DISCURSOS DA ABOLIÇÃO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    1/16

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    2/16

    UNIVERSIDADE

    FEDERAL DE

    MATO GROSSO

    NCLEO DEDOCUMENTAOE INFORMAO

    HISTRICA REGIONALNDIHR

    47

    UNIVERSIDADE

    FEDERAL DE

    MATO GROSSO

    NCLEO DEDOCUMENTAOE INFORMAO

    HISTRICA REGIONALNDIHR

    DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO ASCARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    Mauro Henrique Miranda de Alcntara

    Instituto Federal de Rondnia (IFRO)Doutorando em Histria (UFMT)[email protected]

    RESUMO

    No perodo Imperial, devido liberdade de imprensadefendida, principalmente, pelo Imperador D. Pedro II, foi ummomento riqussimo em crticas sociais. Uns dos instrumentosde crtica mais valiosos eram s charges e caricaturas pu-blicadas em diversos peridicos da poca, inclusive vriosespecicamente chargistas. Os movimentos abolicionista erepublicano conseguiram grande repercusso junto socie-dade diante desse instrumento. Compreendendo a impor-tncia dessa fonte documental, buscamos, portanto analisaros discursos projetados nestas imagens utilizando os concei-tos de condio de produo e registro polmicoda Anlisede Discurso Francesa. Analisaremos as charges publicadas

    no livro D. Pedro II e o seu mundo atravs da caricatura, deAraken Tvora (1976). Para o recorte deste trabalho, esco-lhemos quatro charges que dialogam com a questo abo-licionista e possibilitam visualizar construes de realidades,por meio destes documentos, deste momento histrico.

    Palavras-chave: Abolio; Charges; D. Pedro II.

    ABSTRACT

    In the Imperial period, due to the freedom of the pressdefended mainly by Emperor Dom Pedro II, was a rich mo-ment in social criticism. Some of the most valuable instru-ments were critical to the cartoons and caricatures publishedin various periodicals of the time, including several specicallycartoonists. The abolitionist movement and republican achie-ved great repercussion in society on that instrument. Unders-tanding the importance of this documentary source, we seek

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    3/16

    48

    REVISTA ELETRNICA14 DOCUMENTO/MONUMENTO

    therefore to analyze the speeches designed these images using the con-cepts of production condition and controversial record of French Discour-se Analysis. Analyze the cartoons published in the book D. Pedro II and hisworld through the caricature of Araken Tvora (1976). For the approachof this work, we chose four cartoons that dialogue with the abolitionist is-

    sue and possible realities view of buildings, through these documents, thishistoric moment.

    Keywords: Abolition; Caricature; D. Pedro II.

    INTRODUO

    A

    o levantarmos documentaes e obras sobre abolio do sculo

    XIX e incio do sculo XX, nos deparamos com um livretointrigante:D. Pedro II e a Abolio (1921), do Dr. Pedro Augusto Pinto, profes-sor da Escola de Medicina do Rio de Janeiro e contemporneo do pro-cesso abolicionista e consequentemente do Imperador D. Pedro II. Logona contracapa o autor trs uma citao de Ruy Barbosa, ardoroso repu-blicano e abolicionista: ... o throno atrazou, quanto lhe coube nas foras,o advento da redempo... (PINTO, p. 2, 1921). E durante todo o livro oautor faz severas crticas ao Imperador e o responsabiliza por compactu-ar com a elite latifundiria escravocrata imperial, e como perceptvelna frase citada, de atrasar o processo abolicionista. Ele utiliza-se de vriosabolicionistas do perodo, como Joaquim Nabuco, para atacar o monar-ca, e argumenta que a nica motivao que levara Pedro II desenrolar aabolio era a presso externa e o desejo de manter sua reputao noestrangeiro.

    Trata-se de uma obra que Pedro Augusto Pinto escreveu justicandoo seu voto contrrio (o nico na Escola de Medicina do Rio de Janeiro)a realizao de homenagens que sua instituio faria ao casal imperialdevido o traslado dos corpos para o Brasil. Atravs desta obra comeamos a nos perguntar qual teria sido, de

    fato, a relao entre o Imperador e a abolio. Como o trono tratouessa temtica to cara ao regime monrquico, onde a maior parte dasanlises histricas aponta a abolio como um dos principais fatores quelevaram a ruir as estruturas do regime e colaboraram com a sua quedaum pouco mais de um ano aps a Lei urea que ps m escravido?

    Comeamos ento a buscar essas respostas: pensamos que anali-sando as biograas de D. Pedro II e as Falas do Trono (discurso proferidopelo Imperador na abertura e fechamento do ano legislativo) teramos

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    4/16

    49

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO / NCLEO DE DOCUMENTAO E INFORMAO HISTRICA REGIONAL - NDIHR

    uma dimenso dessa relao e consequentemente re (faramos) esseprocesso abolicionista por um outro caminho. No levantamento das bio-graas, nos deparamos com a obra de Araken Tvora, D. Pedro II e o seumundo atravs da caricatura(1976) que construiu a trajetria de vida domonarca, principalmente politicamente, atravs das charges publicadas

    nos jornais do Imprio.Nesta obra o autor dedicou um captulo para a relao entre D. Pe-dro II e a Escravido. Ao percebemos a riqueza desse material, pensamosque analisar essas caricaturas, pelo vis da Anlise do Discurso Francesa,traria uma importncia no apenas para o desenvolvimento da pesqui-sa, como tambm para compreender melhor esse cenrio, que aindadeixa lacunas a serem preenchidas. Sabemos que h uma diculdade em analisar charges histricas,pois pensando no conceito de condies de produoque Eni Orlandidesenvolveu, onde temos o contexto imediato e o amplo, entendemosque analisar o contexto imediato seja algo muito complexo para essecorpus. Diante desse ponto, podemos elencar poucas armaes, poisno vivemos mais esse contexto, nos apegamos ento s obras que nodeixam de ser tambm, uma construo vinculada a um contexto ime-diato e amplo.

    A prpria obra de Tvora (1976) nos fornece importantes reexessobre esse contexto, descrevendo resumidamente o histrico do gneroque ele chama de caricatura e a sua importncia no perodo Imperial.Segundo o ele, a primeira caricatura foi publicada em 1837, pelo Jornal

    do Commercio, a partir da no parou mais sua publicao. Vrias pu-blicaes s de charges foram lanadas na poca, sendo a mais famosaa Revista Ilustrada de ngelo Agostini.

    A importncia desse gnero seria que alm de uma crtica polticaatravessada pelo humor, com a (ainda) pouca repercusso da fotogra-a, seria um meio de conhecer sionomicamente as guras polticas maisproeminentes do perodo. Tais caricaturas faziam grandes crticas no sas pessoas como a prpria poltica, chegando segundo Tvora (1976),a ter sido o meio mais ecaz de apoio abolio e a Proclamao daRepblica. Mas para contar com tal circulao e sucesso na poca, foipreciso contar com um apoio fundamental: a da liberdade de imprensa,que segundo vrios historiadores fora uma marca do reinado de D. PedroII. Mesmo sendo ele uma das maiores vtimas dessas caricaturas, elemanteve tal liberdade at o m do regime.

    Em relao ao contexto amplo, que Orlandi (2005) refere-se, aocontexto scio histrico e ideolgico, organizamos uma parte no traba-lho para este m: contextualizar historicamente a questo da abolioda escravido e a governo de D. Pedro II.

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    5/16

    50

    REVISTA ELETRNICA14 DOCUMENTO/MONUMENTO

    Ainda em relao s condies de produo, temos que compre-ender que apesar de no se tratar de um texto a charge est ligadaa todas essas condies. O cartunista pode ter pleno controle de seulpis, porm no do seu resultado, vrias so as implicaes sobre essaimagem criada por ele, pois trata de uma construo discursiva, onde

    o interdiscurso e o intradiscurso esto ligados a essa caricatura. Como dizOrlandi: h uma relao entre o j-dito e o que se est dizendo que aque existe entre o interdiscurso e o intradiscurso ou, em outras palavras,entre a constituio do sentido e sua formulao (2005, p. 32). Portantoa constituio determina a formulao (ORLANDI, 2005, p. 33) dessacaricatura. E claro que o interdiscurso: todo conjunto de formulaesfeitas e j esquecidas que determinam o que dizemos (ORLANDI, 2005,P. 33) est intimamente ligado ao contexto histrico.

    Percebe-se que o histrico estruturante do discurso, e no caso des-te gnero, primordial para que o humor empregado nesta imagem seja

    evidenciado. Este gnero tambm traz, de forma evidente, e o que lhefaz ter sentido: o intradiscurso. Anal, na construo de diversos discur-sos que o cartunista, satiricamente, constri seu objeto.

    Buscaremos tambm analisar as charges pelo vis do registro pol-mico, apesar da complexidade de utilizar esse conceito. Utilizando daspalavras de Maingueneau (2010, p. 198). em sua aparente simplicidade,o polmico se revela um verdadeiro n para a anlise do discurso. Acreditamos que as charges e caricaturas possuem dimenses, con-forme as desenvolvidas por Maingueneau, que podemos caracteriz-lascomo um registro polmico, e assim tentaremos provar. Primeiro encon-

    tramos nelas um dispositivo que se traduz por estratgias de integrao/desqualicao do adversrio, que deixam muitos traos no enunciado(MAINGUENEAU, 2010, p. 197). Segundo, compreendemos que este gne-ro trata-se de uma prtica discursiva historicamente ligada determina-da conjuntura, de certa congurao do interdiscurso, de certo regimede produo e de circulao de enunciados (MAINGUENEAU, 2010, p.197).

    Talvez a ltima dimenso, a semntica, teremos certa diculdadede visualizar neste gnero, que por em jogo sua prpria identidade, aomesmo tempo pressuposta e construda por cada uma das enunciaesque pretendem ser sustentadas a partir dela (MAINGUENEAU, 2010, p.197). Tentaremos por a prova esse referencial terico para analisar essetipo de construo imagtico-discursiva.

    CONTEXTUALIZANDO HISTORICAMENTE

    O Brasil passou a viver em uma grande contradio a partir da se-gunda metade do sculo XIX. Era necessrio desenvolver o pas: pro-

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    6/16

    51

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO / NCLEO DE DOCUMENTAO E INFORMAO HISTRICA REGIONAL - NDIHR

    gresso passou a ser a palavra de ordem deste momento. Porm essedesenvolvimento deveria acontecer sem atingir os interesses da classedominante, que contava com um grande nmero de escravos. Porm apermanncia do elemento servil entrava em choque com a pretensodeste progresso. Em relao abolio da escravido, Carvalho (2007)

    diz que a elite passou a se dividir quanto a esse tema, mesmo sendo elaa maior representante do brao escravo.A Coroa dependia desses produtores, pois deles vinham maior

    parte da receita do governo, com os impostos de exportao. O poderpoltico tambm estava na mo dessa classe, sendo forte sua presenano parlamento e automaticamente, nas tomadas de decises do reino.Por outro lado, esses produtores tambm dependiam do governo, poisera ele que concedia nanciamento e emprstimos para a compra, prin-cipalmente, de escravos. Trata-se, portanto de uma paradoxal relaoentre os produtores rurais e a Coroa, e os embates a cerca do processo

    abolicionista, trouxe a tona toda essa teia de interdependncia. Nestemomento as divergncias entre a Coroa e os produtores se aprofundam.Os embates em torno da Lei do Ventre Livre levaram conforme pa-

    lavras de Carvalho (2007, p. 322) a primeira clara indicao de divrcioentre o rei e os bares. Estes viram essa lei como uma loucura dinsti-ca (CARVALHO, 2007, p. 322) e muitos acusaram o imperador de forara aprovao desse projeto como uma carta de crdito para ele viajar aEuropa. O divrcio se efetiva de vez com a aprovao da Lei dos Sexa-genrios (1885) e a Lei urea (1888) que enm acabou com a escravidono pas (CARVALHO, 2007).

    Para Carvalho (2007), na biograa que ele escreve sobre D. PedroII, a Lei do Ventre Livre, quando aprovada, deixara claro que o trono noestaria mais ao lado dos proprietrios rurais e que o m da escravidoera prximo. Quando a campanha popular pela abolio se espalhoupelo Brasil, e principalmente na corte, o incentivo da Coroa nunca dei-

    xou de se fazer sentir, seja em manifestaes pessoais do Imperador eda Princesa, seja nos ttulos nobilirquicos oferecidos aos que libertassemescravos. (2007, p. 320). Para o autor, o posicionamento do trono forao encorajador do movimento e a condescendncia dele permitiu quese organizasse um movimento popular, jamais visto no pas (2007). Dessa

    maneira, nos intriga as diversas crticas realizadas ao imperador por proe-minentes abolicionistas como Joaquim Nabuco. Para Schwarcz (1998) o imperador sempre deixou a entender queera contra a escravido, porm pela pouca mobilidade em avanar aabolio, d para entender que eram grandes os obstculos. A autoraretrata que ao m da Guerra Civil e consequentemente abolio daescravido norte-americana, o Brasil juntamente com Cuba passaram aserem os ltimos pases do ocidente a manter a escravido. A pressointernacional aumentou e representantes emancipacionistas franceses

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    7/16

    52

    REVISTA ELETRNICA14 DOCUMENTO/MONUMENTO

    enviaram uma carta para D. Pedro II clamando por medidas que decre-tasse a abolio. Constrangido, o monarca respondeu dizendo que assimque fosse possvel, devido a Guerra com o Paraguai, medidas seriam to-madas.

    Aps a guerra, D. Pedro II retomou sua empreitada pela abolio,

    mesmo que de forma tmida como descrito pela autora, tanto que a assi-natura da Lei do Ventre Livre (1871) foi proferida pela Princesa Isabel, poisseu pai viajara para conhecer a Europa. Assim como Carvalho, Schwarczse surpreende que nos momentos decisivos do processo de abolio, ra-ramente D. Pedro estava presente, deixando regente como respons-vel. Isso tema de discusso entre os historiadores, segundo ela, uns expli-cando que tal iniciativa do monarca era para que a princesa recebesseo prestgio desta jornada garantindo assim a sucesso, outros defendemque ele no queria se indispor com a elite latifundiria, detentora dos es-cravos e para isso se afastava de tais decises.

    A autora desenvolve a ideia de que D. Pedro II foi se distanciandodo absolutismo envolvido tradicionalmente aos Reis e se tornando Ummonarca-cidado. Ele foi se aproximando mais da populao, dispen-sando cerimnias luxuosas e at mesmo se distanciando dos bailes dacorte. Esse rei-cidado se aproximava da cincia que era a nica quelevaria ao progresso da nao. Diante dessa imagem, abolir a escravi-do seria se livrar do atraso que essa instituio secular impusera ao pas,e serviria de libi, contra os defensores da escravido e detentores dopoder poltico e econmico: a aristocracia rural

    Em relao ao processo emancipatrio, ela descreve que ele se

    intensicou na dcada de 1880, com a presso popular e de vrios inte-lectuais. Ela separa os abolicionistas em moderados: Joaquim Nabucoseu mais importante representante e os radicais: Silva Jardim, Lus Gamae Antnio Bento. Estes tomaram conta das ruas e dos jornais inamandoa populao e pressionando tanto a Coroa quanto a classe poltica. Se-gundo a autora para a Princesa Isabel e seus conselheiros, a abolio erainevitvel, um processo natural, e que a antecipando poderia o regimeganhar dias de glria com tal faanha. At mesmo os dois partidos (Li-beral e Conservador) nesta altura (1888) j simpatizavam com esta ideia.Com a assinatura da Lei urea, cerca de 700 mil escravos foram liberta-

    dos. O nmero muito pequeno neste momento foi fruto de um processoabolicionista natural, que vinha acontecendo desde o incio da dcadade 1880, com a fuga em massa e/ou a indenizao de escravos.

    Diante desta rpida anlise e se apoiando ainda na contextualiza-o de Costa (2003), onde para ele neste perodo viu decair rapidamen-te o nmero de escravos e concomitantemente houve um desenvolvi-mento da nao com a construo de indstrias, barco a vapor e obraspblicas, que eram realizadas, contraditoriamente com o brao escravo.Para ele apareceu conscincia de que escravido no beneciava a

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    8/16

    53

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO / NCLEO DE DOCUMENTAO E INFORMAO HISTRICA REGIONAL - NDIHR

    nao, mas somente os senhores de escravos (COSTA, 2003, p. 38). Essesescravocratas passaram a serem marginalizados e surgiu, o abolicionis-mo militante (2003, p. 38), que criou um projeto de libertao (2003, p.38) aliando-se aos interesses da nao (o ideal de progresso?) no pen-sando na humanidade e necessidades dos escravos.

    Portanto, diante deste cenrio que irrompero diversos discursosabolicionistas ou escravocratas. As caricaturas esto ligadas a esse con-texto amplo das condies de produosegundo Eni Orlandi. Por maisque esses prossionais que desenhavam tais charges no tivessem totalconscincia deste amplo contexto, seu discurso autorizado por essascondies.

    ANALISANDO AS CHARGES

    Todas as caricaturas que analisaremos aqui foram extradas do livroD. Pedro II e o seu mundo atravs da caricaturade Araken Tvora (1976).O autor ao construir esse mundo do monarca atravs da caricatura uti-lizou de jornais do perodo para tal empreitada. Ele listou os peridicosno nal do livro (A Revista Ilustrada, A Comdia Popular, O Mosquito, OMequetrefe, Mephistopheles, O Diabo a Quatro, El Mosquito, La Avispa,Charivari), porm no possvel identicar nas charges a qual destes peri-dicos ela pertence. Nos concentramos em um captulo em especial que o Pedro II e a Escravido: Da Lei do Ventre Livre Lei urea. Seleciona-mos aquelas charges que foi possvel analisar diante das condies deproduo proposta pela Eni Orlandi e doregistro polmicode DominiqueMaingueneau.

    CHARGE 1

    TVORA, A. D. Pedro II e o seu mundo atravs da caricatura.Rio de Janeiro: Editora Documentrio, 1976. P. 113

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    9/16

    54

    REVISTA ELETRNICA14 DOCUMENTO/MONUMENTO

    Nesta charge, podemos visualizar a dicotomia entre a escravido eemancipao. No lado esquerdo a nuvem que cresce cada vez maise dentro dela a palavra emancipao. Podemos relacionar a gura queest sobre a nuvem com um anjo, devido as suas asas e at mesmo, porestar voando. Esse ser angelical ligado construo religiosa cat-

    lica, forte presena no perodo, e podemos voltar sua representao salvao. Portanto a nuvem da emancipao, salvadora, cresce cadavez mais.

    Do outro lado o escravocrata, protegendo no o escravo dessa nu-vem, mas a sua propriedade privada. Ele est caricaturado. Nariz gran-de, rosto enfezado, tentando esconder o escravo. Este aparece com amo no cesto, numa clara posio que estava trabalhando. Dentro dascondies de produo, podemos pensar que havia nesta sociedadeuma contestao ao trabalho escravo e que este no era o sinnimo desalvao e sim de mancha a marcha civilizatria.

    Em cima dessa condio, podemos perceber que dois discursos en-trecruzam claramente nesta charge. Primeiro a da necessidade de abolira escravido, como exposto acima, prerrogativa necessria de uma na-o que deseja o progresso e do outro a defesa a propriedade privada,grande entrave para se exterminar a escravido do solo brasileiro. Essa

    juno de dois discursos que nos possibilita visualizar essa construo dis-cursiva, e provavelmente sem a contextualizao histrica, no podera-mos compreend-la.

    Temos nesta charge, no plano de evidncia a gura do fazendeiro,

    dono de escravo, como supracitado, caricaturado, uma cara enfeza-da e pensando na primeira dimenso do registro polmico de Maingue-neau, podemos visualizar que o alvo dessa charge seria esse elemento,que tenta com o seu guarda-chuva, impedir que a nuvem carregadada emancipao chegue sua propriedade: o escravo. Seria possveltal empreitada com um esse frgil objeto? O polmico caria, neste mo-mento, a desqualicar uma importante classe deste momento histricoque eram os senhores de escravos. A segunda dimenso est clara, aonecessitarmos contextualizar historicamente para entendermos o sentidopolmico do discurso. A conjuntura de um embate entre escravido Xabolio nos permite conceber que tal construo discursiva foi possvelser enunciada. Citando Maingueneau, onde:

    Para que haja polmica, necessrio que sujeitos que ocupamcerto lugar percebam tais ou tais enunciados como intolerveisdo ponto de vista desse lugar, a ponto de julgarem necessrioentrar em conito com a suposta fonte desses enunciados (MAIN-GUENEAU, 2010, p. 196).

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    10/16

    55

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO / NCLEO DE DOCUMENTAO E INFORMAO HISTRICA REGIONAL - NDIHR

    Talvez essa dimenso, como j armado, seja a mais complexa parase adequar s charges histricas. No podemos car apenas supondosituaes. Porm, h sim nesta imagem o confronto claro entre abolicio-nistas X escravocratas, e notrio pelo enunciado, que os primeiros, bus-cam, conforme Maingueneau a primazia deste discurso, e para chegar a

    tal patamar, desqualicam os segundos, e neste caso, caricaturando-o.E, apoiando-se em Tvora, podemos pensar que essas construes noeram to pacicamente aceitas por quem eram atingidos por ela, tan-to que segundo ele No faltaram conselheiros e aduladores, pedindo--lhe [a Pedro II] que desse m queles excessos [liberdade de imprensa](1976, p. 12). Tais construes s nos chegaram at os dias de hoje, devi-do o posicionamento do Imperador de manter a liberdade de imprensa.

    CHARGE 2

    TVORA, A. D. Pedro II e o seu mundo atravs da caricatura.Rio de Janeiro: Editora Documentrio, 1976. P. 118

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    11/16

    56

    REVISTA ELETRNICA14 DOCUMENTO/MONUMENTO

    Essa charge, capa da Revista Ilustrada do ano de 1888, o mesmoque culminou na Lei urea e libertou os escravos. O fundo, que possui osescritos Direito Ptrio, Escravido, Lei Saraiva-Cotegipe, podemosremeter as enunciaes caractersticas da tbua com os dez manda-mentos, que Deus teria entregado a Moiss. Demonstrando-nos que es-

    sas palavras inscritas nesta tbua so enraizadas na sociedade, assimcomo esta a mensagem bblica. Embaixo da imagem, tem alguns dizeres:

    A vista do tpico da Falla do Throno, que diz: - Confo, que nohesitareis em apagar do direito ptrio a infeliz herana, etc. etc

    esperamos que o parlamento empregue todo o enthusiasmo,uma boa esponja e todos os ingredientes necessrios, para fazerdesaparecer, para sempre, essa hedionda mancha.

    Os dois senhores com a esponja na mo representam a Cmara de

    Deputados e o Senado. Pensando primeiro nesta legenda da imagem, asFalas do Trono, como supracitado, era o discurso proferido pelo Impera-dor na abertura e fechamento do ano legislativo, no Parlamento. Portan-to, esses dizeres esto saindo do monarca para os parlamentares. E estesesto atendendo ao pedido imperial, dedicando-se com entusiasmo eesponja na mo para apagar tal mancha. Mas assim como a mensagembblica, a escravido est to vinculada ao Direito Ptrio, que difcilapag-la, ainda mais pela instituio (Parlamento) que tanto a preser-vou.

    Essa construo projeta a ideia de mesmo com a o m da escra-vido, no ser uma simples esponja que apagar tal mancha, e des-qualica quem a manuseia. O movimento abolicionista popular foi muitoimportante e pressionou os polticos para caminharem os projetos de lei. Acrtica do ngelo Agostini parece se dirigir a essa classe que tenta escon-der o que nunca deixou de existir nessa nao, por isso um Direito Ptrio.A imprensa sempre denunciou a sua existncia e ela no se apagariaassim to facilmente. As vsperas da abolio da escravido, no seriasomente um ato poltico que iria apagar esse crime hediondo. Entra ai o no-dito, e onde est a maior crtica da construoimagtica. A presso popular, turbinada pela imprensa, que levou os po-lticos caminharem tal lei. Eles enquanto defensores da elite de latifundi-rios, sempre defenderam a propriedade privada e nela se encontravao elemento servil. Porm conforme armou Schwarcz (1998), neste mo-mento (1888) os dois principais partidos (Liberal e Conservador) j eramabolicionistas, e eles queriam o monoplio dessa conquista. Sem a com-

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    12/16

    57

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO / NCLEO DE DOCUMENTAO E INFORMAO HISTRICA REGIONAL - NDIHR

    preenso desse caminhar da emancipao no seria possvel visualizar aconstruo desse discurso.

    O alvo a classe poltica, que desqualicada, tanto na imagem,como na legenda (a repetio do etc., demonstra o excesso de fala ea pouca ao) e busca-se a primazia do discurso abolicionista popular,

    que foi o grande construtor dessa conquista. Essa construo marcadamuito mais pelo interdiscurso do que pelo intradiscurso, e mesmo com acontextualizao histrica, temos diculdade de cravar certas deniesa cerca dessa construo.

    CHARGE 3

    TVORA, A. D. Pedro II e o seu mundo atravs da caricatura. Rio de Janeiro: EditoraDocumentrio, 1976. P. 120

    Esta charge vem conuir todos os embates travados de 1871 at1888. Historicamente o Partido Liberal foi conhecido como abolicionista,

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    13/16

    58

    REVISTA ELETRNICA14 DOCUMENTO/MONUMENTO

    pois nele estavam os mais proeminentes polticos que lutavam pela cau-sa, o principal: Joaquim Nabuco. O Partido Conservador historicamentedefendia a propriedade privada e os senhores de escravo. Porm fati-dicamente, as duas primeiras leis abolicionistas (Ventre Livre e Sexage-nrios) foram aprovadas com os Conservadores possuindo a maioria noParlamento e com o Presidente do Conselho de Ministros.

    Essas duas legislaes foram consideradas reacionrias, pois poucoavanavam em direo a abolio (de vez). Porm em 1888, como jretratado por Schwarcz (1998), boa parte dos escravos encontravam-sealforriados. A emancipao voluntria havia conseguido grande sucessona dcada de 1880. E com esse caminhar at mesmo os polticos queantes defendiam, passaram a no mais visualizar com tanta importnciao elemento servil. Era fato que a abolio da escravido era questo de

    tempo.At o prezado momento a grande divergncia entre os dois parti-dos, era justamente essa temtica. Portanto faz muito sentido a legendaabaixo da imagem: J no h maispartidos polticos. Nem liberais, nemconservadores. Ou abolicionistas, ou negreiros. Ambos agora lutavampor uma nica bandeira: a glria pela abolio da escravido. A ima-gem, provavelmente, retrata guras polticas importantes dos dois lados,que no foi possvel identicar. No meio a representao do desejo deambos o escravo, ainda acorrentado e a bandeira da abolio. Trava-

    vam os dois lados uma disputa para saber quem iria conseguir tal faa-nha. A imagem contemplativa, eles no miram o escravo e a sua con-dio, cada lado mira o outro, como adversrios. A abolio era meroobjeto de disputa entre esses campos opostos, para a conquista de capi-tal poltico. Essa construo imagtica e textual da charge desqualica o em-bate entre os partidos, pois demonstra que no h mais diferenas entreeles, somente disputa por poder. S possvel fazer essa anlise historica-mente. Um leitor sem o conhecimento histrico teria diculdade de com-preender qual mensagem passa esse discurso e a polmica se perderiasem essa leitura. O alvo desse discurso a classe poltica, que pouco (ounada) se preocupa com as questes que importam ao pas, mas se digla-diam por vitrias polticas partidrias.

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    14/16

    59

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO / NCLEO DE DOCUMENTAO E INFORMAO HISTRICA REGIONAL - NDIHR

    CHARGE 4

    TVORA, A. D. Pedro II e o seu mundo atravs da caricatura.Rio de Janeiro: Editora Documentrio, 1976. P. 123

    Publicada no jornal El Mosquito de Buenos Aires, essa charge foipublicada para comemorar a libertao dos escravos no Brasil, o ltimopas da Amrica do Sul a promover tal feito. Por ser uma construo quevisa uma comemorao, no conseguimos encontrar evidncia de um

    registro polmico. Claramente temos a mulher segurando a tocha da li-berdade, representando a prpria a chama (liberdade). Olhando comum olhar de desagravo um senhor com chicote na mo, representan-do a classe que detinham os escravos e que se sentiram desprestigiadospela Coroa com tal iniciativa. Na lateral projeta-se a imagem da Reden-tora Princesa Isabel, responsvel pela assinatura da Lei que ps m aescravido. Ao tocar a liberdade esse escravo est liberto, e no chono canto esquerdo a sua corrente quebrada. A dicotomia escravido Xabolio, est representada na imagem pelo senhor com chicote X e a

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    15/16

    60

    REVISTA ELETRNICA14 DOCUMENTO/MONUMENTO

    mulher com a tocha da liberdade. E no meio dessa disputa o escravoque corre para a sua liberdade e olha com certa tristeza para trs, o seupassado, que representado pelo senhor (seu ex- dono). Trata-se de ele-mentos semnticos, talvez a palavra libertad em espanhol, seja a maiorrepresentao dessa questo.

    CONSIDERAES FINAIS

    Aps essa breve anlise de elementos imagticos, possvel cons-tatar uma realidade: extremamente complexo esse tipo de trabalho,principalmente se for calcado em corpora histricos. Apesar da riquezade informaes que podem ser extradas dessas charges, demanda essetipo de atividade um rigor terico e metodolgico muito maior que anali-sar discursos (textuais) histricos. Como supracitado, o contexto imediato

    muito importante para analisar tais fontes, porm conseguir visualizareste de uma construo histrica muito complicado, anal, nos ampa-ramos historiograa para essa compreenso, que rica para anlise dooutro contexto. Em contrapartida temos uma gama de construes quenos leva a compreender o contexto amplo deste momento, sendo poss-vel visualizar facilmente o interdiscurso. Em relao ao registro polmicode Maingueneau, tentamos, semforar a utilizao desse referencial terica, analisar essas charges. O au-tor desse conceito tem toda razo ao perceber que apesar de toda sim-plicidade, trata-se na realidade um n, o polmico para a Anlise do Dis-curso. Aparentemente muito simples de ser utilizado, mas quando colocaesse dispositivo para trabalhar, percebemos que muito mais fcil fazerindues do que anlises de fato. complexo, porm precisa ser coloca-do mais a prova nesse tipo de fonte. A charge um documento histricoimportante, que contempla a sociedade brasileira desde o sculo XIX eat hoje marca nos peridicos nacionais, sendo inclusive, para muitos,o ponto principal da leitura diria. At mesmo sites foram lanados, exclu-sivamente, para essa esse tipo de publicao.

    Apesar dessa complexidade e com certa temeridade de se apro-

    fundar na anlise das charges histricas, compreendemos que ainda hmuito que se pesquisar em relao aos discursos abolicionistas, e esse tipode fonte ainda pouco explorado pelos estudiosos da abolio, princi-palmente utilizando o referencial terico da anlise do discurso. Nessarpida anlise percebemos que havia um embate no s entre a classepoltica dominante, mas uma crtica por parte da imprensa sobre comoesses parlamentares trataram a temtica. Alm disso, essas charges usa-ram muito da semntica em suas imagens, o que merece tambm umestudo em particular.

  • 7/24/2019 DISCURSOS DA ABOLIO: ANALISANDO AS CARICATURAS DO MUNDO DE D. PEDRO II

    16/16

    61

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO / NCLEO DE DOCUMENTAO E INFORMAO HISTRICA REGIONAL - NDIHR

    Portanto, no s colocar para trabalhar os conceitos de condiode produoeregistro polmicoessa pesquisa se concentrou. Provavel-mente o mais importante tenha conseguido projetar os diversos discursosenvolvidos no movimento abolicionista brasileiro. No foi uma via de monica, mesmo entre os abolicionistas, havia discursos diferentes, embates

    entre eles. A polmica envolvida nas Charges 2 e 3 nos d essa dimenso:o caminho da abolio foi envolvido de grande complexidade. E aindah muito que se buscar nessa construo de realidade.

    REFERNCIAS

    CARVALHO, J. M. de. A Construo da Ordem: a elite poltica imperial.Teatro de sombras: a poltica Imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 2007.

    CARVALHO, J. M. D. Pedro II. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    COSTA, M. C. Joaquim Nabuco entre a poltica e a histria. So Paulo:Annablume, 2003.

    MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em anlise do discurso. So Paulo: Pa-rbola Editorial, 2010.

    ORLANDI, E. P.Anlise do discurso: princpios e procedimentos. Campinas,SP: Pontes, 6 ed., 2005.

    PINTO, P. A. D. Pedro II e a Abolio. Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribu-naes, 1921.

    SCHWARCZ, L. M.As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca dostrpicos. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.

    TVORA, A. D. Pedro II e o seu mundo atravs da caricatura. Rio de Janei-

    ro: Editora Documentrio, 1976.