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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE CENTRO DE HUMANIDADES UNIDADE ACADÊMICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS A CONSTRUÇÃO DA ORGANICIDADE NO MST A experiência do Assentamento 26 de Março/Pará MARIA SUELY FERREIRA GOMES 2009

Dissertação completa Suely

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE CENTRO DE HUMANIDADES

    UNIDADE ACADMICA DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    A CONSTRUO DA ORGANICIDADE NO MST A experincia do Assentamento 26 de Maro/Par

    MARIA SUELY FERREIRA GOMES

    2009

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE CENTRO DE HUMANIDADES

    UNIDADE ACADMICA DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    A CONSTRUO DA ORGANICIDADE NO MST A experincia do Assentamento 26 de Maro/Par

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Sociais da Universidade Federal de Campina Grande, como requisito para obteno do ttulo de mestre em Cincias Sociais.

    Maria Suely Ferreira Gomes Orientador: Dr. Luis Henrique Hermnio Cunha

    Campina Grande Julho/2009

  • FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UFCG

    G633c

    2009 Gomes, Maria Suely Ferreira.

    A construo da organicidade no MST: A experincia do assentamento 26 de

    maro/ Par. / Maria Suely Ferreira Gomes. Campina Grande, 2009.

    167f. : il.

    Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Universidade Federal de Campina

    Grande, Centro de Humanidades.

    Referncias.

    Orientador: Prof. Dr. Luis Henrique Hermnio Cunha.

    1. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. 2. Movimentos Sociais. 3.

    Assentamentos de Reforma Agrria. 4. Participao. 5. Organicidade. I. Ttulo.

    CDU 316.35(043)

  • MARIA SUELY FERREIRA GOMES

    A CONSTRUO DA ORGANICIDADE NO MST A experincia do Assentamento 26 de Maro/Par

    Dissertao apresentada em, 14 de julho de 2009.

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Luis Henrique Hermnio Cunha (PPGCS/UFCG) Orientador

    ________________________________________________________

    Prof. Dr Ramonildes Gomes (PPGCS/UFCG) Examinadora interna

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Gonzalo Adrin Rojas (UACS/UFCG) Examinador externo

  • DEDICATRIA

    Aos trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra que lutam incansavelmente por uma sociedade mais justa e igualitria.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Estado do Par, por proporcionar a minha participao na seleo desse curso mestrado.

    s companheiras: Izabel, Maria Raimunda e Giselda pela fora e apoio durante o perodo de minha estadia em Campina Grande-PB.

    s famlias do Assentamento 26 de Maro, pela acolhida e disponibilidade de tempo em contribuir com a pesquisa de campo: nas reunies da coordenao do assentamento, nas residncias, nas roas e nas farinhadas. Momentos que contriburam no s para o estudo, bem como na minha prtica militante.

    Ao meu companheiro Glauco Brito e meu filho Endi Gomes pela pacincia, amor, carinho, compreenso e apoio durante minha ausncia no perodo de estudo.

    minha me Luzenira Ferreira, mesmo morando em Petrolina-PE, preocupou-se durante toda a minha caminhada, com seu apoio e carinho para que eu conseguisse concluir esse curso.

    Aos colegas de turma do mestrado, foi uma grande experincia de vivncia e debate em sala de aula e nos espaos informais.

    Aos professores do Programa de Mestrado em Cincias Sociais, pelos ricos momentos de debate em sala-de-aula: Lemuel, Marilda, Magnlia, Mrcio Caniello, Malagodi, Roberto Vras. A professora Ghislaine Duque pela sua acolhida, e momentos de convivncia. Professora Ramonildes, agradeo por sua disponibilidade em contribuir desde a apresentao do projeto, e pela sua eficincia na comunicao a distncia. Ao professor e orientador desse trabalho, Luis Henrique, pela pacincia, pelos momentos de dilogo, reflexes, mas principalmente pela sua competncia profissional.

    Aos amigos e amigas que foram fundamentais nessa caminhada: Franqueline, companheira de curso e de diviso de espao/moradia, pelos momentos difceis, mas tambm pelos momentos felizes que passamos longe de nossas famlias; Miguel, companheiro de luta, quando no esquecia estava presente; A companheira Sirlei, mulher forte, determinada; Aos companheiros Paulo Mansan e Jeferson; companheira Dilei, pela preocupao conosco; A

    companheira Selma, que acompanhava a turma da Via Campesina, pelos momentos de reflexo; A companheira Svia, que sempre me acolheu com muito carinho, alm de compartilharmos vrios momentos de risos e brincadeiras. Carol e Nara, pela acolhida; Carla, Manu, Ricardo, Yusef e Maria. E Marlia pela disponibilidade de realizar a reviso desse trabalho em curto prazo de tempo. Irene Hohn pela reviso final deste trabalho.

  • [...] O campo se agiganta e engole a fome

    vence o inslito silncio da cerca, calam-se teses leis vulgares,

    inglria preciso da propriedade.

    O homem histria estrume e ave amanhecida.

    Para cada morte um pargrafo

    de utopia!

    No morrem os que querem alqueires,

    felicidades e um ramo de rebeldia, hectares de um mesmo corao.

    E no sol de cada dia o suor

    de toda vida.

    (O riso alegre da histria- Charles Trocate Marab, dezembro de 2008-

    foto: crianas do assentamento 26 de Maro em dia de produo de farinha, data 11/12/2008-Foto:Suely)

  • RESUMO

    Esta dissertao analisa a organicidade no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a partir de um olhar sobre as prticas dos atores e suas interaes, tomando como locus de estudo o Assentamento 26 de Maro, localizado no municpio de Marab, Sudeste do Par. Este trabalho visa contribuir com o debate em torno da construo da organicidade no mbito do MST, ressaltando as prticas sociais, como meio de oferecer um novo olhar sobre a questo. Neste sentido, analisamos a organicidade a partir do contexto da luta pela terra, considerando o modelo proposto de criao de assentamentos rurais. Analisamos a forma como as estruturas organizativas vo sendo construdas pelo MST em reas de acampamentos e assentamentos de reforma agrria. A construo da organicidade se d a partir de um processo histrico de maneira que se configura e (re) configura a partir das prticas das famlias envolvidas no processo. O estudo demonstrou que a constituio da estrutura organizativa interna do assentamento considerada o fio condutor para o sucesso e desenvolvimento das famlias acampadas e/ou assentadas. O seu fortalecimento e/ou fragilidade est ligado ao desempenho das lideranas que coordenam as instncias definidas internamente. Mas as formas organizativas, como os arranjos sociais em geral, so sempre provisrias, susceptvel de questionamentos, revises, adaptaes, reorientaes, em resposta tanto ao carter reflexivo da vida social (que implica no monitoramento permanente das prticas) quanto s prprias transformaes nas correlaes de fora entre grupos sociais interdependentes. A experincia das famlias do 26 de maro revela tambm as contradies desse processo, em termos de incluso/excluso proporcionada pela constituio da organicidade. As exigncias de letramento so um exemplo dos mecanismos institucionalizados de seleo de lideranas entre os assentados no atual modelo dos ncleos de base. O prprio processo de formao desses ncleos, a partir de critrios localmente adotados de seleo, como trabalho e amizade, resulta nas famlias no-nucleadas.

    Palavras-chave: Movimentos Sociais. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Assentamentos de reforma agrria. Participao. Organicidade.

  • RSUM

    Dans cette dissertation nous faisons lanalyse de lorganicit au Mouvement dest Travailleurs Ruraux sans Terra tout en considrant les pratiques des acteurs et leurs intractions, prennant comme locus dtude l Assentamento 26 Mars, situ dans la ville de Marab, au Sud-Est de lEtat du Par. Ce travail a pour but de contribuer au dbat concernant la construction de lorganicit dans le MST, en y faisant ressortir le rle des pratiques sociales, comme moyen de offrir un nouveau regard sur le thme. Dans ce sens l, nous essayons danalyser lorganicit partir du contexte de la lutte pour la terre, considrant le modle propos de cration des assentamentos ruraux. Nous analysons la forme comme les structures organizatives ont t construites par le MST dans les rgions des acampamentos e assentamentos de rforme agraire. La construction de lorganicit rsulte dun processus historique, ce qui fait quelle acquise une configuration et une reconfiguration partir des pratiques des familles impliques dans le processus. Ltude nous a montr que la constitution de la structure organizative lintrieur de l assentamento cest considere comme le fil conducteur pour la russsite e le dveloppement des familles acampadas ou assentadas. Laccroissement de leur force ou de leur fragilit cest une rsultante de lactuation des leaders qui coordonnent les chellons definis lintrieur du groupe. Mais les formes dorganization, tout comme les rglements sociaux en gnral, ce sont toujours provisoires, susceptibles dtre mises en question, dtre revues, adaptes ou rorientes, comme une rponse soit au caractre rflxif de la vie sociale (ce qu implique la surveillance permanente des pratiques) soit aux propres transformations dans le rapport de force entre groupes sociaux interdpendants. Lexprience des familles du 26 MARS rvle aussi les contradictions de ce processus, en ce qui concerne linclusion/exclusion entrane par la constitution de lorganicit. Les exigences de lettrement sont un exemple des mmcanismes institucionaliss de slection des leaders parmi les assentados dans le modle actuel des noyaux de base. Le propre processus de formation de ces noyaux, appuy sur des critres de selction adopts localement, tels le travail et lamiti, il a comme rsultat des familles quen sont exclues.

    Mots-cls: Mouvement sociaux. Mouvement des Travailleurs Ruraux Sans Terre. Assentamentos et rforme agraire. Participation. Organicit.

  • LISTA DE SIGLAS

    ANCA- Associao Nacional de Cooperao Agrcola CEBs- Comunidades Eclesiais de Base CEPASP- Centro de Estudo e Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular CNBB- Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CPT- Comisso Pastoral da Terra COCEP- Conselho de Coordenao de Ensino e Pesquisa COOMARSP- Cooperativa Mista dos Assentamentos Reforma Agrria da Regio sul e sudeste do Par. CONCRAB- Confederao das Cooperativas de Reforma Agrria do Brasil CUT- Central nica dos Trabalhadores CRS- Comunidade de Resistncia e de Superao CVRD- Companhia Vale do Rio Doce FASE- Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional FATA- Fundao Agrria do Tocantins Araguaia FETAGRI- Federao dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Par e Amap FETRAF- Federaes dos Trabalhadores na Agricultura Familiar GETAT- Grupo Executivo de Terras do Araguaia Tocantins IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente INCRA- Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ITERPA- Instituto de Terras do Par ITERRA- Instituto Tcnico de Capacitao e Pesquisa da Reforma Agrria LASAT- Laboratrio Scio-Agronmico do Araguaia Tocantins MEB- Movimento de Educao de Base MIQCB- Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babau MST- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra NEAF- Ncleo de Estudos Integrados Sobre Agricultura Familiar NB- Ncleo de Base NM- Ncleo de Moradia NMS- Novos Movimentos Sociais ONGS- Organizaes No-Governamentais P.A- Projeto de Assentamento PDA- Plano de Desenvolvimento do Assentamento

  • PEA- Plano de Explorao Anual PGC- Projeto Grande Carajs PRA- Plano de Recuperao do Assentamento PRONAF- Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PRONERA- Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria RB- Relao de Beneficirio SCA- Sistema Cooperativista dos Assentados SPDDH- Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos SDT- Secretaria de Desenvolvimento Territorial SIPRA- Sistema de Informaes de Projetos de Reforma Agrria SNI- Sistema Nacional de Informao SR27 E- Superintendncia Regional E (das regies Sul e Sudeste do Par) STR- Sindicato dos Trabalhadores Rurais UFPA- Universidade Federal do Par

    LISTA DE FOTOS

    FOTOS DA CAPA: Da esquerda pra direita: 1) Barraco de vendas na PA 150, em 04 de fevereiro de 2009; 2) Residncias de parte do ncleo de base Bom Jesus, em 18 de janeiro de 2009; 3) Reunio da coordenao do assentamento, em 06 de janeiro de 2008; 4) Crianas fazendo farinha no ncleo de base Bom Jesus, em 11 de dezembro de 2008. Fotos: Suely.

    FOTO 05: Dia da ocupao da fazenda Cabaceiras (dia 26 de maro de 1999). Acervo da Secretaria Estadual do MST-Par.

    FOTO 06: Ao de despejo no Acampamento 26 de Maro, comandado e executado pela polcia militar do Estado do Par. Acervo da Secretaria Estadual do MST-Par.

    FOTO 07: Corte de castanha, prtica ainda comum no Assentamento 26 de Maro. Foto: Ashley, em 22/12/2002.

    FOTO 08: Extrao de castanheira. Foto: Izabel Lopes, em 21/01/2009

    FOTO 09: Ornamentao do Acampamento do 26 de Maro. Foto: arquivo da secretaria estadual do MST, em 27/03/ 2004

    FOTO 10: Solidade (D.Sula) coordenadora do NB Semente do Amanh. Foto: Suely-06/01/2008

  • FOTO 11: Reunio da Coordenao do PA 26 de Maro. Foto: Suely em 06/01/2008.

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 01- Organograma do novo modelo organizacional do MST. Fonte: MST- Setor Formao Nacional.

    Figura 02- Mapa de localizao do Assentamento 26 de Maro. Fonte: LASAT/NEAF/UFPA. Figura 03- Mapa do Assentamento 26 de Maro- identificao dos ncleos de moradia. Fonte: Doner Pontes.

    Figura 04- Grfico de utilizao das terras no assentamento.

    Figura 05- Organograma da estrutura organizativa do Assentamento 26 de Maro. Fonte: coordenao do Assentamento 26 de Maro.

    Figura 06- Proposta de organograma da estrutura organizativa do Assentamento 26 de Maro. Fonte: coordenao do Assentamento 26 de Maro.

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1: Relao das reas do MST no estado do Par

    Quadro 2: Relao dos NB do Assentamento 26 de Maro

  • SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................................

    CAPITULO I- MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA: DA NECESSIDADE DA PARTICIPAO E ORGANIZAO................................

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    1.1. Inflexes discursivas: os conceitos articulados pelas instncias polticas e tericas sobre as noes de participao e capital e social............................................

    1.2. As transformaes nos movimentos sociais no Brasil............................................

    1.2.1.O papel da Igreja nos Movimentos Sociais..........................................................

    1.2.2.Consideraes sobre os novos Movimentos Sociais (NMS)............................

    1.3. A forma assentamento enquanto instrumento de luta..........................................

    1.3.1.Assentamento na concepo do MST..................................................................

    1.4. Organicidade no mbito do MST...........................................................................

    1.4.1. Estrutura orgnica idealizada pelo MST..........................................................

    1.4.2. A emergncia do ncleo de base (NB)................................................................

    1.4.3. Brigadas: a soma das partes de uma organizao............................................

    CAPTULO II- DO POLIGONO DOS CASTANHAIS AO ASSENTAMENTO 26 DE MARO........................................................................................................................

    2.1. Lutas que se cruzam, caminhos que se diferenciam....................................................

    2.1.1. A oligarquia dos castanhais..................................................................................

    2.2. MST no estado do Par................................................................................................

    2.2.1. O MST no sudeste do Par..................................................................................

    2.2.2. Complexo Macaxeira: uso e abuso de poder.......................................................

    2.2.3. Comunidade de Resistncia: O Assentamento 26 de Maro...........................

    CAPTULO III- DE ACAMPAMENTO ASSENTAMENTO: A CONSTRUO DA ORGANICIDADE DO 26 DE MARO....................................................................

    3.1. Trabalho de base: o embrio da estrutura organizativa............................................

    3.1.1. Bico do Agamenon: o anncio da reunio.....................................................

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  • 3.2. Mstica e organicidade..................................................................................................

    3.3. Ncleo de base: da resistncia criao.......................................................................

    3.4. Da formao dos ncleos..............................................................................................

    3.5. O papel da coordenao e o desafio na conduo da pauta.........................................

    3.6. A organicidade e a formao........................................................................................

    3.7. Ncleo de base e cooperao........................................................................................

    3.8. Ncleo de base: nem sempre o caminho da consolidao.........................................

    3.9. O papel da liderana na construo da organicidade..................................................

    3.10. A influncia do modelo de assentamento na construo da organicidade..............

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................................

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................................

    APNDICE A- Sobre a autora e o orientador...........................................................

    APNDICE B- Restituio do trabalho de pesquisa junto coordenao do Assentamento 26 de Maro...............................................................................................

    APNDICE C- Seminrio de Formao com educadores/educadoras do IFPA/Campus Rural de Marab (Apresentao da dissertao)..................................

    APNDICE D-Assentados e assentadas que fizeram parte da pesquisa de campo (em ordem alfabtica)........................................................................................................

    ANEXO A- Mapa da Mesorregio Sudeste do Par......................................................

    ANEXO B- Quadro geral da populao indgena da regio Sudeste do Par..........

    ANEXO C- Roteiros das entrevistas................................................................................

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  • INTRODUO

    A construo da organicidade entre as famlias sem terra ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) uma temtica importante nos ltimos anos, tanto na prtica cotidiana dos militantes, das famlias acampadas e assentadas, bem como na literatura acadmica dedicada anlise e interpretao das dinmicas sociais relativas luta pela terra no Brasil (CARVALHO, 1999; NEVES, 1999; FERNANDES, 1999). A problemtica da organizao social entre famlias assentadas mobiliza, assim, esforos de uma grande diversidade de atores, sendo a organizao apresentada como meio para se alcanar objetivos diversos relacionados reforma agrria. Este trabalho busca contribuir com o debate em torno da construo da organicidade no mbito do MST, ressaltando as prticas sociais, como meio de oferecer um novo olhar sobre a questo. A reflexo aqui empreendida parte dos seguintes pressupostos:

    1. necessrio desnaturalizar a temtica da organizao social, ressaltando seus condicionantes histricos e ideolgicos;

    2. A questo da organicidade aparece como elemento estruturador de boa parte das prticas de militantes e famlias acampadas/assentadas, influindo decisivamente nas formas de reproduo do MST;

    3. A construo da organicidade responde a mltiplas interaes entre grupos sociais distintos, com seus interesses e suas vises de mundo: dirigentes do MST, famlias acampadas e assentadas, representantes de instituies pblicas federais, estaduais, municipais, entre outras;

    4. A nfase nos processos organizativos implica tanto em limites quanto em

    possibilidades na construo dos assentamentos de reforma agrria. A partir desses pressupostos, esta dissertao traz como questo central o estudo em torno da construo da organicidade no MST, considerando o processo organizativo, a partir dos elementos que colaboram na organizao da luta pela terra e na criao de assentamentos de reforma agrria. Para tanto as questes que levaram realizao desse estudo so: Quais os elementos que contribuem na dinmica da construo da organicidade interna? Qual a influncia do modelo assentamento na construo dessa organicidade? Como o mtodo

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    organizativo baseado em ncleos de base1 e brigadas2 aparece? Qual a reflexo que existe sobre essa organizao e quais as contradies que so geradas em torno dessa proposta? Essas questes sero abordadas sempre a partir de um olhar sobre as prticas dos atores3 sociais e suas interaes, tomando como locus de estudo o Assentamento 26 de Maro, localizado no municpio de Marab, sudeste do estado do Par.

    Questes estas que sero analisadas na seguinte perspectiva: a) identificar as formas de organizao interna do Assentamento 26 de Maro; b) Identificar os temas de discusso nos ncleos de base, como eles so tratados internamente; c) analisar o trabalho de base no processo de formao/organizao; d) identificar elementos que contribuem para fortalecimento ou dissoluo dos ncleos de base; e) refletir sobre o processo de implantao e funcionamento dos ncleos de base, a partir da proposta do MST e das prticas das famlias assentadas. O trabalho no tem a pretenso de apresentar resultados fechados, mas elementos para reflexo no processo de construo da organicidade. A importncia da temtica da construo da organicidade para o MST no pode ser desagregada da relevncia que tem sido dada s problemticas da participao, da produo de capital social, da importncia dos arranjos institucionais, tanto na rea acadmica quanto na prtica dos movimentos sociais e do poder pblico.

    Quando se trata de organicidade no MST partimos da seguinte compreenso:

    A expresso organicidade indica no Movimento o processo atravs do qual uma determinada idia ou tomada de deciso consegue percorrer de forma gil e sincronizada o conjunto das instncias que constituem a organizao, desde o ncleo de base de cada acampamento e assentamento at a direo nacional do MST, em uma combinao permanente de movimentos ascendentes e descendentes capazes de garantir a participao efetiva de todos na conduo da luta em suas diversas dimenses. (CALDART, 2000, p. 162)

    A nfase na construo da organicidade seria justificada pelo fato de: Ampliar a participao, elevar o nvel de conscincia das famlias, formar militantes- quadros, ter o controle poltico do espao geogrfico, implantar

    1 O MST em nvel nacional comea a discutir Ncleo de Base, como forma de organizao interna das famlias em reas de

    acampamento e assentamento. O Ncleo de Base, em sua proposta deve ser constitudo em torno de 10 famlias e cada Ncleo elege um coordenador e uma coordenadora para fazer parte da Coordenao do Acampamento ou Assentamento. Em 1992, organizado um Manual de Organizao dos Ncleos, publicado pela Secretaria Nacional do MST em So Paulo. 2 uma forma de organizao que envolve famlias que moram em assentamentos e acampamentos prximos, ou seja, por

    regio(MST-PA, 2005a, p.05) 3 Ao tratar de ator social, parto da seguinte compreenso: Como os outros atores, os agricultores desenvolvem formas de

    lidar com situaes problemticas e combinam recursos de forma criativa (materiais e no materiais especialmente conhecimento prtico derivado da experincia anterior) para resolver os problemas. Eles tambm tentam criar espao para seus prprios interesses de forma que possam beneficiar de ou, se necessrio, neutralizar intervenes por grupos externos ou agncias. (LONG e VAN DER PLOEG, 1994, p. 12)

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    os crculos orgnicos, manter-se permanentemente vigilante, afastar os inimigos, acumular foras (MST, 2005, p.88)

    Percebe-se, nestes fragmentos, a nfase em torno do fortalecimento da estrutura do MST de maneira que possa garantir a participao das famlias. Por outro lado, essa estrutura deve garantir a circulao das informaes, gerando, ento, uma rede entre as diversas instncias dentro do movimento. No entanto, a ampliao da participao das famlias e o funcionamento dessa rede dependem da formao do quadro de militantes e dirigentes para atender os critrios de fortalecimento da estrutura proposta como elemento aglutinador do sucesso na organicidade enquanto avano na participao.

    A partir da intencionalidade do MST existe a necessidade de preparar quadros4 que atendam os objetivos e princpios de uma organizao seja ela interna, nas reas de acampamentos e/ou assentamentos, bem como externa, frente s instituies com as quais se relaciona. Esse significado de organicidade pressupe a formao como critrio de aperfeioamento da organizao. Nesse sentido, o MST se transforma e, ao mesmo tempo, se reproduz. Essa necessidade de reproduo leva formao e a uma ao de organizao, partindo dos princpios e objetivos, os quais esto explcitos em sua cartilha, da seguinte forma:

    1) lutar para construir uma sociedade sem exploradores, nem explorados; 2) lutar pela reforma agrria para garantir que a terra esteja nas mos de quem nela trabalha e a servio de toda sociedade; 3) lutar pela garantia de trabalho para todas as pessoas com justa distribuio da terra, da renda e das riquezas; 4) buscar permanentemente a justia social e a igualdade de direitos econmicos, polticos, sociais e culturais; 5) difundir os valores socialistas nas relaes sociais e pessoais; 6) combater todas as formas de discriminao social e buscar a participao igualitria da mulher, homem, jovens e crianas; 7) buscar a articulao com as lutas internacionais contra o capital e pelo socialismo. (MST-PA, 2005a, p.32)

    fundamental destacar que a organizao no algo natural: as pessoas comeam se organizar a partir de um modelo de organizao que servem a interesses e respondem a certas dinmicas e processos. a partir da intencionalidade do MST que se constri a organicidade junto s famlias acampadas e assentadas; so os interesses e as intenes que comporo os princpios que norteiam a organizao. Nesse sentido, so propostas formas de organizao, como se encontra nas reas de acampamentos e assentamentos: grupos de famlias, ncleos de base, brigadas, setores, entre outras que vo sendo constitudas e estruturadas.

    4 Assim se refere o MST aos militantes e dirigentes que atuam nas reas de acampamentos e assentamentos e que assumem

    as instncias do movimento, como setores e direes nacional, estadual, regional e local.

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    Partindo dessa lgica da organicidade, o estudo aqui proposto pretende olhar para a centralidade da organizao no MST, buscando entender uma srie de elementos que se estruturam em torno dessa ao organizativa. Nesse sentido, vou imergir em uma experincia a partir de uma rea de assentamento com intuito de realizar uma reflexo em torno do assunto proposto. No tenho a pretenso de rotular, dizer o que bom e o que ruim, nem mesmo considerar um estudo completo e fechado, pois a construo do conhecimento contnua, apesar das encruzilhadas que se formam nesse processo de construo da organicidade. A experincia a ser estudada a das famlias do Assentamento 26 de Maro, localizado no municpio de Marab, regio sudeste do Par.

    A regio sudeste do estado do Par, em sua trajetria de territorializao, foi marcada por grandes conflitos, principalmente no campo, causados principalmente pela concentrao de grandes extenses de terras por grupos de famlias e/ou empresas. Antes do domnio de proprietrios de terras, a regio era povoada por territrios indgenas que aos poucos foram sendo dizimados a partir da concentrao fundiria e expanso de grandes projetos. uma regio de forte migrao de pessoas de outros estados.

    Diversos foram os perodos que marcaram o mundo rural na regio, como a explorao do extrativismo do caucho, da castanha-do-Par, explorao de minrios, alm da expanso da pecuria. Aos poucos foi se constituindo na regio a disputa pela terra que tem incio com a luta dos posseiros, atravs do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. A regio marcada por diversas fases na luta pela terra: na dcada de 1920, posseiros comeam a ocupar as terras; na dcada de 1980 a Federao dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI) chega regio e provoca o aumento de reas ocupadas de terras; ainda na dcada 1980 chega o MST, que tambm desencadeia um processo de ocupao de terra na regio, aumentando o nmero de acampamentos e posteriormente assentamentos. A expanso de ocupao de terras na regio tambm provocou o aumento da violncia no campo, uma vez que medida que as terras iam sendo ocupadas, muitos trabalhadores e trabalhadoras foram assassinados. Vale ressaltar que a luta no aconteceu de forma simples e automtica, mas passou por todo um processo histrico.

    Os caminhos e percursos que seguem a luta pela terra nessa regio desembocam na expanso de criao de assentamentos de reforma agrria, principalmente com a chegada dos movimentos sociais do campo. A luta dos trabalhadores e trabalhadoras provoca ento a reestruturao das antigas oligarquias de famlias que dominavam o campo, seja na concentrao de terra, bem como na influncia poltica em nvel de estado. O cenrio comea a mudar, uma vez que grandes fazendas comeam a dar espao para a organizao desses

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    assentamentos. Essa expanso de ocupaes de terras provoca ento a criao de uma Superintendncia Regional do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (SR27 E) para atender especificamente as regies sul e sudeste do Par, que hoje comportam 482 Projetos de Assentamentos5, desses 75 no municpio de Marab.

    nesse cenrio de disputa pela terra que surge ento o Assentamento 26 de Maro, antiga fazenda Cabaceiras, localizada em rea denominada de Polgono dos Castanhais. uma rea de 9.774,0405 hectares6. Distante cerca de 700 km da capital do estado, Belm e 25 km da sede do municpio de Marab. A fazenda foi ocupada no dia 26 de maro de 1999 por aproximadamente 1600 famlias. Essa ocupao foi um dos momentos mais esperados pelo movimento, uma vez que era o primeiro latifndio da famlia Mutran que estava sendo ocupado na regio. Seu ato de desapropriao s foi publicado no dia 19 de dezembro de 2008, atravs do Dirio Oficial da Unio, nove anos aps a ocupao.7

    Feita a ocupao, a preocupao se concentrou em torno da organizao interna das famlias no acampamento, dada a necessidade da resistncia, permanncia na rea e para o MST a partir de seus princpios de luta, a resistncia se d com o fortalecimento da organizao das famlias. Nesse processo organizativo, desde o acampamento, o movimento encaminha um grupo de militantes para morar na rea e acompanhar as famlias, como vemos no depoimento de Ariosvaldo (Ari), militante e assentado no 26 de Maro:

    Na verdade, o papel do grupo de militncia fazer com que a comunidade permanea junta, que no se divida, e corra atrs do que seja de benefcio da comunidade: desde informao, alimentao e organizao da prpria comunidade e defenda de fato os objetivos daquele povo. Querendo ou no, o militante est frente de qualquer coisa, fazer vistoria na rea, so as primeiras pessoas que vo fazer mobilizao, fazer agitao e propaganda, querendo ou no, o coletivo de militncia, que faz isso porque so os caras que vo dizer como que funciona. (Ariosvaldo Andrade dos Santos-Ari, 29 anos, entrevista cedida em 02 de fevereiro de 2009).

    A partir desse depoimento fica visvel que so vrias as tarefas do militante desde o trabalho de base constituio da organicidade interna da rea junto s famlias que esto chegando, busca de alimentao (nesse caso a cesta bsica), alm de acompanhamento aos momentos de vistoria na rea. Conforme relato, o militante quem est frente de tudo e um

    5 Informao da Superintendncia Regional de Marab (SR27 E), no dia 18 de abril de 2009.

    6 De acordo com publicao no Dirio Oficial da Unio- da desapropriao da rea, do dia 19 de dezembro de 2008.

    7 No dia 19/12/2008- foi realizado um ato pblico no assentamento, momento simblico de entrega do Projeto de

    Assentamento com a presena de diversas autoridades: governadora do estado do Par, Ministro da Reforma Agrria, Superintendente do Incra, entre outras autoridades. Esse ato aconteceu no mesmo dia da publicao no Dirio Oficial da Unio do processo de criao do PA.

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    dos papis garantir o funcionamento da organicidade interna da rea, alm de proporcionar a unidade das famlias.

    A construo da organicidade interna do Assentamento 26 de Maro comea com a organizao dos grupos de famlias8. Alm da organizao desses grupos, tem tambm a organizao dos setores para desencadear as atividades especficas, tais como: sade, educao, produo, cultura, comunicao, entre outros. Trs setores so fortes no incio da organicidade no ento Acampamento 26 de Maro: sade, que vai tratar das questes imediatas, pertinentes a sade das famlias; educao- ao ocupar a terra feito um mapeamento de pessoas com o mnimo de escolaridade para contribuir de forma voluntria na escola construda pelas famlias, para atender crianas, jovens e adultos; e o setor de produo, este vai discutir e organizar os espaos de fazer a roa, entre outras atividades que requer em escolha e delimitao de rea, alm de organizar um calendrio de sadas das famlias para atividades externas com o objetivo de contribuir com a renda para permanncia na terra.

    No acampamento 26 de Maro, ento, continua o investimento na estrutura orgnica9. Inicialmente estruturou-se a partir de grupos de famlias, que serviram de referncia geogrfica para localizao dos barracos (como eles denominam). a partir da organizao dos grupos de famlias que foram escolhidos os representantes para fazerem parte da coordenao do assentamento, dos setores e coordenar as atividades dentro do acampamento. Ainda a partir da organizao dos grupos que se escolheram pessoas para fazer parte da direo estadual e coordenao estadual do movimento. Essas instncias fazem parte da organicidade do MST. So instncias de deliberao em torno das questes pertinentes luta pela reforma agrria. A discusso em torno da organicidade no MST constante, pois para o movimento ela que deve garantir a resistncia na luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo,

    O processo de construo da organicidade, atravs da construo orgnica do MST, envolve um conjunto de tarefas polticas e organizativas que precisam ser implementadas por toda militncia de nossa organizao para acumularmos foras.(MST-PA, 2005b, p.53)

    Nesse sentido, o 26 de Maro foi construindo sua organicidade interna a partir da proposta do movimento, que inicialmente comea com a organizao dos grupos de famlias, alm do grupo de militantes da rea. Novas discusses surgiram com a organizao dos

    8 As famlias acampadas foram organizadas por grupos, os grupos comportavam 50, 60 e at 70 famlias. No existia um

    nmero exato. No acampamento, a entrada e sada de famlias eram constantes. 9 Termo adotado pelo MST, ao referir-se estrutura organizativa nos acampamentos e assentamentos. Orgnica, porque as

    pessoas inseridas nessa estrutura passam a desenvolver atividades do movimento.

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    ncleos de base e brigadas. A partir das discusses do MST em nvel nacional sobre a implantao de ncleo de base nas reas de acampamentos e assentamentos as famlias se reorganizaram, passando de grupos de famlias (que agrupavam entre 50 e 70 famlias) para ncleo de base (agrupa em torno de 10 famlias). Nesse processo de organizao, principalmente no momento de indicao dos coordenadores do assentamento que so escolhidos no ncleo de base, um dos limites presentes a questo do letramento, pois muitos coordenadores tm dificuldade na escrita e na leitura, uma vez que existe a exigncia de fazerem as anotaes durante as reunies, como afirma um assentado:

    Se o cara escreve, o cara acaba anotando pelo menos 90% das informaes e facilita. Tm outros que no tem habilidade para escrita, tem uns que nem sabe assinar o nome, querendo ou no a gente tem dificuldade muito grande, isso no de agora desde a poca da formao de coordenao do ncleo. A gente tem dificuldade muito grande de fazer circular as informaes de forma qualificada dentro da comunidade. Primeiro que as pessoas acabam em funo da dificuldade que tem e no procura uma forma de estudar, porque a escola existe dentro do assentamento. Se as pessoas se doassem pra estudar, pra correr atrs, com certeza teria outro nvel de debate, de coordenao dentro do assentamento. um pouco nesse sentido. (Ariosvaldo Andrade dos Santos-Ari, 29 anos, entrevista cedida em 02 de fevereiro de 2009).

    Nesse sentido, a dificuldade da escrita est associada circulao de informaes e garantia da pauta de debate nas reunies da coordenao e reunies nos ncleos, pois o coordenador responsvel por tal tarefa, ou seja, participar da reunio da coordenao e garantir o debate nas reunies dentro do seu ncleo. No assentamento vrias propostas foram discutidas na coordenao com o objetivo de alfabetizar os coordenadores: a) freqentar a escola na turma de Educao de Jovens e Adultos (EJA); b) formar turmas especficas de coordenadores e por ltimo; c) cada educador adotar um coordenador para alfabetiz-lo. Mas, as propostas no tiveram xito.

    Esse debate em torno do letramento na coordenao surge tambm no momento de organizar as brigadas, pois alguns critrios foram apresentados para que se realizasse a escolha das pessoas para comporem as brigadas: a) saber ler; b) ter disponibilidade para estudar; c) insero orgnica e poltica na organizao. Diante desses critrios, os limites foram destacados, principalmente frente a essa questo do letramento, pois ainda uma dificuldade para algumas pessoas que se dispem a participar, mas no se enquadram nesses critrios, ficando ento fora da instncia ou da coordenao. Mesmo diante dos critrios, muitos que fazem parte da coordenao ainda apresentam dificuldade na leitura e na escrita.

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    Mesmo diante dos limites na organizao da estrutura interna do assentamento, o esforo voltado para a construo de uma organicidade interna que garanta os princpios e objetivos do MST, principalmente voltados para o acmulo de foras. imprescindvel refletir ento sobre os objetivos que esto implcitos nesse processo, pois nem sempre os objetivos do movimento so os objetivos das pessoas envolvidas, principalmente numa rea que vive o processo de transio de acampamento para assentamento. Nesse processo esto em jogo os objetivos do movimento, das famlias e dos representantes dos rgos pblicos que comeam a intervir no momento de estruturao da rea. Nesse caminho de acmulo de foras pode acontecer o encontro dos objetivos, principalmente das famlias e do movimento, a partir de seus princpios, o que pode ser definido como pertena ao movimento, quando os objetivos so comuns. a partir dos objetivos e princpios que norteiam a discusso de organicidade, que o Assentamento 26 de Maro, atravs do coletivo de militantes, vem organizando as famlias, levando em considerao a intencionalidade do movimento, uma vez que o propsito era conquistar a rea e estruturar o assentamento na linha orgnica do MST. Esse trabalho vem sendo intensificado a partir da organizao dos ncleos de base. O Assentamento 26 de Maro atualmente tem 206 famlias, 21 ncleos de base e 06 ncleos de moradia. O movimento considera o ncleo de base a raiz da organizao, pois se considera que onde no h raiz, a rvore no se desenvolve, no floresce, portanto no produz frutos (MST/PA, 2005c, p.08). As brigadas que foram discutidas a partir da organizao dos ncleos de base no esto funcionando. Os setores esto em fase de reestruturao: educao, produo, sade, cultura e comunicao. O quadro de militantes est se reestruturando a partir da nova lgica de organizao dos ncleos de moradia. Alm dessa estrutura, existem dois dirigentes (um homem e uma mulher) assentados que fazem parte da direo estadual do MST e so responsveis pelo acompanhamento poltico do assentamento. Esses dirigentes tm um papel a ser desenvolvido na rea, como vemos no depoimento a seguir:

    [...]a gente tem sentido a ausncia deles (os dois dirigentes que representam os assentados na direo estadual do MST), isso tambm faz com que os coordenadores no tenham assunto, no tenham novidade pra se discutir com as famlias, ento no cumprindo esse planejamento da coordenao estadual, da direo estadual isso tambm influi dentro dos ncleos de moradia (Francisco Uires Souza, 34 anos, assentado do 26 de Maro e participa do quadro de militante. Entrevista cedida em 26 de novembro de 2008)

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    Esse papel de dirigente no se limita ao ncleo de base, pois tambm influencia no ncleo de moradia. Mas, observa-se tambm que cria certa dependncia na circulao das informaes, pois as famlias devido dificuldade de acesso aos meios de comunicao esperam a ao dos dirigentes estaduais. Se a organizao interna no criar foras suficientes frente s discusses e tomada de deciso pode criar dependncia junto ao quadro de militantes e por sua vez aos dirigentes estaduais.

    Pensar a construo da organicidade pensar todo processo e quem est envolvido no seu desenvolvimento. analisar a proposta do movimento, o envolvimento das famlias, dos militantes e dirigentes que so responsveis para acompanhar essa construo. analisar os conflitos, as tenses, compreender os limites e possibilidades da idia de organizao. pensar a especificidade do assentamento. Pensar as transformaes nas formas de organizao, a partir das necessidades, vinculando as formas histricas do movimento. Pois para o movimento avanar na organicidade investir na formao. Essa formao implica estudos, seja de cunho informal ou formal.

    Assim, essa pesquisa se prope a partir de uma base emprica, um olhar de militante sobre a prtica militante, atravs da anlise de documentos de estudos do Movimento, de dilogos com as famlias assentadas, analisar a construo da organicidade do Assentamento 26 de Maro como meio para pensar a construo da organicidade no MST, das prticas das famlias assentadas, acampadas, dos dirigentes, militantes e tcnicos que esto envolvidos no processo, relevando os pressupostos, questes e objetivos j colocados inicialmente. O desenvolvimento da pesquisa segue os caminhos de minha10 participao enquanto militante do MST, em certos momentos dificultando o processo de trabalho de campo, mas em outros facilitando. Senti certa dificuldade no momento da realizao das entrevistas, pois gerou um sentimento de timidez nas falas. Por outro lado participei de todos os espaos internos, reunies da coordenao, reunio com militantes e reunio da direo estadual, espaos esses que outra pessoa sem vnculo orgnico11 ao movimento teria mais dificuldade em acessar. Para Mills (apud OLIVEIRA, 1998, p.19), os pensadores admirveis no separam seu trabalho de suas vidas. Encaram ambos demasiado a srio para permitir tal dissociao, e desejam usar cada uma dessas coisas para o enriquecimento da outra. Para Oliveira (1998) a relao entre biografia e pesquisa atribui vida ao estudo e contribui para a representao social da Universidade. Mas, o autor chama ateno que importante nesse processo no cair na reproduo da mesmice diante das situaes complexas e diversas.

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    O uso minha por se tratar da experincia pessoal no coletivo do movimento. 11

    No sentido de participar das atividades internas do movimento.

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    Cuidados so fundamentais, a experincia vivida pode gerar alma pesquisa, mas por outro lado pode ceder s verdades cristalizadas, a frmulas vulgares e esquemas reducionistas. Nesse sentido, que os cuidados devem ser redobrados no processo de construo da pesquisa. O sentimento de pertena no deve impedir um olhar militante analtico, criando possibilidades reflexivas de uma prtica que no esttica, que pode gerar diversos caminhos outros. Encarar uma pertena que pode gerar elementos que contribuam na reflexo sobre organicidade na caminhada do MST.

    Nessa perspectiva, para realizao desta dissertao, em que o objeto de estudo foi definido a partir da necessidade pessoal e tambm do movimento, foram organizados os passos para concretizao do trabalho de campo:

    1. Primeiro momento- aconteceu a apresentao da proposta do estudo junto coordenao do Assentamento;

    2. Participao nas reunies da coordenao; 3. Participao em algumas reunies de Ncleo de Base; 4. Participao nas reunies do grupo de militantes e reunies da direo estadual; 5. Visitas a algumas famlias em momentos de plantio, limpeza de rea e produo de

    farinha;

    6. Realizao das entrevistas com coordenadores, militantes, dirigentes e membros de ncleo de base.

    A partir dos objetivos propostos, algumas pessoas foram selecionadas para o processo de entrevista, sendo: 06 coordenadores de ncleos de base; 02 ex-coordenadores de ncleo de base; 01 ex-coordenadora de ncleo de base; 02 componentes de ncleo de base (01 que est no mesmo ncleo desde o incio do acampamento e outro que o ncleo de base se desfez); 07 militantes assentados que so tambm nucleados(dirigentes estaduais e de setores); 01 dirigente nacional. Desses: 07 so mulheres e 12 homens. Das dezoito pessoas entrevistadas, dezessete so assentadas no 26 de Maro e esto na rea desde a ocupao.

    Como instrumento de pesquisa foi realizado entrevista semi-estruturada. Ao tratar de entrevista, compartilho com a idia de Bourdieu(1999) que fundamental na relao de comunicao em uma pesquisa prender-se aos problemas inseparavelmente prticos e tericos, ou seja, o que vai sendo construdo a partir da interao pesquisador/pesquisado. Essa relao social, de acordo com Bourdieu (1999), provavelmente exerce efeitos sobre os resultados obtidos. Ainda na sua anlise em relao pesquisa, o autor destaca que a interrogao cientifica exclui a inteno de exercer qualquer forma de violncia simblica, mas capaz de afetar respostas.

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    Para Menezes et al ( 2004), a interao pesquisador e informante permeada por poder, mas pode tambm constituir-se em um espao de negociao de identidades, saberes e concepes, valorizando a experincia de vida dos sujeitos da pesquisa.

    Foi nessa perspectiva que desenvolvemos o trabalho de campo, de forma interativa com as famlias do Assentamento 26 de Maro. A observao direta foi um recurso explorado na tentativa de buscar nexos invisveis ao observador superficial e a recomposio da realidade. O trabalho de investigao deve ser feito quantas vezes for necessrio, com idas e voltas constantes, de acordo com as necessidades de desenvolvimento do trabalho (MALAGODI, 1993).

    Sem nenhuma pretenso de enquadramento, mas com intuito de desenvolver a dissertao com a contribuio de reflexes tericas que sirvam de embasamento para melhor compreenso do estudo aqui proposto, alguns conceitos podero ajudar no tecer dessa pesquisa. Ao discutir a organicidade a partir das prticas sociais, recorremos teoria da estruturao de Giddens (2003), a partir da reflexo em torno da dualidade de estrutura nas prticas sociais como elementos estruturais dentro de um sistema social, que compreende as atividades e relaes entre atores, organizadas como prticas sociais e reproduzidas atravs do tempo e do espao. Prticas essas que so internalizadas, mas criadas e recriadas pelos atores sociais e que passa por uma reflexividade.

    Como explica Giddens (2003, p.03):

    A continuidade de prticas presume reflexividade, mas esta, por sua vez, s possvel devido continuidade de prticas que as tornam nitidamente as mesmas atravs do espao e do tempo. Logo, a reflexividade deve ser entendida no meramente como autoconscincia, mas como o carter monitorado do fluxo contnuo da vida social. Ser um ser humano ser um agente intencional, que tem razes para suas atividades e tambm est apto, se solicitado, a elaborar discursivamente essas razes (inclusive mentindo a respeito delas).

    Ao tratar da ao intencional, Giddens (2003) revela que no se trata de uma composio de intenes, razes e motivos isolados, por conseguinte falar de reflexividade implica em pensar na monitorao contnua da ao dos seres humanos. Nesse sentido, a ao dos atores e a estrutura se pressupem mutuamente. Assim, os atores envolvidos nas prticas sociais so ativos, ou seja, vivenciam um conhecimento a partir do seu cotidiano. Ainda na perspectiva do aporte terico, como contribuio reflexiva partiremos tambm da compreenso de Bourdieu (2001a), quando em sua teoria define a participao dos agentes e grupos a partir da posio em que assumem no espao. A influncia dos diferentes

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    tipos de capitais (econmico, cultural, social, simblico) nas aes dos grupos, alm dos princpios que so dominados pelos habitus.

    Nessa perspectiva, o indivduo situado pelo espao social de forma que pode compreend-lo e tambm agir sobre ele. Com a noo de habitus, Bourdieu(2001a) descarta a posio nas cincias sociais que ope indivduo e sociedade. Assim, no s o indivduo situado em um universo social particular, mas o universo social inscrito nele. Cabe salientar que a sociologia da ao de Bourdieu constri uma interpretao das razes prticas, as quais, do seu ponto de vista, so mais freqentes na vida social: as que incorporadas socialmente permitem aos agentes agir segundo o senso do jogo, ou seja, agir no espao social de acordo com as regras do jogo social. Bourdieu (2001a) explica que nesse jogo os agentes detentores de capitais determinantes em dado campo terminam impondo-se nos grupos, o que pode legitimar determinada viso de mundo.

    Para Bourdieu(2001a), o poder simblico , com efeito, esse poder invisvel o qual s pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que no querem saber que lhe esto sujeitos ou mesmo que o exercem. Considera como um poder quase mgico, quando permite obter o equivalente ao que obtido pela fora (fsica ou econmica), graas ao efeito especfico de mobilizao, s se exerce se for reconhecido, quer dizer ignorado como arbitrrio. Todo poder simblico capaz de se impor como legtimo, dissimulando a fora que h em seu fundamento e s se exerce se for reconhecido.

    O poder simblico para Bourdieu (2001a) um poder de construo da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseolgica: o sentido imediato do mundo ( e em particular do mundo social). Os smbolos so instrumentos de integrao social, mas enquanto instrumentos de comunicao. So eles que contribuem fundamentalmente para a reproduo da ordem social. Na sua anlise, enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicao e de conhecimento que os sistemas simblicos cumprem a sua funo poltica de instrumentos de imposio ou de legitimao da dominao, que contribuem para assegurar a dominao de uma classe sobre a outra (violncia simblica).

    com o propsito de evitar qualquer tipo de violncia que a pesquisa foi construda. Encarar essa tarefa foi um processo difcil, um grande desafio, mas procurei seguir como pesquisadora artes pertinaz, como diz Oliveira (1998), ser paciente, atenta, sensvel, zeladora do consrcio entre teoria e prtica, mas atenta s intenes na construo desse trabalho que parte integrante de uma vivncia. A saber a construo de conhecimento a partir de representao mental do concreto e no da reproduo, a partir de apreenses da realidade em questo.

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    A dissertao segue estruturada em 03 captulos. O primeiro captulo- intitulado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: da necessidade da participao e organizao, tem como objetivo promover uma reflexo sobre as mudanas discursivas que influenciam e pautam as aes da sociedade civil no Brasil, enfatizando a emergncia de conceitos tais como participao e capital social, vinculada a uma anlise das transformaes pelas quais tm passado os movimentos sociais no pas, alm da discusso sobre constituio de assentamentos e organicidade no MST. O segundo captulo- Do polgono dos castanhais ao Assentamento 26 de Maro, visa traar um contexto da luta pela terra na regio sudeste do Par, enfatizando as semelhanas que surgem no trajeto da luta e caminhos que se diferenciam. O terceiro captulo- Do acampamento ao assentamento: construindo a organicidade do 26 de Maro, visa refletir a partir das entrevistas realizadas junto s famlias atravs de caminhadas pelas trilhas do assentamento, reunies em ncleos de base, reunies da coordenao, entre outros espaos de convivncia com os atores sociais da rea de pesquisa. A inteno deste captulo realizar uma reflexo sobre a organicidade, levando em considerao os elementos gerais propostos pelo MST, mas principalmente os especficos do assentamento a partir das prticas sociais das famlias que ali residem. Por ltimo as consideraes que surgiram no percorrer dessa dissertao, trazendo alguns elementos como forma de contribuio na organicidade no s do assentamento, bem como de outros espaos do MST que surgem cotidianamente.

  • CAPTULO I

    MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA12: DA NECESSIDADE DA PARTICIPAO E ORGANIZAO

    A organizao a chave que permite agarrar as iniciativas do povo e transform-las em ao.

    Che Guevara

    Compreender a construo da organicidade no MST requer situar o processo social especfico vivenciado pelas famlias de trabalhadores rurais sem terra, vinculados a um movimento social, a dinmicas sociais mais amplas, referidas tanto pelas trajetrias dos movimentos sociais na regio sudeste do Par, bem como pelas lutas sociais, no mbito nacional, e das inflexes que os discursos polticos e tericos tm sofrido ao longo dos ltimos 30 anos.

    Este captulo tem como objetivo promover uma reflexo sobre as mudanas discursivas que influenciam e pautam as aes da sociedade civil no Brasil, enfatizando a emergncia de conceitos, tais como participao e capital social, vinculada a uma anlise das transformaes das quais tm passado os movimentos sociais no pas. O propsito dessa reflexo de compreender como a questo da organicidade, no mbito do MST, tem sido construda em dilogo com essas transformaes. No se trata, porm, de acreditar que essas mudanas moldam o MST, que esse dilogo tem sido travado de modo consciente ou deliberado. Em muitos aspectos, ao contrrio, h um esforo, entre os militantes do movimento, de definir suas diferenas em relao a outras formas de organizao da sociedade civil. Por outro lado, no se pode tambm acreditar que as prticas no mbito do MST estejam imunes a essas transformaes.

    1.1. Inflexes discursivas: os conceitos articulados pelas instncias polticas e tericas sobre as noes de participao e capital e social

    A questo da organizao tem sido enfatizada, nas ltimas dcadas, como elemento que facilita, fortalece e/ou garante o sucesso nos processos de desenvolvimento social. Discurso que tem sido particularmente forte quando referido s populaes pobres das reas rurais. Esse debate ganhou espao tanto no mbito acadmico, quanto nos movimentos

    12

    Para conhecer a gnese e territorializao do MST ver FERNANDES, 1999.

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    sociais, canalizando vieses diferenciados. Dois conceitos que expressam essas tendncias so as noes de participao e capital social.

    Um intenso debate foi travado no mbito acadmico com o objetivo de avaliar a implantao de grandes projetos em reas rurais, demonstrando a importncia da participao dos atores sociais, ou beneficirios dos projetos, como protagonistas sociais. Cernea, um dos autores mais influentes e pioneiros nesse campo, em sua obra Primeiro La gente, logo na introduo, ao tratar da meta dos conhecimentos sociais, diz que tais conhecimentos implicam em: Lograr la participacin activa de los beneficiarios si es que queremos proyectos exitosos y eficaces. (CERNEA, 1985, p.18). E continua:

    El hecho de no contar co la colaboracin de las personas a quienes se dirigen los proyectos implica la posibilidad de que haya desviaciones y fracasos. Es necesario invertir en la gente para que sta tome conciencia de los proyectos y se aproprie de las recomendaciones tcnicas a fin de que sea ella la que impulse el cambio social y le d direccin al desarrollo. (CERNEA, 1985, p.18).

    Nessa perspectiva, a participao aparece como varivel fundamental para o sucesso dos projetos de desenvolvimento rural. Orientao adotada pelo Banco Mundial, pelo menos em termos discursivos, sintetizados na expresso Primeiro La gente, Primeiro as pessoas. Expressa uma nova nfase dada pela crtica dos modelos de modernizao econmica e dos resultados pouco animadores da reduo da pobreza e da desigualdade, nos pases em desenvolvimento. Primeiro as pessoas significa, na verdade, uma reorientao nas formas de ao para o desenvolvimento, enfatizando, atravs da idia da participao, a importncia do que se tem chamado de organizao dos grupos sociais. Nesse sentido, a participao, atravs da organizao, quem vai garantir a elevao do nvel de vida das famlias camponesas, como demonstra a seguir:

    La participacin debe ser la base fundamental de los proyectos de desarrollo rural, pues los enfoques que no la incluyen, supuestamente destinados a cambiar y elevar los niveles de vida de los campesinos e indgenas del mundo, han llenado las zonas rurales de una arqueologia de resduos modernos. (CERNEA, 1985, p. 23)

    Fica evidente, em anlises explcitas na obra, que a garantia do sucesso e avano dos projetos de desenvolvimento dependem do envolvimento direto dos beneficirios, de modo que se possa evitar a ingerncia de interesses externos ao projeto e a dependncia, proporcionando a orientao sobre a burocracia responsvel pelo desenvolvimento.

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    Outros estudos foram desenvolvidos colocando em pauta a necessidade da participao e, ao mesmo tempo, problematizando a noo de capital social. A pesquisa empreendida por Higgins, desenvolvida como mais que uma curiosidade bibliogrfica, leva problematizao do conceito de capital social, numa experincia de trabalho num projeto de alcance regional, na Colmbia, financiado pelo Banco Mundial, e executada em parceria com vrias organizaes da sociedade civil, entre os anos de 1997 e 2000 (BOEIRA & BORBA, 2006). O tema recorrente nos debates era saber se a proposta de fortalecer as redes sociais, formadas por organizaes comunitrias, "tinha como meta faz-las ganhar em eficincia econmica, ou se tambm deveria apontar, de forma clara, a melhoria da participao cidad para o controle poltico das instituies pblicas locais" (BOEIRA & BORBA, 2006, p. 27).

    So vrios os estudos e pesquisas sobre capital social realizadas por estudiosos economistas, socilogos e cientistas polticos, que verificaram comunidades e/ou grupos que conseguiram melhores condies de vidas, em suas regies, em funo do capital social. Partindo desse conceito vrias questes so levantadas, principalmente em funo do desenvolvimento de determinados grupos, enquanto outros no conseguem vencer ou superar os problemas e tambm atingir o mesmo nvel de desenvolvimento, que a princpio seria semelhante. As pesquisas desenvolvidas, nesse mbito, costumam deter-se na estrutura formal dos laos ou relaes que formam uma rede social, e at no contedo desses laos. Atravs das relaes nos grupos e demais espaos que se explicam, ento, as motivaes e as habilidades que so necessrias para a formao do capital social.

    A nfase nas relaes a serem construdas e (re) construdas pela organicidade no MST, a partir de reflexes de sua organizao interna, de participao dos atores sociais nos diversos espaos, tais como ncleo de base, ncleo de moradia, setores, brigadas, coordenao estadual e direo estadual; relaes que vo gerando conexes, laos de afinidades, confiabilidade, entre outros, so muito prximos ao conceito de capital social.

    O conceito de capital social no se apresenta de forma nica, mas sim heterognea, com base nos seguintes preceitos: i) participao em organizao social; ii) atitudes cvicas; iii) cooperao e sentido de confiana entre os membros. Cunha (2002) sinaliza duas vertentes principais sobre a teoria do capital social, surgidas na dcada de 1980: i) uma associada ao socilogo francs Pierre Bourdieu, sendo o capital social analisado como uma habilidade individual para acessar recursos coletivos; ii) a outra vertente, desenvolvida pelo socilogo James Coleman e pelo cientista poltico Robert Putnam.

    Partimos, ento, da compreenso de anlise de Bourdieu, citado por Cunha (2002), o qual assinala capital social como conexes. Por sua vez, segue destacando que so as

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    relaes sociais, que vo sendo construdas e acumuladas, que formam o capital que ajuda a definir, de modo continuado ou duradouro, as chances de um indivduo qualquer navegar na sociedade. BOURDIEU (apud CUNHA, 2002, p. 152), em sua definio sobre capital social, conceitua como:

    Um conjunto de recursos atuais ou potenciais que esto vinculados a um grupo, constitudos por um conjunto de agentes que no s so dotados de propriedades comuns, mas tambm so unidos por relaes permanentes e teis.

    Para o autor, o volume desse capital que ns possumos, envolvendo o econmico, o cultural e o simblico, vai depender das suas relaes, aonde cada membro do grupo que vai desenvolver e, ao mesmo tempo, adquiri-lo.

    A partir do volume de capital os agentes vo assumindo seus espaos, que so diferenciados. Diante da teoria de espao social, Bourdieu (2001a) afirma que na relao de fora que a posio de determinado agente vai ser definida pela posio que ele ocupa nos diferentes campos, ou seja, na distribuio de poderes que atuam em cada um deles, muitas vezes influenciado pelo capital econmico. Para o autor, mesmo havendo distino entre os capitais, o capital social no completamente independente do capital econmico e cultural do indivduo, ou mesmo do grupo. Ainda que o capital econmico seja a fonte de outras formas de capital, o capital social tende a se transformar em capital econmico, ou at em capital cultural. Bourdieu (2001a) considera a participao dos indivduos em grupos como meio de apropriar-se de benefcios, seja de cunho material, seja simblico, que por sua vez gera a reproduo do capital social, necessrio para a durabilidade das redes e relaes sociais.

    Apesar da vasta utilizao da teoria de Bourdieu no campo das cincias sociais, pela vertente formulada por James Coleman, no final da dcada de 1980, que a teoria de capital social ganha maior expresso. Essa teoria tambm ganha expressividade atravs do trabalho do terico Robert Putnam, quando lana sua obra Comunidade e Democracia (1993). Para Cunha (2002, p. 152) nessa vertente do capital social est associado com o sentimento cvico e comunitrio ou com a solidariedade numa sociedade de indivduos motivados pela escolha racional. Na compreenso de Cunha (2002), em Putnam a idia central do capital social que as redes sociais tm valor. Contatos sociais afetam a produtividade de indivduos e grupos. Entende, tambm, que as organizaes sociais favorecem laos sociais de confiana, que por sua vez ampliam o processo de cooperao.

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    Nas anlises tericas observamos a apropriao do conceito de capital social por parte das instituies governamentais, com o intuito principal de construir indicadores, a partir do processo de participao dos atores sociais, podendo gerar desenvolvimento nas comunidades por meio das polticas pblicas que so implementadas, diante da proposta de desenvolvimento territorial. Existem programas governamentais que acreditam no acmulo de capital social como fundamental no processo de desenvolvimento em regies pobres, como assinala a passagem de um documento da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) ligada ao Ministrio de Desenvolvimento Agrrio (MDA), que tem como misso apoiar a organizao e o fortalecimento institucional dos atores sociais locais na gesto participativa do desenvolvimento sustentvel dos territrios rurais e promover a implementao e integrao de polticas pblicas13 . Em seus documentos de estudo e avaliao das polticas pblicas, elaborados para uso interno14 da Secretaria, considera:

    O capital social vem sendo compreendido como um fator endgeno s comunidades e grupos sociais, que pode ser fortalecido e desenvolvido, assumindo caractersticas de elemento fundamental em processos de desenvolvimento sustentvel em regies de manifesta desigualdade. Regies que apresentam baixos indicadores de desenvolvimento freqentemente so tambm regies cujo capital social pouco desenvolvido ou pouco empregado em aes de expressivo valor para a soluo de problemas de interesse pblico. Inversamente, regies dinmicas e realizadoras demonstram uma maior capacidade de mobilizao, organizao e participao, favorecendo iniciativas coletivas que dependem em grande medida, da coeso social, solidariedade e confiana dentre os que delas participam. (DUNCAN, 2005).

    Tratando-se de programa de desenvolvimento, a preocupao primeira que as relaes atravs de redes, por meio da organizao e participao, possam gerar o desenvolvimento econmico, independente do controle social em torno dos programas. Parte-se do pressuposto de que, uma vez fortalecida a organizao e a participao dos atores sociais, possvel gerar o desenvolvimento sustentvel, e por meio de sua participao gerar o acmulo de capital social. Nesse sentido, HIGGINS (apud VIEIRA, 2008) chama ateno sobre o uso do conceito de capital social, pois para ele tal conceito teria permitido s agncias multilaterais compreender como o no-econmico, o no-mercado, faz trabalhar

    13

    Assim encontra-se a definio no portal do MDA/SDT - http://www.mda.gov.br/sdt/ (acesso dia 13 de abril de 2009) 14

    Documento intitulado: CAPITAL SOCIAL. UM ATIVO PARA O EMPODERAMENTO? (Sumrio preparado para uso interno da SDT), elaborado por DUCAN, 2005. Mesmo definido como de uso interno, o texto encontra-se disponvel na internet.

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    melhor o econmico, ou seja, possibilitar a produo de um novo consenso mais seletivo a respeito de onde e como direcionar o rol dos fatores no-econmicos no desempenho econmico HIGGINS (apud VIEIRA, 2008, p. 182). O autor considera que essa anlise permite entender a aproximao recente do Banco Mundial com os setores no politizados da sociedade civil.

    Contudo, no pretenso trazer essas discusses, nem mesmo as diversas anlises em torno do capital social, mas sim referir o contexto em que emerge a necessidade da participao e organizao no MST. O princpio de que atravs das relaes possvel o acumular, no s bens materiais como bens imateriais. Ressalta-se que as temticas da participao e da organizao no surgem naturalmente, mas integram o contexto, esto imbricadas na realidade do movimento e das famlias sem terra. Esse o contexto social no qual o MST articula sua viso de organicidade.

    1.2. As transformaes nos movimentos sociais no Brasil

    O debate sobre a participao, organizao e a noo de capital social envolve tambm as aes dos movimentos sociais que, pelas suas trajetrias de lutas, vo realizando as transformaes que consideram necessrias. Nesse sentido, fundamental trazer alguns pontos relevantes, j estudados anteriormente, de forma que possam contribuir com as reflexes sobre a construo da organicidade no MST, foco central deste trabalho, partindo da compreenso terica sobre os movimentos sociais, uma vez que tratamos de um movimento que se insere no contexto da luta social no pas.

    Os estudos sobre os movimentos sociais, para Gohn (1997a), comeam a ganhar espao e densidade, em vrias regies acadmicas do mundo ocidental, a partir dos anos 1960, em funo da visibilidade dos movimentos na sociedade, aparecendo como fenmeno histrico-concreto. J no espao da discusso terica em torno do social, teorias sobre aes coletivas ganham novo vis, ampliando o seu universo e construindo uma nova teoria sobre a sociedade civil (GOHN, 1997a). Em sua obra Teoria dos Movimentos Sociais, a autora analisa tal temtica pelos diversos paradigmas de cunho europeu e latino-americano, dedicando-se a anlises de vrios autores sobre a questo dos movimentos sociais.

    Diante das diversas teorias desenvolvidas sobre os movimentos sociais, Gohn (1997a) revela que estudiosos alertam que ainda existem lacunas na produo acadmica, uma vez que os movimentos transitam, circulam, e se desenvolvem em espaos no consolidados, de estruturas e organizaes sociais. Muitas vezes, questionam as estruturas e propem novas

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    formas de organizao sociedade poltica, mas, a partir da sua mobilidade, das suas aes, que o movimento vai definindo sua dinmica de atuao.

    Ao tratar das aes dos movimentos, Gohn (1995) define essas aes como coletiva e de carter sociopoltico, construdas por atores sociais pertencentes a diferentes classes sociais e camadas sociais (GOHN, 1995, p. 44). Para a autora, so as aes que: i) vo politizar as demandas e criar um campo poltico de fora social; ii) estruturam-se pelos repertrios criados sobre temas e problemas em situaes de conflitos, litgios e disputas; iii) desenvolvem um processo social e poltico-cultural, e por sua vez criam uma identidade coletiva ao movimento. A identidade construda pelos valores culturais e polticos, compartilhados pelo grupo.

    As anlises sobre as aes dos movimentos sociais partem da classificao e definio como velhos movimentos sociais (do perodo que antecede a dcada de 70), e novos movimentos sociais (meados da dcada de 70 e incio de 80). Scherer-Warren (1993) faz essa distino alertando que no apenas uma questo temporal, j que, em suas apreciaes, discute o que h de novo nos movimentos sociais. na diversidade das concepes sobre os movimentos sociais que surgem vrios estudos, por meio de diversos paradigmas. Gohn (1997a) alerta para a no existncia de um nico conceito sobre movimentos sociais, mas vrios, os quais variam de acordo com as categorias envolvidas. Vale ressaltar que, nesses estudos tericos, a Igreja aparece como um forte elemento de anlises por desempenhar um significativo papel atravs de sua atuao junto aos movimentos que foram surgindo no Brasil.

    1.2.1. O papel da igreja nos movimentos sociais

    Os movimentos ditos tradicionais, ou melhor, movimentos populares, das dcadas de 70 e 80, se configuram no cenrio nacional pela forte influncia da igreja catlica, principalmente atravs das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a partir de pressupostos da Teologia da Libertao. Cunha (2002) observa que:

    A Teologia da Libertao partia de uma necessidade poltica: construir uma sociedade justa e fraterna, onde os homens possam viver com dignidade e ser agentes de seu prprio destino, especialmente nos pases subdesenvolvidos e oprimidos. (CUNHA, 2002, p. 159).

    Em face desses preceitos, a igreja passa a atuar e contribuir na luta que se configura por meio dos movimentos populares, principalmente dos trabalhadores que lutavam por um

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    novo sindicalismo, independente do Estado. Uma das formas de atuao da igreja pelas CEBs, que se apresentavam como alternativa de mobilizao popular diante da represso aos movimentos populares (CUNHA, 2002, p. 160), bem como o fortalecimento do MEB15, que tem como misso:

    Contribuir para promoo integral e humana de jovens e adultos, atravs do desenvolvimento de programas de educao popular na perspectiva de formao das camadas populares para a cidadania, buscando trilhar os caminhos de superao da excluso social16.

    Nessa perspectiva, desde a dcada de 1960 a igreja j tinha a preocupao de desenvolver um trabalho de formao voltado para a incluso social, provocando a expanso de sua atuao em diversos espaos, inclusive contribuindo com a luta dos trabalhadores, seja da cidade ou do campo.

    Com intuito de ampliar suas bases de atuao, nasce na igreja a Comisso Pastoral da Terra (CPT)17 em junho de 1975, durante o Encontro de Pastoral da Amaznia, realizado em Goinia, por ocasio da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Essa influncia da Igreja tem continuidade na luta pelo pas, por meio da organizao e da participao dos trabalhadores e trabalhadoras, que por sua vez vo dando outra dinmica a partir das prticas sociais que vo sendo estabelecidas nesses espaos de debate e discusso.

    essencial destacar o papel da igreja, na dcada de 70, quando surge o MST. Alm de militantes e dirigentes que atuaram na igreja catlica, a metodologia de atuao do Movimento, atravs da formao, organizao das tticas de lutas e negociaes junto ao Estado, exigia um intenso trabalho de base, e os espaos de apoio para esse trabalho foram justamente os da igreja, como tambm de Sindicatos dos Trabalhadores Rurais.

    No entanto, por volta do fim dos anos de 1980 e incio da dcada de 1990 que os movimentos populares e dos trabalhadores comearam a entrar em declnio, perodo tambm de crise nas CEBs. Momento esse que comeam a surgir novos18 movimentos sociais (NMS) em que ocorrem alteraes no cenrio da participao social, principalmente nos anos 90: [...] O surgimento ou renascimento de novas lutas sociais, de carter cvico, como a tica

    15

    MEB um organismo vinculado a Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, constitudo como sociedade civil, de direito privado, sem fins lucrativos, com sede e foro no Distrito Federal. Foi fundado em 21 de maro de 1961. http://www.meb.org.br/meb.- acesso no dia 12/03/2009. 16

    http://www.meb.org.br/meb.- acesso no dia 12/03/2009 17

    Inicialmente a CPT desenvolveu junto aos trabalhadores e trabalhadoras da terra um servio pastoral. Na definio de Ivo Poletto, que foi o primeiro secretrio da entidade, "os verdadeiros pais e mes da CPT so os pees, os posseiros, os ndios, os migrantes, as mulheres e homens que lutam pela sua liberdade e dignidade numa terra livre da dominao da propriedade capitalista". http://www.cptnac.com.br- acesso no dia 12/03/2009. 18

    O prprio Melucci afirma que o o novo nos Novos Movimentos Sociais ainda uma questo aberta (GOHN, 1997, p. 124).

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    na Poltica, a Ao pela Cidadania Contra a Fome, ou os Movimentos de Apoio aos Menores de Rua (GOHN, 1997, p. 11). As novas formas de organizao e participao remetem as aes ligadas identidade humana. Nessas transformaes que vo se dando no mbito de movimento social, o MST tambm vai construindo sua forma de atuao, e conquistando sua independncia como movimento de massa.

    1.2.2. Consideraes sobre os novos movimentos sociais (NMS)

    Estudos sobre o paradigma dos novos movimentos sociais trazem suas reflexes situando-os no campo da emancipao social, ou seja, a partir da insero dos indivduos de forma participativa e democrtica, situam-se pela identidade coletiva da autonomia, bem como da sociabilidade poltica e cultural.

    Como caractersticas gerais dos NMS, Gohn (1997a) define: 1) construo de um modelo terico baseado na cultura. Os tericos dos NMS negaram a viso funcionalista da cultura como um conjunto fixo e predeterminado de normas e valores herdados do passado; 2) negao do marxismo como campo terico capaz de dar conta da explicao da ao dos indivduos e, por conseguinte, da ao coletiva da sociedade contempornea, tal como efetivamente ocorre; 3) elimina o sujeito histrico redutor da humanidade, predeterminado, configurado pelas contradies do capitalismo e formado pela conscincia autntica de uma vanguarda partidria; 4) a poltica ganha centralidade na anlise, sendo totalmente redefinida; 5) os atores sociais so analisados pelos tericos dos NMS, prioritariamente, sob dois aspectos: por suas aes coletivas e pela identidade coletiva criada no processo. Para a autora, os movimentos no surgem espontaneamente. So organizaes existentes, atuando junto a bases sociais mobilizadas por problemas decorrentes de seus interesses cotidianos, ou como cidados consumidores, ou cidados usurios de bens e servios pblicos, que geram os movimentos sociais. Eles no existem a priori, tornam-se movimentos pelas aes prticas

    dos homens na histria. Organizao e conscincia sero fatores chaves para explicar o seu desenrolar. Ainda em suas anlises, os NMS se contrapem aos velhos movimentos pelas suas prticas e seus objetivos.

    Quanto aos movimentos do campo, Scherer-Warren (1993) destaca a diferena entre os velhos e os NMS, encontrada tanto na forma de suas organizaes, como no encaminhamento de suas lutas. A autora considera que os velhos movimentos, na sua organizao, tinham um vis clientelista e paternalista de fazer poltica, que se utilizavam de instrumentos da democracia representativa. Por outro lado, usavam recursos de violncia

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    fsica. Quanto s novas formas de organizao no campo, considera a valorizao da participao ampliada das bases e proporciona a democracia direta, descartando o centralismo, o autoritarismo e o uso de violncia fsica. Avalia como inovadora a luta pela ampliao da cidadania, perpassando pela busca de modificaes das relaes sociais cotidianas. Nos NMS do campo, o que h de novo a centralidade de uma luta por cidadania integral, expressando-se atravs da construo de uma nova sociedade (SCHERER-WARREN, 1993, p. 72).

    Considerando os elementos apresentados como forma de definir os NMS, e olhando para o MST, preciso observar como este surge, j que nasce com o conceito onde a luta de classe central, seu projeto de sociedade aparece de forma bastante clara [...] a identidade que est sendo construda [...] uma identidade de classe (RIBEIRO, 2004, p. 33). Do mesmo modo, afirma o dirigente nacional sobre definio do MST:

    O debate no MST o seguinte: somos um movimento de massas e temos que ter massa para fazer luta social. Mas a complexidade da luta de classes exige que a gente tenha uma organizao, uma organicidade de militantes que constri setores bem organizados [...]. na organizao de massas que se preza pela ideologia, pela doutrina, que se monta o esqueleto das massas [...]. As mudanas sociais no pas dependem de um arco muito plural de formas de organizao do povo [...].19 (grifo nosso)

    Assim, fica explcita a definio do MST como um movimento de massa onde a organizao e a organicidade so elementos fundamentais para o fortalecimento da luta, para as diversas formas de enfrentamento. Observa-se, ento, a importncia do papel dos militantes na construo dessa organicidade. Nesse sentido, pauta-se a discusso em torno da organicidade do movimento, buscando adequar militantes e dirigentes com o intuito de fortalecer a luta no campo. Permanece claro que a organicidade a centralidade no processo da luta, garantindo mudanas e transformaes sociais quando bem estruturada e organizada. Por outro lado, visvel perceber que as mudanas dependem da pluralidade das formas de organizao do povo. Porm, ainda embrionria essa relao entre os movimentos sociais, principalmente, entre campo e cidade. Existe uma distncia, considervel, quando se pauta a luta de classes e as transformaes necessrias dos movimentos. aonde aparece a construo da Via Campesina20, embora surja como algo que tem muito a se arquitetar diante das especificidades de cada movimento, partindo de suas pautas de luta. 19

    Trecho da entrevista com Joo Pedro Stdile ao Jornal Sem Terra, 30/01/2009 (http://www.mst.org.br/mst/jornal- acesso dia 08/03/2009). 20

    A Via Campesina um movimento internacional que coordena organizaes camponesas de pequenos e mdios agricultores, trabalhadores agrcolas, mulheres rurais e comunidades indgenas da sia, frica, Amrica e Europa. Est formada por organizaes nacionais e regionais cuja autonomia cuidadosamente respeitada. Est organizada em 08 regies:

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    Com seu carter de movimento de massa, o MST ganha, ento, visibilidade como um dos mais

    combativos e conflituosos, colocando novamente a questo da reforma agrria na ordem do dia [...] Mas, ao mesmo tempo que os movimentos rurais ampliaram e ganharam visibilidade, eles trouxeram luz uma teia de relaes que estava presente nas lutas no campo desde a dcada de 60 (GOHN, 1997b, p. 17).

    Todavia, essa luta tem sua preocupao com a organizao e a participao das famlias sem-terra, propondo-se a inserir-se em outro espao social, o campo, e construir as novas relaes e espaos sociais que surgem a partir das ocupaes de terras.

    1.3. A forma assentamento enquanto instrumento de luta

    A luta pela terra, que se desencadeou no Brasil, seguiu o modelo de constituio de assentamentos, os quais comearam a se expandir a partir das ocupaes promovidas pela atuao dos movimentos sociais do campo. A forma assentamento21 leva a uma necessidade, socialmente construda, de organizao das famlias sem-terra. A formao dos assentamentos ocorre de diversas maneiras, com variaes de expanso, nmero de famlia, e at a organizao do espao social. A criao do assentamento pressupe conflitos, de acordo com Sauer (2005, p. 59):

    A mobilizao e organizao sociais, o enfrentamento com os poderes polticos locais e nacionais, as disputas com o latifndio e com o Estado e os questionamentos das leis de propriedade caracterizam o que Bourdieu definiu como as lutas pelo poder de di-viso, as quais so capazes de estabelecer territrios, delimitar regies, criar fronteiras.

    Essa passagem caracteriza bem a constituio dos assentamentos de reforma agrria, uma vez que o governo buscou outros canais, outras formas de implantao de assentamentos e/ou aquisio de terras, como o programa Banco da Terra22, sem xito algum. As ocupaes

    Europa do Leste, Europa do Oeste, Nordeste e Sudeste da sia, Sul da sia, Amrica do Norte, Caribe, Amrica Central, Amrica do Sul e na frica. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Via_Campesina, acesso em 20/03/2009) 21

    Assentamento, enquanto substantivo compreende-se o conjunto de famlias de trabalhadores rurais vivendo e produzindo num determinado imvel rural, desapropriado ou adquirido pelo governo federal (no caso de aquisio, tambm, pelos governos estaduais) com o fim de cumprir as disposies constitucionais e legais relativas reforma agrria. A expresso assentamento utilizada para identificar no apenas uma rea de terra, no mbito dos processos de reforma agrria, destinada produo agropecuria e ou extrativista, mas tambm, um agregado heterogneo de grupos sociais constitudos por famlias de trabalhadores rurais (CARVALHO, 1999, p.08). 22

    Banco da Terra, criado atravs da Lei Complementar n93 de fevereiro de 1998, com a finalidade de financiar programas de reordenao fundiria e de assentamento rural. So beneficirios do Fundo: I - trabalhadores rurais no-proprietrios, preferencialmente os assalariados, parceiros, posseiros e arrendatrios, que comprovem, no mnimo, cinco anos de experincia na atividade agropecuria; II - agricultores proprietrios de imveis cuja rea no alcance a dimenso da propriedade familiar, assim definida no inciso II do art. 4 da Lei n 4.504, de 30 de novembro de 1964, e seja, comprovadamente, insuficiente para gerar renda capaz de lhe propiciar o

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    de terras continuaram, em todo territrio nacional, regadas de conflitos entre proprietrios de terra e sem-terra, provocando a criao de diversas reas de assentamentos, mesmo em processos tardios. A resistncia e permanncia das famlias prosseguem na luta pela desapropriao da terra.

    Os assentamentos so analisados de diferentes formas e concepes, perpassando vrios espaos de estudos e debates. Para Fernandes (2005), os assentamentos so territrios que se constituem em espaos polticos que variam de acordo com os movimentos camponeses e sua organizao socioterritorial. At mesmo as famlias independentes de vnculo organizacional mantm uma identificao com suas prprias polticas, ou seja, no necessria uma organizao formal para que se constituam as necessidades de um assentamento.

    Segundo Carvalho (1999), o processo de criao de um assentamento, apesar de se configurar como um ato administrativo formal, na maioria das vezes, fruto da luta dos trabalhadores do campo pela democratizao da terra. O autor considera que a complexidade de transio histrica dessa luta extrapola o ato administrativo da sua formalizao institucional, uma vez que atravessa o processo de acampamento para assentamento. Para tanto, acrescenta que nesse processo de transio comea a surgir uma nova organizao econmica, poltica, social e ambiental na rea. pela posse da terra que comea a existir uma diversidade social das famlias camponesas.

    Nesse processo de desapropriao, comea o procedimento de insero das famlias na propriedade privada, momento que os assentados passam a ter o domnio de seu lote. Comea tambm a desencadear todo um processo de implantao de infra-estrutura: construo das habitaes, escolas, postos de sade, estradas, enfim, os espaos pem-se a organizar-se. Mas, vale ressaltar que no acontece de forma automtica, exige um mtodo de organizao interna dos atores sociais. Como destaca Carvalho (1999), esse momento tambm de desenvolvimento de uma nova superestrutura poltica e ideolgica correspondente a nova organizao social: criao de associaes, cooperativas, grupos de trabalho, Ncleo de Base, entre outros, alm da instalao de espaos religiosos. Novas relaes sero estabelecidas junto ao poder pblico local, seja de carter formal, seja informal, em relaes com outros movimentos, sindicatos, prefeitura, Incra, entre outros. Essas relaes acontecero tanto internamente, quanto externamente. As pessoas estaro convivendo, se relacionando, em determinado espao fsico, precisando fazer dele um espao econmico, poltico, social e prprio sustento e o de sua famlia. Essa proposta de Banco da Terra foi criada para evitar a continuidade das ocupaes de terras, alm de proporcionar negociata direta com os latifundirios, instalando assim uma reforma agrria de mercado.

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    ambiental, aonde possam reproduzir meios de vida e de trabalho, construir formas de governo localizadas e, alm disso, realizar seus sonhos (CARVALHO, 1999).

    A estruturao e organizao do assentamento aludem para mltiplos fatores, indo alm da conquista da terra. Comea-se, ento, a se estruturar outro cenrio, uma (re)organizao que est implcita, principalmente nas relaes sociais entre as famlias que ali convivem. Na formao do assentamento, SABOURIN (apud MIRANDA, 2007) considera que h uma exigncia predominante na criao de instituies formais, com objetivo de apoiar juridicamente as famlias assentadas, isto , uma representao que seja de carter externo, visando o acesso direto a linhas de crdito. A partir dessas exigncias que aparecem como pr-requisito na constituio do assentamento, logo flui o debate sobre a criao dessas instituies jurdicas por estarem atreladas aos benefcios, tanto de cunho coletivo, como individual.

    Nesse processo de estruturao no assentamento, as coisas no acontecem de forma simples e com conquistas imediatas, mas na prtica de insero e organizao das famlias. Para Neves (1999), a incluso das famlias em uma rea de assentamento gera a participao, seja em situaes de mudanas desejadas, seja em mudanas necessrias, muitas vezes impostas. E continua:

    Independente das condies em que os assentados se associam ou se dissociam, enquanto demandantes do processo de assentamento devem se integrar a mudanas compulsrias deve aderir a um sistema de crenas que contribui efeitos positivos s transformaes. Neste processo, fundamental que incorporem