dissertação - 01 - educação

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dissertação de mestrado análise do discurso. USP 2014.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FFCLRP DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    Anlise do discurso e ensino de histria trajetria e sentidos

    Luen Maraucci Rubio Ardenghi

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias para obteno do ttulo de Mestre em Cincias. rea: Psicologia

    Orientadora: Prof. Dr. Leda Verdiani

    Tfouni

    Ribeiro Preto 2013

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA

    FINS DE ESTUDO OU PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao da Publicao Servio de Documentao

    Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto - USP

    Ardenghi, Luen Maraucci Rubio

    Anlise do discurso e ensino de histria trajetria e sentidos/Luen Maraucci Rubio Ardenghi; orientadora Leda Verdiani Tfouni - Ribeiro Preto, 2013. 123 f. : il.

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Psicologia). rea de Concentrao: Psicologia Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo, 2013.

    1. Anlise do Discurso. 2.Ensino de Histria 3. Educao.

    CDD

  • FOLHA DE APROVAO

    Luen Maraucci Rubio Ardenghi Anlise do discurso e ensino de histria trajetria e sentidos

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da USP, como parte das exigncias para obteno do ttulo de Mestre em Cincias. rea: Psicologia.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: _____________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: _____________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: _____________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: _____________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: _____________________ Assinatura: ___________________________

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    Essa caminhada percorrida com muito respeito e admirao aos profissionais que me guiaram dedicada minha famlia: me, irms, marido, filho e ao meu pai que de outro plano zela por ns. Dedico Prof Dr Leda, cujas orientaes refinaram meu olhar perante o universo discursivo. rika Natacha de Andrade, que me incentivou a dar o primeiro passo. Dr Maria Priscila Cescato e Suhaila El Faro, que me ouviram, acolheram e me ensinaram demais na rdua busca pelo equilbrio.

  • 5

    minha orientadora Prof Dr Leda Verdiani Tfouni, que me aceitou e acreditou em

    meu potencial desde o incio. Admirvel ser humano e profissional que me inspira.

    Agradeo por me ensinar o respeito linguagem e ao discurso, especialmente por

    me guiar perante os desafios dos mesmos. Mediante minhas aflies ao longo

    tessituras discursivas cientficas, sempre afirmava que no bastava escrever de

    modo diferente, mas, sobretudo pensar de outra maneira, com outro olhar, ser

    sensvel para perceber as disputas discursivas, o silncio, a atuao do

    inconsciente. Certa vez, em uma reunio voltada a esse trabalho Leda ao ler meus

    escritos, percebeu um erro: eu escrevi emprenhar querendo dizer empenhar.

    Logo ela disse: Perceba o que o equvoco quer que voc veja! O inconsciente est

    falando. No momento eu no considerei a importncia daquela afirmao. No

    entanto, meses depois estava grvida de meu primeiro filho to desejado. O

    inconsciente e o desejo escapando pela linguagem. A Leda tinha mesmo que falar!

    Agradeo por momentos reflexivos riqussimos em nossas reunies, pela confiana,

    generosidade, exigncia, pelo exemplo de vida e de trajetria profissional.

  • 6

    AGRADEO

    A Deus, que na imperfeio me acolhe e me recebe.

    minha me Masa, que, com sua sabedoria, me ensina que nem sempre o que

    justo o mais saudvel no exerccio da convivncia humana. Agradeo pelo amor

    apesar de todos os tropeos. Por acreditar em mim, mesmo nos perodos em que

    me era impossvel tal pensamento.

    Ao meu marido, companheiro dos planos de vida. Agradeo por zelar por nossa

    famlia que se inicia e por me ensinar que apesar das diferenas, as relaes

    humanas podem ser enriquecedoramente encantadoras.

    s minhas irms Lis e Lena, por me aceitarem e me respeitarem exatamente como

    sou.

    Ao meu filho Enrico, que me ensina a viver um dia de cada vez. Por todos os

    sorrisos que enchem meu corao de esperana na vida.

    rika Natacha de Andrade, por acreditar em mim e me incentivar na busca pela

    qualificao profissional.

    Ana Paula Rodrigues de Oliveira, diretora do CE 241 SESI de Sertozinho- pelo

    entendimento e compreenso em minhas ausncias ao longo da construo dessa

    dissertao.

    Aos professores da minha banca de qualificao Antnio Carlos Petean e Vera Lcia

    Navarro, pelas riqussimas sugestes e reflexes.

    Tereza Cristina Pires, diretora da Escola Edith Dalmaso, por viabilizar o acesso

    aos professores de sua escola, cujas entrevistas fazem parte da anlise em meu

    trabalho.

    Aos professores C. A. F. e P. M. F. pela ateno e solicitude nas entrevistas, mesmo

    que por poucos momentos.

  • 7

    Dr Maria Priscila Cescato, pela compreenso e gentileza nas escutas. Pelo

    conforto e acolhimento nos momentos que pareciam no ter sada.

    Suhaila El Faro, pelas indagaes assertivas. Pela pacincia e serenidade nos

    meus momentos de angstia.

    Ao CNPq, pelo apoio e financiamentos concedidos.

    A todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contriburam para a construo

    dessa Dissertao de Mestrado.

  • 8

    RESUMO

    O presente trabalho aborda, fundamentado na Anlise do Discurso pcheutiana,

    discusses acerca do funcionamento e das formaes discursivas, que constituem,

    ao longo da trajetria do Ensino de Histria no Brasil, posies de saber/poder

    formadoras e perpetuadoras de prticas no interior das escolas (e que ressoam para

    outros espaos) que interditam posies dos alunos e de professores enquanto

    intrpretes historicizados. Atravs de anlises, embasadas no paradigma indicirio,

    busca-se pela compreenso da construo e produo discursivas dos currculos

    para o Ensino de Histria no Brasil. H a inteno de entender os dispositivos

    discursivos que permitem e legitimam prticas e pensamentos calcados na trajetria

    dos currculos, metodologias, situaes de aprendizagem, avaliao e orientaes

    aos professores referentes ao Ensino de Histria. Esse trabalho tem a inteno de

    suscitar questionamentos acerca da posio do prprio professor de Histria, tanto

    na abordagem que esse tem da mesma, como tambm possibilitar vieses

    interpretativos nas prticas com seus alunos em sala de aula, especialmente

    referentes utilizao dos livros didticos.

    Palavras-Chaves: Anlise do discurso, Ensino de Histria, Livros didticos.

  • 9

    ABSTRACT

    This work addresses, based on Pcheuxs contribution to Discourse Analysis,

    discusses about the operation and discursive formations, which are along the

    trajectory of the Teaching of History in Brazil, positions of power / knowledge and

    perpetuators of forming practices within schools (and other spaces that resonate to)

    interdict positions that students and teachers as interpreters historicized. Through

    analysis, supported the evidential paradigm, we seek to understand the discursive

    construction and production of curricula for the teaching of History in Brazil. The

    intention is to understand the discursive practices that enable and legitimize and

    thoughts rooted in history curricula, methodologies, learning situations, evaluation

    and guidance to teachers for the Teaching of History. This paper aims to raise

    questions about the position of professor of history itself, both in approach that has

    the same, but also enable interpretive biases in practices with their students in the

    classroom, especially regarding the use of textbooks.

    key words: Discourse Analysis, Teaching History, Textbooks.

  • 10

    SUMRIO

    1. INTRODUO................................................................................................. 12

    2. METODOLOGIA ............................................................................................. 15

    2.1 Consideraes sobre o corpus ...................................................................... 15

    2.2 Aspectos metodolgicos a constituio do corpus ..................................... 18

    3. MEMRIA, HISTRIA E OS ESQUECIMENTOS .......................................... 25

    4. ANLISE DO DISCURSO E ENSINO DE HISTRIA TRAJETRIA E

    SENTIDOS .......................................................................................................... 32

    5. SOBRE ANLISE DO DISCURSO ASPECTOS TERICOS ..................... 80

    6. SOBRE ENSTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS ......................................... 89

    7. MOMENTOS DAS ENTREVISTAS .................................................................. 95

    8. ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA (1) .......................................................... 98

    8.1. Entrevista semiestruturada (2) ...................................................................... 101

    9. ANLISE DAS ENTREVISTAS ......................................................................... 105

    10. CONCLUSES FINAIS ....................................................................................113

    11. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................117

  • 11

    1. INTRODUO

    O presente trabalho aborda, fundamentado na Anlise do Discurso

    pcheutiana, discusses acerca do funcionamento e das formaes discursivas, que

    constituem, ao longo da trajetria do Ensino de Histria no Brasil, posies de

    saber/poder formadoras e perpetuadoras de prticas no interior das escolas (e que

    ressoam para outros espaos) que interditam posies dos alunos e de professores

    enquanto intrpretes historicizados.

    Atravs de anlises, embasadas no paradigma indicirio (GINSBURG, 1980),

    busca-se pela compreenso da construo de sentidos e produo discursivas

    relativas s alteraes curriculares feitas para o Ensino de Histria no Brasil. H a

    inteno de entender os dispositivos lingusticos discursivos que permitem e

    legitimam (quando institucionalmente empregados) prticas e pensamentos (esses

    tambm podem ser considerados enquanto prticas, visto que so sustentao para

    as mesmas) calcados na trajetria dos currculos, metodologias, situaes de

    aprendizagem, avaliao e orientaes aos professores referentes ao Ensino de

    Histria.

    Alm da discusso acerca do corpus, que apresentada no captulo

    Aspectos metodolgicos - constituio do corpus, das reflexes tericas tratadas

    em Memria, Histria e os Esquecimentos e da anlise e debates expostos em

    Ensino de Histria trajetria e sentidos, esses escritos tm a inteno de suscitar

    questionamentos acerca da posio do prprio professor, tanto na abordagem que

    esse tem da Histria, como tambm possibilitar vieses interpretativos nas prticas

    com seus alunos em sala de aula, especialmente referentes utilizao dos livros

    didticos.

    Entende-se que as questes envolvidas no processo de aprendizagem so

    inmeras. Abrangem desde os aspectos pessoais, da individualidade e/ou

    dificuldade de cada um e atingem at mesmo s relaes interpessoais

    estabelecidas dentro dos ambientes em que a aprendizagem o principal elemento

    a ser desenvolvido.

    Com relao ao ensino de Histria no diferente. O profissional que leciona

    a disciplina tem que se atentar em diferentes vertentes, que no somente o

  • 12

    contedo preestabelecido e estanque, para que possa garantir uma aprendizagem

    efetiva e significativa por parte de seus alunos.

    Ainda, deve investir nas multiplicidades interpretativas, na possibilidade do

    desenvolvimento de novas estratgias de ensino e aprendizagem, na provocao de

    estmulos para aflorarem as mltiplas inteligncias. Nesse sentido, encontra-se a

    justificativa do presente trabalho: a importncia da qualificao do professor da

    disciplina de Histria com uma formao fundamentada na Anlise do Discurso.

    Essa unio tem como finalidade inferir significativamente no processo de

    aprendizagem dos alunos, possibilitando aos mesmos tornarem-se produtores do

    prprio conhecimento, serem intrpretes historicizados dentro ou distante do

    universo escolar.

    Essa parceria no pretende apenas apresentar problematizaes,

    questionamentos, estranhamentos referentes aos discursos oficias, que so a base

    do Ensino de Histria no Brasil, mas tambm possibilitar que os professores

    desenvolvam recursos (que devem ser estendidos aos alunos) no somente no

    interior do universo escolar, sobretudo para alm dele, na inteno de lidar com os

    desafios no decorrer de suas prprias vidas. Esse amlgama tem funo de cultivar

    hbitos que permitam aos sujeitos autonomia, mesmo que no absoluta, em suas

    prprias opinies, reflexes e questionamentos.

    importante que o professor perceba e trabalhe com a pluralidade de

    processos de aprendizagem no interior da sala de aula e, deseje ser, alm de

    professor, um pesquisador do campo educacional; qualidades essas que so ou

    deveriam ser pr requisitos para o exerccio dessa profisso. No se pode pensar

    em um professor que esteja distante da atividade da pesquisa, pois sem ela seu

    trabalho permanece estagnado; nem distante do exerccio educacional, pois sem ele

    no h mais sentido a busca pela qualidade.

    Dessa maneira, professores de Histria podero buscar por ajuda e recursos

    na AD, utilizar-se dela como dispositivo interpretativo no que tange aprendizagem

    e produo de conhecimento. Podero ainda, atravs desses escritos e das

    reflexes e problemticas levantadas, direcionar suas formaes para uma rea que

    vem enriquecer suas prticas docentes e colaborar para alteraes positivas na

    maneira de como acreditam que se desenvolvem os processos de aprendizagem e

  • 13

    na compreenso das construes discursivas, que so fontes para o trabalho em

    sala de aula.

    Todo o processo de construo do presente trabalho apresenta-se com

    significativa relevncia, pois ao atuar e pesquisar na rea da educao, depara-se

    com muitas incertezas e problemticas importantes. O confrontamento entre prticas

    docentes e suas teorias encontra-se no centro do debate acerca da maneira com a

    qual se lidam com as dificuldades de aprendizagem. Acredita-se que a concepo

    de ensino de um professor interfere significativamente no processo de aprendizagem

    dos alunos, portanto, a discusso levantada aqui de frequente preocupao e

    objeto de reflexo.

    A interface da Anlise do Discurso de filiao francesa, cujo principal

    expoente Michel Pcheux, com o ensino de Histria apresenta-se extremamente

    enriquecedora, j que a primeira, assume o sujeito como perpassado pela Histria,

    sociedade e cultura, ou seja, um sujeito que no se encontra isolado nem dissociado

    da linguagem. Assim, se acredita que o aluno, da mesma maneira que seu

    professor, sujeito permeado pela ideologia de seu tempo, impregnada no cerne

    das famlias, no processo histrico, nas prticas religiosas, nos vnculos afetivos,

    nas instituies, produes cientficas, etc. Diante disso, o professor deve, antes de

    tudo, conhecer a realidade de seu aluno, entender de onde ele vem, em que

    contexto est inserido, para que no anule o significado presente na posio de seu

    aluno enquanto sujeito representante/produtor de significados/sentidos.

    Concomitante a isso, deve proporcionar aos alunos outros caminhos que

    atinjam a aprendizagem significativa e possibilitar condies, recursos diferenciados

    com base na permisso e incentivo das interpretaes plurais, alcanando prticas

    que envolvam os discursos polmico e ldico (ORLANDI, 1987), cujos lugares

    permitem brotar a polissemia, a criatividade e a produo de conhecimentos.

  • 14

    2. METODOLOGIA

    2.1Consideraes sobre o corpus

    ... h quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais alm da leitura, ficam pegados pgina, no percebem que as palavras so apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se esto ali para que possamos chegar outra margem, a outra margem que importa.

    Jos Saramago

    Uma discusso relevante ao adentrar nos aspectos metodolgicos desses

    escritos refere-se ao modo como o/a analista reflete sobre o corpus selecionado

    para sua pesquisa. Para tanto, indispensvel considerar a filiao

    terico/metodolgica do/da analista.

    Concorda-se com a maneira como a Anlise do Discurso pcheutiana

    trabalha e permite as possibilidades interpretativas a partir do corpus selecionado,

    sem, contudo, abandonar as marcas discursivas da ideologia, do contexto scio-

    histrico e da posio do sujeito. Alis, atravs desses mecanismos que a AD

    constri a compreenso ao longo anlise. A constituio do corpus, na AD, no tem

    por objetivo a seleo dos discursos que sero interessantes a serem analisados por

    si mesmos, mas os tomam como representativos.

    Pcheux (apud SARGENTINI, 2005), atravs do conceito de formao

    discursiva associado ao materialismo histrico, prope uma mudana substancial

    em relao concepo de discurso e de corpus. Ambos, para Pcheux, no podem

    ser vistos desconectados das condies histricas de produo, que so

    constitutivas das significaes. Os corpora inscrevem-se no interior de determinadas

    condies de produo, definidas em relao histria das formaes sociais.

    Assim, pensar em corpus adentrar no terreno da heterogeneidade. No h

    como cogitar um padro, modelo, forma pr-determinada quando contatamos com o

    corpus selecionado. Esse, dependendo do vis encontrado pelo analista ao longo de

    seu trabalho de anlise, pode possibilitar a produo de diferentes efeitos de

    sentido. O que nos faz pensar que, se outro analista, ao deparar-se com o mesmo

    corpus do primeiro, pode mediante seus fundamentos tericos, interpret-lo de

    maneira completamente distinta da do primeiro. Por isso se acredita que o corpus

    no esgotvel, pois no diz por si s, ele est em constante afeco com o

  • 15

    analista que o escolheu, partindo de uma tica pessoal e subjetiva do mesmo. Se

    um analista estiver diante dos mesmos corpora selecionados para esses escritos,

    poder construir um trabalho singular, distinto, pois a interpretao, para alm de

    depender unicamente dos fundamentos tericos, est intrinsecamente vinculada ao

    modo como o/a analista afetado pelo corpus. Portanto, concordamos que o sentido

    no est como essncia na palavra, um elemento simblico, no fechado nem

    exato, em vista disso sempre incompleto. Por esse motivo o sentido pode escapar,

    pode ser outro. O enunciado no diz tudo, devendo o analista buscar os efeitos dos

    sentidos e, para isso, precisa sair do enunciado e chegar ao enuncivel atravs da

    interpretao.

    A anlise discursiva permite interrogar sobre os sentidos estabelecidos em

    distintas formas de produo, provenientes das mais variadas naturezas (verbais,

    no verbais, textos escritos ou orais, frases, palavras, imagens, fotografia, imagem

    corporal, entre outros), bastando que sua materialidade produza sentidos para

    serem interpretados. Contudo importante ressaltar que a interpretao sempre

    passvel de equvoco, pois embora parea ser clara, na realidade existem muitas e

    diferentes definies, sendo que os sentidos no so to evidentes como parecem

    ser. Portanto, estar na posio de analista uma escolha no apenas

    epistemolgica, mas tambm estratgica e poltica, na medida em que implica

    posicionamentos variados e a considerao cuidadosa dos seus efeitos.

    Agra do (2004) discorre acerca dos pensamentos de De Certeau sobre a

    produo historiogrfica, que pertinente quando transportada posio do analista

    do discurso:

    De Certeau indica algumas caractersticas que no podem ser negligenciadas: em primeiro lugar, se a pretenso do texto for a de dizer algo novo, ele deve conter no apenas uma nova interpretao, ou experimentar mtodos novos, mas, principalmente, deve dar margem elaborao de outras pertinncias, a um deslocamento da definio e do uso do documento, alm de organiz-los de forma singular. Afinal, insiste Certeau, a construo da narrativa historiogrfica no outra coisa a no ser uma operao, ou seja, algo que se d em meio a um conjunto de prticas, e essencial numa pesquisa histrica que se queria sria e respeitada um dilogo com o j posto que dilate as margens do saber. Cada enunciao deve se dar em relao a outras, mas deve buscar intervalos, lugares de sombra ou de silncio, e preench-los de sentido. Uma obra de valor em histria, afinal, aquela que reconhecida como tal pela comunidade de historiadores, e que amplia as fronteiras da disciplina histrica, ensejando por sua vez novas experimentaes. Afinal, o resultado

  • 16

    final do trabalho do historiador , sempre, o produto de um lugar, e a isso paga um tributo (p. 51).

    A Histria Cultural, aos moldes de Roger Chartier (1990), vai ao encontro

    desta mesma posio de sujeito/analista apresentada acima, pois trabalha um

    conceito de viso de mundo de um determinado sujeito scio cultural. Concorda-se

    com o conceito de viso do mundo de Chartier (op. cit. 1990), ao relacion-lo

    posio do analista quando se depara com seu corpus:

    Com efeito, a noo de viso do mundo permite articular, sem reduzir um ao outro, o significado de um sistema ideolgico descrito por si prprio, por um lado e, por outro lado as condies scio polticas que fazem com que um grupo ou uma classe determinados num dado momento histrico, partilhem, mais ou menos, conscientemente ou no, esse sistema ideolgico [...] Perante as idias dessa poca, a tarefa do historiador das idias [ou do analista do discurso] , portanto, a de substituir a busca de uma determinada funo, funo esta que s pode ser apreendida se for considerado globalmente o sistema ideolgico da poca considerada (p. 50).

    Percebe-se, a todo instante, um imbricamento entre os corpora ao longo da

    tessitura desses escritos. Este conflito de extrema importncia, pois possibilita ao

    analista a percepo e investigao dos lugares discursivos e suas categorias, bem

    como a maneira pela qual ele ir dar sentido e se apropriar daqueles. No entanto,

    vlido ressaltar que as perguntas do analista, ao debruar-se sobre os corpora,

    partem o presente. Desta maneira, importante estar atento para no se cometer

    analogias anacrnicas ao se lidar com conceitos ao longo da histria, sobretudo

    devido dependncia entre histria dos conceitos e histria das prticas. Ao se

    questionar uma fonte partindo do presente, no se pode deixar de lado o contexto na

    qual ela foi produzida, quem a produziu, para que, qual o gnero da mesma, etc. Se

    essas consideraes no forem feitas, o trabalho do analista no poder ter validade

    tampouco credibilidade. Como afirma Massimi (1999):

    [...] a leitura das fontes requer que busquemos compreender seu contedo como expresso de um determinado universo scio cultural [...] oportuno abordar a documentao buscando limitar a influncia dos nossos pressupostos [...] [procurar] conhecer a realidade histrica e geogrfica na qual os documentos foram produzidos, atravs de leituras que nos

  • 17

    proporcionem uma viso mais prxima possvel da que era a viso da poca [...] preciso tambm que busquemos ter acesso s informaes que no esto escritas nos documentos, rastreando as influncias externas, atravs do estudo de fontes secundrias, ou seja, de textos documentando estudos realizados a respeito do universo scio cultural objeto de nosso interesse [...] Devemos evitar projetar no passado nosso conhecimento atual [...] necessrio evitar projetar no passado as expectativas derivadas da nossa hiptese de pesquisa [...] (p.23).

    Desse modo tem-se um princpio bsico em AD: o que importa para a anlise

    na AD no o contedo do texto, mas com os sentidos produzidos por ele. Portanto,

    nas palavras de Mutti e Caregnato (2006, p. 02): [...] pode-se afirmar que o corpus

    da AD constitudo pela seguinte formulao: ideologia +histria + linguagem.

    2.2 Aspectos metodolgicos a constituio do corpus

    importante salientar que, distante do paradigma positivista e determinista, a

    AD considera os dados enquanto elementos indicirios, como funcionamento

    discursivo. Desta maneira, as evidncias so trabalhadas como indcios, marcas

    que se apresentam para a interpretao, no sentido de entender o funcionamento

    discursivo. Ao se deparar com o processo discursivo, o analista tem a possibilidade

    de compreender a produo de sentidos e os lugares dos sujeitos, enfim, a

    historicidade de tal amostra discursiva. Portanto, concorda-se com Tfouni (1992, p.

    206) ao afirmar que [...] [os dados so entendidos] como elementos indicirios de

    um modo de funcionamento discursivo.

    O analista deve valer-se dos dispositivos da chamada anlise indiciria

    (GINSBURG, 1980), em que se faz a partir de gestos de interpretao. Isso significa

    que para o analista no existe um sentido j l que deve ser desvelado ou

    descoberto. Os sentidos em AD so opacos e preciso aplicar a eles um

    mecanismo de interpretao para compreend-los.

    O paradigma indicirio, quando empregado para analisar dados lingusticos,

    destaca que o dado no neutro, no est dotado de uma essncia imparcial,

    portanto no pode ser enquadrado empiricamente, j que no diretamente

    observvel.

  • 18

    A AD e a Psicanlise lacaniana falam do mesmo sujeito do discurso,

    considerado no como indivduo, mas como uma posio passvel tanto de produzir

    sentidos, como de interdit-los; o que determinado, segundo a AD, pela ideologia e

    segundo a Psicanlise pelo desejo inconsciente. Afirma Laureano (2005):

    Uma das grandes vantagens de se analisar dados luz da AD e da psicanlise a possibilidade que ambas oferecem de se verificar a teoria em movimento nos dados que analisamos. Isso d a ambas um carter dinmico e nos mostra que mesmo tendo sido construdas h muitos anos seus pressupostos so vlidos, pois esto sempre sendo postos prova. Cremos que essa uma das grandes qualidades dessas cincias indicirias, pois se constituem continuamente a cada dado que analisado (p.92).

    Ao se dialogar com os profissionais da Educao, em especial com o

    professor de Histria, importante perceber que a anlise indiciria pode ser

    praticada em sala de aula, no desenvolver de suas propostas de ensino e

    aprendizagem. preciso que o professor de Histria crie o hbito, com suas turmas,

    de compreender que toda interpretao no se coloca como mecnica, automtica e

    neutra. Os dispositivos de anlise fornecidos pela AD abrangem elementos

    indicirios produtores de sentido, ou seja, a interpretao no se faz por ela mesma,

    no pura, mas fruto tambm da historicidade, de um funcionamento discursivo

    marcado. Nas palavras de Tfouni e Assolini:

    [...] um objeto simblico produz sentidos, no a partir de mero gesto de decodificao, mas como um procedimento que desvenda a historicidade contida na linguagem, em seus mecanismos imaginrios. Ou seja: os dados so entendidos [...] como elementos indicirios de um modo de funcionamento discursivo [...] [...] todo discurso se estabelece sobre um discurso anterior, apontando para outro [...] O que existe no um discurso fechado em si, mas um processo discursivo, do qual se podem recortar e analisar estados diferentes (p. s/ n, acesso em 17 de agosto de 2009).

    Orlandi (2008) e Pacfico (2002) colaboram no entendimento do lugar da

    interpretao (a discusso acerca de inteligibilidade, interpretao e compreenso

    aparecer no decorrer desse captulo) na Anlise do Discurso ao pens-la como

    conjunto de indcios que podem produzir inmeros sentidos. Nos distintos gestos

    interpretativos que se tecem as polissemias, nunca entendidas isoladamente, mas

  • 19

    sempre em relao a. Por isso a AD est diretamente imbricada ao ensino de

    Histria, pois questiona as interpretaes. Afirma Orlandi (2008):

    Partirei de trs pressupostos: a. no h sentido sem interpretao; b. a interpretao est presente em dois nveis: o de quem fala e o de quem analisa, e c. a finalidade do analista de discurso no interpretar, mas compreender como um texto funciona, ou seja, como um texto produz sentidos. preciso lembrar que nessa filiao terica no h sentido em si, o sentido sendo definido como relao a. Como a interpretao tem uma relao fundamental com a materialidade da linguagem, as diferentes linguagens significam diferentemente: so assim distintos gestos de interpretao que constituem a relao com o sentido nas diferentes linguagens [...] (p. 19).

    necessrio ressaltar que, os livros didticos (que sero tambm objetos de

    anlise desses escritos) devem ser trabalhados como materialidades discursivas,

    tm estruturas lingustico-discursivas, e enquanto tal so estruturas e ao mesmo

    tempo, acontecimento, deixam surgir indcios sobre a ideologia do autor, do

    momento scio-histrico em que foram produzidos, produzem sentidos. Pelas

    palavras de Orlandi (1990):

    A anlise de discurso [...] visa construir um mtodo de compreenso dos objetos de linguagem. Para isso, no trabalha com a linguagem enquanto dado, mas como fato [...] a AD procura compreender as formas textuais de representao do poltico [...] ela acaba por inaugurar uma nova percepo do poltico, pela sobrevivncia com a materialidade da linguagem, materialidade essa ao mesmo tempo lingstica e histrica [...] Essa concepo da AD encontra eco no fato que o discurso materializa o contato entre o ideolgico e o lingustico [...] (p.25).

    Assim, os livros didticos so discursos marcados pela Histria, da maneira

    como os entende Pcheux; Histria aqui entendida no como cronologia dos fatos,

    mas como Histria das condies de produo que estabelecem os sentidos, ideia

    adotada pela AD.

    de fundamental importncia perceber que os sentidos no esto somente

    nas palavras, mas em suas relaes com a exterioridade, nas condies em que so

    produzidas, que no dependem exclusivamente somente das intenes dos sujeitos.

    As condies de produo abrangem os sujeitos, a situao e a memria. Segundo

    Orlandi (1999, p. 30): Tambm a memria faz parte da produo do discurso. A

  • 20

    maneira como a memria aciona, faz valer, as condies de produo

    fundamental [...]. A temtica sobre Memria e Histria ser tratada posteriormente

    no captulo Memria, Histria e os Esquecimentos.

    Para tanto, necessrio que o analista considere as condies de produo

    do discurso no sentido estrito, como o contexto imediato, mas tambm em sentido

    mais amplo, como o contexto social, histrico, cultural e ideolgico. Orlandi (1987),

    acerca dos contextos, que so constitutivos das condies de produo, estabelece

    uma distino entre contexto imediato e amplo. Para a autora, o contexto imediato

    est ligado ao momento da interlocuo, enquanto o mais amplo ideologia. Dessa

    maneira, se o contexto constitutivo, qualquer variao no mesmo relevante para

    a significao.

    Os contextos encontram-se em tenso, em conflito e em interao. Expe

    Orlandi (op. cit. 1987):

    Se se considera que a variao inerente ao sentido, uma vez que o contexto constitutivo dele, abandona-se a posio que privilegia a hiptese de um sentido nuclear, mais importante hierarquicamente (sentido literal) em relao a outros (efeitos de sentido). No , pois, preciso se manter a ideia de um centro de sentido e suas margens (contextuais). Dessa forma, todos os sentidos so de direito sentidos possveis (p. 162, grifo da autora).

    Outro fator que o/a analista deve atentar-se com relao ao mecanismo de

    antecipao, que regula a argumentao. Esse mecanismo regula o modo de o

    sujeito dizer de uma maneira e no de outra, segundo o efeito que pensa produzir

    em eu ouvinte, leitor, etc. Da mesma forma que o lugar de onde o sujeito fala

    tambm produz sentidos e quer (re)produzir tantos mais. Isso faz com que os

    sujeitos tenham a possibilidade de ajustar seus dizeres a seus objetos polticos.

    Portanto pode-se afirmar que, as condies de produo abrangem o material (a

    lngua), o institucional (formao social) e o mecanismo imaginrio (todas as

    relaes de fora sustentadas pelos diferentes lugares/posies, que se fazem valer

    na comunicao). assim que as condies de produo fazem-se presentes nos

    processos de identificao dos sujeitos trabalhados nos discursos.

    Afirma Orlandi (1999) sobre as condies de produo e seus elementos

    constitutivos:

  • 21

    Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura scio-histrica. Temos assim a imagem da posio sujeito locutor [...] mas tambm da posio sujeito interlocutor [...] e tambm a do objeto do discurso [...] pois todo um jogo imaginrio que preside a troca de palavras. E se fazemos intervir a antecipao, este jogo fica ainda mais complexo pois incluir: a imagem que o locutor faz da imagem que seu interlocutor faz dele, a imagem que o interlocutor faz da imagem que ele faz do objeto do discurso e assim por diante (p. 40).

    por isso que a anlise importante. Pois nela, indica Orlandi (op. cit. 1999),

    pode-se decorrer atravs do imaginrio que condiciona os sujeitos em suas

    discursividades e compreender melhor o que dito, percebendo como os sentidos

    se produzem (ou so produzidos, determinados ideologicamente).

    Dessa condio que resulta uma distino entre a relao do sujeito com a

    significao. Orlandi (apud PACFICO, 2002) apresenta uma separao entre o

    inteligvel, o interpretvel e o compreensvel. Essa separao deve-se s questes

    do assujeitamento, da individuao e individualidade, enunciao e enunciado,

    pontos de entrada e de fuga. Em sua definio, a autora estabelece uma

    hierarquizao entre a possibilidade de um texto ser inteligvel, interpretado e

    compreendido, sendo a compreenso o topo dessa ordem e o inteligvel o bsico, a

    superfcie deste processo de significao. Assim, para ela, todo texto pode ser

    inteligvel, desde que apresente coeso (no necessariamente precisa ter

    coerncia). Para acontecer a interpretao, o sujeito deve levar em considerao o

    contexto lingustico do texto, ou seja, saber da relao entre coeso e coerncia

    (ainda no nvel do texto), como se houvesse relao direta entre texto e seu

    significado, como se o sujeito, atravs da conscincia relacional entre coeso e

    coerncia pudesse chegar ao que o texto quis dizer, ao seu significado. Na etapa da

    compreenso, o sujeito consegue sensibilizar-se perante exterioridade do texto, ou

    seja, aos seus sentidos para alm da simples decodificao. Deve perceber o

    funcionamento do j dito ao longo do texto, da memria, do interdiscurso, do seu(s)

    sentido(s) scio-histrico(s). Portanto, para que o sujeito esteja na posio de

    compreenso de um texto, deve ter passado pelas etapas anteriores: inteligibilidade

    e interpretao.

  • 22

    Com relao ao termo assujeitamento, vlida a reflexo evidenciada por

    Ferreira (2001):

    Movimento de interpretao dos indivduos por uma ideologia, condio necessria para que o indivduo torne-se sujeito do seu discurso ao, livremente, submeter-se s condies de produo impostas pela ordem superior estabelecida, embora tenha a iluso de autonomia (p. 12).

    A questo que Pacfico (2002) apresenta perante as definies de Orlandi

    (apud PACFICO, 2002) que a ideia de que interpretar vai alm da decodificao,

    perpassa tambm pelo contexto scio-histrico, ou seja, no permanece somente na

    memria, no interdiscurso, mas leva em conta a historicidade dos sentidos, atingindo

    o nvel da compreenso. O que se percebe que a interpretao de Pacfico est

    relacionada compreenso de Orlandi. Segundo Pacfico (op. cit. 2002):

    Assim, a interpretao pode ser entendida como a possibilidade de o sujeito compreender que o sentido pode ser outro, mas no qualquer um, pois existe uma superfcie lingustica que tenta controlar os pontos de fuga, os sentidos que no devem aparecer, mas que aparecem como indcios para aqueles que compreendem o funcionamento discursivo, que compreendem que interpretar no repetir o que est dito, mas, sim estabelecer uma relao entre o dito e a memria do dizer (interdiscurso), enfim, interpretar compreender que a ideologia faz parecer natural determinados sentidos e no outros e estranhar, investigar, refletir sobre tudo isso (p. 25).

    Considerando como principais objetos de estudo desse trabalho a

    investigao acerca do ensino de Histria no Brasil e a anlise de amostras de

    materiais didticos, fornecidos pelo Estado de So Paulo, referentes ao Ensino

    Mdio para a disciplina de Histria, realizaram-se alguns recortes, a partir desses

    amplos espaos discursivos: escolheu-se analisar alguns cadernos do aluno e do

    professor, que o Estado de So Paulo disponibilizou rede no ano de 2009,

    referentes ao Ensino Mdio na disciplina de Histria (SO PAULO, 2009). vlido

    salientar que esta materialidade discursiva ser, por vezes, cotejada com outras

    produzidas em pocas e contextos totalmente distintos, na inteno de entender os

    funcionamentos discursivos, as marcas ideolgicas e a existncia ou no de

    transformaes acerca dos discursos oficiais e das prticas sociais, s quais eles se

    dirigem.

  • 23

    Analisar-se-o as propostas contidas nesses cadernos (como: contedos

    priorizados, competncias e habilidades, metodologia e estratgias e linhas de

    avaliao), comparando-as s situaes de ensino e aprendizagem apresentadas

    nos mesmos. Os discursos de apresentao e intencionalidade por parte da equipe

    produtora deste material tambm constituem elementos de anlise.

    Em um segundo momento, pretende-se, atravs de entrevistas

    semiestruturadas, compreender de que maneira esses cadernos so recebidos e

    desenvolvidos pelos professores da rede. Nesta etapa, sero entrevistadas duas

    professoras de Histria que lecionam na Escola Estadual Edith Dalmaso, no

    municpio de Sertozinho, So Paulo. H a inteno de perceber, a partir do contato

    com as professoras, qual a abordagem utilizada por elas em sala de aula mediante

    as orientaes contidas nos cadernos, bem como colher suas opinies acerca do

    funcionamento dos mesmos no processo de ensino e aprendizagem das turmas de

    Ensino Mdio.

    O/A analista do discurso, no tecer de seu trabalho interpretativo, como lembra

    Assolini (2008), no separa temporalmente a reflexo terica da anlise de dados.

    Assim, compreende e interpreta os processos discursivos enquanto determinados

    pela histria, em sua relao com a memria de um dizer (interdiscurso), e para isso,

    une anlise e teoria, de tal modo que, ao mesmo tempo em que interpreta as marcas

    formais dentro de seu contexto scio-histrico, realiza movimentos de checagem da

    teoria, ajustando a interpretao desses fatos.

    Por fim, e no menos importante, esses escritos inacabados tambm se

    encontram enquanto discursos, esto permeados pelas condies de produo, so

    uma leitura constituda em determinadas condies. Diante do corpus analisado (e

    daquele que ainda ser) sero feitos recortes, que so seletivos, salientam esse ou

    aquele dado, esse ou aquele trao. Portanto, a escolha das materialidades

    discursivas no neutra. Compreende a concepo de discurso do/a analista, sua

    posio acerca da ideologia, do modelo de anlise que se utiliza.

  • 24

    3. MEMRIA, HISTRIA E OS ESQUECIMENTOS

    ... tudo que dito, tudo que expresso por um falante, por um anunciador, no pertence s a ele. Em todo o discurso so percebidas vozes, s vezes infinitamente distantes, annimas, quase impessoais, quase imperceptveis, assim como as vozes prximas que ecoam simultaneamente no momento da fala. Bakhtin

    Para discorrermos sobre a funo e importncia da memria em relao aos

    discursos, fundamental que a percebamos enquanto interdiscurso. Esse o j-

    dito, aquilo que fala antes, a memria discursiva. O interdiscurso afeta o sujeito na

    forma com a qual esse interpreta e significa uma situao. So sentidos j ditos por

    algum, em algum lugar, sobre determinado tema, em outros momentos, mesmo

    que distantes, mas que tm efeitos sobre o que se significa, so sentidos

    convocados no presente da interpretao. Entende-se como memria do dizer o

    interdiscurso, ou seja, a memria coletiva constituda socialmente. O sujeito tem a

    iluso de ser dono do seu discurso e de ter controle sobre ele, porm no percebe

    estar dentro de um contnuo, porque todo o discurso j foi dito antes.

    A funo da memria discursiva est diretamente vinculada ao esquecimento

    nmero um de Pcheux (apud ORLANDI, 1999), em que o sujeito

    inconscientemente afetado pela ideologia e tem a iluso de ser a origem do que diz,

    quando na realidade retoma sentidos preexistentes. A observao do interdiscurso

    permite remeter o discurso ou fragmento discursivo memria, historicidade,

    ideologia, aos lugares de poder, entre outros. Nas palavras da Orlandi (1999):

    [...] alguma coisa mais forte que vem pela histria, que no pede licena, que vem pela memria, pelas filiaes de sentidos constitudos em outros dizeres, em muitas outras vozes, no jogo da lngua que vai-se [sic] historicizando aqui e ali, indiferentemente, mas marcada pela ideologia e pelas posies relativas ao poder traz em sua materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades. O dizer no propriedade particular. As palavras no so s nossas. Elas significam pela histria e pela lngua (p. 32).

  • 25

    O intradiscurso, segundo Courtine (apud ORLANDI, 1999), diferentemente e

    dependente do interdiscurso, seria um eixo de formulao do que est se dizendo

    num dado momento, em condies especficas, preestabelecidas. Obviamente o

    intradiscurso est perpassado pelo interdiscurso a todo o momento. O saber

    discursivo que se foi constituindo ao longo da Histria e produzindo dizeres,

    juntamente memria que tornou esse dizer possvel para determinados sujeitos

    num momento marcado representa, assim, o interdiscurso, que por sua vez, deixa-

    se perceber atravs dos gestos1 de interpretao sob o intradiscurso. Ainda segundo

    Orlandi (op. cit. 1999):

    A constituio determina a formulao, pois s podemos dizer (formular) se nos colocarmos na perspectiva do dizvel (interdiscurso, memria). Todo dizer, na realidade, se encontra na confluncia de dois eixos: o da memria (constituio) e o da atualidade (formulao). E desse jogo que tiram seus sentidos (p. 33).

    no espao do interdiscurso que a parfrase acontece, ou melhor, se

    reproduz, repete, permanece, diz o mesmo que sempre foi dito no campo da

    memria do j-dito. Portanto, a parfrase representa o retorno aos mesmos espaos

    do dizer. Produzem-se diferentes intradiscursos do mesmo saber sedimentado. Ao

    passo que a polissemia produzida nos espaos em que h a possibilidade de

    ruptura, de deslocamento, de deriva para outros stios de significao, como entende

    Orlandi (1992). Assim, parfrase e polissemia so duas foras que trabalham o

    dizer. nesta tenso que se faz o discurso. nesse jogo que os sentidos e os

    sujeitos se movimentam e (re)significam, como tambm o espao do confronto

    entre o poltico (parfrase) e o simblico (polissemia).

    A polissemia o lugar onde o equvoco se instala, onde os sujeitos e os

    sentidos sempre podem ser outros, onde aparece o diferente. Diferente esse que

    perpassa pelo que De Certeau (apud SOUZA FILHO, 2002) denomina de estranho

    ou tticas sutis que jogam com o sistema dominante, quando o autor faz referncia

    s invenes cotidianas que marcam o jogo das relaes com a ordem e dos

    1 Fundamentado no paradigma indicirio e na Anlise do Discurso pcheutiana, entendemos os gestos de interpretao enquanto atos no nvel simblico praticado pelo analista mediante suas anlises discursivas, que do sentido significao.

  • 26

    indivduos entre si. Segundo Souza Filho (op. cit. 2002, p. 131): O mundo dirio

    mundo de profuso de gentes, falas, gestos, movimentos, coisas abriga tticas do

    fazer, invenes annimas, desvios da norma, do institudo, embora sem confronto,

    mas no menos instituintes.

    Assim, o analista prope-se a compreender como o poltico e o linguistico se

    relacionam na constituio dos sujeitos e na produo de sentidos marcados pela

    ideologia. Concorda-se com Orlandi (1999, p. 38) ao afirmar que o analista deve

    compreender: Como o sujeito (e os sentidos), pela repetio, esto sempre

    tangenciando o novo, o possvel, o diferente. Entre o efmero e o que se eternaliza.

    Num espao fortemente regido pela simbolizao das relaes de poder.

    Quando se prope a trabalhar com os desdobramentos da linguagem na AD,

    h a necessidade de observar e considerar o que Pcheux (apud ORLANDI, 1999)

    denomina de dois esquecimentos ou duas iluses no discurso. O esquecimento

    nmero um o ideolgico, da ordem do inconsciente, pois mostra como somos

    afetados pela ideologia. Neste esquecimento, tem-se a iluso de ser a origem do

    que se diz, o sujeito pensa ser a nascente, a gnesis do encadeamento da

    linguagem que aparece em seus discursos, como se antes do seu dizer nada havia

    sido dito sobre ele. O sujeito no se d conta de que uma srie de j ditos

    preexistentes aconteceram antes mesmo de ele ser um sujeito. O sujeito jamais est

    na inicial absoluta da linguagem. Os sentidos realizam-se nos sujeitos, mas no se

    originam dele.

    O esquecimento necessrio para que a linguagem funcione nos sujeitos e

    produza sentidos. As palavras adquirem sentidos retomando o que j foi dito, por

    isso de suma importncia compreender as marcas sociais, histricas, culturais e

    ideolgicas que elas carregam. A contextualizao essencial para se perceberem

    os sentidos instalados acerca das palavras. Elas no esto aqui ou ali por acaso. Os

    lugares que as palavras ocupam esto carregados de sentidos e, por isso, so

    passveis de interpretao. Segundo Orlandi (op. cit. 1999):

    Quando nascemos, os discursos j esto em processo e ns que entramos nesse processo. Eles no se originam em ns [...] Por isso que dizemos que o esquecimento estruturante. Ele parte da constituio dos sujeitos e dos sentidos. As iluses no so defeitos, so uma necessidade para que a linguagem funcione nos sujeitos e na produo de sentidos [...] assim que eles se significam retomando palavras j existentes como se elas se originassem neles e assim que os sentidos e os sujeitos esto sempre

  • 27

    em movimento, significando sempre de muitas e variadas maneiras. Sempre as mesmas mas, ao mesmo tempo, sempre outras (p. 36).

    Considera Orlandi (1987) acerca do discurso enquanto fenmeno social

    devido relao com os dois esquecimentos, especialmente com o primeiro:

    [...] devemos lembrar a iluso subjetiva que constitutiva do sujeito falante, isto , o fato de que ele produz linguagem e tambm est produzido nela, acreditando ser a fonte exclusiva do seu dizer quando, na verdade, seu dizer nasce em outros discursos. Do ponto de vista discursivo, as palavras, os textos, so partes de formaes discursivas que, por sua vez, so partes de formao ideolgica. Como as formaes discursivas determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posio dada em uma conjuntura dada, assim que se considera o discurso como fenmeno social (p. 158).

    O segundo esquecimento da instncia da enunciao. a impresso da

    realidade do pensamento no instante da enunciao, chamada, por (ORLANDI, op.

    cit. 1999), de iluso referencial. a iluso de haver uma relao direta entre o

    pensamento, a linguagem e o mundo, como se somente pudssemos dizer o que

    dizemos de uma maneira e no de outra, estabelecendo uma relao natural entre

    palavra e coisa. O dizer de tal maneira produz sentido distinto do que se dizer de

    outra forma.

    Orlandi (1987) retoma Pcheux ao considerar as condies de produo

    enquanto formaes imaginrias, portanto portadoras de relaes de fora, de

    sentido e de antecipao (mecanismo j apresentado no captulo Aspectos

    metodolgicos - a constituio do corpus). A autora discorre:

    Falar em discurso falar em condies de produo e, em relao a essas condies, gostaramos de destacar que, como o exposto por Pcheux (1979), so formaes imaginrias, e nessas formaes contam a relao de foras (os lugares sociais dos interlocutores e sua posio relativa no discurso), a relao de sentido (o coro de vozes, a intertextualidade, a relao que existe entre um discurso e os outros) a antecipao (a maneira como o locutor representa as representaes do seu interlocutor e vice-versa) (p. 158).

    No h como se pensar em memria, interdiscurso, parfrase e o sentido (e

    toda a gama de relaes que h entre eles) sem entend-los como formas, posies

  • 28

    que se constituem historicamente. Portanto necessrio o enfoque sobre a histria

    da determinao dos sentidos.

    essencial recorrer aos trabalhos de Orlandi (1993) sobre o discurso

    fundador, que se caracteriza como um processo de produo de sentidos. Essa

    categoria no pode, segundo a autora, ser definida a priori, mas ao longo da anlise,

    funcionando como referncia bsica para a constituio do imaginrio.

    Orlandi (op. cit. 1993) analisa a produo do discurso colonialista escrito

    sobre o Brasil, no sentido de que aquele tenta dotar o brasileiro de uma definio

    que faz parte do imaginrio da sua sociedade. Esses discursos produzem sentidos

    de identidade para os brasileiros, no entanto ele mesmo um processo de produo

    de sentidos feito pelo colonizador acerca do colonizado. Contudo, querendo o

    europeu construir o brasileiro como seu outro, acaba por apag-lo ao se colocar

    sempre ao centro e no permitir semelhanas internas.

    justamente na posio de analista que se pode perceber esse processo de

    produo de sentidos, chamado por Orlandi (1993) de transfigurao. Essa

    transfigurao a compreenso de que as ideias no tm uma origem, um lugar

    fixo. A Histria que delimita a elas essas categorias. A Histria que determina os

    lugares de significao. E os lugares das ideias so pontos fundamentais para o/a

    analista do discurso. Para a autora:

    [...] o processo de transfigurao baseia-se no posicionamento de que as ideias no tm uma origem, nem um lugar fixo, elas esto em constante jogo de deslocamento, num processo de cpia, simulao, diferena. Esse jogo determinado pela histria. na histria que se vo construindo os lugares de significao, os lugares das ideias. Esses lugares vo se configurando a partir da relao linguagem/pensamento/mundo, calcada no efeito de sentido (ideolgico) de referencialidade direta lngua/mundo o efeito da objetividade e da concretude dessa referncia. Este processo todo nada mais do que a organizao dos sentidos (p. 19).

    Dizer que um discurso fundador entender que ele no se instaura num

    espao vazio. Assim, uma de suas caractersticas principais o efeito de sempre j-

    l, como afirma Orlandi (1993), em funo de instalar-se na memria permanente.

    como se ele (discurso fundador) sempre tivesse existido, no entanto se sabe que

    marcado, delimitado por suas condies de produo scio-histricas. Ele

    fundador, pois a partir de seu sentido produzido, ao retornar a ele (ao discurso

  • 29

    fundador) retorna-se ao mesmo sentido (ou no, isso depende da posio em que o

    sujeito se encontra) e se pensa que sempre houve tal sentido, mesmo sem indagar

    como era antes daquele discurso fundador. Portanto o ser fundador categoriza o

    discurso com uma marca que o analista, ao longo de seu trabalho, deve atentar-se e

    entender o discurso como acontecimento, como o teoriza Pcheux (1990).

    Esse um ponto essencial da teoria pcheutiana: o acontecimento discursivo

    como ponto de encontro entre atualidade e a memria. no momento da

    enunciao que se percebe a memria histrica. Ao falar se traz com ela (a fala) a

    memria. Pode-se afirmar que, segundo Pcheux (op. cit. 1990), a enunciao um

    acontecimento de linguagem, perpassada pelo interdiscurso, que se d, portanto,

    como espao de memria no acontecimento.

    O autor afirma que perigoso no atentar-se s marcas na enunciao e no

    acontecimento discursivo, pois se corre o risco de apag-las, reproduzindo, ento,

    as cristalizaes, as permanncias. Para Pcheux (1990):

    A partir do que precede, diremos que o gesto que consiste em inscrever tal discurso dado em tal srie, a incorpor-lo a um corpus, corre sempre o risco de absorver o acontecimento desse discurso na estrutura da srie na medida em que esta tende a funcionar como transcendental histrico, grade de leitura ou memria antecipadora do discurso em questo [...] no limite, esta concepo estrutural da discursividade desembocaria em um apagamento do acontecimento [...] (p. 56).

    Assim, a Histria no um fio linear e homogneo por onde so passadas

    verdades adquiridas por seus precursores. Essa linearidade construda,

    marcada, produzida e produz sentidos. E os precursores so a filiao de sentidos,

    filiao discursiva, segundo Pcheux (op. cit. 1990). O autor diz que a filiao se d

    no encontro da estrutura e do acontecimento. Trata-se de sentidos que confluem em

    uma histria de embates, tenses e de encontros.

    A Histria tambm no pode ser pensada como a metfora da colcha de

    retalhos, criticada por Paul-Henry (apud GUIMARES e BRUM-DE-PAULA, 2005).

    Essa abordagem implica tomar a Histria como resultado da combinao de

    diferentes processos de ordens diversas, como se esse enredo (feito pelas diversas

    ordens, como econmica, social, etc.) fosse costurado por ela e no tivesse nas

    suas partes outras tantas construes, outros tantos sentidos. Para Guimares e

  • 30

    Brum-de-Paula (2005) esse o efeito da memria histrica, uma espcie de

    organizao da linearidade. Mariani (op. cit. 2005, p. 28) escreve a esse respeito:

    [...] memria estaria reservado o espao da organizao, da linearidade entre

    passado, presente e futuro, isto , a manuteno de uma coerncia interna da

    diacronia de uma formao social.

    A questo da memria enquanto objeto de anlise demorou a ganhar

    credibilidade entre os prprios historiadores. Segundo Hartog (2011), a histria e a

    memria tiveram relaes complexas, mutveis e conflitantes. Se ao longo do sculo

    XIX os historiadores eram favorveis a uma estrita separao entre histria e

    memria, no final do sculo XX a articulao entre ambas foi repensada. Segundo o

    autor:

    Somente h pouco tempo que ocorreu uma reviravolta: a invaso do campo da histria pela memria. Da a obrigao de repensar a articulao entre as duas [...] entre os historiadores, a memria, at ento considerada uma fonte impura, transformou-se em um objeto de histria em pleno direito, com sua histria [...] (p. 27).

  • 31

    4. O ENSINO DE HISTRIA NO BRASIL TRAJETRIA E SENTIDOS

    Ser governado ser mantido vista, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, encerrado, doutrinado, exortado, controlado, analisado, apreciado... ser, a cada operao, a cada transao, a cada movimento, anotado, registrado, recenseado, tarifado, medido, marcado, cotizado, patenteado, licenciado, autorizado, admoestado, impedido, reformado, endireitado, corrigido. E, sob pretexto de utilidade pblica, e em nome do interesse geral, ser posto sob contribuio, exercitado, espoliado, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; depois, menor resistncia, primeira palavra de lamento, reprimido, corrigido, vilipendiado, vexado, encurralado, maltratado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, trado e, para no faltar mais nada, exibido, escarnecido, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis sua justia, eis sua moral. Proudhon

    Pensar sobre o ensino de Histria , antes de qualquer coisa, refletir sobre os

    processos de construo de seus mtodos, prticas, conceitos e propostas. Dessa

    maneira, refletir sobre o ensino de Histria problematizar sua prpria historicidade.

    , na posio do analista, interpretar os indcios percebidos afim de, a partir de suas

    condies de produo, compreender o funcionamento discursivo empregado nos

    currculos do ensino de Histria no Brasil.

    No trabalho de compreenso do funcionamento discursivo depara-se,

    concordando com Orlandi (1999), com um duplo jogo da memria: o da memria

    institucional, que naturaliza e cristaliza sentidos, posies, definies, entre outros e

    o da memria constituda pelo esquecimento, que o lugar da diferena, da ruptura,

    da possibilidade de sentidos, de maneiras de significar e interpretar.

    Assim, apresenta-se, nesse incio, um exerccio reflexivo acerca do ensino de

    Histria no Brasil ao longo do tempo, suas mltiplas faces e complexidades que o

    envolvem desde a oficializao da Histria como disciplina escolar. Apresentam-se

    como parte da historicidade do ensino dessa disciplina os processos de elaborao

    de currculos, construo de procedimentos metodolgicos, definio de polticas

  • 32

    voltadas para o ensino, entre outros mecanismos que esto permeados pela

    ideologia de suas pocas e marcados pela Histria.

    Compreender o estatuto da Histria no Brasil acompanhar a constituio do

    campo e do mtodo da Histria que se deseja privilegiar e perpetuar, como tambm

    compreender as disputas ideolgicas presentes no funcionamento discursivo que se

    apresenta nas inmeras reformulaes curriculares dessa rea do saber. ,

    concordando com Pinsky (2011):

    [...] reforar e instituir uma memria na qual a Histria serve de legitimadora e justificadora do projeto poltico de dominao burguesa, no interior da qual a escola [...] foi um dos espaos iniciais de formao da elite cultural e poltica que deveria conduzir os destinos nacionais [...] (p. 31).

    A Histria do ensino da disciplina de Histria no Brasil segue o arcabouo

    terico semelhante ao da Histria do Ensino. Fundamentou-se, num primeiro

    momento na tradio positivista (dcadas de 30 at meados de 1960), na tradio

    marxista (dcadas de 60 e 80 do sculo XX). A tradio positivista no ensino de

    Histria pode ser entendida a partir da prpria produo historiogrfica, que

    valorizava os grandes acontecimentos, nomes de personagens significativos para a

    Histria mundial e nacional, sem ao menos questionar esse posicionamento, essa

    formao discursiva dominante. Esse positivismo encontrado nos livros de Histria

    priorizava os fatos, criava-os e os colocava na posio de naturais, de sempre ali,

    como se isolados de parcialidades, como dados cientficos, dos quais no se duvida,

    tem-se a certeza absoluta de que foi assim e pronto.

    importante no nos esquecermos de que os sentidos do termo positivismo

    no so unvocos, ou seja, h distintas correntes positivistas que abrangem

    significados singulares, dependendo do referencial solicitado. Segundo Lacerda

    (2009), o termo positivismo vem sendo combatido h muito tempo nas cincias

    humanas e sociais, e para o autor isso devido s diversas interpretaes dos

    textos originais de Augusto Comte (conhecido como pai do positivismo).

    Nas palavras de Lacerda (2009): [...] desde h algumas dcadas o

    Positivismo outro terico contra o qual por assim dizer todos batem-se, variados

    sentidos do Positivismo produzem variadas implicaes [...] (p. 320). Esses

    sentidos variados aos quais o autor refere-se so produzidos no confronto entre

  • 33

    Comte e os demais positivismos a partir da coincidncia de nomes e em repetir

    lugares-comuns a respeito do positivismo comtiano (p. 320). Por exemplo, para

    Giddens (apud LACERDA, 2009), o positivismo entendido como naturalista,

    cientificista, evolucionista e quantitativista, que utiliza a cincia enquanto modelo

    para o entendimento dos meios sociais. Contudo, outros autores afirmam que o

    positivismo abarca os conflitos no interior da prpria cincia e no a considera

    ordeira e evolucionista, bem como admitem que os meios sociais influenciem

    naquela.

    Na Histria, o positivismo, ou a tradio positivista, por muitas vezes remetida

    corrente alem iniciada com a obra do historiador alemo Leopold von Ranke, em

    que, segundo Lacerda (2009):

    [...] definiu que os documentos falam por si prprios, consistindo o trabalho do historiador em apresentar os fatos indicados pelos documentos. Assim, alm de carecer de interpretaes e de hipteses de fundo, essa historiografia caracterizar-se-ia por ser dedicada aos fenmenos polticos, isto , aos atos dos grandes lderes e vida (poltica) das naes, sem dvida a includas as guerras (p. 329).

    H tambm o Positivismo Lgico, chamado de Neopositivismo, Empirismo

    Lgico ou Crculo de Viena. Para Lacerda (2009), a expresso Crculo de Viena

    indica a origem dos pensadores agrupados em torno de um projeto intelectual,

    Empirismo Lgico enfatiza o contedo desse projeto e Neopositivismo seria uma

    expresso menos descritiva e que remete s ideias de Comte (referncia esta no

    apreciada pelos membros dessa corrente, demonstrando distines tericas

    relevantes). Enfim, existem outras tantas vertentes tericas do positivismo, ou seja,

    pode-se dizer que existem positivismos. Sempre que aludirmos a algum, devemos,

    pelo menos apresentar uma breve historicizao do termo, para no corrermos o

    risco de generalizaes.

    Logo aps, a chamada tradio marxista, ao questionar a anterior por no

    mostrar as disputas de classe e, em particular, no dar voz s classes pobres (que

    tambm produzem histria) tem forte influncia no Brasil. Nos livros didticos

    aparecem em textos e na periodizao da Histria atravs dos modos de produo.

    Muitos dos grandes nomes e acontecimentos saram de cena, no entanto cedem

  • 34

    espao s nomenclaturas tpicas dessa tradio, como proletrios, operariado,

    modos de produo, sistemas de produo, luta de classes, etc.

    Para Pcheux (1990), as abordagens fundamentadas no estruturalismo no

    davam conta da interpretao, privilegiavam a descrio, ou seja, as superfcies

    textuais. Para o autor:

    Colocando que todo o fato j uma interpretao (referncia antipositivista a Nietzsche), as abordagens estruturalistas tomavam o partido de descrever os arranjos textuais discursivos na sua intrincao material e, paradoxalmente, colocavam assim em suspenso a produo de interpretaes (de representaes de contedos, Vorstellungen) em proveito de uma pura descrio (Darstellungen) desses arranjos (p. 44).

    Tanto a tradio positivista quanto a marxista no esto, dentro de si,

    unificadas. Sabe-se que h dissidncias dentro delas, vises distintas. exatamente

    por isso que as condies de produo dessas tradies priorizaram o que lhes

    interessava, a fim de legitimar posies de saber e poder, como tambm silenciar2.

    Se na tradio positivista, por exemplo, as classes pobres no tiveram vez, na

    marxista aqueles que no se inseriam nos processos que eram considerados

    produtivos tambm no apareceram enquanto sujeitos produtivos e produtores de

    sentido, como as crianas e as mulheres, por exemplo. Mas exatamente dessa

    forma que a ideologia age, como naturalizadora, cristalizadora de posies,

    sentidos, padres, conceitos e silenciadora de tantos outros. O ensino de Histria

    visto sob essas ticas massifica e impossibilita o outro, a diferena, o plural.

    Essas tradies, percebidas no ensino de Histria daquela poca, no

    consideravam o universo plural e multifacetado presentes no dia a dia das escolas.

    Portanto, deixavam de lado uma gama de relaes produtoras de conhecimento e

    de sentidos que corroboram para a formao educacional. Nas palavras de Fonseca

    (2011):

    Assim entendida, a Histria [...] pouco ou nada considerava o interior da prpria escola e os seus processos educativos, ligados a todo universo de

    2 Quando trabalhamos a questo do silncio nos discursos, entendemos que ele tambm produz sentidos, fundador como entende Orlandi (1993), como tambm acontecimento, aos moldes de Pcheux (1990). Ao silenciar, sentidos so interditados e as possibilidades interpretativas minimizadas. No entanto, ao se trabalhar com Anlise do Discurso, considera-se o silncio enquanto marca, trao fundamental na constituio das formaes discursivas.

  • 35

    relaes de variada natureza estabelecidas entre os sujeitos neles envolvidos. Negligenciados, o cotidiano e a cultura escolares no puderam ser desvendados apropriadamente durante muito tempo, deixando-se, com isso, de enriquecer o conhecimento sobre a Histria, no apenas do ensino, mas da prpria instituio escolar (p. 10).

    Essa Histria, que exclui a realidade do aluno, que despreza qualquer

    experincia na Histria por ele vivida, impossibilita-o de chegar a uma interrogao

    sobre sua prpria historicidade, sobre a dimenso histrica de sua realidade

    individual, de sua famlia, de sua sala de aula, de seus pais, de seu tempo. Parece

    tornar natural o fato de o aluno no se ver como um agente histrico; torna-o

    incapaz de perceber os conhecimentos que, a partir de suas experincias

    individuais, possam ser base de discusso em sala de aula.

    Desde o incio do sculo XX, diversos autores de livros de Histria produziam

    suas obras no sentido de colaborarem para a formao de um cidado adaptado

    ordem social e poltica vigente. Rocha Pombo (apud FONSECA, 2011), um dentre

    aqueles autores, afirmava:

    [...] ir comeando por aliviar da massa dos fatos o contexto histrico, reduzindo a narrao aos sucessos mais significativos, de modo a esclarecer a conscincia, a infundir sentimento, poupando o mais que for possvel a memria. E depois, aqueles que desejarem entrar a fundo nas causas e mais amplamente nos assuntos que recorram a mais largas fontes. O primeiro trabalho, o mais interessante, esse o de mostrar como a nossa Histria bela, e como a ptria, feita, defendida e honrada pelos nossos maiores, digna do nosso culto (p. 51).

    A ideologia age de maneira que o sujeito no perceba as naturalizaes.

    Naturalizaes que servem e so produzidas (e que fazem parte da linguagem) por

    determinada(s) classe(s) detentora(s) de poder e que permitem reforar sua

    dominao atravs da perpetuao dos seus discursos. Torna a verdade bvia e

    inquestionvel, como se sempre as coisas fossem da maneira que so hoje, no

    abre espao para o estranhamento. No momento dessas chamadas tradies

    positivista e marxista, as marcas ideolgicas podem ser percebidas, por exemplo, no

    trecho citado acima. O autor afirma que preciso ressaltar os grandes feitos da

    Histria Nacional em detrimento s contextualizaes scio, histricas e culturais,

    que por sua vez, poderiam dar condies de um melhor entendimento, por parte do

  • 36

    professor e dos alunos, da situao brasileira em determinado momento. Por partir

    da descompartimentalizao, da desfragmentao, de outros olhares, a

    contextualizao ou exterioridade do texto qual se refere Orlandi, (apud

    PACFICO, 2002), naquele momento, recebia o lugar do silncio, do calar-se. Era

    importante no ter vises da Histria Nacional. A viso oficial era a que,

    aparentemente para as classes dominantes, garantiria a sua ordem social e a sua

    poltica vigente. Ou seja, educar dessa maneira significava assegurar a permanncia

    das classes dominantes no comando do Brasil. Dominar e domesticar as mentes da

    populao uma estratgia de tornar imutvel a ocupao do lugar de poder.

    Alm disso, o autor afirma ser necessrio introduzir, insuflar sentimento ao

    mesmo tempo em que se poupa a memria. Ao lidar com as massas, para que

    essas sejam mais facilmente controladas, a ttica de lhes inflar sentimentos

    patriticos e nacionais, advindos da repetio de grandes nomes e episdios da

    Histria Nacional tem a ntida e escancarada inteno de somente refletir sobre uma

    memria limitada desse povo. Memria essa que, no apenas contempla nomes,

    datas, smbolos e sentimentos patriticos, mas no acusa nem denuncia seus

    efeitos negativos, como por exemplo, o silenciamento dos milhares de brasileiros

    que no aparecem como sujeitos produtores de sentidos, nem agentes histricos.

    Essa memria o espao da reproduo dos sentidos permitidos, da ideologia, do

    interdiscurso.

    Ainda neste trecho, Rocha Pombo diz que o mais importante a ser trabalhado

    atravs de seu livro didtico de Histria, que segue os parmetros oficiais [...] o de

    mostrar como a nossa Histria bela, e como a ptria, feita, defendida e honrada

    pelos nossos maiores, digna do nosso culto. Neste fragmento discursivo

    escancara-se que o ensino de Histria deve garantir e reforar o culto ptria, que

    defendida, feita e honrada pelos maiores, ou seja, pelos grandes nomes da Histria

    Nacional, por aqueles que esto no poder. Pensar dessa maneira , logicamente,

    cultuar no somente ptria, mas a classe dominante que, segundo Rocha Pombo,

    constri a ptria. Para que se importar com o povo se quem faz, constri e honra a

    ptria a classe dominante? Assim, percebe-se a hierarquizao dos lugares

    sociais, no sentido da diferenciao da importncia entre os que fazem a ptria e

    dos que os devem cultuar.

  • 37

    Ainda nesse tempo, instituiu-se a disciplina escolar Instruo Moral e Cvica.

    Essa disciplina, articulada ao ensino de Histria, visava reforar, mais uma vez,

    sentimentos patriticos na populao. Em linhas gerais, foi o momento do estudo

    biogrfico, da nacionalizao dos estudos de Histria nas escolas brasileiras. Se

    pensarmos na palavra instruo, para alm do sentido bvio de explicao ou

    ensino, instruere, etimologicamente3 tem relao com o verbo semear. Semear a

    moral e o civismo. O que se semeia e o terreno onde se semeia tm papeis

    fundamentais nos objetivos deste ensino. A moral e o civismo esto, nesse caso,

    vinculados manuteno dos lugares de poder constitudos naquele momento da

    Histria brasileira. Parece que o Estado, ao semear a moral e o civismo atravs

    daquela disciplina, delega a si a incumbncia de estabelecer o que ou no

    considerado moral, do que pode ou no dentro das prticas do civismo, o que um

    brasileiro precisa saber/fazer para ser um cidado com moral e civismo enquadrados

    nos moldes da domesticao governamental. Mais uma vez encontra-se a prtica da

    submisso instituda nos discursos da educao vinculada ao Estado.

    Ainda com relao palavra disciplina, ao procurarmos por sua origem

    etimolgica nos deparamos com sua raiz latina discipulus, que se aproxima de

    instruo, conhecimento, matria a ser ensinada. No entanto,o que se verifica,

    perpassando pelos diferentes sentidos atribudos s palavras ao longo do tempo,

    que se agregou palavra disciplina um novo significado, o de manuteno da

    ordem. Assim, pode-se concluir que a disciplina Instruo Moral e Cvica reforava

    o enquadramento dos alunos na ordem de domesticao e sujeio almejada pelo

    estado, no somente atravs das prticas nas salas de aula, mas colocando em

    ressonncia seu sentido maior encontrado nas palavras disciplina e Instruo.

    O sentido da palavra determinado por seu contexto, assim, pode-se concluir

    que a mesma palavra pode significar muitas coisas dependendo de quando e por

    quem pronunciada. Bakhtin (apud LIMA, CASTRO e ARAJO, 2010) explicita

    claramente a relao entre a linguagem e as ideologias:

    A palavra o fenmeno ideolgico por excelncia [...] o modo mais puro e sensvel da comunicao social [...] O material privilegiado da comunicao na vida cotidiana a palavra [...] Na verdade a conscincia no poderia se

    3 Todas as referncias etimolgicas desse trabalho foram retiradas de: HOUAISS. Dicionrio eletrnico da lngua portuguesa. CD-ROM. 2001.

  • 38

    desenvolver se no dispusesse de um material flexvel veiculvel pelo corpo. E a palavra constitui exatamente este tipo de material (p. 03).

    Alm disso, preciso considerar que h momentos, ao longo da Histria, em

    que alguns processos de significao cristalizam-se. Orlandi (1987) diz que o

    sentido que domina ganha a posio de estatuto dominante e, legitimado, torna-se

    discurso oficial. A autora afirma que isso ocorre historicamente:

    A sedimentao de processos de significao, em termos de sua dominncia, se d historicamente: o sentido que se sedimenta aquele que, dadas certas condies, ganha estatuto dominante. A institucionalizao de um sentido dominante sedimentado lhe atribui o prestgio de legitimidade e este se fixa, ento, como centro: o sentido oficial (literal) (p. 162).

    Mas somente nas dcadas de 1930 e 1940 o estudo de Histria efetivou-se

    no centro das propostas de formao da unidade nacional, consolidando-a (Histria)

    como disciplina escolar definitivamente. A partir desse momento, segundo Fonseca

    (2011), o Estado privilegiou programas curriculares estruturados, com definio de

    contedos, indicao de prioridades, orientao quanto a procedimentos didticos e

    indicao de livros e manuais.

    Se o Estado tomou pra si a tarefa de construir e indicar o que seria ou no

    seria veiculado no currculo de Histria, apresenta-se claramente o que se pode ou

    no discutir nos espaos escolares. Delimita-se, pelo Estado, o que os professores

    de Histria deveriam trabalhar com seus alunos. Mais uma vez percebe-se a disputa

    ideolgica dentro dos discursos dos parmetros curriculares de Histria. H a

    sensao de que, se definidos, os contedos e procedimentos, no existe a

    possibilidade de alterao, adaptao, interpretao. Portanto, a posio ocupada

    pelo Estado e o poder por ela exercido no seriam passveis de questionamentos

    pelos vieses do currculo de Histria, pois estava de alguma maneira, sob controle.

    O Estado no indicaria manuais, livros didticos e currculos que, de alguma

    forma, contradissessem ou questionassem sua estrutura de poder e submisso.

    Portanto, a instrumentalizao (atravs dos livros didticos) intencionalmente

    utilizada pelo Estado para a perpetuao de sua ideologia. E isto ainda continua nos

    dias de hoje, como ser analisado posteriormente.

  • 39

    A Reforma Francisco Campos, em 1931 feita pelo mesmo que ocupava o

    Ministrio dos Negcios da Educao e Sade Pblica (MES rgo criado pelo

    presidente Getlio Vargas, atravs do decreto4 n 19.402), segundo Fonseca (2011),

    unificou os contedos e as metodologias, desamparando as diversidades regionais e

    no permitindo a autonomia das escolas para a elaborao de seus programas. Isso

    nos leva a pensar que, mais uma vez, os rgos legitimados pelo Estado detm a

    posio do saber, que se torna posio de poder ao disseminar suas produes

    curriculares como sendo os fios condutores das prticas dentro do universo escolar.

    Qual o receio do Estado em permitir autonomia das escolas na construo

    de seus currculos, metodologias, avaliaes, etc.? Seria o medo de dividir ou

    autorizar que o universo escolar seja tambm produtor de conhecimento, portanto

    produtor de um saber que lhe estabeleceria um lugar de poder? Poder esse que

    poderia questionar a unicidade e padronizao curricular cultivada pelo Estado? O

    que se percebe que o modelo comum de currculo de Histria serve a um discurso

    que tem efeitos de sentido, que por sua vez garantem a permanncia das posies

    de saber/poder na hierarquizao dos mesmos. E por ser a Histria um espao

    discursivo de conflito de vozes e sentidos, necessrio que seja controlado,

    categorizado, enquadrado, regulamentado pelo Estado, para que no haja grandes

    problematizaes acerca do mesmo. Nos dizeres de Fonseca (op. cit. 2011):

    A Reforma Francisco Campos, de 1931, promoveu a centralizao do recm criado Ministrio da Educao e Sade Pblica e definiu programas e instrues sobre mtodos de ensino. Isso retirava das escolas a autonomia para a elaborao dos programas, que passavam a ser competncia exclusiva do Ministrio. Essa centralizao significava, na prtica, a unificao de contedos e de metodologias, em detrimento de interesses regionais (p. 52).

    Para Moraes (1992) o significado das propostas de Francisco Campos e da

    fundamentao terica e pedaggica que formulou para elas est articulado s

    tenses e conflitos econmicos e polticos que o governo enfrentava. Com

    referncias na autora, o Estado, naquele momento, efetivava a concentrao dos

    4 Essa referncia foi retirada de: MORAES, M. C. M. Educao e poltica nos Anos 30: a presena de Francisco Campos. 1992. Disponvel em Acesso em: 19 set. 2011.

  • 40

    vrios nveis da administrao pblica nas mos do Executivo federal, assim como o

    controle sobre as polticas econmica e social. Percebe-se, ento, que as propostas

    pedaggicas, em especial referentes ao ensino de Histria, contemplavam o Estado

    enquanto nico detentor das rdeas da nao, impedindo a descentralizao dos

    currculos escolares, como se ele o Estado, na vigncia varguista fosse (e se

    fazia ser) o centro onde tudo era decidido para todos. Nas reflexes de Moraes (op.

    cit. 1992):

    Foi nesse quadro que se expressou Francisco Campos. Sua atuao no Ministrio dos Negcios da Educao e Sade Pblica (MES), as reformas que implantou, as alianas que estabeleceu, sua intensa atividade em articulaes polticas em Minas Gerais e no mbito do Executivo federal que o levaram a afastar-se de seu cargo por duas vezes, a segunda definitivamente explicitaram seu projeto poltico e ideolgico e o campo educacional foi a mediao privilegiada para o fortalecimento de suas posies (p. 292).

    Segundo Romanelli (1978) e Moraes (1992) as reformas de Francisco

    Campos foram centralizadoras e coercitivas, perfeitamente de acordo com as ideias

    de seu autor e do governo que representava. importante ressaltar que antes desse

    governo, nenhum anterior havia uma poltica nacional de educao que

    subordinasse os sistemas estaduais. A partir da reforma Francisco Campos, todos

    os estados brasileiros eram obrigados a seguir o modelo elaborado por ela,

    demonstrando ainda mais o controle governamental sobre os currculos e propostas

    pedaggicas do pas. O governo queria regular os sentidos, enquadr-los e somente

    autorizar um como dominante, nesse caso, o sentido que ratificasse as atitudes do

    prprio governo, que exercesse a posio de estatuto dominante, no sentido

    trabalhado por Orlandi (1987).

    Ainda nesse contexto, Fonseca (2011) demonstra que o Estado colocou o

    estudo da Histria como instrumento central da educao poltica, baseada no

    conhecimento das origens, caractersticas e estruturas polticas e administrativas.

    Mas qual educao poltica? Educao para a permanncia da estrutura poltica

    vigente? Ou para que o aluno fosse um intrprete historicizado acerca dessa

    estrutura e desses lugares/posies de poder/saber? Pode-se imaginar qual das

    duas hipteses era construda: a primeira. Segundo a autora (op. cit. 2011), muitos

    professores questionaram tal reforma devido s posies nacionalista em detrimento

  • 41

    das pedaggicas. Mas se as prticas pedaggicas eram legitimadas pelo discurso

    do Estado e autorizadas por ele, elas no poderiam deixar de ser nacionalistas, pois

    faziam parte do mesmo espao discursivo, produzido com os mesmos interesses

    para ter sentidos controlados. E no interior desse controle cabiam a exaltao das

    origens da nao, obviamente com instrumentos previamente selecionados,

    currculos predeterminados, estanques, para que s circulasse o permitido, a

    repetio dos manuais, a perpetuao do mesmo.

    nessa poca que a escola passa pela incorporao do controle tcnico e

    burocrtico. Segundo Fonseca (2003), h o que a autora denomina de

    proletarizao dos professores, pois segundo a mesma:

    A perda do controle do processo de ensino e subordinao dos professores aos supervisores e orientadores pedaggicos, a massificao e a imposio do material didtico (livro didtico por excelncia) so algumas das formas aperfeioadas. Acentua-se o processo de proletarizao dos professores (p. 19, grifo nosso).

    O termo proletarizao dos professores emprestado do marxismo no

    sentido de retirar deles a autonomia e liberdade ao longo do processo de ensino e

    aprendizagem. uma espcie de paralelo que a autora apresenta para que, no lugar

    do proletrio que no detentor dos meios de produo e nem do controle do

    mesmo, coloca-se o professor que se encontra alheio ao processo de ensino e

    subordinado a inmeros lugares hierarquicamente superiores, da mesma forma

    como o o proletrio dentro de uma fbrica, por exemplo.

    A Reforma Capanema, de 1942 feita pelo ministro dos Negcios Educacionais

    e da Sade Pblica Gustavo Capanema, delegou uma ilusria autonomia

    disciplina de Histria. O adjetivo ilusria utilizado, pois essa Reforma tinha a

    inteno de formar, atravs das prticas pedaggicas orientadas por seus currculos,

    o cidado para o exerccio da moral e do patriotismo. Essa educao encontrou nos

    livros didticos importantes instrumentos, juntamente s festas cvicas, constituindo

    eficaz arsenal pedaggico.

    vlido refletir que, tanto livros didticos como comemoraes cvicas atuam

    como mediadores entre prticas polticas e culturais, tornando-se parte importante

    da engrenagem de manuteno de determinadas vises de mundo, de Histria e de

  • 42

    educao, legitimando a ideologia vigente de uma poca. Mais uma vez o currculo

    de Histria usado enquanto discurso para a conservao dos lugares de poder

    daquela poca.

    O ministro criou leis na rea da Educao que chamou de leis orgnicas5,

    tendo sua nomenclatura estendida, segundo Massuia (2010), ao prximo governo.

    Etimologicamente, a palavra orgnica deriva do grego organiks, significa

    instrumento. As leis orgnicas serviam como instrumentos para o centro, para o

    governo fazer valer suas normas e regras, instituindo nelas seus braos de

    controle.

    Na vigncia do Estado Novo (1937-1945), o Brasil encontrava-se sob a Lei de

    Segurana Nacional decretada por Getlio Vargas. A lei definia crimes contra a

    ordem poltica e social, especialmente aqueles contra a segurana do Estado e

    relacionados presena do comunismo no Brasil. Alm disso, foi outorgada uma

    Constituio (a quarta na Histria brasileira) aprovada por Vargas e elaborada por

    Francisco Campos (o mesmo da Reforma Francisco Campos citada acima), em que

    o autoritarismo e centralismo aparecem, colocando-a em consonncia com modelos

    fascistas da poca. Os discursos da Constituio concentram todo o poder nas

    mos do ento presidente Vargas, lder supremo da nao brasileira. Somente as

    aspas no bastam para que as palavras no sejam lidas com um nico sentido. Mas

    so necessrias em vrios momentos, pois caso no fossem, um leitor desatento

    poderia pensar que, ao ler segurana do Estado, esse se encontraria em perigo.

    Mas perigo de qu? O que o Estado considera como perigo? Um outro maldoso que

    quer arruin-lo e portanto ele estaria na posio de fragilidade? Ou outros que

    questionam sua posio e prticas autoritrias? As aspas esto para se questionar o

    5 As referncias a essas leis podem ser encontradas em: ROMANELLI, O. Histria da educao no Brasil 1930-73. Petrpolis, Vozes, 1978. Tambm podem ser consultadas em: Acesso em: 02 out. 2011. As chamadas de Leis Orgnicas do Ensino abrangeram os ramos do primrio e do mdio, foram complementadas por outras, decretadas entre os anos de 1942 e 1946. a) Decreto-lei n. 4.073, de 30 de janeiro de 1942: Lei Orgnica do Ensino Industrial; b) Decreto-lei n.4.048, de 22 de janeiro de 1942, que criou o SENAI (Servio nacional de aprendizagem industrial); c) Decreto-lei n. 4.244, de 9 de abril de 1942: Lei Orgnica do Ensino Secundrio; d) Decreto-lei n. 6.141, de 28 de dezembro de 1943: Lei Orgnica do Ensino Comercial; Aps a queda de Vargas e durante o governo provisrio, respondendo pela presidncia da repblica, Jos Linhares e pelo ministrio da educao, Raul Leito da Cunha, foram baixados os seguintes decretos-leis: a) Decreto-lei n. 8.529, de 2 de janeiro de 1946: Lei Orgnica do Ensino Primrio; b) Decreto-lei n.8.530, de 2 de janeiro de 1946: Lei Orgnica do Ensino Normal; c) Decreto-lei n. 8.621, de 10 de janeiro de 1946, que criou o SENAC (Servio nacional de aprendizagem comercial); d) Decreto-lei n.9.613, de 20 de agosto de 1946: Lei Orgnica do Ensino Agrcola.

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    sentido imediato da palavra/expresso (se bem que o sentido imediato tambm

    imediato porque faz parte de uma formao discursiva, que o coloca naquele lugar

    de obviedade). o mesmo que acontece com lder supremo da nao brasileira.

    Lder atravs do qu? Porque a questo da posio de liderana naquele momento?

    Lder da nao brasileira? Que unicidade de brasileiros essa para poder ser

    categorizada enquanto nao?

    Assim, a educao, especificamente na disciplina de Histria, tinha o dever de

    impedir quaisquer pensamentos subversivos ordem da nao una e coesa. Era um

    Estado que dizia pregar o bem comum. Um Estado que prega o bem? E esse bem

    para todos? Ser que no desconfiaram de nada? Porque essas mxi