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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DISCUTINDO GÊNERO E RAÇA COM TURMAS DE GRADUAÇÃO1
Vera Simone Schaefer Kalsing2
Resumo: Este texto aborda o trabalho desenvolvido em sala como professora de Sociologia em
cursos de graduação da Universidade Federal de Lavras, que consiste em problematizar questões
relacionadas a três tipos de desigualdade persistentes no Brasil: social e econômica, de gênero e
racial. Mediante a apresentação de dados da realidade brasileira e a abordagem de questões
históricas, sociais e culturais, à luz de referenciais teóricos da sociologia, questiona-se sobre o papel
desta, como Ciência do Social, na desconstrução de mitos e preconceitos disseminados na realidade
social.
Palavras-chave: desigualdade social e econômica, desigualdade de gênero, desigualdade racial,
naturalização, interseccionalidade.
Introdução
Sou professora de Sociologia para vários cursos de graduação da Universidade Federal de
Lavras. E, desde 2010, desenvolvo um trabalho em sala que consiste em: uma dinâmica de grupo,
onde cada um recebe uma frase, sobre a qual deve discutir e após, apresentar a síntese da discussão.
Algumas frases são trazidas de forma invertida ou alterada propositadamente, como: “Mulher não
chora”; “Menino brinca de boneca”; “Lugar de homem é na cozinha”; “Em briga de marido e
mulher, deve se meter a colher”; “Os brancos são inferiores aos negros”. Outras, não: “As
oportunidades são iguais para todos”; “Pobre é pobre porque é vagabundo”; “Marginal nasce
marginal”; “Brancos e negros têm oportunidades iguais no Brasil”; “Mulher nasce para apanhar”.
Caso a frase esteja invertida ou escrita de forma diferente da que “normalmente” costumamos ouvir,
os grupos devem “consertar” a frase e só então se posicionar. Após as apresentações das sínteses
dos grupos, são feitos debates.
O objetivo é problematizar e desconstruir ideias prévias, provocar, deixar aflorar pré-
conceitos que os/as estudantes trazem de antemão. Entendemos que muitas dessas frases possuem
força social e, de tão repetidas, se tornam verdades inquestionáveis, passando a ser aceitas como
1 Este trabalho será apresentado no congresso graças ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais
(FAPEMIG). 2 Mestre e Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professora Adjunta do
Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Minas Gerais. Atua no Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável e Extensão (PPGDE) do Departamento de Administração e Economia
(DAE/UFLA). Suas áreas de estudos e pesquisa são: gênero e a intersecionalidade entre gênero, raça e classe social.
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naturais. Verdades que reforçam preconceitos e ajudam na manutenção da situação de desigualdade
de determinados grupos sociais.
As frases foram divididas por temáticas, abordando três tipos de desigualdade: social e
econômica, de gênero e de raça, por considerar extremamente importante problematizar
teoricamente estas questões e por entender que muitos mitos, tabus, estereótipos e preconceitos
foram construídos ao longo da história da humanidade e se tornaram pilares de sustentação de
valores cristalizados na cultura e levaram certos grupos sociais, considerados “minorias” e que,
muitas vezes, numericamente, são maiorias, à exclusão social e econômica.
Divido as apresentações de acordo com as temáticas acima destacadas, ressaltando, porém,
que todas as frases podem pertencer ou estar relacionadas a diferentes temáticas, simultaneamente.
A ideia de separá-las serve apenas para facilitar a exposição e discussão nos grupos. As discussões
são bastante acaloradas, considerando, principalmente, as diferenças entre os sexos dos/as
estudantes nas salas, mas também, pelo fato de pertencerem a classes sociais diferentes e em razão
da cor da pele.
Trabalhando em sala com conceitos importantes dos autores clássicos e com temas da
sociologia, como: ideologia, alienação, cultura, cidadania, desigualdade social e econômica, de
gênero e racial, entendo que é possível fazer com que os/as estudantes compreendam a importância
do conhecimento sociológico, independentemente da área de seus cursos. E percebam, outrossim, a
necessidade do conhecimento crítico e a possibilidade de ampliação dos horizontes, das visões de
mundo, a partir do olhar sociológico.
As conclusões dos grupos, muitas vezes, estão ancoradas em preconceitos que se encontram
disseminados no mundo social, e povoam a linha de pensamento do senso comum.
A partir de agora, apresentarei trechos das sínteses entregues pelos grupos, com o objetivo
de problematizar sociologicamente questões debatidas em aula no decorrer das apresentações.
Desigualdade de gênero
Sensibilidade: uma característica feminina?
Na sociedade, existe a crença de que homens e mulheres possuem habilidades e
características naturais diferentes. Características como sensibilidade e emotividade são
normalmente associadas à mulher e, força e racionalidade, ao homem.
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A frase recebida pelos grupos é: “Mulher não chora”. Porém, a que estamos mais
acostumados a ouvir é “homem não chora”. Aqui, discutimos a sensibilidade como característica
essencialmente feminina. Por conta disso, entende-se que a mulher conseguiria melhor que o
homem extravasar suas emoções, enquanto que este não pode deixar transparecer seus sentimentos,
suas emoções, já que isto seria sinal de fraqueza. O homem não deve demonstrar emotividade,
afeto, sensibilidade. Tudo isso põe em cheque sua posição de sexo forte, de dominador.
Os/as estudantes comentam que a mãe educa o filho do sexo masculino para não chorar e a
filha, para ser mais delicada, sendo-lhe permitido o choro e a manifestação de suas emoções. Afinal,
historicamente, a mulher foi vista como o sexo frágil.
Obviamente, eles/as também mencionam as mudanças ocorridas em nossa sociedade. E que
essas frases são manifestações da cultura dominante machista que levou o homem a sempre se
mostrar como forte e a mulher como frágil. O choro é entendido como uma característica do ser
humano, independente do sexo.
Menino brinca de boneca e menina brinca com carrinho
Neste ponto, é problematizada a educação de meninos e de meninas, e a maternidade como
função natural e social da mulher. Questiona-se se a educação entre os sexos se daria da mesma
forma. Ressalta-se que a educação está diretamente ligada aos papéis e aos lugares que homens e
mulheres ocupam na sociedade em razão das características atribuídas aos dois sexos.
“Desde cedo, as meninas são estimuladas a brincarem de boneca e de casinha para que
aprendam a cuidar da casa e, no futuro, desempenhem bem o papel imposto pela sociedade
machista” (síntese do grupo).
O processo educacional não ocorre da mesma forma para os dois sexos. Sabemos que
existem diferenças físicas e biológicas entre os sexos, mas isso não pode determinar que meninos
devam brincar ou se comportar de uma forma e meninas de outra. Em razão disso, são delimitados
os comportamentos que meninos e meninas devam ter. Brincadeiras são diferenciadas, brinquedos,
atitudes, gestos, tudo de acordo com o sexo.
A menina é educada para seguir o exemplo da mãe, por isso, desde cedo, dão-lhe uma
boneca e não um carrinho, como para o menino. Como se no futuro, a mulher não fosse aprender a
dirigir. E como se o menino também não fosse se transformar em pai. Não que isso seja uma regra.
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Além disso, ignora-se também o fato de que há mulheres que não desejam ser mães. Ou seja, a
sociedade pressupõe que ser mulher é ser mãe.
As/os estudantes afirmam perceberem mudanças ocorridas em relação a costumes, padrões
culturais, porém, seus posicionamentos, muitas vezes, reforçam valores cristalizados em nossa
cultura. Como exemplo, podemos reproduzir o trecho de um dos trabalhos apresentados em sala:
“Menina brinca com carrinho”. Posicionamento do grupo: “A frase nos traz uma estranha sensação,
pois carrinho não é um brinquedo ‘comum’ ao gosto feminino. Embora esta ideia traga um sentido
de preconceito, é nítida a preferência por parte das crianças do sexo feminino pelas bonecas” (grifo
meu). Como se o bebê já soubesse falar logo ao nascer e dissesse: “eu não quero um carrinho, eu
prefiro uma boneca!”
Ou seja, aqui, o grupo não problematiza os processos de socialização e educação
diferenciados de acordo com o sexo, trata a questão como se fossem características naturais que as
pessoas apresentam. Isto é, menina “naturalmente” vai gostar de brincar de boneca, menina
“naturalmente” deseja ser mãe. Está na essência da mulher o desejo pela maternidade. Não são
problematizados os valores impostos pela sociedade e os preconceitos que as pessoas estarão
sujeitas caso não sigam o padrão, a regra, as normas sociais, falando aqui das sansões sociais de
Durkheim (1973). Por isso, um pai não dará uma boneca ao filho menino, tampouco uma mãe dará
um carrinho à filha menina, temendo as sanções sociais, além da indiscutível preocupação com o
fato de esta ação poder influenciar na construção de sua masculinidade e/ou feminilidade.
Lugar de mulher é na cozinha?
Os/as estudantes mencionam a percepção da existência de locais delimitados na sociedade,
de profissões mais procuradas por homens e, de outras, mais procuradas por mulheres. Trago a
discussão de que, nos próprios cursos de graduação, existem aqueles mais procurados por homens,
como as engenharias, e aqueles mais procurados por mulheres, como Nutrição, Enfermagem e
Pedagogia. Qual seria a razão disso? Será por que essas profissões estariam mais ligadas às funções
que as mulheres desempenham na família: a educação das crianças e o cuidado com os idosos?
Atividades mais associadas às funções das mulheres na sociedade, consideradas como
“naturalmente femininas”, devido ao fato de as mulheres darem à luz.
Conforme Louro (1997, p. 45), “teorias foram construídas e utilizadas para ‘provar’
distinções físicas, psíquicas comportamentais; para indicar diferentes habilidades sociais, talentos
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ou aptidões; para justificar os lugares sociais, as possibilidades e os destinos ‘próprios’ de cada
gênero” (grifo da autora).
As diferenças foram socialmente construídas, apontando o trabalho masculino e o espaço
público como mais valorizado que o trabalho feminino e o espaço privado, doméstico. Assim, outro
conceito importante neste estudo é o de divisão sexual do trabalho, cunhado pelas autoras Helena
Hirata e Danièle Kergoat. Segundo elas,
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das
relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a
sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e
socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera
produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação
pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos,
militares etc.) (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599).
A desvalorização do trabalho realizado pelas mulheres se reflete nos ganhos obtidos por elas
no mercado de trabalho, existindo uma discrepância no que se refere aos salários recebidos por
homens e por mulheres. Os/as estudantes destacam o fato de as mulheres, muitas vezes, embora
ocupando o mesmo cargo que os homens, não receberem o mesmo salário, ou que, em cargos de
chefia, as mulheres ainda estariam em número bem inferior aos homens.
Violência: coisa de mulher ou coisa de homem?
A argumentação e o posicionamento da maioria dos grupos que apresentam a frase: “Em
briga de marido e mulher, deve se meter a colher”, que, na verdade, não é ouvida dessa forma, mas
ao contrário: “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher” – se dão no sentido de que é
preciso distinguir quando seria somente uma “briguinha” de casal, uma discussão, ou quando
haveria violência doméstica propriamente. Não havendo agressão física, não deveria se “meter a
colher”, pois seria coisa que o casal deveria resolver. Alguns grupos chegam a argumentar que
somente em casos extremos deveria haver alguma interferência externa, porque, afinal, havendo
após o desentendimento uma reconciliação, “quem se meteu”, “acaba ficando em uma situação
constrangedora”. “É complicado dar palpite na relação alheia” (síntese do grupo).
Ou seja, os argumentos situam-se no plano individual, não sendo problematizadas as
questões sociais, situações que provavelmente façam parte de elementos de uma cultura machista e
patriarcal. Argumentam que “cada caso é um caso”. Este ponto é justamente o mais delicado,
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quando os argumentos ancoram-se nitidamente no senso comum, e os grupos se posicionam
unanimemente de forma conservadora em suas apresentações.
Para se contrapor a isso, são mencionadas as teorias, construídas para legitimar
cientificamente e assim, justificar a violência contra as mulheres, comparando-as a animais3 e
também são apresentados dados da violência doméstica no Brasil.
Persiste na cultura machista o mito de que a mulher é o sexo frágil, que não se deve bater em
mulher, quem bate em mulher é covarde, mas as mulheres são tão vítimas... Dados da Organização
das Nações Unidas (ONU) demonstram que “a cada duas horas, uma mulher é assassinada no
Brasil”. De acordo com a ONU Mulheres, 43 mil mulheres foram assassinadas no Brasil na última
década. É uma média de mais de quatro mil mulheres assassinadas por ano! Como explicamos esses
dados? São casos particulares? “Cada caso é um caso?”
As frases encontram eco. As frases trabalhadas em sala alcançam estatuto de verdade. São
mitos que sustentam os pilares da sociedade. Por serem muito repetidas, tornam-se alicerces de uma
sociedade. São verdades inabaláveis que reforçam preconceitos e mantêm a situação de
discriminação e desigualdade entre determinados grupos sociais.
Desigualdade social e econômica
A partir do primeiro semestre de 2012, comecei a passar um vídeo da emissora TV Brasil,
do programa “Caminhos da Reportagem”, intitulado Retratos da pobreza no Brasil4. Ele é
apresentado sempre depois das discussões das frases com as turmas. E, após, fazemos um novo
debate, juntando as frases e os dados mostrados no vídeo.
São apresentados dados sobre a desigualdade social e econômica no Brasil, levantados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no censo de 2010. E, são trazidas análises e
depoimentos de pesquisadores/as de institutos de pesquisa renomados, como o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) e a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Os dados mostram que, entre os
pobres e miseráveis, a maioria são pretos ou pardos e, entre estes, a maioria são mulheres.
3 Conforme Santos (2001), dois dos grandes momentos históricos de lutas políticas das mulheres irão coincidir com
estudos que tentam, especificamente, provar que a mulher é inferior ao homem, da Craniometria, no final do século
XIX, e da Sociobiologia, que ressurgem com muita força nos anos de 1970. Comparações com os animais irracionais
foram feitas para justificar a violência contra a mulher.
4 Disponível em: www.tvbrasil.ebc.com.br/caminhosdareportagem
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Neste momento, se torna evidente o que falo sobre as frases, que as afirmações não devem
permanecer intactas e sem possibilidade de cruzamentos ou inter-relações, já que uma mulher
negra, certamente, sofre mais discriminação e preconceito que uma mulher branca. Um homem
negro sofre mais discriminação que um homem branco, mas não sofre a mesma discriminação que a
mulher negra, porque é homem. Ou seja, a mulher negra estará mais sujeita à pobreza que a mulher
branca e, por isso, sofrerá discriminação, por ser negra, por ser mulher e por ser pobre. Enquanto
que o homem negro sofrerá discriminação por ser negro e pobre, mas não sofrerá a discriminação
de gênero5.
Assim, os/as estudantes conseguem perceber que os fatos e as questões estão relacionados.
A partir dos dados da realidade que são mostrados, podem ser percebidas as relações de causa e
efeito. E, as problematizações teóricas os/as auxiliam a deixar de lado os “achismos”, as prenoções.
Essas problematizações têm sequência ao longo do semestre, com os conceitos e as teorias
abordadas. Afinal de contas, estamos ali com o objetivo de rompermos com o senso comum e
construirmos conhecimento científico.
Peço a eles/as para atentarem para a ideologia que está por detrás dos discursos, e os
interesses envolvidos, de frases como: “As oportunidades são iguais para todos”. Como a mídia,
principalmente a televisiva, tenta vender a ideia de que todos e todas podem ter acesso igual, às
mesmas oportunidades, só depende do esforço individual. Com esse discurso, se consegue, por um
lado, maquiar e, por outro, justificar as diferenças sociais, com a argumentação de que se trata
apenas de questões de talento individual, ambição ou então da própria natureza. Assim, se houver
esforço, qualquer um/a pode sair da condição de pobreza, só depende do indivíduo.
Para Novaes (1991, p. 183), “um dos chavões preferidos da ideologia dominante, que gosta
de anunciá-lo com toda a pompa, orgulho e circunstância, é que ‘as oportunidades são iguais para
todos’”. Assim, se leva somente para o campo individual questões e responsabilidades sociais e
estatais, atribui-se unicamente ao indivíduo essa responsabilidade.
Temos a educação oferecida para cada classe social, que é diferente, porém, muitos
alunos de baixa renda são mais bem sucedidos do que alunos mais ricos, pois os
primeiros sabem aproveitar, mesmo que poucas, as oportunidades oferecidas. Em
outras palavras, a nosso ver, isso depende do interesse individual de cada pessoa
em aproveitar o que lhe é oferecido (síntese do grupo, grifo nosso).
5 Embora os dados da pirâmide salarial no Brasil mostrem que o homem negro vem depois da mulher branca, recebendo
salários inferiores. Mesmo assim, o que se destaca aqui são os vários tipos de discriminação que a mulher estará sujeita,
independente da classe social e da cor da pele, como a violência e a discriminação de gênero.
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Como se a todas as pessoas fossem oferecidas as mesmas oportunidades. A questão é
somente de ter “capacidade” para saber aproveitar melhor!
São questionadas e discutidas com os/as estudantes as causas históricas da pobreza e da
desigualdade social e econômica no Brasil. Abordamos o sistema escravocrata que perdurou por
mais de 300 anos e o fato de o Brasil ter sido o último país das Américas a abolir a escravidão.
Questionando-se sobre quem são os principais afetados até hoje por essa situação. Questionamos
sobre a cor, o sexo e a idade dos/as entrevistados/as, entendendo com isso que, no Brasil, a pobreza
tem cor e sexo.
Desigualdade racial
É importante destacar que, no que se refere ao quesito cor/raça, dentro das turmas, de um
modo geral, a grande e esmagadora maioria dos/as estudantes, era, e é, ainda hoje, de cor branca.
Mesmo com a promulgação da Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, a conhecida “lei das cotas”,
que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico
de nível médio6, o número de estudantes negros/as ainda é pequeno em se comparando ao número
de brancos/as.
Com a promulgação da lei, mais acaloradas e interessantes tornaram-se as discussões em
sala, tendo em vista que, por mais que as frases não estivessem diretamente relacionadas com a lei,
as apresentações dos grupos e os debates acabavam “descambando” para esse assunto.
O debate na mídia foi colocado dessa forma, como se a lei tratasse única e exclusivamente
de cotas para negros nas universidades. Naquele momento e, mesmo atualmente, os/as estudantes
argumentam que a lei pode criar mais desigualdade entre os negros na sociedade, já que se estaria
colocando em cheque sua capacidade intelectual ao conceder esse “empurrãozinho” para o ingresso
nas universidades. Para contra-argumentar, nos reportamos ao vídeo que revelou dados da pobreza
6 Em seu artigo 1o, a Lei estabelece que “As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da
Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo
50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas”. E, em seu artigo 3º, diz que “Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o
desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo
igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o
último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12711.htm
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no Brasil, apontando que, 70% dos extremamente pobres, são pardos e pretos. Ou seja, a
desigualdade já existe. Se olharmos o número de negros que ingressam na universidade em relação
ao de brancos, veremos que há uma discrepância enorme.
É um círculo vicioso, os negros são maioria entre os pobres, têm menos acesso ao ensino de
qualidade, porque esse ensino é pago, por isso, são menos qualificados, recebendo assim salários
inferiores, tendo, consequentemente, renda menor, o que agrava ainda mais sua situação de pobreza
e exclusão.
O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Com a assinatura da Lei
Áurea, os negros alcançaram a liberdade, mas não obtiveram direitos, foram “largados à própria
sorte”. Não foi lhes dado o direito à terra, à educação e, nem sequer, ao trabalho remunerado. O
resultado disso se vê nos cinturões de miséria nas grandes metrópoles ou nas favelas de cidades
como o Rio de Janeiro...
Mesmo assim, no Brasil, vivemos o mito da democracia racial, ou seja, tenta-se vender a
imagem e a ideia da existência de uma igualdade de direitos e oportunidades entre negros e brancos.
Esse mito esconde as atrocidades que foram cometidas, e ainda são, contra negros e negras e
impede o estabelecimento de ações voltadas à superação desse problema (Ratts et al, 2007).
Entendemos que somos uma mistura de raças. O problema é que há uma desigualdade
histórica no acesso às oportunidades aos diferentes grupos raciais.
O antropólogo Roberto DaMatta trata brilhantemente dessa questão em seu livro “O que faz
o Brasil, Brasil?”, no capítulo intitulado: “A ilusão das relações raciais”. Escreve ele:
Realmente, estou convencido de que a sociedade brasileira ainda não se viu como
sistema altamente hierarquizado, onde a posição de negros, índios e brancos está
ainda tragicamente de acordo com a hierarquia das raças. Numa sociedade onde
não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é forma muito mais
eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e
“saibam” qual é ele (DAMATTA, 1986, p. 46) (grifos meus e do autor).
Em sala, os argumentos utilizados pelos/as estudantes se dão também no sentido de que
“Tem negro que é rico. Tem pobre que é branco”. Ou seja, não seriam só os negros os mais
atingidos pela pobreza, então, em relação às cotas, por exemplo, se deveria dar acesso aos pobres
que não tiveram uma boa formação básica.
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Esse argumento, no entanto, esconde o elitismo e a meritocracia que está por trás, e não leva
em conta os dados, além de mostrar desconhecimento em relação à própria lei, que dispõe sobre o
acesso ao ensino superior para estudantes de escola pública e, dentre estes, os que possuem renda
per capita inferior a 1,5 salário mínimo e os que possuem renda superior a 1,5 salário mínimo,
destinados metade dos 50% da cota, respectivamente. Quando pensamos na pobreza no Brasil,
vamos perceber que a grande maioria dos pobres são negros. Ou seja, se usa a exceção para explicar
a regra.
Historicamente, em nosso país, “há lugares e coisas que não são para negros e negras”. E
essa crença se apresenta também no discurso dos/as próprios negros/as que internalizaram essa
ideologia de hierarquia entre as raças. Muitas vezes, entendem que a universidade não é um lugar
legítimo para eles, fora as questões objetivas que historicamente impediram de fato o acesso dos
negros/as ao ensino superior no Brasil. “O racismo brasileiro, fator de violência racial, apropria-se
dos corpos e cérebros dos negros” (Souza, apud Pacheco; Silva, 2007, p. 73).
Em relação à Lei das cotas”, muitos se posicionam contrários, argumentando que o que é
preciso melhorar é o ensino básico no Brasil. Outro argumento é o de que, como os negros, em sua
maioria, não tiveram acesso a um bom nível de ensino, quando entram na universidade, precisam
passar por nivelamentos, o que, muitas vezes, pode levar a uma queda no nível do ensino na
universidade, isto, quando eles conseguem se manter e terminar o curso.
Em algum momento, a visão elitista e o preconceito vêm à tona. Alguns chegam a
questionar a não existência de cotas para brancos. Afirmam que as cotas para negros são uma forma
de discriminação, ou até, pasmem, de privilégio! Ou seja, tomam a causa pela consequência. Cotas
são necessárias porque os negros não tiveram as mesmas oportunidades que os brancos. E não o
contrário, as cotas farão a discriminação. Até farão, mas neste caso, é a chamada “discriminação
positiva” no intuito de corrigir uma distorção histórica que ainda persiste no Brasil. Os negros
foram discriminados, por isso existem cotas, e não o contrário.
Vivemos em uma sociedade muito desigual, com grandes diferenças sociais,
econômicas e raciais, onde determinadas classes sociais têm ‘privilégios’ sobre
outras. Podemos então afirmar que as oportunidades não são iguais para todos.
Uma maneira de comprovar isso é a ação do governo que cria cotas e programas de
assistência social para ajudar a ‘esconder’ os problemas da sociedade (síntese do
grupo).
Ou seja, entendem que a sociedade não oferece as mesmas oportunidades para brancos e
para negros, mesmo assim, são contrários às cotas. De acordo com Ângela Randolpho Paiva,
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professora do Departamento de Sociologia e Política da PUC/Rio,7 não se questiona o sistema de
cotas para mulheres na política, tampouco se questiona as cotas para deficientes físicos em
concursos públicos. Somente a cota para negros é que causa tanta polêmica porque, segundo ela,
“mexe com uma crença profunda do Brasil de que nós temos um país com uma harmonia racial, que
nós somos um país miscigenado, que nós não temos problema racial, que nosso problema é apenas
social”. Então não se precisaria de cotas para negros.
Assim, o racismo à brasileira consiste em um preconceito velado, não se manifesta, desde
que cada um fique em seu lugar, mantendo as hierarquias “costumeiramente assentadas”, conforme
DaMatta (apud Schwarcz, 1996). Mas se antes o preconceito racial não vinha à tona porque os
negros nunca ameaçaram o lugar dos brancos no Brasil e os brancos nunca precisaram sentir medo
e, portanto, nunca desenvolveram preconceito (Harris apud Guimarães, 2003), e, de acordo com
Millôr Fernandes (apud Schwarcz, 1996, p. 170), “no Brasil, não há preconceito porque o negro
sabe o seu lugar”, aos poucos, atualmente, está vindo à tona.
Com a política de cotas, entendo que o preconceito está “saindo do armário”, a partir do
momento que os negros passaram a incomodar, pois estão ocupando espaços historicamente
reservados somente aos brancos. E isso está incomodando. Está tirando muitos de sua zona de
conforto.
Algumas palavras finais: A Sociologia como provocadora
A Sociologia faz perguntas que as pessoas não querem saber que existem. Ou, como quer
Bauman, “por colocar em questão aquilo que é considerado inquestionável, tido como dado, ela tem
o potencial de abalar as confortáveis certezas da vida, fazendo perguntas que ninguém quer se
lembrar de fazer e cuja simples menção provoca ressentimentos naqueles que detém interesses
estabelecidos” (Bauman e May, 2010, p. 24). A Sociologia deve provocar, incomodar,
desestabilizar.
Assim, concordo com Bourdieu, quando este afirma que: “Se o mundo social tende a ser
percebido como evidente [...], é porque as disposições dos agentes, o seu habitus, isto é, as
estruturas mentais através das quais eles apreendem o mundo social, são em essência produto da
interiorização das estruturas do mundo social” (Bourdieu, 1990, p. 155).
7 Professora entrevistada no documentário “O negro no Brasil; brilho e invisibilidade” passado em sala. Disponível em:
www.tvbrasil.ebc.com.br/caminhosdareportagem.
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A mudança de valores é lenta. Estamos lidando com valores secularmente arraigados em
nossa cultura. Por serem profundamente arraigados e, porque foram, historicamente, construídos,
são também profundamente internalizados por nós, e se refletem em nosso modus operandi. Nossas
práticas reproduzem estereótipos e modelos dominantes e tradicionais de gênero, de raça e de classe
social. É o que Bourdieu chama de habitus, que consiste na internalização das estruturas e a
reprodução por meio das práticas dessas estruturas. Ou seja, a estrutura estruturada estruturante.
Trata-se da nossa forma de agir quando internalizamos as estruturas e, muitas vezes, de forma
inconsciente, mas muitas também, conscientemente, reproduzimos no cotidiano. Isso pode se referir
ao machismo, à religião, ao racismo, etc. Essas estruturas sociais estão tão internalizadas que não
nos damos conta como e quando as reproduzimos como se fosse tudo natural.
O que busco fazer em sala de aula é problematizar sociologicamente questões sociais,
buscando fazer a ponte entre a teoria e a empiria. Se não fizermos a ponte, como o/a estudante
conseguirá despir-se de seus pré-conceitos, daquelas ideias pré-concebidas, calcadas no
conhecimento de senso comum e, por isso, muitas vezes, carregadas de preconceitos? A ideia é
problematizar conceitos que são, na verdade, preconceitos que trazemos de antemão. A própria
palavra já diz: pré-conceito, um conceito prévio, anterior, não é ainda propriamente um conceito.
É preciso desconstruir, o que se chama na sociologia de desvelamento do real (Santos,
1991), tirar o véu. Em cima de mitos, certas verdades são construídas, ganham sustentação, do tipo:
“Mulher nasce para apanhar”; “Lugar de mulher é na cozinha”; “Homem não chora”; “As
oportunidades são iguais para todos”. “Pobre é pobre porque é vagabundo”. “Marginal nasce
marginal”. Este é o objetivo da escolha das frases do início do semestre. Elas vão sendo
problematizadas ao longo daquele. Em grande parte das frases, inverto a ordem do que costumamos
ouvir por aí...
Os conceitos sociológicos são trabalhados em sala e, além disso, são estabelecidas conexões
com a realidade brasileira. Ao serem apresentados dados sobre a desigualdade de gênero, social e
econômica, e racial, desvela-se o real. Desvela-se o machismo, o racismo, os preconceitos sociais e
culturais, os estereótipos, problematiza-se a naturalização dos papéis destinados a homens e a
mulheres, dos locais e funções reservados a negros e a brancos na sociedade.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A disciplina é uma construção ao longo do semestre. A proposta de discutir gênero e raça
em aulas de Sociologia com turmas de cursos de graduação presenciais tem-se constituído em um
trabalho muito instigante, frutífero e desafiador.
Referências
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de geografia. In: Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral, v. 8/9, n. 1, p. 45-59, 2006/2007.
Disponível em: www.uvanet.br/rcgs. Acesso em fevereiro de 2015.
SANTOS, Patrícia L. dos. O corpo desnudado: das imagens da mulher na ciência às imagens da
mulher na publicidade. Trabalho apresentado no III Encontro da Rede Brasileira de Estudos e
Pesquisas Feministas (REDEFEM) e Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero (NUTEG):
“Enfoques Feministas e as Tradições Disciplinares nas Ciências e na Academia”, Niterói: 2001.
Title: Discussing gender and race with undergraduate classes
Astract: This paper approaches the work developed in the classroom as a sociology professor in
undergraduate courses at the Federal University of Lavras, which consists of problematizing
questions related to three persistent inequalities in Brazil: social and economic, gender and racial.
Based on the presentation of data from the Brazilian reality and the approach of historical, social
and cultural questions, in the light of theoretical references of sociology, the paper questions the
role of social science in the deconstruction of myths and prejudices disseminated in social reality.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Keywords: Social and economic inequality, gender inequality, racial inequality, naturalization,
intersectionality.