Dissertação Beatriz Versão final

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    ANNA BEATRIZ ZANINE KOSLINSKI

    A minha nao nag, a vocs eu vou apresentar

    Mito, Simbolismo e Identidade na Nao do Maracatu Porto Rico

    ORIENTADORA: Profa. Dra. Maria Aparecida Lopes Nogueira

    RECIFE

    2011

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    ANNA BEATRIZ ZANINE KOSLINSKI

    A minha nao nag, a vocs eu vou apresentar

    Mito, Simbolismo e Identidade na Nao do Maracatu Porto Rico

    RECIFE

    2011

    Dissertao orientada pelaProfa. Dra. Maria Aparecida

    Lopes Nogueira, apresentadaao Programa de Ps-Graduao em Antropologia daUniversidade Federal dePernambuco, como requisito

    parcial para a obteno de graude mestre.

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    Agradecimentos

    Agradeo primeiramente minha orientadora Maria Aparecida Lopes Nogueira, por

    todo o aprendizado, pela pacincia, por ter me orientado de modo a permitir que eu obtivesse

    minha autonomia, por todo o carinho e afetividade e, principalmente, por me apresentar a uma

    racionalidade aberta e, acima de tudo, encantada. Ao meu co-orientador, Roberto Motta pela

    gentileza, pacincia e aprendizado. professora Lady Selma Albernaz, pelas conversas

    enriquecedoras, pelo carinho e pelo amparo. Aos membros da banca examinadora Jos Jorge

    de Carvalho, Isabel Guillen, Roberto Motta e Carlos Sandroni por terem aceitado o convite. A

    Regina, funcionria da secretaria do PPGA, por todo o carinho, pacincia e ajuda.

    Aos professores do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paran,

    Luis Cludio Symanski, Marcos Silva da Silveira e Ricardo Cid Fernandes por todo apoio,

    estmulo e aprendizagem ao longo do curso de Cincias Sociais da UFPR. meu orientador

    no estgio que fiz na Fundao Cultural de Curitiba, Ozanam Aparecido de Souza, pela

    formao e convivncia enriquecedora.

    Aos meus pais Dionsio e Rita, aos meus irmos Victor e Paula pelo apoio e respeito sminhas escolhas. A Gabi e Dothy pelo carinho e companheirismo. minha madrinha,

    D.Maria, por tudo.

    Aos meus inesquecveis colegas de batucada em Curitiba, Fefi, Renata Sousa, Ana

    Ahoy, Bruna, Gusto, Carco, Genevive, Anne, Janis, Cau, Carlito, Hel, Lucas, Cludia,

    Rudy, Murilo, Nadine, Michele, Nelson, Dilma, Brenda, Pri Dias e Julia. famlia Fagundes,

    especialmente a Mariana, pela infinita pacincia e generosidade, para mim voc foi uma

    mestra, em todos os sentidos, a Fernando e Andr, pelas piadas, risadas, bobeiras, afeto,

    leveza e alegria. Ao quarteto simptico, Pati, Re e Dani pelo companheirismo, confiana,

    palhaadas e afeto.

    Especialmente a Mema, minha companheira de aventuras terrestres e antropolgicas,

    pela amizade, afeto, apoio e risadas.

    A Thaci, pelo carinho e apoio incondicional nos momentos difceis no meu primeiro

    ano em Recife.

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    minha famlia em Recife, Me Andra, Pop, Marlia e Guilherme, pelo carinho, colo

    e acolhida. Aos amigos Antonio Lagartixa, Carol Gonalves.

    A Jamesson pela amizade, apoio, parceria, conversas, bobeiras e construo. Obrigadapor ter sido um interlocutor ao longo de minha pesquisa e por me fazer crescer.

    A Isabel Guillen, pelas oportunidades de pesquisa, conversas e pacincia. A Ivaldo,

    pelas tensas discusses; devo a voc grande parte do que aprendi sobre os maracatus.

    Aos colegas da equipe de pesquisa do Inventrio Sonoro dos Maracatus-Nao de

    Pernambuco, Dani, Roberta, Jamila (negras gatas), Walter, Rasta, Alis, Adriano e Alfredo

    Bello pela amizade, convvio e aprendizado.

    Aos colegas de turma do PPGA, especialmente a Martn, Jailma, Tati, Nbia, Edi,

    Izidro e Orlando. Aos colegas dos Seminrios de Orientao, pela contribuio intelectual e

    reflexes.

    A Chacon e Elda Viana e demais maracatuzeiros da Nao Porto Rico, especialmente

    Cau, Rico, Wendson, Ivan e Ruminig, pela pacincia, boa vontade e colaborao. Aos demais

    maracatuzeiros das outras naes de maracatu, com quem tive oportunidade de conversar e

    aprender ao longo desses dois anos em Recife.

    Ao CnpqConselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgicoque financiou

    essa pesquisa.

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    ...El camino se hace al andar...

    Antonio Machado, poeta sevilhano

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    RESUMO

    Nas ultimas dcadas e, principalmente, nesse incio de sculo, observamos uma conquista de

    espaos e visibilidade dos maracatus-nao pernambucanos no s em Pernambuco como em

    diversos estados brasileiros. Nesse contexto, onde a manifestao se tornou, dentre outras

    coisas, atrao turstica percebemos que, categorias como religiosidade, tradio e mesmo

    africanidade se tornaram valores presentes nos grupos, valores que, de certa forma lhes

    conferem autenticidade. Apesar da recorrncia desses valores, o modo como cada grupo

    articula com eles muito diverso, criando uma srie de particularidades e contribuindo para a

    construo de suas identidades. A presente pesquisa tem como objetivo compreender oprocesso de construo de identidade dos maracatuzeiros da Nao do Maracatu Porto Rico,

    uma das naes com maior visibilidade na cidade do Recife e arredores. Deste modo,

    buscaremos tal compreenso atravs do estudo dos rituais e simbolismo articulados dentro do

    grupo, que tem como caracterstica marcante a forte vivncia religiosa, que muitas vezes d

    sustentao as suas escolhas e atitudes, como tambm do estudo da narrativa de origem do

    grupo, que pode ser compreendida como sendo um mito, sendo concretizado por meio de

    celebraes, loas e discursos proferidos pelas lideranas e pelos demais maracatuzeiros danao.

    Palavras Chaves: maracatu-nao Porto Rico; religiosidade afro-indo-brasileira; simbolismo,

    mito; tradio; mercado cultural; Recife.

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    ABSTRACT

    My nation is nag andI wil l introduce it to you:

    Myth, Symboli sm and I denti ty atNao do Maracatu Porto Rico

    In the last decade, especially in the beginning of the 21st century, it has been observed a raiseof spaces and visibility of the maracatus-nao from Pernambuco, not only in such state,but also in other parts of Brazil. In this context, where the manifestation has become, among

    several things, a tourist attraction, we have noticed that, categories such as religion, traditionand even africanity have become recurrent values in the groups, values that, in a way, givesthem authenticity. Despite the recurrence of such values, the way each group operates withthem is diverse, creating a series of particular aspects, and contributing to the construction oftheir identities. The present research has as an objective, the comprehension of the identityconstruction process of the members from Nao do Maracatu Porto Rico, one of the most

    famous maracatus-nao in Recife. In order to reach this objective, we intend to analyze therituals and their symbolism operated by the group, which has the religiosity as a strong

    feature that most times holds its choices and attitudes. The research will also analyze thegroups origin narrative, which can also be understood as a myth, been reaffirmed on

    celebrations, songs and discourses made by the liderances and other members of the Naodo Maracatu Porto Rico.

    Keywords: maracatu-nao Porto Rico; Afro-Indian-Brazilian religion, symbolism, myth,tradition, cultural market, Recife.

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    SUMRIO

    Introduo 10

    1. Insero no campo: trajetria de uma batuqueira paranaense de classe mdia. 112. A dupla insero como pesquisadora

    e batuqueira: riscos e facilidades. 16

    3. Identidade, religiosidade, mito e tradio. 19Captulo 1

    Contextualizando o objeto de pesquisa

    1. Os maracatus-nao pernambucanos: do quase desaparecimento ascenso. 22

    2. A Nao do Maracatu Porto Rico. 33

    2.1. Rainha Elda e Mestre Jaime: dinamicidade e vitrias. 33

    2.2. A Era Chacon. 38

    2.3. O Porto Rico de hoje. 43

    Captulo 2

    Religiosidade e articulao simblica na Nao Porto Rico 48

    1. Religio com enfoque nas categorias de sagrado e profano: o modelodurkheiminiano. 48

    2. Uma classificao para as religies afro-indo-brasileiras. 513. Maracatus-nao e religio: uma relao construda e ressignificada ao longo dos

    anos. 53

    4. A religiosidade na Nao Porto Rico. 605. O carnaval como ritual: da obrigao contagem de pontos. 66

    5.1. O dia da obrigao 675.2. A semana pr-carnaval. 735.3. Descrio do desfile. 745.4. Anlise do ritual obrigao-desfile. 79

    Captulo 3

    A Nao Porto Rico entre mito, tradio e mercado cultural 85

    1. Nao Porto Rico: uma origem, diversas verses. 87

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    2. Narrativa de origem da Nao Porto Rico: nas fronteiras entre mito e histria. 1013. Tradio: o alicerce que sustenta a Nao Porto Rico. 1084. A Nao Porto Rico e o Mercado Cultural. 116

    Consideraes Finais 130

    Referncias 140

    Anexos 145

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    INTRODUO

    Maracatu-Nao ou maracatu de baque virado uma manifestao popular afro-

    brasileira com forte presena no estado de Pernambuco. Encontrar uma descrio exata do

    que o maracatu-nao se torna tarefa difcil, tamanha a complexidade do termo, mas em

    linhas bem gerais pode-se descrever o maracatu-nao como sendo uma manifestao que,

    denomina um ritmo que produzido por uma bateria ou batuque, composto apenas de

    instrumentos de percusso, e tambm a dana executada ao som desse batuque. A descrio

    um tanto reducionista, no entanto, ao longo da dissertao outras dimenses dos maracatus-

    nao sero abordadas com mais profundidade. Geralmente as naes de maracatu formamblocos de apresentao compostos pelos batuqueiros (percussionistas) e pelos danarinos

    que encenam uma corte com rei, rainha, princesas, duques, vassalos, representando tambm

    personagens da cultura popular e religiosidade afro-indo-brasileira1 como caboclos arream,

    baianas e divindades do xang e jurema.

    Nos dias de hoje, a manifestao tem ganhado cada vez mais visibilidade na cidade de

    Recife e arredores, graas ao investimento dos rgos pblicos e privados, que vem nas

    manifestaes da cultura popular um chamariz para o turismo e mais um produto a ser

    consumido. De fato, observa-se uma valorizao da cultura popular no s a nvel nacional,

    como tambm mundial (Carvalho,2004; Eriksen, 2005). Junto dessa visibilidade, surge

    tambm a emergncia de algumas categorias que passam a ser extremamente valorizadas e

    reafirmadas dentro dos maracatus nao, como a religiosidade e tradio. No entanto, o modo

    como cada grupo articula com tais categorias diverso, sendo que cada nao possui suas

    particularidades. As particularidades de cada grupo auxiliam na construo de sua imagem e

    identidade, pois a identidade se constri dentro de um jogo de espelhos (Barth, 1969;

    Oliveira, 1978), ou seja, no confronto das diferenas que um grupo se reconhece como o que

    (Bauman, 2005; Hall, 2006; Eriksen, 2005).

    A presente pesquisa pretende compreender o processo de construo de identidade dos

    maracatuzeiros de uma das naes com maior visibilidade na cidade do Recife e arredores: a

    1Ao longo dessa dissertao utilizo o termo religies-afro-indo-brasileiras adotado pelo antroplogo Roberto

    Motta, para me referir as religies de culto aos orixs e s entidades da jurema, por considerar ser o termo menosexcludente, pois aborda as contribuies de origem africana, amerndia e brasileira presentes nessas religies.

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    Nao do Maracatu Porto Rico, que tem como caracterstica marcante a forte vivncia

    religiosa dos participantes e uma histria permeada por polmicas.

    1. Insero no campo: trajetria de uma batuqueira paranaense de classe mdiaA insero em campo se deu de forma relativamente tranqila devido vivncia prvia

    que tive com os maracatus-nao. O relato do modo como descobri a existncia dos

    maracatus-nao, permeado de idealizaes e romantismo, como deve ser o caso do relato

    da maioria dos jovens de classe mdia como eu. Atravs do sucesso alcanado por Chico

    Science, eu j havia ouvido falar desse tal maracatu e na minha cabea, ele era associado a

    tambores e a um personagem que usava um traje com longas e extravagantes franjas

    coloridas2.

    No entanto, meu primeiro contato com aquilo que eu acreditava ser um maracatu

    autntico foi em Antonina no ano de 2003, num arrasto de um grupo percussivo curitibano

    chamado Boizinho Faceiro que ocorreu durante o 13 Festival de Inverno da Universidade

    Federal do Paran. Quando ouvi aquela batucada de longe, eu logo fui atrs para ver o que

    era e, ao encontrar aquele aglomerado de pessoas tocando tambores, fiquei hipnotizada,emocionada e dancei muito junto dos outros jovens que participavam do evento. Quando o

    batuque se encerrou, fui procurar um dos percussionistas e imediatamente perguntei o que era

    aquela batucada; disseram-me simplesmente que era maracatu e que era afro-brasileiro. Na

    poca acreditei que aquilo, que aquela simples batucada era o maracatu, sem saber da

    complexidade da manifestao e do termo que a designava.

    Trs anos se passaram at que eu voltasse a ter contato com algum grupo percussivo

    (que na minha concepo era maracatu). No incio de 2006, fiquei sabendo da existncia de

    uma oficina de maracatu, da qual muitos jovens interessados em cultura popular participavam.

    A oficina era ministrada por Mariana Fagundes, sobrinha do musicista Antnio Nbrega e

    percussionista do Boizinho Faceiro. Para a minha decepo, quando cheguei oficina havia

    apenas cerca de seis pessoas, que me contaram que o restante dos alunos haviam se juntado

    com outro percussionista Leandro Teixeira para formar o grupo percussivo chamado

    2

    Na poca eu no sabia da existncia de mais de um tipo de maracatu, portanto acreditava que alfaias e caboclosde lana faziam parte da mesma manifestao.

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    Maracaet. Este grupo ganhou grande visibilidade no cenrio cultural da cidade,

    principalmente no meio universitrio, conseguindo obter mais fama que o prprio Boizinho

    Faceiro que j estava consolidado.

    Foi assim, em 2006, que se iniciou uma febre de maracatu em Curitiba. Nesse

    contexto, os alunos da oficina de maracatu que, apesar de ser apenas uma oficina, possua um

    nome, Estrela do Sul, decidiram transformar a oficina em grupo de maracatu, que hoje,

    2010, um dos grupos percussivos de maior visibilidade no Paran. Nesse mesmo ano, outros

    jovens que participaram de uma oficina de maracatu, no 16 Festival de Inverno da UFPR,

    ministrada tambm por um percussionista do grupo Boizinho Faceiro, Pedro Solak, decidiram

    fundar seu prprio grupo, o Voa Voa; ou seja, se no incio de 2006 existia apenas um grupo

    que tocava a parte percussiva do maracatu, no fim j existiam quatro grupos que disputavam

    espaos e visibilidade na cidade.

    O interesse pela manifestao se tornava cada vez maior entre os jovens batuqueiros,

    que passaram a buscar mais informaes sobre a manifestao, sobre como ela era realizada

    em Pernambuco, passando a organizar e financiar oficinas de maracatu (concentradas na parte

    percussiva e s vezes tambm na dana), que eram realizadas pelos prprios mestres dos

    maracatus-nao pernambucanos. Atravs dessas oficinas, tive a oportunidade de conhecer econversar com mestres como Afonso Aguiar (Leo Coroado), Walter Frana (Estrela

    Brilhante do Recife), Gilmar Santana (Estrela Brilhante de Igarassu), Chacon Viana (Porto

    Rico), bailarinos como Maurcio (Estrela Brilhante do Recife), Beto D Oxum (Porto Rico),

    alm de batuqueiros como Pitoco e Cuca (Estrela Brilhante do Recife) e Rogrio Santana

    (Estrela Brilhante de Igarassu).

    O contato com esses mestres, danarinos e batuqueiros, me fez compreender que os

    maracatus-nao provinham de comunidades afro-descendentes de baixa renda, que tinham

    forte presena na cidade do Recife e arredores e que tambm possuam uma dimenso

    religiosa, deste modo, aquilo que eu praticava com o Estrela do Sul no era exatamente

    maracatu-nao.

    A percepo que tive foi compartilhada por outros colegas, o que gerou uma verdadeira

    crise diante da apropriao que fazamos de uma cultura popular que, na nossa viso, no nos

    pertencia. A crise, no entanto, surgiu muito mais por uma questo religiosa do que por

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    qualquer outra coisa. Isso ocorreu porque aps o breve convvio com os maracatuzeiros

    autnticos, os jovens de Curitiba criaram em seu imaginrio a idia de que o verdadeiro

    maracatu era algo sagrado, permeado por interdies comportamentais e que deveria ser

    respeitado.

    A partir dessa concepo, tocar embriagado ou sob efeito de qualquer entorpecente,

    fazer piadas com alguma nao, mestre ou loa, sentar, pisar ou mesmo elevar as alfaias acima

    da cabea, se tornou algo mal visto por todos. Utilizar o tambor de apoio para alguma coisa

    como, copos de cerveja, por exemplo, prtica que at ento no era aconselhada por umedecer

    e danificar a pele do tambor, posteriormente foi considerada um desrespeito s religies afro.

    Ainda assim a crise no estava, e nem chegou a ser ,resolvida, os jovens no entraram num

    acordo majoritrio do que poderia ou no ser feito com o maracatu.

    Na poca eu acreditava que no deveria haver crise nenhuma em relao dimenso

    sagrada dos maracatus-nao, pois, como no ramos maracatus autnticos, mas sim um

    grupo de jovens brancos de classe mdia do sul do Brasil, em sua maioria catlicos,

    protestantes ou ateus e que, faziam uma releitura de alguns aspectos da manifestao, no

    deveramos nos preocupar com interdies de carter religioso. Toda essa preocupao que se

    instaurou surgiu a partir do discurso de dois mestres que particularmente atribuam muitovalor a religiosidade nos maracatus-nao: Afonso Aguiar e Chacon Viana.

    Mestre Afonso, foi muito reservado nas oficinas que ministrou, mas quando discursava

    acerca de sua nao, lembrava sempre do fundamento religioso que havia sido passado, de

    acordo com ele, pelo falecido Mestre Lus de Frana, ou seja, seu discurso possua mais um

    carter de compartilhamento de uma experincia e ponto de vista acerca da manifestao, sem

    que houvesse uma preocupao por parte dele para que estivssemos de acordo com suas

    opinies.

    J Chacon discursava de modo diferente; ele se mostrou uma pessoa muito

    extrovertida, inteligente, estudiosa, conservadora e tambm prxima de todos ns. Ele sabia

    falar a nossa lngua, e, apesar de vir de uma classe mais humilde, conseguia dialogar muito

    bem com a classe mdia. Sendo assim, nos sentamos muito a vontade de conversar com ele,

    sem aquele distanciamento e sentimento de medo do desconhecido que sentamos por parte

    dos outros mestres. Do mesmo modo que nos sentamos a vontade para perguntar o que

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    quisssemos para Chacon, ele tambm se sentia a vontade para responder as nossas questes

    com muita riqueza de detalhes, e com sua opinio, j formada sobre os diferentes assuntos

    relacionados aos maracatus-nao. No entanto, sua opinio j estava to bem fundamentada

    em sua mente que ele adotava um discurso que parecia ter a inteno de nos doutrinar, de nos

    instruir nos princpios de suas idias.

    Ocorreu ento que, dentre os mestres que conhecemos, Chacon foi aquele que

    conquistou um nmero significativo de batuqueiros, ele nos revelou diversas coisas acerca de

    sua viso da histria, religio, tradio, msica, enfim, aspectos do fundamento do maracatu

    no qual ansivamos para descobrir. Seu carisma foi to grande que, entre os anos de 2007 e

    2008, ele foi convidado a ministrar trs oficinas de maracatu no sul, sendo duas em Curitiba,

    todas atraindo muitos batuqueiros3. O carisma de Chacon fez tambm com que muitos de

    meus colegas tomassem seu modelo de maracatu-nao como o modelo de maracatu-nao.

    Da toda a preocupao de carter religioso que surgia acerca de nossa apropriao dos

    maracatus-nao. Aquilo que antes era enxergado como brinquedo, passa a ser visto como

    parte das religies afro-indo-brasileiras.

    No incio de 2008, cerca de 15 jovens participantes dos grupos percussivos de Curitiba,

    dentre eles eu, resolvem passar o carnaval no Recife, para conhecer os maracatus-naoautnticos de perto. Na hora de escolher onde ficaramos ou, qual nao acompanharamos

    com mais ateno, todos foram unnimes em optar pela Nao do Maracatu Porto Rico.

    Entramos em contato com Chacon e ele logo nos avisou que seria possivelmente perigoso nos

    hospedarmos fora da comunidade, tendo que realizar diversos deslocamentos ao longo da

    semana, portanto, ele conseguiu uma casa para alugarmos ao lado da sua na comunidade do

    Bode. Para que nossa vivncia fosse a mais completa possvel decidimos chegar cidade um

    ms antes do incio do carnaval, assim acompanharamos os ensaios da nao, e talvezconsegussemos desfilar como batuqueiros no desfile oficial4.

    Cheguei ao Recife pela primeira vez na vida, com idias pr-concebidas e romantizadas

    acerca do que era o maracatu-nao e como era realizada a cultura popular. Vindo de uma

    cidade segregada e elitizada como Curitiba, onde nunca tive convvio com comunidades de

    3 O Grupo Estrela Do Sul esteve presente na organizao de duas das trs oficinas.4

    O desfile oficial refere-se ao desfile que ocorre no domingo de carnaval, parte do Concurso das AgremiaesCarnavalescas promovido pela Prefeitura da Cidade do Recife.

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    baixa renda ou mesmo com pessoas afro-descendentes, razovel imaginar que eu tivesse

    essa viso um tanto idealizada da cultura popular, ou mesmo da pobreza. Por isso, minha

    estadia no Maracatu Porto Rico em 2008 me revelou uma srie de coisas.

    A primeira coisa que me chamou a ateno na cidade, foi a quantidade de maracatus-

    nao. Existiam mais de vinte enquanto que no sul aprendamos o baque de apenas cinco

    naes. Isso me fez perceber que havia algum tipo de disputa por espaos e visibilidade entre

    as naes, sendo assim, quis entender a princpio, o que fazia com que algumas naes fossem

    conhecidas em diversas partes do Brasil e outras no. Mais tarde, quis entender tambm

    porque meus colegas paranaenses, aps terem visto a diversidade de naes continuaram

    chamando as mesmas quatro naes para ministrarem oficinas no sul em 2008, 2009 e 2010.

    A segunda coisa que me chamou a ateno foi a humanidade presente nos

    maracatuzeiros da Nao Porto Rico. Quando utilizo a palavra humanidade, quero dizer que

    essas pessoas eram reais, e no esteretipos de seres humildes que vivem outra lgica, que se

    isolam da sociedade mais ampla para preservar uma cultura ancestral unicamente por amor

    causa. A Nao Porto Rico um grupo social como qualquer outro, com festas, amizades,

    solidariedade e tambm brigas, discusses, disputas internas e externas e articulao constante

    com as demandas e valores da sociedade mais ampla. Ainda assim, apesar das tensespresentes dentro do grupo, a devoo que os maracatuzeiros tinham pela Nao Porto Rico foi

    o que mais me marcou. Percebi que o maracatu tinha uma importncia central na vida

    daquelas pessoas, e que, por meio das atividades da nao, tais como festas, ensaios,

    confeco de instrumentos e adereos e eventos religiosos, as pessoas se mantinham unidas

    em torno de um mesmo ideal. Foi ento que surgiu o interesse de compreender o que era

    determinante para que aquelas pessoas se reconhecessem como parte de um mesmo grupo, o

    que gerava aquela coeso, aquela identidade comum.Minha ida e a de meus colegas para Recife foi com fins, principalmente, de

    entretenimento e aprendizagem da parte percussiva da Nao Porto Rico. Porm, eu, que j

    havia cursado um ano de Cincias Sociais na Universidade Federal do Paran, no pude

    deixar de observar outras questes que ao fim me auxiliariam a construir um projeto de

    pesquisa acadmica. Em janeiro de 2009, retornei comunidade do Bode para passar mais um

    carnaval como batuqueira da Nao Porto Rico, com a diferena que, alm de batuqueira,

    naquele momento eu j era tambm pesquisadora, mestranda em Antropologia.

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    2. A dupla insero como pesquisadora e batuqueira: riscos e facilidadesAps o perodo do carnaval, continuei residindo no Bode durante o ano de 2009, apesar

    dos riscos que tal escolha representava. A escolha foi realizada, primeiramente por um receio

    que tive de, no ser capaz de compreender, ou mesmo de ter subsdios ou argumentos o

    suficiente para abordar o problema de pesquisa que eu mesma havia proposto. Diante da

    subjetividade do tema a ser estudado, acreditei que morar dentro do campo seria uma garantia

    a mais de que nada escaparia a meus olhos. Hoje entendo que essa vivncia em campo, no

    garante necessariamente uma compreenso maior do universo a ser estudado. Como

    mencionei, estar dentro do campo, participando das atividades do grupo como se fosse uma

    nativa, apresenta tambm alguns riscos.

    O risco maior seria o de me envolver emocionalmente com o objeto de estudo e osmaracatuzeiros de tal maneira, que no conseguisse manter o distanciamento suficiente para

    levantar as questes e observar os problemas de pesquisa, com a neutralidade e objetividade

    almejadas na construo de um conhecimento cientfico (Malinowski, 1978). De fato, alguns

    antroplogos clssicos, acreditavam que o antroplogo deveria apresentar-se como um

    autntico observador cientfico que cruzava barreiras culturais ao mesmo tempo em que

    conservava um afastamento herico, e que reportava os fatos numa linguagem objetiva

    (Kuper, 2002, p. 266). Na contramo desse movimento de uma incessante busca pelaobjetividade na construo do conhecimento cientfico, observa-se uma srie de intelectuais

    que encaram a objetividade total como uma utopia.

    Em seus estudos, o antroplogo Bruno Latour (1994; 1997) defende a idia de que a

    ruptura entre categorias como natureza e cultura, que teriam marcado o incio da

    modernidade, nunca existiu. Desde modo, ele afirma que jamais fomos modernos, porque

    jamais fomos capazes de operar a ruptura dessas categorias, assim como no existe ruptura

    total entre sujeito e objeto, passado e presente, observador e observado, cincia e mito, dentreoutras possibilidades5. Deste modo, os objetos de estudo das diversas cincias so hbridos de

    diferentes categorias, e no puros. Sendo assim, ele argumenta que a cincia que se entende

    como objetiva e neutra, purifica seus objetos, escondendo todas as controvrsias que podem

    surgir ao longo da pesquisa, no intuito de obter legitimidade para as descobertas e resultados

    5

    Agradeo a minha orientadora, Maria Aparecida Lopes Nogueira que, durante suas aulas no PPGA/UFPE ,apresentou um leque das diversas possibilidades de interpretao da obra de Bruno Latour.

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    obtidos. Portanto compreende-se que, a objetividade e neutralidade cientfica so meras

    iluses.

    O real no puro ou mesmo esttico, ele contaminado por uma srie de elementos que

    se relacionam e se modificam ininterruptamente, deste modo, sempre haver algo que no

    conseguiremos apreender, por isso a cincia um conhecimento aproximado e no uma

    apreenso total do real; o conhecimento ser sempre parcial e inacabado, nunca completo

    (Bachelard, 2004). Por esta razo, o conhecimento est sujeito, e se compe, de um processo

    sucessivo de refinamentos e retificaes. Isso explica a limitao com que os trabalhos

    cientficos, inclusive no campo da Antropologia precisam lidar. A presente pesquisa no foi

    capaz de lidar com todas as possibilidades de questes a serem abordadas, sendo um trabalho

    aberto, logo sujeito a questionamentos e retificaes.Dentro de sua teoria, Gaston Bachelard defende a objetividade e racionalidade, mas

    no nega a existncia da subjetividade; a objetividade aquela que incorpora a subjetividade.

    Assim como Latour, Bachelard tambm no nega a presena das incertezas, do acaso e das

    controvrsias nos dados empricos; eles fazem parte do real e tem muito a revelar sobre o

    problema pesquisado. Latour se debrua sobre as controvrsias por acreditar que elas

    envolvem a busca de uma simetria no campo de pesquisa, no caso deste estudo, uma simetria

    entre pesquisador e pesquisado. O antroplogo reconhece que a concretizao dessa simetria,assim como a concretizao de uma objetividade, uma utopia, que, no entanto, jamais deve

    ser desconsiderada ao longo do processo de pesquisa. Latour critica as relaes, geralmente

    desiguais, existentes em campo quando o outro geralmente visto como inferior. A

    problemtica da postura do cientista social, mais especificamente do etngrafo, j foi

    abordada por outros tericos como, por exemplo, James Clifford.

    Em sua obra A Experincia Etnogrfica: Antropologia e Literatura no sculo XX

    (1998), Clifford traa a formao e desintegrao da autoridade etnogrfica na AntropologiaSocial do sculo XX, historicizando a legitimao da etnografia como cincia. Aps

    estabelecer algumas crticas a modelos defendidos por Bronislaw Malinowski, Evans

    Pritchard, Clifford Geertz dentre outros, que considera como modelos que utilizam diferentes

    estratgias para compor uma autoridade etnogrfica e legitimar o conhecimento produzido,

    Clifford sugere que, a etnografia, deveria representar uma variedade de vozes discordantes,

    sem jamais essencializar um povo ou modo de vida. Deste modo, ele zela por uma etnografia

    que de conta de incluir no s a voz do etngrafo, como tambm a voz das pessoas do grupo

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    estudado em sua variedade de pontos de vista. Por trs desse pensamento est enraizada

    tambm, a idia de que a realidade no esttica e de que existem controvrsias dentro do

    campo de estudo. Portanto, mais uma vez a objetividade absoluta posta em cheque.

    Por esta razo, entrei em campo sabendo que minha pesquisa estava irremediavelmente

    intermediada pela minha subjetividade, o que no significaria que eu deveria deixar a

    objetividade de lado; a estratgia seria a de pesquisar buscando o equilbrio entre essas duas

    dimenses. Ao longo do processo de pesquisa, aprendi tambm que, por mais que eu estivesse

    infiltrada na Nao Porto Rico, eu jamais me tornaria uma nativa, algum de dentro. Nada

    jamais poderia operar uma ruptura entre minha condio de mulher branca6 da classe mdia,

    nascida e criada no sul do Brasil, num contexto individualista, da condio, um tanto

    provisria de batuqueira da Nao Porto Rico. Por mais que eu tomasse parte no batuque eresidisse na comunidade, eu sempre seria de fora; as diferenas culturais existentes entre

    mim e os maracatuzeiros da nao so em sua maioria irreparveis.

    Essas questes, de fato impediram que eu me tornasse de dentro, mas no impediam

    que meu grau de envolvimento com o grupo pudesse trazer problemas de ordem emocional e

    tica no meu trajeto de pesquisadora, o que realmente, por vezes ocorreu. Ainda assim, minha

    dupla insero de batuqueira e pesquisadora em campo, trouxe uma srie de facilidades para o

    andamento da pesquisa.A vivncia que obtive junto da nao no carnaval de 2008, fez com que eu tivesse

    familiaridade com o objeto da pesquisa e que conquistasse a simpatia e confiana de alguns

    maracatuzeiros. Em 2008, eu participei das atividades do maracatu, tirei fotos, conversei com

    diversas pessoas do grupo e me diverti como pude. Entre os carnavais de 2009 e 2010, adotei

    a mesma postura. Continuei participando das atividades do maracatu, como apresentaes,

    ensaios, oficinas e cerimnias religiosas, ajudei na confeco de fantasias e adereos para o

    carnaval de 2010 e continuei conversando bastante com todos. No entanto, j no estava lapenas como batuqueira, eu era tambm pesquisadora, portanto, meu olhar j estava mais

    atento e apurado, direcionado as questes de interesse da pesquisa.

    Deixei claro para os maracatuzeiros da nao que, ao mesmo tempo em que participava

    das atividades do grupo, eu realizava uma pesquisa de carter acadmico, mas a maioria deles,

    6Utilizo constantemente o adjetivo branco para definir as pessoas de classe mdia ao longo dessa dissertaopor acreditar que a questo da cor da pele, por ser carregada de carga simblica, no deve ser ignorada para

    contrapor os batuqueiros da classe mdia com aqueles em sua imensa maioria afro-descendentes pertencentes scomunidades onde se localizam as naes.

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    inclusive Chacon por um bom tempo, simplesmente ignoraram minha condio de

    pesquisadora e continuaram me tratando e agindo, com a mesma espontaneidade do ano

    anterior. Isso para mim foi um ganho, pois eu poderia realizar meu estudo a vontade,

    observando o comportamento dos maracatuzeiros sem ter a preocupao de que ele estaria

    sendo influenciado pela minha presena de pesquisadora. Eu era vista como apenas mais uma

    batuqueira da classe mdia.

    Essa longa vivncia que tive em campo, foi crucial tambm para que eu pudesse

    perceber atitudes e sentidos que nem sempre so expressos pela comunicao oral. O silncio

    ou mesmo o no dito tem muito a revelar sobre os valores de um grupo social. Acredito que,

    se tivesse optado por realizar visitas a campo ao invs dessa vivncia mais intensa, eu no

    conseguiria visualizar e possuir, o grau de compreenso que tive de uma srie de questes; aomesmo tempo teria enfrentado mais resistncia ao realizar as entrevistas semi-estruturadas

    com os maracatuzeiros.

    No terceiro semestre de minha pesquisa (primeiro semestre de 2010), comecei a realizar

    as entrevistas semi estruturadas com as pessoas do grupo. At ento, eu havia apenas

    participado das atividades, realizando registros em vdeo e foto, alm de estabelecer uma srie

    de conversas informais e escrever minhas impresses no dirio de campo. Foi somente aps

    um ano de estudo e de convvio com a nao, que tive mais clareza a respeito do que deveriaser perguntado. Foi neste momento, que alguns maracatuzeiros perceberam a concretude de

    minha pesquisa. Mesmo assim fui recebida em suas casas com boa vontade, muitos

    demonstraram confiana em mim a ponto de, revelarem suas mgoas e discordncias em

    relao a alguns aspectos da Nao Porto Rico. Sou eternamente grata pela gentileza e

    confiana que recebi desses maracatuzeiros. Nos seis meses que reservei s entrevistas semi-

    estruturadas, gravei depoimento de cinqenta maracatuzeiros sendo 75% pertencentes ao

    batuque e 25% a corte e apoio. Por estas razes, acredito que minha dupla insero em campotrouxe mais aspectos positivos que negativos para o andamento da pesquisa.

    3. Identidade, religiosidade, mito e tradio.Como j esclareci, o objetivo principal de minha pesquisa era o de compreender o que

    era determinante para que os maracatuzeiros da Nao Porto Rico se sentissem parte de um

    mesmo grupo. Para compreender de que modo se construa a identidade do grupo, procurei

    observar, como o grupo se organizava, os valores que mais eram afirmados, e, por fim, as

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    particularidades que a Nao Porto Rico possua se comparada as outras naes. Optei por

    aprofundar na questo da religiosidade, dos mitos e da tradio dentro do grupo. Como ser

    observado ao longo da dissertao, a tradio na referida nao de extrema importncia,

    articulando com a religiosidade e os mitos para se afirmar e sustentar os valores do grupo.

    Deste modo a dissertao est dividida da seguinte maneira:

    No primeiro captulo procuro contextualizar o objeto de pesquisa. Para isso, fao um

    pequeno esboo de como os maracatus-nao eram realizados no passado, sob a tica de

    alguns intelectuais do incio do sculo XX como Csar Guerra-Peixe e Katarina Real. Dentro

    disso, discorro sobre como os maracatus estiveram sob uma suposta ameaa de

    desaparecimento em meados do sculo XX, at sua ascenso e visibilidade conquistada no

    fim dos anos 1990. Procuro compreender as causas dessa possvel ameaa de extino at oque favoreceu o seu ressurgimento e fortalecimento, apresentado alguns indcios que possam

    ter contribudo para a atual visibilidade dos maracatus-nao.

    Aps a breve explanao da atual situao dos maracatus-nao em Pernambuco,

    adentro no contexto da Nao Porto Rico. Sendo assim, apresento como se deu a formao da

    nao desde a poca em que se concentra nas mos de D. Elda, ou seja, desde 1980. Procurei

    descrever sua organizao e principais caractersticas na dcada de 1980 e 1990, quando o

    batuque tinha como responsvel o Mestre Jaime, at o momento em que passou para as mosdo Mestre Chacon, at os dias de hoje. Deste modo, com um panorama geral de como se

    organiza a Nao Porto Rico atualmente, fica mais fcil adentrar nas suas particularidades

    como, por exemplo, a religiosidade.

    O segundo captulo, foi reservado a essa questo e tambm, a anlise dos smbolos

    articulados dentro da nao. Primeiramente, realizo um resumo de algumas teorias defendidas

    por mile Durkheim em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1996), e destaco entre

    elas o conceito de sagrado definido pelo autor, por acreditar que ele adequado para secompreender a dimenso religiosa nos maracatus-nao, e, mais especificamente, na Nao

    Porto Rico. Em seguida, descrevo de que modo, ou seja, em quais comportamentos e

    celebraes, a dimenso sagrada expressa na nao estudada. Dentro disso, observo como

    alguns eventos como a obrigao religiosa, realizada antes do carnaval, e o desfile oficial,

    organizado pela Prefeitura da Cidade do Recife, so situaes onde o sagrado se revela e onde

    uma srie de smbolos, que colaboram para a construo e afirmao dessa dimenso sagrada,

    so articulados. Por esta razo, analiso esses eventos sob a tica das teorias de rituais e

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    simbolismos apresentadas por Victor Turner em O Processo Ritual (1974) e Florestas de

    Smbolos (2005).

    No terceiro captulo, me concentro nas questes de mito e tradio na Nao Porto

    Rico. Primeiramente, exploro a histria da nao desde sua suposta fundao em 1916, at os

    dias de hoje. Apresento a histria relatada por pessoas diferentes, e as controvrsias que ela

    apresenta. Problematizo a questo da continuidade dentro dessa narrativa, sendo que, a

    referida nao, com o nome de Porto Rico j existiu em diferentes bairros e pertenceu a

    diferentes grupos sociais, j tendo possudo inclusive uma srie de grupos homnimos. Deste

    modo, questiono at que ponto a atual Nao Porto Rico, consegue reinvidicar uma

    continuidade com as naes homnimas anteriores a ela.

    A partir disso, analiso como a verso da narrativa de origem da nao, contribui para aconstruo da identidade do grupo, situando seus indivduos no mundo e contribuindo para

    sua organizao. Sendo assim, acredito que a narrativa do grupo, pode ser compreendida

    como sendo um mito de origem para os maracatuzeiros da nao. Em seguida, explico a

    maneira como esse mito pode ser inserido numa tradio e quais as conseqncias disso. Ao

    fim do captulo, concluo que tanto a religiosidade quanto a histria, ou mitos fundadores da

    nao, contribuem para sustentar a questo da tradio no grupo e a justificar e amparar certas

    escolhas; escolhas que se refletem na organizao social do grupo, como hierarquia e papisatribudos aos indivduos.

    Por fim, analiso como a tradio, expressa pela religiosidade e mitos, articula com as

    demandas da sociedade mais ampla, que passou a enxergar, as culturas populares como um

    chamariz para o turismo e como mais um produto a ser consumido por outras classes sociais.

    Concluo o captulo, tentado compreender, como a articulao com a sociedade mais ampla

    interfere na organizao social do grupo e que tipo de tenses e controvrsias surgem a partir

    disso.Mais do que respostas, essa dissertao levanta questes, deixando o caminho aberto

    para refinamentos, interpretaes e retificaes.

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    Captulo 1CONTEXTUALIZANDO O OBJETO DE PESQUISA

    1. Os Maracatus-Nao Pernambucanos: do quase desaparecimento ascensoO maracatu de baque virado, atualmente uma manifestao cultural com forte

    presena no estado de Pernambuco, principalmente nas cidades de Recife, Olinda e regio

    metropolitana. No entanto, houve poca em que a maioria dos estudiosos da cultura popular,

    acreditaram que a manifestao estaria fadada ao desaparecimento (Costa, 1974; Guerra-

    Peixe,1980; Real, 1990) 7. Essa afirmao se baseava no fato desses estudiosos acreditarem

    que tal prtica cultural, estivesse destituda de seu sentido original, logo se trataria de uma

    sobrevivncia cultural nos moldes elaborados pelo antroplogo evolucionista Tylor (Lima;

    Guillen, 2007). Muitos folcloristas e intelectuais interessados nesse assunto, entendiam que os

    maracatus-nao tiveram sua origem nas festas de coroao dos reis do Congo (Costa, 1974;

    Guerra-Peixe, 1980; Real, 1990; Estevez, 2008, p.25). A coroao desses reis ocorria em

    diversas partes do Brasil escravista, onde os escravos se reuniam em irmandades e coroavam

    um rei negro, que servia de liderana para os escravos, intermediando as negociaes deles

    com os senhores. Em Pernambuco, essas coroaes, seriam seguidas de um cortejo com

    msica, que se aproximava do cortejo dos maracatus que so conhecidos hoje; com a abolio

    da escravido, a coroao dos Reis do Congo teria perdido seu sentido, o que no haveria

    impedido que os negros continuassem com a parte festiva da cerimnia, que seria o maracatu

    (Costa, 1974; Guerra-Peixe, 1980; Real, 1990).

    A verso apresentada por esses renomados intelectuais foi aceita pela academia por

    muito tempo, at ser contestada por alguns estudiosos, como o historiador e maracatuzeiro

    Ivaldo Marciano de Frana Lima (2005), que em sua pesquisa, descobriu evidncias de que os

    maracatus ao longo do sculo XIX tiveram uma existncia contempornea e independente das

    coroaes8. preciso levar em considerao tambm que, a descrio encontrada sobre os

    maracatus nos jornais e documentos do sculo XIX muito precria, portanto, no se pode ter

    a certeza de que o que era descrito como maracatu na poca, a mesma coisa que se observa

    7 A referncias dessas obras contidas nessa dissertao so de edies mais recentes, as datas de publicao dasprimeiras edies so Costa, 1908; Guerra-Peixe, 1955; Real, 1966.8

    Para maiores informaes sobre as Coroaes dos Reis do Congo ver: SOUZA, Marina de Mello e. ReisNegros no Brasil Escravista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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    hoje. Em sua pesquisa, Frana Lima encontrou semelhanas do maracatu-nao de hoje com

    outras manifestaes populares, como a j extinta Aruenda e tambm com o Auto das

    Pretinhas do Congo de Carne de Vaca, de Goiana. Por se tratar de uma manifestao cultural

    em constante mutao e ressignificao, a identificao das origens dos maracatus-nao

    problemtica. Mais do que um problema de pesquisa, a discusso sobre a origem dos

    maracatus-nao tema central do discurso dos mestres e praticantes; isto ocorre, porque a

    tradio uma categoria extremamente valorizada, no s pelos maracatuzeiros, como

    tambm pelas autoridades responsveis pelas polticas culturais em Recife, Olinda e regio

    metropolitana. Quanto mais tradicional for o grupo, maior legitimidade e prestgio ele ter

    perante os outros grupos e a sociedade mais ampla.

    A precariedade das descries dos maracatus-nao no s nos jornais e documentos do

    sculo XVIII e XIX, como tambm nas obras de alguns folcloristas do sculo XX, tem muito

    a nos revelar. A princpio, a pesquisa da cultura elaborada pelas classes subalternas no

    necessitava do mesmo rigor metodolgico que as da cultura tida como erudita (Lima, 2005;

    Carvalho, 2007), as referidas culturas a princpio no tinham o mesmo valor. Nesse sentido,

    em muitas dessas obras, a descrio das manifestaes realizada sem mencionar o nome do

    grupo observado, seu local ou o nome das pessoas com quem os autores conversaram. Isso

    dava a impresso de que os grupos de maracatus eram homogneos, que no existiam

    particularidades em cada um deles e ainda revelava a crena de que, a cultura popular se

    tratava de algo espontneo, o que retirava dos praticantes toda a capacidade de elaborao

    esttica e artstica. Nesse sentido, os populares estariam repetindo uma tradio por uma

    fora de costume e hbito sem que houvesse interao da tradio com os significados de

    quem exerce tal prtica (Lima, 2005, p56). Como ser observado nos captulos adiante, a

    tradio no mera repetio de hbitos por fora de costume, mas ela permite o movimento,

    dialoga com as mudanas e constantemente ressignificada pelos atores sociais, de acordo

    com suas necessidades e interesses (Balandier, 1997).

    Se hoje a cultura popular vista como assunto relevante para a academia e caiu no

    gosto das classes mais abastadas, no s como objeto de estudo, como tambm de lazer e

    consumo, no passado ela no era to prestigiada assim. Estudiosos como Pereira da Costa

    (1974), a antroploga Katarina Real (1990) e o maestro Guerra-Peixe (1980) se

    demonstravam preocupados com a diminuio do nmero de naes de maracatu, do incio

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    at meados do sculo XX. De fato, comparado ao nmero de grupos que obtiveram licena

    para desfilar nas ruas, no perodo do carnaval no fim do sculo XIX e incio do XX, a

    quantidade de grupos, considerados autnticos maracatus-nao, existentes em meados da

    dcada de 60 era mnimo, no passando de cinco (Lima, 2005; Real, 1990). preciso

    compreender, quais fatores contriburam para a diminuio dos grupos para, posteriormente,

    compreender o que fez com que eles ressurgissem com tanta fora, a partir da dcada de 80 e

    estivessem j consolidados nesse incio de sculo XXI.

    Em suas obras, Pereira da Costa (1974) e Katarina Real (1990), demonstravam a idia

    de que existiria um modelo autntico de maracatu-nao, aquele modelo proveniente dos

    escravos africanos que participavam da manifestao desde seus primrdios. Para eles, esse

    modelo dialogava com o contexto social da poca, no caso a escravido e as coroaes dos

    reis do Congo e, portanto, num pas onde o contexto j no era mais o mesmo, onde os negros

    j estavam libertos, a prtica do maracatu perdera o seu sentido original, no havendo mais

    razo de existir da maneira como era praticada e logo seria deturpada, perdendo seus

    moldes originais e, por fim, se extinguindo. Eles acreditavam tambm que, nesse novo

    contexto social de Brasil repblica no escravocrata, os negros acabariam imitando os

    costumes dos brancos e se esqueceriam de suas manifestaes culturais.

    Nesse discurso possvel observar duas idias interessantes; a primeira delas a de um

    congelamento das prticas culturais, uma vez que esses autores definem um certo modelo de

    maracatu como sendo autntico e encaram qualquer tipo de inovao ou mudana nesse

    modelo como sendo uma descaracterizao da manifestao cultural. H muito tempo que a

    Antropologia e mesmo a Histria, entendem que a cultura algo dinmico, construda por

    homens, sendo ressignificada ao longo do tempo. Outra idia interessante a ser percebida no

    discurso desses intelectuais, a crena de que os maracatus-nao desapareceriam, porque osnegros cada vez mais, passariam a imitar os costumes dos brancos; preciso salientar que, por

    trs disso, est a ideologia da supremacia racial branca, to presente no Brasil do fim do

    sculo XIX e incio do XX (Rodrigues, 1977; Schwarcz, 1993; Skidmore, 1976; Ventura,

    1991).

    No fim do sculo XIX, com a abolio da escravido, a proclamao da repblica,

    enfim, com o corte que ligava o Brasil com sua ex-metrpole Portugal, surge a necessidade da

    construo de uma identidade nacional, identidade essa que se espelhava nos modelos de

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    civilizao europeus. Nesse contexto, surgiu uma srie de teorias que dessem conta de

    explicar o suposto atraso em que o Brasil se encontrava se comparado com as potncias

    europias, sendo que a maioria dessas teorias atribua composio racial do pas a culpa pelo

    atraso (Schwarcz, 1993). Essas teorias, tiveram influncia do pensamento positivista, que via

    o progresso como uma meta a ser alcanada, e do pensamento evolucionista, que acreditava

    na superioridade de algumas raas sobre outras e que via na civilizao europia, o pice da

    escala de evoluo humana.

    Dentro dessas teorias, existia a concepo de que a raa branca, logo seus costumes e

    prticas culturais, eram superiores e que deveria haver um esforo para que os costumes

    brbaros e selvagens dos negros e ndios, fossem abolidos. Alguns estudiosos que

    debateram o tema, acreditavam que atravs da miscigenao a raa branca acabaria

    prevalecendo por uma questo de seleo natural, ou seja, viam a miscigenao como algo a

    ser estimulado para se alcanar o branqueamento da nao. Outros encaravam a miscigenao

    como uma degenerao que deveria ser evitada, devendo o pas, assim buscar o

    branqueamento, por outros meios. O que interessa nessa histria, perceber que nesse

    contexto, tudo o que era pertencente cultura negra e indgena era mal visto, era encarado

    como atraso e como uma ameaa ao projeto civilizatrio nacional. Os maracatus-nao com

    certeza no escaparam a essa lgica, basta ver nas notcias dos jornais pernambucanos do

    sculo XIX e incio do XX durante o perodo do carnaval, onde o enfoque eram os bailes que

    aconteciam nos clubes, voltados para as elites, enquanto que aos maracatus, restava apenas a

    divulgao da lista dos grupos que haviam obtido licena para desfilarem nas ruas naquele

    perodo (Lima, 2005).

    Deste modo, o que haveria contribudo para a diminuio do nmero das naes de

    maracatu, no seria a suposta superioridade da raa branca ou a perda de sentido da existnciada manifestao, uma vez que novos sentidos so atribudos s prticas culturais no cotidiano,

    mas sim, toda uma ideologia que buscava inferiorizar e extinguir tais prticas que no

    condiziam com a imagem de civilizao desejada na poca. Guerra-Peixe (1980) enfatiza que

    no perodo de sua pesquisa, as agremiaes passavam por srias dificuldades para a obteno

    de recursos para confeco de instrumentos, fantasias dentre outras coisas, o que tambm

    indica uma desvalorizao das culturas populares por parte da sociedade mais ampla.

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    Ainda assim, preciso alertar para outros fatores que possam ter contribudo para a

    diminuio dos grupos. No se pode esquecer, por exemplo, da perseguio que as religies

    afro-indo-brasileiras sofreram no Brasil imprio e tambm no perodo republicano, onde

    foram oficialmente criminalizadas por serem entendidas como exerccio ilegal da medicina,

    curandeirismo e prtica de magia (Lima, 2005, p. 102). possvel encontrar em jornais da

    poca, notcias sobre terreiros que foram fechados por fora policial, como o caso do

    famoso terreiro da Baiana do Pina, que teve seus artefatos confiscados em 1927 (Lima, 2005;

    Pereira, 1990). Na dcada de 30, a perseguio se intensificou com a criao do Servio de

    Higiene Mental, que perseguia os terreiros ligados ao catimb ou jurema sendo mais tolerante

    com os terreiros que s faziam culto aos orixs, que eram vistos como puros e legtimos.

    Como a maioria dos terreiros tinha algum tipo de ligao, mais ou menos estreita, com ajurema, acabou que eram poucos os terreiros que escapavam ao confisco. Era muito comum

    que pais e mes de santo convidassem as autoridades para conhecerem seus toques, no intuito

    de mostrar que se tratavam unicamente de culto aos orixs, assim como era comum a

    denncia de um terreiro sobre outro com acusaes de prtica de catimb (Lima, 2005; 2008).

    Com o incio do Estado Novo e a chegada de Agamenon Magalhes ao governo de

    Pernambuco, a perseguio se tornou mais intensa ainda proibindo qualquer tipo de

    religiosidade afro-indo-brasileira. Como estratgia para continuarem com suas prticas

    religiosas, muitos filhos de santo passaram a realizar seus cultos nas sedes das naes de

    maracatu. Deste modo, durante os ensaios eram realizadas consultas, giras e oferendas s

    entidades cultuadas. No entanto, o misto de brincadeira e religio que existia (e ainda existe)

    dentro dos maracatus, despertou desconfiana e fez com que muitas sedes fossem

    surpreendidas com visitas dos representantes dos rgos repressores, o que dificultava a

    existncia no s dos cultos como tambm pode-se imaginar, dos prprios maracatus.

    Todos esses fatos revelam que at ento na sociedade recifense havia uma viso

    negativa em relao cultura negra (Lima; Guillen, 2007). No entanto, do mesmo modo que

    houve diversos fatores que criaram um clima desfavorvel existncia dos grupos de cultura

    popular, ainda na dcada de 30, observou-se os primrdios do surgimento de um clima que

    mais alm seria favorvel a existncia desses mesmos grupos. Nessa dcada, mais

    especificamente em 1933, foi publicado o livro Casa Grande e Senzala do socilogo

    pernambucano Gilberto Freyre. Apesar das inmeras criticas direcionadas a obra do referido

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    autor, dentre elas a que diz respeito propagao da falsa idia de uma democracia racial no

    Brasil, no se pode negar que Freyre foi um dos primeiros intelectuais a ver a composio

    tnica do Brasil por uma perspectiva mais positiva, fazendo um elogio a idia de

    miscigenao e valorizando os aspectos populares da cultura nacional.

    Essa valorizao apareceu tambm no discurso dos modernistas, que passaram a

    colocar a cultura popular e a identidade nacional como assuntos relevantes para a academia

    (Lima; Guillen, 2007, p32). Mrio de Andrade, que realizou sua misso folclrica em 1938,

    havia dito que o verdadeiro Brasil s seria encontrado junto dos brasileiros. interessante

    salientar que uma das manifestaes estudadas pelo escritor foram os maracatus

    pernambucanos.

    J na dcada de 50 o maestro Guerra-Peixe publica Maracatus do Recife (1955), obra

    dedicada aos maracatus de baque solto e baque virado, descrevendo seus aspectos culturais e

    musicais e realizando a transcrio da msica dos maracatus para a msica erudita. O livro O

    Folclore no Carnaval do Recife (1966) 9da antroploga Katarina Real, foi mais uma obra a

    contemplar os maracatus-nao, tentando dar conta de discutir suas origens e tradio. Apesar

    de ambas as obras terem surgido no perodo em que as naes de maracatu estavam

    desaparecendo, e de inclusive apresentarem uma preocupao com a possvel extino damanifestao, elas sem dvida abriram caminho para que os maracatus obtivessem uma

    imagem mais positiva perante a sociedade mais ampla. A importncia dessas obras muito

    grande sendo que ainda hoje muitos grupos consultam-nas na tentativa de compreender sua

    histria e na busca de legitimao para sua nao.

    Outro fato que no pode ser desconsiderado para se entender o processo de valorizao

    dos maracatus-nao a criao no incio da dcada de 60 da famosa Noite dos Tambores

    Silenciosos, realizada no Ptio do Tero. O principal articulador desse evento foi o jornalista

    Paulo Viana, um dos mediadores culturais da poca que se esforavam para impedir que as

    manifestaes culturais afro fossem extintas. Na poca a abertura do evento foi realizada com

    o encontro da legendria Dona Santa, rainha do no menos famoso Maracatu Elefante com as

    tias Sinh e Iai, importantes carnavalescas daquele perodo; as trs senhoras eram

    consideradas pelo jornalista como sendo as ltimas remanescentes africanas da cidade. O

    9As datas das obras de Guerra-Peixe e Real aqui referidas so de sua primeira edio.

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    evento existe at hoje e uma das atraes mais concorridas do carnaval recifense. Ao longo

    dos anos a Noite dos Tambores Silenciosos foi sendo ressignificada pelos maracatuzeiros e

    transformada em uma cerimnia de forte conotao religiosa voltada para a celebrao dos

    eguns (esprito dos ancestrais) (Lima; Guillen, 2007).

    Outros fatores mais abrangentes a nvel mundial tambm contriburam para o

    surgimento de um clima favorvel a consolidao dos maracatus-nao; o caso da ascenso

    da indstria cultural, ocorrida na dcada de 70. A partir desse momento a cultura passou a ser

    compreendida como algo vendvel, ou seja, como mais um produto a ser consumido

    (Carvalho, 2004). Nesse contexto que surge o termo cultura de massa que seria aquele

    tipo de cultura feita para ser consumida, produzida para fins de mercado. Alguns estudiosos

    chegaram a prever que a cultura de massa acabaria com o espao da cultura popular. O caso

    dos maracatus-nao no segue a previso, pois, mesmo hoje, eles no atingiram um

    contingente to grande de consumidores a ponto de serem considerados como cultura de

    massa mas, como ser visto mais adiante, eles no ignoraram essa lgica da indstria cultural,

    e tentam conquistar seu espao no mercado tambm.

    Nos anos 80 observou-se na cidade do Recife o ressurgimento de algumas naes de

    maracatu que haviam sido extintas. Um desses ressurgimentos diz respeito Nao Elefanteque havia encerrado suas atividades em 1962 com a morte de sua rainha, Dona Santa, e que

    ressurgiu em 1986 nas mos de D. Madalena que se tornara rainha da nao na nova

    formao. A restaurao do referido grupo teve o apoio de diversas autoridades locais e de

    intelectuais como Gilberto Freyre. O apoio a diversos grupos de cultura afro, tambm foi dado

    pelos militantes do Movimento Negro Unificado, que tomaram parte nos maracatus Elefante e

    Leo Coroado. A militncia do MNU foi muito importante no sentido de repensar e valorizar

    a cultura afro-brasileira (Lima; Guillen, 2007)

    10

    .

    J no fim da dcada e incio dos anos 90 surgem movimentos culturais que buscaram

    valorizar os smbolos pernambucanos dentre eles os maracatus.

    Em 1989 um grupo de jovens provenientes da classe mdia funda o Maracatu Nao

    Pernambuco, grupo que trabalha com elementos percussivos e performticos dos maracatus-

    10 A participao do MNU no Maracatu Leo Coroado de Lus de Frana tambm est registrado em

    documentrio realizado entre janeiro e maro de 1987 com roteiro de Raul Lody e direo de Wagner Simes.Disponvel em: http://video.google.com/videoplay?docid=-8142121220796768253#

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    nao tradicionais e que conseguiu divulgar a manifestao para outras classes sociais que

    antes no lhes dava ateno. O grupo obteve relativo sucesso chegando a realizar viagens

    Europa. preciso tambm salientar a contribuio do movimento Mangue Beat, j na dcada

    de 90, e seu mais famoso representante Chico Science e a Nao Zumbi que ao misturarem

    elementos de manifestaes populares como o coco, a ciranda e o maracatu ao som do rock

    ficaram conhecidos no Brasil inteiro, contribuindo para que pessoas de outras regies

    ouvissem falar desse tal de maracatu11. Os dois grupos contriburam efetivamente para a

    aceitao, insero e principalmente apropriao dos maracatus-nao por parte da classe

    mdia. (Lima; Guillen, 2007)

    Ainda nos anos 90 houve um surgimento de diversas naes de maracatu novas como

    as naes Encanto do Dend, Leo da Campina e Nao de Luanda (1997) assim como as

    naes Encanto da Alegria e Ax da Lua (1998), (Lima, 2005).

    Nesse processo surgiram tambm alguns grupos percussivos ou maracatus estilizados

    que, como j foi abordado na introduo deste trabalho, so grupos que tocam a parte

    percussiva do maracatu e executam sua dana sem possuir o vnculo com as religies afro-

    indo-brasileiras, vnculo esse que atualmente caracterstico dos maracatus-nao. Esses

    grupos so constitudos majoritariamente por pessoas brancas de classe mdia que se renemem locais centrais de Recife ou Olinda para ensaiarem, ou seja, eles se diferenciam tambm

    dos maracatus-nao por no possurem vnculos especficos com alguma comunidade.

    Por fim, no possvel deixar de abordar o ltimo fator importante que contribuiu para

    o atual cenrio em que se encontram a cultura popular e os maracatus-nao do Recife: a

    criao do Carnaval Multicultural do Recife. O referido modelo de carnaval teve incio em

    2001, primeiro ano do mandato do prefeito Joo Paulo do PT, e fez com que os maracatus-

    nao disputassem, de igual para igual, espaos com o frevo, que at ento era o carro-chefe

    do carnaval pernambucano. Como j mencionado anteriormente o frevo, apesar de sua

    hegemonia como ritmo smbolo de Pernambuco, j disputou espao no perodo do carnaval

    11

    Para mais informaes acerca do movimento manguebeat ver: VARGAS, Herom. Hibridismos Musicais deChico Science e Nao Zumbi. Rio de Janeiro: Ateli Editorial, 2007.

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    30

    com as escolas de samba nas dcadas de 70 e 80 e com a ax music nos anos 90 (Lima, 2009,

    p. 110). 12

    O maracatu-nao at ento jamais representara ameaa. Deste modo, salienta-se queat o ano de 2001 o foco do carnaval eram os bailes realizados nos clubes onde o ritmo

    principal era o frevo, as orquestras de frevo nas ruas e os trios eltricos com enfoque na ax

    music. As agremiaes carnavalescas tais como, caboclinhos, ursos, bois, maracatus de

    orquestra e maracatus-nao realizavam seus desfiles nas ruas e competiam pelos ttulos de

    campees, mas no tinham a mesma visibilidade que o frevo e os outros ritmos mencionados.

    Alm disso, o carnaval anterior ao modelo instaurado pelo mandato de Joo Paulo era mais

    centralizado, no sendo assim estimuladas as festas no mbito das comunidades, ou seja,

    quem quisesse usufruir do carnaval oficial da cidade deveria se deslocar para as regies

    centrais ou pagar para participar dos bailes nos clubes13.

    O release do Carnaval Multicultural 2010, disponvel no site oficial do carnaval do

    Recife 14, diz que o objetivo da festa :

    oferecer a populao do Recife e visitantes de todo pas e do mundo uma programao artstica que

    envolve uma grande diversidade de ritmos calcada na transversalidade e multiculturalidade

    O carnaval ainda descrito como sendo:

    democrtico, popular e diversificado; totalmente descentralizado com plos de animao espalhados

    por toda a cidade, a festa leva possibilidades iguais de diverso e lazer para todos, com conforto,

    segurana e comodidade. So espetculos gratuitos e de alta qualidade, seja nas apresentaes de

    agremiaes carnavalescas, seja nos shows de palco com artistas e orquestras.

    Percebe-se com essa citao, que a inteno que esse modelo de carnaval tem de

    proporcionar espao a diversos ritmos e dar acesso a diverso a todos, visto que os eventos

    12 Para um estudo mais aprofundado e detalhado da histria do carnaval recifense ver: LIMA, Ivaldo Marcianode Frana. Entre Pernambuco e a frica. Histria dos maracatus-nao do Recife e a espetacularizao dacultura popular (1960 - 2000). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Histria daUFF, 2010.13 Agradeo a Jamesson Florentino dos Santos, ex-mestre da Nao Leo da Campina e atual batuqueiro da

    Nao Cambinda Estrela, pela riqueza de detalhes de seu relato sobre como era o carnaval no Recife antes do

    modelo do Carnaval Multicultural.14 http://www.carnavaldorecife.com.br/downloads/Release_Programacao_Carnaval_2010.pdf

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    no se concentram numa regio nica da cidade. No quesito de dar espao a diversos ritmos,

    est implcito um esforo em valorizar a cultura popular pernambucana em suas diferentes

    vertentes. O Carnaval Multicultural descrito no referido stio como sendo uma das maiores e

    mais democrticas festas do mundo. Alm dos festejos nos dias oficiais do carnaval o evento

    conta com uma srie de atraes gratuitas na semana pr-carnavalesca com shows de artistas

    locais nacionais e internacionais alm de apresentaes das agremiaes carnavalescas em

    diferentes partes da cidade. Deste modo observa-se que o Carnaval Multicultural tem grandes

    pretenses.

    Em pesquisa realizada pela prpria Prefeitura da Cidade do Recife foi constatado que

    no carnaval de 2009, 76% dos moradores entrevistados se mostraram satisfeitos com o

    modelo do carnaval, que 136 mil pessoas se beneficiaram com gerao de renda direta ematividades relacionadas ao evento e que o fluxo global de visitantes foi de 665mil pessoas.

    Isso mostra a importncia que o evento tem para a economia da cidade. Ou seja, por trs do

    Carnaval Multicultural existe um grande interesse econmico, focado na arrecadao de

    recursos e gerao de renda. Com capitais como Salvador e Rio de Janeiro j fornecendo uma

    identidade, um jeito prprio de celebrar o carnaval, percebe-se que as autoridades do Recife

    sentiram a necessidade de criar uma identidade particular para seu modelo de carnaval para

    entrar nessa disputa pelos turistas e folies do Brasil e do exterior. Os maracatus-nao setornaram ento um dos carros chefes para a construo de uma identidade pernambucana para

    o Carnaval Multicultural.

    Desde sua implantao, a abertura oficial do Carnaval Multicultural realizada no

    Marco Zero num evento que rene diversas naes de maracatu que so comandadas sob a

    regncia do renomado percussionista Nan Vasconcelos. No ano de 2010 ele regeu 17 naes

    (o maior nmero de naes que j participaram do evento), sendo que o evento contoutambm com a participao de artistas locais de outras linguagens e tambm de artistas

    nacionalmente famosos como Elba Ramalho, Luiz Melodia e Zeca Pagodinho. O fato de um

    ritmo como o do maracatu-nao ser o carro-chefe da abertura do evento festivo mais

    importante da cidade do Recife, por si s justifica o grau de visibilidade que a manifestao

    vem ganhando ao longo desses ltimos anos15.

    15 Apesar da contribuio do evento de abertura do Carnaval Multicultural para a visibilidade do maracatus-

    nao, so muitos os grupos que reclamam de seu formato. Nan Vasconcelos rege todas as naes participantespor um modelo de baque que se assemelha muito com o de umas das naes mais famosas da cidade,

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    32

    De acordo com o stio, o evento conta ainda com 16 plos de animao sendo 8 no

    centro da cidade e com diferentes temas, para dar espao ao maior nmero de ritmos

    possveis, e 8 em diferentes comunidades. Alm disso, ainda de acordo com o release do

    evento, a Prefeitura da Cidade do Recife patrocina 43 carnavais comunitrios,

    disponibilizando a estrutura bsica para a realizao da festa como palco, som, iluminao,

    decorao e banheiros qumicos, dando ainda autonomia para que as comunidades escolham

    suas atraes, mas orientando que a maioria delas seja composta por artistas locais.

    O release enfatiza que outras atraes que ocorrem dentro do Carnaval Multicultural

    so festivais como oRec-Beat, de msica alternativa proveniente de diversas partes do mundo

    e o Concurso das Agremiaes Carnavalescas.

    O referido concurso ocorre durante trs dias do carnaval em quatro locais diferentes,onde so instaladas passarelas com arquibancadas, camarote e palanques para atender ao jri e

    ao pblico. De acordo com o stio virtual do evento, no total, 323 agremiaes de 11

    modalidades diferentes, dentre elas a de maracatus-nao, participam do concurso. O

    concurso se divide ainda em quatro grupos, o de aspirantes, o segundo, o primeiro e o especial

    sendo que esses trs ltimos oferecem prmios em dinheiro para as agremiaes campes de

    cada modalidade. A prefeitura ainda fornece subsdios para todas as agremiaes para que

    elas possam preparar seus desfiles com qualidade. O jri, composto por pesquisadores,acadmicos e artistas populares, assiste aos desfiles e avalia fantasias, adereos, alegorias,

    tema e enredo, msica, coreografia e evoluo das personagens. O resultado do concurso com

    os vencedores de cada modalidade em cada grupo anunciado na quinta-feira posterior a

    Quarta-Feira de Cinzas geralmente no Ptio So Pedro no bairro de So Jos.

    Como j foi observado, por trs de todo o espao que o Carnaval Multicultural do

    Recife abriu para os grupos de cultura popular percebe-se a inteno de criar uma identidade

    pernambucana para o evento. Ele multicultural, abarca diferentes ritmos e linguagens, comatraes para todo tipo de pblico, mas acima de tudo pernambucano, com identidade

    prpria sendo diferente dos carnavais de outras capitais brasileiras. Como pode se perceber, o

    modelo adotado tem forte conotao poltica e tambm econmica, ele serve para fortalecer a

    desconsiderando a heterogeneidade dos baques das diversas naes de maracatu. Os maracatuzeiros afirmam quepor conta disso o baque da abertura fica feio, embolado. Outra reclamao diz respeito aos cachs dos artistas, deacordo com diversos maracatuzeiros, os cachs de Nan e dos artistas de fama nacional que participam do evento muito superior somatria dos cachs das naes que, ainda de acordo com eles, so a atrao principal do

    evento. Essa informao foi obtida em conversas informais com diversos maracatuzeiros de diferentes naes aolongo de 2009 e 2010.

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    gesto da prefeitura que o mantm e tambm para atrair mais turistas e desenvolvimento para

    a cidade.

    Nesse contexto os maracatus-nao tm seu espao garantido na abertura do carnaval,

    no desfile das agremiaes, na concorrida Noite dos Tambores Silenciosos e nas

    apresentaes em diferentes plos e comunidades durante o carnaval e na semana pr. Aps

    tudo o que foi dito sobre o Carnaval Multicultural do Recife impossvel no perceber o

    quanto ele foi importante para a conquista de visibilidade dos maracatus-nao.

    Atualmente existem mais de 25 naes de maracatu filiadas a Federao Carnavalesca sendo

    que 19 delas se articularam e organizaram a Associao dos Maracatus-Nao

    Pernambucanos (AMANPE), rgo que visa defender o interesse das naes perante os

    rgos que regem as polticas pblicas de cultura da cidade16.Ao longo desse processo de revalorizao dos maracatus-nao surgiu tambm um

    grande nmero de grupos percussivos17, to grande ou maior que as naes consideradas

    tradicionais o que mostra que cada vez mais, a cultura popular se consolida como um valor e

    tambm como objeto de consumo.

    A nao de maracatu que ser objeto desse estudo se insere dentro desse contexto,

    sendo assim, impossvel entender sua organizao social, valores e sistemas simblicos sem

    relacion-la com o contexto da sociedade que a rodeia.

    2. A Nao do Maracatu Porto Rico

    2.1.Rainha Elda e Mestre Jaime: dinamicidade e vitriasA Nao do Maracatu Porto Rico com fundao, segundo seus lderes, em 07 de

    setembro de 1916 encontra-se, desde 1980, nas mos da famlia da Yalorix Elda Viana,

    nascida em 02 de maro de 1939 no estado do Rio de Janeiro, me de seis filhos. D. Eldamigrou para o Recife nos anos 1970 fixando residncia inicialmente no bairro da Mangabeira,

    zona norte e mais tarde mudando-se para o Pina, zona sul na comunidade de baixa renda

    conhecida localmente como Bode. Na poca ela j era me-de-santo, tendo sido feita na

    16 Naes de maracatu filiadas a AMANPE: Encanto da Alegria, Gato Preto, Almirante do Forte, CambindaEstrela, Oxum Mirim, Estrela Dalva, Ax da Lua, Porto Rico, Estrela Brilhante do Recife, Razes de Pai Ado,Aurora Africana, Leo da Campina, Encanto do Dend, Leo de Jud, Encanto do Pina, Sol Nascente, Nao deLuanda, Tupinamb e Linda Flor.17

    muito difcil saber ao certo a quantidade de grupos percussivos tendo em vista que a maioria deles nopossui nenhum tipo de registro.

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    umbanda e no candombl de nao angola. Em Recife foi feita ainda na dcada de 1970, na

    nao nag e mais tarde na dcada de 1980, na nao jeje pelo renomado Babalorix Raminho

    de Oxssi, sendo que hoje ela afirma que seu terreiro traado jeje-nag18.

    Quando D. Elda assumiu o maracatu, ela ficou conhecida por ter trazido uma srie de

    inovaes na corte real. As fantasias ganharam novos contornos, com a implementao de

    novos tipos de tecidos, mais finos, que no eram usados no vesturio de outras naes alm da

    aplicao de miangas, lantejoulas e paets nos bordados, plumas em adereos de cabea,

    golas, mangas e barras e armaes por baixo das saias, o que conferiu mais brilho e luxo ao

    desfile, numa esttica que lembrava muito as escolas de samba. Antes de D.Elda, as saias

    eram apenas engomadas e quando chovia elas murchavam, fazendo com que o desfile

    perdesse seu glamour19.A jovem e dinmica rainha (Lima, 2009, p. 69) tambm colocounovos personagens na corte, ela afirma ter sido quem implantou os casais de duques,

    marqueses, embaixadores j que antes s haviam reis, rainhas, prncipes e princesas, alm de

    ter colocado na passarela toda uma corte mirim e as vassalas, que so as odaliscas que

    acompanham o casal real20. Muitos intelectuais, autoridades e maracatuzeiros mais

    conservadores acreditavam que as inovaes de D. Elda eram uma ameaa de

    descaracterizao dos maracatus e no a viam com bons olhos. No entanto a rainha que na

    poca era jovem e vinda de outro estado acabou conquistando novos espaos apresentando ummaracatu mais jovem e mais amplo j que o aumento do nmero de personagens fez com que

    mais pessoas tivessem a oportunidade de desfilar no maracatu21 (Lima, 2009).

    No bairro o terreiro de Elda, que j servia de sede do Maracatu Porto Rico, era muito

    conhecido e a maioria de seus filhos-de-santo que residiam na comunidade aproveitavam

    tambm para desfilar no maracatu. De acordo com Osvaldo Pereira, maracatuzeiro da nao

    h 14 anos e educador social, a comunidade era muito integrada ao maracatu e ao terreirosendo que D. Elda era tida como uma liderana na comunidade. No entanto a infra-estrutura

    do local era mais simples, o cho era de barro ea residncia possua, menos cmodos e menos

    conforto.

    18 Informaes obtidas em entrevista com D. Elda Viana em 09/03/10.19 Essa informao foi concedida por D. Elda durante trabalho de campo realizado em janeiro de 2010.20 Apesar de D. Elda considerar-se a introdutora dessas personagens na corte, as obras de Katarina Real (1990) eGuerra-Peixe (1950) mencionam o casal de duques, embaixadores, condes e vassalos como figuras pertencentesao cortejo real.21

    Alm de estar contida na obra de Lima (2009) essa informao tambm foi concedida por Osvaldo Pereira,batuqueiro da nao, em entrevista realizada em 22/07/10.

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    O mestre da nao no perodo de 1980 a 2000 foi Jaime, residente de outra comunidade,

    que j havia tocado no batuque do Maracatu-Nao Cambinda Estrela (Carvalho, 2007) e que

    assumia a regncia de um batuque pela primeira vez. Sob o comando do referido mestre

    tocavam 24 batuqueiros divididos em 14 alfaias, 1 gongu, 3 taris e 4 mineiros, instrumentos

    considerados tradicionais nos maracatus-nao22. Apenas homens tocavam no batuque,

    mulheres e crianas eram proibidas23 e participavam s da dana na corte. Os batuqueiros

    eram todos residentes da comunidade e sua faixa etria era de 25 a 35 anos. De acordo com os

    maracatuzeiros entrevistados, eram tudo nego vio. A transmisso do conhecimento do

    batuque se dava da forma popular, ou seja, o conhecimento era adquirido na vivncia, o

    mestre no parava para ensinar como um professor de escola, por exemplo 24. A fala do

    batuqueiro Wagner25, 23 anos, h 12 no batuque, ilustra essa situao:

    Naquela poca no tinha essas facilidades de hoje no, oficina, essas coisas, t ligado? Ningum parava pra

    ensinar igual hoje, igual hoje que a pessoa pode chegar no ensaio, tirar dvida com os batuquero mais antigo,

    no tinha isso no...Tinha que chegar sabendo, aprender olhando, e se errasse tomava lapada dos nego vio...

    (Wagner, 23 anos, batuqueiro, 07/06/10)

    Alm da forma popular da transmisso do conhecimento observa-se tambm que o

    batuque da nao Porto Rico sob a regncia de Jaime tinha a sonoridade antiga. Em suadissertao de mestrado o antroplogo Ernesto Igncio de Carvalho (2007) diferencia a

    sonoridade antiga dos baques das naes de maracatu de uma sonoridade mais recente

    caracterizada por uma organizao modernizada, altamente tipificada, racionalmente

    orquestrada, do baque virado... (Carvalho, 2007 p. 115)

    22 Informao concedida pelo mestre Jaime em conversa informal no carnaval de 2009.23 interessante perceber que at o fim do sculo XX apenas homens tocavam nos batuques dos maracatus-nao, pois acreditava-se que assim regia a tradio (isso de acordo com relatos da oralidade). A entrada demulheres ocorreu primeiramente nas naes que adotaram os agbs em seu batuque, instrumento considerado pormuitos como feminino no maracatu, e tambm em naes que deram abertura para a participao de pessoas daclasse mdia; nesse caso as mulheres de classe mdia foram as primeiras a se interessarem a tocar alfaias e tarise ainda hoje elas esto em maior nmero nesses instrumentos se comparando com as mulheres das comunidades,que continuam preferindo os agbs. Ainda assim obtive a informao de que D. Rosinete, filha da RainhaMadalena do Elefante na dcada de 1990, j tocava os tambores alm de ajudar em sua confeco (comunicaooral).24 Para um estudo mais aprofundado acerca da transmisso do conhecimento em contextos de cultura popularver: SANDRONI, Carlos, BARBOSA, Cristina e VILAR, Gustavo. A transmisso de patrimnios musicais detradio oral em Pernambuco:um relato de experincia. In GUILLEN, Isabel Cristina Martins (org).

    Tradies e Tradues: a cultura imaterial em Pernambuco.Recife: Editora Universitria, UFPE, 2008.25 Optei por ocultar os verdadeiros nomes de alguns maracatuzerios para preservar sua identidade.

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    O responsvel por essa nova composio do baque dos maracatus foi Walter Frana,

    mestre do Maracatu Estrela Brilhante desde 1993, que buscava facilitar a transmisso do

    conhecimento para batuqueiros novatos criando ento novos conceitos didticos de ensino do

    baque. Ao separar o baque de seu maracatu em clulas e dar nome aos bois (Carvalho,

    2007, p. 116) Walter viu surgir a possibilidade de inserir uma srie de convenes dentro do

    baque, convenes essas que davam um aspecto menos repetitivo e com mais variaes que

    os baques antigos26. Com isso no se afirma que os baques de antigamente no diferenciavam

    de nao para nao, cada um deles possua sua particularidade, mas o estilo seguia um lgica

    parecida.

    Walter trouxe no s um novo modo de transmitir o conhecimento como tambm uma

    nova configurao de baque, inserindo instrumentos que tradicionalmente no faziam partedos maracatus-nao, como os agbs, e fazendo o baque do Estrela Brilhante por vezes

    lembrar uma levada de bateria de escola de samba. A influncia dessa levada explicada pelo

    fato de Walter ter sido, alm de batuqueiro do antigo Leo Coroado de Lus de Frana,

    percussionista da Escola Gigantes do Samba por muitos anos tambm. Esse novo jeito de se

    fazer maracatu acabaria por atrair nos anos que estavam por vir, muitos jovens percussionistas

    de classe mdia para o batuque do Estrela Brilhante.

    Jaime, no entanto, se considerava seguidor da tradio sendo avesso a alguns tipos de

    inovaes no batuque. Foi com muita insistncia, por exemplo, que ele permitiu que crianas

    e adolescentes desfilassem com o batuque adulto. Tal empreitada s ocorreu em 2000 aps

    um teste que ocorreu em frente sede da nao onde os meninos apresentaram sua batucada

    sob a regncia de dois oficineiros adultos, batuqueiros da nao. As oficinas para crianas e

    adolescentes foram parte de um projeto social proposto pelo batuqueiro Osvaldo Pereira para

    tirar as crianas da comunidade das ruas e afast-las da drogas; foi assim que surgiu aEscolinha de Batuque.

    No incio os meninos dispunham de uma apostila com a letra das principais loas27 da

    nao, de baquetas improvisadas e de pedaos de borracha onde tocavam os baques do Porto

    26 Quando utilizo os termos menos repetitivoe com mais variaes me refiro a sonoridade do baque para osouvidos de leigos, por isso anteriormente utilizo o termo aspecto. Sabemos que os baques das naes comsonoridade antiga tambm so repletos de variaes, mas aos ouvidos de leigos soam mais homogneos.27 Loas so hinos de louvor ao maracatu, a corte real, frica mtica, aos negros, aos orixs e ao Brasil que so

    cantados durante o batuque. Cada nao de maracatu possui suas prprias loas, alm de tambm utilizarem loasde domnio pblico.

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    Rico. Alguns anos depois foram construdos tambores adequados com a participao dos

    prprios meninos. Esse fato demonstra o quanto era difcil se tornar batuqueiro do Porto Rico

    na poca. No era qualquer pessoa que era aceita e at 1996 no havia ningum que se

    dispusesse a ensinar o baque a um novato. No bastava ser adulto, tinha que se adequar ao

    modo de aprendizado estabelecido pelo grupo. Jaime era visto como um regente muito

    exigente e por vezes rude com seus batuqueiros; o mesmo foi dito a respeito dos nego vio

    que davam com a baqueta em quem cometesse algum erro no baque. A maioria das crianas

    que participaram da escolinha, continuaram no maracatu, e foram de 2001 a 2009 os

    principais batuqueiros da nao28.

    A temtica das loas do Porto Rico dos anos 1980 e 1990 tambm seguiam a linha

    tradicional, ou seja, falavam dos instrumentos e smbolos do maracatu, da corte real, dacompetio com outros grupos e por vezes da frica. Abaixo segue um exemplo de loa da

    poca do mestre Jaime:

    O nosso barco o Santa Maria

    Que vem navegando nas ondas do mar

    Vem c vem ver Porto Rico nao pra valer!

    A grande maioria das naes de hoje em dia ainda segue com essa temtica.

    Ao longo das dcadas de 1980 e 1990 sob o comando da Rainha Elda e do Mestre Jaime

    a Nao Porto Rico foi campe de inmeros carnavais perdendo somente duas29 vezes para

    seu rival Maracatu Elefante da Rainha Madalena. D. Elda havia definitivamente conquistado

    seu espao como maracatuzeira e colocado seu grupo em posio de prestgio entre as naes

    de maracatu da cidade. At os anos 2000 a rainha era a principal articuladora do grupo,

    responsvel pela organizao da corte, das fantasias, pelo contato com as autoridades e

    responsveis pelas polticas culturais, pelos contratos de apresentaes nas esferas pblicas e

    28 De 2008 para 2011 uma quantidade razovel de batuqueiros da comunidade se afastou e as possveis razespara esse distanciamento sero discutidas nos captulos seguintes.29 Informao concedida pelo mestre Jaime em fevereiro de 2009, comunicao pessoal. No entanto, a listaoficial dos campees dos concursos carnavalescos do grupo especial na categoria de maracatu-nao, mostra quea Nao Porto Rico, sob o comando de D. Elda, obteve sua primeira vitria no carnaval de 1983, sendo campeat o ano de 1986 j que em 1987 a Nao Elefante conquistava o primeiro lugar. A Nao Elefante viria a sercampe dos carnavais de 1991, 1992 e 1995. No restante dos anos, at o ano de 1999 a Nao Porto Rico haviasido campe. Isso mostra que o grupo realmente obtinha prestgio no contexto das competies, mas ainda assim,

    perdera quatro vezes para o Maracatu Elefante. A lista oficial das agremiaes campes est apresentada nosanexos da tese de doutorado de Ivaldo Marciano de Frana Lima (LIMA, Ivaldo Marciano de Frana. Entre

    Pernambuco e a frica. Histria dos maracatus-nao do Recife e a espetacularizao da cultura popular

    (1960 - 2000).Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Histria da UFF, 2010.)

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    privadas, enfim era a principal responsvel pela administrao do grupo. Alm de administrar

    o maracatu e o terreiro D. Elda era vista tambm como forte liderana comunitria se

    envolvendo com questes referentes aos interesses do bairro como um todo. Jaime era apenas

    responsvel pela regncia do batuque, de acordo com os maracatuzeiros entrevistados ele

    chegava para o ensaio pontualmente s 16 horas de domingo, realizava o ensaio e ia embora,

    ou seja, no se envolvia com a comunidade ou com outras questes de interesse do maracatu.

    Neste ponto seu sucessor Chacon Viana se mostraria totalmente oposto.

    Com Chacon veio a evoluo, antes era tudo nas costas da Me Elda, ele (Jaime) chegava, tocava e ia embora,

    a ficava tudo na mo da Me Elda, mas a ela ficou mais velha da precisou vir Chacon.(Incio, 21 anos,

    batuqueiro, 22/06/10)

    2.2. A Era Chacon

    No ano 2000 Mestre Jaime acabou passando por alguns problemas de sade e outros de

    ordem pessoal e acabou se afastando da nao. O cargo ficou vago e precisava ser substitudo.

    A histria da transio do Mestre Jaime para o Mestre Chacon possui diferentes verses.

    Sabe-se que a memria algo varivel, construda no s individual como coletivamente

    (Halbwachs, 1999), ou seja, no possvel alcanar verdades absolutas nos relatos de

    memria, mas possvel perceber a riqueza e diversidade de interpretaes de um mesmo

    evento e tentar compreender as razes e motivaes dessas interpretaes. Como j afirma

    lclea Bosi lembrar no reviver, reconstruir, repensar com imagens e idias de hoje as

    experincias do passado (Bosi, 1987, p.57).

    De acordo com alguns entrevistados, alguns nomes surgiram como possveis substitutos

    para o Mestre Jaime como o dos oficineiros da Escolinha de Batuque, ou de batuqueiros que

    se destacavam como o jovem Dimas, neto adotivo de D.Elda. Dimas havia sido criado dentro

    do terreiro de D. Elda e tambm hav