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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X DISCUSSÃO DE GÊNERO COM MULHERES DA CADEIA PÚBLICA FEMININA DE RONDONÓPOLIS-MT: UMA EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE EXTENSÃO “LEITURAS SEM GRADES” Elni Elisa Willms Marcio Alessandro Neman do Nascimento RESUMO: O texto tem o objetivo de narrar experiências do Projeto de Extensão “Leituras sem grades”, coordenado por mim, Elni Elisa Willms, em 2016 e desenvolvido por treze professores, além de 35 estudantes de diversos cursos da UFMT-CUR e algumas pessoas da comunidade externa à universidade. A metodologia do projeto consiste em não combinar previamente o que cada um levará para ler nas instituições visitadas aposta-se na experiência de se expor ao acaso, sem muito controle além de oferecer escuta, ou seja, experimenta-se levar literatura para pessoas que estão sob privação de liberdade e que têm pouco contato com essa modalidade de produção cultural e em seguida inicia-se um processo de escuta suscitada pelas leituras. No limite dessa comunicação traremos a narrativa de experiências na Cadeia Pública Feminina de Rondonópolis e de como a leitura afetou tanto as pessoas que receberam nossos textos como aqueles que executaram o projeto. Conclui-se que a literatura pode promover encontros potentes para discussões de gênero e nos permite pensar a condição humana, contribuindo, dessa maneira, como formação estética e itinerário de formação para além das experiências educativas de sala de aula. Palavras chaves: Leitura; Gênero; Literatura; Experiência A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Antônio Cândido, 2004, p. 188 A presunção aqui é que o ‘ser’ um gênero é um efeito. Judith p. Butler Introdução O objetivo desta comunicação oral é narrar algumas experiências vividas na Cadeia Pública Feminina de Rondonópolis-MT, por meio do Projeto de Extensão “Leituras sem grades”. O projeto foi desenvolvido em 2016 por um grupo de treze professores da UFMT-CUR, dos cursos de Pedagogia, História, Psicologia e Letras Inglês e Português da UFMT/Rondonópolis e teve como objetivo proporcionar momentos de leitura e reflexão e possibilitar escuta para pessoas que estão

DISCUSSÃO DE GÊNERO COM MULHERES DA CADEIA … · de produção cultural e em seguida inicia-se um processo de escuta suscitada pelas leituras. No limite dessa comunicação traremos

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

DISCUSSÃO DE GÊNERO COM MULHERES DA CADEIA

PÚBLICA FEMININA DE RONDONÓPOLIS-MT: UMA

EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE EXTENSÃO “LEITURAS SEM

GRADES”

Elni Elisa Willms

Marcio Alessandro Neman do Nascimento

RESUMO: O texto tem o objetivo de narrar experiências do Projeto de Extensão “Leituras sem

grades”, coordenado por mim, Elni Elisa Willms, em 2016 e desenvolvido por treze professores,

além de 35 estudantes de diversos cursos da UFMT-CUR e algumas pessoas da comunidade

externa à universidade. A metodologia do projeto consiste em não combinar previamente o que

cada um levará para ler nas instituições visitadas – aposta-se na experiência de se expor ao

acaso, sem muito controle – além de oferecer escuta, ou seja, experimenta-se levar literatura

para pessoas que estão sob privação de liberdade e que têm pouco contato com essa modalidade

de produção cultural e em seguida inicia-se um processo de escuta suscitada pelas leituras. No

limite dessa comunicação traremos a narrativa de experiências na Cadeia Pública Feminina de

Rondonópolis e de como a leitura afetou tanto as pessoas que receberam nossos textos como

aqueles que executaram o projeto. Conclui-se que a literatura pode promover encontros potentes

para discussões de gênero e nos permite pensar a condição humana, contribuindo, dessa

maneira, como formação estética e itinerário de formação para além das experiências educativas

de sala de aula.

Palavras chaves: Leitura; Gênero; Literatura; Experiência

A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita

sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos

sentimentos e à visão de mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e,

portanto, nos humaniza. Antônio Cândido, 2004, p. 188

A presunção aqui é que o ‘ser’ um gênero é um efeito. Judith p. Butler

Introdução

O objetivo desta comunicação oral é narrar algumas experiências vividas na

Cadeia Pública Feminina de Rondonópolis-MT, por meio do Projeto de Extensão

“Leituras sem grades”. O projeto foi desenvolvido em 2016 por um grupo de treze

professores da UFMT-CUR, dos cursos de Pedagogia, História, Psicologia e Letras

Inglês e Português da UFMT/Rondonópolis e teve como objetivo proporcionar

momentos de leitura e reflexão e possibilitar escuta para pessoas que estão

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institucionalizadas sob a condição de abrigamento ou privadas de liberdade em sistemas

prisionais. Somaram-se aos professores trinta e cinco discentes dos referidos cursos,

além de membros da comunidade externa que, sabendo do projeto, quiseram colaborar

com a proposta tanto quanto experienciar e compartilhar leituras em grupo com a

referida população destinatária. No limite deste texto vamos explorar apenas algumas

narrativas do Diário de Campo1 da experiência na Cadeia Pública Feminina de

Rondonópolis, instituição que abriga em regime de reclusão, mulheres que foram presas

pela polícia militar e/ou civil ou que estão cumprindo sentença judicial.

O contato com a leitura e as possibilidades que ela é capaz de suscitar ou

oferecer são entendidas aqui como possibilidade de experiência estética que contribuem

para a (in)(trans)formação humana das pessoas. Seguimos, a princípio, a perspectiva de

literatura de Todorov (2014, p.23), para o qual: “[...] hoje, se me pergunto porque amo a

literatura, a resposta que me vem espontaneamente a cabeça é: porque ela me ajuda a

viver [...] ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com as

experiências e me permite melhor compreendê-las”. Nesse sentido, “a literatura amplia

o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo”,

logo, pode ser uma experiência que pode nos colocar para além das grades, construir

outros mundos possíveis e firmar compromisso consigo e com o coletivo de leitores.

Em análise concomitante, a feminista Joan Scott (1998) aponta que a experiência

pode ser compreendida como uma metáfora da visibilidade documentada do mundo e,

até então escondida por discursos majoritários. Para a autora, “[...] Não são indivíduos

que têm experiência, mas sim sujeitos que são constituídos pela experiência” (SCOTT,

1998, p. 304).

As experiências abertas pelo campo da literatura

A leitura, ao mesmo tempo, e polifonicamente, permite que cada sujeito

problematize os questionamentos e as arbitrariedades biopsicossociais da vida,

convergindo sempre para análises cada vez mais complexas e rizomáticas.

1 Citaremos, neste texto, recortes do Diário de Campo construído coletivamente em 2016. O recorte será

identificado assim: DIÁRIO DE CAMPO, nome de quem fez a narrativa, data e paginação.

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Principalmente para as pessoas que se encontram reclusas ou abrigadas em instituições,

quase sempre fragilizadas, a presença de pessoas que façam a mediação de aspectos

sensíveis sobre o que nos faz humano, por meio da literatura, apresenta-se como uma

justificativa para a realização do projeto. Para Edgar Morin (2003), toda grande obra de

arte, inclusive a literatura, possibilita um pensamento profundo sobre a condição

humana, constituindo-se como uma possibilidade de escola de vida em seus múltiplos

sentidos. Por ser uma experiência de Projeto de Extensão Universitário, portanto, que se

realiza fora do âmbito da sala de aula, propicia aos executores - bolsistas de extensão,

discentes voluntários, professores e comunidade externa - uma potente experiência

como um itinerário de formação multifacetada para além da sala de aula. Tem-se

contato com pessoas que experimentam sofrimento psíquico intenso (mulheres sob

regime de reclusão), e diante desse panorama levar a literatura é uma forma de

contribuir para que esse tempo institucionalizado se torne um pouco menos penoso. Em

suma, é uma oportunidade para que os membros da equipe possam refletir sobre as

teorias e pesquisas que estudam em sala de aula e praticá-las no campo social. Além

disso, ainda que sumariamente, recuperamos a noção do “direito à literatura” de

Antonio Candido (2004), para dela fazer uso nos espaços institucionais em que, muitas

vezes, essa experiência de fruição da arte é negada ao sujeito. Muitas instituições de

privação de liberdade apenas anseiam em aplacar as emergências fisiológicas (mesmo

que precariamente).

A expressão “experiência” é tomada no sentido com o qual trabalha Jorge

Larrosa (2014). A etimologia desse vocábulo deriva do latim “experiri”, que significa

“provar”, “ter um encontro ou uma relação com algo”. O radical “periri” lembra

“periculum”, perigo, fazendo-nos lembrar a ideia de travessia, e também a ideia de

prova. Para Larrosa (2014, p. 26), “o sujeito da experiência tem algo desse ser

fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se

nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião”. Ainda, segundo Heidegger

(apud LARROSA, 2014, p. 27), “fazer uma experiência com algo significa que algo nos

acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma [...]

podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro, ou no

transcurso do tempo”.

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A construção do Diário de Campo faz parte da metodologia do Projeto de

Extensão. Recomendávamos aos participantes que construíssem um Diário de Campo

em que cada um narrasse, do seu jeito, a experiência vivida2. Muitas vezes, saindo das

instituições tínhamos necessidade de escrever, ainda que um breve relato, no grupo do

WhatsApp dos participantes do projeto; era pungente a necessidade de simbolizar a

experiência, mesmo que em poucas palavras, um modo de dizer sobre as sensações e

sentimentos sobre as experiências que aconteciam em conexão com as mulheres

participantes e leitoras/apreciadoras de contos, poesias, mitos, letras de músicas,

histórias, “causos” e narrativas (orais). E é nesse contexto que se dá a articulação com o

ensino e a pesquisa, ou seja, por meio da construção do Diário de Campo das visitas,

faz-se uma narrativa das visitas e reflete-se sobre o que aconteceu, no sentido tratado

por Larrosa (2014): de que forma a leitura se relaciona com as atividades de ensino e

pesquisa que o aluno ou professor desenvolve, na graduação tanto sob o ponto de vista

teórico quanto prático; acontecimentos afirmativos da ação, a interação entre os

membros do projeto e as pessoas das instituições, desconfortos e dificuldades também

são narrados, pois a partir da reflexão sobre a experiência e outros acontecimentos pode-

se avaliar a ação, reajustando conforme as possibilidades e necessidades. Por isso é uma

proposta aberta, fazendo-se e refazendo-se a cada encontro, sempre tendo em vista as

necessidades que os executores percebem no contato com os participantes.

Breves aproximações aos estudos de gênero em diálogo com as narrativas do

Projeto de Extensão “Leituras sem grades”

No entanto, se dizemos da experiência, como narrar a si mesmo e narrar a

história de outras pessoas em um sistema prisional? O que dizer sobre o público

destinatário do Projeto de Extensão para com as mulheres que cumprem determinação

jurídica e devem permanecer em privação de liberdade em uma instituição prisional

municipal no Estado do Mato Grosso?

2 As pessoas citadas no texto e que participam do projeto autorizaram formalmente o uso de seus nomes

por extenso, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecimento, sob guarda da Profa. Dra. Elni

Elisa Willms, Coordenadora do Projeto.

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Na perspectiva filosófica foucaultiana, encontramos na obra Vigiar e Punir

(1987) a relação de poder entre o dispositivo disciplinar institucional do aprisionamento

e a criação de indivíduos assujeitados e sob efeito da vigilância contínua e incessável. O

regime disciplinar disposto no interior das prisões está agenciado em favor de corpos

dóceis, ou seja, “[...] que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser

transformado e aperfeiçoado” (p. 118). A ideia de poder pulverizado e não localizável

trazido por Foucault também nos auxilia a analisar que as hierarquizações e relações de

poderes acontecem entre as próprias internas denominam de cultura “cadeeira”, ou seja,

normas e ações descritas entre as próprias mulheres em situação de privação de

liberdade que estabelecem os modos de estar dentro da instituição: “Aqui quem manda

são as mais velhas e experientes, elas ajudam e cuidam, mas também passam a regra do

que pode fazer ou não... se não fizer as coisas certinhos, powwww” (DIÁRIO DE

CAMPO, Márcio A. N. do Nascimento, 04/08/2016, p. 24). No entanto, o sofrimento

vivenciado em conjunto também aponta para a construção de amizades “temporárias”

(uma vez que desinternadas, essas mulheres não mantêm contato ou sabem sobre o

“paradeiro” das amigas de cela; embora muitas relatam desejar que isso ocorresse: “Se

fez o bonde para outra cadeia, ou se vai viver a vida lá fora, nunca mais a gente

encontra... só encontra aquelas que voltam de novo, que são presa mesmo, né (fulana),

conta aí que você voltou (risos)” (DIÁRIO DE CAMPO, Márcio A. N. do Nascimento,

04/08/2016, p. 24).

As temáticas que emergiam das leituras traziam reflexões, mas sobretudo, bem-

estar em pensar a vida para além das grades, como bem disse uma participante: “Os

encontros, o que a gente lê aqui dá um alívio em tudo que a gente vive, a cadeia é

pesada” (DIÁRIO DE CAMPO, Márcio A. N. do Nascimento, 04/08/2016, p. 24).

Nesse mesmo lastro apareceram discussões sobre políticas solidárias de cuidado de si e

do outro, princípios de equidade de direitos e ajuda mútua, além de questões das

sensibilidades, da estigmatização de mulheres presas e da construção de outros modos

possíveis em ser/estar mulher. Sobre o encontro, indicamos a nota de diário de campo

sobre assuntos percorridos:

Um encontro muito potente. Entre grades é preciso saber lembrar e

também é preciso aprender a esquecer. Perfume, rua, gestos e música,

tudo nos lembra alguém, nos lembra a vida lá fora, nos lembra

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momentos de pessoas inesquecíveis, que nos lembram de nós mesmos

em outros contextos. Da suavidade de Rubem Alves, à tentativa de

(re)construção da vida após um coração esvaziar-se e voltar a bater de

Elisa Lucinda, ao cântico provocador de Karol Conka a roda de

conversa “chegou chegando” sem muita intimidação e bastante

curiosidade em saber quem é o outro. O Outro? Quem sou? Desejo de

liberdade; pai héroi; namorada que “pegou o bonde” e já foi; cotidiano

de uma prisão; mudança do significado das palavras, o “cadeiês”: boi é

vaso sanitário; jega é onde elas dormem, porque “cama, cama é só em

casa”, revelou-nos um dia a Dona C. Ah! As palavras, brincadeira

gostosa quando o outro muda o seu significante e compartilha em risos

suas outras leituras. Muitas e afetuosas lembranças do professor André

(“... que uma oração lembre seu querido pai e a vida lhe ofereça coisas

boas!” recomendou Dona C.) e lembranças de Maria que não era só

Maria, talvez fosse todas as Marias, “Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e

Nossa Senhora”, do poema de Elisa Lucinda, mas na lembrança

singular era Camila Maria. Bom! Muitas experiências para comentar e

não esquecer, pois Beatriz é uma renascida da alegria.

Nenhuma palavra, quase nada a dizer. Se digo? Não sei. Vou rir para

não chorar. Ou apenas rir. Ou apenas chorar. Ou vou rir e chorar. Não

sei. Saí com ideias confusas desse lugar. Medo não é tão medo. Alegria

não é tão alegria. Vazios existenciais? Algumas cadeiras dispostas em

círculo, algumas pessoas, uma sala... cheia de vazios, mas nesse campo

as palavras, aos poucos, produzem um outro lugar que já não é mais

vazio e também não é cheio. Onde mora a plenitude? As palavras já não

nos cabem e explodem em fluxos de desejo de falar de si. O que falar de

mim dentro dessas paredes de pouca existência? Mas quem sou eu para

qualificar esse lugar e essas pessoas como sendo “de pouca existência”?

Dizer que eu existo? Resolve? Sim! Eu existo. Conto-me, faço-me

ouvir, o outro conta-se e eu ouço, mesmo parecendo invisível para

muitos, existo. Eu ainda existo! Conta-se de uma mãe saudosa, de uma

filha que queria ter dito algo, confessa-se um sonho de ser advogada e o

anseio pela liberdade. “O que eu quero mesmo? O que eu quero mesmo

é LI BER DA DE!”, disse a C., sorrindo e com seu modo muito peculiar,

enfatizando a fala aqui e ali. O vermelho é intenso, é carmim e escarlate

o cabelo da menina Elni. Em um flash elas perceberam a mudança de

tom, a passagem do cereja para o amora. Ou talvez o sabor do morango

da história da Sherazade assim as tenha permitido. Bruna com B e seu

perfume misterioso, revelado: “Egeo, quem está usando Egeo aqui?”

Pergunta uma das mulheres com a sagacidade sensorial à flor das

narinas! Perfume que invoca e perfume que convoca: “Sabe, assim – e

faz o gesto como se estivesse borrifando perfume no pescoço, nos

braços, na cabeça – e sair pra rua?”. A mulher, pernas entrelaçadas e

sorriso de menina pela lembrança do perfume, naquele momento saiu

para a rua? E quase no mesmo instante ela diz para a leitora que exalava

Egeo: “Hey! Não vai falar?”. Rindo, resposta imediata: “Vou falar, mas

não vou cantar, quem sabe na próxima cantamos todas juntas...”. E

assim fez-se o encontro. Uma polifonia de vozes e silêncios. (DIÁRIO

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DE CAMPO, Márcio Alessando Neman do Nascimento, 04/08/2016, p.

22-23).

Como trazido nos dois recortes de diário de campo supracitados (sobre

materiais disparadores de problematizações e relato de experiência), observamos que as

temáticas sobre feminilidades, construção dos corpos, as relações homoeróticas ou

“lesbianidades sem classificação identitária”, desejo de autocuidado e até mesmo flerte

e admiração por coordenadores(as) dos encontros apontam para a discussões sobre o

terreno fértil das vidas cerceadas em suas potências e liberdade de expressão. Assim,

buscamos em Michel Foucault (2003; 2005) e Deleuze (2001) o conceito de dispositivo

de sexualidade, para problematizar o diagnóstico do cotidiano da vida carcerária e dos

afetos vivenciados nesse contexto institucional. Tal dispositivo engloba não somente a

ideia de discurso, mas um conjunto heterogêneo (enunciados jurídicos, religiosos,

científicos, morais) que determinam “verdades” sobre e das mulheres acerca de suas

práticas sociais no ambiente prisional e a vivência das sexualidades dentro dos muros

institucional. Para além da sexualidade e gênero, emergem questões históricas

dolorosas, assim percebida por uma bolsista do Projeto:

Sobre o encontro com a cadeia e com as meninas. Vejam, duas

coisas diferentes e importante destacar: Instituição-corpo. Como

cada qual mexe com a gente de maneira diferente... Enfim, uma

coisa a dizer sobre esse encontro: as algemas estão em um

armário. O que isso significa? Ainda não pensei a respeito, mas

não teve como meu olhar não ser atraído para dentro daquela

sala fria do ar condicionado.... as algemas antes expostas como o

algoz chicote da senzala estavam hoje em um armário. Talvez

isso me assuste mais do que conforte... Mas atraiu o meu olhar!

(DIÁRIO DE CAMPO, Camila Maria Santos de Pinto,

25/08/2016, p. 11).

Embora acreditemos que não exista uma vida idêntica às outras, é muito

recorrente discursos semelhantes das participantes sobre as questões das vivências na

construção da sexualidade e de gênero em ser/estar mulher. As práticas por qual essas

mulheres se compõem, perpassam por uma historicidade de práticas violentas por qual

grande parte das mulheres aprisionadas vivenciaram ao longo das diversas etapas e

contextos da vida social, tornando-as sujeitos violados em seus direitos e impondo a

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inserção de contextos e situações de vulnerabilidades tais como: violência intrafamiliar

na família de origem e de família constituída (relacionamento conjugal); violência e

exploração sexual; vulnerabilidade a doenças sexualmente transmissíveis; restrição

social; dificuldade de escolarização e diminuição de grau de empregabilidade, além de

respostas emocionais intensas de sofrimento (tentativa de suicídio, desenvolvimento de

transtorno de pânico e depressivo, entre outros.

A partir das atividades do projeto de “Leituras sem grades”, em que se

experimenta a leitura de contos, poesias, mitos, letras de músicas, histórias, “causos” e

relatos de vivências, além de ouvir o que vem delas, podemos problematizar a

construção e narrativa de vida dessas mulheres a partir da matriz de inteligibilidade

discutido por Judith Butler (2003), na obra Problemas de Gênero. A autora traz uma

problematização do poder sobre mulheres, na produção de estruturação binárias, as

estabilidades internas, linearidades e conformidades para determinar e localizar os

gêneros, as sexualidades, práticas e orientações sexuais, as corporalidades, os desejos,

os prazeres, entre outras categorias que também fazem parte da composição dos seres

humanos. A imposição do sistema sexo-gênero é apresentada constantemente nos

discursos e crenças trazidas por essas mulheres.

Trata-se de compreender que trabalhar com leitura, em suas diversas

modalidades, com mulheres, foco deste texto, envolve muitas questões que mobilizam

nosso pensamento, nossas atitudes pessoais e profissionais. É preciso posicionar-se

diante de assuntos que nos convocam, como narrado por uma estudante do curso de

Psicologia e voluntária no Projeto:

Para mim foi muito prazeroso participar dos encontros, sobretudo na

cadeia feminina e no socioeducativo. Aprendi demais com as mulheres

e com os meninos e pude confirmar meu desejo de trabalhar no sistema

prisional. Além disso, fica o aprendizado de que a leitura é sem grades,

sobretudo quando os textos dialogam com quem somos, fomos ou

vivemos. Como as músicas que nos desarmam, envolvem e tocam.

Aprendi que é preciso falar, mas mais importante é se permitir ouvir,

assim como precisamos aprender a lidar com o silêncio. Mas, o que

esses encontros me deixaram de mais valioso foram os

questionamentos: e se, com tudo pronto, eles resolverem não nos ouvir?

A gente vira a cara ou vira a mesa? Entra na dança, canta a música e se

bagunça junto? A gente se obriga a pensar também: a leitura não tem

grades, mas e para quem está preso? Ela liberta mesmo ou é só mais

uma forma de exclusão? E quanto às pessoas? O que sentimos por elas?

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Medo? Carinho? Pena? Preocupação? É necessário pensarmos sobre

essas questões e nos permitir sair do nosso lugar de conforto, para que

possamos nos incomodar, nos afetar, aprender e alegrarmo-nos com

essas experiências. Obrigada gente, pela parceria e pela partilha dessa

experiência enriquecedora. (DIÁRIO DE CAMPO, Bruna Padilha

Gonçalves, 19/12/2016, p. 22).

Cândido (2004) quando trata da literatura a vê como direito e lembra nosso

compromisso humano ao afirmar, como pressuposto, que “aquilo que consideramos

indispensável para nós, é também indispensável para o próximo” (p. 174). Pudemos

confirmar que a leitura pode abrir espaços de escuta para essas mulheres. Para todas as

pessoas, independente de localização espacial ou temporal, de gênero ou etnia. Essa é

uma das potências do Projeto “Leituras sem grades”. As experiências de algo que parece

simples, ou seja, levar leitura e oferecer escuta para mulheres que estão privadas de

liberdade, provocam uma série de reflexões e geram oportunidade para muitos

aprendizados. Mais do que respostas quisemos trazer o reverberar dos textos dos

participantes do projeto, alguns embebidos de subjetividade, talvez a mesma

subjetividade que não é possível experimentar num ambiente de aprisionamento de

corpos.

E a ansiedade, delas de voltarem para casa, de voltarem para seus lugares e ler

seus processos; as nossas, de ler mais, de trabalhar com a pintura, folhas,

guaches, lápis, canetas… técnicas? Sonhos? E emendamos uma dinâmica sobre

sonhos, os nossos, como eles se constituem, como eles se transformam pelas

pessoas ao nosso redor e como eles vão se fazendo e refazendo e se

transformando, talvez numa metamorfose ambulante ou não… já serão outros

sonhos, seriam os mesmos, são menores ou maiores do que o inicialmente

pensado, como que o outro interfere na gente, nos nossos sonhos, interferem

para o bem ou para o mal, o que fazemos quando retomamos as rédeas desse(s)

sonho(s) tão nossos...E a tinta, usar ou não usar, só uma quer usar a tinta e as

outras não… mas como continuar o sonho do outro, que começou com tinta?, e

todo mundo entra na roda para continuar, a sua maneira, a completar um sonho,

ou dar novas cores, novas possibilidades, novos olhares, novas leituras

compartilhadas que nos transformam. Aquele clima seco e árido, do centro

oeste; aquele clima seco e árido das relações interpessoais dentro das

instituições, nosso distanciamento em relação ao outro… e ali, naquelas horas

coloridas, que não invisibiliza as ansiedades, as penas, as punições (capela), as

raivas, os desejos, potencializa-nos ao humano (demasiado humano) que nem

sempre habita em nós, para resplandecer vislumbrosa, num tronco cortado,

interrompido, que permite, ainda assim, a beleza da rosa florir, colorizar e dar

(mais) vida a nossa vida. (DIÁRIO DE CAMPO, Merilin Baldan, 15/09/2016,

p. 13-14).

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As narrativas produzidas durante o projeto nos mostram a potência da

experiência entre os(as) participantes do projeto (sejam eles professores(as) estudantes e

mulheres aprisionadas), indicando empiricamente o processo peculiar das

problematizações das sexualidades e gêneros para além dos muros universitários. As

experiências narradas trouxeram a cada e a todos os encontros as provocações reflexivas

de maneiras plurais de estilos de vida, de possibilidades de escolhas e de um outro

(re)começar. A vida encarcerada não pode, portanto, ser determinada pelas questões que

levaram essas mulheres a infringir a lei, mas analisando cada situação a partir de

contextos sócio-históricos, políticos e culturais especificados para cada mulher; cada

mulher é uma história, e mesmo as história tendo similaridades, cada existência é única.

O dedo em riste moral e inquisidor se esfacela ao se ouvir relatos de vidas sofridas, mas

também em gargalhadas e solidariedades que brotavam de cada atividade de leitura

proposta.

A partir das teorizações trazidas para este trabalho e a implicação das incursões

por dentro da cadeia pública municipal feminina de um município de médio porte da

região sul do estado do Mato Grosso, rodas de conversas nas aulas do ensino

fundamental e médio, ou mesmo aquela chamada de “cantinho” para dizer do que

gosta/não gosta ou realizar um agradecimento pela oferta de empréstimos de livros

possibilitaram análises plurais sobre produções de subjetividades ora normatizadas e

assujeitadas, ora despontando como existências subversivas e resistentes a um sistema

capitalista. Os processos de estigmatização que propõem fixações identitárias dessas

mulheres (como presas ou ex-presas) nada contribui para uma proposta socioeducadora

plena e inclusiva. Ouvir um relato ou depoimento após a leitura de um poema nos fez

acreditar (cada vez mais) que não escutamos uma mulher, mas uma multidão de

mulheres em suas mais variadas interseccionalidades com marcadores sociais de

raça/etnia, classe social e econômica, geração (idade), corporalidades, territorialização,

entre outros.

Por fim, que as vidas dessas mulheres sejam como livros abertos cheio de

palavras e desejos a serem ditos e espalhados pelo mundo. Se a história está apresentada

de forma triste e tortuosa, que pelo menos as experiências com a leitura possam

encorajá-las a virar a página do passado e construir outras narrativas.

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11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

REFERÊNCIAS

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TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 5.ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2014.

Discussion of gender with women of the Female Public Jail of

Rondonópolis-MT: an experience of the project of extension "Lectures

without grades"

ABSTRACT: The text aims to narrate an experience of the Extension Project “Lectures without

grades”, coordinated by me, Elni Elisa Willms, in 2016 and developed by thirteen teachers,

besides 35 students of several courses Of the UFMT-CUR and some people from the

community outside the university. The project's methodology consists of not previously

combining what each one will take to read in the institutions visited - bets on the experience of

exposing itself to chance, without much control - in addition to offering listening, that is,

experimenting with bringing literature to people Who are under deprivation of liberty and who

have little contact with this mode of cultural production and then begin a process of listening

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12 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

elicited by the readings. In the limit of this communication we will bring the narrative of an

experience in the Rondonópolis Women's Public Jail and how the reading affected both the

people who received our texts and those who executed the project. It is concluded that the

literature can promote powerful encounters for gender discussions and allows us to think about

the human condition, thus contributing as aesthetic training and training itinerary beyond the

classroom educational experiences.

KEY WORDS: Reading; Gender; Literature; Experience