito Administrativo, pág. 220/222.

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No que toca à possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário

do suposto exercício de competência discricionária fundamentado na existência de um

conceito indeterminado na norma, de ser destacado o acórdão do Supremo Tribunal

Federal, no julgamento da Apelação Cível nº 7.377, em que foi relator o Min. Castro

Nunes, com a seguinte ementa64: ATOS ADMINISTRATIVOS – SEU EXAME PELO PODER JUDICIÁRIO – SERVIÇO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL.

- Os atos administrativos, de qualquer natureza, estão sujeitos ao exame dos

tribunais. - Ao Judiciário cabe decidir se o imóvel inscrito no Serviço do Patrimônio e

Artístico Nacional tem ou não valor histórico ou artístico, não se limitando a sua competência em verificar, apenas, se foram observadas as formalidades no processo de tombamento.

- Verificada a procedência do valor histórico do imóvel de domínio

particular, como integrante de um conjunto arquitetônico, subsiste o tombamento compulsório com as restrições que dele decorrem para o direito de propriedade, sem necessidade de desapropriação.

Interessante, por outro lado, destacar acórdão também do

Supremo Tribunal Federal que, em sentido contrário à decisão referida quando do

exame da doutrina que identifica a discricionariedade aos conceitos indeterminados, em

matéria semelhante, entendeu pela possibilidade de analisar o atendimento, no caso

concreto, do requisito do notório saber:

EMENTA: TRIBUNAL DE CONTAS. NOMEACAO DE SEUS MEBROS EM ESTADO RECÉM–CRIADOS. NATUREZA DO ATO ADMINISTRATIVO. PARÂMETROS A SEREM OBSRVADOS. AÇÃO POPULAR

64 Referido acórdão é comentado por Vitor Nunes Leal, nos seguintes termos: “O intuito da lei ( art. 1o. do Decreto-lei nº. 25, de 30-11-1937 ) não foi, portanto, dar autoridade irrestrita ao órgão incumbido do tombamento, mas cerceá-la com o significado limitativo das expressões empregadas: “fatos memoráveis”, “excepcional valor” e “feição notável”. E esses critérios, mais ou menos vagos – mas que exigem severidade no julgamento – deveriam ser melhor esclarecidos no regulamento a que alude o Parágrafo 2o. do art. 4o. e que jamais foi baixado. Se o legislador deseja limitar a apreciação do Judiciário nesta matéria, que lhe parece reclamar conhecimento especializado não presumível nos juízes, seja mais explícito no definir os critérios de julgamento, pois a tarefa de fixar esses critérios recai na zona discricionária do poder legislativo. A atribuição de valor histórico ou artístico a um bem não é, pois atividade discricionária, porque não envolve apreciação de conveniência e oportunidade (.... ) Mas na qualificação de um bem como compreendido no patrimônio histórico ou artístico nacional o que se tem é a devida ou indevida aplicação da lei, e isto é matéria pertinente com o exame de legalidade, segundo critério assentado na Lei nº 221, de 1894. ( RDA nº 14/53 )

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DESCONTITUVIA DO ATO. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE TOCANTINS. PROVIMENTO DOS CARGOS DE CONSELHEIROS. A nomeação dos membros do Tribunal de Contas do Estado recém-criado não é ato discricionário, mas vinculado a determinados critérios, não só estabelecidos pelo art. 235, III, das disposições gerais, mas também, naquilo que couber, pelo art. 73, par. 1., da CF. Notório saber - Incisos III, art. 235 e III, par. 1., art. 73, CF. Necessidade de um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o oficio a desempenhar. Precedente histórico: parecer de Barbalho e a decisão do Senado. Ação Popular. A não observância dos requisitos que vinculam a nomeação, enseja a qualquer do povo sujeitá-la à correção judicial, com a finalidade de desconstituir o ato lesivo a moralidade administrativa. Recurso extraordinário conhecido e provido para julgar procedente a ação. RE 167137 / TO – TOCANTINS RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator (a): Min. PAULO BROSSARD Julgamento: 18/10/1994 Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA Publicação: DJ DATA-25-11-94 PP-32312 EMENT VOL-01768-04 PP-00840.

Considerando a nossa preocupação em analisar como está

sendo exercido o controle jurisdicional do ato administrativo quando se discute a

existência ou não de competência discricionária, em razão da utilização, pela norma, de

conceitos jurídicos indeterminados, destacamos acórdão do Superior de Tribunal de

Justiça que entendeu pela impossibilidade de, na via da segurança, examinar o

atendimento, no caso concreto, de um pressuposto fático veiculado em um conceito

aberto:

MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.REGISTRO PROFISSIONAL. AUXILIAR DE FARMÁCIA. CURSOAUTORIZADO PELO MINISTÉRIO DO ESTADO DE EDUCAÇÃO.INEXISTÊNCIA DE QUADRO PROFISSIONAL ESPECÍFICO.NECESSIDADE DE LEI EM SENTIDO ESTRITO. IMPOSSIBILIDADE DE REQUERIMENTO DE REGISTRO COM CONSEQÜENTE ASSUNÇÃO DE RESPONSABILIDADE TÉCNICA DE ESTABELECIMENTO FARMACÊUTICO. NECESSIDADE DE ATENDIMENTO DO ART. 14, PARÁGRAFO ÚNCIO DA LEI N.º 3820/60 E ART 15, § 3° DA LEI N.º 5.991/73. DILAÇÃO PROBATÓRIA INCOMPATÍVEL COM AIMPRESCINDIBILIDADE DE PROVA PRECONSTITUÍDA. I - A terminologia utilizada pela Lei n.º 5.991/73 "ou outro, igualmente inscrito no Conselho Regional de Farmácia, na forma da lei", em seu art. 15, § 3°, deve ser interpretada restritivamente, pois está condicionada a existência de lei estrito senso, e apenas estendeu o rol do art. 14, parágrafo único da Lei n.º 3.820/60, para a finalidade excepcional de "razão do interesse público, caracterizada a necessidade da farmácia ou drogaria, e na falta de farmacêutico", sujeito, ainda, ao licenciamento do "órgão sanitário competente da fiscalização local". II - Dada a própria natureza subjetiva dos conceitos abertos indeterminados de "interesse público", "necessidade" e "falta de farmacêutico", e a controvérsia de seu atendimento, torna-se imprópria a sua discussão em sede mandamental, além de inexistente a prova pré-constituída de preenchimento dos requisitos excepcionais.

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PROCESSO: 199800235841 UF: SP ÓRGÃO JULGADOR: SEGUNDA TURMA DATA DA DECISÃO: 04/04/2000 DOCUMENTO: STJ000354847 DJ DATA:15/05/2000 PÁGINA:150 RELATORA: MIN. NANCY ANDRIGHI.

6 – Doutrina que admite que os conceitos jurídicos indeterminados podem indicar a

existência da discricionariedade

As doutrinas analisadas apresentam pontos de vistas

antagônicos sobre a mesma matéria. A primeira, entendendo que a existência de um

conceito indeterminado na norma enseja, sempre, a discricionariedade administrativa; a

segunda, separando os dois fenômenos, vê no preenchimento de um conceito

indeterminado uma simples operação de subsunção legal, e, portanto, passível de

reexame judicial, enquanto, na discricionariedade, a possibilidade de tomada de decisão,

pelo administrador público, ou por quem lhe faça as vezes, a partir de critérios não

jurídicos, resultando daí a impossibilidade dessa mesma decisão vir ser contrastada

judicialmente.

Talvez a virtude, como sempre, esteja no meio. Assim,

importante se mostra a análise da doutrina que, de certa forma, admite que as duas

realidades possam coexistir, vale dizer, a presença de um conceito indeterminado,

embora não seja causa necessária da discricionariedade, pode, em certos casos, autorizar

o exercício dessa competência.

Martin Bullinger65, ao estudar o desenvolvimento da doutrina

da discricionariedade no direito alemão, esclarece que o reforço do princípio da reserva

legal e a garantia constitucional de proteção judicial foram reações naturais do mundo

jurídico ao regime totalitário que durante anos de 1933 a 1945 se estabeleceu naquele

país, no qual a administração e o governo tinham amplos poderes, enquanto o

65 A discricionariedade da Administração Pública. Revista de ciência política – vol.30 nº 2 – abr/jun 1987.

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Parlamento fazia papel figurativo e a jurisprudência administrativa havia sido

completamente eliminada.

O resgate do Estado de Direito Alemão, comentou Martin

Bullinger, contribuiu para que:

a doutrina e a jurisprudência, numa primeira fase, adotassem

amplamente a opinião de que o emprego de conceitos indeterminados

num Tatbestad legal não atribuía qualquer discricionariedade. A

discricionariedade existia apenas quando a lei deixava à administração

no campo dos efeitos jurídicos, uma escolha entre vários modos de

autuação. Um conceito legal, como o dos interesses públicos do

trânsito, permitia, no caso concreto, como conceito jurídico

indeterminado, em princípio, apenas uma interpretação e aplicação

certas, a qual devia ser controlada pelos tribunais administrativos.

Todavia, com o tempo, essa visão extremada acabou sendo

repensada, sendo atribuída a principalmente a Reub, Bachof e Ule, a partir de 1955, a

recuperação do entendimento de que, na subsunção de um caso concreto a um conceito

indeterminado deveria, sim, ser reconhecido à administração um espaço livre de

valoração.

Martin Bullinger, assim, após analisar a evolução do

entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto às funções da discricionariedade no

direito alemão – fala em discricionariedade tática ( taktisches Ermessen )

discricionariedade para adaptação da lei ao caso concreto ( Dispensermessen ),

discricionariedade de planejamento ( Planungsermessen ) e a discricionariedade de

gestão ( Managementsermessen ), traça as seguintes conclusões66:

66 ao que parece, chocando-se com a afirmativa de Garcia de Enterría e Ramon Fernandez quanto à doutrina que defendem acerca dos conceitos indeterminados retratar o entendimento da moderna doutrina alemã.

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1. A discricionariedade não se limita mais, desde 1955, conforme o

modelo tradicional, à parte ( da norma ) dos efeitos de direito. Este

estreitamento é reconhecido cada vez mais não só no RFA, como na

Áustria e na Suíça como evolução deficiente. Também no Tatbestand

do preceito, pode o legislador atribuir discricionariedade para que a

decisão mestra possa ser concretizada de modo criativo através de um

programa de concretização casuística.

2. Discricionariedade nesta forma, novamente alargada, não significa o

mesmo que indeterminação e abertura de uma lei. A concretização dos

preceitos legais de valor, assim como a sua aplicação ao caso concreto

constitui, em maior ou menor medida, um fenômeno normal da

aplicação do direito e fica, assim, reservada à última instância judicial,

seja no direito civil, no direito penal, ou no direito administrativo.

Apenas se verifica discricionariedade, num aumento quantitativo ou

qualitativo, se for atribuída à Administração o poder e a

responsabilidade para o preenchimento de decisões-padrão

(Leitentscheidungen) legais ou afins e para a concretização de

programas de atuação, assim como para a emissão de normas jurídicas.

3. A idéia de um puro espaço de livre apreciação

(Beurteilungsspielraum ) deve ser, na medida do possível, abandonada

ou limitada àqueles casos em que a decisão, devido à sua alta,

subjetivamente, não é judicialmente exeqüível. Os tribunais

administrativos devem reconhecer à administração a primazia na

apreciação, no caso das provas de exame ( Prüfungsentscheidunger ).

4. O espaço livre da discricionariedade em sentido próprio é apenas

controlável pelo tribunal nos contornos exteriores. Enquanto a

Dispensermessen pode-se limitar a uma ampla e vinculada adaptação

exeqüível da lei ao caos atípico, a discricionariedade tática, de

planejamento e de gestão, por sua natureza, tornam possível uma

flexibilidade em alto grau e uma livre criação, mesmo perante o

controle judicial posterior e não apenas perante a lei.

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5. Como espaço livre para o preenchimento das variadas funções, a

discricionariedade não constitui qualquer corpo estranho ao direito

administrativo do Estado de direito, mas um elemento necessário de

administração efetiva, também no interesse do particular.67

No direito espanhol, adotando essa mesma linha de

entendimento, ou seja, quanto à possibilidade de os conceitos indeterminados

conferirem discricionariedade em certos casos, encontramos a lição de Manuel Martín

Gonzáles68, que separa as hipóteses em que os conceitos indeterminados remetam a uma

experiência ou a um valor, dizendo que, se no sentido lógico nos dois casos há

indeterminação, no sentido jurídico elas se diferem, pois enquanto os conceitos de valor

se determinam ou se completam pela vontade do órgão aplicador, os conceitos de

experiência são suscetíveis de revisão, ao passo que a apreciação do resultado da

experiência não é um problema de valoração, mas de interpretação jurídica.

No direito brasileiro, a lição de Celso Antônio Bandeira de

Mello retrata de forma perfeita, daí porque vamos nos restringir à exposição de seu

entendimento, o porquê de o tema dos conceitos jurídicos indeterminados não ser

estranho ao da discricionariedade administrativa.

Celso Antônio Bandeira de Mello69 sustenta a opinião de que

não há como escapar da lição de Bernatzik, no sentido de que existe um limite além do

qual nunca terceiros podem verificar a exatidão ou inexatidão da conclusão atingida.

Pode-se dar que terceiros sejam de outra opinião, mas não podem pretender que só eles

estejam na verdade, e que os outros tenham uma opinião falsa.

Daí porque conclui que:

67 A discricionariedade da Administração Pública. Revista de ciência política – vol.30 nº 2 – abr/jun 1987. 68apud Regina Helena Costa in Conceitos Jurídicos Indeterminados e Discricionariedade Administrativa. Revista da PGE nº 29/79 69 Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992.

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Com efeito, se em determinada situação real o administrado reputar, em

entendimento razoável ( isto é, comportado pela situação, ainda que

outra opinião divergente fosse igualmente sustentável ), que se lhe

aplica o conceito normativo vago e agir nesta conformidade, não se

poderá dizer que violou a lei, que transgrediu o direito. E se não violou

a lei, se não lhe traiu a finalidade, é claro que terá procedido na

conformidade do direito. Em assim sendo, evidentemente terá procedido

dentro de uma liberdade intelectiva que, in concreto, o direito lhe

facultava. Logo, não haveria título jurídico para que qualquer

controlador de legitimidade, ainda que fosse o Judiciário, lhe corrigisse

a conduta, pois a este incumbe reparar violações de direito e não

procedimentos que lhes sejam conforme. (...) Seria equivocado supor

que não se propõe questão de discricionariedade ante o tema dos

conceitos vagos, sub color de que apreender-lhes o sentido é operação

mental puramente interpretativa da lei, logo, ato da alçada do

Judiciário, por ser mera intelecção da lei , algo, pois, absolutamente

distinto do ato de volição ( único que traduziria discricionariedade )

consistente em fazer uma opção administrativa de mérito, segundo

critérios de conveniência e oportunidade, por um dentre dois ou mais

comportamento igualmente ensejados pela norma aplicanda. As

premissas componentes do raciocínio certamente são verdadeiras, mas

não postulam a conclusão extraída. (...) Do que se expôs neste tópico

resulta que a noção de discricionariedade não se adscreve apenas ao

campo das opções administrativas efetuadas com base em critérios de

conveniência e oportunidade – tema concernente ao mérito do ato

administrativo. Certamente o compreende, mas não se cinge a ele, pois

também envolve o tema da intelecção dos conceitos vagos. Resulta,

pois, que são incorretos – por insuficientes – os conceitos de

discricionariedade que a caracterizam unicamente em função do tema

do mérito do ato administrativo, isto é, da “conveniência e

oportunidade”.

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Expostos os três entendimentos doutrinários quanto ao

problema da discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados é tempo de

alinharmo-nos a um deles.

Fica claro no estudo da doutrina do direito administrativo que

os avanços e os retrocessos quanto à possibilidade de exame do mérito do ato

administrativo pelo Poder Judiciário estão diretamente ligados à idéia de participação

democrática na vontade estatal e à do totalitarismo político.

Quando se vive em uma democracia, é natural que se afrouxem

os critérios que informam o exercício do controle jurisdicional sobre a atuação

administrativa, pois essa atuação, pelo menos em tese, deveria acabar por refletir a

própria vontade popular que legitimou o seu exercício.

Ao contrário, quando se sai de um Estado ditatorial, a tendência

é que se reforcem os critérios de controle, exatamente para dificultar a adoção no futuro

daqueles comportamentos e daquelas práticas que durante a ditadura não podiam ser

questionados.

E as doutrinas que relacionam a discricionariedade aos

conceitos indeterminados refletem exatamente esse movimento de fluxo e refluxo do

controle jurisdicional sobre a atividade administrativa.

Supondo a vida em um Estado Democrático perene, em

verdade, ao iniciar a exposição da última corrente doutrinária, de certa forma já

antecipamos o nosso ponto de vista, admitindo que a virtude talvez estivesse no meio

termo das teses antagônicas quanto aos fenômenos da discricionariedade administrativa

e conceitos indeterminados.

Não se pode negar, como bem adverte Celso Antônio, que

haverá hipóteses que um conceito indeterminado ensejará o exercício da

discricionariedade, pois à luz da razoabilidade e proporcionalidade, não poderá o

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comportamento administrativo ser questionado junto ao Poder Judiciário, por não

configurar violação de direito, não reclamando a ordem jurídica, por conseguinte,

qualquer tutela restauradora.

A nosso sentir, contudo, o mais importante no exame da

discricionariedade é a idéia de que, na dinâmica da norma, um ato administrativo

qualquer pode reunir, no máximo, aspectos de discricionariedade, estejam eles

localizados em sua hipótese, em seu mandamento e, vá lá, admitamos, em sua

finalidade70.

Noutras palavras, a discricionariedade é sempre relativa.71

70 Estamos aqui fazendo referência clara à lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, que admite a existência da discricionariedade na finalidade da norma. Confessamos que ainda não temos posição definida sobre o tema, pois no clássico exemplo do beijo indecoroso, objeto de detida análise por Seabra Fagundes ( Controle dos atos Administrativos pelo Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1979 ), a concepção de moralidade pública – mais ou menos rigorosa - ao que parece, vai importar quando da valoração dos pressupostos do ato – o beijo foi ou não indecoroso – sendo a finalidade – sancionar ou não sancionar o comportamento – decorrência lógica daquela primeira constatação. 71 Sobre o tema, veja-se o artigo de Celso Antônio Bandeira de Mello Relatividade da competência discricionária. Revista Diálogo Jurídico – vol. 3.

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Capítulo IV – Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade

Como dissemos na introdução deste trabalho, nossa

preocupação principal se traduz na elaboração de uma análise teórica quanto à

possibilidade de o Poder Judiciário exercer o controle do silêncio administrativo.

Também já observamos que a postura do controle jurisdicional

a ser exercido dependerá, basicamente, da existência de vinculação ou de

discricionariedade da autoridade administrativa na prática do ato omitido.

Por outro lado, ganha destaque na doutrina e na jurisprudência a

importância que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade guardam no

exercício do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa.

Conquanto não se coloque em dúvida a importância e até

mesmo a necessidade da aplicação desses referidos princípios no controle dos atos

administrativos, nosso objetivo, ao estudá-los neste trabalho - ainda que em breves

traços - é o de tentar definir o alcance que podem emprestar ao poder controlador, seja

em relação aos atos praticados, seja em relação aos atos omitidos.

Embora não sejam princípios constitucionais72 expressos, a

razoabilidade e proporcionalidade defluem da própria conformação do Estado brasileiro

72 Anota Gustavo Ferreira Santos a existência na doutrina, especialmente na Alemanha, de discussão acerca da natureza material ou formal do princípio da proporcionalidade. O autor, após analisar as origens e aplicação do referido princípio, conclui pela sua natureza formal, na medida em que se consubstanciaria em um princípio de interpretação. Sustenta o autor que: “O aspecto material que a decisão do caso concreto apresenta não colhe seus elementos do princípio da proporcionalidade, que serviu como um procedimento para a tomada de decisão, mas busca um conteúdo material nos próprios direitos envolvidos no conflito solucionado, em suas definições e em seus conteúdos essenciais. Assim, não é a norma inconstitucional por ferir o princípio da proporcionalidade, mas sim por vulnerar determinado direito fundamental ou bem constitucionalmente protegido, tendo o intérprete/aplicador aferido a agressão ao direito por ter utilizado, na sua atividade, o auxílio do princípio da proporcionalidade. Nesse diapasão, podemos dizer que a inconstitucionalidade, ao contrário do que expresso nas decisões judiciais que acolhem esse princípio, não se dá por ofensa ao princípio constitucional da

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em um Estado Social Democrático de Direito ( artigos 1o. e 6o. da Constituição Federal

de 1988 ).

Afora isso, os dois princípios foram recentemente positivados

pelo art. 2o da Lei 9.784/99, não havendo, à evidência, nenhuma dúvida de que são eles

parâmetros jurídicos da legitimidade da autuação administrativa.

Dos autores estudados neste trabalho, pelo menos dois (Celso

Antônio Bandeira de Mello e Lúcia Valle Figueiredo) de forma expressa, ao

conceituarem a discricionariedade administrativa, a relacionam diretamente aos

princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Garcia de Enterría e Ramon Fernandez, no direito espanhol,

também falam na aferição da razoabilidade da decisão administrativa discricionária,

quando do exame de sua legitimidade73:

Se, ao contrário, lhe é favorável, o juiz não terá outra opção que não a

de confirmar, goste ou não, a solução concretamente eleita pela

administração e não qualquer que seja a sua opinião sobre o acerto ou

eficácia da mesma, a menos que ( teste de razoabilidade ) esta solução

sofra de incoerência por sua notória falta de adequação ao fim da

norma, é dizer, de atitude objetiva para satisfazer o dito fim, ou que

resulte claramente desproporcional ( tradução nossa ).

proporcionalidade. A idéia é a mesma em relação a outros princípios de interpretação. Não há uma inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da unidade da constituição, o que não invalida o reconhecimento de que a idéia de preservação da unidade deve estar em qualquer atividade interpretativa que o Texto Constitucional possa a vir a merecer” ( O princípio da proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - Limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Lúmen Júris editora, 2004. ) 73 No original: “Si, por el contrario, le es favorable, el juez no tendrá más remedio que confirmar, le guste o no, la solución concretamente elegida por la administración y non cualquiera que sea su opinión sobre la bondad o eficacia de la misma, a menos que ( test de razonabilidad ) esta solución adolezca de incoherencia por su notoria falta de adecuación al fin de la norma, es decir, de aptitud objetiva para satisfacer dicho fin, o que resulte claramente desproporcionada”. Curso de derecho administrativo I. Madrid: Civitas, 1994.)

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Nossa proposta é analisar, de forma resumida, as origens dos

princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na dogmática jurídica, para, ao

depois, verificar em que casos vêm eles sendo aplicados pelos nossos tribunais

superiores, procurando, ao final, proceder à verificação da existência de critérios

objetivos que permitam ao julgador, no caso concreto, saber se dado comportamento

administrativo discricionário se ateve aos limites prescritos pela norma que lhe deu

fundamento de validade.

A preocupação que manifestamos se explica no seguinte ponto:

se inexistirem critérios objetivos para verificar a adequação e necessidade da norma

concreta como forma de reconhecer-lhe a legitimidade, ao se possibilitar que o

Judiciário reexamine qualquer ato administrativo, ou, nos que interessa mais

especificamente, a falta dele, o silêncio administrativo, sob o enfoque da

proporcionalidade e razoabilidade, não estaria este Poder, em ultima instância, também

fazendo um simples juízo discricionário sobre a hipótese em exame, vale dizer,

adotando uma posição valorativa sobre dada conduta, quando a sua atividade deveria ser

meramente cognitiva?

1 – O princípio da proporcionalidade.

A linguagem do princípio da proporcionalidade nos dá conta

Ari Marcelo Sólon74, provém da Antiguidade do Direito Romano e da Grécia, pois:

a) Já no direito privado mais antigo pode-se lembrar o vigor do princípio

proporcional a limitar a iustitia vindicativa. Segundo o direito arcaico,

quem cometia um delito expunha-se à vingança ilimitada da vítima. Já a Lei

das XII Tábuas, porém, atenuava o direito da vítima de matar o autor nos

casos de lesões corporais graves, a quem só se podia causar uma lesão ou

74 “Origens zetéticas e aplicação dogmática dos topoi da proporcionalidade ( direito alemão ) e razoabilidade ( direito americano )”. Regulação pública da economia no Brasil. Rogério Emília de Andrade ( coordenador ) Campinas: Edicamp, 2003.

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danos equivalentes aos causados com o delito ( si membrum rupsit ni cum e

o pacit talio esto: contra aquele que parte um membro e não entra em

acordo, a pena de talião.) Qual o motivo dessa limitação? A renúncia à

vingança, comenta o romancista Kaser, em troca de prestações expiatórias,

ocorre em razão do interesse de vingança privada.

b) O direito de crédito, que em tempos primitivos gerava uma responsabilidade

ilimitada para o devedor e desproporcional ( em relação ao montante da

dívida ), passou a sofrer limitações de acordo com a culpa e o tamanho da

dívida, já nas XII Tábuas, indicando uma proporcionalidade entre o

montante da dívida e o da responsabilidade.

Segundo Jellinek75, no direito administrativo alemão, o

princípio da proporcionalidade surgiu no final do século XVIII, quando Suarez, em

1791, em uma conferência sobre o direito de polícia, formulou o que viria a ser o

princípio fundamental do Direito Público dizendo:

O Estado somente pode limitar com legitimidade a liberdade do

indivíduo na medida em que isso for necessário à liberdade e à

segurança de todos.

O princípio da proporcionalidade, que inicialmente, na

Alemanha, tinha sua aplicação restrita ao direito administrativo, sofreu grande

desenvolvimento teórico no século passado, sendo hoje utilizado largamente no controle

de constitucionalidade das leis naquele país, passando, a partir daí, a influenciar a

doutrina européia, especialmente a espanhola e portuguesa, ganhando relevância

também entre autores e juízes brasileiros que o identificam como verdadeiro dever

jurídico-positivo.

75 Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 11a. edição, p. 370.

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Não é nossa preocupação estudar, como dito, de forma ampla o

princípio da proporcionalidade, dentre outros motivos porque a sua utilização no direito

administrativo, conquanto não tivesse o alcance que hoje se lhe atribui, não representa

uma verdadeira inovação76 e também porque os ares de modernidades que ora o

revestem residem particularmente no fato de ser empregado pelos tribunais, desde um

passado mais recente, como fundamento para o controle de constitucionalidade de leis77.

Observamos que a análise da proporcionalidade e da

razoabilidade neste trabalho tem por escopo, além de demonstrar que a utilização de

referidos princípios no controle do silêncio administrativo deve ser pautada por critérios

adrede estabelecidos, o que, como veremos, é mais factível quando empregado o

princípio da proporcionalidade, demonstrar também que a motivação dos atos

administrativos é a grande barreira ao subjetivismo nas decisões judiciais.

Pois bem. A idéia do que representa o princípio da

proporcionalidade, como alerta Xavier Philippe78, talvez seja de mais fácil compreensão

do que de definição.

76 Segundo Canotilho: “O princípio da proporcionalidade dizia primitivamente respeito ao problema da limitação do poder executivo, sendo considerado como medida para as restrições administrativas da liberdade individual. É com este sentido que a teoria do estado o considera, já no séc. XVIII, como máxima suprapositiva, e que ele foi introduzido, no séc. XIX, no direito administrativo como princípio geral do direito de polícia ( cfr. art. 272o /1 ). Posteriormente, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de excesso ( Ubermassverbot ), foi erigido à dignidade de princípio constitucional (..) A intuição da dimensão material do princípio não é nova como atrás se acentuou. Já nos séculos XVII e XIX, ela está presente na idéia britânica de reasonableness, no conceito prussiano de Verhaltnismassigkeit, na figura de détournement du pouvoir em França e na categoria italiana do eccesso di potere. No entanto, o alcance do princípio era mais o de revelação de sintomas de patologias administrativas – arbitrariedade, exorbitância de actos discricionários da administração – do que um princípio material de controlo das actividades dos poderes público.” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina: Coimbra, 4a. edição, pág. 265/267 ). 77 Destaca Gustavo Ferreira Santos que, embora tenha se generalizada a utilização do principio da proporcionalidade no direito europeu, não tem ele aceitação unânime com a dimensão que hoje se lhe aplica, mencionando crítica de Forsthoff, para quem a transposição dos conceitos de direito administrativo ao direito constitucional, em especial o de discricionariedade, degradam a legislação que, seria “um dos mais importante fenômenos da vida constitucional” ( O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – Limites e Possibilidade. Lúmen uris: Rio de Janeiro, 2004, p. 149 ). 78 Le Controle de Proportionnalité dans les Jurisprudences Constitutionelle et Administrative Française, Aix-Marseille, 1990, p. 7 apud Paulo Bonavides in Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 11a edição, p. 356.

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Uma frase de Jellinek79 nos dá bem a noção daquilo que, por

meio do exame da proporcionalidade, pretendemos concluir: “o problema da

proporcionalidade é saber se não se atirou no pardal com um canhão”.

De uma forma resumida, poderíamos dizer que a doutrina

identifica três elementos ( na verdade, além do termo elementos, a doutrina costuma se

referir a aspectos, conteúdos parciais, máximas ou mesmo subprincípios ) na

conformação do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a

proporcionalidade em sentido estrito.

Na aplicação do princípio da proporcionalidade, pelo seu

primeiro elemento, seria analisada a adequação da medida ao fim cuja implementação

por meio dela se pretende alcançar, isto é, constar-se-ia se o meio utilizado é adequado à

obtenção da finalidade legal. Nas palavras de Zimmerli80, trata-se do exame para saber

se a medida adotada consubstancia “o meio certo para levar a cabo um fim baseado o

interesse público”.

Por meio do segundo elemento – a necessidade – é verificado

se de todas a medidas que poderiam ser tomadas para a concretização de um interesse

público qualquer, a escolhida foi a que menos reflexos traria aos interesses dos

particulares mediata ou imediatamente por ela afetados . É dizer, se o Estado ao agir

afetando um interesse particular escolheu “de dois males, o menor ”81.

O terceiro elemento do princípio da proporcionalidade é o juízo

de proporcionalidade em sentido estrito, o que se faz pela ponderação ou pelo exame de

79 Le Controle de Proportionnalité dans les Jurisprudences Constitutionelle et Administrative Française, Aix-Marseille, 1990 apud Paulo Bonavides in Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 11a. edição, p. 356. 80 Conforme citação de Paulo Bonavides in Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 11a. edição, p. 360 81 Lição de Xavier Philippe, segundo Paulo Bonavides in Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 11a. edição, p. 361.

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precedência dos valores em conflito quando da realização de um interesse público.

Nesse sentido, a lição de Inocêncio Mártires Coelho82:

Por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese

mais de uma pauta lhe parecer aplicável à mesma situação de fato, ao

invés de se sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio, com

exclusão de outros que, prima facie, repute igualmente utilizáveis como

norma de decisão, o intérprete fará uma ponderação entre os standards

concorrentes ( obviamente se todos forem princípios válidos, pois só

assim podem entrar em rota de colisão ( optando, afinal, por aquele que,

nas circunstâncias, lhe pareça mais adequado em termos de otimização

de justiça. Em outras palavras de Alexy, resolve-se esse conflito

estabelecendo, entre os princípios concorrentes, uma relação de

precedência condicionada, na qual se diz, sempre diante das

peculiaridades do caso, em que condições um princípio prevalece sobre

o outro, sendo certo que, noutras circunstâncias, a questão da

precedência poderá resolver-se de maneira inversa.

Ao estudar o terceiro critério ou elemento do princípio da

proporcionalidade, Humberto Ávila fala que no exame de proporcionalidade em sentido

estrito, o meio utilizado deve proporcionar vantagens superiores às desvantagens

decorrentes de sua utilização, pois o Estado “tendo obrigação de realizar todos os

princípios constitucionais, não pode adotar um meio que termine por restringi-los mais

do que promovê-los em seu conjunto”.83

Comentando os três elementos conformadores do princípio da

proporcionalidade, Gilmar Mendes84 explica que o exame da adequação e da

82 Racionalidade Hermenêutica: Acertos e Equívocos in As Vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo, Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Coordenador Ives Gandra S. Martins. São Paulo: América Jurídica, 2002, p. 363. 83 Conteúdo, limites e intensidade dos controles de razoabilidade, de proporcionalidade e de excessividade das Leis. RDA nº 236 – Abril/Junho 2004 – pág. 369/384. 84 O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Revista Diálogo Jurídico - Ano I – Vol. 1 – n º 5 – Agosto de 2001.

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necessidade tem de ser feito atentando-se à diferença de peso que apresentam em um

juízo de ponderação: O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas

interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos

pretendidos. O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder

Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o

indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos

pretendidos. Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo

almejado puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a

um só tempo adequada e menos onerosa. Ressalte-se que, na prática,

adequação e necessidade não têm o mesmo peso ou relevância no juízo

de ponderação. Assim, apenas o que é adequado pode ser necessário,

mas o que é necessário não pode ser inadequado. Pieroth e Schlink

ressaltam que a prova da necessidade tem maior relevância do que o

teste da adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser

negativo o teste da adequação. Por outro lado, se o teste quanto à

necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste de

adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final.

O próprio Ministro Gilmar Mendes, aplicando a teoria à prática,

no julgamento da Reclamação nº 212685, assim se manifestou sobre o exame da

proporcionalidade da determinação judicial de seqüestro de verba pública do Município

de Itapeva:

(...) Ademais, não bastasse estar sujeito a esse quadro de múltiplas

obrigações legais e constitucionais perante outras entidades federativas

e perante a própria sociedade itapevense, constata-se que, em razão da

ordem judicial de seqüestro, o Município de Itapeva encontra-se em

estado de calamidade pública. Diante de tais circunstâncias, cumpre

indagar se a medida extrema do seqüestro atende, no caso, aos

requisitos do princípio constitucional da proporcionalidade. Se, por um

lado, pode-se afirmar que a medida do seqüestro é adequada (atende aos

fins pretendidos), por outro, em exame preliminar, afigura-se duvidoso 85 Informativo STF n º 288

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que aquela medida tenha sido necessária (sob o pressuposto de que não

havia outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em

sentido estrito (existência de proporção entre o objetivo perseguido e o

ônus imposto ao atingido que, no caso, não é apenas o Município, mas

também a própria sociedade itapevense). Nesse ponto, cabe registrar a

lição de Pieroth e Schlink, no sentido de que a prova da necessidade tem

maior relevância do que o teste da adequação. Positivo o teste da

necessidade, não há de ser negativo o teste da adequação. Por outro

lado, se o teste quanto à necessidade revelar-se negativo, o resultado

positivo do teste de adequação não mais poderá afetar o resultado

definitivo ou final (...) Por fim, consideradas as peculiaridades do caso

em exame, e observada a presente fase processual, diante dos princípios

constitucionais que supostamente encontram-se em conflito, afigura-se

recomendável a adoção daquilo que a doutrina define como uma

"relação de precedência condicionada" entre os princípios concorrentes

(...)86

A elaboração teórica quanto aos elementos que compõem o

princípio da proporcionalidade, longe de representar mero debate acadêmico, se

consubstancia em verdadeiro instrumento limitador à atuação dos poderes constituídos

e, porque não dizer, à própria liberdade de o Judiciário, no julgamento de uma medida

normativa ou de um comportamento administrativo qualquer, pretender simplesmente

substituir à sua a vontade do legislador ou do administrador, ao passo que estabelece

86 Concluindo o Ministro o seu voto da seguinte forma: “Estão claros, no caso, os princípios constitucionais em situação de confronto. De um lado, a posição subjetiva de um particular calcado no direito de precedência contido no art. 100, § 2º, da Constituição. De outro, a posição do Município e dos munícipes de Itapeva, no sentido de não ser prejudicada a continuidade da prestação de serviços públicos elementares como educação e saúde. Assim, sem prejuízo de melhor exame quando do julgamento do mérito, considerando-se: (1) que a previsão constitucional de seqüestro deve ser interpretada restritivamente, nos termos do precedente firmado na ADI 1.662; (2) que há controvérsia quanto à ocorrência ou não de preterição; (3) que o Município agiu tendo em vista o enquadramento em disciplina de Lei federal relativa a parcelamento de débitos; (4) que o referido enquadramento teve em mira o cumprimento de uma série de obrigações, inclusive de matriz constitucional, perante outras unidades da federação (União e Estados) e perante a própria sociedade de Itapeva; (5) o comprometimento da execução do orçamento municipal; (6) os múltiplos bens jurídicos em conflito, com ênfase no papel do Município no oferecimento de serviços públicos essenciais; (7) e, ainda, o fato de que a execução da medida impugnada já representa patente situação de colapso financeiro de Itapeva, com inevitáveis, e em alguma medida irreparáveis, conseqüências para a prestação de serviços públicos; (8) a possível ausência de proporcionalidade da ordem de seqüestro; CONCEDO A CAUTELAR para determinar a suspensão do seqüestro e a imediata devolução aos cofres públicos municipais dos valores dele objeto, até decisão final sobre a matéria. Comunique-se mediante "telex" e ofício. Requisitem-se informações.

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parâmetros objetivos para que o exame da proporcionalidade seja manifestado na

apreciação de um determinado comportamento do poder público87.

Necessário destacar, ainda, que o entendimento doutrinário

quanto à forma de realização do exame de proporcionalidade foi positivado pela Lei

9.784/99, norma que regula o processo administrativo no âmbito federal, ao passo que,

afora se referir de forma expressa ao princípio da proporcionalidade como critério

vinculador da atividade administrativa, o que faz em seu artigo 2o, cabeça, também

estabelece, no Parágrafo único, inciso VI, do mesmo artigo 2o, que nos processos

administrativos deverão ser observados critérios de adequação entre meios e fins, veda

a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas

estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.

2 – O princípio da razoabilidade

Anota Chaïm Perelman que a idéia da razoabilidade, que

inicialmente dava base à própria existência de um direito natural, imutável e de origem

divina88, que serviria como parâmetro contrário a qualquer tipo de arbitrariedade que

87 No mesmo sentido a lição de Helenílson Cunha Pontes: “O princípio da proporcionalidade constituiu fundamental instrumento de afirmação dos princípios decorrentes do Estado de Direito, pois, a um só tempo, limita o arbítrio do Poder que edita o ato estatal objeto de apreciação judicial, bem como limita o arbítrio do próprio Poder Judiciário ao assim proceder, porquanto exige deste uma rigorosa fundamentação das razões que conduzem a sua decisão. Os aspectos que compõem o princípio da proporcionalidade não constituem mero diletantismo acadêmico. Pelo contrário, representam importante instrumento de combate ao arbítrio e ao subjetivismo judicial, pois o apelo à positivação deste princípio, como critério de aferição da compatibilidade constitucional de uma atuação estatal, deve ser necessariamente seguido da análise dos aspectos que o compõem, o que, afinal, exigirá uma profunda motivação da decisão judicial levada a cabo (...) A concepção do princípio da proporcionalidade como norma jurídica necessariamente composta por três deveres ( Gebot ), diante dos quais sua eventual inobservância deve ser analisada, constitui instrumento apto a contribuir para que o controle de constitucionalidade seja cada vez mais racionalizado e motivado” ( O Princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, pág. 61 ). 88 “Domat, em seu Tratado ( Les lois civilis dans ler ordre naturel, 1680-1694 ) atém-se a resumir, à sua moda, a célebre passagem do De republica de Cícero: Há uma lei verdadeira, reta razão, conforme à natureza, presente em todos, imutável, eterna; ela chama o homem ao bem com seus mandamentos e o desvia do mal com sua proibições. Quer ordene, quer proíba, ela não se dirige em vão aos homens de bem, mas não exerce ação alguma sobre o maldoso. Não é permitido infirmá-la por outras leis, nem derrogar-lhe os preceitos; é impossível ab-rogá-la por inteiro, nem o Senado, nem o povo podem liberar-

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pudesse ser positivada em lei pela autoridade competente, foi pelos teóricos modernos

substituída por:

(...) uma concepção mais modesta de razão, a que é subjacente à

hipótese da racionalidade do legislador. Essa hipótese metodológica,

que serve de fundamento para a interpretação da lei, pressupõe que o

legislador conheça a língua que utiliza, assim como o sistema em que se

insere a sua obra, cuja coerência ele procura salvaguardar, que nada faz

de inútil, que adapte os meios aos fins visados, que raciocine num

âmbito de preferências admitidas, o que permite aplicar ao texto da lei

os argumentos a pari, a fortiori e a contrario. Mas não se pressupõe que

ele subscreva a certo numero de regra de direito universais e imutáveis.

No Direito, grande contribuição à teoria da razoabilidade pode

ser imputada a Recaséns Siches que, com o desenvolvimento da lógica do razoável89,

nos dela. Ela não será diferente nem em Roma nem em Atenas, e não será, no futuro, diferente do que é hoje, mas uma única lei, eterna e inalterável, regerá a um só tempo todos os povos em todos os tempos; como um único senhor é o chefe, é ele que é o autor da lei, que promulgou e a sanciona, aquele que não lhe obedece se pune a si próprio renegando sua natureza humana e se reserva o maior castigo” ( Chaïm Perelman. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes , 1996. ) 89 O logos do razonable possui as seguintes características segundo o autor: Primero, está limitado, está condicionado y está influido por la realidad concreta Del mundo en el que opera – en el Derecho está circunscrito, condicionado e influido por la realidad Del mundo social histórico y particular, en el cual, con el cual y para el cual se elaboran las normas jurídicas, lo mismo las generales que las individualizadas. Segundo, está impregnado de valoraciones, esto es, criterios estimativos o axiológicos, Adviértase que esa dimensión valorativa es por completo ajena a la lógica formal, a cualquier teoría de la inferencia. Ese estar impregnado de valoraciones es uno de los rasgos que decisivamente diferencia el logos de lo razonable, frente al logos de lo racional. Tercero, tales valoraciones son concretas, es decir, están referidas a una determinada situación humana real, a una cierta constelación social, y, por lo tanto, toman en cuenta las posibilidades y las limitaciones reales, Cuarto, las valoraciones constituyen la base o apoyo para la formulación de propósitos o establecimiento de finalidades no sólo se apoya sobre valoraciones sino que además está condicionado pela posibilidades que depare la realidad humana social concreta. El señalamiento de las finalidades o metas es el resultado de la conjugación del conocimiento sobre una realidad social particular y unas valoraciones estimadas como pertinentes respecto de esa realidad. Sexto, consiguientemente, el logos de lo humano está regido por razones de congruencia o adecuación: 1) entre la realidad social y los valores ( cuáles son los valores apropiados para la ordenación de una determinada realidad social ); 2 ) entre los valores y los fines ( cuáles son los fines valiosos); 3) entre los fines y la realidad social concreta ( cuáles son los fines de realización posible y razones para una escala de prioridades entre ellos ); 4 ) entre los fines y los medios en cuanto la conveniencia de los medios para los fines; 5 ) entre los fines y los medios, en respecto da la corrección ética de los medios; y 6) entre los fines y los medios en lo que se refiere a la eficacia de los medios; 7 )Está orientado pro las enseñanzas sacadas de la experiencia vital y histórica, esto es, individual y social – actual y pretérita -, y se desenvuelve aleccionado por esa experiencia ( Experiencia jurídica,

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demonstrou que a produção de normas jurídicas deve ser informada pela noção do

razoável que se aperfeiçoa a partir de elementos objetivos e também das circunstâncias

que envolvem o homem e os seus valores.

Como princípio de direito, embora a razoabilidade possa ter a

sua origem identificada no direito inglês90, com a Magna Carta de 1215, é de

reconhecimento pacífico na doutrina que foi no direito americano que ele alcançou seu

grande desenvolvimento teórico e destaque na aplicação prática, como conseqüência da

cláusula due process of law introduzida na Constituição norte-americana pelas Quinta e

Décima-Quarta emendas.

Charles D. Cole91 aponta que o devido processo substantivo é

uma teoria pela qual o governo é limitado quanto ao modo pelo qual ele pode afetar a

vida, a liberdade ou o patrimônio de alguém92, estabelecendo esse conceito limitações

substantivas à autoridade, de forma que ao Poder Judiciário assiste o direito de rever

com independência a legislação para determinar se o governo usou os meios

apropriados, ou se a legislação guarda uma relação de razoabilidade com um fim

governamental legítimo.

naturaleza de la cosa y Lógica “razonable”. Dianota: México, 1971 apud Maria Rosynete Oliveira Lima. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, pág. 280/281). 90 Anota Marcos Maselli Gouvêa que “Fundando-se no incremento histórico dos costumes judiciais, o direito britânico nunca se dispôs a resolver problemas jurídicos através da utilização de grandes conceitos gerais – método este que prevalece ainda hoje nos países de tradição romano-germânica, influenciados como foram pela jurisprudência dos conceitos. No sistema do commom law, as lides não são resolvidas a partir de pretensiosos conceitos abstratos, ou de genéricas disposições legais, mas sobretudo com o auxílio de experiências judiciais passadas(...) A formação cultural do juiz britânico, portanto, o leva a considerar como algo corriqueiro a fundamentação das decisões através de ponderações, juízos de razoabilidade. Tal fato permite compreender por que os ingleses, apesar de terem criado este princípio, não conferiram ao tema tratamento doutrinário tão importante quanto o que se verificou em outros países. Nestes, a razoabilidade, constituindo exceção à regra de que o controle judicial se realiza por intermédio de norma escrita, despertou discussões mais intensas, que redundaram numa produção intelectual mais fecunda” ( O controle judicial das omissões administrativas. Editora forense: Rio de Janeiro, 2003, p. 127 ) 91 O devido processo legal na cultura jurídica dos Estados Unidos: passado, presente e futuro, in Revista AJUFE nº 56. 92 Para Nélson Nery, “tudo o que disser respeito à tutela da vida, liberdade ou propriedade está sob a proteção do due process clause” ( Princípios do processo civil na Constituição Federal, 4a. edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997 )

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Determinar o que constituía o due process passou a ser a

preocupação mais importante do direito constitucional americano, conforme ensina

Leda Boechat Rodrigues, citando lição de Kelly e Harbison, ao passo que por meio do

teste da razoabilidade (reasonableness), a Suprema Corte passava a controlar a

constitucionalidade das leis estaduais, das leis federais e do poder de polícia do

Estado93.

No direito americano, o controle dos atos da administração

pelas lentes da razoabilidade é marcado por três fases distintas, conforme lição de Luis

Roberto Barroso94.

A primeira, de meados do Século XIX até o New Deal, o

princípio da razoabilidade teve utilização destacada como barreira à possibilidade de o

poder estatal interferir no laissez faire, declarando a Suprema Corte Americana a

inconstitucionalidade de leis que limitavam a jornada de trabalho e estabeleciam salário

mínimo para as mulheres.

A segunda, do New Deal até o final de Segunda Guerra

Mundial, quando a Suprema Corte curvou-se à vontade de Franklin Roosevelt e passou

a admitir maior intervenção estatal na economia95.

A terceira, com o pós–guerra, quando o princípio da

razoabilidade conferiu às decisões nítido caráter progressista em relação aos direitos

sociais e individuais e de proteção às minorias, período em que se destacam, dentre 93 A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1992, 2a. edição 94 Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1998. 95 Anota Leda Boechat Rodrigues que após a Suprema Corte declarar a inconstitucionalidade de doze leis no período de 1934 a 1936, o Presidente Roosevelt, em 5 de fevereiro de 1937, enviou ao Congresso o plano de reorganização do judiciário, com nítido alvo político visando à modificação imediata da composição da Corte Suprema, como forma de lhe garantir maioria favorável à política de governo, o chamado packing the Court que, que dentre as principais modificações, previa o aumento de 9 ( nove ) para 15 ( quinze ) juízes na composição da Corte. Sob essa ameaça, a Suprema Corte passou a rever seus posicionamentos anteriores, formando nova maioria que declarou a constitucionalidade da lei do salário mínimo e de outras leis editadas no Governo Roosevelt, levando ao arquivamento do projeto de reforma do judiciário no Senado Americano. ( A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1992, 2a. edição ).

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outros, os julgados como o de Brown v. Board of Education, em que declarou a

inconstitucionalidade de normas estaduais discriminatórias raciais e o de Roe v. Wade,

em que se declarou a inconstitucionalidade da Lei do Texas que tipificava penalmente o

aborto96.

No direito americano, a possibilidade de o controle judicial em

relação às medidas adotadas pelos poderes Executivo e Legislativo ser exercido pelo

exame da razoabilidade ampliou - em muito - o poder da Suprema Corte interferir na

conformação da própria vontade política daquele país.

Não é por outra razão que Edward S. Corwin97 escreveu que

por meio da cláusula do devido processo legal substantivo, tem a Suprema Corte

Americana a plena liberdade de definir se as leis impugnadas judicialmente atendem ao

critério da razoabilidade, ao dizer que o due process of law:

(...) abrange, hoje, o conteúdo substantivo da legislação, ou, em

outras palavras, exige que o Congresso exerça seus poderes

razoavelmente, isto é, razoavelmente, segundo o juízo da Corte

Suprema (...) Em suma: Em conseqüência da doutrina moderna do

due process of law como “lei razoável”, o controle judicial deixou de

ter limites definidos e definíveis; embora varie consideravelmente

em cada caso, o reexame a que a Corte Suprema submeterá a

justificativa de fato de uma lei, sob as cláusulas de due process da

Constituição, essa matéria depende, em última análise, apenas do

arbítrio da própria Corte e de nada mais.

Isso não obstante, informa Marcos Maselli Gouvêa que, embora

ainda hoje no direito americano a invocação à razoabilidade seja freqüente, seu emprego 96 A esses três períodos da história da Suprema Corte deveremos, em um futuro não muito distante, adicionar uma quarta fase, dada a possibilidade de o Presidente George W. Bush, neste segundo mandato, nomear três novos juízes que certamente estarão alinhados à sua política conservadora e de preservação de valores morais e religiosos, fase essa que, ao que tudo indica, deverá ser marcada pela involução das conquistas sociais e das liberdades civis, o que venha a ser talvez a pior das conseqüências do 11/09/2001. 97 A Constituição norte-americana e seu significado atual. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1986, p. 266 e 306.

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se mostra cada vez menos inovador, bastando-se os tribunais a repetir burocraticamente

o seu uso na forma em que foi consagrada, buscando, com isso, eximirem-se dos ônus

políticos que sempre implicou a sua referência nas decisões judiciais, chegando mesmo

alguns dos julgados a ponto de transformarem a razoabilidade, juntamente com a

ilegalidade, em requisitos cumulativos para a invalidação dos atos estatais. É dizer, para

que o ato seja invalidado, não basta ser ilegal ou irrazoável: dever ser ilegal e

irrazoável98.

A importância da razoabilidade, como limite ao exercício da

atividade legislativa, foi analisada entre nós por Carlos Roberto de Siqueira Castro99 da

seguinte forma: A moderna teoria constitucional tende a exigir que as diferenciações

normativas sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer que a norma

classificatória não deve ser arbitrária, implausível ou caprichosa,

devendo, ao revés, operar como meio idôneo, hábil e necessário ao

atingimento de finalidades constitucionalmente válidas. Para tanto, há

de existir uma indispensável relação de congruência entre a

classificação em si e o fim a que ela se destina. Se tal relação de

identidade entre meio e fim - "means-end relationship", segundo a

nomenclatura norte-americana - da norma classificatória não se fizer

presente, de modo que a distinção jurídica resulte leviana e

injustificada, padecerá ela do vício da arbitrariedade, consistente na

falta de "razoabilidade" e de "racionalidade", vez que nem mesmo ao

legislador legítimo, como mandatário da soberania popular, é dado

discriminar injustificadamente entre pessoas, bens e interesses na

sociedade política.

98 O Princípio da Razoabilidade na Jurisprudência Contemporânea das Cortes Norte-Americanas. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, pág. 102/124. 99 O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

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Sob esse mesmo fundamento é que o Poder Judiciário se acha

investido na competência de rever os atos do outro poder da República, que é o Poder

Executivo, verificando se os atos deste emanados também guardam uma relação de

compatibilidade com o direito positivo e com a Constituição.

Se o dever-poder conferido ao administrador tem o caráter

meramente instrumental no implemento de uma finalidade consagrada como pública,

ainda que o exercício dessa competência reúna aspectos de discricionariedade, poderá

ser considerado ilegítimo acaso não atenda ao teste da razoabilidade, pois como ensina

Chaïm Perelman:

Toda vez que um direito ou um poder qualquer, mesmo discricionário, é

concedido a uma autoridade ou a uma pessoa de direito privado, esse

direito ou esse poder será censurado se for exercido de forma

desarrazoada. Esse uso inadmissível do direito será qualificado

tecnicamente de formas variadas, como abuso do direito, como excesso

ou desvio de poderes, como iniqüidade ou má-fé, como aplicação

ridícula ou inadequada de disposições legais, como contrário aos

princípios gerais do direito comum a todos os povos civilizados. Pouco

importam as categorias invocadas. O que é essencial é que, num Estado

de direito, quando um poder legítimo ou um direito qualquer é

submetido ao controle judiciário, ele poderá ser censurado se for

exercido de forma desarrazoada, portanto inaceitável.

Especificamente no que toca ao uso da discricionariedade

administrativa, entende Celso Antônio Bandeira de Mello100 que em atenção ao

princípio da razoabilidade:

a Administração, ao atuar no exercício da discrição, terá de obedecer a

critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso

normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que

presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende se

100 Curso de direito administrativo, pág. 99.

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colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também

ilegítimas - e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis - as condutas

desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas em desconsideração

às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse

atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às

finalidades da lei atributiva da discrição manejada.

Entendemos que embora a Lei 9.784/99, em seu art. 2o tenha

positivado o princípio da razoabilidade como vetor informador de toda a atividade

administrativa federal e conquanto se substantive em instrumento importante para o

controle da legitimidade dos atos do poder público, o princípio da razoabilidade, no

direito brasileiro, não tem a mesma dimensão alcançada no direito norte-americano e

isso por uma razão muito simples: a Constituição Federal de 1988, de forma analítica,

estabeleceu em seu artigo 5o, quais seriam os direitos e garantias fundamentais dos

brasileiros e dos estrangeiros aqui residentes além de, agora em seu art. 37 – e no que

importa especificamente ao objeto deste trabalho -, relacionar quais os princípios

informam a atividade administrativa.

A razoabilidade construída a partir da sintética cláusula do due

process of law pela jurisprudência da Suprema Corte Americana, nada mais é, no direito

brasileiro, do que a conseqüência natural e lógica da aplicação dos princípios

constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da

ampla defesa, do contraditório e de outros que foram positivados no Texto

Constitucional brasileiro, na solução dos casos concretos postos a exame em processo

administrativo ou judicial, pois não se imagina que qualquer norma geral ou individual

que seja editada em observância a todos esses vetores que lhe são informadores, ao

mesmo tempo, possa ser considerada irrazoável.

Não queremos, por óbvio, com isso dizer que o estudo do

princípio da razoabilidade no direito brasileiro se mostra menos importante ou

desnecessário.

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Longe disso. Apenas queremos ressaltar que a razoabilidade, na

realidade jurídica brasileira, é exigência que deflui do próprio direito positivo não sendo

necessário, por isso mesmo, longos percursos históricos ou referências ao direito

alienígena como forma de justificar a sua aplicação.

Entre nós, o estudo do princípio da razoabilidade deve ter outro

foco, qual seja, o de delimitar-lhe seus critérios de aplicação, porquanto a sua utilização

no caso concreto, é preciso reconhecer, é marcada a mais das vezes por evidente carga

axiológica, o que faz necessário que alguns parâmetros objetivos de aplicação passem a

ser exigidos.

De qualquer forma, não há negar, hoje o princípio da

razoabilidade se consubstancia em importante pauta para o controle da legitimidade de

quaisquer dos atos praticados nos exercícios das funções estatais, que, como não

descuidamos de lembrar, substantivam poderes meramente instrumentais em relação à

perseguição das finalidades públicas que justificam e legitimam o seu exercício.

3 – Distinção entre a proporcionalidade e a razoabilidade?

Embora tenhamos formulado uma exposição, ainda que breve,

do desenvolvimento teórico dos dois princípios, o que demonstra a diferença na origem

da dogmática jurídica de cada um deles, temos ser cabida a pergunta quanto à realmente

existir distinção entre a proporcionalidade e a razoabilidade, ao passo que tanto na

doutrina como na jurisprudência atuais encontramos manifestações que ora os

identificam a uma só coisa e ora a eles se referem como fenômenos distintos.

Lúcia Valle Figueiredo101 vê os dois princípios como realidades

que não se confundem:

101 Curso de Direito Administrativo, pág. 50/51.

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Em síntese: a razoabilidade vai se atrelar à congruência lógica entre

situações postas e as decisões administrativas. Vai se atrelar às

necessidades da coletividade, à legitimidade, à economicidade, à

eficiência. Ao lado da razoabilidade traz-se à colação, também como

principio importantíssimo, o da proporcionalidade. Com efeito, resume-

se o princípio da proporcionalidade na direta adequação das medidas

tomadas pela administração às necessidades administrativas. Vale dizer:

só se sacrificam interesses individuais em função de interesses

coletivos, de interesses primários, na medida da estrita necessidade, não

se desbordando do que seja realmente indispensável para a

implementação da necessidade pública. Por isso mesmo, resolvemos,

nesta edição, destacar expressamente o princípio da proporcionalidade,

por entendê-lo efetivamente como um plus relativamente ao princípio

da razoabilidade. Com efeito, têm dissertado os autores sobre a

proporcionalidade destacando o sentido estrito do conceito. Assim, o

princípio seria decomposto em adequação, necessidade e

proporcionalidade em sentido estrito. Entendemos que é o sentido

estrito o diferenciador da razoabilidade. Na verdade, os princípios se

imbricam de tal sorte que se poderia confundi-los. Todavia, não parece

impossível fazer a diferença.

Já Celso Antônio Bandeira de Mello102 entende que os dois

princípios têm a mesma matriz constitucional – a legalidade – não sendo a

proporcionalidade outra coisa senão um aspecto da própria razoabilidade:

Em rigor, o princípio da proporcionalidade não é senão faceta do

princípio da razoabilidade. Merece destaque próprio, uma referência

especial, para ter-se maior visibilidade da fisionomia específica de um

vício que pode surdir e entremostra-se sob essa feição de

desproporcionalidade do ato, salientando-se, destarte, a possibilidade de

correição judicial arrimada neste fundamento. Posto que se trata de 102 Curso de Direito Administrativo, pág. 101/102.

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aspecto específico do princípio da razoabilidade, compreende-se que

sua matriz constitucional seja a mesma. Isto é, assiste nos próprios

dispositivos que consagram a submissão da Administração ao cânone da

legalidade. O conteúdo substancial desta, como visto, não predica a

mera coincidência de conduta administrativa com a letra da lei, mas

reclama adesão ao espírito dela, à finalidade que a anima.

O mesmo entendimento é defendido para Maria Sylvia Zanella

Di Pietro103:

(...) embora a Lei 9.784/99 faça referência aos princípios da

razoabilidade e da proporcionalidade, separadamente, na realidade, o

segundo constitui um dos aspectos contidos no primeiro.

Canotilho104 também identifica os dois princípios ao dizer:

Posteriormente, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo,

também conhecido por princípio da proibição de excesso

(Ubermassverbot) foi erigido à dignidade de princípio constitucional(...)

Na qualidade de regra de razoabilidade – rule of reasonableness -

desde cedo começou a influenciar a jurisprudência dos países de

Commom law. Através da regra da razoabilidade, o juiz tentava (e tenta)

avaliar caso a caso as dimensões do comportamento razoável tendo em

conta a situação de facto e a regra do precedente.

Entre os novos mestres do direito brasileiro, também podemos

destacar lições que tanto identificam como diferenciam os dois princípios.

103 Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 14a.edição, 2002, pág. 81. 104 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 4a edição, pág. 265/266.

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Maria Rosynete Oliveira Lima, em monografia sobre o Devido

Processo Legal105, conclui que embora a razoabilidade e a proporcionalidade possam ser

consideradas magnitudes diversas, figuram como realidades inseparáveis, ao afirmar

que:

(...) cremos que o princípio da proporcionalidade carrega em si a noção

de razoabilidade, em uma relação inextrincável, e que não pode ser

dissolvida, justificando, assim, a intercambialidade dos termos

proporcionalidade e razoabilidade no ordenamento brasileiro.

Com pensamento divergente, encontramos a lição de Marcos

Maselli Gouvêa106, que em estudo monográfico sobre o controle judicial das omissões

administrativas, afirmou:

O dever de proporcionalidade é um postulado de aplicação do direito

que deflui da exigência de aplicação coerente de normas jurídicas que

abstratamente consideradas entrariam em colisão. Já a razoabilidade

insere-se no terceiro grupo, como uma instância intuitiva e pragmática,

ligada às convicções substantivas do órgão decisório e às circunstâncias

concretas do caso em exame.

No mesmo sentido, Gustavo Ferreira Santos107 que ao estudar o

princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,

observou: Uma primeira análise pode levar a crer que há identidade entre

proporcionalidade e razoabilidade, sendo um mesmo instrumento de

limitação do poder estatal, apenas se diferenciando por se tratarem de

construções de sistemas constitucionais distintos. É essa conclusão que

leva a muitos, no Brasil, a falarem em princípio da

proporcionalidade/razoabilidade. Porém, um estudo mais aprofundado 105 Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, pág.. 287. 106 O Controle judicial das omissões administrativas – novas perspectivas de implementação dos direitos prestacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pág. 135. 107 O princípio da proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – Limites e Possibilidades. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, pág. 127/128.

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revelará notas diferenciadoras que demonstram serem os institutos, a

par de limitarem o exercício de poder pelo Estado, conceitualmente

diferenciados. Não são conceitos fungíveis. Cada um, além de uma

fundamentação própria, possui elementos caracterizadores que marcam

uma diferença operacional: a razoabilidade trata da legitimidade da

escolha dos fins em nome dos quais agirá o Estado, enquanto a

proporcionalidade averigua se os meios são necessários, adequados e

proporcionais aos fins escolhidos.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, também é

possível encontrar em votos e ementas posicionamentos que tanto identificam como

diferenciam os dois princípios.

De fato. No julgamento da ADIn 958-3 RJ, em seu voto,

observou o Ministro Gilmar Mendes:

Portanto, o Supremo Tribunal Federal considerou que, ainda que o

legislador pudesse estabelecer restrições ao direito dos partidos políticos

de participar do processo eleitoral, a adoção de critério relacionado com

fatos passados para limitar a autuação futura desses partidos parecia

manifestamente inadequada e, por conseguinte, desarrazoada. Essa

decisão consolida o desenvolvimento do princípio da proporcionalidade

ou da razoabilidade como postulado constitucional autônomo que tem

sua sede material na disposição constitucional que disciplina o devido

processo legal ( art.5o, inciso, LIV ).

O mesmo entendimento parece ser o perfilhado pelo Min. Celso

de Mello:

(...)

Considerações doutrinárias em torno da questão pertinente às lacunas

preenchíveis. TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO

ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA

VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE

PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais

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devem observar, no processo de sua formulação, critérios de

razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões

fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos

emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra,

em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of

law”. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de

razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-

SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA

CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. -

A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais

abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções

normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos

excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição

da constitucionalidade material dos atos estatais. ( grifei ).

( ADIN - Med. Liminar - 2667 – 4).

Também no julgamento da ADI 1407 adotou a Corte Suprema

o posicionamento quanto à identidade dos dois princípios, ao decidir que:

VEDAÇÃO DE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS APENAS NAS

ELEIÇÕES PROPORCIONAIS - PROIBIÇÃO LEGAL QUE NÃO SE

REVELA ARBITRÁRIA OU IRRAZOÁVEL - RESPEITO À

CLÁUSULA DO SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW. - O

Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está

necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental,

que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade,

veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder

Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação

dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela

que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se

vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no

exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição

da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma

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estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta

obséquio ao postulado da proporcionalidade , ajustando-se à cláusula

que consagra , em sua dimensão material , o princípio do substantive

due process of law ( CF, art. 005 º, LIV ) . Essa cláusula tutelar, ao

inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo,

enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado

constitui atribuição jurídica essencialmente limitada , ainda que o

momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo

meramente político ou discricionário do legislador. ( grifei ).

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal também reconhece

que os dois princípios têm dimensão normativa distintas quando os invoca

conjuntamente para fundamentar suas decisões:

ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E DEMISSÃO DE SERVIDOR. -

A Turma indeferiu recurso ordinário em mandado de segurança

interposto pelo Ministério Público Federal contra acórdão do STJ que

julgara extinto, sem apreciação do mérito, mandado de segurança

impetrado por servidor público contra ato do Ministro de Estado da

Educação que o demitira pela prática de ato de improbidade

administrativa. Na espécie, o STJ entendera que as supostas

irregularidades no curso do processo disciplinar, apontadas pelo

servidor, envolveriam matéria fática que, pela sua complexidade,

somente poderiam ser analisadas nas vias ordinárias. O recorrente

alegava excesso na dosimetria da pena, com a conseqüente ofensa aos

princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, uma vez que o dano

causado aos cofres públicos seria diminuto, resultante de uma conduta

isolada. Preliminarmente, a Turma reconheceu a legitimidade do

Ministério Público para recorrer no processo em que oficiara como

fiscal da lei, ainda que não houvesse recurso da parte, tendo em conta,

sobretudo, o comparecimento do impetrante para manifestar sua

concordância com o recurso. Asseverou-se que o mérito da questão

referia-se à possível violação aos princípios da razoabilidade e da

proporcionalidade, na aplicação da pena de demissão ao servidor

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ímprobo. (..) Considerou-se que a decisão impugnada, a teor do

disposto no art. 168 e seu parágrafo único, da Lei 8.112/90, estaria

fundamentada, atendendo ainda, formalmente, à regra prevista no art.

128 da mesma Lei. Entendeu-se, ainda, que o mandado de segurança

não seria a via adequada para concluir-se além do que decidido pela

autoridade impetrada, no sentido de que, comprovado o ato de

improbidade, a pena de demissão seria conseqüência lógica do

processo, nos termos do art. 132, IV, do Regime Jurídico, embora o

pequeno prejuízo causado ao erário e o longo tempo de atividade do

impetrante no serviço público (..) RMS 24901/DF, rel. Min. Carlos

Britto, 26.10.2004. (RMS-24901 ) – Informativo 367 ( grifei ).

Feitas essas considerações, é tempo de alinharmo-nos a um dos

entendimentos expostos.

Conquanto as idéias de proporcionalidade e razoabilidade

pareçam realmente indicar se consubstanciarem em facetas de um mesmo fenômeno,

qual seja, a da valoração que se faz sobre um ato do poder público de modo a se

concluir se a finalidade pública perseguida é legítima e, mais, se o meio pelo qual se

pretende implementá-la também atende aos ditames da Lei e do Direito, temos que pelo

menos no estágio atual do desenvolvimento teórico dessas duas noções, a distinção

entre elas se mostra, se não correta, pelo menos útil ao intérprete.

E isso por dois motivos.

Primeiro, porque a idéia de proporcionalidade parece envolver

sempre o balanceamento de dois valores igualmente protegidos e que se conflitam na

realização de um interesse público108. É dizer, uma dada medida só pode ser reputada

108 Cite-se como exemplo, dentre muitos na mesma linha, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Pedido de Intervenção Federal nº 2127-SP: INTERVENÇÃO FEDERAL. 2. Precatórios judiciais. 3. Não configuração de atuação dolosa e deliberada do Estado de São Paulo com finalidade de não pagamento. 4. Estado sujeito a quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. Necessidade de garantir eficácia a outras normas constitucionais, como, por exemplo, a continuidade de prestação de serviços públicos. 5. A

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proporcional a uma finalidade pública quando para o seu implemento, necessariamente,

algum interesse contraposto foi de alguma forma mediata ou imediatamente atingido.

Não faz sentido falar-se na proporcionalidade de um ato do

poder público sem que exista o parâmetro de confrontação, pois se a medida é

proporcional, o é em relação a alguma coisa, ou seja, a medida adotada é e será

proporcional no ponto que, no obstante atinja ou mitigue outro interesse

constitucionalmente protegido, postula o alcance da finalidade pública que, no caso

concreto, mostrou-se mais importante.

A razoabilidade parece não exigir a mesma confrontação no

plano dos valores. O exame de razoabilidade dá-se no caso concreto quando a

legitimidade da subsunção da hipótese normativa ao fato é analisada e reconhecida ou

rejeitada sem que necessariamente se tenha de admitir que um ou alguns dos valores que

estivessem envolvidos no julgamento devesse ceder passo, totalmente ou em alguns de

seus aspectos, para que os outros valores se realizassem plenamente.

Ficando em um exemplo. O Poder Judiciário teve a

oportunidade de apreciar ato administrativo que decidiu pela exclusão de um candidato

do concurso público para agente da polícia federal em razão dele registrar antecedente

de inquérito policial por fato ocorrido há mais de dez anos. Foi reconhecido em primeira

e segunda instância que não seria razoável o motivo de se excluir o candidato do

certame pelo fato ocorrido há mais de dez anos, tendo-se em conta que o Inquérito

Policial fora arquivado a requerimento do Ministério Público109.

intervenção, como medida extrema, deve atender à máxima da proporcionalidade. 6. Adoção da chamada relação de precedência condicionada entre princípios constitucionais concorrentes. 7. Pedido de intervenção indeferido. IF 2127 / SP - SÃO PAULO - INTERVENÇÃO FEDERAL Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO Rel. Acórdão Min. GILMAR MENDES Revisor Min.Julgamento: 08/05/2003 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação: DJ DATA-22-08-2003 PP-00022 EMENT VOL-02120-01 PP-00044. 109 ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. REQUISITO DE IDONEIDADE MORAL E BOA CONDUTA PARA A REALIZAÇÃO DE CURSO NA ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA. CONCEITOS INDETERMINADOS. ATO DE EXCLUSÃO DE CANDIDATO, SOB FUNDAMENTO DE NÃO PREENCHER AQUELES REQUISITOS. CONTROLE JUDICIAL DA RAZOABILIDADE DOS MOTIVOS. 1 – O Dec. Lei n . 2.320/876, art. 8o, I, estabelece como requisito para a matrícula em curso da Academia Nacional de Polícia ter ( no presente ) procedimento irrepreensível e idoneidade moral inatacável . 2 – Não é razoável excluir o aluno do curso de formação de Agente de Polícia Federal por fato acontecido há mais de dez anos, tendo sido o inquérito policial, a que deu origem, arquivado, a

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No caso em tela, fácil de ver, a aplicação do princípio da

razoabilidade levou à anulação do ato administrativo sem que se travasse toda uma

discussão acerca da ponderação dos valores envolvidos, quais sejam, o direito de o

candidato participar do concurso ( princípio da igualdade ) e a possibilidade de a

administração pública exigir dos pretendentes aos cargos públicos a satisfação dos

requisitos da idoneidade moral ( princípio da moralidade ). Apenas se constatou que, no

caso concreto, não seria razoável a exclusão do candidato por fato que não guardava

qualquer relevância no exame de sua reputação social.

Segundo, temos que o exame pela ótica da proporcionalidade,

mormente em razão de sua origem e desenvolvimento doutrinário, permite a elaboração

de um juízo de valoração que é muito mais pautado por critérios objetivos do que o

exame feito a partir do princípio da razoabilidade.

Para o exame da proporcionalidade, a doutrina estabelece uma

linha de raciocínio que se faz de forma objetiva por meio da verificação, no ato do

poder público, do implemento dos requisitos da adequação, da necessidade e da

proporcionalidade em sentido estrito110.

requerimento do Ministério Público. 3 – Desatenção, além disso, à regra do devido processo legal, uma vez que a Administração, de posse de prova documental do fato, limitou-se a colher as declarações do aluno, de forma inquisitória. ( Apelação Cível nº 1999.01.00.073746-2/DF – julgamento 2/06/2000 – TRF 1a. Região) 110 “Por atipicidade da conduta, a Turma deferiu habeas corpus para trancar ação penal instaurada contra o paciente, gerente de agência bancária, pela suposta prática do crime de desobediência (CP, art. 330), pela circunstância de disponibilizar a quantia equivalente ao valor expresso no mandado de penhora - referente à dívida de correntista do banco - e, não da metade do que depositado em conta corrente, porquanto excedente ao montante do débito exigido. A Turma, tendo em conta a ambigüidade na redação da ordem judicial, considerou inexistente o dolo de desobedecer, já que tal redação permitia a interpretação dada pelo paciente, que obedecera a um comando contido no mandado. Ademais, entendeu-se que, na espécie, a manutenção do procedimento criminal contra o paciente ofenderia os princípios da proteção judicial efetiva (CF, art. 5º, XXV) e da dignidade humana (CF, art. 1º, III) e, ainda, não atenderia às três máximas parciais do princípio da proporcionalidade, quais sejam: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. HC 82.969-PR, rel. Min. Gilmar Mendes, 30.9.2003.(HC-82969) – Informativo STF 323 ( grifei ).

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Ao trilhar o caminho da adequação, necessidade e

proporcionalidade da medida, o intérprete vai estabelecendo parâmetros que podem ser

utilizados quando os mesmos valores que se viram atingidos pela adoção de um ato do

poder público voltarem a se conflitar.

Diferentemente, o exame da razoabilidade, influenciado que é

pela sua aplicação no sistema do commom law, no qual a idéia do razoável é feita quase

que intuitivamente pelo Juiz que, na apreciação do caso concreto, leva em conta apenas

as circunstâncias que o individualizam, sem que exista uma aparente preocupação com a

fundamentação teórica do posicionamento adotado.

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Capítulo IV – O princípio da motivação dos atos administrativos

1 – O due process of law como seu fundamento constitucional.

Dada a importância do princípio da motivação na análise do

silêncio administrativo, pois, como demonstraremos, a nosso sentir, se configura

referido princípio constitucional em verdadeiro elemento limitador à liberdade

legislativa de extrair do fenômeno efeitos normativos que não lhe são naturais,

passaremos agora a estudá-lo mais detidamente, começando por uma análise de seus

fundamentos e finalizando o seu estudo com comentário dos dispositivos da Lei

9.784/99 que tratam da obrigatoriedade da motivação dos atos administrativos no

âmbito da administração federal direta e indireta.

Pois bem. Qualquer tipo de discussão doutrinária acerca da

motivação dos atos administrativos ter carga normativa de princípio constitucional

informador de toda atividade administrativa poderia ter sido encerrada por ocasião da

promulgação da Constituição de 1988.

Todavia, mesmo com a nova ordem constitucional, houve

espaço para o questionamento acerca da obrigatoriedade da motivação dos atos

administrativos111, ao passo que ao estabelecer os princípios vetores da função

administrativa, em seu art. 37, não fez a Carta Política qualquer referência expressa ao

princípio da motivação112.

111 Embora se diga simpático à idéia de a motivação ser obrigatória tanto nos atos vinculados como nos atos discricionários, Edmir Netto de Araújo afirma que: “A motivação é obrigatória nos atos vinculados, e facultativa nos atos discricionários, embora tenhamos simpatia pela posição dos que defendem a obrigatoriedade de motivação, em qualquer caso, das decisões administrativas, como ocorre com as decisões judiciais” ( Do negócio jurídico administrativo. São Paulo: Editora RT, 1992 ). 112 Lembre-se que a Constituição do Estado de São Paulo, que é de 1989, já trouxe, em seu art. 111, a motivação como princípio informador da administração pública.

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Assim, também à luz da nova ordem constitucional, os juristas

tiveram - e ainda têm – de buscar, em uma interpretação sistemática do Texto, a

motivação como princípio constitucional implícito.

E, nesse sentido, a exigência da motivação dos atos

administrativos pode ser fundamentada tanto no Estado Democrático de Direito113,

como princípio da legalidade114, no princípio republicano115, no princípio da

razoabilidade116, princípio da proporcionalidade117, no princípio da transparência

administrativa118.

113 Ramón Real, ao escrever sobre a motivação, afirmou: “o direito do administrado - que deixou de ser súdito para tornar-se, como cidadão, partícipe da formação da vontade do Estado - requer a justificação legal da competência e de seu exercício racional” (La Fundamentación del acto administrativo. La protección jurídica de los administrados, Bogotá, Ediciones, Rosaritas, Colégio Mayor de Nuestra Señora del Rosário, 1980, pág. 438 ). 114 Celso Antônio Bandeira de Mello sustenta que: “deve-se considerar, também, como postulado pelo princípio da legalidade o princípio da motivação, isto é, o que impõe à Administração o dever de expor as razões de direito e de fato pelas quais tomou a providência adotada. Cumpre-lhe fundamentar o ato que haja praticado, justificando as razões que lhe serviram de apoio para expedi-lo” ( Curso de Direito Administrativo, pág. 40 ). 115 Partindo-se da definição que Geraldo Ataliba dá para a República, “institucionalização das formas pelas quais os mandatários do povo administram a coisa pública” ( República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985), pode-se chegar à conclusão de que o princípio da motivação é dele corolário lógico, pois, se o povo é o verdadeiro detentor do poder, nada mais natural que seus representantes tenham de demonstrar os porquês das decisões tomadas. 116 É a opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro “ É imprescindível, para a avaliação da razoabilidade, conhecer os motivos que levaram a Administração a adotar determinada medida (objeto do ato administrativo) para alcançar a finalidade que decorre implícita ou explicitamente da lei. Daí a necessidade de motivação” ( Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2001, pág. 207). 117 É o entendimento de Gordillo, ao comentar que a decisão do funcionário será ilegítima, apesar de não transgredir a norma concreta e expressa, se é irrazoável, se não traz os fundamentos de fato ou de direito que levaram àquela decisão ou ainda quando a medida for desproporcional ou excessiva aos fins almejados pela Lei ( Princípios Gerais de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais, ( trad. Marco Aurélio Grecco, 1977 ). 118 Wallace Paiva Martins Júnior traz interessante enfoque para o princípio da motivação, que classifica como sendo subprincípio do princípio maior que seria o da transparência administrativa: “A ampla e efetiva publicidade da atuação administrativa, a motivação de seus atos e a participação do administrado na condução dos negócios públicos são subprincípios ( e instrumentos ) do princípio da transparência. Concretizado por estes instrumentos, o princípio em foco é o fato de legitimidade do exercício do poder, instrumento de controle dos princípios jurídicos administrativos e de proteção dos direitos fundamentais dos administrados. Por isso, mais adequado afirmar a pluralidade de funções do princípio da transparência administrativa: democracia, ética, legitimidade, juridicização, conhecimento público, crítica, validade ou eficiência jurídica, defesa dos administrados e respeito aos seus direitos fundamentais, controle e fiscalização, convencimento, consenso, adesão, bom funcionamento, previsibilidade e segurança jurídica”. ( Transparência Administrativa. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, pág. 33. )

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Lúcia Valle Figueiredo119, por exemplo, fundamenta o princípio

da motivação dos atos administrativos no art. 93, X da Constituição Federal,

argumentando que se o Poder Judiciário, ao exercer a função administrativa, atividade

que lhe é atípica, fica obrigado a motivar seus atos, com muito mais razão o exercício

típico da função administrativa exigiria o implemento desse mesmo requisito.

De nossa parte, achamos de todo oportuno analisar, ainda que

em breves traços, o princípio da motivação como corolário lógico e necessário da

garantia constitucional de inafastabilidade do controle jurisdicional dos atos

administrativos.

Temos que o direito a uma decisão motivada encontra

fundamento constitucional no princípio do substantial due process.

A cláusula do devido processo legal ganhou significação

substantiva120 na Constituição Americana, especialmente pela interpretação que a

Suprema Corte Americana passou a construir a partir das Emendas V121 e XIV122/123.

119 Curso de Direito Administrativo, pág. 52. 120Paulo Fernando Silveira na obra Devido Processo Legal, Belo Horizonte: Del Rey, 2001, 3ª edição, anota que “Embora o devido processo seja um ancião de quase oito séculos, a força sobrepujante da carga jurídica que carregam as quatro palavras que enfeixam o princípio ( due process of law) demonstrou um poder libertador tão expressivo que hoje, pode-se dizer, com segurança, que todo direito individual se acha tocado por ele. Ao longo dos séculos, essa cláusula foi imantando os demais direitos fundamentais, interagindo com tal força que passou a vinculá-los todos à sua observância prévia. Até mesmo a outra coluna mestra das garantias individuais - o direito de igualdade - ficou protegida, também, pelo devido processo legal. Portanto, não se restringe mais a cláusula apenas à vida, liberdade e propriedade. Sob o seu manto protetor abriga todos direitos outorgados pela Carta Política, como o da privacidade, da informação, do julgamento justo e imparcial, da fundamentação das decisões, da mais ampla defesa, do contraditório, do direito de o réu falar por último etc”. ( grifei ). 121 “Nenhuma pessoa será detida para responder por crime capital ou hediondo, a menos que apresentada ou indiciada por um grande Júri, exceto em casos levantados perante as forças terrestres e navais, ou milícia, quando em efetivo serviço em tempo de guerra ou perigo público; nem será pessoa alguma sujeita por duas vezes à mesma ofensa, colocando em risco sua vida ou parte do corpo; nem será compelida em qualquer caso criminal a ser testemunha contra si mesmo, nem será privada da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo; nem a propriedade privada será tomada para uso público sem justa compensação” ( Paulo Fernando Silveira. Devido Processo Legal. pág. 27/28 ). 122 “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem. Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis” ( Paulo Fernando Silveira. Devido Processo Legal, pág. 28)

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Charles D. Cole124 aponta que o devido processo substantivo é

uma teoria pela qual o governo é limitado quanto ao modo pelo qual ele pode afetar a

vida, a liberdade ou o patrimônio de alguém125, estabelecendo esse conceito limitações

substantivas à autoridade, de forma que ao Poder Judiciário assiste o direito de rever

com independência a legislação para determinar se o governo usou os meios

apropriados, ou se a legislação guarda uma relação de razoabilidade com um fim

governamental legítimo.

Sob esse mesmo fundamento é que o Poder Judiciário se acha

investido na competência de rever os atos do outro poder da República, que é o Poder

Executivo, verificando se os atos deste emanados também guardam uma relação de

compatibilidade com o direito positivo e com a Constituição.

A motivação das decisões administrativas é a garantia

decorrente do devido processo legal substantivo que tornará efetiva a possibilidade do

controle da legalidade – e aqui dizemos legalidade em seu sentido mais amplo - dos atos

administrativos pelo Poder Judiciário.

A partir da análise da motivação do ato administrativo é que

será exercido o judicial review, afastando-se do mundo jurídico os atos não editados

segundo à Lei e ao Direito.

123 Comentando a Emenda XIV da Constituição Americana, o Ministro Adhemar Ferreira Maciel escreveu: “Se observarmos bem, veremos que a Emenda n. XIV, sobretudo pela proximidade da cláusula da ‘igual proteção da lei’ ( equal protection of the laws ), fornece inteligência mais abrangente ao due process do que aquela da Emenda n. V. Em Bolling v. Sharpe , por exemplo, a Suprema Corte disse: ‘A quinta Emenda, que é aplicável ao Distrito de Colúmbia, não contém, a cláusula da igual proteção tal como a décima quarta Emenda, a qual se aplica somente ao Estados. Mas os conceitos de igual proteção e devido processo, ambos provindos do ideal americano de retidão ( fairness ) não são mutuamente excludentes. A (cláusula ) equal protection of the laws é uma salvaguarda mais explícita de proibição de iniquidade ( unfairness ) do que a ( cláusula ) due process of law”. ( in Due process of law. Revista Scientia Jurídica, Universidade do Minho, Portugal, 1994, p. 371-372- apud Paulo Fernando Silveira, Devido Processo Legal, pág. 29 ) 124 O devido processo legal na cultura jurídica dos Estados Unidos: passado, presente e futuro. Revista AJUFE nº 56. 125 Para Nélson Nery, “tudo o que disser respeito à tutela da vida, liberdade ou propriedade está sob a proteção do “due process clause”. Princípios do processo civil na Constituição Federal, 4a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

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Como ensina Marcelo Caetano126: A fundamentação exerce, no acto resultante do exercício de poderes, o

mesmo papel que na sentença: mostra como os factos provados

justificam a aplicação de certa norma e a dedução de determinada

conclusão, esclarecendo o objeto do acto(...) Os motivos são as razões

por que órgão administrativo tomou certa decisão, e podem consistir

em fundamentos de direito ou em factos. Em qualquer caso, a

fundamentação deve ser congruente e exacta. Congruente, isto é, os

motivos devem aparecer como premissas donde se extraia logicamente

a conclusão, que é a decisão. Se há contradição entre a fundamentação

e a decisão, essa incongruência não pode deixar de influir na validade

do acto (...)

Apenas tendo conhecimento dos fundamentos de fato e de

direito que levaram à prática do ato é que o Estado-Juiz pode verificar se o Estado-

Administrador conteve-se nos limites de sua competência ou se a transbordou, editando

atos que não guardam relação de compatibilidade vertical com as normas que lhes

servem de fundamento de validade.

Nesse sentido, é interessante destacar que a tendência na

doutrina mais moderna não é a de limitar de qualquer forma a exigência de motivação

dos atos administrativos, antes é de estendê-la ao exercício da própria função legislativa.

Discorrendo sobre os problemas do controle no exercício da

função legislativa, Susan Rose-Ackerman, Professora de Direito e Economia Política da

Universidade de Yale, defende a necessidade de que o exame de legitimidade das leis

aprovadas pelo Congresso Americano seja feito pela exigência do que denominou

consistência legislativa, que teria dois aspectos: a) consistência interna, pelas quais os

juízes verificariam se os meios estabelecidos na letra da lei promovem de forma

razoável seus fins declarados; b) consistência orçamentária, pela qual o Judiciário

poderia verificar se as alocações orçamentárias permitem a implementação das 126 Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1a edição, 1970, pág. 435.

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finalidades legais. E é na consistência interna da lei que ganha destaque a importância

da motivação do ato legislativo:

O primeiro tipo de consistência – chamemo-la de ‘consistência

interna’ – teria seu cumprimento exigido através da insistência judicial

para que as leis contenham exposição de motivos que poderiam ser

consideradas seriamente pelos tribunais como reflexo da intenção

legislativa. Estas afirmações poderiam expressar propósitos diversos,

mas, na medida em que estes propósitos conflitassem, o material

introdutório deveria dar alguma orientação no que diz respeito ao modo

como as escolhas deveriam ser feitas. Qualquer coisa no texto legal que

seja inconsistente com a exposição de motivos que antecede a lei seria

invalidada pelos tribunais. Legisladores seriam forçados a articular

objetivos e a mantê-los na elaboração de dispositivos específicos. Os

tribunais não se envolveriam com a análise de políticas públicas durante

o controle judicial, mas insistiriam para que os legisladores tanto

articulassem uma série de propósitos quanto considerassem a relação

entre meios e fins127.

Afinal, como ensina Lúcia Valle Figueiredo128, citando

Bentham: good decisions are such decisions for which good reasons can be given (boas

decisões são aquelas decisões para as quais boas razões podem ser dadas).

127Análise Econômica progressista do Direito – E o novo Direito Administrativo in Regulação Econômica e Democracia – O Debate Norte-americano. Paulos Mattos ( Coordenador ). São Paulo: Editora 34, 2004. pág. 253 ). Entre nós, é sabido que, a mais das vezes, no desenvolvimento de um processo legislativo, emendas que não guardam qualquer relação de coerência com o projeto de lei em discussão costumam nele serem, de carona, introduzidas evitando-se, dessa forma, que sofram o debate político natural em qualquer criação normativa. Mais grave ainda era o problema das Medidas Provisórias quando eram reeditadas ad nauseam e a cada nova reedição traziam uma novidade normativa sem qualquer relação de causalidade com as razões de urgência e necessidade que fundamentaram, ao menos em tese, à edição da medida provisória originária. A exigência de motivação desses atos legislativos, como defende a jurista americana, parece realmente consubstanciar-se em um importante instrumento de confrontação de suas legitimidades. 128 Curso de Direito Administrativo, pág. 52.

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2 – Motivação: requisito para o controle da proporcionalidade e da razoabilidade no

exame da discricionariedade administrativa

Como vimos, é crescente na doutrina a importância emprestada

aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade quando se coloca em discussão o

problema do controle jurisdicional da atividade administrativa discricionária.

Também na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

encontramos vários exemplos de decisões em que o controle do poder estatal é feito a

partir dos critérios da razoabilidade e proporcionalidade. Conquanto os exemplos que

serão citados refiram-se ao controle da constitucionalidade de lei, temos que constituem

precedentes importantes para o estudo do reexame judicial da própria discricionariedade

administrativa, pois também enfocam a matéria sob a perspectiva de que a liberdade do

exercício da função legislativa (e, portanto, também se aplicando à função

administrativa ), deve obedecer aos confins constitucionais e legais.

Pela riqueza na motivação do voto do relator, vale destacar o

decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2551-1, em que se impugnava a

criação, no Estado de Minas Gerais, de taxa de expediente de R$ 10,00 por veículo, a

ser cobrada das sociedades seguradoras beneficiadas quando da emissão das guias de

arrecadação do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de vias

Terrestres - DPVAT ou quando do fornecimento dos dados cadastrais dos proprietários

de veículos automotores para fins de cobrança do DPVAT . O Min. Celso de Mello,

conquanto indeferindo a medida liminar pela ausência do requisito do periculm in mora,

manifestou-se pela plausibilidade jurídica da tese alegada pela parte autora,

fundamentando-se, entre outros motivos, no princípio da razoabilidade e

proporcionalidade, nos seguintes termos:

De outro lado, o Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade. Como se sabe, a exigência de razoabilidade traduz limitação material à ação

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normativa do Poder Legislativo. O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com fundamento no art. 5º, LV, da Carta Política, inclui-se, por isso mesmo, no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do Poder Público. Esse entendimento é prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade. Também sob esse outro aspecto, entendo que a tese exposta pelas autoras revela-se juridicamente plausível, especialmente se se considerar a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, que já assentou, a propósito do tema, o entendimento de que transgride o postulado do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), analisado em sua dimensão material (substantive due process of law), a regra legal que veicula, em seu conteúdo, prescrição normativa qualificada pela nota da irrazoabilidade. Coloca-se em evidência, neste ponto, o tema concernente ao princípio da proporcionalidade, que se qualifica - enquanto coeficiente de aferição da razoabilidade dos atos estatais (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, "Curso de Direito Administrativo", p. 56/57, itens ns. 18/19, 4ª ed., 1993, Malheiros; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, "Curso de Direito Administrativo", p. 46, item n. 3.3, 2ª ed., 1995, Malheiros) - como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público. Essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado - inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa - adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do due process of law (RAQUEL DENIZE STUMM, "Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro", p. 159/170, 1995, Livraria do Advogado Editora; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Direitos Humanos Fundamentais", p. 111/112, item n. 14, 1995, Saraiva; PAULO BONAVIDES, "Curso de Direito Constitucional", p. 352/355, item n. 11, 4ª ed., 1993, Malheiros). Como precedentemente enfatizado, o princípio da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A validade das manifestações do Estado, analisadas estas em função de seu conteúdo intrínseco - especialmente naquelas hipóteses de imposições restritivas incidentes sobre determinados valores básicos - passa a depender, essencialmente, da observância de determinados requisitos que atuam como verdadeiras limitações materiais à ação normativa do Poder Legislativo. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de conter os excessos do Poder, quando o Estado edita legislação que se revele destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. Daí a advertência de CAIO TÁCITO (RDP 100/11-12), que, ao relembrar a lição pioneira de SANTI ROMANO, destaca que a figura do desvio de poder legislativo impõe o reconhecimento de que, mesmo nas hipóteses de seu discricionário exercício, a atividade legislativa deve desenvolver-se em estrita relação de harmonia com o interesse público. A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas (RTJ 160/140-141, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). É por essa razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal tem prestigiado normas que não se revelam arbitrárias ou irrazoáveis em suas prescrições, ou em suas determinações ou, ainda, em suas limitações: "A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, ajusta-se ao princípio do devido processo legal, analisado na perspectiva de sua projeção material (substantive due process of law ). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador." (RTJ 176/578-579, Rel. Min. CELSO DE MELLO) Daí a advertência de SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO ("Curso de Direito Tributário Brasileiro", p. 253, item n. 6.28, 1999,

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Forense), cujo magistério - ao ressaltar que a vedação do confisco atua como limitação constitucional ao poder de graduar a tributação - enfatiza que, em sede de estrita fiscalidade, "o princípio do não-confisco tem sido utilizado também para fixar padrões ou patamares de tributação tidos por suportáveis (...) ao sabor das conjunturas mais ou menos adversas que estejam se passando. Neste sentido, o princípio do não-confisco se nos parece mais com um princípio da razoabilidade da tributação...". Cabe invocar, neste ponto, histórico precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 18.331/SP, Rel. Min. OROSIMBO NONATO (RF 145/164): "O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade. É um poder, cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do 'détournement de pouvoir'. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei Maior pode se acender não somente considerando a letra, o texto, como, também, e principalmente, o espírito e o dispositivo invocado. - O imposto, ainda que imodesto, é exigível, a não ser que aniquile a atividade particular." (grifei) Não obstante as razões expostas, que evidenciam, pelo menos em juízo preliminar, a plausibilidade jurídica da presente argüição de inconstitucionalidade – o que me levaria a acolher a postulação cautelar deduzida pelas autoras -, entendo não se revelar possível o deferimento desse pleito, considerada a ausência, na espécie, do requisito concernente ao periculum in mora (...).”

Também no Superior Tribunal de Justiça podem ser

encontrados precedentes que condicionam o exercício da discricionariedade

administrativa aos limites da razoabilidade e da proporcionalidade129.

Confira-se:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL - MILITAR - SARGENTO DO QUADRO COMPLEMENTAR DA AERONÁUTICA - INGRESSO E PROMOÇÃO NO QUADRO REGULAR DO CORPO DE PESSOAL GRADUADO - ESTÁGIO PROBATÓRIO NÃO CONVOCADO - CONDIÇÃO "SINE QUA NON" - APLICAÇÃO DO ART. 49 DO DECRETO Nº 68.951/71 - RECURSO ESPECIAL - LIMITAÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE - MORALIDADE PÚBLICA, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE.

129 Importante observar que o Superior Tribunal de Justiça, por sua terceira Seção, no julgamento do MS 7.861 fixou o entendimento de que o controle do ato administrativo pelas lentes da razoabilidade e proporcionalidade só poder dizer respeito à própria legalidade do ato impugnado, ficando vedado o exame de seu mérito. Embora essa orientação venha sendo flexibilizada, transcreve-se a ementa do acórdão em questão: MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. DEMISSÃO. IMPROBIDADE. PROCESSO DISCIPLINAR. REGULARIDADE. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS ADMINISTRATIVA E PENAL (ARTS. 125 E 126 DA LEI 8.112/90). PRESCINDIBILIDADE DE SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA.DISTINÇÃO ENTRE ESTABILIDADE E VITALICIEDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. (...) IV - A aplicação do princípio da proporcionalidade, no âmbito do Poder Judiciário, circunscreve-se ao campo da legalidade do ato demissionário, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo, a fim de aferir o grau de conveniência e oportunidade da medida, especialmente quando há perfeita sintonia entre a prova pré-constituída juntada aos autos e o ato administrativo. V- Segurança denegada. STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Classe: MS - MANDADO DE SEGURANÇA - 7861Processo: 200101018987 UF: DF Órgão Julgador: TERCEIRA SEÇÃO Data da decisão: 11/09/2002 Documento: STJ000453669 Fonte DJ DATA:07/10/2002 PÁGINA:169 Relator(a) GILSON DIPP

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1. A discricionariedade atribuída ao Administrador deve ser usada com parcimônia e de acordo com os princípios da moralidade pública, da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de desvirtuamento. 2. As razões para a não convocação de estágio probatório, que é condição indispensável ao acesso dos terceiros sargentos do quadro complementar da Aeronáutica ao quadro regular, devem ser aptas a demonstrar o interesse público. 3. Decisões desse quilate não podem ser imotivadas. Mesmo o ato decorrente do exercício do poder discricionário do administrador deve ser fundamentado, sob pena de invalidade. 4. A diferença entre atos oriundos do poder vinculado e do poder discricionário está na possibilidade de escolha, inobstante, ambos tenham de ser fundamentados. O que é discricionário é o poder do administrador. O ato administrativo é sempre vinculado, sob pena de invalidade. 5. Recurso conhecido e provido. RESP 79761 / DF ; RECURSO ESPECIAL 1995/0059967-8 DJ DATA:09/06/1997 PG:25574RSTJ VOL.:00097 PG:00404 MIN. ANSELMO SANTIAGO29/04/1997 T6 - SEXTA TURMA

Ou ainda: ADMINISTRATIVO. AÇÃO ORDINÁRIA. IMPUGNAÇÃO DE MULTA. ART. 630,§ 5º DA CLT. TRANSPORTE DOS FISCAIS DO TRABALHO. PASSE LIVRE. LINHA SELETIVA. DISCRICIONARIEDADE DO ATO ADMINISTRATIVO. CONTROLE. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE DO ATO. 1. Ação ordinária ajuizada pela recorrente, em que impugnou a multa aplicada por violação ao art. 630, § 5º da CLT, porquanto, no seu entender, é obrigada a conceder a gratuidade legal apenas no tocante ao transporte comum, não se estendendo o referido benefício ao transporte seletivo, que conduz um número menor de passageiros, dispondo de comodidades como ar condicionado, televisão, som ambiente, que o serviço comum não possui, tendo acentuado, ainda, que os passageiros optantes pelo transporte seletivo, pagam uma tarifa maior em razão do diferencial do serviço prestado. 2. A atuação da Administração Pública, deve seguir os parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade, que censuram o ato administrativo que não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei almeja alcançar. 3. A razoabilidade encontra ressonância na ajustabilidade da providência administrativa consoante o consenso social acerca do que é usual e sensato. Razoável é conceito que se infere a contrario sensu; vale dizer, escapa à razoabilidade "aquilo que não pode ser". A proporcionalidade, como uma das facetas da razoabilidade revela que nem todos os meios justificam os fins. Os meios conducentes à consecução das finalidades, quando exorbitantes, superam a proporcionalidade, porquanto medidas imoderadas em confronto com o resultado almejado.

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4. É excepcional a intervenção estatal no domínio econômico, máxime no sistema de livre iniciativa. Sob esse pálio, a intervenção há de se pautar pela razoabilidade, que in casu, recomenda que a concessão de passe livre aos fiscais do trabalho mantenha a finalidade de viabilizar o bom andamento do seu serviço à luz do princípio da menor onerosidade possível. Havendo linhas regulares, com o mesmo itinerário, não há razoabilidade em que os fiscais utilizem-se gratuitamente de um serviço prestado seletivamente. O fato de a lei conceder a esses servidores a possibilidade de deslocamento, não significa que deva ser no meio de transporte mais oneroso. 5. Recurso especial conhecido e improvido. RESP 443310/RS ; RECURSO ESPECIAL 2002/0077874-4 DJ DATA:03/11/2003 PG:00249 MIN. LUIZ FUX (1122) 21/10/2003 – PRIMEIRA TURMA.

Se é certo que os tribunais superiores vêm aplicando os

princípios da razoabilidade e proporcionalidade no controle da atividade administrativa,

não nos parece, por outro lado, que essas mesmas decisões tenham se guiado por

critérios objetivos, singulares, que pudessem ser claramente relacionados em um estudo

doutrinário.

A lição de Weida Zancaner130, ao analisar o problema da

razoabilidade, em muito contribui, sob o ponto de vista da estática da norma, para o

estabelecimento de alguns pressupostos para a aferição judicial da legitimidade da

atividade administrativa discricionária, ao expor que:

... pode-se concluir, que o princípio da razoabilidade determina a

coerência do sistema e que a falta de coerência, de racionalidade, de

qualquer lei, ato administrativo ou decisão jurisdicional gera vício de

legalidade, pois o Direito é feito por seres e para seres racionais, para

ser aplicado em um determinado espaço e em uma determinada época.

Através da análise da razoabilidade também se verifica se os vetores

que informam um determinado sistema jurídico foram ou não

obedecidos. A desobediência a esses vetores macula de ilegalidade o ato

expedido quer em sede administrativa, legislativa ou jurisdicional.

Portanto, a razoabilidade não se restringe apenas a mera análise para

conferir se um ato, uma lei ou uma sentença foram editados, ou não, de

130 Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do Estado Social e Democrático de Direito. Revista Diálogo Jurídico. Ano 1 – nº. 9.

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forma coerente com as normas que os presidiram. O princípio da

razoabilidade compreende, além da análise da coerência dos atos

jurídicos, a verificação de se esses atos foram ou não editados com

reverência a todos os princípios e normas componentes do sistema

jurídico a que pertencem, isto é, se esses atos obedecem ao esquema de

prioridades adotado pelo próprio sistema. Em suma: um ato não é

razoável quando não existiram os fatos em que se embasou; quando os

fatos, embora existentes, não guardam relação lógica com a medida

tomada; quando mesmo existente alguma relação lógica, não há a

adequada proporção entre uns e outros; quando se assentou em

argumentos ou em premissas, explicitas ou implícitas que não autorizam

do ponto de vista lógico, a conclusão deles extraída.

E como esses critérios seriam aplicados na dinâmica da norma?

A mesma autora, ao exemplificar em um caso concreto o seu

posicionamento doutrinário131, embora sustente que o exame da razoabilidade cinge-se

ao problema da legalidade do ato administrativo, contudo, parece admitir que o controle

jurisdicional, sob esse enfoque específico, adentre ao próprio mérito de uma decisão

administrativa, de cunho claramente político, qual seja, a de, ante a um quadro de

escassez de recursos públicos, por exemplo, dar prioridade ao equilíbrio fiscal em

detrimento ao investimento no desenvolvimento econômico e em políticas sociais.

131 “Para aclarar o que dissemos através do exame de situações concretas, visualizemos algumas hipóteses em face do sistema constitucional brasileiro. Não pode ser considerada razoável política econômica recessiva, em razão do disposto no artigo 3°, III da Constituição que "in verbis" determina: Art. 3 - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Se isso não bastasse, dispõe o artigo 170, inciso VII e VIII: "ART - 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego". Ora, qualquer administrador que tivesse alguma noção da importância dos princípios fundamentais do direito público ou algum acatamento aos ditames constitucionais, por certo detectaria de imediato a invalidade manifesta que eiva de forma insanável política econômica que prestigie as desigualdades sociais e regionais e que reduza a possibilidade de emprego, lançando a população na miséria e aviltando a dignidade do ser humano. Aliás, o princípio da razoabilidade basta para demonstrar que políticas recessivas não podem ser validadas pelo nosso sistema jurídico positivo”. (Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional do Estado Social e Democrático de Direito. Revista Diálogo Jurídico. nº. 9.)

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Não se está aqui se dizendo que o controle judicial sobre as

políticas públicas, por exemplo, seria indesejado ou mesmo impossível132 em nosso

quadro jurídico.

132 Sobre o tema vale a menção do voto do Min. Celso Mello no julgamento da ADF 45 ( Informativo STF n º 345 ), do qual se transcreve a seguinte parte: “Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de fazer instaurar situação de prejudicialidade da presente argüição de descumprimento de preceito fundamental, não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República. Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional: "DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO. - O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental." (RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política "não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à "reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS ("A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais", p. 245-246, 2002, Renovar): "Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível." (grifei) Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da

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Apenas se nos parece que, ao adentrar nesse tipo de controle, o

Poder Judiciário passa a fazer um juízo de certo modo valorativo sobre a legitimidade

da aplicação do direito no caso concreto.

A razoabilidade e a proporcionalidade permitem, por

conseguinte, que o julgador venha a examinar a legitimidade de um ato administrativo

sob um enfoque muito mais valorativo que cognitivo, o que, convenhamos, implica

grande transformação na própria concepção do controle jurisdicional sobre a atividade

administrativa.

É certo que há, na doutrina mais autorizada, grande debate

teórico quanto à possibilidade e o risco de o Judiciário, a partir da chamada Teoria dos

Princípios, desenvolvida principalmente pelos juristas Ronald Dworkin e Robert Alexy,

adotar decisões axiológicas substituindo-se ao legislador e ao administrador.

"reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. Extremamente pertinentes, a tal propósito, as observações de ANDREAS JOACHIM KRELL ("Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha", p. 22-23, 2002, Fabris): "A constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, o chamado 'livre espaço de conformação' (...). Num sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante as alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos fatores econômicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos meios de efetivação desses direitos cabe, principalmente, aos governos e parlamentos. Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional. No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais. A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes (...). Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais."

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De forma extremamente resumida, podemos dizer que

Dworkin, em trabalho em que buscava “lançar um ataque geral ao positivismo”, deu

grande contribuição ao estudo dos princípios ao distingui-los logicamente das regras.

Para Dworkin, as regras são aplicadas do modo “tudo ou nada”, é dizer, ou a regra é

válida e a sua conseqüência normativa deve ser aceita, ou a regra não é válida, não

gerando efeitos, enquanto os princípios aplicam-se ao caso concreto de acordo com a

dimensão de peso ou de importância que ostentem, de sorte que na hipótese de colisão

entre dois ou mais princípios, aquele com maior peso relativo prevalece sobre os demais

sem que estes, contudo, percam a sua validade133.

.

A partir dos estudos de Dworkin, Alexy aprofundou a teoria

sobre os princípios distinguido-os das regras em um modelo parecido ao elaborado pelo

autor norte-americano: enquanto os conflitos de regras ( normas binárias que se aplicam

segundo um esquema lógico, sim-ou-não ) se solucionam no plano da validade, os

conflitos – ou colisões - entre princípios ( que se aplicam, diferentemente das regras, em

diversidade de graus ) resolvem-se no plano dos valores, estabelecendo-se entre eles

uma relação de precendência.

Comentando um dos exemplos de colisão de princípios mais

citados pela doutrina, o famoso Caso Lebach, decido pelo Tribunal Constitucional

Federal Alemão, caso em que se chocavam os princípios de liberdade de imprensa e o

princípio da dignidade humana e da intimidade, e no qual acabou sendo proibida a

133“A diferença entre princípios jurídicos e regras é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece dever ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão(...) Os princípios possuem uma dimensão que as regras não tem – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se inter-cruzam ( por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um (...) Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra grã promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes ( Nosso sistema jurídico [ norte-americano ] utiliza essas duas técnicas)”. Levando os Direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. Martins Fontes: São Paulo, 2002, págs. 39, 42 e 43.

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exibição de um documentário sobre o assassinato de quatro soldados em que se

mostrariam imagens dos autores do crime pelo fato de um deles já ter cumprido a pena,

sob o fundamento de que a exibição desse documentário sobre consubstanciar repetição

de um fato que não corresponderia aos interesses atuais de informação, poderia colocar

em risco a ressocialização do apenado, Alexy explica que a decisão judicial privilegiou

a prevalência de um princípio (dignidade humana e intimidade) em face do outro

(liberdade de imprensa ) levando em consideração as circunstâncias do caso concreto:

Tomados em si mesmos, os dois princípios conduzem a uma

contradição. Porém, isto significa que cada um deles limita a

possibilidade jurídica de cumprimento do outro. Esta situação não é

solucionada declarando que um destes princípios não é válido e

eliminando-o do sistema jurídico. Tampouco se a soluciona

introduzindo uma exceção em um dos princípios, de forma tal que em

todos os casos futuros este princípio tenha que ser considerado como

uma regra, satisfeita ou não. A solução da colisão consiste, isto sim, em

que, tendo em conta as circunstâncias do caso, se estabelece entre os

princípios uma relação de precedência condicionada. A determinação da

relação de precedência condicionada consiste em que, tomando em

conta o caso, se indicam as condições sob as quais um princípio precede

ao outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser

solucionada inversamente 134.

A principal crítica à teoria dos princípios vem assentada na

premissa de que, por meio dela, as decisões judiciais poderiam se basear em critérios

morais, pois implicaria a redução pura e simples dos princípios a valores, levando a um

inaceitável decisionismo judicial, destacando Habermas que :

Ao deixar-se conduzir pela idéia de realização de valores materiais,

dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal

constitucional transforma-se numa instância autoritária. No caso de uma

colisão, todas as razões podem assumir o caráter de argumentos de 134 Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1989. apud Marcos Maselli Gouvêa. O controle judicial das omissões administrativas. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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colocação de objetivos, o que faz ruir a viga mesma introduzida no

discurso jurídico pela compreensão deontológica de normas e princípios

de direito. (...) Na medida que um tribunal constitucional adota a

doutrina da ordem de valores e a toma como base de sua prática de

decisão, cresce o perigo dos juízos irracionais, porque, nestes casos, os

argumentos funcionalistas prevalecem sobre os normativos ”135.

A importância do tema não foi esquecida por Gilmar Mendes

Ferreira que, ao escrever sobre o princípio da proporcionalidade observou: Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar

da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da

intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador

(proporcionalidade em sentido estrito). É possível que a própria ordem

constitucional forneça um indicador sobre os critérios de avaliação ou

de ponderação que devem ser adotados. Pieroth e Schlink advertem,

porém, que, nem sempre, a doutrina e a jurisprudência se contentam

com essas indicações fornecidas pela Lei Fundamental, incorrendo no

risco ou na tentação de substituir a decisão legislativa pela avaliação

subjetiva do juiz.136

Não é nosso objetivo aqui aprofundar essa discussão

doutrinária, principalmente porque tem ela maior aplicabilidade no plano de controle de

constitucionalidade das normas e da omissão administrativa na implementação dos

chamados direitos prestacionais137 , tema não essencial ao estudo do controle do silêncio

administrativo na forma que nos propusemos desenvolver.

135 Direito e Democracia – entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, 2 vols. apud Marcos Maselli Gouvêa. O controle judicial das omissões administrativas. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 136 O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Revista Diálogo Jurídico. Ano I – Vol. I nº. 5 137 No sentido em que são definidos por Alexy, para quem “Os direitos a prestações em sentido estrito são direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que – se o indivíduo possuísse meios financeiros suficientes e se encontrasse no mercado uma oferta suficiente – poderia obtê-lo também de particulares. Quando se fala em direitos sociais fundamentais, por exemplo, do direito à previdência, ao trabalho, à moradia e à educação, se faz referência primordialmente a direitos a prestações em sentido estrito”. Teoria de los Derechos Fundamentales, pág. 463-4 apud Marcos Maselli Gouvêa. O Controle Judicial das Omissões Administrativas. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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Todavia, necessário se fazia à menção a essa controvérsia

doutrinária porquanto pretendemos precisar os limites do controle jurisdicional dessa

omissão administrativa quando verificada no exercício de uma competência

discricionária.

A grande verdade é que o controle judicial dos atos do poder

público à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade reclama, para

configurar-se legítima e conforme ao direito, à observância de alguns parâmetros

objetivos que estão sendo definidos pela obra da jurisprudência.

De fato. Embora nosso sistema jurídico não adote a regra do

precedente com a força que se lhe atribuiu no sistema do commom law, no caso

específico da utilização desses dois princípios, parece no mínimo recomendável que a

decisão controladora de um determinado ato, obviamente valoradas as circunstâncias

particulares do caso em exame, se valha, também, de algum critério que já venha sendo

utilizado em decisões judiciais, sob pena de os contornos do razoável ou o proporcional

serem desenhados de forma tão ampla que em suas molduras tudo neles se possa

albergar.

Da mesma maneira, o problema de se saber se o Judiciário, ao

decidir uma dada questão, está ou não se substituindo à vontade administrativa vem

reforçar nosso entendimento quanto à imprescindibilidade da motivação dos atos

administrativos.

Com efeito. Temos que também por essa razão, a motivação a

ser expendida quando da emissão de um ato administrativo ganha importância

extremada para a própria preservação dos efeitos da decisão discricionária –

obviamente, valorada a partir dos critérios da conveniência e oportunidade pelo

administrador – porquanto, fora de dúvida, constituirá uma barreira objetiva para que,

sob o fundamento de adequá-la a ordem legal, venha o Poder Judiciário simplesmente

substituí-la por uma outra que seja mais consentânea com entendimento do próprio

julgador.

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Em outras palavras, a adequada motivação do ato

administrativo consubstancia-se em garantia fundamental para o exercício legítimo da

própria discricionariedade administrativa.

Isso porque a motivação vai permitir ao interessado saber de

onde o administrador saiu, por onde passou e aonde vai chegar com a prática do ato. E

mais: por que quis chegar até esse ponto.

Reforçando o que já dissemos anteriormente, ao dizer de onde

saiu, o administrador estará demonstrando a sua competência para prática desse ato bem

como os fatos que o justificam; dizendo por onde passou, na verdade, o administrador

estará expondo as normas que teve de seguir para editar o ato de forma válida,

explicando como subsumiu os fatos às normas que entendeu a eles serem aplicáveis, e,

ainda, deixando claro aonde vai chegar, estará determinando a finalidade que a prática

daquele ato quis atingir. Finalmente, dizendo o porque da prática do ato, estará

demonstrando que, em face de um interesse ou necessidade pública, aquele ato se

mostrava a melhor solução a ser adotada no caso concreto.

Todas essas informações permitirão o aperfeiçoamento de um

controle efetivo sobre a regularidade da atividade administrativa, de forma a ser

apreciada a legitimidade do ato praticado.

O exame do ato motivado à luz dos princípios da razoabilidade

e proporcionalidade não permitirá – ou ao menos dificultará em muito – que o julgador

simplesmente substitua a vontade do administrador pela sua própria, pois deverá, ao

examinar o iter percorrido para a prática do ato, verificar a relação de pertinência lógica

entre os seus pressupostos justificadores e a finalidade que por meio dele se quer

perseguir.

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Se, ao proceder esse exame, no judicial review verificar-se que

essa relação de causalidade existe e que, ademais, ela atende aos requisitos da

razoabilidade e proporcionalidade, não haverá outra opção senão a de legitimar a

decisão administrativa adotada.

3 - A motivação dos atos administrativos

Estudaremos, agora, como a norma positiva federal estabeleceu

o dever de motivação nas decisões administrativas.

Embora o objeto de nosso trabalho seja o silêncio

administrativo, temos que a análise da norma legal em comento se faz importante

porque vai ilustrar - como veremos, de forma não exaustiva - os tipos de atos que

exigem a motivação como requisito de validade, o que vem ainda mais reforçar a idéia

da impossibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a essa omissão administrativa que

caracteriza o fenômeno aqui estudado.

Por outro lado, não parece fazer sentido, hoje, falar no princípio

da motivação dos atos administrativos sem ter em conta a existência do diploma legal

que disciplina, de forma detalhada, essa exigência, pena de incorrermos naquela

dissociação perigosa que por vezes constatamos existir entre o direito nobre e oficial,

fundado nos mais altos princípios informadores do Estado de Direito, que é tema de

preocupação constante dos grandes debates acadêmicos, e o direito prático, traduzido no

mais das vezes por atos normativos legais e infralegais138.

138 Tratando do problema da dissociação que pode ser constatada entre o Direito doutrinário e o Direito real que efetivamente regula os casos concretos postos a exame, Fábio Konder Comparato observou que “a verdadeira dissociação se apresenta não tanto entre o Direito em geral e a realidade social, mas entre um direito nobre e oficial, o único admitido nas discussões acadêmicas e nos debates doutrinários, e um direito menos qualificado ou de segundo grau, destinado a completar e corrigir o primeiro, e de cuja elaboração e interpretação se incubem exclusivamente os práticos. Teríamos em suma, uma reprodução da velha oposição entre um ‘jus civile’e um ‘jus honorarium’, com a grande diferença que o espírito realista dos prudentes não deixou o estudo e a compreensão do segundo, enquanto a tradição misoneísta dos nossos jurisconsultos continua a condenar às trevas exteriores toda e qualquer

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Pois bem. O art. 50 da Lei 9.784/99 estabelece que os atos

administrativos deverão ser motivados, com a indicação dos fatos e dos fundamentos.

A primeira pergunta que cabe aqui é: no que consiste a

motivação dos atos administrativos?

Antônio Carlos de Araújo Cintra139, escrevendo sobre o tema,

aponta como requisitos da motivação a suficiência, a clareza e a congruência: Assim, em primeiro lugar, é preciso que a motivação indique as

premissas de direito e do fato em que se apóia o ato motivado, com a

menção das normas legais aplicadas, sua interpretação e,

eventualmente, a razão da não aplicação de outras; e com referência

aos fatos, inclusive a avaliação das provas examinadas pelo agente

público, a seu respeito. Em segundo lugar, o agente público deve

justificar as regras de inferência através das quais passou das

premissas à conclusão (...) Por outro lado, sob o aspecto formal, a

motivação deve ser clara e congruente, a fim de permitir uma afetiva

comunicação com seus destinatários.

Podemos dizer que a doutrina, de forma geral, entende que

motivar o ato é explicar, explicitar ou expor as razões que levaram à prática do ato. Que

razões? Razões de fato e de direito.

É dizer, por motivação, não se pode entender a simples

referência ao dispositivo legal que dá base ao ato praticado. É necessário que com a

motivação, nas palavras de Lúcia Valle Figueiredo140, se conheça o iter percorrido pelo

administrador para chegar à prática do ato.

manifestação jurídica que não se enquadre no seu sistema.”( O indispensável direito econômico. RT 353/14, março de 1965 ). 139Motivo e motivação do Ato Administrativo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, pág. 127/128. 140 Curso de Direito Administrativo, pág. 182.

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A motivação, a nosso entender, para ser válida, deve permitir ao

interessado saber de onde o administrador saiu, por onde passou e aonde vai chegar com

a prática do ato. E mais: por que quis chegar até esse ponto.

Todas essas informações permitirão que haja um controle

efetivo sobre a regularidade da atividade administrativa, possibilitando a aferição da

legitimidade do ato praticado.

3.1 - Os atos que devem ser motivados

O art. 50, em oito incisos, determina quais atos administrativos

deverão ser motivados.

Muito se escreveu acerca da obrigatoriedade da motivação nos

atos administrativos. Havia o entendimento de que a motivação seria obrigatória apenas

quando a lei a exigisse, como também o de que a sua obrigatoriedade estaria relacionada

ao tipo de competência autorizadora da prática do ato.

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello141, por exemplo, ao

comentar o tema, relata a existência de duas correntes:

(...) uma posição entende que os frutos de poderes vinculados não

precisam trazer declaração dos seus motivos, porquanto fácil é a

verificação, para efeito de controle judicial, se o seu objeto é lícito;

enquanto os decorrentes de poderes discricionários necessitam de vir

motivados, a fim de verificar-se, para efeito de controle judicial, se o

ato foi praticado segundo o interesse coletivo em geral, e, ainda, em

conformidade com o interesse coletivo que especifica a sua natureza,

próprio de sua categoria. Já a outra pretende que, em se tratando de

exercício de poderes vinculados, se impõe a motivação do ato, sem o

141 Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1979, pág. 470/471.

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que ele será inválido; ao passo que no caso do exercício de poderes

discricionários, se não constitui exigência legal, é dispensável.

Podemos identificar na teoria dos motivos determinantes,

trazida para a doutrina brasileira por Bilac Pinto, que, de sua vez, a havia estudado na

obra de Gaston Jéze, seu sistematizador142, a origem da doutrina pela obrigatoriedade da

motivação dos atos administrativos. Foi com base naquela teoria que se começou a

defender que, mesmo nos atos discricionários, a validade ficaria condicionada à

existência e regularidade dos motivos acaso fossem eles apresentados quando da prática

do ato.

Entendemos que essa discussão hoje não mais tem lugar, pois

com a edição da Lei nº 9.784/99, não é mais possível, agora, negar a necessidade da

motivação nos atos administrativos.

A Lei nº 9.784/99 ao enumerar os tipos de atos em que a

motivação passou a ser obrigatória, acabou por positivar o entendimento doutrinário

sobre a questão.

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello143, por exemplo, defendia a

necessidade de motivação em alguns atos, dizendo:

Segundo a sua natureza peculiar, devem ser motivados os atos

praticados no exercício de poderes discricionários que; a) limitam a

esfera jurídica do administrado; b) quando recusa pretensões deste; c)

quando revogador de atos anteriores e, em conseqüência, atinge

situações jurídicas dos administrados; d) quando altera precedentes

administrativos; e) quando reforma decisão tomada em nível inferior;

f) quando decide em contrário a pareces técnicos e elementos

142 Diogo Figueiredo Moreira Neto. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 8ª edição, 1989. 143 Princípios Gerais de Direito Administrativo, pág. 527/529.

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constantes do processo administrativo; g) quando determina

comportamentos, como as ordens, por exemplo; h) quando aplica

sanções em decorrência de procedimento administrativo disciplinar e

i) quando emite opiniões, como pareceres.

Observa-se, apenas, que a Lei nº 9.784/99 não restringiu a

necessidade de motivação aos atos praticados no exercício de competência

discricionária.

Embora estejamos com Lucia Valle Figueiredo144 quando afirma

que a motivação é a pedra de toque para o controle da discricionariedade, temos que

todo e qualquer ato, seja vinculado, seja discricionário, deverá ser motivado quando se

subsumir a uma das hipóteses normativas previstas no art. 50.

Em se tratando de atos vinculados, é dizer, quando a lei já define

qual o único comportamento a ser adotado pela administração quando presente um

determinado pressuposto de fato, há o entendimento defendido por Celso Antônio de

que o mais importante é haver ocorrido o motivo em virtude do qual o comportamento

tornou-se obrigatório “passando para segundo plano a questão da motivação” 145.

Sem entrar nessa discussão, apenas ressaltando que as hipóteses

em que o exercício da competência revele-se claramente vinculada são extremamente

difíceis de serem apontadas no direito positivo - não é por outra razão que sempre que

se quer falar em ato vinculado se recorre ao exemplo da aposentadoria compulsória do

funcionário público aos 70 anos - temos que, como a lei não distinguiu, não cabe ao

intérprete - e muito menos ao administrador - valorar o caso concreto, sob esse critério,

para dizer se era ou não obrigatória a motivação.

144 Curso de Direito Administrativo, pág. 219. 145 Curso de Direito Administrativo, pág. 345.

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104

Pode-se notar, ainda, que ao relacionar quais atos devem ser

motivados, a lei brasileira aproximou-se do tratamento dispensado à matéria no direito

espanhol.

Realmente. Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramon

Fernandez146, comentando o art. 43 da Lei de Procedimento Administrativo Espanhola,

ensinam: Serão motivados, com sucinta referência de fatos e fundamentos de

Direito; a) os atos que limitem direitos subjetivos; b) os que resolvam

recurso; c) os que se separem do critério seguido em atuações

precedentes ou de ditame de órgãos consultivos; d) aqueles que devam

sê-lo em virtude de disposições legais; e) os acordos de suspensão de

atos que hajam sido objeto de recurso.

Feitas essas considerações, passemos ao exame da lei.

Deverão ser motivados os atos administrativos que:

I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses.

Partindo-se da premissa de que a obrigatoriedade da motivação

dos atos administrativos consubstancia-se em garantia fundamental do administrado em

face do Estado, garantia essa que permite o controle da regularidade do exercício da

função administrativa, a necessidade da motivação se mostra evidente quando o ato

administrativo, de qualquer forma, negue, limite ou afete interesses ou direito do

particular.

146Curso de Direito Administrativo, pág. 488.

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105

A motivação vai permitir que o particular saiba o porquê de

estar sofrendo aquela interferência estatal em sua esfera de direito e, mais, vai permitir

que, acaso provocado, o Poder Judiciário possa aferir se aquela restrição ao direito

individual se deu em observância estrita ao devido processo legal.

A obrigatoriedade da motivação nessas espécies de atos

administrativos já era defendida na doutrina147 e jurisprudência antes de se tornar uma

dicção legal. Se a motivação era um princípio que se impunha a toda atividade

administrativa, com muito mais razão ela se justificava quando esse ato implicasse

negação, limitação ou afetação da esfera de direitos ou interesses do particular.

O Supremo Tribunal Federal vem entendendo que qualquer ato

da administração que importe em restrição ao direito do particular deve observar a

garantia do devido processo legal148. E, como dissemos, é a motivação que vai tornar

efetiva essa garantia, ao passo que, a partir dela é que o Poder Judiciário poderá valorar

corretamente o caso concreto e, ao exercer o judicial review, afastar qualquer

arbitrariedade ou ilegalidade que esteja a macular o ato.

Da leitura do inciso I, alguma dúvida poderia surgir quanto a

melhor interpretação a ser dada ao verbo afetem. Os dois primeiros verbos utilizados -

147Carlos Ari Sundfeld já falava, em 1985, na obrigatoriedade da motivação dos atos que criassem situações desfavoráveis aos administrados (Motivação dos atos administrativos, pág. 122 ). 148EMENTA: PROCESSO ADMINISTRATIVO - RESTRIÇÃO DE DIREITOS - OBSERVÂNCIA NECESSÁRIA DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DUE PROCESS OF LAW (CF, ART. 5º, LV) - REEXAME DE FATOS E PROVAS, EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA - INADMISSIBILIDADE - RECURSO IMPROVIDO. RESTRIÇÃO DE DIREITOS E GARANTIA DO "DUE PROCESS OF LAW. - O Estado, em tema de punições disciplinares ou de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida estatal - que importe em punição disciplinar ou em limitação de direitos - exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, art. 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. (...) ( grifei ) AI 241201 AgR / SC - SANTA CATARINA AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Publicação: DJ DATA-20-09-2002 PP-00109 EMENT VOL-02083-03 PP-00589 Julgamento: 27/08/2002 - Segunda Turma.

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106

neguem ou limitem – têm conteúdo determinado, traduzindo um sentido claramente de

prejudicialidade ao interesse ou direito do particular alcançado pelo ato. O verbo afetar,

contudo, pode significar tanto “lesar” como “concernir, dizer respeito a”.

Comentando o referido artigo, Elke Mendes Cunha defende que

ao verbo em questão deveria ser dada a interpretação de dizer respeito, interessar,

argumentando que ao se ampliar o dever de motivar, melhor estar-se-ia resguardando o

Estado Democrático de Direito149.

Somos do mesmo entendimento que, ao princípio da motivação,

deva ser dado o mais amplo conteúdo normativo vinculador da atividade administrativa,

pois, como já dissemos, nele vemos um dos instrumentos viabilizadores da efetividade

da garantia do judicial review. Todavia, no inciso em comento, temos que o sentido

exato do verbo afetar seria o de lesar interesses ou direitos, isso porque essa

significação guardaria uma relação lógica com os outros dois verbos - negar ou limitar

– que foram previamente utilizados pela norma.

Demais, se quisesse a lei dizer que todos os atos administrativos

que digam respeito aos particulares deveriam ser motivados, poderia ter parado por aí

mesmo, de forma que seria despicienda qualquer outra enumeração, pois todas as

demais hipóteses aventadas traduzem-se em atos administrativos que, sempre, vão dizer

respeito a interesse ou direito de um particular.

II - imponham ou agravem deveres, encargo ou sanções.

A decisão que imponha ou agrave deveres, encargos ou sanções,

ainda com mais razão, deverá ser motivada.

149 O princípio da motivação e a Lei 9.784/99 in Ato Administrativo e o Devido Processo Legal.Coordenação Lucia Valle Figueiredo, São Paulo: Max Limonad, 2001, pág. 43.

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107

A atuação do Estado sob a esfera de direito individual só é

aceitável quando e se demonstrado que ela era imprescindível para a manutenção de um

bem maior, que é o interesse público.

O Estado tem função instrumental, pois é por meio dele que o

indivíduo busca a sua realização enquanto pessoa humana.

Desta forma, a atuação estatal que vá contra a expectativa

natural do indivíduo, implicando restrição ao seu direito e não se traduzindo em um

instrumento de viabilização de seus anseios, deverá ser motivada, pois é só através

dessa motivação que se poderá perquirir a existência do pressuposto de fato que autorize

a imposição ou o agravamento de um dever, encargo ou sanção e a observância aos

demais princípios limitadores desse comportamento estatal, dos quais podemos fazer

referência à legalidade ( a cominação deve estar prevista em lei ), à razoabilidade e a

proporcionalidade ( no caso concreto, aquela cominação se mostra como sendo a

adequada para a recomposição da ordem pública150 ) e ao devido processo legal (a

cominação foi imposta ou agravada no bojo de um processo administrativo em que

todas as garantias individuais, como o contraditório, a ampla defesa etc, foram

observadas ).

Temos que, afora os princípios que naturalmente informam a

administração pública, quando o Estado pretende, por meio de sua atuação, impor ao

particular uma cominação que tenha natureza de pena, entendida esta como sanção pelo

descumprimento de um dever legal, no âmbito do processo administrativo iniciado para

a formação dessa vontade, deverá também ser observada a aplicação dos princípios

próprios do direito material e processual penal.

150 Essa obrigação também encontra assento no art. 2º, VI do mesmo diploma legal: VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.

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108

De fato, se as cominações impostas ao particular têm natureza

de pena, nada mais lógico que toda a principiologia que informa a atividade penal do

Estado, atividade essa tipicamente jurisdicional, também seja aplicada quando essa

atuação tenha se dado nos limites do exercício da função administrativa151.

Se bem pensado, a exigência de que as garantias típicas do

processo penal sejam aplicadas nos processos administrativos sancionadores é medida

que melhor conforma o Estado de Direito, pois no exercício dessa função, o

administrador público não se revestirá das garantias e prerrogativas próprias dos

integrantes do Poder Judiciário, e, nesse sentido, a sua independência e imparcialidade,

a mais das vezes, poderá estar mitigada, condição essa que, por si só, justifica que aos

administrados sejam conferidas as mais amplas garantias que o sistema constitucional

estabeleça.

III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública.

O art. 37, II da Constituição Federal estabelece que a investidura

em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de

provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou

emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para os cargos em

comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.

151Nesse sentido, a lição de Enterría e Fernandez: “Sem hipérbole podemos dizer que o Direito Administrativo sancionador é um direito repressivo pré-beccariano. Tal situação apoiada na ausência de uma regulação legal destas matérias gerais e na simplicidade dos preceitos legais que atribuem poderes sancionadores à administração (...) tem sido corrigida ultimamente por uma firme doutrina jurisprudencial, que figura com justiça entre as melhores reações de nosso contencioso administrativo, embora lhe falta chegar ainda a suas últimas conseqüências. Esta doutrina jurisprudencial tem estabelecido que essa vasta ausência na legislação pode ser interpretada como uma habilitação à Administração para uma aplicação arbitrária e grosseira de suas faculdades repressivas, senão que se trata de uma lacuna que deve integrar-se necessariamente com as técnicas próprias do Direito Penal ordinário”( Curso de Direito Administrativo, p. 891 ).

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109

Por outro lado, como sabemos, são princípios informadores da

administração pública, a impessoalidade, a publicidade, a moralidade, legalidade e

eficiência ( art. 37, caput, CF/88).

O concurso ou a seleção pública são os meios de que a

administração dispõe para, a partir de critérios objetivos predefinidos, selecionar os

candidatos que se qualifiquem como aptos para serem investidos em um cargo ou

emprego público.

A regularidade desse processo reclama, dentre outros requisitos,

a estrita observância ao princípio da motivação.

Não se pode conceber que a administração faça concurso ou

seleção pública sem que, no bojo do processo, motive as suas decisões, explicando e

demonstrado porque tais interessados foram selecionados e porque outros tantos não o

foram.

A obrigatoriedade da motivação das decisões nos processos

administrativos relativos a concursos ou seleções públicas está pacificada na

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pela Súmula 684 que prevê:

Súmula nº 684 - É inconstitucional o veto não motivado à participação

de candidato a concurso público.

A exigência da motivação nesses casos, todavia, não se mostra

bastante para a garantia da regularidade do processo.

Como se sabe, a exigência de concurso para o provimento de

cargo ou emprego público tem se mostrado um campo fértil para o surgimento de

problemas para os interessados e para a prática de arbitrariedades por parte da

administração.

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Temos que aqui o princípio da publicidade se mostra de

fundamental importância e, por incrível que pareça, em muitos concursos essa

publicidade é mitigada se não completamente eliminada, e isso vem ocorrendo em

concursos ou seleções promovidas no âmbito dos três poderes do Estado152.

É prática comum em alguns concursos, vedar ou restringir o

acesso às provas aplicadas após a sua realização.

Se o candidato não tiver acesso à prova após tê-la realizado, a

nosso ver, fica seriamente prejudicado o seu direito, de, por exemplo, impugnar as

questões formuladas.

Da mesma forma, alguns concursos não prevêem o direito de

vista de prova corrigida. Ora, se o candidato não puder ter acesso às correções

efetuadas, não terá como se insurgir contra a nota que lhe foi atribuída.

Se não houver a efetiva publicidade nesses processos de

concurso e seleção pública, publicidade essa que garanta o irrestrito acesso às provas e

às correções efetivadas, ainda que sejam motivadas as decisões neles proferidas, não se

estará observando o devido processo legal.

Os princípios da motivação e da publicidade também devem

informar a fase subjetiva do concurso ou seleção pública na qual são avaliadas as

qualidades pessoais do candidato, isto é, quando se faz o exame de sua personalidade,

honra, antecedentes etc.

152 Para se ter uma idéia do problema, observamos que nos concursos para a Magistratura do Trabalho, era comum haver a seguinte previsão no edital “Não serão aceitos, sob hipótese alguma, pedido de revisão ou vista da prova em quaisquer fases do concurso”. Foi editada pelo TST a Resolução n. 907/2002, que passou a regular os concursos da Justiça do Trabalho. Embora na atual regulamentação não conste uma norma desse conteúdo, proibindo a revisão ou vista da prova, também não há nenhuma norma garantido o exercício desse direito. A referida Resolução, expressamente, só garante o direito dos candidatos de impugnarem a composição da Comissão de Concurso e Examinadoras ( art. 18 ). Ao não prever o direito de vista e de revisão da prova, a nova regulamentação, a nosso ver, não garante a efetividade do princípio da publicidade e da motivação, pois, como se sabe, normalmente, em casos como em tela, a falta de previsão normativa acaba servindo de fundamento para o indeferimento dos pedidos dos candidatos.

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111

Essa fase do processo para o candidato não pode ser considerada

sigilosa, ao passo que quem esta prestando o concurso público não só tem o direito de

saber quais fatos ou informações foram tomados em conta na sua avaliação153, como

também a faculdade de, se o caso, demonstrar a incorreção desses dados154.

IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade da licitação.

No âmbito da administração direta e indireta federal, o diploma

legal que regula o processo licitatório e os contratos administrativos pertinentes a obras,

serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações é a Lei nº 8.666, de

21 de junho de 1993.

Nela estão previstos os casos em que se admite a contratação

direta, por motivo de dispensa ou inexigibilidade de licitação.

As hipóteses em que há dispensa de licitação estão previstas nos

art. 17, I e II e 24, I a XXIV da Lei 8.666/93, enquanto as de inexigibilidade vêm

previstas no art. 25, incisos I a III.

153 “Concurso Público - Informações pejorativas - Exclusão do candidato - Direito ao contraditório - Sigilo - Direito de certidão - Em concurso público, o candidato deve ser ouvido sobre informações pejorativas, capazes de o excluírem do certame. Somente assim dá-se eficácia à garantia do contraditório (CF, art. 5o. LV). O sigilo que reveste as informações prestadas no procedimento de concurso público não alcança o candidato a quem tais informações se referem. A este, deve ser facilitado o acesso e reconhecido o direito de certidão - CF, art. 5o, XXXIV ” ( STJ - RMS 1.922-6 -SP - 1a. T - Rel. Min. Humberto Gomes de Barros - DJU 14.3.1994 ). 154CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO PARA JUIZ DE DIREITO. INVESTIGAÇÃO SOCIAL. FATOS INVERÍDICOS. ELIMINAÇÃO DE CANDIDATO APROVADO. ILEGALIDADE. - Embora seja a investigação social meio idôneo para averiguar a aptidão e a probidade de candidato ao exercício da magistratura, a sua eliminação deve fundar-se em fatos verídicos, demonstrativos da inidoneidade de comportamento, incompatível com o cargo. - Demonstrada a improcedência da acusação formulada contra candidato aprovado em todas as etapas do certame e classificado dentro do número de vagas previstas, impõe-se seja reconhecido o seu direito à nomeação para o cargo, sob pena de violação a princípios legais e constitucionais. - Recurso ordinário provido. Segurança concedida. ( ROMS 14587/ES. 2002/0033701-0 DJ: 07/10/2002 PG:00301 Relator Min. VICENTE LEAL )

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112

Não vamos aqui discutir cada uma das hipóteses legalmente

definidas, pela especialidade de estudo que a matéria envolve.

De uma forma geral, podemos dizer que a licitação pode ser

dispensada em razão do pequeno valor da contratação, em razão do objeto a ser

contratado, em razão de situações excepcionais ou, ainda, em razão das pessoas que

serão contratadas.

A inexigibilidade, de sua vez, ocorre quando não se mostrar

viável a competição entre os interessados em contratar com a administração.

Nas palavras de Marçal Justen Filho155, podemos dizer que a

inexigibilidade deriva da natureza das coisas enquanto a dispensa é produto da vontade

legislativa.

Ao celebrar seus contratos, a administração deve ater-se

principalmente aos vetores constitucionais da moralidade administrativa e da isonomia.

É o processo de licitação, nas suas diversas modalidades, que vai permitir à

administração a escolha da melhor proposta de contratação, proposta que será

selecionada a partir de critérios objetivos previamente estabelecidos.

Todavia, o fato de a lei prever hipóteses de dispensa ou

inexigibilidade de licitação não significa dizer que o administrador, ao invocá-las,

poderá contratar livremente, da forma que bem entender. Não e longe disso.

Nesses casos há, em verdade, uma flexibilização do

procedimento licitatório, mas o administrador ainda está obrigado, nas palavras de

Marçal Justen Filho156:

155 Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 7ª edição, 2000, pág. 233. 156 Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, pág. 228.

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a seguir um procedimento administrativo determinado, destinado a

assegurar ( ainda nesses casos ) a prevalência dos princípios jurídicos

fundamentais. Permanece o dever de realizar a melhor contratação

possível, dando tratamento igualitário a todos os possíveis contratantes.

O administrador, assim, deverá de forma motivada, demonstrar

que estão presentes os pressupostos que autorizam a dispensa ou a inexigibilidade da

licitação, adotando a partir daí o procedimento próprio para efetivar a contratação direta.

A Lei nº 8.666/93, ao tratar o tema, não previu expressamente a

obrigatoriedade da motivação. Assim, comentando o referido diploma legal, Marçal

Justen Filho, conquanto se manifestasse reconhecendo a importância e a necessidade da

motivação, por outro lado, reconhecia que a sua falta não implicaria a necessária

nulidade, admitindo a comprovação da validade do ato mediante a evidência de que a

escolha foi regular e adequada e compatível com os vetores que informam toda a

atividade administrativa157.

Embora sejamos da opinião de que a motivação nos casos de

dispensa e inexigibilidade de licitação já era obrigatória independentemente de

disposição legal nesse sentido, tanto assim que a Lei nº 8.666/93, em seu art. 89,

tipificou como crime a conduta de dispensar ou inexigir a licitação quando não

presentes os pressupostos para tanto, temos que em boa hora a Lei nº 9.784/99

regulamentou a questão, passando a exigir a motivação nesses atos.

Observa-se que não há incompatibilidade entre os diplomas

legais, ao passo que não obstante o fato de a Lei n º 8.666/93 disciplinar processo

administrativo específico, a Lei nº 9.784/99 tem-lhe aplicação subsidiária por força do

que dispõe o seu art. 69.

157 Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, pág. 232.

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V - decidam recursos administrativos.

A Lei 9.784/99, em seu capítulo XV, artigos 56 a 65, trata dos

recursos administrativos.

No art. 56, caput, está previsto que, das decisões

administrativas, cabe recurso em face de razões de legalidade e de mérito.

A decisão de um recurso tem natureza de ato administrativo. Só

por essa razão a motivação já se torna obrigatória.

Todavia, temos que na questão do recurso administrativo, a

motivação ocupa relevância ainda maior. Explico.

O interessado que não concordar com uma dada atuação estatal,

consubstanciada esta em um ato administrativo, tem o direito constitucional

(Constituição Federal, art. 5o, LV) e legal ( art. 56, Lei 9.784/99 ) de provocar o

reexame da matéria, fundando o seu pedido em razões formais ou de mérito.

Como se sabe, os atos administrativos, pelo regime jurídico a

que estão afetos, gozam da presunção juris tantum de legitimidade.

Contudo, como ensinam Celso Antônio Bandeira de Mello e

Lucia Valle Figueiredo, essa presunção se inverte quando os atos forem contestados em

juízo ou em sede administrativa.158

E é só por meio de uma resposta motivada que o administrador

poderá manter o ato, tendo, para isso, de demonstrar que a aplicação da hipótese

normativa ao caso concreto está correta, sendo improcedente o inconformismo do

158 Lucia Valle Figueiredo, Curso de Direito Administrativo, pág 179.

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particular, ou revisar o ato praticado na medida e na extensão em que as razões recursais

apresentadas pelo particular sejam pertinentes.

Mais. É com base na motivação da decisão recursal que também

o poder judiciário vai ter a possibilidade de se manifestar sobre a legitimidade do ato

impugnado.

Juan Carlos Cassagne159 defende que o direito a uma decisão

motivada é corolário da aplicação do devido processo legal:

O devido processo adjetivo se integra, finalmente, com o direito a uma

decisão fundamentada o que permite ao administrado exigir que a

decisão ( de simples trâmite ou definitiva ) faça o mérito dos

principais argumentos e das questões propostas, na medida em que

foram conducentes à solução do caso ( tradução nossa ).

VI - decorram de reexame de ofício

O poder da administração pública de rever, independentemente

de provocação, os seus próprios atos, decorre de sua estrita submissão à Lei e ao Direito

(art. 2º, Parágrafo único, I, da Lei 9.784/99 ) e da sua vinculação aos princípios

informadores da atividade estatal ( CF, art. 37, caput ).

Demais, por força do que prevê o art. 74 da Constituição

Federal, tem o dever-poder do exercício do controle interno.

159No original: “El debido proceso adjetivo se integra, finalmente, con el derecho a una decisión fundada el que permite al administrado exigir que la decisión ( de mero trámite o definitiva ) haga el mérito de los principales argumentos y de las cuestiones propuestas, en la medida en que fueron conducentes a la solución del caso”. Derecho administrativo, vol. II, p. 299 apud O princípio da motivação e a Lei 9.784/99, in Ato Administrativo e o Devido Processo Legal. Lúcia Valle Figueiredo ( coordenadora ). São Paulo: Max Limonad, 2001, pág. 48.

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116

Assim, de ofício, pode a administração rever os seus próprios

atos, buscando, como isso, conformá-los aos limites condicionantes do exercício

legítimo da função administrativa.

O poder de reexame por parte da administração deve se dar em

relação àqueles atos em que a modificação do pressuposto de fato requeira a revisão das

conseqüências jurídicas que lhes foram inicialmente atribuídas.

Embora deste dever-poder também decorra o direito da

administração de anular, revogar ou convalidar seus próprios atos, a lei previu em

incisos diferentes do art. 50 o exercício dessas duas faculdades.

Temos que, ao estabelecer a obrigatoriedade da motivação nos

atos decorrentes do reexame de ofício, a norma buscou alcançar as situações em que não

havendo qualquer problema de forma ou de fundo no ato previamente editado - vícios

que dariam margem à anulação ou à convalidação desse ato - nem alteração no juízo

de conveniência e oportunidade - situação que autorizaria a revogação do ato - a

necessidade da revisão teve por fundamento a alteração da situação fática que levou à

prática do ato.

A motivação se mostra exigência inafastável, porque, ao

modificar os efeitos jurídicos de uma dada situação de fato, estará a administração

reflexamente atingindo uma relação jurídica previamente estabelecida, e a legitimidade

e correção dessa revisão só poderão ser objetivamente aferidas por meio da explicitação

das razões de fato e de direito que a justificaram.

Constatando a administração que uma alteração qualquer se

verificou na situação de fato trazida como pressuposto para a prática do ato, tem ela o

dever-poder de reexaminar o ato editado, reconhecendo-lhe os efeitos jurídicos que se

tornaram adequados, pois esse é o comportamento que se espera de uma administração

que paute sua conduta pelos princípios da legalidade, moralidade, igualdade,

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razoabilidade, proporcionalidade, eficiência, atuando segundo padrões éticos de

probidade, decoro e boa-fé ( art. 2o , IV, da Lei 9.784/99 ).

VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de

pareceres laudos, propostas e relatórios oficiais.

A exigência da motivação dos atos administrativos, nessas

hipóteses referidas no inciso em comento, encontra fundamento também no princípio da

segurança jurídica.

Ao deixar de aplicar à determinada matéria um entendimento já

consolidado no âmbito da administração, necessariamente, o administrador só poderá

estar buscando, por meio da nova valoração, melhor alcançar a finalidade pública a que

se destina.

Assim, dois são os valores que devem ser balanceados: a

segurança jurídica e a nova interpretação normativa como forma de melhor salvaguardar

o interesse público.

A Lei nº 9.784/99, de certa forma, já tratou dessa questão.

Previu a norma, em seu art. 2o, XIII, que exercício da função

administrativa tem por objetivo atender ao fim público a que se dirige. Por outro lado,

em seu art. 2o, IX, estabeleceu que a administração deverá, no exercício de suas

funções, adotar formas simples, suficientes para propiciar o adequado grau de certeza,

segurança e respeito aos direitos dos administrados.

Assim, sempre que a uma nova interpretação vier a melhor

atender ao interesse público, pode o administrador deixar de aplicar o precedente

administrativo ou mesmo a manifestação do órgão técnico.

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Todavia, quando isso ocorrer, maior importância assume a

motivação da decisão, pois, contrariando um entendimento já firmado, ou mesmo

pareceres160, laudos, relatórios ou propostas oficiais, a nova interpretação só será auto-

sustentável se vier devidamente motivada.

VIII – importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato

administrativo.

A Lei nº 9.784/99, em seu capítulo XIII, trata de forma

específica a questão da anulação, revogação e convalidação dos atos administrativos.

A anulação pode ser conceituada como o desfazimento do ato

em virtude de sua desconformidade com a Lei ou com o Direito. A anulação pode ser

feita pela própria administração, no exercício de sua função controladora161/162, ou pelo

Poder Judiciário.

A revogação163, de sua vez, consiste na retirada dos efeitos –

totais ou parciais - do ato pela própria administração, assentada no juízo de

conveniência e oportunidade.

160O STF no julgamento do MS 24.073-DF ( Informativo STF n. 296), analisando o problema da responsabilidade administrativa dos pareceristas, se manifestou pela impossibilidade dessa responsabilização, levando em conta o caráter não vinculante do parecer emitido. Do acórdão relatado pelo Min. Carlos Velloso, extraímos o seguinte trecho: “Celso Antônio Bandeira de Mello não obstante classificar os pareceres como atos administrativos de administração consultiva, deixa expresso, entretanto, que visam eles “ a informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas nos atos de administração ativa” (Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, Ed. 13a.ed. 2001, pág. 377 ). É dizer, o parecer não se constitui no ato decisório, na decisão administrativa, dado que ele nada mais faz senão “informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas no atos de administração ativa”. Posta assim a questão, é forçoso concluir que o autor do parecer, que emitiu opinião não vinculante , opinião a qual não está o administrador vinculado, não pode ser responsabilizado solidariamente com o administrador, ressalvando, entretanto, o parecer emitido em evidente má-fé, oferecido, por exemplo, perante administrador inapto.” ( grifei ). 161 Lucia Valle Figueiredo classifica como anulação a retirada, pelo Poder Judiciário, dos efeitos de ato incompatível com a ordem jurídica, e, como invalidação, a retirada, pelos mesmos motivos, quando a retirada é feita pela própria administração. Curso de Direito Administrativo, pág. 230. 162 STF – Súmula 346 – “A Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos” 163 Na definição de Lucia Valle Figueiredo, a revogação “é ato administrativo cuja finalidade é a de fazer cessar os efeitos de ato precedente, inoportuno ao atual interesse público. De conseguinte, seus efeitos

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119

Ao anular o ato, a administração exercerá uma atividade

cognitiva, enquanto na revogação uma atividade valorativa. Esse é o entendimento de

Paolo Ravá164: Na anulação, a autoridade administrativa desenvolve atividade

primordialmente lógica, ao passo que na revogação a atividade é

primordialmente volitiva. Em outros termos, a anulação é o exercício da

atividade de controle, a revogação é o exercício da atividade de

administração ativa.

Na suspensão, a administração não suprime o ato editado,

apenas impede que, na sua pendência, continue a produzir efeitos. Caracteriza-se, por

isso mesmo, pela precariedade.

Finalmente, a convalidação dos atos administrativos, na

definição de Weida Zancaner 165, é:

um ato, exarado pela Administração Pública, que se refere

expressamente ao ato a convalidar para suprir seus defeitos e resguardar

os efeitos por ele produzidos.

Como vimos, em todos esses institutos, de alguma forma, a

administração atinge os efeitos jurídicos de uma dada relação constituída com a edição

do ato objeto da anulação, revogação, suspensão ou convalidação.

serão necessariamente“ex nunc”. Portanto, como ato válido que fora, provocara determinados efeitos não suprimíveis. Tão-somente termina sua aptidão de continuar a produzir efeitos.” A mesma autora também ensina que a revogação “consiste na emanação de provimento secundário, constitutivo, emanado no exercício do mesmo poder de prover, por parte de órgão ainda titular da relação jurídica, e cuja finalidade é a supressão definitiva dos efeitos do provimento inicial (primário ), por motivo de conveniência e oportunidade, assentada em interesse público superveniente, concreto e atual ( e da mesma natureza ), atribuindo-se-lhe efeitos ex nunc.” (Curso de Direito Administrativo, pág. 233 e 249). 164La convalidà degli atti amministrativi, 1937 apud José Cretella Júnior. Dicionário de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1978, pág. 39. 165 Observa a autora, ainda, que “no sistema jurídico-positivo brasileiro, a convalidação se propõe obrigatória quando o ao comportá-la, porque o próprio princípio da legalidade – que predica a restauração da ordem jurídica após convalidação -, entendido finalisticamente, demanda respeito ao capital princípio da segurança jurídica”. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. São Paulo: Malheiros, 2a. edição, 2001, pág. 100.

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120

É a motivação que vai permitir o controle objetivo da conduta

adotada, pois, por meio dela é que estará demonstrada a ilegalidade, que autoriza a

anulação do ato, o juízo de conveniência e oportunidade, que justifica a sua revogação,

o motivo que reclame a paralisação temporária dos efeitos do ato editado, ou ainda, a

existência do vício que levou à sua necessária ratificação.

Se o ato atingido por qualquer uma dessas condutas

administrativas já havia deflagrado uma relação jurídica, os efeitos dela decorrentes

deverão ser levados em conta pela administração, sendo de todo conveniente que a

motivação, em estrita observância ao due process of law, considere se, quando e em que

extensão tais efeitos poderão ser atingidos166.

Por outro lado, embora a administração tenha o dever-poder de

rever os seus próprios atos, essa competência não pode ser exercida sem a observância

dos princípios constitucionais que informam a atividade administrativa em geral e o

processo administrativo em particular.

Assim, temos que a revisão de ato administrativo que implique

modificação de um direito que já se integrou ao patrimônio do particular só poderá

ocorrer após a prévia manifestação da parte interessada.

Nesse sentido, vale destacar o acórdão RE 15843-9-RS, j.

30.8.1994, relatado pelo Min. Marco Aurélio: ATO ADMINISTRATIVO – REPERCUSSÕES – PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE - SITUAÇÃO CONSTITUÍDA – INTERESSES CONTRAPOSTOS – ANULAÇÃO – CONTRADITÓRIO. Tratando-se da anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição daqueles que terão

166 STF – Súmula 473 – “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação, judicial”.

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modificada a situação já alcançada. Presunção de legitimidade do ato administrativo praticado, que não pode ser afastada unilateralmente, porque é comum à Administração e ao particular.

§ 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em

declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações,

decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.

A Lei nº 9.784/99, de forma didática, estabeleceu como a

motivação do ato administrativo deveria se dar.

Conquanto aos estudiosos do direito tal detalhamento legal

parecer despiciendo, devemos lembrar que ao regular o processo administrativo na

esfera federal, o diploma legal em comento estará vinculando a atividade de todos

servidores federais que estiverem no exercício da função administrativa, servidores que,

em sua maioria, não têm necessariamente formação jurídica, pelo que se mostra de todo

conveniente que a lei desça mesmo a minúcias, dizendo de que forma a motivação, para

ser válida, deve ser externada.

Demais, essa exigência legal nada mais é que a positivação do

entendimento doutrinário acerca da matéria. Lembremos que Antônio Carlos de Araújo

Cintra, em texto já citado neste estudo167, ao comentar os requisitos da motivação, dizia

que “Por outro lado, sob o aspecto formal, a motivação deve ser clara e congruente, a

fim de permitir uma afetiva comunicação com seus destinatários”.

167 Motivo e motivação do Ato Administrativo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1979, págs. 127/128

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122

A congruência168 exigida nada mais é que a correlação lógica

entre os motivos e a decisão veiculada pelo ato. Entre os motivos e a decisão deve

haver uma relação de causalidade, pena de ser considerado inválido o ato editado.

Por outro lado, ao autorizar que a motivação seja feita por meio

de referência a atos previamente editados, tais como pareceres, informações, decisões

ou propostas, a Lei, sobre atender ao princípio da simplificação das formas, já previsto

em seu art. 2º, Parágrafo único, IX, também positivou o entendimento jurisprudencial

sobre o assunto, que já reconhecia a validade da motivação efetuada dessa maneira169.

Essa possibilidade também já era aceita na doutrina. Na lição de

Marcello Caetano170:

Quando uma autoridade concorda com um parecer no qual se propõe

determinada solução para o caso vertido, esse despacho de concordância

apropria-se das razões do parecer cujos fundamentos ficam, desde

então, sendo seus.

§ 2º Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio

mecânico que reproduza o fundamento das decisões, desde que não prejudique

direito ou garantia dos interessados.

O parágrafo em comento veio apenas dizer o óbvio171, pois não

há como, na era da tecnologia, em que os avanços da informática a cada dia

168 Nas palavras de Marcello Caetano, “Congruente, isto é, os motivos devem aparecer como premissas donde se extraia logicamente a conclusão, que é a decisão. Se há contradição entre a fundamentação e a decisão, essa incongruência não pode deixar de influir na validade do acto” (Manual de Direito Administrativo, pág. 435 ). 169SERVIDOR PÚBLICO: DEMISSÃO: MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO. NADA IMPEDE A AUTORIDADE COMPETENTE PARA A PRÁTICA DE UM ATO DE MOTIVÁ-LO MEDIANTE REMISSÃO AOS FUNDAMENTOS DO PARECER OU RELATÓRIO CONCLUSIVO ELABORADO, COMO NA ESPÉCIE, POR AUTORIDADE DE MENOR HIERARQUIA. AI 237639 AgR /SP AG.REG.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE Publicação: DJ DATA-19-11-99 PP-00058 EMENT VOL-01972-05 PP-01010 Julgamento: 26/10/1999 . 170 Manuel de Direito Administrativo, pág. 250.

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123

surpreendem o indivíduo, negar a utilização desses recursos no âmbito do processo

administrativo.

O limite à utilização de qualquer tipo de recurso tecnológico na

formação do ato administrativo, como expressou a norma, é o direito individual. Se, de

qualquer modo, a utilização de meios mecânicos puder vir a macular o direito e as

garantias dos administrados, ficaria aí então proibida essa forma de atuação.

Temos, contudo, que essa hipótese se mostra mesmo

improvável. Ao contrário, a regra vai ser a utilização desses meios mecânicos, pois esse

tipo de comportamento é o que vai atender a outro princípio informador da função

administrativa, que é o princípio da eficiência.

§ 3o. A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou decisões orais

constará da respectiva ata ou de termo escrito.

A motivação também é exigida quando a decisão é tomada em

órgão coletivo, devendo ela constar da ata ou ser reduzida a termo.

Nesse sentido, entendendo ser nula a decisão de órgão colegiado

se não constar da ata a sua motivação, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

EMENTA: ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MAGISTRADO. PROMOÇÃO POR ANTIGUIDADE. RECUSA. INDISPENSABILIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 93, X, DA CF. Nulidade irremediável do ato, por não haver sido indicada, nem mesmo na ata do julgamento, a razão pela qual o recorrente teve o seu nome preterido no concurso para promoção por antigüidade. Recurso provido. 235487 / RO - RONDÔNIA RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO DJ DATA-21-06-2002 PP-00099 VOL-02074-04 PP-00685 Julgamento: 15/06/2000 – Primeira Turma.

171Embora, em matéria de administração pública, dizer o óbvio seja, no mais das vezes, indispensável.

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124

Capítulo VI - Silêncio administrativo

1. Origem.

A partir do momento em que a atuação dos órgãos do Estado

passou a pressupor uma base legal172, teve a doutrina a preocupação em separar e

classificar os atos que estes praticavam enquanto estivessem no exercício da função

administrativa, isso como forma de disciplinar a atuação estatal e, ao mesmo tempo,

proteger os direitos do que com eles se relacionavam173.

Assim, construi-se uma teoria sobre os chamados atos

administrativos, modo particular e especial de manifestação da função administrativa,

tendo em vista unicamente os comportamentos comissivos dos órgãos do Estado.

Todavia, não se demorou a perceber que a não ação do Estado,

isto é, a sua omissão em certas e determinadas hipóteses, também poderia trazer

conseqüências jurídicas, as quais não poderiam ter o mesmo tratamento dispensado às

decorrentes do comportamento comissivo do próprio Estado.

Dessa forma, fazia-se necessário estabelecer quais as

conseqüências jurídicas poderiam ser extraídas, não do agir da administração, mas

precisamente de sua omissão, de seu silêncio.

172 Na lição de Stassinopoulos, “nos quadros do Estado de Direito, a Administração não só está impossibilitada de agir ‘contra legem’ ou ‘praeter legem’, mas só pode atuar ‘secudam legem’” ( Traité des Acts Administratif. Atenas: Sirey, 1954, pág. 69 ). 173 Mário Masagão.Curso de Direito Administrativo. Max Limonad, 3ª edição, pág. 269.

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1.1 - No direito comparado

Ao que parece, os problemas jurídicos gerados por um

comportamento omissivo da administração foram inicialmente sentidos nos países que

adotavam o chamado contencioso administrativo174.

Vejamos, inicialmente, qual o tratamento jurídico dispensado ao

silêncio administrativo na França, Itália e Espanha175.

Na França uma dada questão só poderia ser submetida à

jurisdição administrativa após ter sido apreciada pela Administração. A jurisdição

administrativa estava submetida à chamada regra da decisão prévia176.

Jean Rivero177, analisando o assunto, dizia que a regra da

decisão prévia comportava um risco: mantendo silêncio acerca do pedido que lhe havia

174 O contencioso administrativo surgiu na França a partir de um concurso de circunstâncias históricas, nela sobrevivendo, porém, por razões meramente práticas. Os revolucionários de 1789, temendo que os corpos judiciários retomassem a tradição de ingerência na nova administração, fundados nos princípios da teoria da separação dos poderes, subtraíram ao judiciário a possibilidade de julgar os litígios nos quais a Administração fosse parte. A Lei de 16-24 de Agosto de 1790, assim dispôs: “As funções judiciais são e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de prevaricação, perturbar de qualquer modo que seja as operações dos corpos administrativos, nem citar perante eles administradores em razão das suas funções”. Ora, se não era dado ao poder judiciário a possibilidade de julgar as causas em que a administração fosse parte, tornou-se necessário estabelecer quem então seria o juiz desses casos. No princípio, entendeu-se que ao próprio administrador caberia esse poder. Sabendo-se, porém, que o sistema de administrador-juiz não oferecia aos particulares a mínima segurança, elaborou-se, no seio da administração, uma nova separação de funções: a função administrativa propriamente dita e a função jurisdicional. Tida como resquício do autocratismo napoleônico e um perigo para os particulares face à administração, a jurisdição administrativa acabou desenvolvendo-se a ponto de, já no Século XIX, na França, ser apontada como um elemento de proteção jurídica dos administrados ( Jean Rivero. Direito Administrativo. Coimbra: Ed. Almedina, 1981). 175Anota Adriana Ancona de Faria que entre as primeiras referências legislativas para a regulamentação do silêncio administrativo podem ser citadas: na França, o decreto de 2/11/1864; na Espanha, o Real Decreto de 20 de setembro de 1851 e a Lei 3.952, de 1900; na Argentina, a Constituição da Província de Buenos Aires de 1889 ( O silêncio administrativo. Dissertação de Mestrado. PUC/SP, 2002. ) 176Segundo Jean Rivero, “a regra da decisão prévia explica-se historicamente como sobrevivência da teoria do ministro-juiz: O conselho de Estado, quando se reconheceu como juiz de direito comum em substituição do ministro manteve a necessidade, quanto ao autor, de um recurso prévio ao ministro, perdendo esse recurso o caráter contencioso que tinha anteriormente para se reduzir a um simples recurso administrativo”. ( Direito Administrativo, pág. 250 ). 177 Direito Administrativo, pág. 248/249.

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126

sido formulado, a administração inviabilizava o acesso do particular ao contencioso

administrativo.

Segundo Charles Debbasch, a imputação de efeitos jurídicos ao

silêncio da administração foi positivada na França pelo Decreto de 2 de novembro de

1864.178 Posteriormente, foi editada a Lei de 17 de julho de 1900, estabelecendo que o

silêncio da administração, prolongado por quatro meses a contar da reclamação,

implicaria a decisão implícita de rejeição.

Anota Jacques Chevallier179 que, depois da metade do século

XX, as leis francesas começaram a aumentar o número de hipóteses em que o silêncio

administrativo deveria ser interpretado como decisão de aceitação, observando,

contudo, que a partir do ano de 1995 houve uma alteração de direcionamento dessa

legislação, reduzindo-se o número das chamadas autorizações prévias.

Atualmente, no direito francês, o art. 21 da Lei nº 2000-321, de

12 de abril de 2000, estabelece que, salvo nos casos nos quais o regime de decisão

implícita é admitido, não havendo decisão da autoridade em até dois meses da

propositura da demanda, o pedido se considera rejeitado.

Registre-se que já há proposta em tramitação para a alteração da

legislação francesa visando à atribuição de efeitos positivos ao silêncio da

administração, sob o fundamento de simplificar a atividade administrativa e se

restabelecer uma relação de confiança entre administração e administrados180.

178 “Il peut arriver que l’administration oppose l’inertie cést-à-dire le silence a demande du requérant . Dans cette hypothèse le décret du 12 janvier 1965 stipule que le silence gardé pendenat plus de quatrre mois sur la demande vaut décision de rejet. Cete nottion de décison implicite a été introduire dans le droit positif par le décret du 2 novembre 1864 à propos du recours hiérarchique formé devant les ministres contre les décision de leurs subordonnés’’ ( Contetieux administratif. Paris : Dalloz, Deuxième édition, 1978, pág. 329 ). 179 A reforma do Estado e a concepção francesa do serviço público. Revista do Serviço Público, vol. 120, n.3, Brasília: ENAP, sete/dez 1996, ano 47. 180 PROPOSITION DE LOI nº. 264 tendant à ce que le silence de l'administration à une demande d'un citoyen vaille acceptation : - Article 2 L'article 21 de la loi n° 2000-321 du 12 avril 2000 précitée est ainsi rédigé : Art. 21. - Sauf dans les cas prévus à l'article 22 où la décision d'acceptation n'est pas

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127

Na Itália, observa José Crettela Júnior181, após vivo debate na

doutrina e na jurisprudência182, a positivação do silêncio administrativo veio com o art.

5º do Texto único da lei comunal e provincial, de 3 de março de 1934, que lhe atribui

efeito equivalente ao de rejeição do recurso, no caso de não haver resposta no prazo de

120 dias da apresentação do pedido

Analisando a questão do silêncio administrativo no direito

italiano, Georghio Alessandro Tomelin183, anota que a Lei nº 205, de 21.07.2000,

acrescentou à Lei 1.034, de 6.12.71, o art. 21-bis, prevendo que, constatado o silêncio,

poderá o Juiz administrativo fixar um prazo de 30 dias para que a administração

efetivamente se manifeste, purgando-se a omissão, autorizando a nomeação de

comissário para prática do ato, no caso da omissão não ter sido nada após esse prazo

legal.

Na Espanha, após a discussão doutrinária184, a matéria foi

disciplinada pelo art. 38 da Lei da Jurisdição Contencioso-Administrativa de 27 de

novembro de 1956, fixando o prazo de três meses, depois de denunciada a mora, para

que o interessado, se não quisesse aguardar a resolução expressa de seu pedido, pudesse

recorrer à via administrativa ou jurisdicional.185

A regulação atual é feita pela lei espanhola nº 30/1992, de 26 de

novembro, que estabelece o regime jurídico das administrações públicas e do

implicite, le silence gardé pendant plus de deux mois par l'autorité administrative sur une demande vaut acceptation. ( www.senat.fr/leg ) 181 Tratado de Direito Administrativo, Vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 1ª edição, 1966, pág. 174. 182 Esclarece Cino Vitta: “Entre nós, durante muito tempo, faltou análogo preceito legislativo, mas a jurisprudência tinha adotado igual solução equitativa: o longo silêncio foi interpretado como rejeição do recurso hierárquico. Apenas a jurisprudência não pudera estabelecer a respeito um termo taxativo” (Diritto ammnistrativo, 3ª ed., 19494, vol. I, pág. 373 – apud Tratado de Direito Administrativo, vol. II., pág. 174 ) 183 Silêncio-Inadimplemento no processo brasileiro, RDA nº 226 out/dez/ 2001. 184 “Com efeito, a administração tem de resolver sobre as petições que lhe são formuladas e ainda, hoje, no que respeita à Administração do Estado espanhol, há de fazê-lo em todos os casos, salvos causas excepcionais devidamente justificadas, no prazo de seis meses, incorrendo o funcionário responsável, se assim procede, em responsabilidade disciplinar” ( Martínez Useros. Derecho Administrativo. 7a edição, vol. I, pág. 282 apud Tratado de Direito Administrativo, Vol. II ) 185José Cretella Jr. Tratado de Direito Administrativo, vol. II, pág. 175.

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procedimento administrativo comum, prevendo que o silêncio poderá ter efeitos

negativos ou positivos186.

No direito Espanhol, vale ainda mencionar a lição de Velarde

Perez 187, para quem a Lei nº 30 do Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas

y Del Procedimiento Administrativo Común ( LRJAP), trata o chamado o acto presunto

como técnica distinta da do silêncio administrativo:

À primeira vista ao menos, a LRJAP orienta a reação em face da

inatividade formal da administração pública em um sentido

completamente diferente – se é que não oposto – daquele que inspirou a

doutrina do silêncio administrativo. Do silêncio como via procedimental

para permitir o acesso ao recurso administrativo ou jurisdicional, a Lei

passa a conceituação da inatividade formal como modalidade de ato,

ainda que se trate de um tipo de ato produzido “ao contrário”, entre

ameaças disciplinares e previsões, ao menos em aparência,

contraditórias.

186 Conforme ensina Juan Amenós Àlamo: “El art. 43.3 regula de forma clara la eficacia del silencio y utiliza para ello la siguiente subdivisión: • La ESTIMACIÓN por silencio "tiene a todos los efectos la consideración de acto administrativo finalizado del procedimiento". Ahora bien, no por ello puede el instituto del silencio positivo liberarse de la "maldición" que sobre él gravita en el art. 62.1.f) de la Ley. Según este precepto, son nulos de pleno derecho los actos administrativos "expresos o presuntos contrarios al ordenamiento jurídico por los que se adquieran facultades o derechos cuando se carezca de los requisitos esenciales para su adquisición". Respecto al procedimiento de revisión de actos nulos, conviene recordar que ha sido objeto de nueva redacción en algunos puntos (art. 102) • La DESESTIMACIÓN por silencio administrativo "tiene los solos efectos de permitir a los interesados la interposición del recurso administrativo o contencioso-administrativo que resulte procedente" (segundo párrafo del art. 43.3). En este punto, hemos de advertir al lector que el art. 48.2, en su nueva redacción, precisa que "si el plazo se fija en meses o años, éstos se computarán a partir del día siguiente a aquel en que tenga lugar la notificación o publicación del acto de que se trate, o desde el siguiente a aquel en que se produzca la estimación o desestimación por silencio administrativo". Y, por su parte, el art. 48.4 (que no altera la regla preexistente) dispone que "los plazos expresados en días se contarán a partir del día siguiente a aquel en que tenga lugar la notificación o publicación del acto de que se trate, o desde el siguiente a aquel en que se produzca la estimación o desestimación por silencio administrativo". ( La nueva regulación del silencio administrativo – www.noticias.juridicas.com ). 187 No original: “A primera vista al menos, la LRJAP orienta la reacción frente a la inactividad formal de la Administración pública en un sentido completamente diferente – si es que nos opuesto – del que inspiró la doctrina del silencio administrativo. Del silencio como via procedimental para permitir el acesso al recurso administrativo o jurisdiccional, la Ley pasa a la conceptuación de la inactividade formal como modalidad de acto, siquiera se trate de un tipo de acto producido “a contrapelo”, entre amenazas disciplinares y previsiones, al menos en apariencia, contradictorias” ( José Ignacio Morillo-Velarde Pérez. Los actos presuntos. Madrid: Macial Pons Ediciones, 1995).

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129

1.2 - No direito brasileiro

No Brasil, como já observado, é recente a normatização do

processo administrativo.188 Assim, o tratamento da matéria só podia ser inicialmente

encontrado em nossa doutrina e jurisprudência.

Themístocles Brandão Cavalcanti em sua “A teoria do Silêncio

Administrativo”189, estudou o tema dispondo sobre os diversos prazos para serem

proferidas as decisões administrativas e as conseqüências jurídicas decorrentes da

demora ou excesso de prazo, firmando o entendimento pela confirmação tácita da

decisão recorrida, em virtude do silêncio prolongado, e pela remessa automática do

processo à autoridade hierarquicamente superior, no caso de excesso de prazo para

proferir a decisão por parte da autoridade inferior.

Já José Crettela Jr.190, ao discorrer sobre o posicionamento

jurisprudencial sobre o problema, anotou que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar

casos de Habeas Corpus nos quais a autoridade coatora não prestava, em tempo

oportuno, as informações requeridas entendia que o silêncio manifesto e repetido

equivalia ao reconhecimento tácito da reclamação judicial.

188 Diferentemente do que ocorreu em outros países da América Central e América do Sul, a doutrina brasileira nunca teve maiores preocupações em tratar de forma científica o processo administrativo. Talvez a maior explicação para esse fenômeno resida no descrédito natural dos juristas quanto às instituições da administração brasileira e isso especialmente até a Constituição de 1988. Parecia não haver muito sentido em se debruçar sobre um tema – processo administrativo – quando pouco poderia se esperar de uma administração a serviço de um Estado Ditatorial, que ressalvado os curtos e conhecidos períodos democráticos, caracterizou a nossa história política. Dessa forma, não se buscava a verificação da legitimidade da atividade administrativa no âmbito da própria administração; as reparações, quando necessárias, eram requeridas diretamente no Poder Judiciário. Sobre o tratamento doutrinário do silêncio administrativo na América Latina podemos citar os artigos de Virgilio Calvo Murillo ( El silencio positivo de La Administracion Pública Aspectos Doctrinales – Jurisprudenciales y Legales – Revista de Ciencias Juridicas nº 58, San Jose, Costa Rica setiembre-diciembre, 1987 ) e de Gustavo Penagos ( El silencio administrativo – Universitas Ciencia Juridicas Y Socioeconomicas – Pontifica Universidad Javeriana. nº 81 ). 189 Revista Forense. Março de 1939. 190 Dicionário de Direito Administrativo, pág. 493/494.

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Na falta de regulamentação expressa, a doutrina e a

jurisprudência passaram a defender que, em regra, os efeitos do silêncio da

administração só poderiam ser verificados no caso concreto191, ressalvando que o

administrado jamais perderia o seu direito subjetivo enquanto perdurasse a omissão da

administração no pronunciamento que lhe competia.192

No direito brasileiro, o problema do silêncio da administração

não se mostrava com a mesma intensidade com a que era sentida nos países que

adotavam a chamada jurisdição administrativa193, pois, entre nós, em regra, o acesso ao

191 É a lição de Helly Lopes Meirelles in Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 27a edição, 2002, pág. 110. 192 Nesse sentido, cite-se o acórdão do Tribunal Federal de Recursos, proferido na Apelação em Mandado de Segurança, proc. 97.4884, relatado pelo Min. Carlos Madeira, com a seguinte ementa: “- Se, ao apreciar diferentes pedidos contidos no mesmo processo, a Administração decide apenas sobre um, o seu silêncio quanto aos demais constitui conduta omissiva, remediável por via do controle jurisdicional - Enquanto não proferida decisão sobre a pretensão do administrado, fica preservado o seu direito subjetivo” ( RDA - abri/jun 1983, vol. 152, pág. 153/156 ). 193 É verdade que o contencioso administrativo já foi previsto em nosso ordenamento jurídico. Entende a doutrina que no Brasil o contencioso administrativo propriamente dito teria surgido a partir de duas leis de 22 de dezembro de 1761 de iniciativa do Marquês de Pombal, que criaram o Conselho da Fazenda. Ao Conselho da Fazenda foi confiada a “jurisdição contenciosa”, cabendo-lhe conhecer as causa relativas à divida ativa da Fazenda Real. Posteriormente, outras jurisdições contenciosas foram sendo outorgadas a diferentes órgãos da administração. A Constituição de 1824, em seu art. 137, previu a criação de um Conselho de Estado ( extinto em 1834 pelo Ato adicional, mas restaurado pela Lei n. 234, de 23 de novembro de 1841 ) com funções consultivas e judicantes. Assim, sob o regime imperial, segundo Pedro Lessa, citado por Crettela Júnior ( Tratado de Direito Administrativo, vol.VI ) , “havia um certo número de questões, em que era interessada a fazenda pública, para cujo processo e julgamento se outorgava competência à própria administração. Tínhamos o contencioso administrativo, mais ou menos organizado de acordo com os princípios respectivos do direito francês”. Era inegável, pois, a existência do contencioso administrativo durante o império. Porém, como observa Masagão, várias leis vieram a ser editadas fazendo um verdadeira derrubada do contencioso administrativo então existente. O contencioso administrativo veio a ser totalmente abolido com a Constituição Federal de 1891. Esta, em seu artigo 60, estabelecia que competia aos juízes ou tribunais federais, processar e julgar todas as causas propostas contra “ b) o Governo da União ou Fazenda Nacional, fundadas em disposições da Constituição, leis e regulamentos do Poder Executivo, ou em contratos celebrados com o mesmo Governo; c ) as causas provenientes de compensações, reivindicações, indenizações de prejuízos ou quais outras, propostas pelo Governo da União contra particulares ou vice-versa” . Segundo doutrinadores como Barbalho, Pedro Lessa, Vilaboim e Masagão e a jurisprudência as expressões “todas as causas” e “ quaisquer outras”, revela o pensamento do legislador constituinte de 1891 de abolir completamente o contencioso administrativo. Dessa época prevaleceu ininterruptamente o sistema de jurisdição una, mantido que foi pelas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967. A expressão contencioso administrativo veio a ser novamente introduzida no Texto Constitucional com a Emenda de 1969. A partir daí, grande controvérsia foi instaurada, divergindo os doutrinadores quanto ao fato de se estaria aberto o caminho para que fosse reimplantado o instituto no direito brasileiro. Toda essa discussão, todavia, restringiu-se ao campo doutrinário, porquanto não foi editada a lei prevista, ficando sem aplicação o art. 111 da Constituição Federal de 1969. Em 1977, com o objetivo de desafogar a justiça federal a Emenda nº. 7 novamente reinstitucionalizou a figura do Contencioso Administrativo, este entendido como o conjunto de órgãos competentes para exercer a jurisdição, conforme o caso, com ou sem definitividade em suas decisões.O

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Judiciário não fica condicionado ao prévio exaurimento da via administrativa ( CF, art.

5o., XXXV ).194

De toda forma, necessário se fazia um disciplinamento legal do

silêncio administrativo o que foi feito, no âmbito da Administração Federal, pela Lei

9.784/99 que, em seu artigo 48195, positivou a obrigação de a administração decidir as

questões que lhes são submetidas pelos administrados.

Feitas essas considerações acerca das origens e do

disciplinamento legal do silêncio administrativo no direito brasileiro e no direito

comparado, cumpre-nos, agora, buscar as respostas às indagações formuladas no início

deste e trabalho, e isso como forma de se chegar, a nosso ver, à principal reflexão que o

problema do silêncio administrativo postula: como deve ser interpretado e como pode

ser normatizado esse tema à luz do sistema constitucional brasileiro.

sistema reimplatado pela Emenda 7/1977, segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto ( Contencioso Administrativo. Rio de Janeiro: Ed.Forense, 1a. edição, 1977 pág. 71 ), implicava algumas limitações: primeiro, o próprio artigo 203 já previa que os contenciosos para as questões fiscais e previdenciárias, inclusive às relativas a acidentes do trabalho, não teriam poder jurisdicional; segundo, em relação às pessoas políticas, respectivas autarquias e empresas públicas a competência administrativa seria plena, quanto à matéria e definitiva quanto à força decisória; já em relação às sociedades de economia mista, em razão da existência de interesse privado representado em sua composição acionária, ficaria ressalvado ao acionista o direito de instaurar procedimento anulatório da decisão perante o Poder Judiciário. A reinstalação do sistema do contencioso administrativo foi muito criticada na doutrina. Ada Pellegrini ia mais longe, dizendo que a Emenda n. 7/1977, impropriamente denominou “contencioso administrativo” um sistema desprovido de função jurisdicional, com a revisão de suas decisões pelo poder Judiciário (arts. 111 e 203, combinados com os arts. 122, II, 153, 789 4o. e 204 ). Apenas em seu artigo 205, que a rigor não trataria dos Tribunais Administrativos é que a emenda, em verdade, teria instituído uma modalidade de contencioso administrativo propriamente dita ( Revista da PGE-SP, vol. 10 ). A Constituição Federal de 1988 não repetiu a previsão da Emenda n 7/77, de forma que, na nossa ordem jurídica atual, não há fundamento que dê validade a qualquer pretensão de, na via infraconstitucional, criar-se órgãos administrativos com poderes jurisdicionais ( art. 5º , XXXV, CF/88 ). 194 Nesse sentido as seguintes súmulas: Súmula 213 do TFR – O exaurimento da via administrativa não é condição para propositura de ação de natureza previdenciária; Súmula 09 do TRF3 – Em matéria previdenciária,torna-se desnecessário o prévio exaurimento da via administrativa, como condição de ajuizamento da ação. 195 Art. 48 - A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência.

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2 - Natureza jurídica

A primeira pergunta a ser respondida ao se estudar o fenômeno

do silêncio administrativo se refere à sua natureza jurídica: seria o silêncio

administrativo um ato ou um fato administrativo196 197?

A resposta à pergunta formulada pressupõe a própria definição

do que seja o ato administrativo. Como aqui não objetivamos separar e classificar a

realidade jurídica a que chamamos ato administrativo, a fim de se evitar debates

estéreis198 sobre a correção ou mesmo operacionalidade199 do conceito adotado,

196 A distinção entre ato jurídico e fato jurídico é precisamente feita por Celso Antônio Bandeira de Mello: “Ao nosso ver a solução é a seguinte. Atos jurídicos são declarações, vale dizer, são enunciados; são falas prescritivas. O ato jurídico é uma pronúncia sobre certa coisa ou situação, dizendo como ele deverá ser. Fatos jurídicos não são declarações; portanto, não são prescrições. Não são falas, não pronunciam coisa alguma. O fato não diz nada. Apenas ocorre. A lei é que fala sobre ele. Donde, a distinção entre ato jurídico e fato jurídico é simplicíssima”. ( Curso de Direito Administrativo, pág.342 ). 197 Conquanto necessária, a diferenciação entre ato administrativo e fato administrativo, pois de cada um deles defluem efeitos jurídicos distintos, é importante, por outro lado, termos em mente também a lição de Gordillo, para quem tais diferenciações de regimes jurídicos não podem operar em desfavor ao administrado: “En conclusión, entendemos que en la actualidad no queda más remedio que mantener una distinción entre los actos administrativos, los comportamientos materiales y la omisiones, sin que ello signifique el particular deba quedar desguarnecido frente a los hechos, o que el concepto de acto deba interpretarse en forma muy restringida; por el contrario, debe tratarse simultáneamente de extender la protección judicial plena y efectiva a la mayor parte de situaciones que sea posible y de crear procedimientos que protejan al individuo a la actuación material u omisiva de la administración, cuna ella no aparece plasmada en decisiones o declaraciones administrativas formales, como también fortalecer el desarrollo de las acciones de clase contra la administración”.(Tratado de derecho administrativo. Tº 3, El acto administrativo 1ª edición Brasileña, Belo Horizonte y San Pablo, Editora Del Rey y F.D.A., 2003). 198 Nas palavras de Genaro R. Carrió: “Pienso que en parte no desdeñable las disputas entre los juristas están contaminadas por falta de claridad acerca de cómo deben tomarse ciertos enunciados que típicamente aparecen en la teoría jurídica. Mientras no se ilumine este aspecto del problema quedará cerrada toda posibilidad de superar los múltiples desacuerdos que tales enunciados generan. Si no tenemos en claro cuál es el fondo o la raíz de las discrepancias, vale decir, por qué se discute, será estéril todo esfuerzo de argumentación racional y las disidencias persistirán, quizás agravadas. Obtener claridad acerca de esto, no es, por cierto, condición suficiente para eliminar el desacuerdo, pero sí condición necesaria” ( Notas sobre derecho y lenguaje. Abeledo-Perrot, Cuarta Edición Corregida Y Aumentada, 1990, pág. 25 ). 199 Pois conforme ensina Gordillo, citando o Carrió: “Esto permite ya adelantar que en la escala descendente de clasificaciones, del total de a actividad administrativa hasta el más ínfimo y reducido acto concreto que se analice, puede colocarse en cualquier grado o escala a la ‘definición’ de ‘acto administrativo’: esta palabra no cumple otra función que la de ordenar y sistematizar los conocimientos que se quiere transmitir sobre el total de la actividad administrativa, desde sus principios más generales hasta sus nociones más detalladas; cualquiera sea la amplitud o restricción que le otorguemos a la definición, de todos modos ella será más o menos útil, cómoda o incómoda, según el caso, pero no ‘verdadera’ o ‘falsa’. Por ello, ‘las palabras no tienen otro significado que el que se les da ( por quien

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esclarecemos que entendemos ser o ato administrativo, na esteira da doutrina de Celso

Antônio Bandeira de Mello200, a declaração201 de vontade manifestada por quem estiver

no exercício da função administrativa visando à concretização da vontade geral, sendo

esta fixada por meio de comandos normativos de ordem constitucional ou legal.

Estabelecido o conceito de ato administrativo, cumpre agora

verificar se o silêncio administrativo reúne os mesmos elementos definidores daquela

classificação de tal forma que possa ser identificado pelo mesmo rótulo202.

Antes, porém, vejamos como a matéria é tratada no direito

comparado.

Na doutrina estrangeira, encontramos soluções diversas sobre o

problema da natureza jurídica do silêncio. E a razão disso é a existência da jurisdição

administrativa, vale dizer, um modelo jurídico diverso do que adotamos e que, por isso

mesmo, não pode ser desconsiderada na análise elaborada, pena de não concordamos

com as conclusões alcançadas esquecendo-se de que as premissas adotadas são distintas.

Vejamos como alguns dos principais administrativistas

analisam a questão do silêncio administrativo.

las usa, o por las convenciones lingüísticas de la comunidad). No hay, por lo tanto, significados ‘intrínsecos’, ‘verdaderos’, o ‘ reales”, al margen de toda estipulación expresa o uso lingüístico aceptado’. Concordantemente, ‘ las clasificación no son verdaderas ni falsas, son serviciales o inútiles’. (Tratado de Derecho Administrativo, Parte General, Ediciones Macchi, Buenos Aires, 1974, págs. 12/13). 200 Celso Antônio define o ato administrativo como a “declaração de vontade do Estado ( ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo o concessionário de serviço público ), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional” (Curso de Direito Administrativo, pág. 352 ). 201 Declaração, no sentido de dicção prescritiva de direito, seja ela veiculada pela forma escrita, oral, por meio de sinais etc em contraposição à idéia de um evento não prescritivo, isso é, que não diz nada, apenas ocorre ( vide Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, pág. 342 ). 202 Na lição de Gordillo: “Como expresa Hospers, las palabras no son más que rótulos de las cosas: ponemos rótulos a las cosas para hablar de ellas, y poned las palabras no tienen más relación con las botellas mismas.” Cualquier rótulo es conveniente, en la medida en que nos pongamos de acuerdo acerca de él y lo usemos de manera consecuente. La botella convendrá exactamente la misma sustancia aunque peguemos en ella un rótulo distinto, así como la cosa sería la misma aunque usemos una palabra diferente para designarla ” ( Tratado de Derecho Administrativo, pág. 2 ).

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2.1 - Direito português

André Gonçalves Pereira203, considera que, no sistema legal

português, o silêncio administrativo - ou o que chama de ato tácito - não pode integrar-

se no conceito de ato administrativo.

Ao estudar o fenômeno, primeiro, o autor diferencia o que,

naquele país, é considerado ato implícito daquilo que é tido por ato tácito. Aquele “é o

que resulta de uma conduta destinada a fim diverso, inferindo-se sem possibilidade de

dúvida dos facta concludentia”. Já o ato tácito é nome atribuído a duas realidades

distintas, as quais qualifica como ato tácito interno e ato tácito externo.

Criticando a denominação, ao passo que sustenta que a sua

verdadeira natureza jurídica seria de restrição temporal à competência do órgão tutelar,

explica que ato tácito interno qualifica o fenômeno em que a lei considera concedida a

aprovação tutelar após o decurso de um determinado prazo sem a manifestação do órgão

competente.

Por outro lado, ato tácito externo seria aquele que a lei, em

atenção ao interesse dos administrados, “permite que se passe ao processo contencioso

sem dependência da prática de um ato administrativo”.

Segundo o autor, o “pressuposto processual normal do recurso

contencioso é um ato administrativo – mas excepcionalmente pode o acto tácito

funcionar como pressuposto processual em alternativa com o acto administrativo”.

203 Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo. Coleção Jurídica Portuguesa. Ed. Ática, pág. 85/91.

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O chamado ato tácito externo não poderia ser considerado um

ato administrativo porquanto a administração não ficaria impedida de, mesmo decorrido

o prazo legal, “manifestar ulteriormente a sua vontade em sentido diferente do

tacitamente suposto”.

Como se vê, para o autor português, o chamado silêncio

administrativo ou ato tácito, independentemente do efeito que se lhe atribua, não pode

ser considerado ato administrativo.

2.2 - Direito italiano

Observa Pietro Virga que na doutrina italiana há uma grande

divergência quanto à natureza do silêncio administrativo204, que para ele se trataria a de

simples fato jurídico 205:

o silêncio consiste na omissão de qualquer comportamento, e isso não

pode assumir de per si algum significado nem positivo nem negativo.

Sob este enfoque pode considerar-se que o silêncio não é uma

manifestação tácita, nem um comportamento jurídico, e sim um simples

fato jurídico ( tradução nossa ).

204 “Como tácito, Zanobini, Corso, I, 287; como ato presumido, Alessi, Principi, I, 285; como declaração de valor legal típico, Sandulli, Manuale, 373; como fato idôneo para estabelecer a subsistência de um ato jurídico, Taseuro, Il silenzio nella teoria degli eventi giuridici, in Studi per Cammeo, II, 535, como um fato matéria, Bodda, Giustizia, 39; Scoca, Il silenzio della pubblica amministrazione, 64-65; Cassesse, Inerzia e silenzio della pubblica amministrazione ( Il Provvedimento Amiministrativo. Milano: Dott. A. Giuffre, 4a. ed. 1972.) 205 No original: “(...) il silenzio consiste nell‘omissione di qualsiasi comportamento, esso non può assumere di per sè alcun significato nè positivo nè negativo ( qui tacet neque negat, neque utique fatetur). Sotto questo profilo può considerarsi esatta l’affermazione che il silenzio non è nè una manifestazione tácita di volontà, nè un comportamento giuridico, bensi un semplice fatto giuridico” ( Il Provvedimento Amiministrativo. Milano: Dott. A. Giuffre, 4a. ed. 1972 ).

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Todavia, anota Helene Christiane Mendes Cabral206, que esse

mesmo autor italiano admite que o silêncio possa ser entendido como ato administrativo

desde que “a lei atribua a ele um valor positivo ou negativo e que se verifique na

circunstância tali da conferirgli o significado de um ato completo”.

Assim, conforme os efeitos que a lei atribua ao silêncio, dois

são os fenômenos possíveis.

Encontramos o chamado silenzio-rigeto qualificando situações

em que a administração não se manifesta tempestivamente nas hipóteses de interposição

de recurso hierárquico e o silenzio assenso o rifiuto, quando a administração não aprecia

postulações administrativas no prazo determinado207.

Embora a legislação admita a imputação de efeitos positivos ao

silêncio, anota Lúcia Valle Figueiredo que no direito urbanístico daquele país, segundo

a lição de Ítalo Di Lorenzo comentando decisão do Conselho de Estado de 20.6.1964,

de nº 793, que: Há a obrigação e não a faculdade de pronunciar-se sobre o requerimento

e de fundamentar aos interessados os motivos da decisão adotada;

portanto, o silêncio é ilegítimo, ainda que o requerido não tivesse sido

instruído de todos os elementos necessários.208

206 O silêncio no Direito Administrativo. Dissertação de Mestrado. PUC/SP: São Paulo, 2001. 207 “Senonchè, in qualche caso, è la legge stessa la quale dà al silenzio dell’amministrazione, in via de presuzione assoluta, il signnificato di un assenso o di un rifiuto: così, ad es. L’art.114 del R. D. 6 maggio 1923, n. 1054, stabilisce che chi vuole aprire al pubblico un istituto di instruzione média, deve farne domanda scritta al Provveditore, e se entro due mesi no intervine na opposizione motivata, l’istituto può esse aperto. Per contro l’art . 5 T.U della legge Com. e Prov. del 1934, stabilisce, come si è visto, che tarascorsi sessanta gonredalla istanz di decisone di un ricorso gerarchico sensa che sia intervenuta alcuna decisione il ricorso deve interedsi, a tutti gli effetti di legge, como rigettato.” ( Renato Alessi. Sistema Istituzionale del diritto amministrativo italiano. Milano: Dot, Antonio Giuffrè - Editore, 1953 ) 208 Diritto Urbanístico, pág. 636 apud Estatuto da cidade ( Comentários à Lei Federal 10.257/2001).Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz ( coordenadores).São Paulo: Malheiros, 2002.

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2.3 - Direito espanhol

Analisando a questão do silêncio administrativo no direito

espanhol, Enterría e Fernandez209, por exemplo, diferenciam a natureza jurídica do

silêncio conforme o efeito que se lhe atribua: negativo ou positivo. Para eles, quando

silêncio tem o chamado efeito jurídico negativo, qual seja, o de denegação ou

indeferimento do pedido ou postulação:

O silêncio negativo não é um verdadeiro ato administrativo de sentido

depreciativo, mas, precisamente, o contrário, isto é, a ausência de toda

atividade volitiva da Administração, ante o qual não são admissíveis

processos interpretativos destinados a averiguar o sentido de uma

vontade que não existe (...) O silêncio negativo é somente uma

simples ficção legal de efeitos estritamente processuais, limitados

ademais, a abrir a via de recurso.

Contudo, sustentam os mesmos autores que: o silêncio positivo da Administração tem um sentido e uma

funcionalidade radicalmente diferentes. De acordo com isso, sua

configuração técnica, seu âmbito de aplicação e seu regime jurídico

também são distintos. Em sua versão positiva ou estimatória o silêncio

da administração não tem nada a ver com a finalidade de facilitar as

exigências processuais que derivam da configuração impugnatória do

recurso contencioso administrativo. É simplesmente uma técnica

material de intervenção policial ou de tutela, que vem tonar mais

suave a exigência de obter para uma determinada atividade uma

autorização ou aprovação pela de um veto suscetível de exercitar-se

durante um prazo limitado, passado o qual o pedido pelo requerente se

entende outorgado. Pode-se dizer, portanto, do silêncio positivo que é

209 Curso de Direito Administrativo ( tradução Arnaldo Setti ) São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, pág. 517/522.

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um verdadeiro ato administrativo, equivalente a essa autorização ou

aprovação às que substitui.

Velarde Perez, que defende a existência dos chamados actos

presuntos como fenômeno distinto do silêncio administrativo, sustenta que mesmo nas

hipóteses em que a lei atribui o efeito positivo ao silêncio, não é possível identificá-lo

ao ato administrativo, pois normalmente, nesses casos, a norma estipula exigências para

o aperfeiçoamento do efeito que são superiores àquelas previstas para o perfazimento do

próprio ato:

O princípio – já mencionado e às vezes preceito legal contido em

diversas normas setoriais – de conformidade do requerido com as

exigências do ordenamento jurídico para que possa produzir o chamado

silêncio positivo, e conseqüentemente, presumir-se uma resolução

administrativa favorável suscita a questão da existência de requisitos de

produção adicionais aos dos atos administrativos para a produção de um

ato presumido de acordo com a concepção dominante sobre a natureza

jurídica do silêncio positivo. Realmente com o mencionado princípio o

que está se fazendo é transformar as exigências de legalidade de fundo,

que afetam todo ato administrativo, em parte do pressuposto de fato

para a produção do silêncio e, de acordo com a interpretação da

doutrina e jurisprudência, para a existência do ato. (...) Isto deve fazer-

nos pensar que, se nosso ordenamento estabelece para a produção do

silêncio positivo exigências que excedem em muito às do próprio do

ato, é por realmente o concebe de maneira diferente deste210.

210 No original: “El principio – ya aludido y a la vez precepto legal contenido en diversas normas sectoriales – de conformidad de lo solicitado con las exigencias del ordenamiento jurídico para que pueda producirse el llamado silencio positivo y, consecuentemente, presumirse una resolución administrativa favorable suscita la cuestión de la existencia de requisitos de producción adicionales a los del acto administrativo para la producción de un acto presunto de acuerdo con la concepción dominate sobre la naturaza jurídica del silencio positivo. Realmente con el mencionado principio lo que se está haciendo es transformar las exigencias de legalidad de fondo, que afectan a todo acto administrativo, en parte del presupuesto de hecho para la producción del silencio y, de acuerdo con la interpretación de la doctrina y jurisprudencia, para la existencia del acto. (...) Ello debe hacernos pensar que, si nuestro ordenamiento jurídico establece para la producción del silencio positivo unas exigencias que excedan

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2.4 - Direito argentino

No direito argentino, Agustín Gordillo211 observa que a

doutrina considerava que o silêncio administrativo era “tan sólo conducta inexpresiva

de la administración, inapta como manifestación de voluntad” e que, posteriormente,

passou a admitir que do silêncio poderiam ser extraídos certos efeitos jurídicos, sob o

argumento de que, fundando-se no princípio da confiança legítima ou boa-fé que

informa a atividade administrativa, era possível dele extrair-se uma razoável

interpretação.

Nesse sentido, aliás, pode ser citada a lição de José Luis

Said212, que, escrevendo sobre os prazos na LNPA (Lei Nacional de Procedimentos

Administrativos na Argentina), ensina que o direito positivo daquele país admite a

atribuição de efeito positivo ao silêncio: Existem prazos peremptórios para a Administração? Em princípio a

resposta deve ser negativa, já que o exercício de usa competência

‘constitui uma obrigação de autoridade’( art. 3o., LNPA ). Contudo, o

art.10 da LNPA ao admitir a possibilidade de que mediante disposições

expressas possa conferir-se ao silêncio ‘sentido positivo’ coloca uma

interrogação sobre a possibilidade de se ditar uma resolução tardia,

indeferindo petição já acolhida como conseqüência do silêncio. Carlos

Grecco sustenta que o silêncio positivo constituiu um limite à autuação

administrativa posterior, podendo apenas ser revogado o ato pela

Administração se concorrerem as condições que a lei exige para o

exercício de tal poder.

con mucho la propias del acto, es porque realmente lo concibe de manera diferenta a este”. ( José Ignacio Morillo-Velarde Pérez. Los actos presuntos. Madrid: Macial Pons Ediciones, 1995). 211 Tratado de derecho administrativo Tº 3, El acto administrativo. Belo Horizonte y San Pablo: Editora Del Rey y F.D.A., 1ª edición Brasileña, 2003. 212 As leis de processo administrativo. As Leis de Processo Administrativo Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.177/98, Carlos Ari Sundfeld e Guillermo Andrés Muñoz ( coordenadores ), São Paulo: Malheiros, 2000.

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Na lição de Gordilllo213, quando ao silêncio administrativo for

atribuído o efeito positivo, ele pode ser considerado um ato administrativo:

Por excepción, cuando el orden jurídico expresamente dispone que ante

el silencio del órgano, transcurrido cierto plazo, se considerará que la

petición ha sido aceptada, el silencio vale como acto administrativo.

Observa o mesmo autor, porém, que a administração é muito

relutante em ditar normas que estabeleçam os efeitos positivos ao silêncio nos casos

concretos.

Diferencia o administrativista portenho, ainda, o silêncio

administrativo da chamada manifestação tácita ou implícita de vontade, estando esta

caracterizada quando, da prática de outros atos, surge de forma inequívoca ou unívoca.

Segundo Gordillo, na doutrina argentina, Gonzáles Perez

sustenta que no caso do silêncio ter um efeito negativo, haveria um ato presumido, no

sentido de uma presunção legal, o que o diferenciaria dos atos tácitos ou implícitos, que

derivariam apenas de uma presunção racional da manifestação de vontade

administrativa.

Todavia, não concorda Gordillo com tal entendimento, dizendo

ser preferível ver no silêncio negativo apenas uma autorização ao interessado para que

dê continuidade à sua impugnação, na via administrativa ou judicial, conforme o caso,

pois admitir que o silêncio negativo seja considerado ato administrativo importaria em

tolerar, em desfavor do próprio particular, a existência de um ato sem fundamentação ou

motivação, o que não lhe parece ser uma construção razoável214.

213 Tratado de derecho administrativo Tº 3, El acto administrativo. Belo Horizonte y San Pablo: Editora Del Rey y F.D.A., 1ª edición Brasileña, 2003. 214 Estranhamente, o autor não demonstra a mesma preocupação quando admite que a atribuição do efeito positivo ao silêncio eleva-o à categoria de ato administrativo.

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Como se vê, no direito argentino, apenas o silêncio com efeitos

positivos poderia ser considerado um ato administrativo, tendo natureza de mero

pressuposto de abertura da via impugnatória ao interessado, quando lhe é atribuído o

sentido negativo.

2.5 – Direito Uruguaio

Comentando o procedimento administrativo no Uruguai, Juan

Pablo Cajarville Peluffo215 esclarece que a Constituição Uruguaia impõe a obrigação a

toda autoridade administrativa de decidir sobre qualquer requerimento formulado pelo

titular de um direito ou de um interesse legítimo, prevendo, ainda, que o requerimento

será considerado rejeitado, e o recurso administrativo desprovido, se o órgão

competente não os decidir no prazo estabelecido ( art. 318, caput e inciso 2o.)

Ao que parece, para o autor uruguaio o silêncio administrativo

não teria a natureza de ato administrativo, uma vez que a administração não ficaria

desobrigada de decidir a questão de forma expressa, ainda que decorrido o prazo para a

sua manifestação:

Esta conseqüência atribuída pela Constituição ao silêncio não é

uma forma de garantir o cumprimento da obrigação de decidir

imposta à Administração. É uma obrigação de fazer que só se

cumpre realizando-se efetivamente o comportamento imposto,

nunca mediante a omissão, ainda que a ele seja atribuída uma

conseqüência. Daí decorre que a caracterização denegatória ficta

não exime o órgão competente de decidir o requerimento ou o

recurso, proferindo decisão expressa.

215Juan Pablo Cajarville Peluffo. O procedimento administrativo no Uruguai. SUNDFELD, Carlos Ari e MUNÕZ, Gullhermo Andrés ( Coordenadores ). As leis do processo administrativo – Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.117/98. São Paulo: Malheiros, 2000.

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2.6 - Direito brasileiro

E no direito brasileiro: pode o silêncio administrativo ser

considerado um ato administrativo?

Temos que não.

Se adotado, como de fato adotamos, o conceito de ato

administrativo como sendo a declaração de vontade manifestada por quem estiver no

exercício da função administrativa visando à concretização da vontade geral, sendo

esta fixada por meio de comandos normativos de ordem constitucional ou legal, por

evidente, não podemos classificar o silêncio administrativo como ato administrativo,

pois ele não se consubstancia em uma declaração de vontade. Longe disso, o silêncio é

mesmo a própria falta de manifestação de vontade a que estava a Administração

obrigada a prestar em virtude de uma dada provocação (ou, ainda em virtude do

exercício da competência controladora).

É certo que na doutrina podemos encontrar quem pense de

forma diferente.

Neyde Falco Pires Corrêa 216, por exemplo, sustenta que o que

caracteriza um ato não é a sua formalização e sim a adequação dos fatos à hipótese

normativa, entendendo que:

A conduta da Administração referente a um fato cuja previsão abstrata

se encontre em prescrição normativa e que gere efeitos jurídicos, será

um ato administrativo, quer seja através de uma ação ou de uma

omissão.

216 O silêncio da administração. Revista de Direito Público, São Paulo, nº 69 – 122/133 – janeiro/março de 1984.

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143

Com o mesmo entendimento encontramos José Wilson Ferreira

Sobrinho217, que em artigo em que estuda a questão do silêncio administrativo e a

licença de construção escreve:

É necessário repensar o conceito de ato administrativo, de modo que o

mais importante não seja o instrumental vocabular usado para construí-

lo mas sim as realidade que dever abarcar. Resumindo: tanto é ato

administrativo aquele que é produzido por silêncio administrativo

positivo quanto o gerado por silêncio administrativo negativo. Ambos

são manifestações que produzem efeitos jurídicos ( no primeiro caso, a

concessão de licença: no segundo, a denegação ); ambos provêm do

Estado ( Administração Pública ): ambos forma produzidos por

autoridade que se encontrava acolhida pelo direito público, vez a

licença de construção não é disciplinada pelo direito privado

Destacaremos, pela importância, apenas dois dos autores que

não reconhecem ao silêncio administrativo a natureza jurídica de ato administrativo.

Hely Lopes Meirelles218 anota que “O silêncio não é ato

administrativo; é conduta omissiva da administração...”.

Celso Antônio Bandeira de Mello219, na mesma linha, entende

que “Na verdade, o silêncio não é um ato jurídico. Por isto, evidentemente, não pode

ser ato administrativo”.

Caberia, contudo, a pergunta: conquanto não traduzisse uma

forma expressa de manifestação de vontade, poderia o silêncio, então, no direito

217 ( RDP nº 99 - pág. 95/109 ). Para nós, sem razão o autor. Os elementos que cita como aptos a qualificar o silêncio como ato administrativo - produção de efeitos jurídicos, emanação por autoridade estatal acolhida pelo direito público - estão presentes também nos chamados atos materiais, atos políticos e regulamentos e nem por isso o autor, na mesma obra, os identifica ao ato administrativo ( “ A locução ato administrativo presentemente empregada exclui de sua dimensão semântica os atos regidos pelo direito privado, os atos materiais, ou atos políticos, os regulamentos... pág. 96 ). 218 Direito Administrativo Brasileiro, pág. 110. 219 Curso de Direito Administrativo, pág. 378.

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brasileiro ser qualificado como um ato administrativo tácito ou um ato administrativo

implícito?

A leitura apressada do art. 111 do Código Civil talvez

permitisse a conclusão de que o silêncio administrativo pudesse a vir ser considerado

como uma forma de manifestação tácita da vontade administrativa, com efeitos

positivos.

Todavia, temos que não há como se buscar, em diploma que

regula os atos da vida civil, o fundamento de validade para um efeito que se pretenda

emprestar ao exercício da função administrativa, subordinada e regulada por regime

jurídico próprio, de direito público, marcado que é por dois vetores essenciais que o

caracterizam e o diferenciam dos demais regimes jurídicos: a supremacia e a

indisponibilidade do interesse público.

Mas voltando à pergunta inicial, primeiro, quando se fala em

ato administrativo tácito ou ato administrativo implícito220, referimo-nos àquelas

situações em que a vontade estatal é manifestada de forma não expressa.221

Segundo, não vemos utilidade em separar dois rótulos - tácito e

implícito - para qualificar uma mesma situação jurídica, qual seja, aquela em que a

manifestação de vontade do Estado ou de quem estiver no exercício da função

administrativa é apenas inferida por não ter sido traduzida de forma expressa222.

220 Na definição de Vicente Escuin Palop, atos administrativos implícitos são “aqueles comportamentos dos quais se depreende uma declaração de vontade de um órgão administrativo sem seguir o correspondentes procedimento” ( El acto administrativo implícito. Madrid: Civitas, 1a. ed., 1999, pág. 13). 221 Segundo Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “... a manifestação da vontade (...) para produzir efeitos de direito, necessita de instrumento, por meio do qual ela se revela, isto é, a causa agente ou eficiente instrumental, que lhe dá aparência, que o exterioriza, denominada na técnica jurídico-positiva de forma do ato jurídico, e melhor se chamaria de fórmula ou de forma exterior do ato jurídico. A fórmula ou forma exterior do ato pode ser considerada sob diferentes aspectos e daí suas classificações. Quanto a estrutura, distingue-se em expressa ou tácita.” (Princípios Gerais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, vol. I, 1969, pág. 443 ). 222 Pensando de forma diferente, após comentar os entendimentos de Bandeira de Mello e Cassagne, escreveu Helane Christiane Mendes Cabral: “Diversamente desses pensamentos, entendemos ser o ato tácito uma categoria diferente do ato implícito. Aquele é uma forma de manifestação administrativa não

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É o que se pode dessumir da doutrina de Oswaldo Aranha

Bandeira de Mello223:

A manifestação tácita se deduz em conseqüência de ato positivo,

jurídico ou material, ou negativo, o silêncio. Assim, o particular

requer a devolução de determinado imóvel, sob a alegação de estar

indevidamente na detenção da administração Pública, por lhe

pertencer. Em vez de proferir despacho, de modo favorável ou

negativo ao pedido, no processo em que se encontra a petição, a

Administração pública determina que nesse imóvel se construa uma

escola pública. De modo tácito, fica indeferido o pedido. (...) De regra,

as manifestações tácitas de vontade são as pertinentes a situações que

configuram atos implícitos, como resultante de outros atos expressos

que os pressupõe. Tal ocorreria, verbi gratia, se a autoridade

competente decidisse vender bem público já materialmente

desafetado, pois o ato jurídico de decisão de venda implica,

necessariamente, de modo indireto, na declaração formal dessa

desafetação.

O silêncio é considerado pela doutrina uma forma de

manifestação tácita da vontade administrativa, de tal forma que se admitíssemos que a

Administração Pública pudesse se manifestar validamente de forma não expressa,

teríamos que concluir quanto à possibilidade da prática de um ato administrativo tácito.

expressa, desprovida de qualquer atividade jurídica ou material; nada mais é do que o silêncio administrativo. Ocorre quando o comportamento do agente público não é positivo nem negativo. Representa uma total omissão. Noutros termos, não diz nem sim nem não. Mas não constitui um ato, muito menos administrativo. (...) O denominado ato implícito é a manifestação expressa da Administração Pública e é concebido doutrinariamente quando o agente público, ante dois pedidos similares sobre o mesmo objeto, despacha somente em um, deferindo-o, deixando implícito o indeferimento do outro” Em que pesem os argumentos da autora, ela mesmo parece chegar à conclusão diversa quando afirma a impossibilidade fática do ato implícito por ser a sua prática inconciliável com a exigência do procedimento administrativo, chegando a afirmar, no mesmo trabalho, que: “E, se melhor pensarmos o chamado ato implícito, não concluiremos que houve ausência de manifestação no segundo pedido? Logo, também é uma forma de silêncio, de omissão. Logicamente igualar-se-ia ao ato tácito.” (O silêncio no direito administrativo. Dissertação de Mestrado. PUC-SP, 2001, pág. 105/108 ). 223 Princípios Gerais de Direito Administrativo, págs. 443/450.

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Como vimos, no direito comparado, é admitida a validade da

manifestação não expressa da vontade da Administração Pública, sendo o silêncio

considerado ato administrativo quando a lei lhe atribui efeitos jurídicos positivos.

Contudo, no sistema jurídico brasileiro atual, cremos não ser

possível se chegar à mesma conclusão.

Essa afirmação pode ser feita se considerarmos o silêncio

administrativo sob a perspectiva do direito administrativo que reputamos a correta, qual

seja, um conjunto de normas instrumentais conferidas à Administração para perseguir as

finalidades públicas.

Sob esse ângulo, temos não ser possível imaginar que, não

cumprindo a administração o dever de se manifestar, dessa sua omissão se considere

praticado um ato típico do exercício da função administrativa.

Esse dever público de decidir as questões que lhe são

deduzidas, que já decorria como corolário lógico do exercício da função administrativa

no modelo constitucional adotado, está agora legalmente estabelecido.

Como já dito, a Lei 9.784/99 em seu artigo 48224, positivou a

obrigação de a administração decidir as questões que lhes são submetidas pelos

administrados.

Ora, se a administração tem o dever legal de decidir as questões

que lhe são postas, não se pode pretender que o silêncio seja aceito como forma de

decisão.

224 Art. 48. A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência.

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Temos que o silêncio administrativo, em verdade, tem natureza

jurídica de mero fato administrativo, pelo que não pode ser considerado como meio

válido de manifestação não expressa de vontade pressuposta na prática de um ato

administrativo.

Um outro argumento pode afastar qualquer dúvida quanto à

possibilidade de, ao silêncio administrativo, atribuir-se natureza jurídica de ato

administrativo.

Explico. O silêncio administrativo também não poderia ser

qualificado como ato administrativo porque lhe faltaria um requisito formalístico de

validade que é a motivação225.

De fato. Com a Constituição de 1988, ganhou força na doutrina

o entendimento pela obrigatoriedade da motivação dos atos administrativos, pois a nova

ordem constitucional plasmou o Estado Brasileiro como um Estado Democrático de

Direito e, caracterizando-se este pela sua sujeição à rule of law, nada mais lógico, nada

mais natural do que ver na motivação um princípio informador de toda a atividade

administrativa.

É bem verdade que a doutrina mais moderna, mesmo antes da

Constituição de 1988, já defendia a obrigatoriedade da motivação dos atos

administrativos, o fazendo sob o fundamento dela expressar garantia própria dos

administrados em um Estado Democrático de Direito226.

225 Nesse sentido a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Aliás, se fora possível, em tais casos, considerar o silêncio como ato ( e já se viu que não pode sê-lo ), além de se ter que admitir a existência de um ato sem formalização – pior ainda, sem forma sequer ( o que é logicamente impossível ) – tratar-se-ia de um ato ilícito. Com efeito, a formalização é, de regra, uma garantia, quer para a Administração, que para o administrado, pois cumpre a função de conferir segurança e certeza jurídicas, as quais, destarte, ficariam suprimidas. Além disto, o pseudo-ato incorreria no vício de falta de motivação. Frustraria uma formalização que é uma garantia do administrado e um direito descendente do princípio de que todo poder emana do povo, o qual, bem por isto, tem o direito de saber as razões pelas quais a administração se decide perante dado caso” ( Curso de Direito Administrativo, pág. 379 ). 226 Já em 1985, Carlos Ari Sundfeld, citando Lúcia Valle Figueiredo, dizia que a contrariedade ao princípio da motivação seria “ranço de um Estado autoritário em que a Administração tudo pode em

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Assim, aceitar que o silêncio administrativo tenha natureza de

ato administrativo, dispensando-lhe a motivação como requisito de validade, é, no

limite, comprometer a própria garantia constitucional da revisão judicial dos atos

administrativos.

Com efeito, a motivação das decisões administrativas é a

garantia decorrente do devido processo legal substantivo que torna efetiva a

possibilidade do controle da legalidade dos atos administrativos pelo Poder Judiciário.

Some-se a isso que, a partir da edição da Lei 9.784/99, não é

mais possível, hoje, negar a necessidade da motivação nos atos administrativos.

De fato. A Lei 9.784/99, em seu art. 2º, positivou o princípio da

motivação como um dos princípios informadores de toda a atividade administrativa.

Veja-se que a Lei 9.784/99, além de em seu art. 2º elencar o

princípio da motivação como princípio informador da administração pública, em seu

art. 50, mais especificamente, tratou da motivação dos atos administrativos,

determinando as hipóteses em que ela deve ocorrer (incisos I a VIII) e as condições que

deve ou pode observar ( §§ 1º e 3º ).

Agora o trabalho importante do intérprete não é mais justificar

a obrigatoriedade da motivação e sim, analisando a nova lei, definir os limites e as

condições que deverá ela observar para o pleno atendimento do comando legal.

franca e frontal agressão aos direitos individuais“ (Motivação do ato administrativo como garantia dos administrados – Revista de Direito Público nº. 75, pág. 123).

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Capítulo VII – Os efeitos jurídicos do silêncio administrativo

Embora o silêncio da administração não possa ser qualificado

como ato administrativo, deve ser analisado como sendo um fato que produz

conseqüências jurídicas reguladas no âmbito do direito administrativo.

Os exemplos do direito comparado que trouxemos à colação

demonstram que, em regra, ao silêncio podem ser atribuídos efeitos negativos e

positivos.

Nossa preocupação é saber até que ponto é útil e legítima essa

atribuição de efeitos jurídicos ao silêncio administrativo, tendo em conta que a

administração estava, nas hipóteses em que é provocada, legalmente obrigada a

manifestar-se e mais, manifestar-se de forma motivada.

Pois bem. A Lei 9.784/99, conquanto tenha em seu art. 48

estabelecido um dever de decidir à administração, não previu qual seria a sanção pelo

seu descumprimento, tampouco as conseqüências jurídicas para o particular – positivas

ou negativas – da falta de decisão.

De fato. A Lei 9.784/99 em seu artigo 49 apenas prevê que a

Administração, após a conclusão do processo administrativo, terá o prazo de 30 dias

para decidir, podendo esse prazo ser prorrogado por igual período em decisão motivada.

Tal postura acabou sendo criticada por alguns doutrinadores 227

que pretendiam que a lei federal já regulasse os efeitos decorrentes da omissão

administrativa.

227 Por exemplo, comentando o tema, escrevem Sérgio Ferraz e Adilson Dallari: “De se lastimar, contudo, tenham sido até criados alguns mecanismos de frontal contrariedade à realização do propósito de duração razoável do processo. Nesse sentido, para exemplificar:(...) c) tampouco ousou o legislador enfrentar aberta e frontalmente a questão da conseqüência processual na hipótese de omissão do dever

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O que cabe perguntar é, primeiro, quais poderiam ser esses

efeitos jurídicos e, segundo, se haveria razão para que a lei prescrevesse conseqüências

normativas ao silêncio.

1 – Efeitos negativos

Como dito, no direito comparado, quando a lei imputa efeitos

jurídicos negativos ao silêncio, o faz como forma de permitir ao particular o acesso à via

contenciosa, o que ficaria impedido enquanto a administração não se manifestasse

previamente sobre a matéria. O silêncio, assim, é apenas um pressuposto para a

instauração do processo contencioso.

O silêncio negativo poderia ser considerado, à luz do direito

brasileiro, um pressuposto processual?

Como sabemos, o sistema constitucional brasileiro não adota a

dualidade de jurisdição e tem como garantia individual o princípio da inafastabilidade

do controle jurisdicional ( art. 5º, XXXV, CF/88 ).

Todavia, há, em nosso ordenamento jurídico, hipóteses em que o

acesso ao Judiciário pressupõe o esgotamento da via administrativa ou, pelo menos,

uma prévia provocação da autoridade administrativa.

de decidir dentro dos prazos consignados no diploma ( arts. 49 e 59 )(...) Melhor seria, aliás, que a lei tivesse enfrentado expressamente o problema do silêncio administrativo, a ele conectando a conseqüência de se ter por procedente o pleito. Mas, como não fez, princípios vários ( dentre eles o do formalismo, o da finalidade, o da indisponibilidade do interesse público ) impedem, ressalvada a hipótese de atos vinculados, quando a vontade e /ou juízo administrativo são fatais decorrência das etapas precedentes que os conformam ) que se dê ao silêncio essa conseqüência. As advertências de Couture (tempo é justiça) e de Sentís Melendo ( tempo é liberdade ), projetadas, embora, à luz da processualística cível, imporiam no processo administrativo a solução ora sustentada.” ( Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1ª edição, 2002, pág. 41 ).

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No primeiro caso, podemos citar o exemplo das ações relativas

à justiça desportiva228. De fato. Dispõe o art. 217, §1o da Constituição Federal de 1988:

O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às

competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça

desportiva, regulada em lei - § 2º A justiça desportiva terá prazo

máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo para

proferir decisão final.

Comentando o artigo, escreveu Álvaro Melo Filho:

Esse ditame foi inserido na Lei das leis do Brasil considerando,

sobretudo, que: a) o congestionamento da Justiça Estatal não permite

que as demandas e os conflitos desportivos tenham uma tramitação

rápida e célere, o que, na prática desportiva, prejudica o normal

andamento das competições e perturba a dinâmica das disputas

sucessivas constantes de calendários inadiáveis que não podem ficar

condicionados à morosidade e às soluções delongadas das decisões

judiciais, até porque, no dizer de Pontes de Miranda ‘justiça tardia é

injustiça’; b) há um evidente despreparo da Justiça Estatal para o trato

das questões jurídico-despotivas, que exigem dos julgadores o

conhecimento e a vivência de normas, práticas e técnicas desportivas a

que, normalmente, não estão afeitos e familiarizados, criando, desse

modo, um perigo extraordinário em termos de denegação de justiça,

pois há peculiaridades da codificação desportiva compreendidas e

explicadas somente por quem milita nos desportos.(...) Esclareça-se que

o art. 217 da Lex Magna no seu § 1º, não proíbe, mas condiciona a que

se esgotarem, previamente, a vias da Justiça Desportiva para posterior

acesso ao Poder Judiciário. Aliás, a doutrina jurídica brasileira sempre

lutou para viabilizar, na prática, esse permissivo constitucional,

adaptando-o aos interesses do desporto, com o que todos ganharão: a

Justiça Estatal, que passará a conhecer somente daquelas controvérsias

228 Novo Regime Jurídico do Desporto – Comentários à Lei 9.615 e suas alterações. Brasília: Brasília Jurídica, 1ª edição, 2001, pág. 172/175.

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insuperáveis no plano pré-processual, quando a decisão da Justiça

Desportiva tenha deixado a desejar, seja porque não reparou a lesão ao

direito individual, seja porque ela mesmo se configure numa tal lesão,

seja porque ultrapassado o prazo para a prolação do decisório.

Um outro exemplo de situação em que o acesso ao judiciário

fica condicionado à prévia provocação da via administrativa, é encontrado na disciplina

legal relativa ao habeas data229.

Nessas hipóteses, temos que o silêncio negativo qualifica-se

também no direito brasileiro como um simples pressuposto processual ao acesso à via

jurisdicional.

Afora os casos em que, como especialíssimas exceções, o acesso

ao judiciário fica condicionado a uma prévia provocação da autoridade administrativa,

haveria utilidade em atribuir ao silêncio da administração efeitos meramente negativos?

Talvez o que pudesse justificar a previsão expressa do sentido

negativo ao silêncio, qual seja, o de denegação do pleito, seria a preocupação com a

segurança jurídica das relações.

Realmente. Se deduzida uma pretensão perante a administração,

enquanto ela não estiver decidida, não haveria definição jurídica da matéria, não se

podendo, por exemplo, contra o particular ser invocada a prescrição230.

229HABEAS DATA. AUSENTE O INTERESSE DE AGIR. EXTINÇÃO DO FEITO, SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. I - É pressuposto da utilização do remédio constitucional a comprovação da recusa da autoridade ao fornecimento das informações desejadas. II - Orientação da Súmula n. 2, do e STJ, positivada no parágrafo único do Art. 8º, da Lei n. 9.507/97. III - Ausente o interesse de agir, de ser extinto o feito, sem julgamento de mérito, com esteio no Art. 267, IV, do CPC Origem: TRF 3ª REGIÃO Classe: HABEAS DATA - Processo: 200103990587115 UF: SP Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA Data da decisão: 06/11/2002 Fonte DJU DATA:20/11/2002 PÁGINA: 258 Relator(a) JUIZ BAPTISTA PEREIRA. 230 O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n 115.033-5, relatado pelo Min. Carlos Madeira, entendeu que não tinha ocorrido a prescrição do fundo do direito em um caso que um policial militar mineiro, reformado no ano de 1959, requereu a retificação do cálculo de sua aposentadoria no ano de

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A atribuição do efeito negativo ao silêncio, é verdade,

resolveria esse tipo de problema.

Foi o que fez a Lei 10.177/98, que regula o processo

administrativo no Estado de São Paulo, ao prever, em seu art. 33, § 1º, que o prazo

máximo para as decisões de requerimentos de qualquer espécie é de 120 dias,

considerando-se rejeitado o pleito se, nesse prazo, não for tomada a decisão.

Todavia, entendemos que, regra geral, não se deve aceitar como

legítima a atribuição de efeitos negativos ao silêncio da administração.

A atribuição dos efeitos de denegação ao silêncio administrativo

não é compatível com o nosso sistema constitucional que traz, como um de seus

princípios informadores, a exigência da motivação dos atos administrativos, princípio

esse positivado, no que toca à administração federal, pelo art. 50 da Lei n º 9.784/99.

Destarte, a administração tem o dever legal de decidir os

pedidos e as pretensões que lhe são deduzidas, de forma que o seu silêncio não venha a

inviabilizar o exercício de direitos legitimamente titularizados pelos particulares.

Daí porque entendemos que ao silêncio administrativo não se

poderá, como regra geral, atribuir-se o efeito negativo ou de denegação.

1964, com base em uma lei de 1963. Como não houve decisão administrativa quanto ao seu pedido, em 1982, ou seja, quase 20 anos depois, propôs uma ação judicial. O Estado de Minas alegou prescrição. Entendeu-se no julgamento que não tendo havido decisão administrativa sobre o pedido formulado, o prazo prescricional não tinha sequer iniciado a sua marcha: “Houve, assim, silêncio da Administração a respeito da reclamação feita pelo ora recorrido. E o silêncio – anota Hely Lopes Meirelles – não é ato administrativo: é conduta omissiva da Administração que, quando ofende direito individual do administrado ou de seus servidores, sujeita-se à correção judicial e à reparação decorrente de sua inércia.”(...) Aldo Sandulli denomina essa omissão de silêncio – inadimplemento -, que se caracteriza pela omissão de qualquer providência – como “ l’inadempimento del dovere de provvedere” (...) Esse silêncio da Administração não faz perecer o direito do administrado. Se a reclamação administrativa deu entrada no prazo, ou seja, a 9 de junho de 1964, como o próprio recorrente declara, houve suspensão da prescrição. (...) No caso presente, não houve só demora no estudo da reclamação administrativa do recorrido, mas arquivamento, com inadimplemento do dever de providenciar sobre a matéria posta a exame da administração. Não fluiu, evidentemente, a prescrição, configurando o silêncio da administração um abuso de poder”.

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Observa-se, ainda, que embora não tenha a Lei nº 9.784/99

estabelecido uma conseqüência específica para o desatendimento de seu art. 48, como

bem lembra Celso Antônio Bandeira de Mello, a omissão administrativa pode levar à

responsabilização pessoal do agente a quem ela possa ser atribuída ( art. 116, I da Lei

8.212, de 11.12.90 ) ou, ainda, a responsabilização patrimonial do Estado, se dela

decorreu dano ao particular ( CF, art. 37, § 6º ).

2 - Efeitos positivos

Vejamos, agora, o problema do silêncio administrativo com

efeitos positivos no direito brasileiro.

Valendo-se dos exemplos colhidos na doutrina estrangeira,

pensamos que os efeitos positivos ao silêncio administrativos seriam atribuídos,

essencialmente, em duas hipóteses: a) nos atos de aprovação das autoridades superiores

sobre os atos das inferiores ( controle interno ) e b) nos casos em que o particular

solicita uma permissão, licença ou autorização para a prática de uma dada atividade ou

utilização de um bem público.

Não vamos aqui analisar diretamente o problema do silêncio

administrativo caracterizado no exercício da competência controladora da administração

em relação aos seus próprios atos.

Agora, e nos casos em que o particular deduz um pedido perante

a administração, seria possível a atribuição de efeitos positivos ao silêncio, vale dizer,

efeitos de deferimento da pretensão?

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Esclareça-se que estamos aludindo às hipóteses em que a

atividade administrativa consubstancia o que a doutrina costuma chamar de técnica

autorizadora231 ou provimentos autorizatórios232.

De início, poderíamos dizer que, em face do princípio da

indisponibilidade do interesse público, não seria sequer razoável imaginar que, ao

silêncio da administração, fossem atribuídos efeitos positivos.

Escrevendo sobre a transparência administrativa, Wallace Paiva

Martins Júnior233 defende posição contrária à possibilidade de se atribuir efeitos

positivos ao silêncio, dizendo: A incidência de efeito positivo ao silêncio traz mais prejuízos do que

vantagens. Por um lado, incute temor psicológico, obrigando a

Administração Pública a decidir motivadamente para alijar os possíveis

resultados nocivos da omissão. Por outro lado, como medida de

desburocratização, estimula a má gestão da res publica e a

irresponsabilidade de seus agentes. E frustra os objetivos de

transparência, pois se o princípio prevalente ( no direito brasileiro ) é a

motivação dos atos estatais, sua relevância jurídica como formalidade

essencial do ato administrativo corre o risco de ser neutralizada.

Todavia, não há negar, existem comportamentos privados que,

conquanto tenham o seu exercício condicionado à concordância administrativa, não

podem ser considerados como de interesse público propriamente dito234.

231 Quando, no dizer de Enterría e Ramon Fernandes: “A intervenção da administração por via do consentimento de exercício de atividade se configura como requisito necessário de dito exercício, que, de outro modo, ou bem não poderia desenvolver-se validamente, ou bem se veria privado de efeitos jurídicos” ( Curso de Direito Administrativo, p. 846 ). 232 Para Lúcia Valle Figueiredo, provimento autorizatórios “são todos aqueles que possibilitam ao indivíduo o exercício de atividades legalmente permitidas, sob certos pressupostos” ( Curso de Direito Administrativo, pág.169 ). 233 Transparência administrativa. São Paulo: Saraiva, 2004. 234 Podemos citar os exemplos referidos por Hely Lopes Meirelles, ao tratar das chamadas autorizações de uso: “Essas autorizações são comuns para a ocupação de terrenos baldios, para retirada de água em fontes não abertas ao uso comum do povo e para outras utilizações de interesse de certos particulares, desde que não prejudiquem a comunidade nem embaracem o serviço público” ( Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 10ª edição, 1998, p. 240. )

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Nessas hipóteses, em que o particular tem por condicionada a

prática de uma dada atividade ou uma determinada postura a uma manifestação

administrativa, sem que esse comportamento a ser desenvolvido vá, de qualquer forma,

refletir em interesses de terceiros, entendemos que é possível falar-se em efeitos

positivos ao silêncio administrativo.

Vale dizer, justificando o particular o comportamento a ser

adotado, se no prazo legal não houver a manifestação administrativa, entende-se que ele

foi autorizado.

Como exemplo de norma que atribui o efeito positivo ao

silêncio administrativo, podemos citar o §3o do art. 26 da Lei nº 9.478/94, que

estabelece que serão considerados aprovados pela ANP os projetos de desenvolvimento

e produção apresentados pelos concessionários se, no prazo de 180 dias, não sobrevier

manifestação da agência reguladora235.

Ainda, no âmbito da ANP, outra norma que atribui efeitos

positivos ao silêncio administrativo é a veiculada pela Portaria nº 29/99, que

regulamenta da atividade de distribuição de combustíveis líquidos derivados de

petróleo, álcool combustível e outros combustíveis automotivos.236.

235 Necessário lembrar que a eficácia da referida norma foi inicialmente suspensa pela medida liminar concedida pelo Min. Carlos Britto nos autos da ADI 3.273, decisão essa, de sua vez, também suspensa por força de decisão monocrática do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Mim. Nelson Jobim, nos autos do Mandado de Segurança nº 25.024-1. 236 Art. 7º A ANP emitirá parecer autorizando o exercício da atividade de distribuição, no prazo de até 90 (noventa) dias, contados a partir da data da protocolização do requerimento da interessada. § 1º A não manifestação da ANP, no prazo previsto no caput, acarretará o deferimento do pedido de Autorização.( destaquei ). § 2º A Autorização somente será concedida após a aprovação pela ANP de toda a documentação exigida no artigo anterior. § 3º A ANP poderá solicitar da interessada, informações ou documentos adicionais, e, neste caso, o prazo mencionado no caput deste artigo será contado a partir da data de atendimento das solicitações, devidamente protocoladas na ANP. § 4º Não será concedida autorização a interessada de cujo quadro de administradores, sócios cotistas ou acionistas participe pessoa física ou jurídica que, nos últimos cinco anos, tenha sido administrador de distribuidora, que, obedecido o devido processo legal, não tenha liquidado débitos decorrentes do programa de subsídios.

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157

Um outro exemplo que pode ser citado, quanto à atribuição de

efeitos positivos ao silêncio, é o art. 27 do Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10 de

Julho de 2001, que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, ao

disciplinar o direito de preempção conferido ao poder público municipal ( artigos 25 a

27 ), fixando o prazo de 30 dias para a manifestação do Município quanto ao seu

interesse na compra de imóvel situado em área de incidência desse direito, findo os

quais fica o proprietário autorizado a realizar a alienação a terceiros ( art. 27, §3 ), desde

que observadas as mesmas condições oferecidas ao ente público.

Também pode ser mencionado, como norma que atribui efeito

positivo ao silêncio administrativo, o artigo 54 § 7o da Lei 8.884/94 que dispõe sobre a

intervenção na ordem econômica na regulação da livre concorrência. Ao disciplinar a

submissão ao CADE dos atos e contratos que, de qualquer forma, possam afetar

prejudicialmente a livre concorrência ou implicar a monopolização do mercado de bens

e serviços, estabelece a norma que a autarquia tem, pelo seu Plenário, o prazo de 60 dias

( art. 54, § 6o., da Lei 8.884/94 ) contados da data do recebimento do processo instruído,

para decidi-lo, sendo que a não apreciação do pedido no prazo estabelecido implica a

aprovação automática da operação.

A questão que se coloca, agora, é saber se atribuição desse efeito

positivo ao silêncio administrativo é compatível com nossa ordem constitucional.

A principal justificativa para a imputação de efeitos legais

positivos à falta de manifestação administrativa no prazo que a lei estabelece é a de

salvaguardar o interesse do particular que não poderia ser prejudicado pela ineficiência

da administração pública em fazer cumprir os prazos que lhe são impostos.

Todavia, temos que essa possibilidade deve ser aceita com

temperamentos, pena de se esvaziar um dos princípios fundamentais da atividade

administrativa que é o da motivação.

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A nosso sentir, como esposado, só será constitucionalmente

válida a atribuição de efeitos positivos ao silêncio administrativo quando esse

comportamento do particular que será tacitamente autorizado não possa, de nenhuma

maneira, atingir interesses de terceiros, seja porque não lhes pode causar gravames, seja

porque não há um outro interesse particular que lhe é contraposto ou paralelo.

Se a decisão administrativa, ainda que indiretamente, refletir

sobre um outro interesse particular, aí não se poderia falar em silêncio positivo, devendo

a manifestação administrativa ser explícita, e, por conseguinte, devidamente motivada a

decisão adotada nesse ou naquele sentido.

Como dissemos, a motivação é requisito legal dos atos

administrativos que, de qualquer forma, impliquem limitações ao direito do particular.

Contudo, temos que a motivação também é obrigatória, como

regra, nos atos ampliativos de direito.

A afirmação acima poderia ser questionada, trazendo-se como

argumento o fato de a Lei nº 9.784/99, ao tratar, em seu art. 50, dos atos administrativos

nos quais a motivação é obrigatória, não ter se referido aos atos que possam beneficiar

ou ampliar a esfera de direito dos particulares.

Sucede que, a nosso sentir, a motivação se consubstancia em

princípio constitucional informador do exercício da função administrativa, não se

podendo entender, por conseguinte, que a exigência da motivação se limite aos atos

administrativos tratados no rol do art. 50 da Lei 9.784/99.

A exigência de motivação, assim, estende-se aos atos

ampliativos de direito237. Ora, do mesmo modo que a atuação estatal não pode atingir

237 Esse é o entendimento esposado por Celso Antônio Bandeira de Mello, ao comentar o art. 50 da Lei 9.784/99: “Conquanto seja certo que o arrolamento em apreço abarca numerosos e importantes casos, o fato é que traz consigo restrição intolerável. Bastar lembrar que em país no qual a Administração

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os direitos individuais sem a observância do devido processo legal, também essa

atuação não pode importar em vantagem pessoal sem que esteja ela balizada pelos

princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade.

Não pode o Estado atribuir vantagem ou ampliar direitos a

determinado indivíduo sem que também explicite os motivos de fato e de direito que o

autorizem ou o obriguem a proceder daquela forma.

E é só por meio da motivação que se vai poder avaliar a

conformidade daquele ato à Lei e ao Direito.

Assim, também o princípio da motivação, a nosso ver, impede

que ao silêncio administrativo, como regra, sejam atribuídos efeitos positivos.

3 - Outros efeitos

Vimos, até o momento, que ao silêncio da administração

normalmente são atribuídos efeitos negativos ou positivos com as conseqüências daí

advindas.

Todavia, na feliz expressão de José Wilson Ferreira

Sobrinho238, pode-se dizer que essas modalidades do silêncio administrativo – negativo

e positivo – são como que a estação inicial e a estação final de uma viagem de trem,

podendo existir, entre elas, outras possíveis estações intermediárias, ou no que aqui nos

interessa, outros possíveis efeitos ao silêncio administrativo.

freqüentemente pratica favoritismos ou liberalidades com recursos públicos a motivação é extremamente necessária em atos ampliativos de direitos, não contemplados na numeração” ( Curso de Direito Administrativo, p. 444 ). 238 Silêncio Administrativo e Licença de Construção. RDP nº 99 - pág. 95/109.

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O Código de Edificações do Município de São Paulo, Lei

11.228/92, regulamentada pelo Decreto n º 32.329, de 23 de setembro de 1992, em sua

Seção nº 4239, por exemplo, cria o que podemos chamar de efeito positivo-

condicionado240.

O particular que requerer o “alvará de aprovação”, se não

obtiver resposta em 90 dias, poderá imediatamente requerer o “alvará de execução”, e

passados 30 dias sem respostas, poderá iniciar a obra, sob sua responsabilidade,

sujeitando-se, no caso de irregularidades oportunamente verificadas, às sanções

legais.241.

Sendo indeferido o pedido, deverá paralisar imediatamente a

obra242.

A nosso sentir, disposições normativas como a ora em comento,

guardam pelos menos duas vantagens em relação à pura e simples atribuição de efeitos

positivos ao silêncio administrativo.

Primeiro, porque impede que dela possam surgir discussões

quanto a eventuais direitos subjetivos gerados com a aprovação tácita do pedido; 239 Seção 4.2 – Prazos para despacho: 4.2 O prazo para despacho não poderá exceder a 90 (noventa) dias, inclusive nos pedidos relativos a reconsideração de despacho ou recurso. (..) 4.2.3 - Escoado o prazo para decisão de processo de Alvará de Aprovação, poderá ser requerido Alvará de Execução. Decorridos 30 (trinta) dias deste requerimento, sem decisão no processo de Alvará de Aprovação, a obra poderá ser iniciada, sendo de inteira responsabilidade do proprietário e profissionais envolvidos a eventual adequação da obra às posturas municipais. 4.2.4 - Escoado o prazo para decisão do processo relativo a emissão de Certificado de Conclusão, a obra poderá ser utilizada a título precário, não se responsabilizando a PMSP por qualquer evento decorrente de falta de segurança ou salubridade. 240 Segundo Gordillo, o direito urbanístico norte americano adota o conceito de construção por conta e risco do profissional, no sentido que o interessado executa a obra conforme a legislação pertinente, sob pena de ter de demoli-la. ( Tratado de Derecho Administrativo, Cap. III - pág. 7). Não nos parece que o exemplo seja o mesmo da legislação municipal a que fizermos referência, ao passo que, naquele país, haveria uma autorização geral para as construções se observados forem os requisitos normativos, vale dizer, a construção independe de requerimento específico por parte do interessado. Fica, contudo o registro do exemplo encontrado no direito comparado. 241 Lei 11.228/92 – Seção nº 6.3.10 - A execução de obra ou serviço sem o devido licenciamento ou em desacordo com o mesmo constitui infração sujeita à aplicação das penalidades previstas na tabela constante do Anexo III desta lei 242 DECRETO No 32.329 - Seção nº 4.B.4.4- Indeferido o pedido de Alvará de Aprovação e, consequentemente, o de Execução, a obra deverá ser paralisada de imediato; a interposição de recurso não terá efeito suspensivo, devendo a obra, se iniciada, permanecer sustada.

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segundo, porque, não desobriga a administração de decidir o requerimento, é dizer, não

a desobriga de manifestar-se de forma expressa sob uma pretensão, ao mesmo tempo em

que não pune o interessado, fazendo-o sofrer as conseqüências da mora administrativa.

Uma outra hipótese de conseqüência jurídica ao silêncio

administrativo pode ser encontrada na lição de Bruno de Souza Vichi que, ao comentar,

em obra conjunta sob a coordenação de Lúcia Valle Figueiredo243, o artigo 61 da Lei de

Processo Administrativo – Lei nº 9.784/99, defende que a não observância, pela

administração, do prazo para a decisão do recurso administrativo deve implicar a

modificação dos efeitos do recebimento da via recursal. Afirma o autor:

Com efeito, caso não prospere o entendimento de que o silêncio da

Administração Pública, diante da obrigação de decidir sobre recurso

administrativo, representa o não provimento dos argumentos trazidos

pela peça recursal, é imperioso que se dê efeito suspensivo automático

ao recurso, na hipótese de a manutenção da decisão recorrida, por

inação da Administração. Neste sentido, e para estes casos, a leitura que

se deve fazer do disposto no parágrafo único do art. 61 é a de que, na

hipótese de desatendimento do prazo previsto o art. 59, §1o., e havendo

risco de prejuízo ao recorrente, a autoridade recorrida ou a

imediatamente superior deverá, de ofício, ou a pedido, dar efeito

suspensivo ao recurso. Esta é a interpretação que se coaduna com o

princípio da segurança jurídica.

Embora não concordemos com o autor no ponto em que

sustenta que a não apreciação do recurso, no prazo legal, deva ser entendido como o seu

improvimento, subscrevemos a idéia por ele defendida de que nessas hipóteses a mora

da administração permite que, mediante provocação fundamentada244, ao recurso seja

243 Comentários à Lei Federal de Processo Administrativo ( Lei nº 9.784/99). Lúcia Valle Figueiredo (Coordenadora). Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, pág. 253. 244 Se o objeto da ação em que se discute o silêncio administrativo for a prestação de tutela jurisdicional que produza os efeitos da declaração faltante, na impossibilidade de fazê-lo em sede liminar, havendo pedido, é possível que a atribuição do efeito suspensivo ao recurso administrativo pendente de julgamento

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emprestado o efeito suspensivo que originalmente ele não detinha, evitando-se, assim,

que o particular seja duplamente punido: suportar os efeitos de uma decisão que lhe é

desfavorável e os efeitos da ineficiência administrativa quanto à apreciação de seu

recurso no prazo legal.

Os princípios que informam toda atividade administrativa em

geral e o princípio da motivação, em particular, a nosso sentir, inviabilizam quaisquer

tentativas de, a pretexto de simplificar a atividade administrativa, de forma ampla e

indiscriminada, emprestar efeitos jurídicos válidos ao comportamento que é o próprio

sintoma do descumprimento dos deveres legais.

De toda forma, ressaltamos que, em dadas hipóteses, presentes

alguns pressupostos que reputamos necessários, pelos valores que envolveriam e

qualificariam situações em que o interesse individual seria prevalente e, ao mesmo

tempo e de qualquer modo, não afetariam o interesse coletivo ou um outro interesse

individual qualquer, seria possível a atribuição de efeitos jurídicos positivos ao silêncio.

Mesmo nessas hipóteses, contudo, reputamos que o chamado

efeito positivo-condicionado traduziria uma melhor solução da matéria à luz de nosso

sistema constitucional.

Exercendo a administração poderes instrumentais que lhe são

conferidos na exata extensão em que se façam necessários para concretizar interesses

públicos, ante de mais nada e acima de tudo, tem ela a obrigação de decidir - e decidir

motivadamente - as questões que lhe são postas pelos particulares. Apenas em dadas e

especiais hipóteses o seu silêncio poderia ser reputado como resposta não expressa.

Em suma, temos que é possível a atribuição de efeitos jurídicos

ao silêncio administrativo, sejam negativos, sejam positivos, se e quando a matéria for

seja feito como providência cautelar, como forma de se garantir ao administrado a utilidade da futura decisão ( art. 273, §7o. do CPC ).

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tratada em caráter de estrita excepcionalidade, pois, como ensina Morillo-Velarde

Pérez245:

O silêncio administrativo, tanto em sua versão positiva como negativa,

só é remédio apropriado quando a inatividade é conduta excepcional.

Pois a reiteração do primeiro convida à anarquia e é mostra de

desgoverno e o abuso do segundo leva os administrados ao desespero

(tradução nossa ).

245 No original: “El silencio administrativo, tanto en suya versión positiva como negativa, sólo es remedio apropiado cuando la inactividad es conducta excepcional. Pues el primero reiterado invita a la anarquía y es muestra de desgobierno y el abuso del segundo aboca a los administrados a la desesperación”. El silencio administrativo, Javier Barnes Vázques ( Coodinador ). El procedimiento administrativo en el derecho comparado. Madrid, Civitas, 1993 apud Gordillo, Tratado de Derecho Administrativo, pág. 7.

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Capítulo VIII - O controle jurisdicional

1 – Observações necessárias

O problema do controle jurisdicional do silêncio administrativo,

em verdade, só pode estar configurado quando a norma legal, de forma expressa, não

prevê qualquer efeito jurídico para a falta de manifestação administrativa.

De fato. Se a norma dispuser que o silêncio deva ser entendido

como deferimento ou indeferimento de uma dada pretensão deduzida na via

administrativa, não haverá espaço para a discussão que aqui pretendemos abordar.

Obviamente, estamos nos referindo à hipótese em que o

particular diretamente interessado na manifestação administrativa vem a juízo reclamar

o silêncio da autoridade responsável. Se a lei já atribuiu um ou outro efeito, não haveria

razão para se a discutir a falta de manifestação propriamente dita, havendo espaço, aí

sim, para ser objeto de questionamento a própria legitimidade da atribuição desse efeito.

Todavia, não se descarta a hipótese de que o próprio particular

interessado ou mesmo terceiro que sinta o reflexo da omissão administrativa venham a

juízo discutir não a falta de decisão e sim a legitimidade de a lei atribuir àquela omissão

o efeito jurídico positivo ou negativo.

Vamos, contudo, cingir nossa análise à primeira hipótese

aventada, qual seja, a do controle nos casos em que embora havendo prazo expresso

para manifestação administrativa, ou, na falta dele, quando decorrido prazo razoável246,

a lei não precise que efeitos jurídicos a omissão poderia gerar.

246 Lembrando que pela Emenda Constitucional nº 45 de 08 de dezembro de 2004 foi acrescentado ao artigo 5o da Constituição Federal, o inciso LXXVIII, que estabelece: - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

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E essas hipóteses são muitas em nosso direito positivo.

Conquanto o art. 49 da Lei nº 9.784/99 tenha aplicação

subsidiária a todos os processos administrativos previstos em legislação especial, de

sorte que, em tese, no âmbito da administração federal, não há vazio legislativo quanto

ao prazo que a administração tem para apreciar os pedidos que lhe são submetidos, a

mesma dificuldade pode ser antevista, quando na falta de prazo específico para a

manifestação administrativa, o decurso de tempo entre o pedido e a omissão caracterizar

um intervalo que não se possa ser considerado, sob qualquer aspecto, razoável.

Pois bem. A primeira pergunta a ser respondida seria: não se

manifestando a administração quanto a uma dada pretensão no prazo que a lei lhe

facultava ou, na falta dele, em um intervalo de tempo razoável, quais as possibilidades

de controle são conferidas ao Poder Judiciário?

Na doutrina encontramos, basicamente, dois posicionamentos:

a) há o entendimento que o Poder Judiciário, na hipótese, compete apenas a

possibilidade de prestar a tutela jurisdicional obrigando a administração a se manifestar,

como, b) há o entendimento de que a possibilidade de ação do Poder Judiciário está

ligada à competência autorizadora da prática do ato omitido: se vinculada, o Judiciário

poderia desde logo reconhecer ou denegar ao particular o direito pleiteado, enquanto, se

discricionária, tendo em vista a prática do ato omitido depender do exame de

conveniência e oportunidade administrativas, o único comportamento a ser adotado pelo

Judiciário seria o de obrigar a manifestação administrativa no caso concreto.

Hely Lopes Meirelles247 entende que em havendo o silêncio

administrativo, o particular pode obter a tutela jurisdicional que obrigue a concretização

da manifestação administrativa ou que lhe supra os efeitos:

247 Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 27a edição, 2002.

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Quando não houver prazo legal, regulamentar ou regimental para a

decisão, deve-se aguardar por um tempo razoável a manifestação da

autoridade ou do órgão competente, ultrapassado o qual o silêncio da

Administração converte-se em abuso de poder, corrigível pela via

judicial adequada, que tanto pode ser ação ordinária, medida cautelar,

mandado de injunção ou mandado de segurança. Em tal hipótese não

cabe ao Judiciário praticar o ato omitido pela Administração, mas sim

impor a sua prática, ou desde logo suprir seus efeitos, para restaurar ou

amparar o direito do postulante, violado pelo silêncio administrativo.

A nosso sentir, a posição defendida por Hely Lopes Meirelles

se apresenta contraditória. Com efeito, ao mesmo tempo em que nega a possibilidade

de o Judiciário praticar o ato omitido pela administração, sustenta que no controle

jurisdicional poder-se-ia impor a prática do ato omitido ou suprir os seus efeitos

jurídicos. Enquanto a possibilidade de imposição da prática do ato decorre logicamente

da idéia defendida de que o Judiciário não poderia praticar o ato omitido, falar em

suprimento dos efeitos jurídicos desse mesmo ato parece ir de encontro à premissa

adotada.

Para que as duas posições defendidas pelo autor soem

compatíveis, teríamos de entender que, quando fala em suprir os efeitos, implicitamente

admite que essa decisão judicial teria eficácia resolúvel, perdurando até que sobreviesse

a decisão administrativa faltante, a qual, ainda, não ficaria em absoluto vinculada ou

limitada pelo posicionamento adotado pelo Poder Judiciário. Assim, a decisão judicial

que supra os efeitos do ato omitido teria, apenas, a função acautelatória de garantir a

utilidade da decisão administrativa futura.

Temos que a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello248,

nesse ponto, aborda com mais profundidade a questão do controle jurisdicional, pois faz

248 Curso de Direito Administrativo, pág 380.

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a clara distinção entre os comportamentos possíveis a serem adotados pelo Judiciário

conforme estivesse a administração vinculada ou não à prática do ato omitido:

Nos casos em que a lei nada dispõe, as soluções seguem, mutatis

mutandis, equivalente diapasão. Decorrido o prazo legal previsto

para a manifestação administrativa, se houver prazo

normativamente estabelecido, ou, não havendo, se já tiver

decorrido tempo razoável (cuja dilação em seguida será

mencionada), o administrado poderá, conforme a hipótese,

demandar judicialmente: a) que o juiz supra a ausência de

manifestação administrativa e determine a concessão do que fora

postulado, se o administrado tinha direito ao que pedira, isto é, se

a Administração estava vinculada quanto ao conteúdo do ato e

era obrigatório o deferimento da postulação; b) que o juiz assine

prazo para que a Administração se manifeste, sob cominação de

multa diária, se a Administração dispunha de discrição

administrativa no caso, pois o administrado fazia jus a um

pronunciamento motivado, mas tão-somente a isto.

Pois bem. E como o Poder Judiciário vem exercendo o controle

sobre o silêncio administrativo?

A preocupação que o Poder Judiciário tem ao lhe ser submetido

um pedido em que se traz por fundamento o silêncio administrativo, é a de verificar se,

primeiro, existe o processo administrativo e, segundo, se decorrido o prazo legal para a

manifestação da administração ou, na falta dele, se decorrido um prazo razoável desde a

instauração da instância administrativa.

A primeira providência, qual seja, a de verificar se realmente

existe o processo administrativo, se justifica porque, dada a característica ineficiência

nos órgãos administrativos e autarquias federais, a mais das vezes, o administrado vem

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diretamente ao Judiciário pressupondo desde logo que o seu pedido não será atendido na

via administrativa249.

Se não houve o requerimento administrativo prévio, não é

possível decidir a demanda, por evidente, pela ótica do silêncio administrativo.

Por outro lado, se demonstrado que o processo administrativo

foi iniciado, é necessário verificar se decorreu o prazo legal para a manifestação, ou na

falta de prazo expresso, se entre o pedido administrativo e o início do processo judicial

pela falta de resposta naquele decorreu um prazo razoável.

Com efeito. Se não ficar demonstrado que a administração não

incorreu no silêncio administrativo, qualquer pedido judicial sob esse fundamento será

necessariamente carecedor, porquanto não pode o Judiciário ser usado como mero

atalho para o apressamento de uma decisão administrativa250.

A questão do prazo para a manifestação da administração

também se mostra relevante porquanto mesmo o seu decurso pode não autorizar desde

logo uma manifestação judicial, especialmente se o excesso nesse termo não se mostrar

ofensivo à razoabilidade.

249 Na Justiça Federal, com a implantação dos Juizados Especiais, especializados que foram inicialmente em matéria previdenciária, as partes deixavam de requerer administrativamente o que entendiam de direito, ingressando diretamente com a ação judicial. Embora o exaurimento da via administrativa não seja condição de acesso à via jurisdicional, temos que a comprovação do requerimento administrativo se mostra imprescindível para a demonstração da existência de lide, sob pena de se transformar o Judiciário em balcão do INSS. Nesse mesmo sentido, muitos juízes quando apreciam o pedido inicial, se ele não vier instruído com a demonstração do efetivo requerimento administrativo, têm suspendido o trâmite da ação, determinando que a parte promova a instauração do processo administrativo para, aí sim, havendo o indeferimento ou a falta de manifestação naquela via, apreciar a demanda. 250 MANDADO DE SEGURANÇA. OMISSÃO. PROVA. CARÊNCIA. I - O impetrante intenta mandado de segurança sob o fundamento de omissão da autoridade impetrada quanto a seu pedido de denúncia espontânea, relativo a regularização de motocicleta estrangeira, cuja internação teria sido supostamente legitimada por normas supervenientes. II - Há notícia nos autos da existência de procedimento anteriormente instaurado, o que infirma a invocação de denúncia espontânea. Ademais, não comprova o impetrante o silêncio administrativo quanto ao seu pedido, pois é certo que o mandado de segurança não é panacéia para obviar o procedimento administrativo referido. III - Recurso desprovido. TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO Classe: AMS - APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA - 97638 Processo: 92030832181 UF: SP Órgão Julgador: QUINTA TURMA Data da decisão: 11/09/2001 Documento: TRF300059605 Fonte DJUDATA:18/06/2002 PÁGINA: 484Relator(a) JUIZ ANDRE NEKATSCHALOW

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Fiquemos em um exemplo comum na Justiça Federal.

O prazo para que o INSS decida e efetue o primeiro pagamento

da renda mensal dos processos que tenham por objeto a concessão de benefício

previdenciário é, nos termos do art. 41, § 6o da Lei 8.213/91, de 45 dias.

É de conhecimento público que o INSS não aprecia os pedidos

de benefícios previdenciários no prazo legal e assim procede pelas mais diversas razões,

justificáveis ou não.

Pela letra da lei, decorrido o prazo de 45 dias sem que o INSS

tenha apreciado o pedido formulado, pode o interessado socorrer-se do Judiciário para

sanar a omissão administrativa.

Todavia, temos que essa questão deverá ser analisada com o

devido cuidado. O ingresso no Judiciário tão logo decorrido o prazo de 45 dias não

autorizará sempre e liminarmente a concessão da tutela requerida.

Conhecidas que são as dificuldades enfrentadas pela autarquia

previdenciária na atualidade, o ingresso no Judiciário tem se transformado em uma

maneira que as partes encontraram para agilizar o andamento do feito na via

administrativa, pois normalmente, nessas hipóteses, o Judiciário concede a prestação

jurisdicional fixando prazo para a manifestação autárquica.

Esse fato tem gerado no INSS a existência de dois tipos de

processos administrativos, conforme tenham ou não ação judicial em curso.

Resultado: pela falta de pessoal e capacidade de atendimento da

demanda, tem a autarquia privilegiado o andamento dos processos administrativos em

que exista determinação judicial a ser cumprida, em flagrante prejuízo aos demais que

assim não se encontram qualificados.

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Conquanto não seja matéria que diga respeito a esse trabalho,

entendemos relevante destacar essa realidade para que, ao exercer o controle do silêncio

administrativo, não acabe o magistrado, ao determinar a manifestação da autoridade

pública em um determinado processo, por prejudicar todos os demais administrados

que, por não estarem amparados por ordem judicial, têm a apreciação de seus pedidos

postergada para as calendas gregas251.

Assim, é recomendável que antes de se conceder ou não a

prestação jurisdicional em sede sumária de cognição, se considere se, dado o prazo

médio em que a autarquia local vem apreciando os pedidos administrativos da espécie,

se realmente a hipótese qualifica-se como silêncio administrativo em virtude do decurso

de um prazo razoável entre o protocolo do pedido na via administrativa e o ajuizamento

da ação252.

Sobre o tema, já tivemos oportunidade de assim decidir:

Trata-se de mandado de segurança, com pedido liminar, impetrado

por...., objetivando que o Gerente Executivo do Posto de Seguro Social

de Benefícios do INSS em Guarulhos proceda à análise de seu benefício

previdenciário, protocolado em 08/10/2004, sem resposta até a data do

ajuizamento do “mandamus” em 15/01/2005.

Este é o relatório. Decido.

251 A bem da verdade, a regularização do problema depende: 1) de vontade política do Governo Federal que, embora nos últimos anos, o que se verificou especialmente nos dois anos da administração Lula, venha batendo, mês a mês, recordes de arrecadação de tributos, não aparelha a máquina pública no que toca à eficiência da prestação dos serviços públicos diretamente relacionados ao sistema de arrecadatório, isto é, as secretárias da Receita e INSS, nas quais o pedido de uma simples certidão implica a sujeição do cidadão à espera em longas filas e atraso na entrega do serviço solicitado e 2) maior mobilização da sociedade civil, por seus representantes legitimados, atuando para obrigar judicialmente a administração a dar maior eficiência nessa atividade meio do sistema cobrança de tributos. 252 ADMINISTRATIVO. PEDIDO DE REVISÃO DE BENEFÍCIO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE DECISÃO. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO. 1. O segurado do INSS possui direito à decisão do processo administrativo em prazo razoável (art. 49 da Lei nº 9.784/99), constituindo ofensa ao seu direito a demora da decisão por mais de 3 anos. 2. Remessa Oficial improvida. TRF - PRIMEIRA REGIÃO Classe: REO - REMESSA EX-OFFICIO – 01000072970 Processo: 199701000072970 UF: MG Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA SUPLEMENTAR Data da decisão: 31/03/2004 Documento: TRF100163973 Fonte DJ DATA: 29/04/2004 PAGINA:67 Relator(a JUIZ FEDERALMIGUEL ANGELO DE ALVARENGA LOPES (CONV.)

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171

Na espécie, a parte impetrante sustenta que a demora na análise de seu

benefício previdenciário resulta em ilegalidade por omissão da

autoridade impetrada.

É sabido que inúmeros benefícios realmente delongam-se no tempo, não

encontrando a solução que tenha que ser dada no prazo mínimo

tolerável de aceitabilidade, mas isso não pode gerar uma situação que

em todas as hipóteses de atraso a autoridade impetrada veja-se

compelida judicialmente - e pior – por via de decisão liminar – a

cumprir com seu mister. Vale dizer, é de ser verificado caso a caso se o

tempo transcorrido para a análise é ou não aceitável.

Na espécie, não há como ser verificado se foram emitidas exigências

para o impetrante, o que por si só já ensejaria o indeferimento da

liminar, mas mesmo que se considere, hipoteticamente, que não haja

exigências, não reputo que o tempo transcorrido foi de tal maneira

ensejador do provimento que busca o impetrante.

Com efeito, ante a notoriedade do acúmulo de serviço em órgãos como

o do impetrado, a análise judicial acerca da omissão no cumprimento de

seu dever de ofício há que ser apreciada individualmente, levando-se

em conta se o atraso realmente é aviltante a ponto de ser compelido

liminarmente a cumprir com seu mister.

A considerar como escorreita a ilação da parte impetrante de que o

impetrado teria quarenta e cinco dias para análise do benefício, somente

a partir de então estaria o INSS deixando de cumprir sua tarefa. Esse

prazo, na espécie, que teve a seu desfavor os feriados longos de final de

ano, teria vencido por volta de 23 de novembro de 2004, tendo a

impetrante ajuizado a ação em 15/01/2005, resultando em um atraso de

menos de dois meses.

Ora, querer obrigar a autarquia a analisar milhares de benefícios em

tempo recorde, sabendo-se que a documentação que é apresentada nos

postos nem sempre é suficiente para poder chegar a uma conclusão

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segura sobre o tema, aliando-se à pressão que o Judiciário já exerce no

sentido de impor maior celeridade, não parece ser a melhor solução.

Diante dos inúmeros processos em análise perante o INSS, verifico que

o atraso apresentado in casu sequer pode ser assim considerado.

Ante o exposto, INDEFIRO A LIMINAR.

(Mandado de Segurança nº 2005.61.19.000103-2 – 5a. Vara Federal de Guarulhos)

Do que pudemos constatar em nossas pesquisas, tem o Poder

Judiciário, de forma geral, se manifestado sobre o silêncio administrativo da maneira

preconizada pela doutrina, isto é, conforme o exercício da competência em que se

aperfeiçoa seja vinculado ou discricionário, vem, respectivamente, reconhecendo o

mérito da pretensão, para fim de reconhecer ou rejeitar o pedido, ou fixando prazo para

a manifestação administrativa.

2 - Atos vinculados

Entendeu o Tribunal Regional Federal da 2a.Região, no

julgamento da Apelação em Mandado de Segurança nº 200.02.01.037460-3253 que na

hipótese de prática de ato vinculado, na falta de decisão no prazo estipulado, cabe, no

exercício do controle jurisdicional, o reconhecimento imediato do direito pleiteado 253ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DISTRIBUIDORA DE COMBUSTÍVEIS, LUBRIFICANTES E DERIVADOS DE PETRÓLEO. PEDIDO ADMINISTRATIVO DEAUTORIZAÇÃO DE FUNCIONAMENTO NÃO APRECIADO. INJUSTIFICÁVEL OMISSÃO ADMINISTRATIVA. CONFIRMAÇÃO DE AUTENTICIDADE DE DOCUMENTOS PÚBLICOS APRESENTADOS. Afigura-se descabida a conduta omissiva da administração, que se limita a aguardar a confirmação de autenticidade dos documentos públicos apresentados pela Impetrante, para analisar requerimento administrativo, por longo período de tempo. Há que se ter presente a presunção de veracidade dos papéis públicos, revelando-se injustificável o atraso perpetrado na apreciação. Consoante documentos acostados aos autos, a impetrante apresentou, administrativamente, todos os documentos exigidos na Portaria nº 29/99 para concessão da respectiva autorização, não podendo se considerar como justificadora da omissão a simples suspeita de fraude, desprovida de qualquer indício. Concessão da ordem. Apelo e Remessa Necessária improvidos. TRIBUNAL - SEGUNDA REGIÃO Classe: AMS - APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA - 35015 Processo: 2000.02.01.037460-3 UF: RJ Órgão Julgador: QUARTA TURMA Data da Decisão: 12/12/2000 Documento:TRF200074286 Fonte DJU DATA:12/03/2001Relator JUIZ ROGERIO CARVALHO.

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173

administrativamente. O voto do relator adotou, como razão de decidir, a motivação da

sentença que havia concedido a segurança para o fim de reconhecer à impetrante o

direito de obtenção de registro junto a ANP, nos seguintes termos:

(...)

13. Inicialmente, faz-se mister esclarecer que a natureza do ato

administrativo regulamentado pela Portaria nº 29/99, da Agência

Nacional de Petróleo, é a de licença, e não autorização, conforme

bem acentuou o digno Procurador da República. Trata-se de ato

vinculado da Administração Pública, e não de ato discricionário: “O

caput do art. 7o é claro em determinar um prazo para que o ato seja

emitido. Ademais, não faculta qualquer discricionariedade o

administrador, pelo contrário, prescreve que, caso estejam

estabelecidas as exigências elencadas nos dispositivos anteriores,

‘será emitido parecer autorizando o exercício da atividade de

distribuição ( p. 139, do parecer do Ministério Público ). 14. A

necessidade de regulamentação por parte da Agência Nacional de

Petróleo das condições que devem ser cumpridas pela empresa

interessada para o exercício das atividades de distribuição é

demonstrativa de que o ato administrativo tem natureza de ato

vinculado, sujeito ao controle jurisdicional de modo a preservar o

princípio da legalidade em matéria relacionada aos atos

administrativos ( ou a sua omissão ). (...) 18. O controle jurisdicional

da postura omissiva da Administração Pública dever ser o de

preservar a observância das normas constitucionais e legais aplicáveis

in casu, principalmente o princípio da legalidade, já que o ente

público não pode ser desviar do cumprimento das normas jurídicas

em vigor, postergando a apreciação do pleito administrativo, a

despeito do cumprimento de todas as exigências. Assim, deve ser

concedida a segurança para o fim de preservar o princípio da

legalidade, com a determinação à autoridade impetrada que forneça

incontinenti o número de registro de atividade, possibilitando que a

impetrante possa exercer legitimamente as suas atividades,

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174

determinado, ainda que edite o despacho concessivo da licença

requerida, com a publicação de tal despacho do Diário Oficial da

União .

3 – Atos discricionários

Por outro lado, quando a falta de decisão caracterizadora do

silêncio administrativo ocorre em processo que tem por objeto uma manifestação

discricionária da administração pública, o entendimento jurisprudencial é no sentido de

fixar-se prazo para que a decisão faltante seja proferida, respeitando-se, assim, o

princípio das competências constitucionais e da separação das funções:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ANISTIA POLÍTICA. ATO OMISSIVO DO MINISTRO DE ESTADO ANTE À AUSÊNCIA DE EDIÇÃO DA PORTARIA PREVISTA NO § 2º DO ART. 3º DA LEI 10.559/2002. PRAZO DE SESSENTA DIAS. PRECEDENTE DO STJ. CONCESSÃO DA ORDEM.

1. O art. 10 da Lei n.º 10.559/2002 outorga competência única e exclusiva ao

Ministro de Estado da Justiça para decidir a respeito dos requerimentos em que

se postulam o reconhecimento de anistia política, podendo, para esse fim,

utilizar-se, para formar sua convicção, de parecer fornecido pela Comissão de

Anistia de que trata o art. 12. Exsurge claro que a Autoridade ora impetrada

não está vinculada à manifestação da referida Comissão, podendo, inclusive,

dela discordar; por ser esta instituída tão-somente para assessorar-lhe, servindo

apenas como órgão consultivo.

2. Nada impede que o Ministro da Justiça venha a requerer novos

esclarecimentos da própria Comissão de Anistia ou consultar outros órgãos de

assessoramento que estejam ao seu alcance para solucionar questões que

envolvam aspectos de oportunidade ou certificar-se a respeito de possíveis

divergências jurídicas.

3. Entretanto, em face do princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição

Federal), não se pode permitir que a Administração Pública postergue,

indefinidamente, a conclusão de procedimento administrativo, sendo

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175

necessário resgatar a devida celeridade, característica de processos urgentes,

ajuizados com a finalidade de reparar injustiça outrora perpetrada. Na hipótese,

já decorrido tempo suficiente para o cumprimento das providências pertinentes

– quase dois anos do parecer da Comissão de Anistia –, tem-se como razoável

a fixação do prazo de 60 (sessenta) dias para que o Ministro de Estado da

Justiça profira decisão final no Processo Administrativo, como entender de

direito. Precedente desta Corte.

4. Ordem parcialmente concedida.

STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Classe: MS - MANDADO DE SEGURANÇA – 9420 Processo: 200302214007 UF: DF Órgão Julgador: TERCEIRA SEÇÃO Data da decisão: 25/08/2004 Documento: STJ000562810 Fonte DJ DATA:06/09/2004 PÁGINA:163 Relator(a) LAURITA VAZ.

Oportuno destacar que nas hipóteses em que o exercício da

competência em que se consubstancia o silêncio administrativo for discricionária,

conquanto não possa o Poder Judiciário, desde logo, reconhecer ou denegar ao

particular o direito postulado na via administrativa, ficando caracterizado que a

omissão, de qualquer forma, é causa de prejuízo ao particular, a tutela jurisdicional tem

sido concedida com duplo efeito: fixar prazo para a manifestação administrativa e

salvaguardar o particular, na pendência da conclusão do processo, contra os possíveis

reflexos negativos que o silêncio poder-lhe-ia ocasionar:

ADMINISTRATIVO. RÁDIO COMUNITÁRIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO. MORA DA ADMINISTRAÇÃO. ESPERA DE CINCO ANOS DA RÁDIO REQUERENTE. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA EFICIÊNCIA E DA RAZOABILIDADE. INEXISTÊNCIA. VULNERAÇÃO AO ARTIGO 535, II DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO NA SEARA DO PODER EXECUTIVO. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO PELA ALEGATIVA DE VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 6º DA LEI 9612/98 E 9º, INCISO II, DO DECRETO 2615/98 EM FACE DA AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DOS DEMAIS ARTIGOS ELENCADOS PELA RECORRENTE. DESPROVIMENTO.

1. Não existe afronta ao artigo 535, II do Código de Processo Civil quando o

decisório combatido resolve a lide enfrentando as questões relevantes ao

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deslinde da controvérsia. O fato de não emitir pronunciamento acerca de todos

os dispositivos legais suscitados pelas partes não é motivo para decretar nula a

decisão.

2. Merece confirmação o acórdão que julga procedente pedido para que a

União se abstenha de impedir o funcionamento provisório dos serviços de

radiodifusão, até que seja decidido o pleito administrativo da recorrida que,

tendo cumprido as formalidades legais exigidas, espera já há cinco anos, sem

que tenha obtido uma simples resposta da Administração.

3. A Lei 9.784/99 foi promulgada justamente para introduzir no nosso

ordenamento jurídico o instituto da Mora Administrativa como forma de

reprimir o arbítrio administrativo, pois não obstante a discricionariedade que

reveste o ato da autorização, não se pode conceber que o cidadão fique sujeito

à uma espera abusiva que não deve ser tolerada e que está sujeita, sim, ao

controle do Judiciário a quem incumbe a preservação dos direitos, posto que

visa a efetiva observância da lei em cada caso concreto.

4. "O Poder Concedente deve observar prazos razoáveis para instrução e

conclusão dos processos de outorga de autorização para funcionamento, não

podendo estes prolongar-se por tempo indeterminado", sob pena de violação

aos princípios da eficiência e da razoabilidade.

5. Recurso especial parcialmente conhecido e desprovido.

Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Classe: RESP - RECURSO ESPECIAL – 531349 Processo: 200300458591 UF: RS Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA Data da decisão: 03/06/2004 Documento: STJ000557827 Fonte DJ DATA:09/08/2004 PÁGINA:174 Relator(a) JOSÉ DELGADO ( grifei )

No exercício da função jurisdicional, também tivemos a

oportunidade de decidir em um ou outro sentido, conforme a natureza da competência

omitida se evidenciava.

Todavia, entendemos oportuno destacar uma decisão na qual,

para proteger os interesses do administrado enquanto estivesse pendente de apreciação o

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177

seu recurso administrativo, na esteira do que defendemos no Capítulo VII deste

trabalho, ao tratar de outras possíveis conseqüências ao silêncio administrativo,

emprestamos à insurgência recursal o efeito suspensivo que originalmente não

qualificava o procedimento.

Tratava-se de hipótese em que empresa detentora de certificado

de entidade beneficente teve o cancelamento administrativo desse título com as

conseqüências daí advindas.

Embora a empresa tivesse, tempestivamente, recorrido dessa

decisão, estava sendo apenada porquanto, passado quase um ano do protocolo do

recurso, o seu pedido não havia sido apreciado, o que a impossibilitava de obter a

certidão negativa de débitos de tributos cuja exigibilidade estava diretamente

relacionada à discussão de sua condição de entidade beneficente, dado que o seu recurso

não tinha o efeito suspensivo. Na oportunidade, decidimos que:

As demais NFLD’s, contudo, consignam débitos com competências

compreendidas entre 01/95 a 13/97, cuja inexigibilidade decorreria do

fato de a impetrante ter o CEBAS cancelado por decisão do CNAS

nos autos do processo administrativo nº 44006.001635/2001-39.

Ocorre que contra essa decisão, que deu pelo cancelamento de seu

CEBAS, a impetrante interpôs, em 11/07/2003, recurso

administrativo ( fls. 188/200 ). Entende a impetrante que, por força

de seu recurso, esses débitos ainda estariam com a exigibilidade

suspensa (art. 151, III do CTN ). Pois bem. À impetrante era

facultado o direito de recorrer da decisão que cancelou o seu

certificado de entidade beneficente de assistência social, nos termos

do art. 7o. VI do Decreto n º 2.536/98. Conquanto o recurso

administrativo tenha, em regra, apenas o efeito devolutivo ( art. 61 da

Lei 9.784/99 ), entendo que se a autoridade competente para apreciá-

lo não se manifestar dentro do prazo legal (art. 59, §§ 1o. e 2o. da Lei

9.784/99 ), é necessário que se lhe reconheça também o efeito

suspensivo, sob pena de o administrado ser duplamente punido,

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primeiro por sofrer desde logo os efeitos do ato impugnado e,

segundo, por ver desrespeito o seu direito de ter, no prazo legal, uma

decisão motivada da autoridade competente. No caso dos autos, o

impetrante interpôs o recurso em 11/07/2003, sendo certo que até

31/05/2004 não tinha ele sido julgado ( fls. 187 ). Assim, não

observado o prazo do art. 59, §§ 1o e 2o da Lei 9.784/99, tenho que ao

recurso interposto pela impetrante deve também ser reconhecido o

efeito suspensivo, suspendendo-se, por conseguinte, a exigibilidade

dos débitos relativos ao período de 01/95 a 13/97 até que venha ele a

ser julgado. Isso considerado, não há razão que justifique, por parte

da autoridade impetrada, a recusa na expedição de certidão positiva,

com efeitos de negativa.

(Mandado de Segurança nº 2004.61.19.003623-6 – 2a. Vara Federal

de Guarulhos ).

Os exemplos trazidos à colação, digamos assim, sinalizariam as

principais formas pelas quais vem o Poder Judiciário enfrentando o problema do

silêncio administrativo, sintoma principal da ineficiência do aparelhamento da máquina

da administração pública.

Não julgamos ser necessário, no estudo do controle do silêncio

administrativo, nos estendermos em referências a acórdãos ou sentenças que tenham

decidido a questão de uma ou outra forma, bastando, para tanto, destacar algumas

decisões que, de uma forma ou de outra, sintetizem o enfoque que o Judiciário tem dado

sobre a matéria.

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Embora o tema de nosso estudo seja o controle jurisdicional do

silêncio administrativo, nosso escopo não era, propriamente, o de fazer um diagnóstico

de como o Poder Judiciário vem, nos mais diversos casos que lhe são submetidos,

decidindo esse assunto, mas sim tentar demonstrar que o exercício da função

jurisdicional, nos casos dessa espécie, tem de estar centrado em três focos principais: o

primeiro, de elevar a motivação do ato administrativo a requisito formal inafastável para

o exame de sua legitimidade; o segundo, de identificar e analisar a discricionariedade

administrativa como sendo o exercício de uma competência que não é imune ao

controle judicial nos pontos em que ela transborda dos estreitos limites do que hoje

podemos chamar de conveniência e oportunidade do administrador e, terceiro, utilizar a

proporcionalidade e a razoabilidade como critérios de verificação de validade do ato ou

do silêncio até o ponto em que a tomada de uma decisão não implique a pura e simples

substituição subjetiva de uma vontade administrativa por uma outra jurisdicional.

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Capítulo IX – Síntese final e conclusões

Nossa principal preocupação ao escolher, para o estudo, o

problema do controle jurisdicional do silêncio administrativo, era a de tentar

sistematizar alguns dos grandes temas de direito administrativo com os quais o

Judiciário se vê, com certa freqüência, às voltas: o silêncio da administração, a

motivação dos atos administrativos, a discricionariedade administrativa e o exame da

legitimidade do exercício da função administrativa pelas lentes da razoabilidade e da

proporcionalidade.

Em verdade, o estudo mais detalhado que desenvolvemos

sobre os temas da discricionariedade administrativa, dos princípios da razoabilidade, da

proporcionalidade e da motivação, tinham também como escopo principal reforçar a

tese que pretendíamos sustentar ao final deste trabalho, qual seja, a da necessidade de o

silêncio administrativo ser tratado como fenômeno que denota a ineficiência da máquina

administrativa e, por isso mesmo, não merecer um tratamento normativo que, de alguma

forma, o privilegie ou busque neutralizá-lo atribuindo-lhe, pura e simplesmente, efeitos

jurídicos.

No estudo da discricionariedade administrativa que fizemos,

relacionando-a às teorias que a identificam, que lhe negam similitude e que admitem a

sua conexão, em dadas hipóteses, ao problema dos conceitos jurídicos indeterminados,

após conceituar instituto e estudar os seus fundamentos, buscamos demonstrar como

esses posicionamentos doutrinários distintos ainda encontram respaldo na jurisprudência

de nossos tribunais superiores, fato que tem reflexo direto no problema do controle

jurisdicional do silêncio administrativo, na medida que o tipo de controle a ser exercido

fica na dependência direta da natureza da competência administrativa – discricionária

ou vinculada – omitida.

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Na seqüência, passamos a analisar os princípios da

proporcionalidade e da razoabilidade, princípios que ampliaram em muito a

possibilidade do exercício do controle jurisdicional quanto à legitimidade da atividade

administrativa.

Sobre a via desses dois princípios constitucionais, o Poder

Judiciário caminha cada vez mais em direção daquilo que sempre foi considerado o

mérito do ato administrativo, pois a razoabilidade e a proporcionalidade

consubstanciam, não há como negar, instrumentos jurídicos poderosíssimos para

contrastar aquele juízo de mera conveniência e oportunidade manifestado pelo

administrador.

Nesse cenário, ganha ainda maior importância a necessidade de

motivação dos atos administrativos.

O exame do ato motivado à luz dos princípios da razoabilidade

e proporcionalidade não permitirá – ou ao menos dificultará em muito – que o julgador

simplesmente substitua a vontade do administrador pela sua própria, pois deverá, ao

examinar o iter percorrido para a prática do ato, verificar a relação de pertinência lógica

entre os seus pressupostos justificadores e a finalidade que por meio dele se quer

perseguir.

Daí porque defendemos a idéia de que a motivação do ato

administrativo, afora se constituir em exigência básica para a existência de uma

administração democrática, hoje se torna elemento essencial para a preservação da

própria discricionariedade administrativa.

De tudo o quanto expusemos sobre discricionariedade,

proporcionalidade, razoabilidade e motivação, em verdade, antes de concluir, sobre

esses temas lançaremos duas perguntas.

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A primeira, na linha do pensamento de Lúcia Valle Figueiredo,

é se o grande problema hoje existente não reside mais no conceito de vinculação do que

no de discricionariedade propriamente dito.

Em uma sociedade complexa como a nossa, em que o avanço

tecnológico e as transformações econômicas e sociais dele decorrentes implicam

mudanças na própria conformação estatal, não seria aceitável reconhecer-se à

administração pública um maior poder discricionário e isso como forma de dispensar-

lhe um instrumento necessário para que, na medida do possível, alcance ou aproxime o

direito do caso concreto daquilo que se entende por justiça?

A segunda, se a contrapartida desse aumento de poder

discricionário à administração, não seria a possibilidade do Poder Judiciário contrastar,

cada vez mais, a atividade administrativa pelas lentes dos princípios constitucionais

informadores do Estado Brasileiro, pois a carga axiológica neles contida também

permite que o julgador, ao mesmo tempo em que diz o direito no caso concreto, o

aproxime daquilo que entende ser o conteúdo mínimo exigível de justiça?

Após a análise dos temas que teriam reflexo direto no problema

do controle jurisdicional nas hipóteses em que a administração, estando obrigada, não

se manifesta no bojo de um processo administrativo, passamos a estudar o instituto do

silêncio administrativo propriamente dito.

Para tanto, estabelecemos como proposta de nosso trabalho a

análise do silêncio da administração sob a perspectiva de um direito administrativo que

informa e regula o exercício da função administrativa, esta entendida como a atividade

que vai dar concreção à vontade geral, fixada no plano constitucional e legal, recebendo,

para implementar a finalidade que o justifica, poderes instrumentais na exata medida

em que se traduzam como necessários para a perseguição dos fins que lhe são próprios.

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Se a administração tem a si atribuído um conjunto de deveres-

poderes, pretendíamos estabelecer até que ponto haveria legitimidade no

comportamento de se fixar efeitos jurídicos a um dos principais sintomas do

inadimplemento de suas obrigações, que é o silêncio administrativo.

Delimitado o campo de nosso estudo, qual seja, o silêncio

administrativo qualificando aquelas situações em que a administração não se manifesta

conquanto estivesse obrigada a fazê-lo, em face do exercício, pelos particulares, do

direito constitucional de petição ou de participação administrativa, analisamos como

está disciplinado o silêncio administrativo no direito brasileiro, buscando,

especialmente, esclarecer qual a origem do instituto, qual a sua natureza jurídica, quais

efeitos jurídicos lhe podem ser atribuídos, refletindo, sobretudo, em que medida a

regulação estrangeira do fenômeno tem aplicabilidade a nossa realidade.

Vimos que a atribuição de efeitos jurídicos ao silêncio

administrativo, no direito comparado, teve por finalidade primeira garantir o acesso dos

interessados ao chamado contencioso administrativo que, pela sistematização adotada,

ficava condicionado a uma prévia decisão da administração. Mantendo-se silente, a

administração impedia que o particular tivesse o seu pleito examinado na via

contenciosa, o que poderia acarretar e acarretava prejuízos aos direitos subjetivos

individuais.

Após verificar como a matéria vem regulada no direito

comparado, concluímos, à luz de nosso ordenamento jurídico, que o silêncio

administrativo não pode ser considerado um ato administrativo, sendo a sua natureza

jurídica de mero fato administrativo.

Analisamos os efeitos que normalmente são atribuídos ao

silêncio da Administração pelos ordenamentos jurídicos de outros países, concluindo

que, em regra, são eles negativos, qualificando-se aí o silêncio como um mero

pressuposto processual ao acesso à via contenciosa, e positivos, hipótese em que a

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doutrina estrangeira admite ver no silêncio a existência de um ato administrativo

propriamente dito.

Partindo da experiência estrangeira, passamos a questionar a

relevância de se estudar o silêncio administrativo em um sistema constitucional que traz

como garantia individual o controle jurisdicional da atividade administrativa.

Concluímos que em nome da segurança jurídica e, devido a

particularidades de nosso sistema legal, só não era possível como era necessário estudar

como o fenômeno do silêncio administrativo revela-se entre nós. Pudemos constatar,

então, que também em nosso direito positivo, ao silêncio administrativo, são atribuídos

efeitos jurídicos negativos, positivos e até mesmo o que chamamos de efeito positivo-

condicionado.

Ao longo do trabalho, sempre procuramos destacar o nosso

entendimento sobre a matéria, qual seja, o da impossibilidade de se atribuir ao silêncio

da administração, como regra, os chamados efeitos jurídicos negativos ou positivos.

Os princípios que informam toda atividade administrativa em

geral e o princípio da motivação - que aqui foi longamente estudado, com referência

expressa ao diploma normativo que federal que regula a sua exigência - em particular,

inviabilizam quaisquer tentativas de, a pretexto de simplificar a atividade

administrativa, de forma geral e indiscriminada, emprestar efeitos jurídicos válidos ao

comportamento que é o próprio sintoma do descumprimento dos deveres legais.

De toda forma, ressaltamos que, em dadas hipóteses, presentes

alguns pressupostos que reputamos necessários, pelos valores que envolveriam e

qualificariam situações em que o interesse individual seria prevalente e, ao mesmo

tempo e de qualquer modo, não afetaria o interesse coletivo ou um outro interesse

individual qualquer, seria possível a atribuição de efeitos jurídicos positivos ao silêncio.

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Mesmo nessas hipóteses, contudo, reputamos que o chamado

efeito positivo-condicionado traduziria uma melhor solução da matéria à luz de nosso

sistema constitucional.

Exercendo a administração poderes instrumentais que lhe são

conferidos na exata extensão em que se façam necessários para concretizar interesses

públicos, ante de mais nada e acima de tudo, tem ela a obrigação de decidir - e decidir

motivadamente - as questões que lhe são postas pelos particulares. Apenas em dadas e

especiais hipóteses o seu silêncio poderá ser reputado como resposta não expressa.

Reforça a imprescindibilidade da motivação dos atos

administrativos a possibilidade que a Administração tem de exercer competências com

alguns aspectos de discricionariedade, ao passo que o exame de sua legitimidade só

pode ser aferido na via judicial quando, ao mesmo tempo, são analisados os motivos

elencados pela autoridade competente que justificaram a pratica do ato e a realidade

fenomênica que aquele ato pretendeu regulamentar, pois é preciso ter em mente que

quando se fala em controle do ato administrativo que reúna elementos discricionários,

só faz sentido proceder à sua análise a partir do caso concreto posto a exame.

É dizer, parafraseando Lúcia Valle Figueiredo, a

discricionariedade só existe na dinâmica da norma.

Finalmente, ao analisar como o controle do silêncio

administrativo vem se aperfeiçoando em nossos tribunais, pudemos perceber que as

decisões, como regra, vem sendo tomadas na linha do que defendem os principais

autores do direito administrativo brasileiro: se a decisão omitida tem natureza vinculada,

pode o Judiciário, desde logo, reconhecer ou denegar ao particular a incorporação, ao

seu patrimônio jurídico, do direito que havia pleiteado na via administrativa; se a

decisão omitida, por sua vez, tinha natureza discricionária, não pode o Judiciário fazer-

se substituir ao administrador e entregar ao particular uma decisão sobre o próprio

mérito da questão, pois, na hipótese, a solução a ser adotada é a de fixar prazo para a

manifestação administrativa.

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Vimos, ainda, que nas hipóteses nas quais o exercício das

competências omitidas for discricionário, embora Judiciário não possa resolver

antecipadamente o próprio objeto do pedido, pode e deve, se caracterizado ficar que a

omissão administrativa é causa de prejuízo ao particular interessado, salvaguardar-lhe

dos efeitos jurídicos que de alguma forma pudessem afetá-lo enquanto pendente a

tomada de decisão na via administrativa.

A questão central no controle jurisdicional do silêncio

administrativo, todavia, é saber exatamente quando o exercício de uma determinada

competência consubstancia-se em vinculada ou discricionária e, nesta última hipótese,

em que aspectos do ato omitido ela realmente se revela, de tal forma que, na dinâmica

da norma, possa ser efetuado o exame de legitimidade do comportamento administrativo

atacado.

Podemos resumir nossas conclusões, então, nos seguintes

pontos:

1) Dentre as funções estatais clássicas, a função administrativa

deve ser entendida como aquela que tem por finalidade precípua a

concretização dos ditames constitucionais e legais;

2) Os deveres-poderes que qualificam o exercício da função

administrativa têm natureza instrumental em relação às finalidades que

justificam a sua existência;

3) A existência de discricionariedade administrativa não é estranha

e não conflita com o Estado Democrático de Direito, antes é uma

necessidade inescapável para que o administrador possa, no Estado

contemporâneo, implementar os objetivos constitucionais de

desenvolvimento econômico e social do País;

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4) A utilização de conceitos indeterminados ou plurissignificativos

na norma pode, em algumas hipóteses, indicar a existência da

discricionariedade, variando o grau de resistência ou apoio a essa

concepção de maneira proporcional à legitimidade democrática do

exercício da função administrativa;

5) Embora possa a ter a si atribuído o exercício da competência

discricionária, a manifestação administrativa não fica imune ao exame

jurisdicional que vai poder definir, na dinâmica da norma, os seus exatos

e precisos contornos;

6) Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade

consubstanciam-se em importantes instrumentos para a verificação

jurisdicional da legitimidade do exercício da função administrativa, e

encontram na motivação do ato administrativo a principal barreira à

possibilidade da substituição da vontade administrativa pela judicial;

7) O silêncio administrativo, no direito brasileiro, tem natureza de

fato administrativo;

8) Como fato administrativo, pode o silêncio administrativo gerar

efeitos jurídicos negativos, positivos ou condicionados;

9) O princípio da motivação dos atos administrativos é fator

limitador à possibilidade de a norma atribuir indistintamente efeitos

jurídicos ao silêncio, ainda que sob o fundamento de que, dessa maneira,

estar-se-ia buscando sanar ou minimizar as conseqüências da má e

ineficiente autuação da máquina administrativa;

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10) O controle jurisdicional do silêncio administrativo deve ser

realizado tendo-se em conta a natureza da competência administrativa

omitida (vinculada ou discricionária), sendo possível, por meio dele,

suprir-se a omissão: um, pela apreciação do próprio mérito da pretensão

administrativa, para o fim de reconhecer-lhe a procedência ou

improcedência; dois, pela fixação de prazo para a manifestação

administrativa, ou, ainda, três, pela concessão de tutela jurisdicional que

resguarde, na pendência da prolação decisão omitida, os administrados

contra as conseqüências da mora da Administração Pública.

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