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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO (S)EM MIM E RETRATOS DE MULHER: DIMENSÕES AFETIVAS EM ATUAÇÃO UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART CURSO DE TEATRO JUSSYANNE RODRIGUES EMIDIO FLORIANÓPOLIS, 2016

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO (S)EM MIM E …sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/000012/00001279.pdf · Jacinta, Silvio e Vanessa, pela acolhida e por terem se tornado minha família

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

(S)EM MIM E RETRATOS DE

MULHER: DIMENSÕES AFETIVAS EM ATUAÇÃO

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART

CURSO DE TEATRO

JUSSYANNE RODRIGUES EMIDIO

FLORIANÓPOLIS, 2016

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JUSSYANNE RODRIGUES EMIDIO

(S)EM MIM E RETRATOS DE MULHER:

DIMENSÕES AFETIVAS EM ATUAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teatro na Linha de Pesquisa Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade.

Orientador: Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro.

FLORIANÓPOLIS, SC

2016

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

E53s

Emidio, Jussyanne Rodrigues (S)em mim e retratos de mulher: dimensões afetiva s em atuação / Jussyanne Rodrigues Emidio. - 2016.

240 p. : il. ; 21 cm

Orientador: José Ronaldo Faleiro Bibliografia: p. 193-202 Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de

Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Gr aduação em Teatro, Florianópolis, 2015.

1. Dança – Filosofia. 2. Teatro. 3. Afeto. 4. Memória na

arte. I. Faleiro, José Ronaldo. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Tea tro. III. Título.

CDD: 792.019 – 20.ed.

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A Chica.

Por ter sido uma mulher à frente do seu tempo-espaço. Por todos os livros e afetos. Por sempre ser a primeira a dizer: “Vai!!”

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AGRADECIMENTOS À minha enorme e linda família: minha mãe, meu pai,

meu irmão querido, tias e tios, primas e primos, Vovó Esmeralda. Sinto toda a torcida de vocês por mim viajando o país até chegar aqui.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo apoio financeiro que permitiu com que essa pesquisa pudesse ser realizada, e também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), apoio de imensa importância.

Ao professor José Ronaldo Faleiro, pela paciente orientação, pela gentileza, generosidade e elegância de mostrar o cuidado devido – caute – com as palavras escritas e com os mundos que elas transportam. Um verdadeiro Mestre. O seu sorriso acolhedor, no início desta trajetória, é simplesmente inesquecível.

Aos professores Renato Ferracini, Milton de Andrade e Sandra Meyer, membros da banca de qualificação, pelos preciosos apontamentos. Às professoras Sandra Meyer e Marisa Naspolini, por comporem a banca de defesa e debruçarem o olhar atento sobre estes escritos.

Ao corpo docente do PPGT/UDESC: André Carreira, pelas chaves que abriram tantas portas dessa pesquisa, pelas oportunidades de troca. A Fátima Costa Lima e Brígida de Miranda, pela persistência e bravura sem perder a ternura. A Tereza Mara Franzoni, pela tranquilidade e tranquilizações em sala e em tantas conversas sobre a vida acadêmica e a vida.

À Marcela Lima e Luciana Araújo, por tanto me ensinarem sobre arte, amizade, partidas, recomeços, sobre reerguer-se e perseverar em si. A Marcio Rodrigues – a Força, o Louco e o Mago. Por ser a “pilha” da lanterna que iluminou tantos ensaios e escritos. Por sempre insistir que é possível. A Dakini, Jayane, Luka, Nadja, Wanderson, Mídio, Max, Jéssica, Aline, Thiago, Allef, Bel e Salete. Aprendemos muito!

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A Rafael, por ser você. Pelo afeto e companheirismo. A Jacinta, Silvio e Vanessa, pela acolhida e por terem se tornado minha família catarinense.

Às pesquisadoras Barbara Biscaro, Daiane Dordete, Milene Duenha e Zilá Muniz pelos seus caminhos que me permitiram encontrar a minha trilha, incentivos e compartilhamentos.

Ao funcionariado da UDESC, em especial à Emília Leite (Mila – PPGT), Maurício Müller e Alice Borges (Biblioteca Universitária) e também aos estagiários da B.U., por toda solicitude.

A Diego Linard, Francisco Difreitas, Lino Fly, Souza Junior e Max Peterson, pela cessão das belas fotografias que integram este trabalho; a Danielle Esmeraldo, pela cessão das imagens com Pina Bausch.

Colegas do PPGT. Agradecida pelas partilhas de sabores e dissabores, pelas diferenças que nos singularizavam, pelos estudos em “sotaqueologia brasileira” (!). Agradecida, Alex, Andreia, Gerda, Ju, Lígia, Jennifer, Matheus, Nando, Paloma, Jura, Raquel, Keila, Liana, Cris, Tefa e tantas outras pessoas especiais as quais encontrei por esses corredores!

Às amigas e amigos que acompanharam esse processo de longe, sempre a desejar que estivesse tudo bem, a perdoar minhas ausências, a compartilhar das minhas alegrias: Jório (thank you!), Gilli, Cau, Pêagá, Carol, Bia, Biana, Angra, Cirla, Rodrigo, Vinícius, Mabel, e tantas pessoas que não caberão aqui, mas cabem no meu coração.

À Associação Dança Cariri (Alysson Amancio e Luciany Maria). A todos os encontros que tiveram espaço na Universidade Regional do Cariri (URCA). Aos(às) articuladores(as) da cultura Cariri. Suas atitudes estão inscritas em minha história.

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“Se soubéssemos algo daquilo que se vai escrever, antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não ia valer a pena. Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos escrever – só se pode saber depois [...]. Essa real solidão do corpo transforma-se na outra, inviolável, a solidão da escrita [...]. Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita”. (Marguerite Duras)

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RESUMO

Esta pesquisa parte da experiência de elaboração de dois espetáculos, realizados em Juazeiro do Norte (Ceará), para uma análise das dimensões afetivas presentes em suas composições. Os espetáculos (S)Em Mim (2014), da Inspire Companhia de Dança, e o espetáculo Retratos de Mulher (2012), do Grupo de Estudos Teatro/Dança e Novas Tecnologias (CNPq), foram constituídos a partir de experiências reais vivenciadas pelas diretoras e participantes. Para clarificar o território que nomeio de dimensões afetivas, busco analisar a teoria dos afetos desenvolvida no século XVII pelo filósofo Benedictus de Spinoza em sua Ética, analisando essa abordagem nas pesquisas artísticas que tiveram nos afetos de suas criadoras os disparadores de criação. A seguir, trago conceitos que auxiliam na abordagem estética dos espetáculos, que envolvem processos de dramaturgia da memória, invenção e composição. Neste território, apresento os conceitos que convergiam para o uso de relatos pessoais na cena contemporânea, como autoficção e teatro autobiográfico, termos emergentes da cena do real, e suas implicações éticas. Por fim, observo o aspecto de repetição presente nos espetáculos, como um dado do trauma pessoal, no caso do (S)Em Mim, e como um dado de trauma social, presente no Retratos de Mulher. A partir disso, observo em que medida, na cena contemporânea de teatro e dança, se desenvolvem espaços de liminaridade como atos (po)éticos, ampliando a potência de ação de artistas e público envolvidos nesses encontros.

Palavras-chave: Afeto. Dança-teatro. Repetição. Memória.

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ABSTRACT

This research departs from the experiment of developing two plays, presented in Juazeiro do Norte (Ceará), towards an analysis of the affective dimensions present in their making. The plays (S)Em Mim (2014), by Inspire Companhia de Dança, and Retratos de Mulher (2012), by Grupo de Estudos Teatro/Dança e Novas Tecnologias (CNPq), were built up from real experiences lived by the coreographers or participants. To clarify the territory I name as affective dimensions, I employ Benedictus de Spinoza's theory of affects, developed in the 17th century in his Ethics, as I analyze this approach in the artistic researches, which found their invention triggers in the affects of their creators. After that, I bring forth concepts which help in the aesthetic approach of the plays and which involve processes in the dramaturgy of memory, invention and composition. In this territory, I looked for the concepts that converged on the use of personal accounts in the contemporary scene, like autofiction and autobiographical theater, emerging terms in the scene of the real and its ethical implications. Finally, I focus on the aspect of repetition present in the plays as an evidence of the personal trauma – in the case of (S)Em Mim – and as an evidence of social trauma – present in Retratos de Mulher. From then on, it is possible to establish – in the contemporary dance and theater scene – the extent to which it is possible to develop liminal spaces from poetical and ethical acts, broadening the potentiality for action in the artists and audience involved in these encounters.

Keywords: Affect. Dance theatre. Repetition. Memory.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Cartaz Manifesto Silencioso .................................. 27 Figura 2 – Cena do espetáculo (S)Em Mim ............................. 35 Figura 3 - Cena do espetáculo Retratos de Mulher ................. 37 Figura 4 – Espetáculo (S)Em Mim ........................................... 72 Figura 5 - Dakini Alencar ........................................................ 78 Figura 6 – Espetáculo Retratos de Mulher .............................. 80 Figura 7 – Irmãos Aniceto se apresentam para Pina Bausch e

Violeta Arraes ....................................................... 84 Figura 8 - Espetáculo Água, de Pina Bausch (2001) ............... 85 Figura 9 – Pina conversa com jovens da Fundação Casa Grande

(Nova Olinda – CE) .............................................. 86 Figura 10 – Pina Bausch assiste Beatos e conversa com a

coreógrafa Danielle Esmeraldo. ........................... 87 Figura 11 - Cascata no bairro Lameiro, em Crato (CE) .......... 88 Figura 12 – Gestos apropriados ............................................... 92 Figura 13 – Complexidade dos laços afetivos ......................... 93 Figura 14 – Luciana Araújo .................................................... 98 Figura 15 – Nadja Naiana ....................................................... 99 Figura 16 – Duo de ausência ................................................. 110 Figura 17 – Olhar .................................................................. 115 Figura 18 – A cinta e o vestido de noiva. .............................. 124 Figura 19 – (S)Em Mim ......................................................... 134 Figura 20 – O véu .................................................................. 144 Figura 21 – Repertório ressignificado ................................... 150 Figura 22 – Yara .................................................................... 155 Figura 23 – Menina Benigna ................................................. 159 Figura 24 – Agressividade ..................................................... 167 Figura 25 – Narrando histórias de Mãe e Avó ...................... 169 Figura 26 – Paredão humano ................................................. 175 Figura 27 – Performance, de Emilio Santisteban. ................ 187

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................... 23

2 ATUAR: DIMENSÕES AFETIVAS .................... 35

2.1 DUAS NARRATIVAS ............................................ 35

2.2 SENTIMENTOS, EMOÇÕES E AFETOS .............. 40

2.3 SPINOZA: A ÉTICA DOS AFETOS ...................... 43

2.3.1 A busca do método.................................................. 47

2.3.2 A potência de um corpo, o afeto do qual é capaz . 53

2.3.2.1 A cena como corpo potente – presença .................... 55

2.3.2.2 A afetividade como pensamento e conhecimento:

afetos, afecções, paixões e ações .............................. 57

2.3.3 Afeto como modo de agir – composição numa ética

das relações.............................................................. 60

2.3.3.1 O conhecimento como afeto ..................................... 63

2.3.3.2 Experiências de composições ................................... 64

2.4 DANÇAR AFETOS EM CENA .............................. 68

2.4.1 Abraçar o vazio ....................................................... 71

2.4.2 Problematizando corpos femininos ....................... 76

3 ESTÉTICAS DAS SUBJETIVIDADES ............... 83

20 3.1 UMA CARTA PARA PINA ..................................... 83

3.2 INVENÇÃO E MEMÓRIA: A COMPOSIÇÃO COM

O TEMPO ................................................................. 94

3.2.1 A cena em (re)composição .................................... 100

3.2.2 Memória e dramaturgia ....................................... 106

3.3 TEATRO(S) DO REAL: NARRANDO

SUBJETIVIDADES ............................................... 112

3.3.1 Diferentes formas de tratar a autoficção ............ 115

3.3.2 Éticas, estéticas e políticas envolvidas ................. 120

4 REPETIÇÃO E PERFORMANCE ...................... 129

4.1 REPETIÇÃO E INSISTÊNCIA – (S)EM MIM ...... 131

4.1.1 O trauma como material de invenção ................. 133

4.1.2 Dançar o luto ......................................................... 136

4.1.3 Teatro dança – uma preparação “coreoteatral” 143

4.2 “VOCÊ... QUER FALAR ALGUMA COISA?”:

RETRATOS DE MULHER ...................................... 154

4.2.1 “Até que a morte nos separe” .............................. 155

4.2.2 Quando o pessoal é político .................................. 164

4.3 ATOS (PO)ÉTICOS – LIMINARIDADES............ 177

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................... 189

REFERÊNCIAS ................................................................ 193

21 ANEXO 1 – ENTREVISTA COM INSPIRE CIA. DE

DANÇA ............................................................................. 203

ANEXO 2 – ENTREVISTA COM MARCELA LIMA 221

ANEXO 3 – ENTREVISTA E DEPOIMENTO DO

ELENCO DE RETRATOS DE MULHER ...................... 227

ANEXO 5 – DEPOIMENTO DE MARCIO

RODRIGUES .................................................................... 235

ANEXO 6 – DEPOIMENTO DE ZULEIDE

QUEIROZ ........................................................................ 239

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23 1 INTRODUÇÃO

“Ah”, suspira o sujeito tradicional, “se ao menos conseguisse libertar-me deste corpo de vistas curtas e flutuar pelo cosmos, liberto de todos os instrumentos, veria o mundo tal como é, sem palavras, sem modelos, sem controvérsias, em silêncio, contemplativo”. “A sério?”, responde o corpo articulado, com alguma surpresa benévola, “para que queres estar morto? Por mim, prefiro estar vivo, e por isso quero mais palavras, mais controvérsias, mais contextos artificiais, mais instrumentos, para me tornar sensível a cada vez mais diferenças. O meu reino por um corpo mais incorporado!” (Bruno Latour).

Articulamos corpos-ideias: somos articulações ósseas,

imagéticas e verbais. Para Bruno Latour (2008), as articulações produzem corpo, sujeito articulado, quando nos tornamos sensíveis aos efeitos de outros seres. Este corpo é definido por Latour como “uma interface que vai ficando mais descritível quando aprende a ser afetado por muitos mais elementos [...] aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da qual aprendemos a registrar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo” (LATOUR, 2008, p. 39). Ressoando com outros corpos, o corpo movimenta e é posto em movimento, registrando diferenças que, quanto mais contrastam, maior é a possibilidade de sensibilização, de corporificação. Essa incorporação pressupõe maior discernimento acerca do que nos sensibilizou, do que nos afetou. Essa sensibilização se assemelha à produção de mundo: “Adquirir um corpo é um empreendimento progressivo que produz simultaneamente um meio sensorial e um mundo sensível” (LATOUR, 2008, p. 40).

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Ressoamos quando articulamos proposições: uma proposição não necessita fechar-se ou afirmar uma verdade, mas denota uma posição sem autoridade definitiva (uma pro-posição) e desta forma, consegue “negociar-se a si própria para formar uma com-posição sem perder solidez” (LATOUR, 2008, p. 45). Uma composição dinâmica, que se faz no movimento, onde os corpos constituem e são constituídos por essas relações: “Articulação, portanto, não significa capacidade para falar com autoridade [...] mas ser afetado por diferenças” (LATOUR, 2008, p. 43, grifo meu). As diferenças produzem mundos e corpos, corpos-mundos.

É a partir dessas noções que inicio esta dissertação, com a clareza de que minhas proposições colocadas neste corpo – sensível e textual – são articulações em composição. Este trabalho é busca de organização dinâmica de questões pessoais e artísticas que me movem e, para ser mais específica, procura a explicitação do ponto em que as questões pessoais se tornaram também artísticas e, ainda, políticas e éticas. Por ser permeado de afetos, é múltiplo em suas relações. Por ser gerado em vida, apresento a seguir alguns trechos desse caminho.

Nasci e habitei na cidade de Crato, localizada no interior sul do Ceará, que integra a região do Cariri: uma região de pulsantes manifestações da cultura popular, cuja valorização me fez adentrar em pesquisas não-formalizadas sobre esses saberes e me nutriu de um profundo interesse pelas relações entre poesia, execução vocal e musical, dança e teatro1. Tais relações são ainda hoje diretamente experienciadas por brincantes populares, por meio de suas práticas empíricas e vivências familiares e na comunidade. Ao mesmo tempo, a região passa por um notável desenvolvimento econômico nos últimos vinte anos, o que faz com que essa cultura popular se

1 Interesse que busquei aprofundar participando de cursos, corais e grupos

de teatro e dança desde criança, num percurso pessoal de formação.

25 atualize de inúmeras maneiras, dentre elas: como pérola do patrimônio imaterial de um povo, como vínculo de ancestralidade ibérico-indígena e como produto cultural (inclusive de exportação – o artesanato em couro é um dos exemplos). Nesse cenário, passei a repensar determinados rumos e usos da arte e da cultura de uma maneira geral, a construção de imaginários nordestinos e ao mesmo tempo “nordestinizadores”. Como espectadora e participante da diversidade artístico-cultural, que une em seu cotidiano diversas aglutinações, manutenções e negações dessa cultura memorial com a cultura de massas, busquei uma aproximação e um distanciamento simultâneos com esse universo, que me permitissem compreender o fascínio e a inquietação que tal diversidade me despertava.

A cultura do Cariri é híbrida: esse caráter se evidencia na interiorização de eventos internacionais (como a Bienal Internacional de Dança do Ceará e a Bienal De Par em Par2), como na extensão à capital de um festival que começou reduzido, em Crato, e hoje se configura em uma das grandes mostras nacionais de caráter internacional – a Mostra Sesc Cariri de Culturas3.

Posso dizer que sou “cria” dessa mostra que, ao mesmo tempo, agenciava o que havia de mais primordial da cultura local com o que havia de mais contemporâneo no fazer artístico nacional. Em 16 edições anuais, a Mostra repercutiu enormemente, de maneiras inumeráveis. Tive a oportunidade de acompanhar esse movimento de perto, de dentro: como uma espiral, uma expansão que abre espaço maior de interiorização. (E qual não foi a minha surpresa ao reencontrar, em Florianópolis, alguns daqueles artistas que vi em cena na minha adolescência, cujos espetáculos motivaram as minhas

2 Sobre ambos os eventos, ver: <http://www.bienaldedanca.com/2014/portal/index.html>. 3 Para mais informações: <http://mostracariri.sesc-ce.com.br/>.

26 buscas estéticas, pessoas que nem mesmo eu lembrava de onde eram! A espiral não perdera seu centro, afinal).

Entretanto, a falta de ensino superior4 na área de Artes nessa mesma região de tamanha efervescência cultural me motivou a buscar formação no Bacharelado em Arte e Mídia (UFCG), na cidade de Campina Grande (PB). Ao experienciar processos de produção midiáticos, aliados aos estudos práticos de diversas linguagens simultaneamente (música, vídeo, fotografia, teatro, artes visuais, cinema, produção cultural, animação, dublagem, construção de sites, fundamentos da comunicação, estética etc.), observava as inumeráveis conexões que poderia haver entre cada área específica de conhecimento artístico. O curso de Arte e Mídia fomentou em mim um interesse ainda maior nas práticas e poéticas de cada campo, partindo da produção midiática da arte. Ainda nessa época, comecei a estudar dança com mais afinco. A minha necessidade de estudar teatro – e agora, dança – me levou a regressar à universidade após o bacharelado em Arte e Mídia, desta vez na Licenciatura em Teatro (URCA), cujo curso (inconcluso) me mostrou algumas possibilidades de articulações entre o que eu intuía e mobilizou diversas inquietações artísticas, políticas e éticas, algumas das quais impulsionaram este trabalho.

4 Há aproximadamente seis a oito anos que já existem na região do Cariri as

licenciaturas em Música (UFCA), Teatro e Artes Visuais (URCA). Todas estão localizadas na cidade de Juazeiro do Norte (CE).

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Fonte: Arquivo pessoal. Autoria desconhecida. Local: Centro de Artes Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau (URCA), 2012.

No percurso do mestrado, na Universidade do Estado de

Santa Catarina, percebi que as questões sobre as relações entre teatro, dança e música se encontravam, para mim, neste momento específico, de certa forma resolvidas. Tomei contato com inúmeras outras pesquisas e pesquisadoras5 que ampliaram meus horizontes sobre os temas de voz, escuta, afeto, performance e composição dramatúrgica, relações entre linguagens e a presença da atriz e do ator. Ao mesmo tempo, outras questões me inquietavam e urgiam em meio aos diálogos estabelecidos em diversos momentos proporcionados neste período, aliados à memória de diálogos anteriores de

5 São notáveis, nesse processo, o contato com as pesquisas de Barbara

Biscaro (2015), Daiane Dordete Jacobs (2011), Andreia Paris (2011), Milene Lopes Duenha (2014) e Zilá Muniz (2014), e também com estas pesquisadoras, numa rede de diálogo que se desenvolveu no percurso da pós-graduação.

Figura 1 – Cartaz Manifesto Silencioso

28 forma que, internamente, lacunas se evidenciavam. Passei a buscar o sentido delas.

Ao me voltar ao meu processo de formação artística, percebo a mesma procura pelos territórios das lacunas: a busca de maior consciência corporal em aulas de dança, a busca de poetização, ampliação psicofísica e verbal em aulas de teatro, a busca de ampliação vocal na participação em corais e incursões empíricas nos meandros de uma performance vocal musical. Essas faces, que experimentei separadamente desde criança, ao mesmo tempo em que o meu desejo era de uni-las em ato, juntavam-se a outras, vindas das vivências acadêmicas, artísticas e políticas na universidade. Estavam a articular-se no mesmo corpo.

A partir da curiosidade em compreender como se davam os processos de apropriação de diversas linguagens artísticas pela atriz na cena, em espetáculos que se localizam entre fronteiras de linguagens, passei a investigar algumas mudanças conceituais na atuação contemporânea. Tais conceitos me remeteram à forma como os procedimentos entre linguagens poderiam ocorrer e apontavam para uma questão mais densa: as imbricações éticas do fazer artístico, de uma maneira geral, e mais pontualmente, neste trabalho, quando o processo em questão se aproximava do território dos teatros do real e dos relatos pessoais em cena em procedimentos de autoficção. Com o afeto se tornando o conceito mais central, a pesquisa se direcionou para as dimensões afetivas que permeiam essas elaborações. Resolvi tomar como campo de experiência dois processos de que participei nos últimos anos.

O espetáculo (S)Em Mim (2014) coreografado e dirigido por Luciana Araújo com a Inspire Companhia de Dança, uma jovem companhia que estreou com o referido espetáculo, cuja temática de criação veio de uma experiência traumática de perda vivenciada pela coreógrafa, e a densidade da proposta fez com que diversas questões sobressaíssem em seu processo.

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Já o Retratos de Mulher (2012), coreografado por Marcela Lima, trouxe a temática da violência contra a mulher no Cariri para a cena. Teve espaço no Grupo de Pesquisa Teatro/Dança e Novas Tecnologias (CNPq/URCA) e procurou espaços de denúncia e alerta de tal problemática na região. Com elenco misto entre pessoas que tinha contato com a dança e outras que não haviam experienciado nenhuma aproximação, havia um desafio temático e um desejo de experimentação da dança sob essa perspectiva.

Ambos foram realizados em Juazeiro do Norte, no Cariri cearense, em espaços de formação diferenciados: uma escola de dança (Inspire Espaço de Artes), dirigida por Luciana Araújo e Aline Souza, e uma universidade (Universidade Regional do Cariri – URCA), onde Marcela Lima foi docente do curso de Licenciatura em Teatro. Participei dos dois espetáculos de diferentes maneiras, porém as dimensões de afeto que se mostraram potentes em suas composições me fizeram voltar o olhar para essas experiências, e observá-las sob a perspectiva da pesquisa acadêmica, desenvolvida no Mestrado em Teatro. Destes processos de criação, emergiram os desafios de se lidar com a intensificação afetiva da cena e o engajamento de grupos jovens em questões pertinentes ao meio em que se inseriam.

Estes espetáculos não possuem as tradições populares como temática, inserem-se na vertente contemporânea da produção caririense, que dialoga com as fronteiras entre linguagens da dança, teatro e visualidades sob outra perspectiva: são espetáculos elaborados a partir da poetização de relatos pessoais, que questionam certos modelos da própria cultura ou abordam afetos humanos e a maneira como eles se efetuam nas relações. Estes espetáculos são o solo em que me apoio para discorrer sobre as questões que aqui se apresentam.

Benedictus de Spinoza (2008) é referência neste trabalho por empreender em sua filosofia vivida uma ciência da afetividade humana (GLEIZER, 2005). Defensor do livre

30 pensamento e perseguido pelas instituições religiosas e políticas holandesas do século XVII, analisou os afetos como parcelas indissociáveis do ser humano. É pelo desconhecimento de suas causas que as noções de bem e mal são, equivocadamente, atribuídas às ações humanas em morais instituídas. Afecções e afetos estão diretamente envolvidos na afirmação da existência dos corpos, de modo que as forças de potencialização são movidas a partir das relações entre os corpos envolvidos. O empreendimento de Spinoza foi o de elaborar em sua obra Ética um método que tornasse possível a percepção e o conhecimento dos afetos, vislumbrando a possibilidade de buscar aqueles que aumentem a potência de ação para contrapor aos afetos que a diminuem. Potencializados para agir no mundo, os seres perseverariam buscando os bons encontros, não permitindo que os afetos de tristeza diminuíssem a afirmação de sua existência relacional.

Para aproximar este pensamento filosófico da prática artística, busco no capítulo 2 (Atuar: dimensões afetivas), as proposições de Spinoza sobre o conhecimento dos afetos e a potencialização da alegria, trazendo essa perspectiva para os processos de criação. Para Spinoza, os corpos se definem a partir de suas relações de movimento e repouso, rapidez e lentidão, num fluxo dinâmico no qual essas relações modificam – afetam – outros corpos (SPINOZA, 2008, p. 99). As afecções dependeriam das naturezas de ambos os corpos nessa relação e, se gerarem afetos que lhes agradem, têm o poder de potencializar, fortalecer, a existência6 dos corpos envolvidos. Em um processo artístico, quais as possibilidades que atrizes e atores possuem de se criar tais condições de afetar e ser afetadas(os), fortalecendo a existência de todos os corpos envolvidos, numa composição potente? Não é uma questão de

6 “Se poder existir é potência, segue-se que, quanto mais realidade a

natureza de uma coisa possuir, tanto mais ela terá forças para existir por si mesma” (SPINOZA, 2008, p. 27).

31 resposta finita. Para ampliar esse campo, dialogo com as pesquisas do neurobiologista António Damásio (2004) para pensar a diferença entre emoção e sentimento, como também com os estudos de Renato Ferracini (2012; 2013) e Valeska Figueiredo (2012) que propuseram a abordagem da obra de Spinoza na invenção artística.

Discorrer sobre a invenção no processo de composição de atores e atrizes para a cena é matéria do capítulo 3 (Estéticas das Subjetividades). A invenção, conceito apresentado pela psicóloga e pesquisadora da atenção Virgínia Kastrup (2007), pressupõe uma composição arqueológica (KASTRUP, 2007), que se dá no tempo e que se faz com materiais da memória, não apenas como solução de problemas, mas também como problematização de mundo (que é, ao mesmo tempo, invenção deste). Os conceitos cênicos de composição, materiais e materialidade cênica são abordados a partir de Matteo Bonfitto (2011; 2009a; 2009b) e Renato Ferracini (2012; 2013), postos em articulação com a filosofia de Spinoza (2008). Enfatizarei a proximidade deste conceito com a prática artística a partir dos processos que se valem da memória para elaboração dramatúrgica, como Pina Bausch e sua dança-teatro. Ao enfatizar a elaboração espetacular a partir de materiais pessoais, apontarei o processo de coreografias de Pina Bausch a partir da reelaboração das memórias de bailarinos(as) do Tanztheater, chegando à cena mais recente, em que procedimentos que partem da autoficção são postos em foco. Nesse entremeio, emergem questões éticas que balizam certas relações estéticas e denotam certos posicionamentos políticos: haveria uma atitude consumista da recepção, quando se busca ter uma experiência a partir da experiência do outro? Haveria uma atitude de comercialização do íntimo? Ou em que medida a apropriação ocorreria como uma prática de alteridade, como um olhar para a experiência alheia e a percepção do que há de comum, de relacional, naquela experiência?

32

Não pretendendo generalizar questões tão amplas, aponto no capítulo 4 (Repetição e Performance) questões de repetição e trauma a partir dos espetáculos (S)Em Mim (2014) e Retratos de Mulher (2012). São dois processos nos quais experiências pessoais foram matéria de invenção cênica, de formas distintas. No primeiro, a repetição – estratégia coreográfica muito utilizada por Bausch – surge como um dado do trauma pessoal vivenciado a partir do luto. Articulo o processo (S)Em Mim com o pensamento de Hal Foster (2005) e Ciane Fernandes (2007). No segundo momento, a repetição aparece como influência social no Retratos de Mulher, que encarou a violência contra a mulher como locus repetitivo de um comportamento cultural arraigado socialmente. Neste ponto, as reflexões de Diane Taylor (2002; 2009) e Ileana Diéguez Caballero (2011; 2014) auxiliam a pensar a arte como um ato (po)ético, em vias de liminaridade entre arte e vida.

Retomo a Ética spinozista, que pressupõe um íntimo conhecimento de si, um retrabalhar dos próprios afetos, não para chegar a um ensimesmamento (na vida, e aqui ampliado para a cena artística), mas porque se faz necessário compreender o que nos afeta e como afetamos. O sentido de saber ser causa de si está na possibilidade de prevermos possíveis efeitos dos movimentos e repousos de si e do mundo, que, ainda assim, permanecem imprevisíveis e convocam a todo instante outras qualidades de percepção e ação. Para que isso aconteça, Spinoza defende o conhecimento não só dos afetos, mas também de suas causas. Haveria uma responsabilidade nesse processo? Como artistas têm se localizado em torno dessas questões?

Percebo que esses processos nos quais estive inserida nos últimos anos – em suas facetas artísticas, políticas, educacionais – são matrizes das questões que me moveram à presente pesquisa e registram-se nesta escrita que, embora não lhes possa dar explicação final, pretende observá-los como confluentes. A memória, geralmente tomada como falha, é aqui

33 material de criação cênica e acadêmica. Posso dizer que elaboro uma escrita reminiscente, articuladora e afetiva, já que antes que eu a escrevesse, ela se inscreveu em mim.

34

35 2 ATUAR: DIMENSÕES AFETIVAS

2.1 DUAS NARRATIVAS

“Um corpo esvaziado”

O bailarino encontra-se em pé, completamente inerte, o

olhar vazio. Seu corpo não apresenta desejo, objetivos, ou qualquer ação externa ou interna. A bailarina aproxima-se, salta e gruda em seu corpo. Espera alguma reação dele. Ela escorrega e cai. Repetidamente, ela se ergue e se lança ao corpo do bailarino. No palco em silêncio, ressoam apenas as quedas e a respiração ofegante que emana do corpo dela. A repetição vai levá-la à exaustão. Em todas as ocasiões, ela irá cair. Em todas as ocasiões, ele parecerá simplesmente não estar mais ali.

Fotografia: Souza Junior. Em cena: Aline Souza e Thiago Gomez.

O sentimento de luto foi o principal motivador para a

construção do espetáculo (S)Em Mim (2014), primeiro

Figura 2 – Cena do espetáculo (S)Em Mim

36 espetáculo da Inspire Cia. de Dança7, que possuiu como matéria de criação o revisitar de uma experiência traumática de perda, vivida pela coreógrafa Luciana Araújo. Em 2011, seu namorado perdeu a vida em um trágico acidente. O choque dessa perda repentina trouxe uma depressão, com a qual ela teve que lidar. Houve difíceis períodos nos quais, para ela, não havia possibilidade de seguir adiante. Retrabalhar sobre o próprio luto, a devastação da sua rotina e seus planos, o esvaziamento de si e a efemeridade em imagens coreográficas se tornou a sua tentativa de reerguimento pessoal e partilha da experiência do trauma a partir da dança. Não por acaso, a repetição de movimentos, frases coreográficas e ações (como descrito) foi um recurso presente no decorrer da criação, como uma condição atrelada aos sentimentos conflitantes do trauma, porém sem procura deliberada por tais elementos.

7 A Inspire Companhia de Dança foi fundada dentro da Inspire Espaço de

Artes, uma escola inicial de dança, fundada por Luciana Araújo e Aline Souza em 2012, que se voltava às seguintes modalidades: ballet clássico, jazz, dança contemporânea, dança do ventre, além de atividades musicais (aulas de violão) e teatrais. A escola encerrou as atividades em 2015, mas a Companhia ainda se mantém, ensaiando na sede da Associação Dança Cariri (ADC), em Juazeiro do Norte (CE). Elenco atual da Companhia: Luciana Araújo, Aline Souza, Thiago Gomez, Bel Macedo, Allef Lira.

37 “Entre três paredes”

No palco, há apenas três paredes. Quatro mulheres estão

em cena, três das quais formam uma parede humana. A quarta mulher é arrastada no palco, pelos braços e pelos cabelos, por um homem. Ela se debate. A música ambiente é romântica, Carinhoso8. O homem a levanta pelos cabelos e a atira de cabeça na parede de mulheres. A tensão entre a música e a cena se eleva: “Meu coração não sei por quê/ bate feliz quando te vê”. Ele a agarra novamente e repete o ritual, ela tenta fugir: “Mas mesmo assim, foges de mim”. Ela é lançada várias vezes enquanto a música não termina: “Vem matar essa paixão / que me devora o coração”. A tensão entre a letra da música e a ação mostrada no palco contamina a plateia. “Quebrando a quarta parede”, as outras três mulheres perguntam a quem assiste à cena: “Alguém quer falar alguma coisa?”.

Fotografia: Diego Linard. Em Cena: Jussyanne Emidio, Dakini Alencar, Nadja Naiana e Jayane Diniz.

8 Composição de Pixinguinha, letra de Braguinha, na versão de Alexandre

Nero. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Sd3YMp5KlzM>. Acesso: 12/01/2016.

Figura 3 - Cena do espetáculo Retratos de Mulher

38

Esta cena era o ponto mais emblemático do espetáculo Retratos de Mulher (2012), dirigido por Marcela Lima. A parede humana era o lugar ao qual o corpo da mulher era lançado em cena, mas é em cantos frios de parede que muitas vítimas de seus agressores se refugiam. A maioria das agressões a mulheres referentes à violência conjugal também ocorre entre quatro paredes, no que seria o “aconchego do lar”. Mas dentre essas, muitas vezes nenhuma é quebrada por uma denúncia. O Cariri cearense, local onde emergiu o espetáculo, ostenta tristes números que registram a violência contra a mulher, e a emergência de situações históricas, as notícias que preenchiam jornais, as marcas impressas nas subjetividades foram os fatores que desencadearam o encontro para a criação, da qual participei como atriz-bailarina. Todas precisávamos “falar alguma coisa”.

São narrativas diversas que possuem entre si a semelhança de pensar que tipo de afetos ganham espaço entre os seres. Luciana Araújo repensou a forma como as relações pessoais são efêmeras e se rompem a todo instante, e a ruptura definitiva devido à morte gera o vazio instransponível de palavras não ditas, de planos e mundos desfeitos. Ao mesmo tempo, a inabilidade pessoal e das pessoas próximas em lidar com o sentimento de luto – o que acarreta atitudes entre a indiferença e a descartabilidade da vida, ou sintomas graves de depressão que podem levar ao suicídio – moveram afetos que não mediram suas próprias forças, e finalmente se efetuaram em dança.

Para Marcela Lima, estatísticas estarrecedoras de assassinatos de mulheres no Cariri fizeram-na observar em sua própria história o quanto as questões do (seu) corpo feminino jorraram na criação artística, por meio de suas pinturas, poemas, danças e pesquisas acadêmicas, e o quanto ainda precisava falar sobre violência conjugal. A mesma inquietação ocupava Dakini Alencar, à época estudante de Licenciatura em Teatro, quando os afetos da violência sofrida anteriormente

39 exigiam ter voz. As duas articularam o desejo conjunto de tratar sobre a temática em cena, e o espetáculo foi concebido a partir do projeto de pesquisa Retratos de Mulher – a violência contra a mulher no Cariri, inserido na linha Processos Criativos nas Artes Cênicas com as Novas Mídias, do Grupo de Pesquisa Teatro/Dança e Novas Tecnologias – CNPq9, desenvolvido na Universidade Regional do Cariri (CE).

Além das motivações pessoais que implicaram o início da criação, a ligação entre os dois espetáculos que analiso aqui dizem respeito à mobilização afetiva que ocorria em seus respectivos processos de criação e apresentações. A princípio encarei o fato como uma possível consequência da abordagem de relatos pessoais das pessoas diretamente envolvidas na criação, e mais adiante, cada um apresentou diversas características: o trauma pessoal que ressoa com outras experiências pessoais; a violência de gênero que torna o que seriam experiências pessoais em um trauma social e, portanto, possui dimensões políticas.

Apesar da ordem cronológica de estreia dos espetáculos ser a inversa da ordem da apresentação dos mesmos que utilizo neste trabalho10, justifico esta opção por três motivos. O primeiro é que, enquanto o (S)Em Mim desenvolveu-se num espaço de formação artística ainda no seu início (a academia Inspire Espaço de Artes, criada pelas bailarinas e professoras Luciana Araújo e Aline Souza em 2012), o Retratos de Mulher teve lugar no ambiente universitário, vinculado à Universidade Regional do Cariri pelo curso de Licenciatura em Teatro, o que

9 Integravam o grupo de pesquisa: Marcela Lima (coordenadora), Dakini

Alencar, Jayane Diniz, Nadja Naiana, Luka Severo, Jussyanne Emidio Wanderson Petrova Cavalcante, e Orismídio Duarte.

10 Retratos de Mulher teve estreia em junho de 2012. (S)Em Mim teve estreia em maio de 2014, com aproximadamente um ano circulando como work in process, onde trechos eram apresentados em alguns eventos relacionados à dança e a psicologia. Participei, como dançarina, em uma dessas apresentações, em novembro de 2013.

40 possibilitou um ambiente de planejamento e execução mais direcionado que o anterior. São dois espaços de formação que guardam características distintas. Observo o quanto a experiência de criação que tive com o Retratos de Mulher influenciou no meu olhar sobre o (S)Em Mim posteriormente, quando fui convidada pela coreógrafa a assistir aos ensaios e apontar alguns possíveis encaminhamentos. Desta forma, pela minha participação em ambos, o processo de um ressoou no outro.

Procuro fazer, neste trabalho, uma espécie de “arqueologia afetiva”, numa expressão do pesquisador Rosemberg Cariry, para delimitar uma escrita que se efetua “não pelo rigor do método científico, mas pelo exercício da memória, pela vivência resgatada, pelas histórias recompostas e costuradas em seus fragmentos mínimos, como uma imensa e colorida colcha de retalhos, em uma tessitura impressionista” (CARIRY, 2015, p. 30). Uma arqueologia afetiva, que é invenção de mundo (KASTRUP, 2009), clarificando detalhes reconstruídos desses processos.

2.2 SENTIMENTOS, EMOÇÕES E AFETOS

Para chegarmos ao conceito de afeto, me detenho antes

na definição do neurocientista português António Damásio (2004) sobre emoção e sentimento. Damásio afirma que a emoção funciona como um programa de ações do corpo, que são desencadeados pelo cérebro: “Uma emoção propriamente dita é uma coleção de respostas químicas e neurais que formam um padrão distinto” (DAMÁSIO, 2004, p. 61). Estas ações sucessivas, relacionadas à respiração, controle hormonal, batimentos cardíacos e ondas cerebrais, podem ser vistas, a olho nu ou microscopicamente. São constructos que agem como respostas ao ambiente, que foram selecionados pela evolução da espécie humana (DAMÁSIO, 2004, p. 37) e são automatizados: a partir do aparecimento do que Damásio

41 nomeia de estímulo-emocional-competente (EEC), ocorre a resposta e uma “alteração temporária do estado do corpo e do estado das estruturas cerebrais que mapeiam o corpo e sustentam o pensamento” (DAMÁSIO, 2004, p. 61). A sua função é regular o corpo de acordo com o estímulo ambiental e garantir a sobrevida do organismo.

Os sentimentos, de outra forma, são a experiência mental do que está acontecendo no corpo, ou seja, têm lugar na mente 11e, devido a isso, não são visíveis aos outros, apenas para quem os sente. Essa experiência mental acontece devido a um mapeamento do corpo feito pelo cérebro e o conjunto de terminações nervosas que se espalham pelo organismo como um todo, em imensa variedade de sinais (DAMÁSIO, 2004, p. 135-136), e se efetivam por intermédio de imagens: “As imagens que temos na nossa mente, portanto, são resultado de interações entre cada um de nós e os objetos que rodeiam o nosso organismo, interações essas que são mapeadas em padrões neurais e construídas de acordo com as capacidades do organismo” (DAMÁSIO, 2004, p. 211). Os sentimentos teriam por seu conteúdo o resultado, em forma de imagens, do mapeamento corporal realizado pelo cérebro.

Para melhor compreender essa noção, é interessante entender a relação cérebro, mente e consciência. Sendo o cérebro o conjunto biológico que permite que a mente exista, e sendo a mente o conjunto de representações que é possibilitado pela estrutura cerebral, “a consciência é o processo que enriquece a mente com a possibilidade de saber da sua própria existência – a referência a que chamamos self – e saber da existência dos objetos que a rodeiam” (DAMÁSIO, 2004, p. 194). Porém é na mente que a consciência tem espaço e a mente só pode existir em um corpo, emergindo do conjunto de células nervosas, o qual também auxilia a existir: “a mente

11 Tal separação é meramente didática, pois Damásio não compreende a

separação corpo-mente, como será explanado a seguir.

42 emerge num cérebro situado dentro de um corpo-propriamente-dito, com o qual interage” (DAMÁSIO, 2004, p. 201). Com isso, Damásio traz a qualidade de mente consciente que possibilita a percepção do self da existência do sentimento, levando o corpo a outro patamar de sobrevivência:

Os sentimentos orientam os esforços conscientes e deliberados da autoconservação e ajudam-nos a fazer escolhas que dizem respeito à maneira como a autopreservação deve se realizar. Os sentimentos abrem a porta a uma nova possibilidade: o controle voluntário daquilo que até então era automático (DAMÁSIO, 2004, p. 87).

Damásio ainda relaciona os princípios regulatórios do complexo emoção/sentimento ao surgimento de comportamentos éticos, pois sem o que ele caracteriza como emoções sociais – simpatia, embaraço, culpa, compaixão, indignação, admiração, gratidão etc. – esse comportamento não aconteceria:

Em suma, quer se concebam os princípios éticos como baseados na biologia natural ou como baseados em estruturas religiosas, é legítimo concluir que na ausência de emoções e sentimentos normais, especialmente na ausência de emoções sociais, a emergência de comportamentos éticos seria improvável (DAMÁSIO, 2004, p. 170).

Damásio admite que as pesquisas sobre emoções e sentimentos ainda têm muito que avançar, com o desenvolvimento científico e tecnológico. Entretanto, relaciona o quanto destas descobertas de final do século XX foi de certa forma uma espécie de comprovação de parte da teoria dos afetos, desenvolvida por Spinoza em forma de tratado filosófico no século XVII.

43

Para melhor explanar o que são tais afetos, e outros conceitos relevantes para esta pesquisa – como corpo, experiência, composição e potencialização – trago à consideração a filosofia de Spinoza.

2.3 SPINOZA: A ÉTICA DOS AFETOS

Um tratado filosófico do século XVII, escrito em latim

no método geométrico, desperta o interesse por dizer algo que mobiliza a produção artística contemporânea. A Ética12, obra magna do filósofo Benedictus de Spinoza13 [1632-1677], holandês de ascendência portuguesa, tem sido observada não apenas na arte, mas também na política, biologia, história, neurociência e em vários âmbitos em que o ser humano possa estar envolvido, nos quais questões éticas se fazem emergentes ao debate. A discussão sobre o fazer artístico como uma proposição ética e política tem sido emergente em diversas

12 Sobre as traduções consultadas para esta pesquisa, todas as citações de

Spinoza referem-se à tradução de Tomaz Tadeu (SPINOZA, 2008). Também são feitas referências ao prefácio, apêndices e notas explicativas das traduções de Marilena Chauí, Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões (ESPINOSA, 1983a, 1983b, 1983c).

13 Sobre a diversidade de escritas do nome do autor, é necessário considerar que Spinoza recebeu em seu nascimento o nome de Baruch (em hebreu) e que seu nome é traduzido em diversas edições para a forma Bento (em português) devido à sua ascendência familiar portuguesa. Após a sua excomunhão em 1656, assumiu a forma latina Benedictus para seu primeiro nome, não mais utilizando o nome hebraico. Todos significam bendito, fato curioso em face à sua atividade de contraposição às religiões da época. Seu sobrenome é transcrito como Spinoza, Spinosa, Espinosa e, ainda, Despinoza. Segundo Emanuel Fragoso (2015), a forma Spinoza seria a mais utilizada pelo próprio autor em assinaturas pessoais e comerciais. Pelo exposto, adoto aqui o nome supracitado, em consonância com a tradução de Tomaz Tadeu (SPINOZA, 2008) e com a análise de Fragoso de que essa seria a opção do próprio Spinoza em suas assinaturas. Nas citações de autores(as) e tradutores(as), o nome será transcrito de acordo com as suas opções particulares.

44 pesquisas, algumas das quais serão abordadas neste trabalho mais adiante.

O que são questões éticas? Para Nicola Abbagnano (2007), a principal problemática no entorno desta definição é que se confundem duas espécies de ética: a ética do fim e a ética do móvel. Essas duas concepções são completamente diversas. Conforme Abbagnano,

A primeira fala a língua do ideal para o qual o homem se dirige por sua natureza e, por conseguinte, da “natureza”, “essência” ou “substância” do homem. Já a segunda fala dos “motivos” ou “causas” da conduta humana, ou das “forças” que a determinam, pretendendo ater-se ao conhecimento dos fatos (ABBAGNANO, 2007, p. 442).

O principal ponto de divergência entre as duas visões é o estabelecimento, para cada uma, de uma noção de bem distinta: para a ética do fim, o bem é uma realidade idealizada; para a ética do móvel, o bem é o objeto de apetite humano: “procura-se em primeiro lugar determinar o móvel do homem, ou seja, a norma a que ele de fato obedece; portanto, define-se como bem aquilo a que se tende em virtude desse móvel, ou aquilo que se conforma à norma em que ele se exprime. (ABBAGNANO, 2007, p. 445, grifos do autor).

Éticas do fim ou do móvel, a ética é sempre um paradigma dialógico, que considera o ser humano “no tecido de relações que o constituem” (ABBAGNANO, 2007, p. 450). Não há pensamento ético se não há convivência, pois são as relações que se estabelecem neste ínterim que balizam a sua necessidade. Também para Spinoza, embora alguns homens e algumas mulheres possam não conviver harmonicamente entre si, a vida em sociedade traz mais vantagens que desvantagens: “[...] por meio da ajuda mútua, os homens conseguem muito mais facilmente aquilo de que precisam, e [...] apenas pela

45 união das suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por toda parte” (SPINOZA, 2008, p. 305).

A convivência, considerando a vida em sociedade, e ainda, as diversas relações travadas pelo ser humano com o meio, possibilita pensar em questões éticas que se aproximam do conceito de responsabilidade como “possibilidade de prever o próprio comportamento e de corrigi-lo com base em tal previsão” (ABBAGNANO, 2007, p. 1009). A responsabilidade, em seu sentido filosófico, tem significado diverso da noção de imputabilidade, de ser culpabilizado por atos próprios ou de outrem, juridicamente ou moralmente. Segundo Abbagnano (2007), a ideia de responsabilidade tem origem na noção de escolha, essencial ao conceito de liberdade limitada. Uma ética da responsabilidade, assim entendida, contrapõe-se à ética da convicção – de quem age por um ideal. Citando Weber, Abbagnano complementa: “A ética da responsabilidade corresponde ao ‘agir racional em relação ao fim’ e é típica de quem se preocupa tanto com os meios capazes de levar a obter determinados fins, quanto com os efeitos ligados à própria ação” (ABBAGNANO, 2007, p. 1009).

Pelo exposto, aproximo a ética da responsabilidade à liberdade abordada por Spinoza: a liberdade acontece quando o ser humano, ciente de seus afetos como possíveis causas das suas ações, consegue o discernimento para afastá-los ou mantê-los: “Por estarem conscientes de suas volições e de seus apetites, os homens se creem livres, mas nem em sonho pensam nas causas que os dispõem a ter essas vontades e esses apetites, porque as ignoram” (SPINOZA, 2008, p. 65). O maior mal é o desconhecimento da própria afetividade, e intrinsecamente, o desconhecimento dessas relações. Conhecendo-os, é possível ter responsabilidade nas relações e ser livre. O grande projeto de Spinoza com a sua Ética é chegar ao método de análise dos afetos a partir do conhecimento das suas causas, e não da constatação dos seus efeitos.

46

Homens e mulheres podem ser livres14, porém, essa liberdade não significa o livre-arbítrio “divinamente” imputado. Para Spinoza, a superstição religiosa judaico-cristã apresenta o livre-arbítrio como liberdade ilimitada: a livre escolha entre o bem e o mal é justificativa para a culpabilização pelas más escolhas, sendo a causa dos males da humanidade, esta que poderia escolher o mal ao invés do bem se se afastasse do culto de Deus. Para Spinoza, “[...] pertence à natureza do pensamento formar ideias verdadeiras” (ESPINOSA, 1983, p. 67). A escolha pelo mal ocorre por puro desconhecimento da força que os afetos têm sobre a própria razão. Segundo Marilena Chauí: “É no exame do problema do desejo, das paixões e da liberdade do homem que o termo Ética se esclarece” (CHAUÍ, 1983, p. XIV). Para Spinoza, ética não é o mesmo que moral, pois a moral está junto à religião e ambas são sistemas que impõem certos deveres a homens e mulheres:

A Ética nada tem a ver com os deveres: aliás, para Espinosa, quem age por dever não é autônomo, não é livre, age por mandamento. A Ética é a definição (ou apresentação genética) do ser do homem tal como ele é, e demonstrando por que o homem é tal como é. Assim procedendo, Espinosa recupera o sentido grego de ethos: modo ou maneira de ser (CHAUÍ, 1983, p. XIV, grifos da autora).

Sendo assim, a perseverança e esforço (conatus) para afirmar a sua existência, realizando a sua essência, aliados à lucidez que a razão alcançaria por meio do conhecimento dos afetos, fariam por si só com que os seres humanos não escolhessem o mal.

14 Não me estenderei neste trabalho sobre as questões de gênero na Ética.

Por opção, colocarei em meu texto todas as passagens que se referem ao homem na Ética como referindo-se a homens e mulheres.

47

Para abordar a filosofia de Spinoza neste trabalho, meu foco se dará nos seus estudos sobre a afetividade humana, a partir de infinitas relações com outros corpos, e as imbricações éticas que o (des)conhecimento destas relações podem gerar. Deixo claro que minha aproximação com a filosofia é a de uma atriz-bailarina curiosa pela compreensão do humano; não sendo filósofa, resguardo-me de analisar o pensamento spinozista mais profundamente, trazendo as impressões que podem elucidar alguns fundamentos da Ética e contribuir com o desenvolvimento desta pesquisa. Porém, em se tratando de uma obra que não possui uma escrita comum, discorrerei sobre as escolhas do filósofo em seu método de escrita, que julgo facilitar o entendimento.

2.3.1 A busca do método

Escrita em latim com base no método geométrico, a

Ética é a última obra escrita por Spinoza, não publicada em vida, e está dividida em cinco livros ou partes15. É a síntese de todo o seu pensamento filosófico, tanto sob os aspectos ideológicos quanto práticos. O método geométrico16 é herança da geometria euclidiana e pressupõe uma escrita sintética a partir de axiomas, lemas, postulados, proposições, corolários e escólios, dispostos em sequência tal que se elucidem efeitos a partir de suas causas. Isto significava, para Descartes, raciocinar com ordem: “as coisas que são propostas como primeiras devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e as

15 Primeira Parte: Deus; Segunda Parte: A natureza e a origem da mente;

Terceira Parte: A origem e a natureza dos afetos; Quarta Parte: A servidão humana ou a força dos afetos; Quinta Parte: A potência do intelecto ou a liberdade humana (SPINOZA, 2008).

16 Em nota, o tradutor Joaquim de Carvalho aponta que o Apêndice da Ética I, elaborado pelo próprio Spinoza, é visto como prova de que o método geométrico seria insuficiente para a exposição do pensamento filosófico (CARVALHO In: ESPINOSA, 1983, p. 114).

48 seguintes devem depois ser dispostas de tal forma que sejam demonstradas só pelas coisas que as precedem” (DESCARTES apud SANTIAGO, 2010, p. 1).

Se hoje a visão de mundo mecanicista desenvolvida principalmente a partir de Descartes ainda influencia diretamente grande parte do mundo contemporâneo, na época de Spinoza esta era o que havia de mais avançado em termos de filosofia e ciência. É o método do filosofar que faz com que Spinoza se aproprie do cartesianismo. Conforme afirma Homero Santiago,

O que as Obras Póstumas nos sugerem é que a relação entre Espinosa e o cartesianismo é, primordialmente, uma relação de aprendizado; como se ele aprendesse a filosofar e pensar modernamente lendo e estudando Descartes. E por isso mesmo pôde divergir do cartesianismo com a serenidade e a segurança de quem o havia bem digerido e refletido (SANTIAGO, 2015, p. 1).

Duas questões merecem um esclarecimento no contato com a Ética. A primeira é que Spinoza busca atingir a perfeição, que para ele seria o mesmo que realidade e Deus (a substância). A Ética pretende ser a explicitação da metodologia com a qual a perfeição (ou realidade) pode ser alcançada17. Essa perfeição (ou realidade) é profundamente contraditória em relação aos ideais transcendentes, a exemplo dos modelos inatingíveis dos quais somos apenas cópias imperfeitas na filosofia de Platão; a perfeição, para Spinoza, é o real encontro com a realidade do mundo – a Natureza –, compreendido pelo

17 Esse empreendimento principiou no Tratado para a Correção do

Intelecto, obra inacabada. A intenção que Spinoza tinha de concluí-la é relatada na apresentação de suas Obras Póstumas. Porém Deleuze (2002, p. 14) afirma que as teorias das noções comuns foram melhor desenvolvidas na Ética, o que, possivelmente, tornou inúteis alguns desenvolvimentos do Tratado e a sua continuação.

49 intelecto humano em dois atributos: pensamento (realidade impalpável das ideias) e extensão (realidade tangível da matéria). Para Spinoza a perfeição seria alcançada em vida, a partir da inteligibilidade da razão, e essa noção de perfeição estava atrelada à sua definição de Natureza divina.

Esta questão é chave para que se compreenda o conceito spinozista de Deus como imanente à materialidade do mundo e os conceitos de corpo e mente como duas expressões da mesma substância (em seus atributos de extensão e pensamento, respectivamente). Estes foram os principais pontos de divergência da sua filosofia com as religiões judaico-cristãs da época e o principal motivo da perseguição pela qual o filósofo passou. Cogitar a noção de perfeição/realidade spinozista nos auxiliará a pensar algumas questões que serão discutidas mais adiante, sobre os teatros do real.

A segunda questão é que é necessário ter em mente que Spinoza vive em uma época em que a metáfora dominante sobre o corpo era essencialmente mecanicista, herança do cartesianismo (MEYER, 2011). Essa metáfora, fruto dos estudos científicos dos séculos XVI e XVII, pressupõe o corpo a serviço dos comandos da mente. Em nota, o tradutor Joaquim de Carvalho esclarece que “[...] o mecanismo na concepção da Ética não se dá exclusivamente na ordem material, isto é, dos corpos extensos, mas também na vida psicológica, afetiva e intelectual” (ESPINOSA, 1983, p. 118). Entretanto, Spinoza vai além: ao tratar o corpo humano como um conjunto de partes que são também outros corpos (em pensamento ou em extensão), considerara-o como estrutura: organização de partes que se relacionam e influenciam-se simultaneamente umas às outras. Spinoza substitui o mecanismo de causas externas por um mecanismo de causalidade interna (CHAUÍ, 1983), de modo que atividade e passividade se darão simultaneamente18 no corpo e na mente (JAQUET, 2011).

18 Chantal Jaquet (2011) contesta a tese do paralelismo entre mente e corpo

50

O que compreenderíamos mais comumente por perfeição e mecanicismo, portanto, tem seus limites dentro da obra do filósofo, cujo pensamento é arraigado mais fortemente em termos como dinamismo e movimentos simultâneos entre partes, em que não haveria subordinação ou hierarquia entre essas instâncias. Cabe observar, entretanto, que colocando a realidade como o mesmo que perfeição, Spinoza reforça a condição imanente da natureza: a realidade é perfeita em si mesma.

A necessidade de esmiuçar as causas dos afetos em um método geométrico existe a partir da ideia de que, por serem parte da natureza, eles seguem suas mesmas leis e regras:

Eles admitem, pois, causas precisas, que nos permitem compreendê-los, assim como possuem propriedades precisas, tão dignas de nosso conhecimento quanto as propriedades de todas as outras coisas cuja mera contemplação nos causa prazer [...] considerarei as ações e os apetites humanos exatamente como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de corpos (SPINOZA, 2008, p. 161-163, grifos meus).

A precisão almejada por Spinoza na compreensão dos afetos é evidente para ele porque o filósofo considera que seria possível especificá-los de forma clara e o mais objetiva possível. Damásio (2004), ao relacionar à filosofia de Spinoza

adotada pela maioria das análises da obra de Spinoza. A autora critica a abordagem da teoria spinozista por esse viés, visto que, segundo ela, essa associação vem de Leibniz e imageticamente conduz a pensar mente e corpo na realidade como linhas iguais que não se cruzam (JAQUET, 2011, p. 25). Jaquet retoma o termo “igualdade”: “É a palavra exata que Espinosa emprega para exprimir o fato de que a potência de pensar de Deus é simultânea a sua potência de agir” (JAQUET, 2011, p. 31). Segundo a autora, Spinoza recorre tanto ao adjetivo aequalis como ao advérbio simul para designar a simultaneidade entre as afecções do corpo e as ideias das afecções na mente.

51 a sua pesquisa sobre emoções e sentimentos como reguladores do equilíbrio homeostático da vida (embora não apenas limitada a isso), se aproxima dessa concepção, embora reconheça que há muito que ainda permanece obscuro nas pesquisas da neurobiologia. Para Damásio, emoções e sentimentos estariam relacionados ao que Spinoza compreende por afecções e afetos, embora os afetos possuam outra acepção mais ampla, que será tratada adiante. Neste momento, é preciso trazer à análise da obra de Spinoza as experiências vivenciadas pelo autor19, pois sua máxima de que conhecer é conhecer pela causa20, para não ficar refém dos afetos, se tornou uma das bases de sua filosofia.

A filosofia de Spinoza está profundamente amalgamada às experiências contraditórias em comunidade que viveu: filho de pai e mãe que tiveram que fugir de Portugal devido à Santa Inquisição, Spinoza nasceu distante da perseguição católica. Teve uma educação religiosa na comunidade judaica de Amsterdam, onde seus pais se estabeleceram.

Spinoza encontraria em sua própria religião judia – a mesma que é perseguida por outrem – inquirições e cerceamentos à liberdade e ao livre pensamento muito semelhantes às da Inquisição Católica. Excomungado aos 23 anos de idade, com indicações expressas e contundentes de que nenhuma outra pessoa da comunidade mantivesse contato com ele ou lesse os seus escritos21, deserdado e afastado da família,

19 As fontes das informações utilizadas para esse texto provêm, além das

notas dos(as) tradutores(as), dos escritos de Chauí (2010;1983), Damásio (2004), Deleuze (2002), Gleizer (2005) e Santiago (2010).

20 “O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve este último” (SPINOZA, 2008, p. 15).

21 Marilena Chauí (1983) e Tomaz Tadeu (SPINOZA, 2008) trazem trechos do herem, a carta de excomunhão do filósofo: “Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa [...] Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai, maldito seja quando regressa [...] Ordenamos que

52 Spinoza foi levado a constatar pelos seus estudos e pela experiência que as crenças que eliminavam o diferente como possibilidade eram prejudiciais em variados aspectos (político, humano, ético), o que o motivou a elaborar uma Ética que tomasse outras balizas para a convivência humana e para o bom viver. O filósofo Gilles Deleuze afirma que

Em toda sociedade, mostrará Espinosa, trata-se de obedecer e nada mais: é por isso que as noções de culpa, de mérito e de demérito, de bem e de mal são exclusivamente sociais e estão vinculadas à obediência e à desobediência. A melhor sociedade será, pois, aquela que isenta o poder de pensar do dever de obedecer, e, em seu próprio interesse, se resguarda de submetê-lo à regra do estado, que vale apenas para as ações. Enquanto o pensamento for livre, portanto vital, nada estará comprometido; quando deixa de o ser, todas as outras opressões tornam-se igualmente possíveis, e, uma vez realizadas, qualquer ação se torna culpável, e toda a vida ameaçada (DELEUZE, 2002, p. 10).

Dessa forma, é principalmente a partir de sua experiência diante da intolerância religiosa que Spinoza categoriza as crenças como desnecessárias e defende a razão como principal fonte de compreensão do universo, como se já anunciasse os princípios iluministas: o ser humano é capaz de conhecer e formular verdades de forma autônoma, independente das “verdades absolutas” das teologias, pois elas decorrem do desconhecimento das causas, gerando crenças. Segundo a filósofa brasileira Marilena Chauí,

ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele” (CHAUÍ, 1983, p. VII).

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A filosofia de Espinosa demonstra que a imagem de Deus, como intelecto e vontade livre, e a do homem, como animal racional e dotado de livre-arbítrio, agindo segundo fins, são imagens nascidas do desconhecimento das verdadeiras causas e ações de todas as coisas. Essas noções formam um sistema de crenças e de preconceitos gerado pelo medo e pela esperança, sentimentos que dão origem à superstição, alimentando-a com a religião e conservando-a com a teologia, de um lado, e o moralismo normativo dos filósofos, de outro (CHAUÍ, 2010, p. 1).

Contrapondo o pensamento dogmático do Deus que cria e governa o mundo, Spinoza elabora a sua ética do móvel não a partir da fé, e sim do conhecimento22, sendo por meio deste que se pode alcançar a ideia do divino. A ideia de Deus do filósofo era oposta àquela defendida pelos sistemas dogmáticos de crenças.

2.3.2 A potência de um corpo, o afeto do qual é capaz

Um corpo é um pedaço de natureza cuja fronteira é a pele (António Damásio).

Em seu livro I da Ética, intitulado Deus, Spinoza

apresenta os fundamentos centrais da sua exposição filosófica – a definição da substância que daria forma e ideia de tudo o que existe. O Deus spinozista, contrariamente ao deus transcendente das grandes religiões, não estaria fora do mundo: era a própria força de existir de todas as coisas, expressa nos atributos de pensamento e extensão. Essas são as duas formas pelas quais o entendimento concebe como sendo as essências

22 A ética de Spinoza é advinda do conhecimento que, mais tarde, Nietzsche

consideraria “o mais potente dos afetos” (NIETZSCHE apud MARTINS, 2009, p. XVII).

54 de cada coisa. Deus seria a substância, existente em si e por si mesmo concebido – Deus (substância) seria autoproducente e absolutamente infinito, não pela via negativa do “não ter fim”, mas pela via da positividade, da infinidade de formas nas quais Deus efetuaria a sua potência de existir.

Spinoza traz como primeira definição a ideia de causa de si. Segundo Carvalho (2015), ao trazer a causa de si anterior à substância, o filósofo implicaria que o ser absoluto é essencialmente dinâmico e que

[...] a existência da substância seria ato ou consequência da sua potência. O sistema, logo de início, surgiria, pois, com pretensão ontológica e por assim dizer, dinâmica, e não como pura e abstrata dedução, a cuja estratificação lógica mais tarde viesse juntar-se a realidade existente (CARVALHO, 2015, p. 17, grifo meu).

Encarar a potência como ato de existir – e não como um vir-a-ser que ainda se tornará em algo23 – é distinção fundamental a ser feita entre modo de pensar imanente ou transcendente: “Poder não existir é impotência e, inversamente, poder existir é potência” (SPINOZA, 2008, p. 25). A potência é o poder de existir de um corpo, poder de afirmação da sua realidade. Esse esforço do corpo em perseverar no seu ser foi chamado de conatus: “a potência ou o esforço pelo qual [uma coisa qualquer] se esforça por perseverar em seu ser, nada mais é do que sua essência dada ou atual” (SPINOZA, 2008, p. 175). Segundo Marcos Gleizer,

[...] a preservação da existência biológica bruta é apenas o conteúdo mínimo do conatus de um ser humano. O conatus humano, portanto, não é apenas um princípio de autoconservação, mas

23 Esta seria a noção aristotélica de potência, refutada por Spinoza,

conforme Carvalho esclarece em nota (ESPINOSA, 1983b, p. 108).

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também de auto-expansão e realização de tudo o que está contido em sua essência singular (GLEIZER, 2005, p. 31).

Um corpo é “um modo que exprime, de uma maneira definida e determinada, a essência de Deus, enquanto considerada como coisa extensa24” (SPINOZA, 2008, p. 79). Corpos são porções determinadas da substância, em seu atributo extensão, que possuem, em si, relações com demais corpos. O corpo humano é uma composição de muitos corpos, estes colocados em justaposição e que “se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus diferentes de velocidade, de maneira a transmitirem seu movimento uns aos outros segundo uma proporção definida” (SPINOZA, 2008, p. 101). São os encontros entre os corpos e as modificações que decorrem disso – afecções – que definem as qualidades de suas relações: seus afetos.

2.3.2.1 A cena como corpo potente – presença

As noções de corpo, encontro, relações e afetos têm

sido pertinentes em estudos recentes sobre presença cênica, encarando-a com qualidade eminentemente relacional – geradora de potencialização de todos os corpos envolvidos, sejam artistas ou espectadores. (FERRACINI, 2012; 2013; DUENHA, 2014). Embora Spinoza não tenha voltado a sua filosofia para a arte, quando encaramos esta como uma proposição que leva em consideração o ethos de artistas – os modos ou maneiras como são compostas as relações em cena – os conceitos de Spinoza ampliam a força de tais propostas. É 24 Segundo o filósofo, é do desconhecimento dessa condição que decorre o

maior equívoco da superstição, que é a antropomorfização de Deus: “Aqueles que confundem a natureza divina com a humana, facilmente atribuem a Deus afetos humanos, sobretudo à medida que também ignoram de que maneira os afetos são produzidos na mente” (SPINOZA, 2008, p. 19).

56 dessa forma que Renato Ferracini percebe o trabalho desenvolvido pelo Lume25, onde é artista-pesquisador: “O ator é um profissional do afeto que engendra a ação” (FERRACINI, 2013, p. 31), não mais um ser que impõe presença e exige um patamar superior em relação ao público. Há troca, há forças invisíveis que se configuram na materialidade cênica26 com as quais atores e atrizes lidam, compondo esse corpo que se chama cena. O desafio é tecer uma composição que potencialize ao máximo todas as partes envolvidas. Essa questão será mais bem vista no prosseguimento do capítulo.

Milene Lopes Duenha (2014) aprofunda sua pesquisa de mestrado a partir das noções de presença cênica que ofereçam espaço à potência de afetos que podem aflorar no encontro dos corpos – artistas e público. Especifica a presença como relacional a partir da investigação de conceitos de inúmeros artistas ligados ao teatro, dança e performance, além de enveredar por filósofos como Spinoza e Gumbrecht. Dessa forma, a relação que se estabelece no “entre-corpos” cênico não ocorre como imposição do artista: “A noção de presença, aquela do destaque, da segurança, da apreensão da atenção do espectador, se dilui em favor da incidência, do que emerge das presenças no aqui-agora, no entre corpos” (DUENHA, 2014, p. 48, grifo da autora).

Tanto Ferracini como Duenha apontam para a escuta como procedimento afetivo, um deixar-se afetar pelos corpos

25 O Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, núcleo

vinculado à Universidade de Campinas – Unicamp, foi criado em 1985 por Luís Otávio Burnier, ator, diretor e pesquisador cênico. O trabalho do grupo se debruça sobre a pesquisa e codificação de técnicas para o ator que, ao longo de trinta anos, foram tomando direcionamentos distintos, sempre propondo novas investigações sobre a teoria e prática da cena. Renato Ferracini tece junto à filosofia o pensamento sobre a sua prática, principalmente de Gilles Deleuze, Spinoza e Jacques Derrida (FERRACINI, 2014; 2013; 2012).

26 Questões como composição, materiais e materialidade serão tratadas no capítulo seguinte.

57 como um processo de permeabilidade que gera outras qualidades de presença em cena, constituindo espaços de relações e de encontro. Esse corpo cênico emerge como espaço de troca e de atravessamento de forças (FERRACINI, 2012, 2013). Para compreender melhor essas questões, cabe melhor definição dos afetos para Spinoza.

2.3.2.2 A afetividade como pensamento e conhecimento:

afetos, afecções, paixões e ações Afetos e afecções27 são conceitos essenciais na

elaboração spinozista. São os efeitos imanentes dessas relações entre corpos, que além de demonstrarem o que ocorre na realidade do corpo, aumentam ou diminuem o seu conatus (ou esforço de perseverar a existir, que tenta manter as relações dinâmicas equilibradas). A diferença fundamental é que as afecções são modificações que os corpos experienciam por meio do contato com os outros corpos – ou o que Damásio (2004) chamou de emoções. Cada corpo experiencia o conjunto de suas afecções em determinado modo. Já os afetos, para Spinoza, podem ser tanto os efeitos das afecções, como as ideias que a mente forma sobre as mesmas – ideias que vem a modificar a potência de ação desse corpo:

27 Gilles Deleuze chama a atenção para a tradução destes dois termos do

latim (affectio e affectum) que durante algum tempo foram traduzidas ambos por “afeto” (DELEUZE, 1978). Porém as afecções diferem dos afetos, e não há razão para traduzir os dois termos pela mesma palavra. Outra questão importante referente às traduções da Ética é entre os termos alma e mente. Spinoza usa o termo latino mens, e alguns autores(as) optam por traduzi-lo por mente ao invés de alma. É o caso da tradução de Tomaz Tadeu (SPINOZA, 2008) e das obras de Damásio (2004) e Jaquet (2011). Adoto o termo mente, já que alma possui uma conotação de transcendência religiosa e independência do corpo, concepção refutada por Spinoza.

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Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções. [...] Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão (SPINOZA, 2008, p. 163).

Vemos que todo afeto é uma afecção (a ideia existe em simultaneidade à modificação do corpo) mas nem toda afecção vem a ser um afeto: para sê-lo, há modificação não apenas do estado do corpo, mas da sua potência de agir. Somos o resultado dessas relações, encontros ou choques. Rapidez e lentidão, movimento e repouso de corpos definem os afetos como relações dinâmicas – são modificações do estado atual dos corpos e de sua potência de agir que ocorrem nos constantes encontros que temos com outros corpos no mundo.

Além da definição anterior, Spinoza define afeto de outra forma, na conclusão do mesmo livro, agora voltando-se para as paixões:

O afeto, que se diz pathema (paixão) do ânimo, é uma ideia confusa, pela qual a mente afirma a força de existir, maior ou menor do que antes, de seu corpo ou de uma parte dele, ideia pela qual, se presente, a própria mente é determinada a pensar uma coisa em vez de outra (SPINOZA, 2008, p. 257).

Há uma sutil diferença entre compreendermos afetos como paixões ou ações. Partindo das proposições acima, fica claro que o que Spinoza denomina como afeto vem, primeiramente, dos movimentos gerados pelas modificações do corpo, quando elas se apresentam em dois tipos de afecções; estas constituem os afetos que potencializam ou “despotencializam” a existência desse corpo. Porém, se o corpo puder ser causa de tais afetos, ocorre uma ação; se o corpo

59 apenas se afeta ao acaso dos encontros, esta seria uma paixão. Ou seja, a mente (e, em simultaneidade, o corpo) padeceria apenas à medida que tem afetos-paixões: ideias ditas confusas ou inadequadas. Se pudermos ser causas adequadas, temos poder de ação – afetos-ação.

A mente é levada a pensar de formas diferentes a partir dos afetos do corpo. A afetividade é, para Spinoza, uma das formas de exercer o pensamento, não sendo o intelecto o pensamento absoluto, e sim “um modo definido do pensar, o qual difere de outros, tal como o desejo, o amor, etc.” (SPINOZA, 2008, p. 55, grifo meu). Isso é definido ainda na Ética I e aprofundado na Ética II e III . Afetividade não seria somente guiar-se pelo afeto, mas pensar levando em consideração a sua existência imanente. Seria compreender o desejo, a alegria e a tristeza como afetos primários (explicados mais adiante), e os seus afetos compostos (que formam as flutuações do ânimo) e derivados (que formam os demais afetos, alguns explicitados pelo autor na Ética III, e possuem várias nuances e intensidades, dependendo dos mapas afetivos dos corpos em relação). A vivência afetiva é dinâmica e, se potencializar os corpos, afirma a realidade ou força de existir dos mesmos.

Spinoza critica veementemente pensadores anteriores, crenças e superstições de sua época que discorreram sobre as paixões, como se estas se tratassem do mal que devia ser extirpado da natureza humana, como se dela não devessem fazer parte; para o filósofo, por terem desconhecimento de que o mundo não se apresenta a nós de forma objetiva, mas sim a partir da maneira como nos afeta, as pessoas passavam a elaborar explicações sobre as paixões humanas que não passavam pelo crivo do conhecimento, mas sim da fé:

Tudo aquilo, pois, que beneficia a saúde e favorece o culto de Deus eles chamaram de bem; e o que é contrário a isso chamaram de mal. E como aqueles que não compreendem a

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natureza das coisas nada afirmam sobre elas, mas apenas as imaginam, confundindo a imaginação com o intelecto, eles creem firmemente que existe uma ordenação nas coisas, ignorando tanto a natureza das coisas quanto a sua própria (SPINOZA, 2008, p. 71).

Spinoza julga a atribuição de “ordem” e “bem” exercido pelos seres como fruto do desconhecimento da natureza dos afetos, apenas considerando o que lhes afetasse agradavelmente. Disso provêm as dualidades existentes – bem/mal, belo/feio, trevas/luz – em que uma deve ser seguida, enquanto a outra deve ser rechaçada. Essa atribuição leva a um desconhecimento da natureza dos seres. Para Spinoza, é claro que o conhecimento da dimensão afetiva é fundamental para o profundo conhecimento da realidade. A liberdade humana é exercida e alcançada a partir da busca do conhecimento sobre o mundo, e nessa busca, o conhecimento e a maneira de lidar com os afetos são essenciais. O conhecimento da realidade seria alcançado pela potencialização do nosso ser ao máximo possível da alegria, e essa potencialização deveria ser comum a todos os corpos envolvidos na relação: de modo que a partir do nosso conhecimento sobre os afetos, haveria possibilidade de lidar com eles da melhor forma possível. Considero também que poderia haver certa responsabilidade sobre a maneira de operá-los, afunilando assim o conceito de ética.

2.3.3 Afeto como modo de agir – composição numa ética das relações

Como acontece que as pessoas que têm o poder, não importa em que domínio, tenham necessidade de afetar-nos de uma maneira triste? (Gilles Deleuze, 1978, p. 05).

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De que forma poderíamos nos afetar para potencializar nossa ação no mundo? Para Spinoza (2008), o caminho para essa liberdade passa, inexoravelmente, pelo conhecimento das causas dos nossos afetos. Definindo vários afetos na Ética III como derivados de três afetos principais – alegria, tristeza e desejo –, na Ética IV, o filósofo trata de explanar como a mente humana ainda é serva dos afetos, pelo desconhecimento de sua natureza e origem, e como muito do que é considerado como virtuoso é, na verdade, pura servidão aos afetos. Cabe a esta pesquisa, mais adiante, apontar em que medida a alegria, a tristeza e o desejo são relevantes para a análise dos espetáculos elaborados como autoficção.

Alegria e tristeza são compreendidas como passagens de um estado do corpo a outro, não estados puros: “Por alegria compreenderei, daqui por diante, uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca, compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor” (SPINOZA, 2008, p. 177, grifos meus). A alegria potencializa o corpo e o impele à ação, enquanto a tristeza mantém o corpo em estagnação, num estado de não potencialização da existência. Para Spinoza, a tristeza é um afeto-paixão, pois nenhum corpo pode agir para diminuir a sua existência. A alegria pode ser tanto um afeto-ação quanto um afeto-paixão; enquanto não se tornam afetos-ação, os afetos de alegria devem ser alimentados para uma diminuição dos afetos de tristeza, pois estes diminuem a nossa capacidade de agir. Tristeza e alegria, junto ao desejo, são afetos primários de onde todos os demais derivam.

Já o desejo possui estreita relação com o conatus: o esforço por perseverar em si. É uma tomada de consciência daquilo a que apetecemos:

O desejo é o apetite juntamente com a consciência que dele se tem [...] não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que

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a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa (SPINOZA, 2008, p. 177).

Spinoza esclarece que o desejo, assim como a alegria, também é ação e não há ação que não esteja relacionada à alegria ou ao desejo: “Entre todos os afetos que estão relacionados à mente à medida que ela age não há nenhum que não esteja relacionado à alegria ou ao desejo” (SPINOZA, 2008, p. 235).

Retomando que os afetos agem no encontro entre corpos, um bom encontro é o mesmo que um encontro alegre, que deve potencializar todos os corpos envolvidos para a ação no mundo. Um mau encontro, ao contrário, geraria a passagem a uma perfeição menor, a tristeza. Esses encontros são inúmeros, e apenas percebidos por meio dos afetos que temos:

Há tantas espécies de alegria, de tristeza e de desejo e, consequentemente, tantas espécies de cada um dos afetos que desses são compostos (tal como a flutuação de ânimo) ou derivados (tais como o amor, o ódio, a esperança, o medo, etc.) quantas são as espécies de objetos pelos quais somos afetados (SPINOZA, 2008, p. 229).

É analisando tais aspectos da filosofia spinozista que Deleuze afirma que a essência de alguém é definida pelo seu poder de ser afetado, por suas intensidades; o conhecimento dos seus mapas afetivos aliado à prudência seriam as medidas que balizariam os encontros:

Um poder de ser afetado é realmente uma intensidade ou um limiar de intensidade. O que Spinoza realmente quer é definir a essência de alguém de maneira intensiva, como uma quantidade intensiva. Enquanto vocês não conhecem suas intensidades, vocês se arriscam

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a ter um mau encontro, e poderão muito bem dizer que é belo o excesso, a desmedida... porém não há desmedida, não há senão fracasso, nada além do fracasso. Advertência quanto às superdoses (overdoses). É precisamente o fenômeno do poder de ser afetado que é excedido com uma destruição total (DELEUZE, 1978, p. 11, grifo meu).

A importância que o conhecimento tem para Spinoza é notável em toda a sua obra. Não apenas um simples meio para se atingir a perfeição, mas, segundo Nietzsche, este seria o afeto mais potente dentre todos, como será visto a seguir.

2.3.3.1 O conhecimento como afeto

Após a morte de Spinoza, sua obra continuou a ser

proibida e poucos eram aqueles que conseguiam ter acesso a ela, correndo o risco de serem também perseguidos. Quando Nietzsche finalmente inicia a leitura de sua obra, escreve uma carta a um amigo, narrando o encontro potente: anuncia Spinoza como seu precursor e considera que a filosofia de ambos tenha a mesma busca, “fazer do conhecimento o mais potente dos afetos” (NIETZSCHE apud MARTINS, 2009, p. XVII).

A própria razão de aguçar a percepção dos afetos é conhecê-los, e com isso, constituir em si o aprendizado da natureza e, com isso, afetar-se ainda mais:

Conhecimento que expressa e é ele próprio um afeto do viver, capaz de transformar a existência a partir dela própria, e que se entende, assim, no sentido oposto ao da metafísica, [...] denunciada como uma construção imaginária, criada com a finalidade de defender o homem das dores da vida (MARTINS, 2009, p. XIII).

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Quanto maior seja nosso poder de ser afetado por diferenças, de conhecê-las, mais conhecimento poderemos articular (LATOUR, 2008). Scarlett Marton, na Introdução de Martins (2009), reforça o pensamento de Nietzsche sobre o conhecimento em Spinoza e na própria filosofia nietzschiana, pois ambos entendem que

[...] o conhecimento não resulta de uma atitude neutra, objetiva e desinteressada; acreditam que não existe um instinto de conhecimento, que se volte de forma ascética para a verdade. Ao contrário, considerando-o “o mais potente dos afetos”, ambos julgam que o conhecimento se ache intimamente relacionado com os impulsos que se fazem presentes no ser humano (MARTINS, 2009, p. 4).

Mesmo com a crítica que Nietzsche desenvolveu, posteriormente, à filosofia de Spinoza, ambos concordavam que o ser humano não seria neutro, e sim, constantemente, ciente ou não, permeado por afetos de encontros anteriores. Ondes esses encontros ocorreriam e esses afetos agiriam? Na experiência.

2.3.3.2 Experiências de composições

O termo experiência é utilizado nos escritos de Spinoza

com uma significação clara das vivências nas relações com o mundo, em várias passagens da Ética. São muito notáveis no escólio da proposição 2 da Ética III: “[...] se eu não demonstrar isso por meio da experiência, os homens dificilmente se convencerão [...] a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que [pode] o corpo [...]” (SPINOZA, 2008, p. 167). E ainda no mesmo escólio, em que explicita a simultaneidade dinâmica entre corpo e mente:

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Saiba-se ou não por quais meios a mente move o corpo, a experiência mostra, entretanto, que se a mente não fosse capaz de pensar, o corpo ficaria inerte [...] pergunto-lhes: não é verdade que a experiência igualmente ensina que se, inversamente, o corpo está inerte, a mente não se torna também incapaz de pensar? (SPINOZA, 2008, p. 169).

A experiência não é trazida como um conceito explícito na obra, mas sim a permeia como o campo dos encontros, no qual ocorre o aprendizado por meio da experiência. Ela se configura como o campo de possibilidades da vivência afetiva, que se dá no encontro entre os corpos, nas relações que modificam – afetam – os seus estados anteriores. A experiência é uma percepção dinâmica; entretanto, para Spinoza, é ideia confusa e necessita da elaboração racional para se tornar inteligível, analisável, que crie base para um aprendizado. Para o filósofo, a compreensão que advém do conhecimento diretamente pela experiência (que Spinoza chamará, ao definir os gêneros de conhecimento, de Conhecimento pela Experiência Vaga) diz respeito a opiniões e imaginações, percepções dos sentidos cujas ideias não estão organizadas de modo a serem encaradas inteligivelmente. A experiência como algo vago ainda traz uma visão cartesiana de pensar sobre a experiência e a sua elaboração racional. Para Spinoza, “o conhecimento de segundo e de terceiro gênero, e não o de primeiro, nos ensina a distinguir o verdadeiro do falso” (SPINOZA, 2008, p. 135). Entretanto é essa experiência que permite que os corpos interajam e possam proporcionar a sua potencialização:

Pois o corpo humano é composto de muitas partes, de natureza diferente, que precisam, continuamente, de novo e variado reforço, para que o corpo seja, uniformemente, capaz de tudo o que possa se seguir de sua natureza e, como consequência, para que a mente também seja,

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uniformemente, capaz de compreender, simultaneamente, muitas coisas (SPINOZA, 2008, p. 319).

Seria possível inserir neste lugar a experiência afetiva proporcionada pela invenção artística, seja em relação à recepção, seja para os(as) próprios(as) artistas? No caso da experiência afetiva transformada em cena, a reelaboração poética, imagética e sensorial dos afetos fez-se necessária, não sem certo desconforto, como vias de apreensão, intelecção e invenção. Em espetáculos permeados pela autoficção, a experiência vivida pelos(as) artistas da atuação, ao se tornar experiência cênica, compõe com outros corpos presentes que se deixam afetar pelos mesmos. A compreensão do conceito de composição para Spinoza tem relevância para esse entendimento.

Segundo Marilena Chauí, em nota de rodapé (ESPINOSA, 1983a, p. 374), para Spinoza, a composição implica na possibilidade de divisão ininterrupta – os corpos compostos são formados por uma composição de corpos simples. Estes corpos se vinculam28 uns aos outros, mediante relações entre movimento e repouso, rapidez e lentidão. Existem corpos simples (que são porções definidas do atributo extensão) e existem corpos compostos, conjuntos de corpos simples, numa proposição que atinge diversos níveis do entendimento sobre de que corpo falamos, ou compomos.

Se aproximarmos esta noção de composição do trabalho de atores, atrizes e bailarinos(as), isso nos fará ver o problema

28 “Por vínculo (cohaerentia) entre as partes entendo apenas aquilo que faz

com que as leis ou a natureza de cada uma das partes se ajustem (accommodant) às leis ou à natureza de cada uma das outras, de tal modo que não haja entre elas a menor contradição (contrarientur). Acerca do todo e das partes, considero as coisas como partes de um certo todo enquanto a natureza de cada uma delas se ajusta, na medida do possível, à das outras, de maneira a se conformarem (consentiant) umas às outras” (ESPINOSA, 1983a, p. 382).

67 de outra forma: além da composição dos corpos presentes em cena, a composição da obra com a plateia (e não apenas para a plateia). Isso desloca a reflexão para o acontecimento que se dá em cena, e não apenas para sua elaboração prévia. Cada corpo-espetáculo é composto pelos seus inúmeros corpos-partícipes presentes no momento de seu acontecimento – corpos não apenas humanos, mas que envolvem qualquer outro elemento cênico (FERRACINI, 2014). Se dessa composição serão gerados afetos de alegria ou de tristeza, se se afirmarão maior ou menor realidade dos corpos, e ainda, se a força de existir dos corpos envolvidos será potencializada, gerando maior capacidade de ação e (re)composição ao final do espetáculo, são questões que caberão às reflexões de cada artista. Mais adiante, busco exatamente esse exercício de reflexão a partir dos dois espetáculos com os quais compus alguns desses momentos.

Em linhas gerais, o que Spinoza propõe em sua Ética é o conhecimento e investigação dos afetos para, assim, conhecer o próprio campo de ação – o corpo – e compreender os movimentos que um corpo exerce sobre outro (que relações entre corpos poderiam se dar, e quais seriam as maneiras de composição). Essa compreensão é necessária para que não haja mera servidão humana aos afetos, pelo desconhecimento de suas causas. Apropriados deste conhecimento, os corpos poderiam alcançar a liberdade. Isso seria possível a partir do conhecimento gerado na regulação entre afetos de alegria/tristeza: o processo intelectual não existe puro, pois também se trata de um processo afetivo inerente e fundamental à natureza humana, do qual não é possível retirar do atributo29 pensamento que nos constitui. Entretanto, o intelecto e a intuição (Segundo e Terceiro Gêneros de Conhecimento)

29 Para Spinoza, os atributos são as formas inteligíveis com as quais o

intelecto consegue compreender a substância e que julga ser a sua essência. São atributos o pensamento e a extensão.

68 também são fundamentais no alcance da liberdade humana, pois são deles que provêm as balizas para a compreensão dos afetos. Finalmente, os afetos têm poder de modificação nos corpos e oferecem compreensão sobre o real estado de um corpo e a sua real potência de ação. Numa sociedade capitalista que agencia afetos de acordo com valores de mercado, as noções de alegria e desejo costumam ser esvaziadas de sentido. A partir da investigação de si, dos mapas afetivos com o fim de conhecer-se e potencializar-se, a alegria retoma a sua força e não será apenas inércia; a relação dinâmica tem que acontecer por movimento próprio – ação.

Não tomo aqui a tarefa de avaliar a total aplicabilidade determinada das proposições spinozistas sobre a análise dos afetos. Busco dar um sentido às suas proposições que se aproximem – pois observo essa possibilidade – da criação artística analisada neste trabalho. Entretanto, cabe apontar que a sua preocupação continua sendo atual na contemporaneidade: que vias possuímos para termos o aprendizado da melhor maneira de lidarmos com corpos que nos afetam, com as relações entre seres? Nem o modelo educacional, nem o Estado, nem as famílias, nem as religiões, nem a tecnologia estão conseguindo evitar as catástrofes cotidianas advindas dos choques entre corpos e dos afetos que surgem. As reflexões de Spinoza alcançam a contemporaneidade com a mesma profundidade e urgência. O que a arte, e principalmente as artes da cena aqui estudadas, conseguiriam nesse panorama? Talvez muito pouco. Porém, artistas têm se levantado em propostas que trazem o pensamento sobre a ética em cena, acompanhando a dinâmica dos corpos. 2.4 DANÇAR AFETOS EM CENA

Os conceitos spinozistas de corpo, afeto, potência, experiência e composição, quando observados pela ótica da

69 invenção artística, reverberam nos processos de criação aqui estudados a partir de outras pesquisas como a de Valeska Figueiredo (2011), que se dedicou diretamente a pensar a relevância da Ética de Spinoza para repensar a criação em dança.

Para Figueiredo, quem assiste a alguma obra de dança, a percebe como corpo exterior ao corpo humano, e é por meio das afecções geradas entre o corpo-dança e o corpo-espectador que os dois se vinculam. A partir desse vínculo, há a possibilidade da dança gerar espaço de reflexão e pensamento, na elaboração de conceitos (FIGUEIREDO, 2011, p. 3-4). Assim,

Para a atuação artística é fundamental entender não só como o corpo é afetado por uma dança, mas principalmente, refletir sobre as causas e efeitos das ideias que daí provém (sic). Ao se relacionar com a dança desta forma, deixa-se de ter uma postura passiva com a arte (FIGUEIREDO, 2011, p. 7).

Considero que a postura passiva de artistas e espectadores(as) pode ocorrer quando estes(as) não encaram a arte como elaboração de si mesmos(as) e de seu conhecimento por meio dela. Além disso, a busca por uma arte que não lhes mobilize internamente, que mostra versões superficiais e facilmente “prontas” da realidade, pode acarretar a mesma inércia dos afetos, retirando a possibilidade de elaboração de afetos potentes, pois não se direcionam à ampliação de conhecimento sobre a realidade. Valeska Figueiredo prossegue afirmando que

Nesse sentido, as afecções do corpo de artistas e espectadores provocadas por uma cena de dança, cuja ação artística gera diferentes afecções incitadas de diversos modos, pode

70

produzir ideias adequadas30 em mentes internamente dispostas. Para isso, é preciso sempre estar atento e rompendo com a servidão humana (FIGUEIREDO, 2011, p. 13).

Fazendo a ponte entre a proposição de Spinoza e a elaboração da arte, a servidão humana aconteceria devido ao desconhecimento das causas dos afetos que nos moveriam em direção à arte que elaboramos ou fruímos. Isso faz com que, segundo Deleuze (1978), nos arrisquemos ao acaso nos encontros e afetos que eles podem gerar. Se eles não me geram potência, não conhecendo suas causas, não é possível modificá-las. Mas se investigarmos de que modo poderemos fazer do que nos afeta uma ação potente – para Spinoza, uma alegria – teremos maiores possibilidades. Nos espetáculos aqui analisados, para que a experiência se tornasse relato e, após isso, elaboração estética em cena, os caminhos dos grupos envolvidos aqui foram diversos. Sendo o viver necessariamente experienciado na (con)vivência, o ponto que me interessa explanar é que as vivências dos afetos de tristeza das atrizes, dramaturgas e coreógrafas de si mesmas – aqui “tristeza” compreendida como o afeto não potencializador, estagnador, que diminui a afirmação da realidade de cada corpo – foram adensadas e transformadas em forças afetivas de alegria – a alegria spinozista, que potencializou a invenção artística, a força de existir e a ação política no afetar outros corpos. Essa transformação ocorreu e proporcionou oportunidades de outros bons encontros – na própria elaboração, em apresentações e

30 A noção de ideia adequada adotada por Figueiredo parte do que é

afirmado por Spinoza (2008) sobre o que é uma ideia: é um conceito formado pela mente enquanto ela age na formação desse conceito, não uma percepção (que revela certa passividade da mente ao objeto). Uma ideia adequada terá uma conceituação ampla e “verdadeira”, ou seja, ativa e o menos parcial possível. A parcialidade e passividade de uma ideia a torna inadequada. Para maior contextualização, ver as definições 3 e 4 e a proposição 11 da Ética II (SPINOZA, 2008, p. 79 e 95).

71 debates, por exemplo. Isso demonstra a possibilidade de pensar os conceitos filosóficos de Spinoza voltados aos espetáculos em questão.

2.4.1 Abraçar o vazio

Como já foi dito, o espetáculo (S)Em Mim (2014), dirigido por Luciana Araújo, surge após uma angústia extrema sofrida pela coreógrafa, após a perda de seu namorado em um acidente fatal. Luciana, paulista que veio ainda criança para Juazeiro do Norte, desde essa época praticava jazz e street dance, duas modalidades que ela continuou a dançar até iniciar ballet clássico, já adolescente, e ingressar na Alysson Amancio Cia. de Dança31, em 2010, uma das mais renomadas companhias de dança contemporânea da região. Paralelamente, o namoro com Maílson iniciou na escola e durou toda a adolescência de ambos, razão pela qual já havia se estabelecido uma relação até mesmo entre a constituição de suas subjetividades. Quando essa rotina foi quebrada pela morte, foi um choque para Luciana e o período de luto trouxe consigo a depressão. Como ela relata,

[...] eu não sabia como lidar com aquilo. O luto é um processo muito complicado, eu nunca imaginei [...] quando chega em você, aí você vê que demanda um processo diferente. E eu já tinha chorado tudo que tinha para chorar, já tinha falado tudo que eu tinha para falar, eu percebia que as pessoas à minha volta já não me suportavam mais, porque ninguém quer estar perto de uma pessoa sofrendo. Isso não é

31 Também integrei a companhia durante três anos, convivendo com

Luciana neste período.

72

algo ruim, é que as pessoas realmente não sabem lidar com isso32.

Figura 4 – Espetáculo (S)Em Mim

Fotografia: Souza Junior. Em cena: Thiago Gomez, Aline Souza e Luciana Araújo.

Ela percebeu, em si e em outras pessoas, a dificuldade

de lidar com os afetos decorrentes do luto. Começou a escrita de um blog33, já que após oito meses ainda não tinha conseguido retomar a vida, estratégia que lhe ajudou por um breve período:

Mas depois de um tempo eu senti que as palavras já não estavam mais sendo suficientes. Eu abria o blog para escrever e por mais que eu tivesse muita coisa a dizer eu não conseguia. E aí eu lembrei que quando eu estava no período mais forte do luto, logo que o Maílson faleceu, o único momento que eu conseguia não pensar nele e não chorar era quando eu estava

32 Em Entrevista com a Inspire Cia. de Dança, no dia 16/09/2015. Ver em

Anexo 1. 33 A autora não tem a intenção de divulgar o blog, fato pelo qual não

exponho aqui o link de acesso.

73

assistindo vídeos de dança [...] E aí eu pensei: é na dança que eu tenho que dizer.

Entretanto, a dança que ela fazia não poderia mais ser a mesma; como uma tentativa de potencializar a sua existência e voltar a sentir em si o poder de ação, Luciana principiou os desenhos coreográficos do espetáculo (que ainda não intentava construir) e, aos poucos, foi percebendo que a sua experiência permeava o seu fazer artístico naquele momento. A coreografia foi sendo elaborada a partir da sua vivência, mesmo com toda a insegurança que sentia em si neste campo:

Eu não tinha ideia nenhuma do que é coreografar um espetáculo contemporâneo, que é um processo muito mais complicado do que a gente acha que é. Demanda um olhar muito mais apurado do que você realmente acha que é quando você está por fora. Você precisa se ver dentro [...] muitas vezes eu fiquei insegura, tipo: “Será que isso é bacana? Será que isso não vai ficar apelativo?”. Em alguns momentos eu cheguei a pensar assim. Mas eu precisava tanto colocar essas coisas para fora que depois de um tempo começou a ser algo muito natural, coreografar para mim na verdade era um alívio.

Como se seguisse o seu impulso de perseverar em si – o conatus – buscando o potencial de ação temporariamente perdido, a coreografia é plena de imagens vividas e sonhadas por ela, desde os princípios do relacionamento até a separação e o arrastado passar do tempo, com a obscuridade que toda a vida parecia ter tomado e a despedida que nunca aconteceu em vida, finalizando com a imagem da própria Luciana dançando, sozinha, em cena, após uma despedida que remetia a corpos em planos espirituais distintos.

Durante o processo, o compartilhar da sua experiência com o grupo foi tomando consistência de processo artístico. Entre tentativas e erros, Luciana foi aos poucos

74 compreendendo que, para olhar para a sua experiência pessoal como mote para criação artística, era necessário buscar um distanciamento, o mínimo que fosse, que permitisse um movimento de alteridade: a sua dor era similar à dor de muitas outras pessoas que chegavam a ela por meio do blog. Ao mesmo tempo, era uma experiência sua, e não do jovem grupo: na época, as idades dos participantes variavam entre 13 e 20 anos, incluindo ela própria. Como trabalhar com a experiência afetiva de tristeza – e aqui não apenas falo do sentimento tristeza, mas da impossibilidade de ação34 na vida que a depressão lhe trouxe – com pessoas que não possuíam em seus corpos uma memória palpável do que ela pretendia dançar?

Quando fui convidada a ver um dos ensaios, no início do processo (em 2013), as imagens oníricas que ela havia me relatado no período do luto e as imagens da própria corporeidade de Luciana daquele período evidenciaram-se nos gestos coreografados por ela, mas não alcançavam, nos corpos dos(as) bailarinos(as), a profundidade afetiva que eu havia visto em Luciana. Ela própria ainda estava num período em que o movimento de alteridade ainda não era eficiente, e possivelmente não conseguia observar melhor que as questões dela não chegavam ao grupo. Em procedimentos que relato mais adiante, auxiliei no processo de apropriação das bailarinas e bailarinos dessas imagens, pois de certa forma eu também as conhecia, devido à convivência que estabelecemos nesse período. É possível que essa minha participação tenha afetado – causado modificações – na dramaturgia do espetáculo. Não apenas pelos procedimentos35 que utilizei (embora tenha sido um momento de insights para todos os presentes), mas pela direção de Luciana e empenho de todos e todas, os trechos

34 A tristeza observada dessa forma se aproxima da concepção de Spinoza

(2008), porque o trauma havia gerado em Luciana a momentânea diminuição de sua potência de existir.

35 No capítulo 4 as estratégias dos procedimentos na composição desses afetos são mais bem explanadas.

75 apresentados mobilizavam a plateia por meio daquelas imagens, como observa Marcio Rodrigues36 sobre a atmosfera dos ensaios e apresentações:

O ensaio era como se fosse um jeito de lidar com a dor. Mesmo com o trabalho tão intrínseco à vida dela, ela conseguia tocar isso como se o processo levasse ela adiante (que era inclusive o final da coreografia), apesar de cada movimento remeter a conexões muito pesadas, que faziam todo sentido para nós que conhecíamos a história. Era interessante observar como o fato de ela estar conduzindo um espetáculo que falava sobre a vida dela mobilizava toda uma qualidade de movimento diferenciada ao redor.

O espetáculo não recontava a história de maneira explícita, não havia uma “narração” que permitisse o entendimento e o encadear dos fatos. Porém, através da dança e do trabalho de deixar-se afetar entre si que bailarinos e bailarinas vivenciaram nos ensaios, a plateia era visivelmente afetada. A perda de Luciana criava vínculos com outras perdas, e quando, ao final, Luciana dançava em cena e bailarinas e bailarinos desciam para abraçar pessoas da plateia, a obra trazia uma possível leitura de que a vida iria continuar, e era preciso não estar só. Mais adiante retomarei outras especificidades desse processo, e trago a seguir as questões afetivas que possibilitaram a emergência do segundo processo de criação dessa pesquisa.

36 Marcio Rodrigues é diretor e pesquisador em teatro e durante seis anos

(2008-2014) foi docente do curso de Licenciatura em Teatro (URCA). Atualmente é professor de Teatro do IFSUL/Venâncio Aires (RS). Colaborou com a iluminação do (S)Em Mim e conduziu a preparação teatral do elenco de Retratos de Mulher.

76 2.4.2 Problematizando corpos femininos

Eu na verdade não acredito numa arte que seja realizada, antes de tudo, de um lugar que seja fora do corpo, mas sim de um espaço interno do corpo. Explicando melhor, estou falando mais de mim mesma enquanto artista e criadora. O que me move na criação são as minhas experiências de vida, é a própria vida, e os afetos que vão se dando nesse processo. Então qualquer acontecimento pode ser um motivo, um incômodo, na verdade, para a criação (Marcela Lima).

Retratos de Mulher (2012), dirigido por Marcela Lima37, foi um espetáculo gerado por incômodos. A partir destes, traz relatos da violência contra a mulher, vivenciados, testemunhados ou colhidos em pesquisas bibliográficas e videográficas dos integrantes do Grupo de Pesquisa Teatro/Dança e Novas Tecnologias. A motivação de Marcela Lima como propositora do grupo deve-se a sua recente chegada (na época) à região do Cariri, como professora da URCA, e o choque ao tomar conhecimento dos inúmeros assassinatos de mulheres na região (LIMA, 2012, p. 2). Na minha adolescência, eu e a maioria dos integrantes havíamos

37 Marcela Lima, mineira, foi professora na UFG de 2008 a 2010 e

professora da Licenciatura em Teatro (URCA) de 2010 a 2013, onde desenvolveu diversos trabalhos nas disciplinas Elementos Visuais do Espetáculo I e II, dentre eles o Teatro Bidimensional, que gerou exposição fotográfica posteriormente. Formada em Educação Artística – Artes Plásticas pela UFJF e possui Especialização em Arte-Educação pela PUC-Minas e em Estudos Contemporâneos em Dança (UFBA). Pela UFBA também cursou Mestrado em Artes Cênicas (PPGAC/UFBA), com pesquisas voltadas às questões da longevidade, maturidade e envelhecimento do corpo na carreira de bailarinas. Além disso, foi autora e formadora do Curso de Licenciatura em Teatro modalidade Ensino a Distância UFG-UAB.

77 acompanhado a divulgação dos números crescentes desses assassinatos. Nós, mulheres e homens, descobrimos não estarmos sós em nossos afetos.

Os crimes contra mulheres na região se tornaram notícia de veiculação nacional no começo dos anos 2000, quando os mesmos se convertiam numa mostra de barbaridade contra o corpo feminino38. Apesar da maior conscientização da mulher em relação ao seu corpo, após longas lutas feministas dos séculos XX e XXI, observávamos o quanto ainda era necessário questionar e avaliar a profundidade dessa visão na cultura Cariri:

O corpo feminino enquanto sujeito como tema artístico do espetáculo Retratos de Mulher instaura a problemática do corpo como objeto de culto, desejo, submissão e de inferioridade, conceitos cristalizados e fortemente estabelecidos. Dessa forma, este espetáculo se justifica pela necessidade de questionar e fazer refletir sobre a essência histórica na reprodução da imagem feminina como objeto com origem na visão masculina e que vai muito além da arte, da literatura (LIMA, 2012, p. 6-7).

Todas as pessoas que integravam o elenco traziam relatos próprios ou de familiares sobre situações de opressão feminina. Para Dakini Alencar, integrante do grupo, o desejo de falar sobre a violência em um espetáculo surgiu após assistir a uma apresentação de A Megera Domada39, na qual o grupo havia subvertido o gênero cômico da dramaturgia

38 Voltarei à temática no capítulo 4, quando tratarei do tema mais

amplamente como problema social. 39 Texto de William Shakespeare. A apresentação, em 2011, ocorreu dentro

do curso de Teatro (URCA), quando o grupo era formado por Wiarlley Spears, João Batista, Luka Severo e Nadja Naiana (Nadja e Luka integrariam, posteriormente, o grupo de pesquisa e o elenco de Retratos de Mulher).

78 shakespeariana para falar da tragédia da personagem Catarina, vítima principalmente da visão dada à violência doméstica que sofria tratada como princípio da comédia no texto original. Sobre esse momento, Dakini Alencar afirma que

Quando o processo do Retratos de Mulher chegou, veio do desencadear de todo um processo que eu vinha desenvolvendo internamente até chegar naquele momento. Hoje, mais do que nunca, eu acredito que a nossa arte reflete muito o que de melhor nós temos e o que mais a gente deve e precisa trabalhar intimamente. [...] parecia que eu tinha algo guardado e que eu não me atrevia nem a tentar olhar para aquilo, que era essa violência doméstica que eu tinha sofrido. E, naquele momento, quando eu vi A Megera Domada que eu saí chorando de dentro da sala, que eu não conseguia parar de chorar, esse foi o gatilho para que o Retratos de Mulher viesse depois.

Figura 5 - Dakini Alencar

Fotografia: Lino Fly Kariri.

A cena narrada no início deste capítulo (na qual Dakini

Alencar era arremessada várias vezes contra uma parede

79 humana), antes de vir ao palco, foi cena presenciada pela própria Marcela Lima na infância, que resolveu trazê-la com o intuito de problematizar discursos que tratam relacionamentos afetivos violentos como um problema unicamente da mulher que sofre dessa violência, e não uma questão social arraigada na cultura que prejudica as relações:

Lembro que várias vezes eu tive que sair da sala, de onde a gente ensaiava, pra respirar, porque foi muito intenso pra todos nós. [...] Colocar isso em cena é mais do que uma catarse pessoal, imagina, não é muito por aí. Mas a denúncia é a parte mais forte do espetáculo e acho que a gente conseguiu atingir isso.

Valorizando a necessidade da denúncia a qualquer agressão sofrida por qualquer mulher, o que nos movia era o desejo de que pessoas que assistissem ao espetáculo repensassem sobre o tema em suas vidas e no seu cotidiano.

As vítimas de violência, que muitas vezes têm que voltar para suas casas e continuar a cuidar dos maridos agressores, pelos filhos ou por problemas financeiros, eram simbolizadas ao final do espetáculo na imagem que remetia à obra Pietà, de Michelangelo, numa referência também ao homem que, não sabendo lidar com a situação em si mesmo, sucumbe e necessita da mulher que o ampare.

80

Figura 6 – Espetáculo Retratos de Mulher

Fotografia: Lino Fly Kariri. Em cena: Jussyanne Emidio e Luka Severo.

Posso dizer que o espetáculo mobilizou inúmeras

questões em seus participantes, e que, como voltarei a tratar no capítulo 4, o resultado dele foi uma completa mudança de ação no mundo, primeiramente de nós mesmas(os) e de diversas pessoas que assistiram ao espetáculo que, em conversas e debates posteriores, nos contavam o quanto a experiência da cena havia provocado um deslocar de pensamento referente à questão. Ao lado da violência contra a mulher, o que tratávamos era um problema humano, como a constituição de relações de poder e opressão, como relata Dakini Alencar (ver entrevista em Anexo 3). Todo o difícil trabalho de reviver memórias e lembranças estava, por fim, se transformando no aumento da nossa potência de ação no mundo – a alegria spinozista. Retomando Valeska Figueiredo,

Se não há nada mais útil ao ser humano do que outros seres humanos, a dança e suas pesquisas devem ter como intuito aumentar a potência de agir de cada um e de todos. É primordial que

81

atinja a outrem incitando a mente a agir. Quando o contentamento interior é coletivo, ele é mais forte, bem como a liberdade e felicidade são mais plenas (FIGUEIREDO, 2011, p. 14).

Como já afirmado, há possibilidades de que artistas repensem suas práticas à perspectiva da filosofia spinozista – o que elaboro nesta pesquisa – mas essa é uma reflexão que caberá a cada artista em cada obra; aproximo-me dessas reflexões por interesse em repensar minhas práticas artísticas, em consonância com duas daquelas que se tornaram marcantes em minha trajetória pessoal, e que também possibilitaram processos de criação permeados por questões relevantes aos dois grupos citados aqui.

No capítulo que segue, abordo questões relativas à composição da cena e as questões da memória e da dramaturgia envolvidas na invenção, traçando linhas entre tais conceitos, o trabalho de Pina Bausch e relatos pessoais na cena teatral do real. São conceitos que circulam a análise dos espetáculos aqui tratados, mas que não fizeram parte de sua elaboração. Consistem mais em “ganchos” teóricos que me possibilitaram voltar o olhar para os dois processos e percebê-los mais amplamente.

82

83 3 ESTÉTICAS DAS SUBJETIVIDADES

3.1 UMA CARTA PARA PINA

Querida Pina,

Hoje te escrevo para relatar uma memória que

é sua, não minha. E mesmo que isso possa

parecer muito estranho, posso te garantir que

nem tanto. Afinal, a sua memória se entrelaça

com a minha, em um tempo-espaço que

pereniza cores, cheiros, sabores e muitas

sensações. Estou falando da sua visita à região

do Cariri.

Devo assumir que durante um bom tempo me

fascinou a ideia de que você havia pisado esse

chão, visitado cidades e museus, participado

de folguedos e assistido a espetáculos que eu

também vi em minha meninice. E a memória

desse lugar, que era primeiramente minha, de

outro jeito passou a ser também sua.

84

Fonte: <https://twitter.com/tjalencar/status/181857205123940352/photo/1>. Acesso: 20/04/2015.

E quase consigo ver você apreciando a

Chapada do Araripe, o imenso tapete verde

que cobre um bom pedaço do sertão. O sertão

com suas cores e calores, vegetação de raízes

fortes e céu límpido que você viu pela janela

do carro que te trouxe de Recife até o Crato.

Sua surpresa ao ver que, depois de um bom

pedaço de chão sertanejo, se abrem nascentes

de águas tão límpidas e frescas. Depois de ter

feito do seu Água uma homenagem ao Brasil,

Figura 7 – Irmãos Aniceto se apresentam para Pina Bausch e Violeta Arraes

85 você apreciou outras águas e conheceu aqui

outro Brasil.

Fonte: <http://www.pina-bausch.de/en/pieces/agua.php#>. Fotografia: Uli Weiss.

Passeando pela Praça da Sé e suas frondosas

árvores centenárias, você estava atenta à

apresentação dos Irmãos Aniceto, a banda

cabaçal que diz tanto sobre a mistura, já tão

romantizada, de povos lusitanos e indígenas.

Herança da nação Kariri que habitava esse

vale. Em Nova Olinda, visitando o Memorial

do Homem Kariri, atenta às falas das crianças

da Fundação Casa Grande que ciceroneiam

cada visitante. No museu de Fósseis, nossa

origem preservada na pedra (essa terra, um

Figura 8 - Espetáculo Água, de Pina Bausch (2001)

86 dia já foi mar). E a força da fé dos romeiros,

corporalidades moldadas no sacrifício, de

olhos fechados pela oração.

Figura 9 – Pina conversa com jovens da Fundação Casa Grande (Nova Olinda – CE)

Fonte: Revista OlharCe (UM CARIRI..., 2011). Fotografia do Acervo da Fundação Casa Grande.

Foi rápido, apenas uma semana. E, embora eu

quase consiga ver tudo isso, eu não pude te

conhecer. E nem poderia; em 2002 eu ainda

não dançava. Nessa época, no Cariri, só quem

tinha a dança como profissão de fé e vida te

reconheceria, como disse Danielle Esmeraldo

(aquela moça sorridente, que te apresentou

Beatos. Aliás, uma excelente professora). Eu

também vibrei assistindo ao espetáculo de

Danielle. Mas a dança (e principalmente a

sua dança) seria para mim como um sonho

que eu não sabia ainda que já tinha. Para

87 mim, como para a maioria das pessoas daqui,

infelizmente a sua rápida visita me passou

despercebida.

Figura 10 – Pina Bausch assiste Beatos e conversa com a coreógrafa Danielle Esmeraldo.

Fonte: Arquivo pessoal de Danielle Esmeraldo.

Não foi, entretanto, em vão. Tenho plena

certeza de que as pessoas que puderam contigo

estar apreciaram a sua presença calma e doce.

Embora você não entendesse a língua, e a

saudosa Violeta Arraes traduzisse inúmeras

conversas ao teu lado, você parecia acima de

tudo entender o lugar. Parecia compreender,

como eu, que o Cariri parece mais uma terra

mágica quando é visto assim, no que ele tem

de mais belo: a intensidade das pessoas. Uma

terra que não nega a sua ancestralidade

pulsante em cada Mestre e Mestra da cultura

88 popular, em cada som da Floresta, em cada

arte que se ergue, e se abre ao mundo, vive

cada pulso da vida com a força que tem a

batida da zabumba. Fica o convite que você

volte sempre que quiser, pois há um ditado

que diz: “quem bebeu da água que brota

dessas nascentes cariris, estará encantado, e

um dia retornará”.

Um abraço,

Jussyanne. Figura 11 - Cascata no bairro Lameiro, em Crato (CE)

Fotografia: Max Peterson Monteiro. Na fotografia: Jussyanne Emidio.

89

Philippine Bausch (1940-2009), coreógrafa e diretora alemã, um dos grandes nomes da dança do século XX, esteve de passagem na região do Cariri em 2002, a convite da então reitora da Universidade Regional do Cariri, Violeta Arraes. Um ano antes, havia estreado em Wuppertal o espetáculo Água, em homenagem ao Brasil, país do seu amigo Caetano Veloso. Não passou muitos dias, nem há registro de que algo que ela tenha visto tenha se transformado em alguma criação sua posterior. Entretanto, a diretora paulista Bia Lessa, acompanhante na visita, diria posteriormente: “Ela ficava nos lugares como se estivesse ali pela vida inteira. Olhar curioso, atento, enquanto o corpo repousava” (UM CARIRI..., 2011, p. 27).

A curiosidade, a atenção e a serenidade parecem ser marcas da sua personalidade, desde quando observava a clientela do restaurante dos pais, ainda na infância. Pina principiou os estudos na dança, como aluna de Kurt Jooss na Escola Folkwang em 1954. Jooss foi aluno de Rudolf Laban e, junto com Mary Wigman, foram os três grandes nomes da dança expressionista alemã, tornando-se o precursor da dança-teatro (Tanztheater). Em sua escola, Pina Bausch encontrou um meio em que a sensibilização cultural era efervescente, a partir do estudo de disciplinas diversas como danças de salão, clássica, moderna, folclórica, cinema, fotografia, anatomia, comédia, pantomima, música, desenho e outras. Segundo Lícia Sánchez, tais disciplinas e encontros com artistas distintos(as) “faziam-se com o intuito de atuar sobre a sensibilidade dos alunos e sobre a sua cultura, favorecendo uma abertura a outras possibilidades (o alheio)” (SÁNCHEZ, 2010, p. 10). Mais tarde, ao estudar em Nova York na Juilliard School of Arts, em momento de efervescência cultural, ganharia novas influências que mais tarde iriam compor o seu Tanztheater, ao retornar para a Alemanha e ser convidada para dirigir a companhia de Wuppertal.

Sua trajetória com variadas artes reflete-se nas suas obras posteriores: “O Tanztheater bauschiano revela-se um

90 híbrido, um terceiro gênero que não se reduz à soma de teatro e dança” (SÁNCHEZ, 2010, p. 46). Seus participantes são levados a trabalhar sobre a totalidade expressiva do corpo. Segundo Eugenia Casini Ropa, são fragmentos da vida, memórias pessoais e diversos pontos de vista que irão ser material de sua criação: “Os dançarinos, até então somente executores, se transformam gradualmente em atores, criadores, produtores de material cênico original, enquanto que Bausch, de coreógrafa, se faz cada vez mais diretora” (ROPA, 2009, p. 145).

A sua metodologia das perguntas40, na qual esses materiais são levantados em improvisações na sala de ensaio e, posteriormente, costurados em uma dramaturgia que só se define ao final do processo, foi largamente estudada por repensar o lugar do coreógrafo e a ideia da coreografia em dança. Para Lícia Sánchez (2010), várias pessoas ao redor do mundo quiseram ser “bauschianos” e “aplicar o método”, não se atentando que a principal questão de Pina Bausch estava presente em um dos conselhos que lhe fora dado pela diretora: “Seja você mesma, isso é muito importante!” (SÁNCHEZ, 2010, p. XVI). Indo mais adiante, Eugenia Casini Ropa concorda:

Na tentativa de definir o Tanztheater, muito se fala de um “método” criativo Bausch, mas talvez a única verdadeira metodologia, que Pina Bausch descobriu e seguiu nos anos, seja aquela de eliminar métodos pré-constituídos, aquela da processualidade, da exploração

40 A partir do final da década de 1970, Pina Bausch iniciava a compor os

trabalhos a partir de perguntas-estímulo que fazia aos bailarinos, com o intuito de despertar ideias para serem trazidas à expressão. Nem sempre elas eram uma indagação, funcionavam como disparadores da memória. Alguns exemplos são apontados por Sánchez (2010): “Você dá segurança e proteção”; “Destruir a si próprio”; “Quando você não pode mais pensar, o que você pensa?”.

91

contínua, da necessidade de recolocar cada vez em discussão si mesmo e o próprio trabalho, explorando novos percursos (ROPA, 2009, p. 144).

A finalidade das perguntas era fazer com que bailarinos quebrassem a representação de ideias ou personagens e pudessem chegar às suas memórias pessoais, que se mostrariam em ações externas (SÁNCHEZ, 2010). Cada ação seria gesto que traria em si mesmo o movimento das pequenas percepções, como traduz o filósofo português José Gil (2004). Os gestos configurariam aquilo que é do âmbito impensável do pensamento, e lhe constituiriam uma géstica específica do pensar:

Para Pina Bausch, as emoções são gestos. As emoções, mas também os sentimentos e todas as espécies de afetos: porque são forças que, de cada vez, compõem o mundo inteiro que a fala transporta consigo. E essas forças só têm um material concreto para as exprimir, o corpo com os seus gestos (GIL, 2004, p. 176).

São questões que tornam as pesquisas sobre o seu trabalho cada vez mais ricas. Entretanto, os espetáculos abordados nesta pesquisa não se fizeram com perguntas, ou temáticas ainda indefinidas. Elas foram definidas desde o início dos processos. O que aproximo da dança-teatro de Pina Bausch com a elaboração do (S)Em Mim e do Retratos de Mulher está localizado principalmente no conselho “Seja você mesma”. Integrantes de ambos os grupos estavam perseguindo o experimentar de afetos em gestos para a dança, gestos que de alguma forma trouxessem algo a ser dito de suas memórias pessoais. Aline Souza (integrante do (S)Em Mim) afirma: “Eu queria fazer algo real com movimento, que fosse realmente pessoal, e nesse processo eu sentia muita vontade de entender melhor essas questões”. Ainda que estes não pertencessem a si

92 próprios – partiam do desenho coreografado por Luciana Araújo ou Marcela Lima – buscou-se um caminho de apropriação41 em que cada gesto trouxesse sensações, imagens e memórias de cada uma e cada um. Valeska Figueiredo comenta que “a conexão com a arte é positiva quando não se restringe somente às afetações, mas também, abrange contemplações e apropriações. Só assim, pode-se atuar e fruir livremente na dança” (FIGUEIREDO, 2011, p. 8). Como era um trabalho que nos envolvia sensivelmente, mobilizava outras qualidades de movimentação em cena.

(S)Em Mim. Fotografia: Souza Junior. Em cena: Bel Macedo e Thiago Gomez.

Além disso, considero que há um interesse temático das

coreógrafas Marcela Lima e Luciana Araújo nas temáticas dominantes do universo bauschiano. Eugenia Casini Ropa afirma que os temas dos espetáculos do Wuppertal Tanztheater

41 Este processo será melhor explanado no capítulo 4, Repetição e

Performance.

Figura 12 – Gestos apropriados

93

[...] derivam das necessidades, dos medos, das esperanças, das angústias do artista, da sua capacidade de compreender e de compartilhar, do seu olhar penetrante sobre o mundo e seus problemas, numa busca de identidade que é ao mesmo tempo pessoal e histórica. O amor, acima de tudo, em todas as nuances, da ternura ao erotismo, a urgência em dar e receber, e os temores, as dificuldades, as distorções da relação interpessoal, sobretudo de casal. A condição desesperada e ridícula dos universos feminino e masculino, ávidos, mas incapazes de uma real comunicação. E a pesada frustração da mulher destinada a sucumbir ao tosco e violento predomínio masculino. Um jogo de papéis que é jogo de massacre recíproco cruelmente desmascarado, e atenuado por lampejos desencantados, quase afetuosos, de ironia (ROPA, 2009, p. 145)

Figura 13 – Complexidade dos laços afetivos

Retratos de Mulher. Fotografia: Diego Linard. Em cena: Luka Severo, Jussyanne Emidio.

94

Da mesma forma, nos aproximávamos das maneiras com as quais a dança pudesse tratar das relações entre seres que observávamos em nossas vivências. Havia, dessa forma, familiaridade de interesses, e inclusive, interesses nossos na obra de Pina Bausch, suas estratégias de criação e composição, embora estas não tivessem sido determinantes na condução dos processos em questão42.

Nas obras de Pina Bausch, é notável a maneira como a memória retrabalhada dos bailarinos e bailarinas se adensa em gestos e, como afirma José Gil (2004), de como esses gestos materializam concretamente os afetos que atravessam os corpos que dançam, e assim, inventam a dança. A razão pela qual trago a essa análise o conceito de invenção pode ser melhor explanada a seguir.

3.2 INVENÇÃO E MEMÓRIA: A COMPOSIÇÃO COM O

TEMPO

A invenção é um termo que chegou a essa pesquisa a partir dos estudos da psicóloga e pesquisadora de atenção e aprendizagem Virgínia Kastrup (2007). Baseada nos estudos de Isabelle Stengers, a autora afirma que invenção vem do termo invenire e significa “encontrar relíquias ou restos arqueológicos” (KASTRUP, 2007, p. 27). É encontrar o que sofreu a ação do tempo em si mesmo. Kastrup defende que o processo de aquisição de conhecimento humano – o processo cognitivo – é inventivo. A memória possui, nesse âmbito, um

42 Mais adiante, farei um paralelo entre a repetição em Bausch e a repetição

no processo de Luciana Araújo. Essa estratégia foi trazida por mim ao elenco, como uma proposta de desautomatização de alguns desenhos coreográficos. Embora não tenham sido elaborados seguindo a forma com que Pina Bausch os concebeu no Wuppertal, foi um breve estudo que eu já havia desenvolvido anteriormente, que teve em Bausch uma das disparadoras, e foi levado à prática em alguns trabalhos, sendo um deles o Retratos de Mulher.

95 papel fundamental, por ser o campo onde a invenção pode ocorrer.

Para a autora, o problema da invenção nos estudos de psicologia ainda não havia sido estruturado com a atenção devida nos estudos da cognição. Tais estudos trataram, até recentemente, de uma cognição invariante: comprometidos com o projeto epistemológico da modernidade, tais estudos tomam-na como representação, o que significa dizer que o processo cognitivo seria previsível e estruturado. A invenção era uma questão inexistente pelo privilégio dado à recognição: a maneira com a qual seres humanos reconhecem informações com as quais já tiveram contato.

Os estudos da criatividade seguiam a esteira da necessidade de solução de problemas já dados – os problemas da sociedade norte-americana, principalmente – e não da problematização de mundo do próprio sujeito. Sendo entendida como um desempenho, a criatividade estava a serviço da inteligência:

Os estudos da criatividade não chegam a identificar no seio da cognição uma potência de criar problemas e de divergir em relação aos interesses da sociedade. Por isso, acabam por subsumir a função da criação, em sua natureza imprevisível, a uma finalidade bem determinada, a solução de problemas (KASTRUP, 2007, p. 20).

Porém, para a pesquisadora, além do reconhecimento, a aquisição de conhecimento se daria por meio de um processo de invenção: a autora propõe o termo a partir de uma crítica aos estudos da cognição pautados na criatividade (a capacidade de solucionar problemas) e chega à invenção (a capacidade de problematizar) como elemento inerente a toda forma de conhecer a si mesmo(a) e ao mundo.

96

A invenção implica uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que ocorre no avesso do plano das formas visíveis. Ela é uma prática de tateio, de experimentação, e é nessa experimentação que se dá o choque, mais ou menos inesperado, com a matéria. Nos bastidores das formas visíveis ocorrem conexões com e entre os fragmentos, sem que este trabalho vise recompor uma unidade original, à maneira de um puzzle. O resultado é necessariamente imprevisível. A invenção implica o tempo. Ela não se faz contra a memória, mas com a memória, como indica a raiz comum a "invenção" e "inventário". Ela não é corte, mas composição e recomposição incessante (KASTRUP, 2007, p. 27).

A invenção não é outro processo psicológico, ela se faz ao lado dos demais: percepção, memória, atenção, pensamento, linguagem e outros. Tal abordagem pressupõe um processo de experimentação no processo cognitivo: observando o conceito de tempo do filósofo Henri Bergson – o tempo como duração – Kastrup situa a cognição no território inventivo, trazendo também o sentido de que a invenção atua como potência temporal da cognição – inclusive como potência de diferir de si mesma. Além disso, “a memória não é aqui uma função psicológica, mas o campo ontológico do qual toda invenção pode advir. Não é a reserva particular de um sujeito, nem se confunde com o mundo dos objetos. Ela é a condição mesma do sujeito e do objeto” (KASTRUP, 2007, p. 27). A memória é onde a invenção se faz.

Kastrup também aponta a imprevisibilidade do resultado existente no estado de experimentação inventivo (movido por uma afecção). São as experimentações com a matéria que transformam as formas cognitivas. "O trato com a matéria, quando movido e impulsionado por uma ideia não-intelectual, mais especificamente por uma afecção, se dá na forma de uma experimentação, cujos resultados não podem ser

97 previstos" (KASTRUP, 2007, p. 123). Portanto, essa experimentação inventiva não se baseia em representações, mas em ações decorrentes das afecções que permeiam o corpo quando este se encontra em contato com a matéria. Kastrup insere os processos cognitivos no campo da invenção porque compreende a cognição como não previsível nem estruturada. Todo um conjunto de percepções está envolvido no processo.

A composição, como o ato de pôr e arranjar elementos distintos com outros, configura uma percepção relacional no ato de inventar conexões entre esses elementos. Se observarmos a invenção sob o ponto de vista estético (o que, para Kastrup, não é necessário que assim seja, pois ela observa o processo cognitivo), haverá um processo inventivo tanto do objeto artístico quanto do(a) artista, em um processo que é também autoprodução: “[...] Inventar um objeto é, ao mesmo tempo, um processo de autoinvenção. A invenção de si é, ao mesmo tempo, invenção de mundo” (KASTRUP, 2012, p. 142).

Quando uma artista inventa um espetáculo – e estou ativando o papel da memória nesse processo – também se inventa uma artista. Se uma artista inventa um espetáculo sobre a própria vivência, também ocorre reinvenção de si, em um processo que lida com o tempo e os seus afetos. Luciana Araújo reinventou uma vida que não podia mais existir da mesma forma após a depressão por meio do (S)Em Mim; como um rito de passagem, ela experimentou a potencialização da sua existência, o aumento da sua potência de agir no mundo, de forma concreta, por meio da dança. Como ela afirma,

O meu amadurecimento na dança foi gigantesco, e não só na dança. Resultou em muita coisa no meu entendimento comigo mesma. Porque eu sempre me sentia meio me batendo comigo mesma [...] e não chegava a lugar nenhum. E esse processo me ajudou a amadurecer também, em relação a como eu me

98

entendo no mundo, como eu olho para outra pessoa, como a outra pessoa me vê. Foi um processo de ressignificação total.

A invenção de Luciana sobre as emoções que tinha vivenciado fez com que os sentimentos que surgiram nela se transformassem nos afetos que a potencializaram para voltar a agir sobre a sua vida.

(S)Em Mim. Fotografia: Souza Junior. Em cena: Aline Souza e Luciana Araújo.

Nadja Naiana, uma das integrantes do Retratos de

Mulher, também avalia as mudanças pelas quais passou:

Figura 14 – Luciana Araújo

99

Até chegar o início do processo criativo, eu não me via como uma pessoa que podia dançar em cena. Quando eu estava no Retratos, eu pesava 98 quilos, era muito pesada, não me via em cena, não aceitava o meu corpo, não aceitava muitas coisas. Tanto é que, tudo que tinha que ser pensado pro espetáculo (como os figurinos) tinha que ser pensado também em mim, porque eu ainda tinha muitos bloqueios – ainda tenho até hoje alguns – porque eu não aceitava ainda que meu corpo podia dançar.

Retratos de Mulher. Fotografia: Lino Fly Kariri.

Figura 15 – Nadja Naiana

100

Quando o processo criativo começou, fui percebendo, compreendendo, aceitando meu corpo, aceitando muitas coisas: que qualquer pessoa podia dançar, que qualquer pessoa podia estar ali. E o espetáculo não queria falar de “bailarinas”, não queria mostrar “corpo perfeito”: queria pessoas com idades e corpos diferentes, queria problematizar o corpo, o corpo em cena, mostrar que qualquer pessoa podia dançar, se transformar. Porque para mim o Retratos marcou a minha vida e até hoje marca, o Retratos e as pessoas com as quais eu trabalhei no espetáculo.

O relato de Nadja Naiana exprime bem de que forma o

processo do espetáculo a afetou: como um corpo que não sabia que podia dançar, ela vivenciou uma experiência de potencialização, uma passagem de um estado a outro, como a passagem que Spinoza (2008) filosoficamente apontou como alegria. O entendimento maior sobre a realidade do corpo-Nadja a partir da invenção do espetáculo e de si mesma afirma uma maior potência de ação no mundo – uma alegria.

Dessa forma, vejo a invenção nos dois processos de criação aqui trazidos como a ponte entre a composição artística, a memória e o afeto corporificado em dramaturgia da cena, que também é invenção de mundo da artista.

3.2.1 A cena em (re)composição

O sentido de composição para Spinoza (como já foi

visto no capítulo anterior) refere-se à sua própria concepção de mundo – implicaria divisão e junção ininterrupta numa composição em infinitos níveis entre micro e macro, a partir de relações dinâmicas entre as partes. O próprio corpo humano seria composto de partes, também compostas, de outros corpos-pensamentos e corpos-extensos, mediadas pelas relações

101 existentes entre elas. Nesse item, busco aproximar este conceito spinozista da composição que ocorre na práxis da atuação.

Trarei alguns conceitos pertinentes aos estudos teatrais, que intento aproximar dos processos de criação aqui analisados. Esta opção se dá principalmente devido à minha formação primeira no teatro, o que fez com que eu me aproximasse da dança sempre observando tais conceitos e buscando relações entre as duas áreas. Compreendo que a dança, território movente, escapa dos modelos dramáticos e pós-dramáticos trazidos a seguir, mas foi a observação primeira das questões teatrais que me auxiliaram a refletir sobre os dois espetáculos.

A atuação é compreendida aqui com o sentido que lhe confere Renato Ferracini (2013), e seria o estado que situa a elaboração do conhecimento de atuantes no território da produção de diferença na cena, e não da repetição imitativa que busque a representação de algo exterior. Atuantes (ou atuadores) são artistas da cena, do teatro, da dança ou da performance. Para Ferracini, atuantes agiriam em cena “na relação entre os elementos para gerar essa força que, ao mesmo tempo, recria a relação dos elementos” (FERRACINI, 2013, p. 72). A ação se permite afetar e ser afetada pelo próprio material que gera, por ser instância relacional, força que atravessa os corpos dos(as) atuantes na cena.

Observando a ação na cena como território relacional, ela se encontraria no campo dos afetos; Ferracini aproxima o seu entendimento de cena e atuação da filosofia de Spinoza. A atuação, nesse sentido, também deveria buscar a máxima potencialização dos corpos envolvidos, levando-os à alegria spinozista – uma maior capacidade de agir.

O que vem a definir a potência da ação na cena é a sua capacidade de afetar o meio, e ser afetada por este, num processo de desterritorialização constante. É também implícita a qualquer relação uma ação de afetar e se permitir ser afetado:

102 um processo de escuta e ação, disposição e disponibilidade, proposição e atenção:

A atuação, nesse sentido, é sempre instável porque é gerada por aquilo que gera, deixa-se afetar por aquilo que afeta ou ainda, recria-se através daquilo que cria (FERRACINI, 2013, p. 73).

Com a proposição de uma desestabilidade na ação, que a torne mais porosa e afetada pela própria cena, ao mesmo tempo em que a afeta de outras formas, a composição na atuação se afirmaria como uma possível (re)composição da ação.

No Ocidente, os estudos de composição na atuação são relativamente recentes, a julgar pelo espaço que já ocupam na música, na dança, na pintura e no cinema (BONFITTO, 2011). Sintetizada por Bonfitto como o ato de “pôr com”, essa noção mostra-se relevante quando se reconhece que artistas da cena lidam com materiais em seu trabalho de ordens tão diversas quanto inumeráveis. Por material entende-se “qualquer elemento que adquire uma função no processo de construção da identidade do próprio objeto” (BONFITTO, 2011, p. 17). Este objeto seria a cena. No caso dos espetáculos aqui tratados, os primeiros materiais foram a experiência vivida, cujos afetos foram (re)compostos nos corpos de tais artistas. A função que tais afetos adquiriram foi a de disparar processos inventivos que se materializariam em cena, a partir da invenção de relações entre estes elementos-corpos – retomando a acepção spinozista de corpo como conjunto de partes que o compõem: o corpo humano em suas variadas partes; cada objeto como um corpo; a cena e público como corpos cada vez mais complexos (FERRACINI, 2014).

É necessária atenção para que esses materiais sejam não apenas “postos com”, mas sim postos em relação; nos processos observados nesse trabalho, cada intérprete necessitou

103 relacionar-se com histórias, movimentos, relatos, notícias, gestos etc. que a princípio não surgiram de si mesmos. E mesmo quando esses materiais emergiram das vivências pessoais, o modo como seriam trazidos para uma cena passaram por diversos processos de invenção, apropriação, composição e de afeto entre os mesmos.

Quando Bonfitto analisa o conceito de teatro pós-dramático, cunhado por Hans-Thies Lehmann43, voltado para o trabalho de atrizes e atores, aponta que o trabalho do ator dramático (que representa o drama) diferencia-se do trabalho do ator pós-dramático (que não se prende a uma estrutura dramática) a partir dos textos, códigos e convenções (teatrais ou culturais), nos “modos de elaboração, articulação e reinvenção de tais elementos” (BONFITTO, 2009b, p. 91), e não apenas na presença ou ausência desses mesmos códigos em cena. Nesse processo, atrizes e atores utilizam-se dos mais diversos materiais, por vezes indefinidos, pois suas relações com estes são pragmáticas e subjetivas, já que dependem de seus modos particulares de operar:

Na medida em que os seus materiais de atuação não se fazem prevalentemente referenciais, nem constitutivos de uma personagem (entendida como representação de um indivíduo ou tipo) e não são estruturados a partir de uma rede semântica produzida por uma história, o ator pós-dramático deverá apoiar-se sobre as qualidades expressivas que podem ser produzidas a partir de sua relação pragmática com os materiais de atuação, ou seja, a partir de seu modus operandi (BONFITTO, 2009b, p. 96-97).

De acordo com o modo de operar – de agir – de cada artista da cena, a relação estabelecida pode ser diferenciada. E 43 LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind.

São Paulo: Cosac Naif, 2007.

104 observo que o experimentar destas relações ocorre por meio da improvisação, que é o campo onde o invento pode surgir: a partir do lidar com a matéria na experimentação, seja o próprio corpo (como um complexo matéria e memória), o espaço ou os objetos.

Para Bonfitto (2011), a improvisação como “espaço mental” é uma das possibilidades de composição para o ator, estabelecendo um espaço de experimentação em que as qualidades perceptivas, sensoriais e intelectuais agem como geradoras de novas práticas. Essas experimentações interferem diretamente na apropriação de materiais por artistas da cena, ou seja, na forma como elaboram o conhecimento em vida e o reelaboram em arte. Nesse contexto, observo que o papel da memória poderia aparecer sob a forma de invenção: materiais também adensados na memória do corpo que improvisa e compõe em ato. O ato compositivo improvisacional44 requer o acesso a um repertório pessoal que relaciona materiais adensados na memória e materiais percebidos e elaborados em tempo real, e, ao mesmo tempo, constitui esse mesmo repertório.

Por estar adensado na invenção, o ato compositivo “imprime inexoravelmente uma experiência, mas não expõe a razão de suas escolhas. Deixa somente rastros...” (BONFITTO, 2011, p. 143). A percepção torna-se chave nesse processo, por balizar as relações entre memória, invenção e ação. A ampliação dos processos perceptivos denota novas possibilidades de conexões entre os materiais, possíveis a partir do momento em que a atriz ou ator se apropria dos mesmos, afetando-se e deixando-se afetar em sua ação de compor.

44 Algumas questões da improvisação no século XX e suas características de

invenção foram tratadas no artigo (Re)Compor em ato: o improviso inventivo no trabalho do ator, publicado originalmente pela Revista aSPAs em seu volume 5, número 1, no ano de 2015 e pode ser acessado em: <http://revistas.usp.br/aspas>.

105

O maior contato com processos de improvisação fez aflorar inúmeras propostas no teatro e na dança no século XX, e pelo seu caráter de (re)composição da cena, mediada pelo corpo de atrizes, atores e bailarinas(os), ela mesma se reinventa em formas, propostas e elaborações artísticas. Ao situarem-se como improvisadores, artistas da cena podem operar pela invenção, sendo uma qualidade que é capaz de imprimir certo frescor ao trabalho que acontece em cena, mesmo àquele previamente ensaiado. Isso não pressupõe a não preparação técnica, mas uma preparação para o rearranjo. É um deslocamento para o sentido de acontecimento: algo acontece em cena, e isso exige a porosidade das ações, e não a fixidez. Compreendo que voltar-se ao acontecimento cênico em estado de improviso compositivo seria apreender maneiras de operar; e pôr-se nesse estado de atuação é, cognitivamente, aprender a lidar com relações, com a diversidade, com aprendizado(s) do corpo em atuação, que é o corpo-em-vida.

Entretanto, cabe observar que o caráter inventivo nem sempre é inerente ao processo de composição improvisacional: por vezes a improvisação retorna a lugares-comuns, ou se localiza no campo da criatividade (resolução de problemas) e não da problematização, do deslocar do pensamento. A invenção é recomposição fragmentária, a partir da experimentação e da memória. Situar-se na invenção é improvisar, mas nem sempre a improvisação trata uma posição inventiva.

Desta forma, encaro a atuação em cena como espaço de (re)composição a partir da invenção, adensado no ator em estado de improviso inventivo. Tal processo é aqui entendido como um processo de aprendizagem próprio de profissionais da atuação cênica: como articuladores(as) de proposições (LATOUR, 2008), a sua invenção é pessoal e estética. Tratarei, no capítulo que segue, de formas mais específicas nas quais observo essas premissas, na poetização de narrativas pessoais para a composição de uma dramaturgia da memória.

106 3.2.2 Memória e dramaturgia

Em seu período de luto, a coreógrafa do (S)Em Mim Luciana Araújo relatava a mim diversos sonhos que tinha constantemente com Maílson. Sonhos nos quais havia consolo e revolta. Ao ver o espetáculo pela primeira vez, identifiquei vários elementos daqueles sonhos que me foram narrados no período de um ano e meio anteriores ao princípio do processo artístico. A narrativa onírica, que também surge em outros espetáculos que se voltam à reelaboração da memória para a cena, também integrou a dramaturgia do processo de Janaina Leite (2014) em Conversas com meu pai (com dramaturgia de Alexandre Dal Farra), no qual o sonho aparece como elemento de conexão entre vivos e mortos. Integrante do Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, a atriz desenvolve em seu trabalho solo uma narrativa que se baseia na comunicação que travou com seu pai nos últimos anos de vida dele, quando ele não podia falar e se comunicava com a filha apenas por bilhetes escritos. Janaína guardou bilhetes e outros registros para compor a dramaturgia, e em um dos trechos comentava:

Ultimamente voltei a ter sonhos com ele. Quase ouço alguém me aconselhando, “você devia parar de mexer nessas coisas”, mas não é por isso que eu sonho. Sempre que eu sonho com ele, agora eu sei, é um sinal, sempre que ele vem, é porque alguma coisa dói, em algum lugar. Talvez porque alguma coisa doa em um lugar, que já doeu antes. Ele vem me avisar (DAL FARRA apud LEITE, 2014, p. 162-163).

Este trecho não consta no processo de Luciana, mas possui relações com as características que permearam o seu processo, no qual o sonho era uma tentativa de conexão entre dois planos espirituais distintos, reconstituindo uma narrativa que fora interrompida pela morte. Tal foi o princípio

107 dramatúrgico que balizou a elaboração inventiva de Luciana Araújo.

Segundo Zilá Muniz (2014), a dramaturgia na dança é considerada a partir de Jean-George Noverre, considerado o primeiro dramaturgista que buscava observar as necessidades da obra anteriores ao conjunto das danças. Porém a colaboração entre dramaturgo e coreógrafo(a) é recente, remete-se à obra de Pina Bausch que foi elaborada a partir dos anos 1980; em vários casos, não necessariamente essa colaboração existe, pois a dramaturgia muitas vezes é um processo desenvolvido pelo(a) próprio(a) coreógrafo(a) a partir da observação de uma coerência interna da obra:

A dramaturgia na dança se relaciona com a noção de processo, em que os materiais escolhidos para trabalhar podem vir de origens diversas, tais como: textos, imagens, movimentos, filmes, objetos e ideias. A decisão, por exemplo, de um coreógrafo de seleção dos bailarinos que irão integrar o elenco de um espetáculo, não deixa de ser parte do processo de dramaturgia. Entende-se que, na dança, o corpo é um fator determinante da dramaturgia, pois certo corpo define, em termos de corporeidade, a dança que ali se produz. Sendo assim, a dramaturgia é o que pensa o corpo e o que o designa como sendo o lugar de emergência do sentido (MUNIZ, 2014, p. 144).

Pensar o corpo feminino, num lugar onde muitas mulheres foram agredidas e mortas, era a problemática emergente de Marcela Lima. Ao mobilizar diferentes corpos para compor a cena do Retratos de Mulher, já havia um princípio de coerência com o seu pensamento sobre as questões, trazendo as histórias de cada corpo que refletiam no dançar. Marcela comenta:

108

Foi um grupo45 de pessoas que tinha um “recheio”, vamos dizer: diferentes idades, diferentes experiências, enquanto mulheres, enquanto seres humanos. E isso era o que mais me interessava: era ver o que vocês traziam, aprender com vocês e conseguir trabalhar esse material todo que é o mundo de cada um e como que vocês se lançavam ali naquele momento. Então, enquanto processo de criação, isso é fundamental, porque o material humano para a dança, para o teatro é um material criativo e a gente está lidando com o humano, com este pacote complexo.

Ressaltar as diferenças era fundamental no processo que versava sobre as multiplicidades do existir feminino, em contraposição aos modelos de beleza, idade, cor, tamanho, posturas e atitudes. Para Muniz,

A palavra “material” não corresponde à construção de um argumento, mas é o que constitui a dramaturgia. É o conceito compartilhado como um amálgama das imagens ou movimentos específicos. Reconhecer a potência dos materiais e criar técnicas e procedimentos que os tornam dispositivos para a construção das cenas é parte do processo de dramaturgia (MUNIZ, 2014, p. 146).

No processo de Luciana Araújo, a criação da dramaturgia foi diferente, pois bailarinos e bailarinas tiveram pouca participação na sua constituição. A dramaturgia para eles(as) chegou aos poucos, após parte dos movimentos terem

45 No elenco, havia pessoas com trabalhos na dança do ventre e dança

contemporânea (Dakini Alencar e Jayane Diniz), pessoas com nenhuma experiência em dança (Luka Severo e Nadja Naiana) e eu tinha um trabalho voltado para o ballet clássico e a dança contemporânea. As idades variavam de 20 a 37 anos.

109 sido aprendidos, e ia sendo elaborada pela própria Luciana. O bailarino Thiago Gomez afirma: “Naquele período ainda era muito ‘inconceitual’, enquanto bailarino, a dimensão, sabe? A dimensão que o (S)em Mim iria tomar”. Essa noção conceitual viria após algumas coreografias elaboradas, e coube a Luciana a seleção dos materiais que entrariam em cena:

O espetáculo teve muitas versões, e até nisso está muito atrelado a mim. Isso porque havia momentos em que eu precisava dizer mais coisas, ou menos coisas. Noutros eu estava tão confusa que o espetáculo ficava confuso em si mesmo. E depois eu fui percebendo [...] que o (S)Em Mim estava confuso porque eu estava tão confusa que queria dizer muitas coisas e não sabia como, mas que eram importantes pra serem ditas. Mas chegou um momento em que eu já havia buscado muita coisa, agora era hora de pincelar. Pensando artisticamente, na companhia e em mim como coreógrafa, deixar só o que seria melhor.

O grupo forneceu o tempo que Luciana necessitava para retrabalhar com mais precisão os seus afetos. É uma trama delicada que envolve a reinvenção de relatos pessoais para a cena, pois a construção da dramaturgia nesses casos se dá por uma aproximação com processos emotivos, por vezes, profundos e desestabilizadores, ao passo que a dramaturgia se constitui como estrutura, como afirma Muniz: “Assim, a dramaturgia sempre tem relação com uma estrutura. Trata-se de controlar e refletir sobre o todo e as partes, com as tensões e mecanismos de relacionamento e deslocamentos e sobreposições, trata-se de composição” (MUNIZ, 2014, p. 144). Compor com afetos – com relações anteriores que causaram modificações, por vezes profundas, na vida das criadoras – necessita de estruturação e, nesses processos, a própria memória dos afetos é reestruturada no ato estético que compõe a dramaturgia.

110

(S)Em Mim. Fotografia: Francisco Difreitas. Em Cena: Luciana Araújo e Thiago Gomez.

A perspectiva de Lícia Sánchez, ao focalizar em seus

estudos a dramaturgia da memória – experiência real poetizada em cena – parte de que “o ‘ato consciente’ é eficaz tendo em vista objetivar o ‘poder sugestivo’ dos conteúdos internos, evitando o caos, a histeria e a exaltação” (SÁNCHEZ, 2010, p. 84). Trazer para a cena uma experiência pessoal passa, necessariamente, por atos conscientes e, para a autora, haveria uma medida do consciente46 que balizaria o inconsciente na criação para, dessa forma, ocorrer a poetização. A autora analisa alguns dos procedimentos de Pina Bausch, dando 46 Sánchez utiliza os termos “consciente” e “inconsciente” a partir de

Stanislávski e de seus estudos sobre a memória afetiva.

Figura 16 – Duo de ausência

111 enfoque na elaboração dramatúrgica da memória. Para Sánchez, a dramaturgia da memória se daria no movimento entre o senso poético e a materialização como “um modo de ver, de sentir e de expressar a emoção provocada pelo estímulo” (SÁNCHEZ, 2010, p. 93). Há uma costura das ações cênicas comparadas a um hipertexto, no qual “uma coisa se liga a outra em uma conexão remota, mas consciente, uma vez que nada é construído de forma aleatória. Existe uma dramaturgia que se compõe com os contrastes, os equilíbrios e o inesperado das ações motivadas pelos estímulos-tema” (SÁNCHEZ, 2010, p. 13). Com a atenção voltada a todos os movimentos que se fazem da memória, é necessário atentar-se também à estrutura que a obra vai ganhando.

As relações entre memória e dramaturgia foram possíveis principalmente porque, nos dois espetáculos aqui analisados, as coreógrafas possuíam um modus operandi artístico sobre os seus afetos. Os processos de criação não foram encarados como lugares de vazão emocional, mas como experiência de invenção estética do que nos mobilizava, inquietava. Havia sempre a busca das relações que os espetáculos teriam com a plateia nas apresentações que viriam. Além disso, foram experiências que passaram pelo adensamento do tempo na memória – invenção – e nos quais houve uma observância pessoal do modo como essas marcas afetivas se imprimiram nas subjetividades. Janaína Leite afirma:

Há ainda as marcas dessa experiência [de vida] e o sentimento de reconhecimento – o ato mnemônico por excelência – por parte de um eu que identifica tais marcas ao seu redor e em si mesmo. É a experiência que autoriza falar. Essa é, por exemplo, a marca de toda a literatura testemunhal que marcou o século XX, um século que atravessou duas grandes guerras e ditaduras em vários países do mundo, fazendo proliferar depoimentos que modificaram a

112

maneira de se fazer história. O teatro tem ainda o potencial de somar ao testemunho a experiência da presença (LEITE, 2014, p. 158, grifos da autora).

É sobre o processo testemunhal que marcou o século XX, notável a partir do final da Segunda Guerra Mundial, que discorrerá o tópico seguinte. 3.3 TEATRO(S) DO REAL: NARRANDO

SUBJETIVIDADES

As perguntas mais frequentes dos amigos ao saberem da história eram: mas vocês nunca mais se viram? Resposta: nunca. Por que não o trouxeram de volta ao Brasil quando o encontraram doente? Resposta: porque não. Você não foi nem ao enterro? Não. Fiz esse espetáculo. [...] não foi fácil fazer isso. Fiz porque precisei. (Nelson Baskerville, no programa do espetáculo Luís Antônio Gabriela)

Que necessidades emanam do fazer cênico de artistas

que encaram o desafio de desnudar vivências complexas? É possível que haja necessidade de problematização, uma questão geradora de inventos. O trabalho de atrizes e atores é permeado por processos subjetivos que não se reduzem à semiotização de uma dramaturgia elaborada previamente para a prática cênica. Por mais sofisticada que seja, tal semiotização não abarca o processo da atuação/presentação cênica, em que atrizes e atores buscam as mais diversas fontes que possam desaguar em suas elaborações corpovocais, pois esse processo é notadamente inventivo.

113

Como foi apresentado no tópico anterior, Matteo Bonfitto (2009b), debruçando-se sobre os estudos do pós-dramático, afirma que a relação pragmática com os materiais, acionada pelo modus operandi de atrizes e atores (que envolvem processos subjetivos) vem a desencadear a produção de sentido com a invenção de conexões, pela(o) própria(o) artista, entre suas dimensões interior e exterior. (BONFITTO, 2009b, p. 94-97). São procedimentos dessa natureza que impulsionaram os processos autorais de atrizes e atores na elaboração de dramaturgias da memória.

Dentre esses processos autorais, observo a utilização dos relatos pessoais como universos afetivos, materiais de elaboração cênica. Seja em forma de diários, de depoimentos orais, de reescritas de fatos, de anotações fragmentadas, estes materiais do real demonstram potência inventiva que move inúmeras pesquisas cênicas na contemporaneidade. Como amostra dessas pesquisas, o Biodrama e o Teatro Autobiográfico, cada um a seu modo, se constituíram de narrativas pessoais ficcionalizadas em uma cena atravessada pelo real, tratado como tema, mas que também busca as fissuras pelas quais possa se insurgir como acontecimento cênico.

Para André Carreira e Ana Maria de Bulhões-Carvalho (2011), dentre suas diversas formas de ser abordado nos estudos teatrais mais recentes, o real "constitui um novo modo de ser da cena" (CARREIRA; BULHÕES-CARVALHO, 2011, p. 36), e não apenas uma cena referente a algo que seja real no exterior da cena, e nela ficcionalizado. Sendo tratado como tema (a partir do agenciamento de documentos, de depoimentos e demais materiais na construção da dramaturgia) ou como acontecimento (partindo do estabelecimento de um espaço de experiência para artistas e espectadores), o seu efeito provocaria um desvio do espaço de convenção teatral diretamente para a realidade e para a possibilidade de irrupção do real. Para os autores, a percepção do espectador sobre os

114 procedimentos ficcionais é fundamental para o efeito do real, pois a tensão entre o ficcional e o real na cena opera na potência desse efeito.

Considero que tal efeito de real possa insurgir pela potência afetiva do que é posto em cena. É no afetar e ser afetado de artistas e público que esta potência de real – de afeto – pode ser agenciada entre os corpos.

Os procedimentos que envolveram a criação dramatúrgica do Retratos de Mulher mesclavam diversas maneiras de irrupção do real, seja por via do depoimento confessional, da repetição de gestos na constituição de coreografias semi-improvisadas, ou mediante cenas de violência performadas no palco, tensionadas com poemas femininos, textos sobre a conduta feminina, direitos da mulher e músicas românticas. Os resultados eram visíveis pelas manifestações da plateia durante o espetáculo e ao final a mesma se encontrava visivelmente envolvida com o trabalho.

Era o caso em que, ao final do espetáculo, Luka Severo utilizava-se de maquiagem enquanto eram exibidas fotografias de mulheres agredidas. A canção romântica Não aprendi a dizer adeus47, muito popular nos anos 90 com os cantores Leandro e Leonardo, tensionava a ação cênica e a memória do público: um dado do real que era, ali, problematizado, quando se erguem na cena a fricção entre o relacionamento afetivo, ao mesmo tempo tido como violento e romântico. A imagem do homem que tentava se apropriar da maquiagem da mulher, como se a procurasse entre os seus pertences sem a encontrar, remetia tanto ao desespero da subjetividade masculina frente à agressão como à ausência da mulher. Por fim, em seu rosto

47 Composição de Joel Marques. A versão utilizada era a do cantor

Alexandre Nero, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rKQSYfQJqXQ> (Acesso: 20/12/2015). A ação de Luka Severo também era uma referência ao próprio clipe da música.

115 restariam os borrões de rímel, batom, blush e sombra, e nas imagens, hematomas:

Retratos de Mulher. Fotografia: Lino Fly Kariri. Em cena: Luka Severo. “Olhando assim nos olhos teus, sei que vai ficar nos meus a marca desse olhar”.

3.3.1 Diferentes formas de tratar a autoficção

O interesse na tensão entre o ficcional e o real permeou investigações artísticas a partir da segunda metade do século XX, utilizando-se do real como tema, nos campos da literatura, do cinema documentário, programas televisivos e diversas experimentações teatrais. Dessa forma, o real poderia compor a cena a partir de um processo de autoficção, termo literário criado por Serge Doubrovsky em 1977, que designa romances em que o autor utiliza fatos estritamente reais e pessoais, assumindo-se como personagem, num processo de recriação literária de memórias (BULHÕES-CARVALHO, 2008).

Figura 17 – Olhar

116

Como uma poetização de experiências pessoais, no teatro, observamos que a autoficção ganha força no final do século XX, quando observamos uma crescente presença das pequenas narrativas que vão paulatinamente ganhando espaço tanto entre os artistas como entre o público de variadas linguagens. Segundo Vera Lúcia Follain de Figueiredo (2009), o século XX passou por um processo cada vez maior de compressão do espaço-tempo, no qual o passado se encontraria espacializado no presente, de forma que ocorre

[...] a revalorização da narrativa como instância de organização da experiência: ao invés das macronarrativas legitimadoras dos grandes projetos coletivos, com as quais as vanguardas dialogavam a seu modo, afirmaram-se as pequenas narrativas, que privilegiam as pessoas comuns e a vida privada (FOLLAIN DE FIGUEIREDO, 2009, p. 134).

Follain de Figueiredo centra sua análise no cinema documentário48, mas sua análise pode ser estendida para a utilização dessas narrativas também na cena teatral. As pequenas narrativas são como instâncias de defesa dos discursos das macronarrativas49, como organizadoras da experiência fragmentária cotidiana. Pode-se considerá-las um

48 Uma das expressões recentes e bem-sucedidas dessa perspectiva é o

documentário Elena (2012), com roteiro, direção e atuação de Petra Costa, no qual a cineasta refaz os passos de sua irmã mais velha, Elena, atriz que se suicidou após um período de depressão, quando a cineasta ainda era criança. Petra Costa trabalha a história da irmã, da mãe e dela própria seguindo também uma via de encenação narrativa da memória das três mulheres da família. Ver: <http://www.elenafilme.com/>.

49 As macronarrativas são narrativas estabilizadoras, que evocam os grandes movimentos da humanidade, e muitas vezes não refletem as subjetividades envolvidas, ocupando estas o campo das micronarrativas. As macronarrativas constituem-se em discursos hegemônicos, cuja visão é sempre de quem está no poder (até o século XX, refletiam majoritariamente o discurso do homem ocidental branco).

117 recurso do indivíduo para “reatar os fios partidos das narrativas identitárias” (FOLLAIN DE FIGUEIREDO, 2009, p. 134), pois ela age como mediação simbólica: as fronteiras entre história, mito e ficção se diluem nas teorias que enfatizam o seu potencial de simbologia pessoal do mundo.

Observo que a narrativa, evocando o passado, traria a possibilidade de conexão com o presente, em um movimento de reconexão com quem conta – e está presentificando o passado, criando um senso de organização do mundo através de si – por um breve período. Nesse tempo-espaço, temos a impressão de nos “desconectarmos” do cotidiano, que é considerado como noção fragmentada de existência por trazer diversas dissociações de consciência dos sujeitos. Tornada experiência, a narrativa é como um re-existir. Por meio da presentificação do passado, nos conectamos ao presente: o tempo-espaço da experiência (o campo dos afetos), em que o real como acontecimento cênico possa irromper, em que os afetos possam se efetuarem nos corpos. Cada participante compõe – inventa – para si um corpo-espetáculo a partir do que acontece e de suas memórias, tornando a invenção de si mesmo também invenção de mundo (KASTRUP, 2007). E todo esse processo se dá por via afetiva – emocional em seu princípio, mas também (e)laborativa do conhecimento que potencialize a ação fora do tempo-espaço da cena.

Na cena teatral, temos como exemplo o Biodrama e o Teatro Autobiográfico, nos quais as pequenas narrativas são materiais para a criação cênica. O Projeto Biodrama foi o nome dado ao ciclo de espetáculos criado pela diretora argentina Vivi Tellas entre 2002 e 2009, em Buenos Aires. Tellas convidou diretores teatrais a encenar histórias de pessoas vivas, que deveriam ser partícipes da cena em algum momento (CORNAGO, 2005; CARREIRA; BULHÕES-CARVALHO, 2011). Para Óscar Cornago (2005), como uma reação às mediações da realidade feitas sobretudo pela mídia, a cena

118 parece requerer outra espécie de operação, que se dê de forma mais próxima à realidade imediata:

Um biodrama consistiria em recriar a vida dessas pessoas desde uma exterioridade anterior aos sentidos lógicos e as perguntas transcendentais impostas pelos discursos culturais, recuperá-las como presença e aparência, desde a materialidade tornada visível de suas ações, gestos, e vozes recolocadas no plano poético da cena teatral (CORNAGO, 2005, p. 12, trad. minha)50.

Neste procedimento, Cornago (2005, p. 10) aponta que há duas operações que tornam o efeito de real emergente da teatralidade: existe o olho que teatraliza (plateia), delimitando um campo de realidade (ou espaço de atuação). Sobre tal cenário, o olhar enfatiza os elementos materiais presentes e, a partir do campo sensorial e perceptivo (o que seria seu campo afetivo), o olhar que teatraliza faz com que cada integrante da plateia elabore um plano simbólico, que se constitui na dimensão poética.

Noutro sentido de invenção da autoficção em cena, Marcia Abujamra (2011) nomeia como Teatro Autobiográfico51 a partir da ideia de narrador de Walter Benjamin – um compartilhador de suas experiências:

A Narratividade, aqui ligada ao uso do material pessoal no teatro, ratifica a ideia da experiência como algo particular e subjetivo e, ao mesmo

50 “Un biodrama consistiria en recrear la vida de estas personas desde una

exterioridad anterior a los sentidos lógicos y las preguntas trascendentales impuestas por los discursos culturales, recuperarlas como presencia y aparencia, desde la materialidad hecha visible de sus acciones, gestos, y voces resituadas para ello en el plano poético de la escena teatral”.

51 Outras denominações possíveis são Teatro Confessional, por Cornago (2009) (abordado no capítulo seguinte) e Autoperformance, por Michael Kirby (ABUJAMRA, 2011).

119

tempo, sugere que no contato com a experiência do outro o espectador possa de alguma maneira revivê-la, compartilhá-la, torná-la própria, produzindo seu próprio saber (ABUJAMRA, 2011, p. 77, grifo meu).

O contato com a experiência de outra pessoa possibilitaria certa apropriação por parte da plateia; na atuação, o sentido da narratividade foi um dos recursos utilizados nos dois processos abordados aqui entre as(os) próprias(os) partícipes da cena, como meio que possibilitasse o compartilhar de experiências: o afetar-se pelo material a ser posto em cena e as possibilidades existentes de fazer com que essas experiências também pudessem ter potência de afeto na plateia. Luciana Araújo, coreógrafa do espetáculo (S)Em Mim, abordava a sua história a cada ensaio, na busca de imagens que pudessem ser elaboradas em movimento e que pudessem alterar a qualidade daqueles movimentos já desenhados pelas bailarinas e bailarinos na cena. No processo Retratos de Mulher, não apenas a coreógrafa Marcela Lima trazia à tona experiências próprias, como todas as pessoas envolvidas eram estimuladas a trazer as suas ou as de familiares, ou colhê-las em noticiários e jornais, processo que passou a ser cada vez mais natural a cada ensaio.

Procedimentos de narratividade, de relatos pessoais alcançam dimensão afetiva (além da emotiva) quando nos impelem à ação; se os relatos causam paralisia, medo, angústia, o afetar-se para agir não é alcançado, afeta-se de tristeza. Na conceituação de Spinoza (2008), a tristeza é o que diminui a capacidade de agir, e essa ação é cênica e é também cotidiana. Quando, nos processos de criação, os relatos passaram pela invenção estética, com vistas à sua materialidade cênica, à sua potência de afeto alegre – que impele à ação – a possibilidade da tristeza foi reduzida. Para as(os) artistas participantes, essa transformação ocorreu. Porém, na relação com o público, a

120 previsão dessa relação não é exata, e outras discussões emergem dessa análise.

3.3.2 Éticas, estéticas e políticas envolvidas

Cabe questionar em que medida as práticas teatrais a

partir de relatos pessoais também vêm a constituir uma experiência “falseada” do que seria o real para a plateia: se está atrelado a uma “moda”, se é trabalhada no campo da mercadoria e do simulacro – o que as distanciaria da experiência do real. O simulacro é algo feito para “fazer crer”, por aproximação, que é real sem o ser, pois “tende a fundir-se com o que simula” (SCHEININ, 2005, p. 1, trad. minha)52. Há o risco de, por meio de uma visão utilitarista das pequenas narrativas, operar o fazer teatral como mera mercadoria consumível, o que distanciaria da experiência do real:

Se a obra de arte não é o espelho do real factual [...] o simulacro tampouco seria um espelho. Porque seu modelo construtivo é mais hábil que o mecanismo de um espelho. Parece ser o que não é, fazendo-nos acreditar que é [...] Força o indecidível e conduz à crença dogmática. É como se nos dissesse: “Já que não acreditas no que acontece, simulemos o que acontece para que te animes a crer. Então, acredite” (SCHEININ, 2005, p. 7, trad. minha)53.

52 “Hacer creer”; “Creo que el simulacro tiende a fundirse con lo que

simula”. 53 “Si la obra de arte no es espejo de lo real fáctico [...] el simulacro

tampoco sería un espejo. Porque su modelo constructivo es más hábil que el mecanismo de un espejo. Parece ser lo que no es, haciéndonos creer que es [...] Fuerza lo indecidible y conduce a la creencia dogmática. Es como si nos dijera: ‘Ya que usted no cree lo que pasa, simulemos lo que pasa para que usted se anime a creer. Entonces, crea’”.

121

A ficcionalização de tudo, a qual é potencializada pela mídia (AUGÉ, 2011), aponta para a necessidade de reflexão sobre o ethos de atrizes e atores perante o processo inventivo. Quando Chauí (1983) aponta que Spinoza recupera o sentido grego desta palavra, que se refere ao “modo ou maneira de ser”, observo que essa seria uma discussão cabível na arte contemporânea. A maneira com a qual a obra é composta possivelmente exprimiria uma (in)compreensão acerca de tais questões. Augé (2011) analisa as instâncias de real e ficcional no cotidiano televisivo a partir da valorização de acontecimentos reais como ficcionais e da disseminação dos reality shows. A hipervalorização da imagem na sociedade contemporânea reformula valores, pois a imagem, na condição de ser e acontecimento, nem chega a ser real, nem puramente ficcional, sendo ambos simultaneamente. Desta forma, para Augé, as noções morais propagadas em determinadas programações conduzem a um amplo espectro que vai do real, passa pelo ficcional, pelo sadismo do público, pelas informações que são omitidas, chegando à “obscenidade” do que está exposto como “carne fresca”:

São inúmeros os relatos da história contemporânea que não saberíamos garantir se pertencem à realidade ou à ficção, embora, de certa forma, ocorressem diante dos nossos olhos (na telinha). Atualmente, uma imagem é um acontecimento, ou um ser (ou ambos, ao mesmo tempo) que não é real nem fictício e, por isso mesmo, fascina. Tem o peso do real e a irrealidade de uma novela (AUGÉ, 2011, p. 1).

Haveria, implícita na composição cênica, certa responsabilidade de reflexão sobre o meio à medida que o processo se torna mais autoral, de tal forma que o senso compositivo de atrizes e atores seria um reflexo das suas visões e atitudes de (con)vivência e das maneiras com as quais compreendem as relações e os afetos sociais e humanos?

122 Valeska Figueiredo problematiza a questão, colocando em questão a potência de agir que é efetuada na composição de dança e encontro com a plateia:

Quando a criação ou fruição de uma dança está subordinada a conceitos de corpo vinculados a noções como consumismo, competição e padronização, ocorre uma diminuição da potência de agir. As necessidades naturais são subordinadas às coisas da fortuna que não estão em nosso poder, pois são produzidas apenas por produzir, visando gerar excedente de mercadoria, descartá-la, e assim, produzir novamente. O corpo, construído e concomitantemente constituinte desta lógica, rejeita a pluralidade de relações, pois estas se tornam demasiadamente superficiais e breves. Além disso, está constantemente baseado em um ideal de corpo, mesmo que este seja rapidamente substituído por outro. Embora possa dar a impressão de que este excesso de trocas aumenta a potência de agir, isto é uma grande ilusão (FIGUEIREDO, 2012, p. 10).

Este é um impasse que merece maior espaço de reflexão, pois pressupõe que a atitude de artistas perante o processo inventivo será pautada por um pensamento em três facetas: seria sua estética o reflexo de uma abordagem ética e política? Estética como senso compositivo que lidará com a seleção de materiais; ética como postura que se assume perante os mesmos; política como as relações que se estabelecem entre corpos, notadamente nos encontros em apresentações. A questão política é enfatizada por Renato Ferracini a partir da perspectiva relacional: “A partir do momento que você define o corpo por um estado relacional, você define o corpo por uma política de potência, por uma coletividade. A definição em si já leva a uma ação política” (FERRACINI, 2014, 27’45’’).

123

A atitude de enveredar ou não numa arte do simulacro é, possivelmente, um reflexo da atitude frente às relações outras do corpo no mundo. É válido notar que a arte também lida com simulacros, porém a evidência e exposição do simulacro na atuação poderia remeter à experiência real. Por exemplo, a exposição do corpo feminino, sensualizado a partir de intervenções estéticas e gráficas, ao mostrar os métodos utilizados – cintas, enchimentos, maquiagem etc. – desnaturaliza o sensual do corpo, trazendo à vista a artificialidade, e ainda, uma possível crueldade para transformá-lo de corpo-pessoa em corpo-objeto. O desmonte dos simulacros cotidianos remete à experiência de quem os mantêm, de maneira automatizada, revelando simplesmente um corpo, suas (im)perfeições e necessidades. Norma Scheinin fala sobre esse uso dos simulacros pela cena:

Contudo, talvez seja possível diferenciar um uso do simulacro como princípio construtivo. A arte pode encontrar-se, então, nas fissuras do simulacro [...] O frutífero do “como se” residiria, em consequência, em seu valor conjectural, em sua hipotética articulação de mundos [...] Mas se o “como se” é só um plágio do referido, se seu valor se funda em mecanizar o espelhado como referencial, podemos resistir a aceitá-lo, porque a vida cotidiana já nos satura demasiado com seu regalo fático. [O teatro] a partir da sua criatividade ficcional pode, ao contrário, estar atento para que a sedução do simulacro não termine devorando-o (SCHEININ, 2005, p. 8, trad. minha)54.

54 “Sin embargo, tal vez sea posible diferenciar un uso del simulacro como

principio constructivo. El arte puede encontrarse, entonces, en las fissuras del simulacro [...] Lo fructífero del ‘como si’ residiria, en consecuencia, en su valor conjetural, en su hipotética articulación de mundos [...] Pero si el ‘como si’ es sólo un plagio de lo referido, si su valor se funda en mecanizar lo espejado como referencial, podemos resistirnos a aceptarlo,

124

A cinta que sufoca, restringe a movimentação em cena e deixa marcas no corpo da atriz e expõe, além do malefício físico, o questionamento sobre o simulacro do ideal de beleza feminina a qualquer custo. Utilizada como figurino no Retratos de Mulher, outro elemento unia-se às referências simulacrais no figurino, que era a saia de tule, uma referência tanto ao ideal de bailarina clássica quanto ao ideal do vestido de casamento. Na observância do grupo, dois simulacros atrelados desde a infância na educação feminina e que balizam relações de gênero.

Retratos de Mulher. Fotografias de Lino Fly (a) e Diego Linard (b).

porque la vida cotidiana ya nos satura demasiado com su regalo fáctico. [El teatro] desde su creatividad ficcional puede, en cambio, estar atento a que la seducción del simulacro no termine devorándolo”.

Figura 18 – A cinta e o vestido de noiva.

125

São exemplos que partem das investigações da materialidade cênica. Para Renato Ferracini (2013) a materialidade da cena não se reduz a objetos, materiais de composição, abstrações ou psicologismos, mas existe enquanto é atravessada por forças de diversas ordens, físicas ou sócio-históricas, coletivas ou singulares. A materialidade se dá no corpo e por meio do mesmo, é "corpo em sua presentificação potente como intensificação poética a abrir fissuras nas forças estratificadas e gerar nessa ação fluxos libertos e abertos de força" (FERRACINI, 2013, p. 34). É através da ação que essas forças podem operar em cena, e o agir, para Ferracini, é uma ação afetiva, porosa, que afeta e se deixa afetar, e não apenas um agir codificado tecnicamente ou pura semiotização da dramaturgia previamente escrita:

No corpo, assim como na matriz poética, o agir se produz pelo afeto e por essa capacidade de composição. A preparação do ator deveria focar seu trabalho muito mais em sua capacidade de compor com as forças e linhas que o atravessam para daí gerar ação do que em uma capacidade de agir tecnicamente e de forma somente precisa pelo tempo-espaço (FERRACINI, 2013, p. 118).

Sendo assim, relatos pessoais propiciam instâncias inventivas enquanto operam sob a materialidade cênica, e não somente como referentes da semiotização do corpo em cena. A partir do afetar-se pelos materiais utilizados e do ato de compor com as forças que os mesmos tangenciam, os relatos pessoais podem emergir como potência de afeto – de real – na cena.

O corpo em cena possui as dimensões sígnica e

fenomenal (FISCHER-LICHTE, 2011). A apreensão semiótica é uma das camadas de composição para a cena, porém a corporalidade singular de artistas, trazida à cena por meio da performatividade, pode abarcar determinadas experiências do

126 real. Para Cornago (2005), a dimensão performativa pretende uma experiência preservada das relações midiatizadas, utilizando as próprias mídias na construção da teatralidade, e a irrupção do real em práticas artísticas vem como uma reação às mediações e práticas simulacrais e como “reinvindicação de uma realidade humana crua” (CORNAGO, 2005, p. 7, grifo do autor. Trad. minha)55.

Tendo em vista os dois espetáculos que são matéria da análise nesta pesquisa, em que os relatos pessoais são materiais do real na elaboração da cena, as pequenas narrativas, ocupando campo de autoficção, podem ser uma das vias desse processo. Entretanto, há o risco iminente de uma cultura da ficcionalização do real, operada pela mídia, em que a distinção entre ambos é diluída e cede espaço à mera reprodução da ficção no real, o que finalmente faz essa aproximação se tornar meramente ficcional, constituindo o ciclo do simulacro. Estes campos são intercambiáveis na experiência humana, de modo que existem em simultaneidade pela própria impossibilidade de existirem em estado puro. Entretanto, caberá a cada artista a percepção dos afetos que a sua composição de forças poderá gerar.

A partir do que foi apresentado, compreendo que os processos de atuação se valem de materiais ficcionais e reais em seu processo de composição, na medida em que artistas da cena compõem materiais reais em ficção cênica e, lidando com a materialidade da cena, possibilitam a irrupção do real como “uma experiência sensorial de inegável realidade” (CORNAGO, 2005, p. 26, trad. minha)56. Considerei aqui que a dimensão de real na cena pode ser vista como sua dimensão afetiva, envolvendo experiência sensorial e relatos que, de

55 “En respuesta a una realidad mediatizada por las tecnologias de la

imagen, em los últimos años se asiste a una reinvidicación de una realidad humana en bruto”.

56 “Una experiencia sensorial de innegable realidad”.

127 alguma forma, digam algo sobre as subjetividades de artistas da cena e da plateia.

No capítulo seguinte, apresentarei uma das possibilidades pelas quais os espetáculos (S)Em Mim e Retratos de Mulher compuseram alguns desses momentos a partir da estratégia da repetição.

128

129 4 REPETIÇÃO E PERFORMANCE

Dentre os limites nos quais ficção e realidade se tocam e borram suas fronteiras, uma das amplas possibilidades de encarar o real seria como tema de ficcionalização: matéria de invenção ficcional para artistas que lidam com a poetização cênica de experiências pessoais, nos campos do teatro e da dança. Outra abordagem seria a de encarar o real na cena a partir da emergência de acontecimentos desta: quando a ação cênica possibilita a inscrição de uma experiência de real nos corpos, artistas e plateia. Os espetáculos analisados aqui, (S)Em Mim e Retratos de Mulher, de uma forma ou de outra, passeiam por ambas as vias, e em suas trajetórias mobilizaram diferentes dimensões de afetos.

Este capítulo tratará de questões mais específicas dos dois espetáculos, situando-os em relação ao que já foi exposto anteriormente e problematizando as questões a partir de entrevistas realizadas com participantes dos processos (entrevistas em Anexos), aliados ao meu próprio relato como participante de ambos.

Primeiramente, duas noções que podem ampliar a discussão são trazidas por Diane Taylor (2002). Pesquisadora dos Performance Studies junto a Richard Schechner (um dos fundadores do campo teórico), Taylor analisa as práticas sociais na América Latina que se converteram em performances corporais, em comunidades letradas e iletradas. Nesse campo, ela analisa os conceitos de arquivo e repertório, como a diferença entre o que é material e o que é memória corporificada:

A memória do ‘arquivo’ mantém um núcleo material – registros, documentos, resíduos arqueológicos, ossos – que resistem à mudança. O arquivo preserva o que Freud denominou ‘traço permanente da memória’, o pedaço de papel inscrito para aqueles que desconfiam de

130

suas memórias e querem ‘suplementar e garantir seu trabalho por meio de uma notação escrita’. O que se modifica com o tempo é o seu valor, relevância, sentido, como é interpretado e mesmo corporificado [...] Hamlet pode ser representado de múltiplas maneiras, enquanto o texto dramático, imutável, assegura um significante estável. No entanto, assim como constitui a materialidade do que permanece, o arquivo excede o ‘vivo’ (TAYLOR, 2002, p. 16).

De outra maneira, o repertório diz respeito ao que é essencialmente vivo e se refere a memória do corpo: “performances, gestos, oratura, movimentos, dança, canto, e ainda, lembranças traumáticas, repetições e alucinações – ou seja, todos os atos que normalmente são concebidos como conhecimento efêmero, não reproduzível” (TAYLOR, 2002, p. 16-17). As performances culturais, ritualísticas e aquelas que advêm do trauma se localizam nesse lugar, não podendo estar noutro lugar que não seja o corpo vivo. Além disso, permanecem em constante mutabilidade:

Ao contrário do conhecimento e da memória do arquivo, no repertório a coisa nunca permanece a mesma. As danças mudam com o tempo, mesmo que gerações de dançarinos (ou mesmo os próprios dançarinos) jurem que elas permanecem as mesmas. Lembranças traumáticas e viscerais podem substituir a ansiedade associada ao evento em si, sem serem o próprio evento. Mas mesmo que a corporificação se modifique, o sentido pode permanecer o mesmo (TAYLOR, 2002, p. 17).

A autora abarca um amplo leque de manifestações com tais conceitos, de modo que eles interessam aqui para a percepção das corporeidades que foram agenciadas nos dois espetáculos. Primeiramente, ambos tiveram seus arquivos

131 (escritos pessoais de Luciana; pesquisa documental sobre crimes de feminicídio), e ambos também lidaram, de maneiras distintas, com os repertórios corporais de seus (suas) participantes – repertórios que são, em suma, constituídos por diversos afetos. Analisarei aqui algumas questões que se voltam ao repertório dos participantes.

4.1 REPETIÇÃO E INSISTÊNCIA – (S)EM MIM

Queria dançar algo importante, protestar contra a violência, algum pensamento político ou filosófico, falar da miséria humana. Mas somente consigo expor minha fragilidade. Queria dançar para salvar os outros. Mas danço, queridos amigos, para salvar-me a mim. (Denise Stutz)57.

Neste tópico, apresento uma breve análise dos

elementos de repetição que observo no espetáculo (S)Em Mim58, coreografado e dirigido por Luciana Araújo. Abordo a repetição como expoente da memória no realismo traumático, a partir da conceituação de Hal Foster (2005), e como estratégia coreográfica emblemática de Pina Bausch no Wuppertal Tanztheater, a partir da análise de Ciane Fernandes (2007). Além disso, aponto o caráter confessional imbricado na poetização de experiências pessoais em dramaturgias da memória, a partir de Óscar Cornago (2009) e Lícia Sánchez

57 Este depoimento, uma espécie de carta lida em um dos solos da bailarina

Denise Stutz, é citado por Cornago (2009, p. 107). 58 O espetáculo iniciou seu work in process em 2013, pela Inspire Cia. de

Dança, com o seguinte elenco: Luciana Araújo, Aline Sousa, Salete Santos, Bel Macedo e Thiago Gomez, em Juazeiro do Norte, Cariri, Ceará.

132 (2010), traçando as pontes entre esses(as) autores(as) e o espetáculo em questão.

Como já foi apresentado, o espetáculo é fruto de um trauma pessoal, vivido pela coreógrafa, a partir da repentina perda de seu namorado num acidente. Os dois conviveram durante parte da infância e da adolescência, em um longo período. Esse fato fez com que ambos convivessem um ao lado do outro em grande parte das suas vidas, o que tornou a perda uma experiência complexa de luto e depressão para Luciana.

Como um sentimento experienciado por ela seria trabalhado em grupo? Além dessa questão, a Inspire Escola de Artes, dirigida por Aline Souza e Luciana Araújo, era espaço de formação inicial em dança e contava com um corpo de baile jovem entre 13 e 21 anos (incluindo a coreógrafa: Luciana tinha, à época, 21 anos). As técnicas de dança da escola estavam relacionadas ao ballet clássico, jazz e dança do ventre (principais formações das professoras envolvidas), porém tanto Aline como Luciana já tinham um envolvimento com dança contemporânea59. Havia questões relativas a uma possível imaturidade do grupo, em diversos níveis. Porém, para Luciana urgia a necessidade de falar sobre a questão e a dança contemporânea foi escolhida para trazer o tema.

No processo de criação, as primeiras pessoas a partilharem da experiência artisticamente foram os(as) bailarinos(as) participantes, que tomaram conhecimento da narrativa menos por terem acompanhado pessoalmente os fatos, mas principalmente a partir de depoimentos escritos no decorrer de dois anos pela coreógrafa. O testemunho pessoal ou relatos de pessoas que a acompanharam no período (inclusive o meu) também se somaram no processo de apropriação para as cenas. 59 As duas são integrantes da Alysson Amancio Companhia de Dança há

cerca de sete anos. A Cia. tem se mantido como uma companhia ativa no interior do Ceará, desde o retorno do seu fundador, Alysson Amancio, para Juazeiro do Norte, há quase uma década.

133

É importante frisar que as duas abordagens da repetição aqui apresentadas – como expoente do trauma e como estratégia coreográfica – não pretendem criar uma polarização entre a memória e o corpo; a própria imbricação entre real e ficcional e a perspectiva afetiva aqui levadas em consideração desmontam análises desse tipo. No que concerne ao ponto em que a memória se torna material e materialidade cênica, a repetição é um dos possíveis elementos que atravessam as dimensões de trauma e coreografia, corporeidade e dramaturgia, dança e teatro. A ponte a ser feita com Pina Bausch não se deve ao fato de que Luciana Araújo se utilizou dos mesmos princípios bauschianos, mas que foi Pina Bausch que tornou emblemática essa estratégia principalmente a partir do livro de Ciane Fernandes (2007), utilizado nessa pesquisa. Além disso, também serão traçados paralelos com outras questões relativas à repetição na arte, que não necessariamente dizem respeito aos procedimentos de Pina Bausch.

4.1.1 O trauma como material de invenção

Segundo Hal Foster (2005, p. 166) a repetição foi

observada por Sigmund Freud (1836-1939) como um mecanismo da tentativa de integrar as experiências traumáticas à ordem simbólica do ser, por uma resistência a essa simbolização. O que resta é a repetição de ações, de pensamentos como tentativa de simbolização do trauma. Essa teoria foi revista por Jacques Lacan (1901-1981) posteriormente e, ampliando esta proposta, Foster desenvolve a sua análise da repetição nas obras do artista Andy Warhol a partir do conceito de realismo traumático: o artista seria visto como "um sujeito em estado de choque, que assume a natureza daquilo que o choca, como uma defesa mimética contra o choque" (FOSTER, 2005, p. 165).

134

Fotografia: Souza Junior. Em Cena: Luciana Araújo, Bel Macedo, Aline Sousa e Salete Santos.

Foster pretende, com o realismo traumático, uma

terceira via de análise da Pop Art dos anos 1960 que ultrapasse as dualidades comumente exploradas na crítica como categorização das obras, tais como “semiótica versus métodos sócio-históricos, texto versus contexto [...] significante versus referente, sujeito construído versus corpo natural" (FOSTER, 2005, p. 165). Visando a uma abordagem na qual as imagens da série Death In America, de Warhol, sejam vistas como “conectadas e desconectadas, afetivas e indiferentes, críticas e complacentes" (FOSTER, 2005, p. 165), o autor observa o caráter repetitivo das imagens de maneira que elas não somente reproduzem, mas também produzem os efeitos do trauma: “De alguma forma, nessas repetições, então, ocorre uma série de coisas contraditórias ao mesmo tempo: uma evasão do significado traumático e uma abertura em sua direção, uma defesa contra afetos traumáticos e sua produção" (FOSTER, 2005, p. 166, grifos do autor).

No contexto da repetição coreográfica no espetáculo (S)Em Mim, o uso da repetição pode indicar uma obsessão da memória em reviver ações, a não-continuidade dos fatos que

Figura 19 – (S)Em Mim

135 apenas autorreferenciam seu passado e, desta forma, não progridem, expondo o ser que se encontra, ao mesmo tempo, repleto de lembranças e esvaziado de significados, num paradoxo semelhante à análise do realismo traumático.

Para Foster, contraditoriamente ao que é exposto por Freud, as repetições de Warhol não buscam um restauro que controle o trauma: “Mais do que uma libertação paciente por meio do luto, elas sugerem uma fixação obsessiva no objeto da melancolia" (FOSTER, 2005, p. 166).

Se observarmos a repetição coreográfica como ato testemunhal de insistência da memória, notadamente no espetáculo (S)Em Mim, podemos estabelecer relações entre as opções estéticas de Luciana Araújo com a experiência vivenciada por ela. A repetição, que é “tanto uma drenagem do significado quanto uma defesa contra o afeto" (FOSTER, 2005, p. 165), é um dado importante no processo de simbolização do trauma – neste caso, essa simbolização passou pela dança.

A definição de Lacan para o trauma como um “desencontro com o real” é contestada sutilmente por Foster (2005): ao invés de desencontro, o real aconteceria num ponto de ruptura, em que sujeito e mundo se confundem. Citando Roland Barthes e sua definição de punctum – o ponto traumático que grita em silêncio – Foster afirma que o real "é uma confusão entre sujeito e mundo, entre o dentro e o fora. É um dos aspectos do trauma; de fato, pode ser que essa mesma confusão seja o traumático" (FOSTER, 2005, p. 167).

Foster finaliza o texto tentando apontar quais seriam os motivos de o trauma causar fascínio na arte contemporânea: certa dose de desilusão e insatisfação com diversas promessas – em relação a ordem, bem-estar social, desejo(s) e noção de realidade – que não foram cumpridas, nem possuem mais lugar de permanência (FOSTER, 2005, p. 185). E salienta os riscos de se observar o trauma como testemunho da “verdade”: o sujeito do trauma se encontraria, ao mesmo tempo, elevado e esvaziado, investido de autoridade sobre o discurso e, ao

136 mesmo tempo, desconstruído em sua própria experiência. Tanto fascínio pelo real mereceria, talvez, um pouco mais de atenção.

Observo que a Dança-Teatro de Pina Bausch está inserida no panorama analisado por Foster possivelmente apenas por uma perspectiva cronológica e conceitual de leituras acerca da obra da coreógrafa; a teoria Lacanicana sobre o real está presente na análise do crítico estadunidense sobre a repetição em Warhol, bem como nos estudos da brasileira Ciane Fernandes (2007) sobre a repetição no Wuppertal Tanztheater, embora enveredem por caminhos diferentes. São perspectivas que elegem, como ponto central para a invenção, âmbitos mais profundos dos corpos-memórias de artistas analisados(as), e se detêm nas marcas deixadas pelas vivências dos(as) mesmos(as). Dessa forma, a dramaturgia da memória atravessa o corpo; entre estímulos e respostas, a primeira forma de repetição é a da experiência vivida retomada em movimento.

Considero que o trauma aqui seja equivalente à tristeza conceituada por Spinoza (2008): sem permitir a simbolização, o trauma faz com que ações vazias se repitam, gerando uma imobilidade de ação no mundo, o que pode acarretar a diminuição da potência de ação. 4.1.2 Dançar o luto

Foi uma grande inquietação que levou este trabalho ao palco, questões sobre vida, morte, ausência, e sobretudo o que fazer com um coração que está aos prantos, que já não fala, não chora, não vive... Neste momento, decidi dançar... Dançar minhas angústias e inquietações, mas também dançar em agradecimento ao grande aprendizado que a vida me trazia (Luciana Araújo).

137

Ciane Fernandes (2007) analisou procedimentos e espetáculos da coreógrafa alemã Pina Bausch, no Wuppertal Tanztheater, nos quais a repetição de movimentos aparecia como uma estratégia coreográfica que permite a transformação das corporeidades em cena. A partir de estímulos-tema trazidos por Bausch (perguntas, temáticas, frases), bailarinos(as) improvisavam respostas cênicas para as proposições a partir de suas lembranças (principalmente da infância). A poética de Pina Bausch, segundo Fernandes, seria expor pela repetição real os processos nos quais a sociedade molda os corpos por meio da repetição cotidiana de ações, hábitos, costumes, como uma crítica aos mesmos – inclusive às exigências vazias da repetição no aprendizado de técnicas de dança, por exemplo. Dissociada da personalidade do(a) bailarino(a), a forma estética da memória era moldada pela repetição gestual no processo coreográfico. Dessa forma, durante a improvisação sobre os estímulos-tema, “a experiência original é relevante apenas como uma memória esteticamente reconstruída. Nesta fase do processo criativo, a re-presentação Simbólica [que difere da ordem simbólica] traz as experiências passadas precisamente como a ausência da experiência atual” (FERNANDES, 2007, p. 50).

A repetição de experiências vividas é uma das modalidades trabalhadas por Bausch antes de chegar à repetição dos movimentos e gestos em si, frases coreográficas inteiras, palavras ou cenas. Essa atitude, “mais tarde provoca diversas e imprevisíveis experiências no dançarino e em sua plateia, aumentando as possibilidades de interpretação e associações pessoais” (FERNANDES, 2007, p. 51). Tais possibilidades se referem às experiências possíveis de afeto que a corporeidade alterada dos(as) bailarinos(as) pode deflagrar em cena, pois a plateia acompanha a modificação físico-energética dos corpos.

No contexto de ambos os espetáculos analisados nesta pesquisa, a repetição aparece como a “imposição física” que

138 possibilitou que o indizível se corporificasse: o indizível do trauma pessoal da perda e o indizível da violência sofrida e que não é reconhecida, ou não encontra meio de se manifestar, permanecendo no âmbito íntimo e, por vezes, remoto até mesmo para a vítima.

Na cena inicial60 do (S)Em Mim, todos estão em penumbra no palco, que deixa entrever que cada bailarino(a) executa uma partitura repetitiva de um gesto, que vai se transformando em intensidades, velocidades, fluxos e direções distintas. Eles(as) não se movimentam no espaço (à exceção de Bel Macedo), estão fixados em um mesmo local, repetindo indefinidamente. Em um dado momento, que é definido pelo grupo a partir da escuta, as velocidades e intensidades se ampliam por algum tempo até que, chegando à exaustão, a repetição retrocede em velocidade e intensidade.

O bailarino Thiago Gomez avalia:

A repetição do movimento chegava a ser insuportável para mim, porque quando ficava nesse movimento [demonstra o gesto], de tanto se repetir ele se transformava: no começo era leve, fácil, fácil, mas quando ficava em repetição contínua era insuportável! Eu me sentia muito mal, fisicamente mesmo, até parar e respirar. Aí pronto, acabou.

Essa cena gerava certo desconforto e principiava a atmosfera de angústia que o espetáculo construía. Entretanto, no decorrer dessa pesquisa observo que, se por um lado, a repetição dos movimentos no espetáculo (S)Em Mim tem relação com as propostas de Pina Bausch (nas quais tiveram inspiração os procedimentos que desenvolvi junto ao grupo

60 A cena surgiu de um exercício simples que propus, onde cada bailarina(o)

escolheria um gesto aleatório que estivesse nos desenhos já coreografados e repetissem com atenção ao que aconteceria nos seus corpos. Mais adiante, esse processo está melhor explicado.

139 mais adiante), por outro lado a necessidade sentida por Luciana Araújo de relatar a experiência aponta para o ato confessional dela mesma a partir do trauma, enquanto o grupo não participa com memórias próprias, e ela coreografa estritamente a partir de si, do seu entendimento e da sua necessidade de tratar do tema através da dança. O fato de Luciana se direcionar bastante às suas memórias no começo do processo pode ter sido um fator que não a deixou perceber que o grupo tinha dificuldades de traçar esse movimento de alteridade em direção à sua dor, de forma que chegasse à dança que estavam fazendo. O testemunho era dela, mas ainda não era do grupo. Mais adiante retornarei a esse processo.

Óscar Cornago (2005) ressalta a importância do ato testemunhal na atuação que perpassa as ideias de corporeidade, da inscrição da experiência dos/nos corpos, para inventar uma nova movimentação que servisse de testemunho61: “Em que medida a confissão é também um modo de pensar com o corpo, um pensamento performativo?” (CORNAGO, 2009, p. 106). E ainda, em que medida a confissão também abre um espaço de crítica das relações e dos afetos que as permeiam? Ao explanar o período posterior à experiência traumática, Luciana Araújo comenta em seus relatos:

As minhas lágrimas falavam muito... gritavam copiosamente... isso fazia muita gente querer me abandonar... Não por maldade... mas porque eu estava violando uma intrínseca regra das relações sociais: não sinta. Não demonstre... isso é sinal de fraqueza... Não me perturbe com a sua dor... seu tempo de senti-la já passou... (ARAÚJO, 2015, p. 1).

61 Sánchez evoca a crítica dos coreógrafos alemães Johann Kresnik e

Gerhard Bohner à técnica do balé clássico, cujos movimentos, tomados em sua materialidade, não eram testemunhos de nada. Esse fator restringiria a ação política de “traduzir” o ser humano (SÁNCHEZ, 2010, p. 15).

140

Para Cornago, o ato testemunhal, no vídeo ou no palco, problematiza o ideal da atuação "verdadeira", na medida em que expõe a inscrição da própria experiência dos/nos corpos:

Esta teatralização [da dança] responde também à necessidade de se confrontar com o outro, não somente fisicamente, mas através da palavra, de converter o corpo do bailarino em um corpo social que se dirige ao que tem diante de si [...] Trata-se de um gesto de afirmação e de dúvida ao mesmo tempo, de afirmação de uma necessidade de encontrar um sentido para uma(s) história(s) e de dúvida sobre como fazê-lo. Somente uma coisa fica clara, o caminho é através do outro, a confissão não faz sentido, não pode ter verdade, se não for através da confrontação com quem está em frente, uma necessidade de comunicação explícita distinta da que teve a dança em outros momentos (CORNAGO, 2009, p. 107).

Pelo fato de que a narrativa e os materiais do real não foram explicitados verbalmente ao público, é possível questionar se, apesar da necessidade de narrar/confessar, o espetáculo aconteceu de fato como “narrativa pessoal” ou “ato confessional” para quem não conhecia a vivência da coreógrafa. Muitas pessoas assistiram ao espetáculo sem saber que ali existia dramaturgicamente um relato real. Porém o alcance dramatúrgico dos movimentos e a experiência afetiva gerada dos/nos corpos, fomentada pela repetição, também me fazem questionar em que medida o ato confessional verbal seria necessário neste caso, sabendo que havia uma necessidade mais ampla de “dançar” – lidar com seus afetos – do que de “falar”, verbalizar a narrativa. O espetáculo está, de toda forma, transpassado da experiência que se tornou materialidade a partir da poetização cênica e do ato que é

141 coreograficonfessional62: um encontro com outras pessoas, com outros universos afetivos, por meio da dança. Marcio Rodrigues comenta:

Uma coisa muito interessante de ver no trabalho de direção da Luciana era que, como todos os presentes conheciam muito bem a história, todo e qualquer movimento criava muita ressonância. Um movimento simples fazia a gente pensar sobre o que aconteceu com ela e o namorado dela, e é interessante o jeito como ela própria trabalhava isso. Lembro claramente que pensava: “Nossa, como mexe com a gente”, de um movimento que mexia comigo porque me dizia algo sobre o meu passado, mas que ela tirou do passado dela. Aí ela imediatamente fez um gesto, tipo abanando a mão no ar, como se fosse: “Não vou me envolver com isso” e seguiu.

O fato de a narrativa não estar verbalmente exposta, mas ter sido material da experiência afetiva que possibilitou a criação, não invalida a necessidade de “falar” da experiência do corpo, com a dança, sem a necessidade de verbalizá-la e torná-la “carne fresca” (AUGÉ, 2015)63. O trabalho se voltava à poetização da experiência, buscando o símbolo do corpo que

62 Neologismo que tem como inspiração a utilização dos termos em conexão

inclusive verbal feitos por Fernandes (2007). 63 Assim como a expressão de Marc Augé (2015), já relatada, ao

problematizar a ficcionalização massiva da realidade pela mídia. A “carne fresca” me remete a duas imagens-pensamento que giram metaforicamente em torno dessa questão: a primeira, a exposição de grandes porções de carne em mercados, que agrega uma lógica publicitária do consumo à mortificação do vivo; e a segunda, a partir da mitologia grega, o fígado exposto de Prometeu, que aguarda ser devorado por um abutre que se alimenta de sua dor, e exige a diária reconstituição da mesma – dor/trauma – para prosseguir no ciclo parasitário. Essas associações me conduzem a repensar as questões éticas envolvidas na apropriação.

142 revelasse o sentimento que o tinha gerado, como é proposta de Lícia Sánchez a partir da dança-teatro. Ela afirma que

A função importante do símbolo aqui [no teatro-dança64], entretanto, é revelar a dimensão poética do foro íntimo, buscando analogias promovidas pelo estado poético conscientemente ligado ao estímulo-tema (SÁNCHEZ, 2010, p. 118).

A experiência pessoal era, assim, redimensionada em cena e extrapolava o íntimo, afetando os corpos.

Para o público que conhecia a experiência (e também me incluo nesse lugar), cada cena era como um punctum – um “grito em silêncio” que desestabilizava a diferença entre imagens corporais de Luciana, que cheguei a presenciar, e imagens que surgiam em coreografia. Para quem não conhecia, a experiência poderia ser menos intensa, mas era de toda forma notável. Como Marcio Rodrigues afirma,

O espetáculo inteiro tinha uma atmosfera específica que já começava nos ensaios, e continuava nas apresentações. Talvez não era tão claro que ela estava falando sobre a morte de alguém, eu não lembro de achar tão claro. Mas a gente via como a atmosfera que acontecia no palco chegava à plateia.

A seguir, apresento questões que permearam alguns procedimentos que conduzi junto ao grupo, no princípio da elaboração cênica, em março de 2013.

64 A autora utiliza o termo “teatro-dança” para se referir à “dança-teatro”

por uma questão de tradução mais aproximada ao sentido do termo em alemão, Tanztheater. Não o adotei nesse trabalho porque a maioria do material visto traz o termo “dança-teatro”, já popularizado no Brasil.

143 4.1.3 Teatro dança – uma preparação “coreoteatral”

Quando Luciana Araújo iniciou a coreografia do

espetáculo, fui convidada para acompanhar um ensaio do grupo com o intuito de oferecer outro ponto de vista sobre o processo. Além das investigações acadêmico-práticas em teatro e dança, eu tinha proximidade pessoal com a coreógrafa, inclusive nos momentos de sua vida em que a narrativa se fazia acontecimento. Com um elenco jovem (na dança e também na vida65), com a própria estreia de Luciana Araújo como coreógrafa de um espetáculo que estava imbricado em sua vivência, e com o treinamento desenvolvido pelo grupo, era natural que os(as) bailarinos(as) apresentassem dificuldades para corporificar as imagens propostas por Luciana Araújo em suas movimentações. Logo, era perceptível que havia uma desconexão entre a mobilização interna e a movimentação externa do elenco.

Ao conviver com Luciana no período do luto, a mudança da sua corporeidade era um fator muito visível. Alteraram-se o ritmo do caminhar, a postura, a textura de pele e posicionamentos da cabeça, expressões diretas dos medicamentos que ela tinha que ingerir para controlar a insônia e dos afetos que a (i)mobilizavam. Como Diane Taylor afirma,

Transmitimos acontecimentos, pensamentos e lembranças não apenas através de nossos escritos literários e histórias documentadas, mas também por meio de nossos atos e performances corporais. As técnicas de preservação, transmissão e decodificação desses materiais são certamente diferentes, assim como diferem as possibilidades de acessá-las (TAYLOR, 2002, p. 18).

65 As idades dos(as) integrantes do grupo na época variavam de 13 a 21 anos, incluindo a coreógrafa.

144

Fotografia: Souza Junior. Em cena: Thiago Gomez e Bel Macedo.

A dificuldade de acessar o sentido dos movimentos já

era também uma angústia do próprio elenco, que percebia o não-alcance em seus corpos da dimensão das imagens trazidas. Luciana propunha uma movimentação que possuía grande ligação com movimentos do jazz e do ballet clássico (as coreografias, no princípio, eram elaboradas ao final das aulas dessas modalidades na Inspire Espaço de Artes), mas que poderia ser encarada de forma mais densa, com envolvimento mais profundo de cada bailarino(a), e assim, pudesse desmontar algumas linhas corporais que se mantinham das respectivas técnicas. Aline Sousa comenta:

Eu nunca passei por luto, nunca perdi alguém tão próximo a mim. Daí me perguntava: “E agora?”. E ficava pensando em alguma coisa que tinha sido significativa para mim, mas nada. E como se apropriar de uma dor que eu

Figura 20 – O véu

145

poderia ter passado? Cada um passa de um jeito. Eu me perguntava: “Como é que eu vou medir essa dor?”.

Ao observar em seus corpos tais dificuldades, com o intuito de aproximá-los da proposta da coreógrafa, a repetição de alguns elementos da coreografia foi um artifício utilizado por mim como uma tentativa de mobilizar outras energias e compreensões corpóreas e afetivas dos(as) bailarinos(as) na movimentação proposta, ao mesmo tempo em que eu questionava o grupo sobre as origens de cada movimento mínimo e quais relações ele poderia ter com a narrativa já conhecida. Nesse momento, percebi que criar as conexões entre o movimento de cada um e os próprios afetos – não os de outra pessoa, mas os próprios – era necessário também para a compreensão dos afetos de outra pessoa. Luciana Araújo comenta que esse processo

[...] com muita sutileza levou tanto a mim quanto aos outros quatro bailarinos a unir mais claramente nossos movimentos às nossas ideias, partindo de nossas experiências, da repetição, da interiorização e do fazer e reconstruir a célula coreográfica com mais propriedade, e firmeza até, pois este era o primeiro trabalho da companhia e já tínhamos diante de nós um tema extremamente forte e difícil. (ARAÚJO, 2015, p. 1).

Propus a repetição de alguns gestos, escolhidos aleatoriamente por cada um(a) a partir da coreografia que já estava encaminhada, apenas como um exercício que “desautomatizasse” os desenhos coreográficos já existentes, cuja cristalização por meio da repetição “automática” empreendida no processo de memorização poderia dificultar o encontro de uma forma mais profunda e interna do

146 movimento66. O termo “automatizar” se refere aqui à repetição puramente formal do movimento, apreendido como uma simples memorização técnica, e que não traz em si o envolvimento interno. Cada movimento perdia, em si a sua força, quando nos concentrávamos no macro, na coreografia, e não no micro, nas pequenas percepções (GIL, 2004).

As estratégias de repetição em Bausch parecem ser mais amplas do que aquelas que experimentávamos nesse momento: para Ciane Fernandes,

No processo criativo de Bausch, a repetição não confirma nem nega os vocabulários impostos nos corpos dançantes. Ao invés disso, é usada precisamente para desarranjar tais construções gestuais da técnica ou da própria sociedade. A repetição torna-se um instrumento criativo através do qual os dançarinos reconstroem, desestabilizam e transformam suas próprias histórias enquanto corpos estéticos e sociais (FERNANDES, 2007, p. 46).

É evidente que o processo não seguiu o processo de Bausch, principalmente porque esses procedimentos chegaram a mim pela observação das obras e por leituras como as de Ciane Fernandes. Interessa apontar que essa investigação era, a princípio, fruto de reflexões minha a partir dessas e de outras experiências.

Entretanto, observo uma relação quando Fernandes afirma que a repetição desarranjaria as construções gestuais que o grupo já estava construindo. E só se tornaria potente se

66 Como citado, anteriormente eu já havia experimentado procedimentos

inspirados na repetição e havia percebido novas maneiras de internalizar uma movimentação a partir dela. Tais procedimentos foram abordados tanto no Retratos de Mulher e também por Marcio Rodrigues em sua dissertação de mestrado A cena contemporânea aos pedaços (RODRIGUES, 2011), de cujo experimento prático participei como estudante, em 2010.

147 bailarinos(as) também buscassem em si mesmos(as) outra experimentação e mobilização interna, uma disposição afetiva, como ressaltei ao grupo. Um interesse interno, uma disponibilidade para ser afetado pelos materiais – no caso, o principal material vinha de uma história pessoal de uma pessoa próxima – e de afetar a partir disso a cena67, mesmo que os movimentos inicialmente não tivessem partido de seus corpos e relatos. A questão era: como incorporar sensações que não são minhas? Que dimensões de apropriação podem se dar nesse procedimento? No procedimento de repetição, pedi que o grupo estivesse atento para algumas imagens que a repetição corporal poderia gerar, e as sensações que o movimento iria aflorar em seu corpo. O que os(as) moveria a repetir com insistência o mesmo movimento?

Todo o grupo afirma a dificuldade que sentia no embate entre a apreensão do desenho coreográfico e a execução dele. O que essa estratégia possibilitou foi a incorporação da narrativa ao repertório corporal de cada um, com as sensações que os afetos de Luciana poderiam gerar. Dessa forma, a estratégia de repetição possibilitou que o grupo se afetasse sensorialmente e encontrassem em si mesmos(as) as mobilizações internas para agir na cena. Aline Souza comenta que

A minha maneira de ver as cenas mudou, como se pudesse vê-las na mente dela. Não era só um abraço, eu via muita coisa aqui ao redor: como se fosse ele chegando na casa dela ali, e aqui atrás estava ele na sala com ela, aqui estava uma conversa... Eu via cenas assim depois que a gente fez a aula, e que você mostrou. São essas coisas simples, que eu não tinha maturidade para entender. Eu só compreendia a

67 O treinamento afetivo, como afetar-se e se deixar afetar pela cena, é uma

das reflexões empreendidas por Renato Ferracini (2013) para atrizes e atores que buscam um estado de atuação.

148

forma do movimento, então aquilo foi muito bom para mim. Foi nesse momento que passou a ser mais doloroso, mas acho que ficou bem melhor do que como eu fazia antes.

Thiago Gomez analisa que nem todas as questões puderam ser solvidas, e que a corporeidade da cena não necessariamente se iguala com a corporeidade vivida por Luciana:

A gente acaba construindo nossas imagens para dançar o trabalho, mas nunca vai chegar na intensidade do que a Luciana viveu. Mesmo que a gente pense na perda, são tipos de perda diferentes, a gente nunca vai acessar a perda dela. Dramaturgicamente, o blog que ela criou serviu para gente tentar acessar, é como se a gente estivesse entrando um pouco na mente da Luciana para entender toda a situação que estava acontecendo com ela [...] Particularmente, nunca vai chegar o momento em que eu vou entender o sentido daquilo, porque eu não vivi, eu não estava na pele dela. E por isso eu posso buscar imagens que me façam chegar próximo, que me façam dançar o trabalho, mas não vou sentir igual.

De certa forma considero que também teve espaço a alteridade e a ética ao lidar com um relato pessoal, a partir do momento em que houve um deslocamento das estruturas mais rígidas de pensar a coreografia e o envolvimento com ela que o grupo, até então, possuía. Também tivemos uma conversa onde relatei algumas situações que havia observado em Luciana (como a mudança da sua corporeidade no período do luto) e de como essas questões poderiam adentrar a cena.

Após esse encontro a coreografia se redefiniu, sendo a estratégia de repetição apropriada coreograficamente no decorrer do espetáculo. Os procedimentos trouxeram uma questão que era interessante à dramaturgia do espetáculo. Neste

149 momento, eu não havia observado a experiência de Luciana como um trauma, nem que a repetição seria um dado do mesmo, pois foi um dos insights que tive posteriormente, no período do mestrado. Porém a coreógrafa comenta por que acatou a sugestão:

Eu percebi que o que eu sentia, eu não sentia só uma vez, eram sentimentos que se perpetuavam, que continuavam, que continuavam, e eu via que aquele movimento não podia ser feito só uma vez: ele precisava continuar, continuar, continuar. Mas isso eu só fui ver depois do processo dos exercícios que você passou para gente em relação à repetição. Talvez porque, como eu falei antes, eu não tinha ideia de como as imagens que eu trazia podiam colaborar de uma forma tão forte para cena. Só fui ter esse insight depois do que você falou para gente, naquele dia, de que a gente tinha cenas muito boas, muito fortes, a gente só precisava torná-las verdadeiras. Acho que o “pulo do gato” foi ali, porque até então a gente fazia pensando na coreografia como sequência de movimentos. A gente não tinha mergulhado tanto em cada um deles.

O repertório corporal de Luciana era perceptível para mim, mesmo que a coreografia codificada não permitisse ainda o fluxo das intensidades, e julgo que a percepção do “verdadeiro” por Luciana passou por essa questão. A repetição apenas faria com que o grupo percebesse a sua efetividade.

150

Fotografias: Souza Junior (Aline Sousa e Bel Macedo) e Francisco Difreitas (Bel Macedo).

Em suas descrições das cenas do Wuppertal, Fernandes

(2005) indica que repetir ações (ao invés dos movimentos) oferece margem à improvisação – que traz o imprevisto68. Os momentos em que Luciana propôs ações intensificaram as cenas, por uma intensificação dos corpos. Um exemplo é a cena em que a bailarina Aline Sousa tenta se agarrar ao corpo do bailarino Thiago Gomez, narrada no início deste trabalho:

Aquele duo com Thiago é muito difícil, quando comecei a fazer eu não entendia, depois eu fui entender. Você se joga e não vai, se joga de novo e não adianta... Eu queria dizer: “Não me

68 Luciana afirma que o espetáculo não teve momentos de improvisação, no

sentido que os movimentos foram criados por ela, e não pelo grupo em jogos de improviso. Porém, considero que o trabalho com a repetição gerou qualidades de improvisação, pois a forma como cada bailarino foi conduzido a repetir foi livre, com variações de tempo, fluxo, peso e em associações com outros movimentos pelo espaço. A ação era repetir o movimento e modificar suas qualidades.

Figura 21 – Repertório ressignificado

151

coloca pra fazer essa cena não?” (risos) Dava uma sensação surreal. Quando o ensaio acabava, eu estava cansada não porque era muito coreografado, mas porque era uma energia extremamente real, um desgaste emocional também. Mas eu queria fazer algo que eu realmente sentisse.

O contraste entre a imobilidade de Thiago e a ação desesperada de Aline de se agarrar (a uma lembrança?) amplia-se na medida em que a respiração dela se torna cada vez mais audível, revelando o cansaço advindo da repetição e, decorridos alguns minutos, a desistência. A mudança na corporeidade de Aline e Thiago durante a cena aponta para o real da experiência que se inscreve nos seus corpos, para os afetos que emanam dos seus corpos e chegam à plateia, no decorrer da ação, pois o risco da queda real está ali e se instala uma tensão. Retomando Foster, sobre a repetição da obra de Andy Warhol ele afirma que

Antes, a repetição serve para proteger do real, compreendido como traumático. Mas exatamente essa necessidade [de repetição] também aponta para o real, e nesse ponto o real rompe o anteparo proveniente da repetição. É uma ruptura menos no mundo que no sujeito – entre a percepção e a consciência de um sujeito tocado por uma imagem (FOSTER, 2005, p. 166, grifos do autor).

A irrupção do real é potência afetiva na cena. Em várias cenas, continuamos a ver os mesmos gestos, em uma contínua repetição que os transforma e, aos poucos, a sensação de angústia, ao mesmo tempo necessária e coercitiva, ponto de segurança e desestabilizadora, transforma os corpos na cena que, logo esvaziados do fluxo energético empreendido nas repetições, paralisam, tomados pela inutilidade da insistência.

152

Apesar de todas as dificuldades, o grupo afirma que o trabalho era motivador, e por mais que fosse difícil emocionalmente, gerava satisfação. Quando indagados sobre a questão, Allef Lira, que passou a integrar o espetáculo posteriormente, confirma:

Foi uma oportunidade bem desafiadora! Por mais que o trabalho seja difícil emocionalmente, era muito satisfatório. E é por isso que eu não desisti. “Ah é difícil?” É. Mas eu saía realizado.

Aline Souza também comenta: “Ele me trouxe maturidade em cena. Eu queria fazer algo real com movimento, que fosse realmente pessoal, e nesse processo eu sentia muita vontade de entender melhor essas questões”. Thiago Gomez ressalta outro entendimento sobre a própria sensibilidade:

Para mim, o que não me fez sair do trabalho foi porque, mesmo começando na dança, este era um trabalho muito maduro, que me acordou enquanto ser sensível. Começou a reverberar dentro do meu corpo, trazendo sensibilidade. [...] Eu comecei a dançar de outra forma, mais concisamente, mais... É sobre o que se cria, sabe? Eu não me sentia apenas num palco, era como narrar sensações.

A partir dessa reflexão, observo que o sutil entrelaçamento da experiência vivida com sua “ficcionalização” em cena – já que Luciana Araújo também integrava o elenco – provocava um sentido de irrupção do real, de afeto, diferente para quem tinha conhecimento anterior da vivência da coreógrafa. E ainda, a repetição e a transformação dos movimentos e das corporeidades em cena, a partir de uma dramaturgia da memória, também geravam uma potencialização do acontecimento cênico, que irrompia como

153 uma experiência afetiva para a plateia que não tinha conhecimento da vivência que serviu de matriz para a cena.

Como afirma Lícia Sánchez, analisando a sua vivência com procedimentos de Pina Bausch, “o sentido principal do processo do teatro-dança em pauta está na busca de ecos ao infinito, que renovam a experiência da alteridade do real” (SÁNCHEZ, 2010, p. 14). Considero que são esses “ecos”, material que ressoa e afeta outras pessoas, materialização simbólica, que trazem a experiência afetiva da vivência subjetiva para a cena.

Ficou também evidente, pelas entrevistas e pelo que acompanhei da trajetória do grupo69, que o trabalho afetou alegremente o grupo como um todo: como artistas de um grupo jovem, puderam experienciar um processo de criação que moveu as suas sensibilidades artísticas e afetou o modo como a coreógrafa e bailarinos(as) encaravam a cena, o fazer artístico e os seus afetos. A alegria não foi exatamente uma emoção, e sim a potencialização de um novo agir e fazer artístico. Além, disso, como já afirmado, Luciana Araújo inventou-se para o espetáculo ao lidar com afetos que antes a imobilizaram e que foram transformados em afetos de alegria – a alegria que Spinoza apontou em sua Ética.

Pela análise conceitual dos elementos de repetição no espetáculo (S)Em Mim, observo que o ato de coreografar de Luciana Araújo se atrelou muito mais a sua atenção a si, aos seus afetos, à sua experiência pessoal, do que ao aspecto conceitual aqui apresentado; não foi uma busca deliberada, emergiu do próprio lidar com os seus materiais do real e dos seus procedimentos coreográficos como tentativa de simbolização, de materialização cênica de elementos da memória que se tornaram afetos. Essa análise é posterior ao

69 A Inspire Cia. de Dança se mantém em atividade, mesmo após o

encerramento da Inspire Espaço de Artes, e tem como local de ensaios a sede da Associação Dança Cariri (ADC), em Juazeiro do Norte.

154 processo de criação e teve lugar quase que inteiramente no decorrer dessa pesquisa. É um olhar pessoal sobre a experiência do grupo, que não deslegitima outros que possam surgir. Hoje, revisito essa experiência com uma necessidade de ampliar a compreensão sobre os motivos que a levaram a se tornar marcante e se inscrever em mim, abrindo esse campo que não a finaliza, mas sim problematiza e inventa outras experiências, como “ecos ao infinito”.

4.2 “VOCÊ... QUER FALAR ALGUMA COISA?”:

RETRATOS DE MULHER Neste tópico, discorrerei sobre a ação artística que

procura nos afetos pessoais – vivências e memórias corporificadas – a potência para uma ação política presente. Como já mencionado, o espetáculo Retratos de Mulher, dirigido por Marcela Lima no Grupo de Pesquisa Teatro/Dança e Novas Tecnologias (CNPq/URCA), do qual participei como atriz-bailarina, teve como temática a violência contra a mulher na região do Cariri, sul do Ceará. As razões dos altos índices de agressão e feminicídio eram questionadas em cena, e levantavam uma temática urgente na região há anos, que atinge mulheres de todas as classes sociais, crenças, profissões e idades.

Seja pela cultura religiosa predominante na região, seja pelo próprio desenvolvimento dos processos de dominação e sujeição feminina empreendidos em toda sociedade patriarcal, essa violência não se constitui num dado apenas regional ou religioso, embora tais características tenham sido motoras do espetáculo. São histórias colhidas em pesquisa e rememoradas pelo grupo, performadas em cena, numa poetização que aponta, em vários momentos, para a literalidade dos fatos (com narração direta de histórias próprias e familiares, exposição de fotografias das atrizes e familiares próximas, além de imagens de vítimas reais).

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A partir do processo, discorro sobre os impactos positivos, o questionamento sobre o trabalho das atrizes-bailarinas e a sua "resistência emocional" e a mudança de perspectiva sobre a ação política na arte. Os relatos a seguir tangenciam, sob o meu ponto de vista de participante, as questões levantadas e que serviram como material de pesquisa e criação do espetáculo Retratos de Mulher. São materiais que exprimem certas vivências e clareiam a dimensão política a qual nos empreendíamos. 4.2.1 “Até que a morte nos separe”

Maria Yara de Brito Gonçalves, secretária de Educação

do município do Crato (CE), saiu para almoçar com o marido por volta das 11h do dia 16 de agosto de 1994. Nenhuma de suas amigas e colegas professoras sabia que esta seria a última vez em que poderiam vê-la. Yara foi assassinada, dentro do carro, com tiros à queima-roupa. O carro com o seu corpo fora abandonado na estrada que liga as cidades de Juazeiro do Norte e Barbalha. Populares chamaram a polícia. O seu corpo foi reconhecido pelo crachá da Secretaria de Educação que ainda portava. O velório teve caixão fechado, devido às coronhadas que o marido lhe desferira no rosto, deixando-o desfigurado.

Fonte: Arquivo pessoal. Fotografia distribuída na missa do 7º dia de sua morte.

Figura 22 – Yara

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Foi dessa forma que o tema da violência contra a mulher adentrou em minha vida. Aos 8 anos, vi minha mãe em desespero com a notícia, dada por telefonema. Mesmo perguntando a ela por que isso tinha acontecido, “por que ele a matou?”, a resposta de minha mãe não fazia o menor sentido para mim: “Ele era muito ciumento”, era o que ela conseguia dizer. Como ser mãe e explicar para a filha de 8 anos que uma mulher como Yara era vista como propriedade pelo marido a tal ponto de este assassiná-la fria e premeditadamente por ciúme?

As consequências do ciúme, que tem como base o sentimento de posse de outra pessoa, são vivenciadas por muitas mulheres em seus relacionamentos afetivos. Em casos extremos, o homem passa a se sentir no direito de dispor da vida da esposa, que é vista por ele como sua propriedade. Porém, antes de chegar a esse fim, a mulher pode sofrer diversas agressões físicas e psicológicas. A manutenção dessa cultura no interior do Ceará por parcela de sua população se dá por diversos meios: os discursos e práticas que normalizam comportamentos, a cultura de massa que emblematiza o forró eletrônico como âmbito de valorização e status masculino, do universo que mescla o machismo com a religiosidade popular, e se desdobra em atitudes doentias, que terminam por se tornar causas de crimes contra a mulher. Desconstruir a ideia de “crime passional” para efetivar a noção de violência de gênero, ou mais recentemente, feminicídio70, tem sido uma das 70 Em 9 de março de 2015 foi sancionada a Lei 13.104/15, ou Lei do

Feminicídio, que coloca os assassinatos de mulheres em razão de seu gênero ou decorrentes de violência doméstica na lista de crimes hediondos, punindo com mais severidade tais homicídios considerados qualificados. Antes dessa, a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha era a única lei de combate à violência doméstica no Brasil. Maria da Penha, também cearense, sofreu duas tentativas de homicídio por parte do marido, professor universitário de origem colombiana. Um tiro nas costas enquanto ela dormia a deixou paraplégica e, meses depois, ele tentou eletrocutá-la no banho. O marido só foi preso 19 anos após os

157 importantes lutas feministas no final do século XX e neste princípio do século XXI, embora não seja a única. O processo do Retratos de Mulher tangenciou várias das questões que apresentarei a seguir. Essa explicação é necessária para que se compreenda a gravidade da situação caririense ao longo desse começo de século XXI, razão pela qual me estenderei em algumas exposições a seguir, não para fazer um ensaio aprofundado sobre gênero, mas para apresentar questões relevantes na minha própria trajetória, relacionada diretamente aos lugares em que vivi.

Ao observar a situação do Cariri, as pesquisadoras Maria Helena Frota e Vívian Matias dos Santos (2008) questionam se seriam os modelos da religiosidade presentes no local que intensificariam os índices de violência: “A opção religiosa, como as demais escolhas humanas, tem uma lógica ou um significado para os agentes sociais, e só pode ser entendida quando consideramos suas relações com o estado e os demais sujeitos coletivos da sociedade” (FROTA; SANTOS, 2008, p. 6).

Em análise que tangencia essa questão, as pesquisadoras Maria Oderlania Leite e Zuleide Queiroz71

crimes, depois de Maria da Penha denunciar o caso a órgãos de Direitos Humanos internacionais, que obrigaram o Estado brasileiro a pagar multa, efetivar o processo de prisão e coibir mais fortemente a violência doméstica no Brasil, surgindo então a Lei Maria da Penha. Lei do Feminicídio disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm>. Lei Maria da Penha disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 05/01/2016.

71 Zuleide Queiroz enviou um depoimento sobre a sua memória do espetáculo Retratos de Mulher, ao qual ela assistiu duas vezes. O mesmo se encontra em anexo ao final desse trabalho. Zuleide Queiroz é graduada em Pedagogia, Mestra e Doutora em Educação Brasileira (UFC), com pós-doutorado em Educação (UFRN) e professora adjunta da URCA. Pesquisa a violência contra a mulher no Cariri há cerca de 18 anos.

158 (2015) nos apresentam um panorama sobre meninas que são veneradas como santas no interior do Ceará. Benigna Cardoso da Silva (1928-1941), Francisca Maria do Socorro (1930-1943) e Francisca Augusto da Silva (1941-1958), são cultuadas devido aos seus martírios, que envolvem violência sexual e de gênero. Benigna foi morta aos 13 anos por um rapaz da mesma idade que quis estuprá-la quando esta ia buscar água num poço. Francisca do Socorro foi estuprada e assassinada, também aos 13 anos, na mata próxima à casa da avó, em um crime que nunca foi solucionado. Suspeitava-se de um comerciante, que não foi preso ou indiciado. Francisca Augusto, aos 15 anos, havia rompido o noivado a pedido do pai, que temia o comportamento violento do rapaz. Foi assassinada pelo noivo, que não se conformou com o rompimento. As três foram mortas com vários golpes de faca. Nas suas respectivas cidades – Santana do Cariri, Milagres e Aurora – ergueram-se altares e peregrinações em homenagem às “meninas santas” (LEITE; QUEIROZ, 2015).

Em 2011, foi iniciado o processo de beatificação de Benigna pela Diocese do Crato e, com isso, sua história foi mais divulgada – obviamente, não por sua própria versão. Considero sintomática a narrativa da biografia da menina Benigna feita por Raimundo Cidrão (2015):

[...] sabendo que Benigna ia pegar água numa cacimba próxima à sua casa, ficou Raul à espreita atrás do mato, observando-a com o pote na cabeça [...] Ao aproximar-se, abordou-a sexualmente. Ela recusou, ele insistiu tentando violentá-la. Ela disse “não” com veemência e lutou heroicamente para se defender do ato pecaminoso, que no seu entender cristão ofenderia seu corpo. Raul, ao perceber que Benigna nada aceitaria com o mesmo, foi tomado por um ódio feroz: sacou de um facão atroz e a golpeou cortando-lhe (sic) os dedos da mão. Ela relutou de forma sobre-humana contra

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seu algoz, preferindo morrer a pecar contra a castidade. Depois disso, foi atingida na testa, nas costas e por fim no pescoço, cujo golpe deixou-lhe a cabeça quase decepada” (CIDRÃO, 2015, p. 1, grifos meus).

Ressalto que, pelo texto, a violência à qual Benigna foi sujeita é balizada pelo ideal cristão da castidade feminina e não pelo ato criminoso de assédio sexual; Raul é descrito como “tomado por um ódio feroz”, mas o ato que “ofenderia seu corpo” é visto como um pecado dela, e não do seu assassino. Para não pecar contra a castidade, a morte é preferível. São parte das estratégias que culpabilizam as vítimas, que mulheres devem resistir não por sua própria vontade, mas porque a castidade feminina permanece como um valor em si: a partir do seu martírio, Benigna passa a ser venerada como “Heroína da Castidade” (CIDRÃO, 2015, p. 1).

Fonte: <http://jovembenigna.blogspot.com.br/2013_02_01_archive.html>. Acesso: 27/12/2015. Fotografia de Elisângela Santos. A imagem é uma gravura a partir da descrição de pessoas que a conheceram.

Figura 23 – Menina Benigna

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Questiono que interesses estão envolvidos quando três jovens, assassinadas brutalmente como vítimas da violência sexual e de gênero são vistas e cultuadas como santas, sob o rótulo de “Heroínas da Castidade”. Quando as vítimas de estupro sobrevivem, são pecadoras e merecem repúdio? Como visibilizar a violência à qual tantas outras meninas e mulheres foram e ainda são submetidas se elas não são consideradas “heroínas”, nem “castas”? Afinal, cultos e santuários não se erguem a todas que, cotidianamente, passam por seus próprios martírios em silêncio. Será que outras mulheres podem buscar conforto pela fé em tais figuras, e conformar-se a não denunciar a violência da qual possam ser vítimas?

Observo o quanto comportamentos como esses podem ser mantidos e estimulados não somente por uma instituição religiosa, mas por toda uma cultura de comércio da fé, que vê nas romarias a diversos lugares, tidos como santuários, uma importante fonte econômica da região:

O Governo do Estado do Ceará, estima que a região seja visitada anualmente por cerca de um milhão e meio de pessoas, especialmente as populações mais pobres do Nordeste que vão em busca dos “milagres do Padre Cícero”, concentrando-se em Juazeiro do Norte, justamente onde o índice de femicídio72 é o mais alto de todo o Estado. Teria o femicídio relação com a religiosidade? Por que onde é alto o “fervor” da religiosidade há maior índice de femicídio? Inclusive com formas extremamente violentas, como queima de mulheres, mulheres enterradas vivas e mulheres apedrejadas até a morte? (FROTA; SANTOS, 2008, p. 4).

72 Frota e Santos utilizam o termo “femicídio” baseadas nos estudos de

Diana Russell e Jill Radford. A diferença do termo “feminicídio” parece ser uma questão de tradução e ambos designam o assassinato de mulheres por razões relativas ao gênero.

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Para aquelas que não caberiam nos altares restam, por vezes, outros rótulos bem pouco puritanos. Recordo um dos casos de feminicídio, exposto por Roberto Marques:

Luíza Alexandre Alencar, 22, e a amiga Maria Eliana Gonçalves, 29, foram mortas no dia 08 de junho de 2001. A primeira foi encontrada em um terreno baldio na periferia de Juazeiro do Norte, apresentando o corpo carbonizado, com mãos e pés amarrados para trás e a boca amordaçada. Segundo a perícia, Luíza Alexandre foi queimada viva. Devido ao tipo de morte e ao fato de a vítima encontrar-se vestida, não foi possível constatar se houve abuso sexual. Eliana Gonçalves foi encontrada seis dias após a sua morte em São José das Piranhas – PB. A vítima foi morta com dois tiros, sendo um na cabeça e outro na região pélvica. Teve os dedos das mãos cortados, como sinal de tortura, restando apenas dois dedos na mão direita. Teve as duas pernas e os pés amputados. Pelo elevado estado de decomposição, não foi possível constatar sinais de violência sexual (O POVO apud MARQUES, 2015, p. 553).

A barbaridade do crime que, num dia, chocou toda a população, noutro dia normalizou-se (normatizou-se?) quando boatos sobre a conduta sexual das vítimas foram divulgados nos jornais: Luíza namoraria um homem casado mais velho73, e sairia com outros homens da sua idade. Maria Eliana dividia apartamento com Luíza e as duas também manteriam um caso entre si enquanto faziam programas com outros homens. Amigas das vítimas afirmavam que os boatos eram, em sua maioria, falsos. Marques (2015) analisa como o tratamento

73 O caso extraconjugal de Luíza Alexandre realmente existia, e ficou

comprovado que ele fora o mandante do assassinato das duas jovens. Maria Eliana foi morta por ter conhecimento da relação.

162 dado ao caso pela imprensa se pautava mais na conduta moral das duas jovens do que na investigação do crime:

Vale perceber que a avaliação da índole das vítimas parece ser material obrigatório nesse conjunto de artigos sobre o assassinato de mulheres no Cariri. Tais falas reterritorializam as mulheres do Cariri, tornando-as previsíveis, insuspeitas e seguras, desde que distintas da categoria atribuída a Luíza Alexandre e Eliana Gonçalves: a de mulher de baixa índole (MARQUES, 2015, p. 554).

Particularmente, a sensação que a situação gerava era de pânico: enquanto isso acontecia, eu tinha que continuar a ir e voltar da escola e demais atividades sozinha, assim como muitas outras mulheres. O clima de insegurança, de medo, de revolta e o desamparo às famílias das vítimas gerava uma insatisfação e descrença da população em relação aos órgãos públicos, razão pela qual foi enviada ao Ceará uma comissão do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana74 (2004). A pedido de Íris Tavares, na época deputada estadual, o objetivo seria avaliar a razão da demora na solução deste e de outros crimes, prisão e julgamento dos acusados. O Relatório Cariri demonstra claramente que a violência chegava a ser, de certa forma, legitimada pelos homens ocupantes dos cargos de poder:

O desembargador [...] [presidente do Tribunal de Justiça] foi cortês mas evasivo. Quanto ao caso que motivava nossa visita, os homicídios cometidos no Cariri, não aceitou qualquer responsabilidade pela demora nos

74 Atual Conselho Nacional dos Direitos Humanos, órgão vinculado à

Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Ver: <www.sdh.gov.br>.

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procedimentos e tampouco estranhou os fatos que relatamos. Reiteradamente procurou diminuir a importância dos mesmos dizendo que a aquela [sic] região é tradicionalmente violenta, o que por si só explicaria os fatos a que estaríamos, inutilmente, dando tanta atenção. O presidente [...] conversou com juizes [sic] das regiões do Crato e soube que se tratava da morte de 43 mulheres. Munido de tais informações disse ter concluído que não está havendo irregularidades. A Comissão entendeu que perdeu o seu tempo nesse compromisso (CONSELHO DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA, 2004, p. 9-10, grifos meus).

Ouvidos os fatos que apresentamos o Governador [do Estado do Ceará] minimizou o problema ou declarou-se desinformado dos mesmos e das medidas que seus auxiliares já teriam tomado [...] Pediu aos seus Secretários que discorressem sobre os fatos, mas estes não tinham informações sobre os casos ou sobre as providências que teriam sido tomadas. As explicações foram inadequadas e sempre calcadas na questão cultural que justificaria a morte de mulheres por homens. Considero este aspecto de muita seriedade (CONSELHO DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA, 2004, p. 10-11, grifos do autor).

O Relatório prossegue descrevendo a reunião com os familiares das vítimas, que afirmaram sofrerem ameaças dos suspeitos dos crimes, que continuavam em liberdade75. Vemos

75 Segundo Marques (2015), oito das 43 vítimas citadas no Relatório foram

assassinadas pelo crime organizado, cujos assassinatos foram os mais chocantes. Os pistoleiros executavam tais crimes por encomenda, como o caso de Luíza Alexandre e Maria Eliana, citado acima. A maioria das vítimas, ao contrário destas últimas, não tinha envolvimento entre si.

164 o quanto a violência contra a mulher parecia institucionalizada e um acontecimento “sem irregularidades”. Adolescente, acompanhei esse e vários outros casos pela mídia jornalística regional. À época, o sentimento de revolta e de medo ampliava-se a cada notícia de corpos de mulheres, torturadas, estupradas e assassinadas com requintes de crueldade, crimes que durante alguns anos pareciam sem solução. No começo dos anos 2000 não havia Instituto Médico Legal na região do Cariri – o mais próximo era em Fortaleza, a 560 km – e quando os corpos eram encontrados na Floresta Nacional do Araripe, eram levados para o Cemitério Municipal do Crato, para aguardar perícia. Populares visitavam e comentavam o estado dos corpos. Uma exposição macabra e triste.

O que fazer com essa situação era algo que eu não sabia. Perceber as marcas que esses hábitos imprimem nas subjetividades de mulheres e homens da região era algo que eu só aprofundaria anos depois, no decorrer do processo de criação do Retratos de Mulher. 4.2.2 Quando o pessoal é político76

Os relatos que narrei acima, apesar de se referirem a

mulheres que eu não cheguei a conhecer, possuem vínculo com a minha história pessoal porque tiveram influência na visão que passei a ter sobre os crimes de gênero, por terem acontecido na mesma região em que morei e onde, posteriormente, teria lugar o processo de criação do Retratos de Mulher. O processo de criação que se desenvolveu, para todo o grupo, foi um momento de reflexão sobre violências já sofridas e por vezes

76 “O pessoal é político” é um slogan criado por Carol Hanisch e utilizado

pelo movimento feminista de segunda onda (entre os anos 1960 e 1980), que unia os problemas políticos e culturais enfrentados pelas mulheres. Até hoje é utilizado quando se pretende trazer para a discussão política as questões tratadas como sendo unicamente do âmbito privado, como a violência doméstica.

165 não legitimadas, além da visibilização e desconstrução de práticas cotidianas que mantinham a cultura de subserviência ao nosso redor.

Quando entrei no Grupo, em fevereiro de 2012, o trabalho de pesquisa já havia se iniciado desde o final de 2011, quando se delineavam as propostas temáticas, principalmente a partir das motivações de Marcela Lima e Dakini Alencar77. Pequenos trechos de duas coreografias já estavam prontos, e a partir de então, as cenas foram sendo construídas uma por vez, sem visarem o formato final que o espetáculo teria. Embora essa fosse um processo que partia muito mais de Marcela Lima, os movimentos eram também pensados sob a perspectiva de cada um em cena.

Em duas coreografias que eram pautadas na repetição de gestos, alguns movimentos ou frases haviam sido definidos por Marcela Lima e nós compúnhamos a cena improvisadamente, numa espécie de jogo estabelecido entre nós. Era o caso da cena em que expressávamos traços da subjetividade feminina a partir de poemas de Ana Cristina César78 e movimentação livre entre direções definidas, até que Luka amordaçasse cada uma. Também ocorria na cena que possuía gravação off do poema Aviso da Lua que Menstrua79, de Elisa Lucinda. A repetição fazia aflorar outras sensações que, em conexão com as frases, os poemas e a movimentação

77 Dakini Alencar, natural de Juazeiro do Norte, à época era aluna da

Licenciatura em Teatro e diretora da Dakini Cia. de Dança-Teatro, além de possuir formação em Dança do Ventre. Atualmente é mestranda no ProfArtes (UFRN) e coordenadora do Núcleo Artístico do Complexo Cultural Schoenberg, em Juazeiro do Norte.

78 A obra de Ana Cristina César, inclusive, se situa entre o autobiográfico e o ficcional, fazendo de sua poética uma mistura entre a criação e a experiência pessoal, uma poesia confessional e feminina.

79 Disponível em: <http://www.escolalucinda.com.br/bau/avisodaluaquemenstrua.htm>.

Acesso em: 31/12/2015. Poemas de Marina Colasanti também foram performados em outras cenas do espetáculo.

166 das outras pessoas em cena, traçava uma composição que tinha o caráter de ser continuamente recomposta entre seus mesmos elementos.

Os poemas de mulheres visavam a apontar aspectos da subjetividade feminina que, culturalmente, são tratados como menores, sem importância ou devem permanecer em segredo, como a menstruação, o desejo sexual e a necessidade de afeto:

Os poemas presentes na dramaturgia do espetáculo foram de fundamental importância para as conexões estabelecidas entre o externo e o interno do corpo, essas imagens subjacentes das próprias células (re)apropriadas tornaram-se partituras de movimentos, tornaram-se dança, tornaram-se denúncia. Essa denúncia diz respeito às conquistas imbricadas na vivência, tornando-se memória. Essa memória é palpável, registro que gruda na pele traduzido em singularidade. Ela representa um sujeito-saber, uma espécie de pele perfurada, rasgada e impregnada de poros da experiência sensível, é a própria memória da pele que tece o registro do movimento (LIMA, 2012, p. 8).

Para Luka Severo, que na cena performava o agressor das quatro atrizes-bailarinas, havia procedimento reverso: por não ser uma pessoa violenta, eram sentimentos que ele não havia vivenciado:

Confesso que fiquei meio desconfiado quando tudo começou. Na minha cabeça como eu ia falar sobre esse tema, se eu não era nem mulher nem agressor de mulher? Sendo assim, durante o processo, tive que acessar sentimentos que, até então eu desconhecia. Lembrar de momentos de infância, de situações vividas e presenciadas, foi o que fez com que eu colocasse para fora aquela energia. Eu sempre relacionava a violência destacada no Retratos com aquela vivida por nós, homossexuais. Por

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mais que vivamos em uma sociedade que diga que há direitos iguais, gays, mulheres, negros, nordestinos, ainda sofrem com discriminação e seus direitos não são levados em consideração. Fazendo essa relação, com a sensações que eu mesmo já vivi, por ser gay e nordestino eu conseguia acessar aquela energia.

A partir do exercício de perceber suas ações como uma prática libertadora da violência que já sofrera, Luka Severo tentava reverter a situação para conseguir o resultado condizente. O processo foi demorado. Luka começou a fazer atividades de musculação para diminuir o desgaste físico das cenas, pois todas as atrizes-bailarinas eram maiores do que ele, corporalmente, e muito da movimentação exigia que ele usasse de força física. Segundo ele,

As cenas de violência eram as que mais me impactavam, pessoalmente: eu tinha que agredir alguém em cena, coisa que não tenho coragem de fazer na vida real. Vendo os vídeos e fotos eu percebia uma transformação, e muitas vezes eu não reconhecia a mim mesmo.

Fotografias: Lino Fly Kariri (Luka e Nadja) e Diego Linard (Jayane e Luka).

Como já citado, cada um de nós possuía diferentes

experiências de vida e na arte. Havia uma proximidade minha

Figura 24 – Agressividade

168 com ballet clássico e dança contemporânea; Dakini Alencar e Jayane Diniz são bailarinas e professoras de Dança do Ventre, e também já tinham desenvolvido trabalhos em dança contemporânea; Luka Severo e Nadja Naiana não possuíam nenhuma experiência em dança. Apesar disso, Marcela Lima afirma que

O que existe de semelhante entre as intérpretes-criadoras é a permissão de experimentar novos rumos na dança, passando longe dos padrões convencionais, tanto estéticos quanto artísticos. Dessa forma, o corpo tornou-se um universo infinito de espaços ampliados, considero então, que a base para a construção criativa do espetáculo encontra-se na própria memória afetiva das intérpretes. O corpo é memória viva em movimento, lugar onde o subterrâneo do ser torna-se visível. Portanto, essa dança é singular e nasce de uma subjetividade encarnada, uma subjetividade-corpo, construída nas relações com o mundo e no campo da percepção (LIMA, 2012, p. 11).

A memória dos afetos, principalmente os de tristeza, como Spinoza (2008) conceitua em sua filosofia, acessada no decorrer do trabalho, foi o fator que propiciou ao grupo as qualidades de movimentos que fomos construindo. Essa tristeza dizia respeito aos momentos em que havíamos sentido diminuída ou até mesmo imobilizada a nossa potência de ação pela questão de gênero. Não surgiu apenas por uma vazão emotiva do grupo, mas era importante focalizar em nós mesmas em que momentos houve a despotencialização do ser feminino, por sermos mulheres. Jayane Diniz comenta a esse respeito:

Eu tive que acessar muita coisa, muitos sentimentos por vezes escondidos, para entrar no clima e estado que a cena me exigia. O processo, que era tão intenso, revirava muito da

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gente: memórias, coisas que eu tinha vivido na minha infância. E isso ajudou muito na cena, porque eu precisava acessar aquilo. Em algumas cenas eu sentia essa necessidade para poder manter um desempenho naquele estado.

O processo era ampliado pela nossa percepção sobre temática, discussão sobre cenas e muitos ensaios que buscavam corporificar as imagens dos materiais do real – a experiência afetiva – com os quais estávamos lidando: da lembrança pessoal aos relatos de jornais. Não foi um processo fácil; o grupo inteiro, em diversos níveis e lugares, ainda observava e vivenciava algumas formas de assédio moral, sexual e violência psicológica dentro de relacionamentos afetivos, familiares ou até mesmo nas ruas.

Figura 25 – Narrando histórias de Mãe e Avó

Fotografia: Lino Fly Kariri. Em Cena: Jayane Diniz.

Isso fica exposto no depoimento de Marcio Rodrigues,

quando ele afirma:

Lembro claramente de um momento em que tudo aquilo era tão doloroso de ser revisto, relembrado, que as bailarinas/intérpretes

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começaram a faltar aos ensaios, ficavam doentes, ficavam mal de vir aos ensaios. No processo de criação, se constituía um desgaste esse processo de reviver, de retomar essas lembranças. O interessante é que, diferentemente da ideia da psicanálise, que aponta que ao falar isso ficaria mais leve, mais tranquilo de lidar, isso não acontecia ao dançar. Parecia que, ao dançar, essa memória corporal ia aflorando, aflorando e isso ia sendo incorporado ao espetáculo, e o espetáculo ia ganhando densidade.

Hoje percebo que o processo nos fazia perceber o que Diane Taylor (2002) apontou como o repertório performado de uma memória coletiva (no nosso caso, de opressão patriarcal). Atos que são corporificados pela cultura coletiva e conduzem em si conhecimentos de diversas ordens:

Múltiplas formas de atos corporificados estão sempre presentes, apesar de estarem em estado de um constante refazer-se. Eles se reconstituem na transmissão das memórias coletivas, histórias e valores de um grupo ou geração para os seguintes. Atos corporificados e performados, apesar de pertencerem ao repertório, em si mesmos gravam e transmitem conhecimentos, por meio do movimento físico (TAYLOR, 2002, p. 17-18).

A autora, mesmo afirmando como as práticas de repertório dos povos colonizados da América Latina foram dizimadas em prol da visão arquivística de conhecimento (através da escrita), ressalta que arquivo e repertório não se constituem em âmbitos favoráveis ou desfavoráveis em si mesmos:

Sua relação não é, por certo de um binarismo direto – com o escrito e o arquivístico constituindo o poder hegemônico e o repertório

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produzindo o desafio anti-hegemônico. Os modos de preservação e transmissão do conhecimento são muitos e mistos, e as performances corporificadas têm, frequentemente, também ajudado a manter a ordem social repressora (TAYLOR, 2002, p. 20).

Observamos que alguns atos corporificados socialmente dizem respeito às questões de diferença de gênero. No espetáculo, diversos movimentos desse tipo foram retrabalhados em dança. Os momentos em que víamos tais hábitos expostos no cotidiano geravam discussões no grupo, e a forma como poderíamos lidar com as questões em cena. Gestos que possuíam inúmeros significados do que é, socialmente, “ser mulher”, constituíam algumas das camadas poéticas as quais o espetáculo se lançava. Era um processo complexo e então nós, inconscientemente, buscávamos também uma preservação emocional ao lidar com esses fatos e afetos. Nadja Naiana, que também era bolsista do Grupo de Pesquisa, relata que

As primeiras ações que eu tive dentro do grupo de pesquisa, foram procurar coisas que eram muito pesadas: ler sobre a violência, o que estava acontecendo na época, o brutal e grave número de mulheres assassinadas na nossa região, que ainda é muito violenta até hoje. Apesar de todo essas coisas que foram acontecendo como a Lei Maria da Penha, que trouxe algumas mudanças, a nossa região ainda é muito violenta. Era muito difícil e doído para mim ler aquelas notícias antigas, ver as histórias das mulheres, ver o que aconteceu. Eu ficava perplexa, ficava com receios e medos inclusive de ver certas coisas, porque era muito forte o que eu estava pesquisando. Aí, depois que passou essa primeira fase de levantamento de dados da pesquisa, que entramos mesmo no

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processo criativo, foi então que fui entendendo o que aqueles números iriam representar e o que eu poderia mostrar para as pessoas, com tudo aquilo que li sobre aquelas mulheres.

As pesquisadoras Maria Oderlania Leite e Zuleide Queiroz (2015) apresentam alguns desses números da violência que trago na tabela a seguir:

Tabela 1: Quantidade de mulheres assassinadas na região do Cariri entre 2001 e 2008.

Fonte: Leite; Queiroz, 2015, p. 313.

Transformar esses arquivos em repertório nosso era

tentativa de tornar visível o teor da violência que os números, em si, não mostram. Após a estreia, fomos questionadas em um dos debates sobre a nossa “resistência emocional” para lidar com o trabalho em caso de temporadas mais longas. Até então, havíamos feito apresentações isoladas e, na semana de estreia, os ensaios foram mais constantes até chegarem a níveis de desgaste que não sabíamos ainda como lidar. As questões envolvidas nos eram muito profundas, pois estavam ao nosso redor nas propagandas, nas cantadas de rua presenciadas, nas opiniões diversas que ouvíamos em todos os lugares sobre comportamentos femininos, nas agressões físicas e psicológicas presenciadas ou sofridas, nas notícias de

Ano de ocorrência

Quantidade de vítimas

2001 17 2002 23 2003 19 2004 14 2005 19 2006 18

2007-2008 32

173 feminicídio comuns na mídia regional. O ensaio nunca ficava só no ensaio. O ensaio nos tomava a vivência cotidiana e nos esmagava a cada história ouvida ou rememorada. Não havia "fora do ensaio". Da mesma forma que não existe mais mundo que nos chegue igual através do olhar renovado pela elaboração artística da qual fizemos parte. Marcela Lima comenta:

[...] é importante identificar de que corpo estou falando. Esse corpo é feminino, um corpo vivo, singular e aberto a diferentes realizações na vida e na dança. Em algum momento esse corpo enfrentou e ultrapassou suas próprias resoluções e questionamentos profundamente individuais e particulares, buscando se representar na vida e na cena. A dança acontece no corpo, ela faz parte de um mundo vivido pelo próprio instrumento ao qual pertence. Esse instrumento, enquanto corpo-veículo, é todo um passado, um presente e um futuro por acontecer (LIMA, 2012, p. 11).

Expor o trauma era essencial, principalmente porque este era coletivo; não era apenas pessoal. O posicionamento que acabamos por desenvolver acerca da questão estava corporificado em nós, mas se mostrava muito mais grave na realidade. Antes de expormos nossas dores, atuávamos expondo uma ferida social de raízes muito anteriores a nós mesmas. Tal posicionamento se tornou muito mais contundente quando, em uma apresentação no município de Nova Olinda (CE), no Teatro Violeta Arraes (anexo da Fundação Casa Grande), observamos o oposto do que pretendíamos: a plateia, em sua maioria homens, vibrava com as cenas de violência, e chegava a gritar que Luka batesse ainda mais nas atrizes-bailarinas. O enfrentamento com a violência que tivemos nesse dia foi na própria apresentação, como comentam Jayane Diniz, Nadja Naiana e Luka Severo:

174

Não tem como não ser esse. Foi o [momento] mais forte mesmo. Foi onde eu não consegui me controlar no palco. Foi onde de fato a gente sofreu violência fazendo arte, dentro de um espetáculo. Foi muito forte aquilo: na cena em que havia o espancamento, ver aquele monte de gente aplaudir, pedindo para fazer mais... Tanto é que a memória ficou muito nítida na cabeça da gente, do pessoal gritando: “Bate mais nela, puxa o cabelo dela” (Jayane Diniz).

Chegou uma hora que uma pessoa gritou: “Chama o Ronda80, chama a polícia”. Aí, pensamos que iria mudar o rumo da situação, e só piorou. Teve uma hora que eu peguei na mão de Jayane e que apertei assim, lembro como se fosse hoje. Olhei pra Jayane, que já estava chorando, eu já estava chorando, e pensei: “Não, a gente tem que ir até o final”. Para mim ali ficaram muito claras as questões de machismo da nossa região e de quanto a violência é banalizada, principalmente contra as mulheres. Era muito forte. Quando o personagem masculino fazia algumas coisas, os homens da plateia se exaltavam como se pensassem assim: “Olha o macho, ele é homem, ele pode fazer isso”. Na hora eu fiquei muito chocada, mas era uma coisa que eu já esperava que pudesse acontecer em qualquer espetáculo, em qualquer cidade, já conhecendo como é a nossa região (Nadja Naiana).

Principalmente nas cenas de violência as mulheres se pronunciavam a favor do homem – é doído você perceber que as próprias vítimas são cúmplices da agressão. Neste mesmo dia, quando eu entrei em cena, na parte que eu entrava com sutiã e falava a frase da [Simone de] Beauvoir: “A gente não nasce mulher,

80 Ronda do Quarteirão são viaturas da polícia no Ceará especializadas em

atender rapidamente as ocorrências de cada bairro.

175

torna-se mulher”, eu tomei um choque. Os homens, principalmente, começaram a me xingar de “bichinha”, “viado”, “encubado”... E quando eu amarrava as meninas, ou jogava Dakini no paredão humano, eles aplaudiam. Eu fiquei confuso e percebi que muitos só se importam ou se pronunciam quando percebem que estão acima do outro (Luka Severo).

Fotografias: Diego Linard.

Em certos momentos dessa apresentação específica,

chegamos a temer que algo de mais grave acontecesse, razão pela qual nos mantivemos muito atentas(os) a qualquer dos homens que se levantavam para aplaudir e chegavam próximos ao palco (que possui cerca de um metro de altura). Marcela Lima se posicionou ao lado da escada que dava acesso ao palco. Ao vê-la, lembro de ter tomado consciência de que a situação estava além do que conseguíamos ouvir. Luka Severo comenta:

As meninas não conseguiam se concentrar direito, nós sabíamos o que poderia acontecer ali. A energia foi muito dura. O choro ali era como se tudo aquilo não fosse real, eu pensei que elas iriam parar no meio.

A noção do que era real ou fictício se embaralhava, e a cena que anteriormente havia feito com que pessoas se

Figura 26 – Paredão humano

176 manifestassem contra a violência, ali parecia uma brincadeira para fazer rir. Ao invés dos gritos de “Sai daí! Chama a polícia!”, ouvíamos risadas e incitações à violência.

O que o Retratos de Mulher mostrava se contrapunha ao que é afirmado pelo filósofo francês Jacques Rancière (2010), quando ele questiona a presença do intolerável na imagem da fotografia e do cinema, problematizando os seus “dispositivos de visibilidade” (RANCIÈRE, 2010, p. 149). A princípio, a imagem da violência seria intolerável, porém não foi o que aconteceu nessa apresentação em Nova Olinda. O dispositivo utilizado tornou-a senso comum naquele lugar específico, naquela composição de corpo-espetáculo81. Para Rancière,

Um senso comum é antes de tudo uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade supostamente é partilhada por todos, modos de percepção dessas coisas e significações igualmente partilháveis que lhes são conferidas (RANCIÈRE, 2010, p. 149-150).

O filósofo se questiona qual tipo de senso comum seria produzido por distintas ficções, e empreende a sua conclusão tendo em vista os afetos discretos como mais apropriados ao se tratar do intolerável, por não anteciparem os sentidos e, assim, aguçarem uma maior curiosidade: “As imagens mudam o nosso olhar e a paisagem do possível se não forem antecipadas pelo seu sentido e se não antecipam os seus efeitos” (RANCIÈRE, 2010, p. 153). Essa seria uma outra política do sensível, cuja resistência do visível, ao lado da não antecipação do seu efeito, possibilitam outra maneira de tensionar afetos.

No decorrer do processo de criação, a necessidade sentida pelo grupo era, ao contrário, expor algo próximo da violência real para estabelecer o choque e chamar a atenção 81 Cerca de sete apresentações ocorreram anteriormente a essa e a reação da

plateia não possuiu tais características.

177 para a forma como a violência contra a mulher, algumas vezes ouvidas por vizinhos em silêncio, machuca e persiste, até que alguém resolva “falar alguma coisa” e denuncie. Parecia, ao nosso ver, que o caráter de denúncia do espetáculo localizado naquele lugar ainda necessitava de afetos não tão discretos.

Apesar do que Luka Severo pensava durante a apresentação, não paramos. Para mim, após essa apresentação, ficou muito claro o que estávamos fazendo em cena. Ressignificar em ato a experiência é uma atitude de transformação interna: da tristeza que diminui a potência de agir no mundo para a alegria que impulsiona novas ações. A repetição calcada em ensaios e apresentações nos tornou mais fortes, pelo poder que nos outorga de recompor a experiência, agir propriamente, e em prol de algo maior que nossas próprias dores, funcionando como um dispositivo afetivo. Ao buscar a motivação pela qual manter-se em temporada em espetáculos que nos afetam dessa maneira, também buscávamos as motivações de agir no mundo. Pouco depois, soubemos que a apresentação havia gerado certa repercussão em escolas do município, cujas professoras(es) que estavam presentes mobilizaram debates para discutir o que havia acontecido. Talvez esta tenha sido a marca mais valiosa deixada pelo espetáculo. 4.3 ATOS (PO)ÉTICOS – LIMINARIDADES

Pelo teor da exposição que apresentei até o momento,

percebo que há uma gama de autoras e autores da teoria teatral e da performance que analisam diversas questões que, em certa medida, também se fizeram relevantes nos processos de criação que analiso neste trabalho, embora não tenham feito parte da sua constituição. Reconheço que, apesar de necessitarem de maior aprofundamento, apontarei inicialmente aqui algumas dessas hipóteses, como aprofundamentos futuros dessa pesquisa.

178

A complexidade das relações entre trauma, performance, invenção cênica e ética artística, que já foram pontuadas em alguns momentos, é foco de pesquisas que apontam a teatralidade como uma perspectiva liminar no interstício arte-vida (CABALLERO, 2011; 2014) e o trauma e memória social como performance (TAYLOR, 2002; 2009)82.

Quando exponho a situação de luto de uma pessoa jovem e a violência de gênero no Cariri e trago o referencial citado não pretendo equipará-los aos trágicos eventos ditatoriais que a América Latina passou, nem aos casos de feminicídio de Juarez (México), que atingem números altíssimos, e são a esses fatos que as análises das autoras acima citadas se voltam. Entretanto, percebo que o incômodo com situações de violência criminal de maior ou “menor” impacto não (des)legitima qualquer forma artística que venha a abordar tais eventos, pois as situações, sejam em que nível forem consideradas, afetam a vida e os direitos humanos em si mesmas. Traçando relações, é possível chegar a um entendimento mais amplo sobre as questões da produção artística do Cariri.

Quando Cristina Dunaeva83 (2012) relata que ela não percebe a repercussão de vários eventos caririenses na arte da região, a meu ver, é um sintoma de que várias das relações

82 As duas autoras possuem em comum a análise do grupo peruano

Yuyachkani, liderado por Miguel Rubio, um dos maiores e mais antigos grupos da América Latina a tratar dos distintos modos de ser peruanos, com um enfoque nas manifestações populares e na crítica social.

83 Cristina Dunaeva possui Mestrado em História da Arte e Doutorado em Ciências Sociais, ambos pela Unicamp. Foi professora da Licenciatura em Artes Visuais (URCA) de 2010 a 2013, também lecionando no Departamento de Ciências Sociais da mesma instituição. Atualmente leciona no Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB). Dunaeva foi entrevistada por Alexandre Lucas em 2012, ano de elaboração do Retratos de Mulher e quatro anos antes da finalização dessa pesquisa.

179 entre arte e vida ainda careceriam de ser construídas para dar maior visibilidade às questões, e não apenas no Cariri:

No meu entender, aquilo que se passa no Cariri é tão, mas tão alarmante, devastador e rápido que fico um tanto surpresa com pouca repercussão artística destas grandes e desastrosas transformações sociais, ambientais e políticas que sucedem na região [...] Ser artista e não reverberar isto me remete a uma situação de ditadura, de sociedade repressora e reprimida (DUNAEVA, 2012, p. 1).

Dunaeva prossegue afirmando que a arte que questiona tais situações geralmente está vinculada aos coletivos artísticos, sendo exemplos citados por ela o Coletivo Camaradas (liderado por Alexandre Lucas) e o grupo O Bando.

Boa parte dos grupos artísticos prosseguem, por vezes, produzindo arte desvinculada dos processos sociais caririenses. A pesquisadora Ileana Diéguez Caballero84 discorre em seu livro Cenários Liminares (CABALLERO, 2011) sobre a teatralidade como prática que se insere no interstício da arte e da vida, colocando a arte numa perspectiva liminar, onde “se entrecruzam não só outras formas artísticas, mas também diferentes arquiteturas cênicas, concepções teatrais, olhares filosóficos, posicionamentos éticos e políticos, universos vitales, circunstâncias sociais” (CABALLERO, 2011, p. 19). Seu foco de estudo são as recentes práticas cênicas latino-americanas (grupos e coletivos do México, Peru, Argentina e Colômbia), onde as questões sociais e políticas têm grande impacto e impulsão nas cenas desenvolvidas nesses países. A teatralidade não é desvinculada de outras práticas artísticas e de vida, é “uma situação em movimento, redefinida pelas práticas artísticas e humanas” (CABALLERO, 2011, p. 20). A partir da

84 Pesquisadora cênica e professora da Universidade Autônoma

Metropolitana, no México.

180 perspectiva liminar apresentada pelo antropólogo britânico Victor Turner85 [1920-1984], Caballero afirma que os diversos tipos de manifestações acabam por se constituir em híbridos, que não apenas cruzam as fronteiras entre as artes, mas também entre as artes e o protesto, o ritual de purgação de lutos e violências, a ação política.

A autora ressalta a importância de não desvincular a análise dos grupos do entorno nos quais estes têm espaço, pois isso “reduziria a sua complexidade e anularia uma parte do espesso tecido arte/sociedade ou arte/realidade” (CABALLERO, 2011, p. 22). Neste cenário, o teatro argentino aparece

[...] propondo a teatralização da dor não como ação de vitimação auto-contemplativa, mas como ação que torna visível [sic] as “feridas sociais”, convertendo-se em um protesto coletivo (CABALLERO, 2011, p. 104).

Após o período ditatorial argentino, Caballero analisa que ocorreu quase uma “legitimidade” da violência e o seu processo de interiorização como algo cotidiano e natural, instaurando-se uma “cultura do silêncio e do esquecimento”. Para a autora,

[...] o ato de lembrar se transforma em ação política. O “trauma”, sequela da ditadura, não é somente uma ferida mnêmica pessoal, é uma ferida social no presente. Nestas condições, a arte que persiste em não esquecer, além de denunciar, sugere formas de restauração simbólica, situação recorrente em vários países sul-americanos (CABALLERO, 2011, p. 104).

85 Não busquei na obra de Turner os princípios da liminaridade para este

trabalho, me atendo à pesquisa de Caballero.

181

O processo de esquecimento e banalização da violência, por vezes, ocorre também com vítimas de violência de gênero. Quando, ao final do espetáculo Retratos de Mulher, o vídeo86 exibido mostrava imagens grotescas de cadáveres de mulheres, rostos deformados pela agressão e demais sequelas corporais, queríamos tornar visível a degradante situação em que viveram (ou morreram) mulheres de vários lugares do mundo. Para isso, a simples narração ou referência em nossos próprios corpos não era suficiente. Com uma forma de visibilizar a violência, estabelecemos o choque na cena. Para Caballero, a dimensão participativa de manifestações que se tornam quase “rituais da memória”, acontece não de forma “conscientizante”, mas se apoiam na poética da reunificação, através dos afetos e vontades coletivas:

Considerando que hoje a participação acontece no âmbito de uma liminaridade que potencializa o encontro não como ato da ideologia, mas dos afetos e das vontades, gerando outras narrativas e mitologias que incidem na transformação dos modos de vida. (sic) Talvez seja este o lugar onde podemos pensar a liminaridade como geradora de espaços poéticos potencializadores de microutopias87 (CABALLERO, 2011, p. 187, grifos da autora).

Havia toda uma questão discursiva do feminismo a circular o Retratos de Mulher, bem como uma crítica das relações humanas que, junto à violência, ocupariam o mesmo

86 Todos os vídeos do espetáculo foram elaborados por Wanderson Petrova

Cavalcante, também bolsista do grupo de pesquisa, aluno da Licenciatura em Artes Visuais (URCA). Tomou-se o cuidado de evitar quaisquer imagens que fizessem referência aos crimes da região, por respeito a parentes das vítimas que poderiam assistir ao espetáculo.

87 Segundo Caballero (2011), são questões que se mostram relevantes para pequenos grupos, não totalizadoras dos desejos e afetos.

182 espaço doméstico. Marcio Rodrigues afirma em seu depoimento:

A intenção da Marcela não era a de fazer uma crítica voltada ao “macro”, a uma “sociedade capitalista de homens agressivos que batem em mulheres”, mas sim ao “micro” – as relações afetivas e íntimas – que se convertiam em questões sociais – a violência. É um trabalho do universo pessoal que reverbera no social. O trabalho questionava muito mais a atitude das pessoas, como homens e principalmente mulheres lidavam com isso. Quando ela pergunta: “Alguém quer falar alguma coisa?” no meio de uma cena de espancamento, é uma pergunta direta ao modo como as pessoas lidam com situações de violência.

Essa era uma questão cara a todo o grupo: problematizar, a cada pessoa, qual a responsabilidade que elas teriam ou não frente às situações de violência com as quais conviviam. Marcio Rodrigues ainda atesta o quanto a participação da plateia, na maioria das apresentações, possuía vínculos com as questões sociais presentes no Ceará:

Como o Estado do Ceará tem esse histórico de violência e feminicídio muito grande, a plateia era muito impactada, porque se identificava muito. A ressonância de atmosfera que acontecia nos ensaios, na cena e no vídeo chegava à plateia. Acontecia muitas vezes, ao término do espetáculo, as pessoas estavam visivelmente alteradas, chorando, e a atmosfera da sala muito alterada. Principalmente nos momentos em que a opressão masculina que as mulheres viviam, que era o ponto mais forte do espetáculo, era ressaltada. Diferentemente do (S)Em Mim, onde as passagens não ficavam explícitas, no Retratos de Mulher isso era muito

183

explícito e muito claro. O impacto disso era muito forte.

O impacto afetivo gerado pelos espetáculos era não apenas emotivo, mas também reflexivo. Também pela via afetiva, Diane Taylor (2009) descreve a sua visita à Villa Grimaldi88, um dos cerca de 800 centros de tortura que existiram em Santiago (Chile) na ditadura de Augusto Pinochet. O fato mais incomum da visita, além de não ter caráter turístico, foi o fato de Taylor ter sido guiada por Pedro Matta, um dos sobreviventes de Villa Grimaldi. Taylor descreve os pormenores da narração de Pedro Matta, suas atitudes corporais e vocais. Apesar do local estar parcialmente em ruínas, Matta localizava espacialmente, a partir da sua própria memória de prisioneiro e relatos de outros sobreviventes, onde e que tipos de tortura aconteciam em cada ponto do terreno, enquanto os dois percorriam o lugar. Matta fica profundamente abalado toda vez que conduz as visitações – “performa” –, mas afirma o quanto é necessário relembrar os fatos. Sua rotina e seus afetos estão intimamente imbricados:

A dor de Matta ativa a minha dor – diferente, de muitos modos, mas não num sentido essencial: Em nossa vida diária, nós não temos uma maneira de lidar com os atos de violência capazes de destruir os limites da nossa compreensão. A terapia oferece conforto para alguns – mas, para outros, esse espaço de luto e

88 O Parque por la Paz Villa Grimaldi, como foi renomeado, funcionou

como centro de tortura e extermínio entre 1973 e 1979, contabilizando cerca de 4.500 pessoas torturadas e 226 desaparecidas ou mortas (TAYLOR, 2009). Na década de 80 fora desativado e vendido para ser demolido e dar lugar a outra construção que “apagasse” o que havia acontecido. Sobreviventes não conseguiram impedir a demolição, porém puderam reaver o terreno, construindo com recursos próprios Villa Grimaldi para funcionar como uma espécie de memorial às vítimas da ditadura chilena.

184

de lembranças, brutalmente esvaziado, é mais apropriado. Todos nós vivemos em proximidade com a violência criminal – e, embora alguns a tenham sentido mais pessoalmente do que outros, essa violência nunca é apenas de ordem pessoal. Se focarmos apenas o trauma, corremos o risco de deixar de lado as questões políticas (TAYLOR, 2009, p. 9-10).

Taylor questiona o quanto as teorias de restauração do comportamento, levadas a cabo por Richard Schechner, são capazes de explicar o comportamento de Matta. O trauma em lugares onde há conflito social, mesmo quando não é reconhecido, atesta a sua dimensão social, muito além das pessoalidades. Para performers que escolhem trabalhar nesse território, ou sobreviventes (no caso de Matta), a performance se faz como um caminho da memória – necessário à superação do trauma.

Matta age pelo afeto que ainda é traumático em sua vida, e por perceber a necessidade política de se falar o que aconteceu em Villa Grimaldi; o trauma de Luciana Araújo, no (S)Em Mim, não se refere a nenhuma espécie de trauma social, é sim estritamente pessoal. Não se equipara aos rituais de luto analisados neste âmbito, como as mães de Juarez (México) ou da Praça de Maio (Argentina). Luciana também não enxerga o espetáculo como um revisitar dolorido. Algumas características dos rituais lúgubres tiveram espaço no princípio, depois se voltaram ao olhar estético sobre o material (coreográfico) que surgiu dos seus afetos, sem visar mais a recuperação, que acabou por ocorrer. Caballero (2014) afirma que a recuperação estética de fragmentos do luto permite o (re)conhecimento do próprio(a) performer, que ressignifica o presente. E, ainda,

[...] as imagens e eventos artísticos não recuperam o passado, apenas tornam visíveis os seus vestígios; não regressam o perdido, apenas

185

ajudam a reconhecer o que irremediavelmente se perdeu. Na dimensão estética reverberam fragmentos de vidas passadas. Produzir estes momentos é uma ação lúgubre que reconhece o que já não está, e ainda insiste em dar um lugar simbólico ao perdido, contra toda inutilidade (CABALLERO, 2014, p. 16, tradução minha)89.

A autora se questiona o que seria uma ação efetiva, em qualquer profissão, e principalmente na performance quando esta é tida como “arte do corpo” e da “ação”. Suas propostas sobre atuação (na arte e na vida) partem, além da liminaridade, das reflexões do filósofo Mikhail Bakhtin. Caballero define o ato ético:

O ato ético é o resultado da interação entre dois sujeitos distintos, não como uma relação formal, mas num sentido de responsabilidade concreta que condiciona o ser-para-outro: participo no ser de um modo único e irrepetível, ocupo no ser singular um lugar singular, não repetível, insubstituível para o outro. Este reconhecimento da singularidade de participação no ser, de "não me esquivar ao ser", é o fundamento real do ato que envolve também a prática artística como forma estética do ato ético (CABALLERO, 2014, p. 4, tradução minha)90.

89 “Pero las imágenes y los acontecimientos artísticos no recuperan el

pasado, apenas visibilizan sus huellas, no regresan lo perdido; apenas ayudan a reconocer lo que irremediablemente se ha perdido. En la dimensión estética reverberan fragmentos de vidas pasadas. Producir esos instantes es una acción luctuosa que reconoce lo que ya no está, y aun así insiste en darle un lugar simbólico a lo perdido, contra toda inutilidad.”

90 El acto ético es resultado de la interacción entre dos sujetos distintos, no como relación formal, sino en un sentido de responsabilidad concreta que condiciona el ser-para-otro: participo en el ser de un modo único e irrepetible, ocupo en el ser singular un sitio singular, irrepetible,

186

Quando Caballero afirma que a arte pode ser “a forma estética do ato ético” abre-se um campo de potência em que um não deslegitima o outro, mas pelo contrário, são complementares na cena: a presença surge como um ethos, participação física e ética: “a presença abrange a eticidade do ato, a responsabilidade de estar em um espaço cênico assumindo os riscos do que Eduardo Pavlovsky chamou de ‘ética do corpo’” (CABALLERO, 2014, p. 5, tradução minha)91.

Ao indagar sobre a ética das artes do corpo, o performer peruano Emilio Santisteban apresenta uma trilogia performática, na qual a primeira é a imagem abaixo. Santisteban apresenta a sua performance imagem em contextos artísticos, como exposições e mostras de performances, em locais onde houveram genocídios. Direcionada tanto aos artistas quanto ao público apreciador da arte, a potência da pergunta inscrita em letras minúsculas reverbera em relação ao seu contexto: “Que lugar tem a arte do corpo num país de corpos desaparecidos?”92. A pergunta implementa um questionamento ético sobre a repercussão da prática artística. O performer, ao propor uma tensão entre a arte e a vida, também tensiona a ética acionada na invenção artística. Para Ileana Caballero, “o problema não é a ênfase na arte da performance como arte do corpo, e sim sobre o sentido e a repercussão da arte da performance, cujo suporte é o corpo, num contexto no

insustituible para el otro (47). Este reconocimiento de la unicidad de la participación en el ser, de “mi no coartada en el ser” (48), es el fundamento real del acto que implica también la práctica artística como forma estética del acto ético.

91 Insisto en que la presencia no sólo refiere una especificidad material, o una fisicalidad que ejecuta partituras performativas; la presencia abarca la eticidad del acto, la responsabilidad de estar en um espacio escénico asumiendo los riesgos de eso que Eduardo Pavlovsky ha llamado la “ética del cuerpo”.

92 “¿Qué lugar tiene el arte del cuerpo en un país de cuerpos desaparecidos?”.

187 qual milhares de corpos foram ocultos e aniquilados violentamente” (CABALLERO, 2014, p. 6, tradução minha)93.

Figura 27 – Performance, de Emilio Santisteban.

Fonte: <http://www.emiliosantisteban.org/#!performancetrilogiaperformance/c8>. Acesso: 02/01/16.

Pensar o corpo em situações de violência e trauma

perpassa por todas essas questões. No espetáculo (S)Em Mim, a pergunta poderia ser “que lugar terá a dança em um corpo que foi esvaziado de si?”. No momento em que aconteceu, foi a 93 El problema no es la insistencia sobre el arte de la performance como arte

del cuerpo, sino sobre el sentido y la repercusión del arte del performance cuyo soporte es el cuerpo en un contexto donde se han desaparecido y aniquilado violentamente miles de cuerpos.

188 descoberta de outros sentidos para a dança que, antes do trauma, não se faziam presentes. Foi encontro pessoal que reverberou em outros corpos dançantes, e tornou-se mais amplo que uma perda isolada. A potência de ação no mundo, ampliada pela alegria spinozista, possibilitou a invenção artística no momento em que negar os afetos do corpo que dança não foi mais possível.

No Retratos de Mulher, a arte foi nossa forma de objetivar a denúncia e tentar fazer com que esses crimes não fossem esquecidos, além de alertar para a violência que ainda persistia e que poderia vitimar outras mulheres. Além disso, também foi a maneira de mobilizar resistência a condições do repertório cultural que interferem em tantos relacionamentos (principalmente afetivos, mas não apenas) entre homens e mulheres. A pergunta poderia ser: “Que lugar tem o corpo da mulher que dança num lugar onde muitas mulheres foram assassinadas pelos companheiros que amavam?”. Nesses casos, a emergência ética se faz presente quando pensamos em quaisquer relações da arte com o humano, de seres humanos com suas emoções, sentimentos e afetos, que podem coibir a ação ou propiciar encontros que, alegremente, potencializem a existência e afirmação das intensidades de cada uma e cada um.

Emerge, em ambos os espetáculos, a sensação de participação nas subjetividades da plateia, sem que se busque um desvio que aponte para qualquer tipo de simulacro nessa relação, pois na constituição de atos (po)éticos, artistas participantes dos dois espetáculos chegam à cena sem se esquivar da criação como parcelas de si mesmas(os), via de poetização das subjetividades envolvidas e possibilidade de encontros éticos que têm lugar no tempo-espaço da atuação.

189 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tudo o que é precioso é tão difícil quanto raro (Benedictus Spinoza).

No movimento que é próprio da vida, não podemos

prever quais relações dinâmicas nós enfrentaremos, de que forma os afetos de outros corpos – artísticos, profissionais, acadêmicos, amorosos – irão se efetuar em nós. Spinoza já sabia que, se pudéssemos ser causa de nossas próprias ações, os encontros poderiam potencializar alegremente a nossa vida. Se não conhecermos as causas dos nossos afetos e, assim, não pudermos agir, os encontros ocorrerão ao mero acaso. Os espetáculos (S)Em Mim e Retratos de Mulher foram dois territórios que tangenciaram as forças potencializadoras da ação alegre – quando a potência de existir de um corpo é aumentada. Foram transformações dos afetos de tristeza – que diminuem nosso poder de ação e a afirmação da existência de nossos corpos. Quando os encontros entre os diversos corpos que compunham esses afetos ocorreram, não havia como prever que efetivação se daria entre os mesmos; a principal questão era agir.

A ação, conceito caro à prática teatral, sempre será repensada segundo as perspectivas de cada tempo. Quando me deparei com o conceito de ação como afeto e ética, de Renato Ferracini (2013), foi a primeira pista que segui para elaborar essa pesquisa. A partir de então, o que me auxiliasse a compreender melhor o que eu procurava nessas três palavras – ação, afeto, ética – foi visto com cuidado. Pois a segunda maior pista, que demorei a compreender, foram os amplos estudos sobre os teatros do real – experimentei trazer apenas parte deles. A composição cênica que acontece por meio da invenção, quando gera dramaturgia da memória, pode desenvolver potência de afeto. Se os afetos se dão nos

190 encontros, as maneiras com que seremos corpos afetando outros corpos, se constituem em ética.

Ao longo do desenvolvimento dessa pesquisa pude reconhecer o quão relevantes as dimensões afetivas foram na elaboração destes dois espetáculos, por ultrapassarem os sentimentos das coreógrafas e demais pessoas envolvidas e promovem modificações efetivas em artistas que participaram, de alguma forma, dos mesmos. Também é pelo afeto que a obra estética – que também pode ser vista como a afirmação de existência do ser artista – alcança sua plateia, compondo um corpo-espetáculo. O afeto, como força movente do desejo e da invenção, permeia a composição espetacular do momento da elaboração até o compartilhamento com o público. Em espetáculos que partem de experiências pessoais, como campo de efetivação de afetos, são as forças das dimensões afetivas que potencializam a invenção, quando estas se efetuam em forças de alegria e propiciam encontros alegres, mobilizando outras ações no mundo.

Nesse sentido, procurei no capítulo 2 (Atuar: dimensões afetivas) a conceituação mais clara do que foram as dimensões de afeto envolvidas nos dois espetáculos. As primeiras motivações, ou incômodos, para a composição dos mesmos, estão inseridas na vida, no cotidiano de artistas que repensaram suas formas de ser/estar no mundo. E compreendendo que eles foram além de um sentimentalismo romântico, para diferenciar afetos de emoções e sentimentos, recorri a Damásio (2004), que principiou pelos estudos da neurobiologia sobre os movimentos do corpo para se manter em vida, e chegou à filosofia de Spinoza (2008). Fiz o caminho inverso; Spinoza não é um filósofo para se abordar rapidamente, é preciso deixar que o tempo aja entre as suas proposições, para que elas se efetuem como sistema e possamos ver a Ética como o livro que levou uma vida para ser gerado. Seus conceitos de corpo, afeto, potência, experiência e composição geram um ethos diante da arte e da potência de afeto que ela pode gerar. Ética como

191 modo de ser, maneira de agir de forma a potencializar o máximo possível de corpos. O campo de experiência das pessoas artistas aqui abordadas é o próprio território em que as dimensões de afeto podem ter lugar.

No capítulo 3 (Estéticas das Subjetividades) procurei um traçado conceitual que clarificasse as questões envolvidas entre a memória e a criação artística, ou mais especificamente, os afetos que se adensaram no corpo – efeitos das composições anteriores com outros corpos – e se materializaram em invenção estética. A via percorrida do afeto à arte passou pela invenção, e Virgínia Kastrup (2007) veio somar-se ao mapa que eu estava elaborando para me aproximar da dança-teatro de Pina Bausch e da dramaturgia que se faz com a memória. Do amplo espectro dos teatros do real, procurei o referencial que mais se aproximasse das narrativas e relatos pessoais poetizados em cena – processos de autoficção. É território propício para trazer novamente a discussão sobre a ética artística que lida com materiais do real. A tensão entre real e ficcional – composição afetiva na cena – é campo a ser encarado por cada artista que envereda pelo caminho da liminaridade arte/vida.

Por fim, no capítulo 4 (Repetição e Performance), dentre vários, escolhi tratar do aspecto de repetição que atravessava os espetáculos. Como um dado de trauma (FOSTER, 2005; TAYLOR, 2009), ou seja, dos afetos de tristeza como era vista por Spinoza – que imobilizam a ação dos corpos no mundo – a repetição surgia em cada espetáculo com diferentes ângulos e propostas, sendo as obras e os escritos sobre Pina Bausch uma inspiração, e somando-se outras experiências e leituras. Estendi-me no histórico de violência contra a mulher porque também, e infelizmente, ainda possui recorrência, não apenas no Cariri. E quando Caballero (2014) se pergunta se há uma forma estética para atos éticos, também indago se as formas éticas geram estéticas; se há possibilidade de assumir postura estética que seja

192 eticamente construída. Não foram questões da pauta de elaboração nos dois espetáculos que resolvi tratar, porém, são questões que poderão ser mais bem aprofundadas em desdobramentos posteriores.

Após a formalização dessa pesquisa (que, no entanto, não a encerra), ainda observo diversas lacunas que, por força do tempo ou de habilidade, não adentraram aqui. Há uma pesquisa ampla sobre a performatividade no feminino e suas questões de gênero, bem como o aprofundamento da perspectiva da liminaridade e da autobiografia na cena, nas quais não pude me deter neste período. Algumas delas seguirão comigo e observarei com maior aproximação no doutorado. Outras são problemas que ficam em aberto, relativos aos conceitos e aos espetáculos, pois vejo nesse material uma fonte que pode abarcar diversos pontos de vista. Apresentei aqui o meu, que está permeado por todos os afetos que me constituíram até o momento, pelos quais me deixei afetar nesse percurso de mestrado e que agora retomo sob outras perspectivas.

Pergunto-me, assim como Deleuze (1978), o quanto a tristeza será imperativa nas diversas relações humanas, que se constituem em relações de poder. Enquanto o poder sobre o outro não se converter em potência de si, enquanto a alegria não for predominante sobre a tristeza, no sentido que Spinoza pensou que seria possível (uma potencialização máxima de vida de todos os corpos envolvidos no máximo de relações que nos afetem) percebo que a arte – principalmente as artes da cena – possuem em si características que podem operar na visibilidade do indizível, do latente, ou como lembra Marcela Lima, do “incômodo” que impulsiona a invenção.

193

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203 ANEXO 1 – ENTREVISTA COM INSPIRE CIA. DE DANÇA Realizada no dia 16/09/2015, das 21h à 00h, na sede da Associação Dança Cariri, em Juazeiro do Norte, Ceará. Participantes: Luciana Araújo, Aline Souza, Thiago Gomez, Allef Lira e Bel Macedo. Gravado em áudio e vídeo. Jussyanne: Gostaria que vocês falassem como foi o começo do espetáculo (S)Em Mim. Luciana: Bom, acho que eu não resolvi montar o trabalho, mas... foi uma coisa que saiu de mim, que se não saísse... Sabe aquelas coisas que você tem que dizer, senão vira uma doença? O (S)em Mim foi meio isso. Quando eu comecei a pensar no trabalho, eu não tinha nem a intenção de que ele virasse um espetáculo. Pessoalmente eu não estava bem de jeito nenhum, por conta de toda a história que envolveu o luto e tudo que eu estava passando era muito difícil, eu não sabia como lidar com aquilo. O luto é um processo muito complicado, eu nunca imaginei. Às vezes, a gente vê acontecer com outra pessoa e fica imaginando assim: poxa, que pena, perdeu. E em algum momento se pergunta: mas pra quê tudo isso? Mas aí quando chega em você, aí você vê que a coisa é diferente, que demanda um processo diferente. E eu já tinha chorado tudo que tinha para chorar, já tinha falado tudo que eu tinha para falar, eu percebia que as pessoas à minha volta já não me suportavam mais, porque ninguém quer estar perto de uma pessoa sofrendo. Isso não é algo ruim, é que as pessoas realmente não sabem lidar com isso. Quando eu criei o blog foi uma ferramenta que eu utilizei para falar sobre as minhas angústias, sem medo de ninguém me acusar. Eu falava o que eu estava sentindo do jeito que eu estava sentindo, falava tudo que eu queria, ninguém ia se meter, era o meu lugar de falar tudo que eu precisava falar. Mas depois de um tempo eu senti que as palavras já não estavam mais sendo suficientes. Eu abria o blog pra escrever e por mais que eu tivesse muita coisa a dizer eu não conseguia. E aí eu lembrei que quando eu estava no período mais forte do luto, logo que o Maílson faleceu, o único momento que eu conseguia não pensar nele e não chorar era quando eu estava assistindo vídeos de dança.

204 Era o único momento em que eu não chorava, em que eu conseguia me concentrar em alguma coisa. Era incrível, parecia que eu estava hipnotizada. Depois que o vídeo acabava, tudo retornava. E aí eu pensei: é na dança que eu tenho que dizer, é aqui que vai me ajudar. Aline e eu tínhamos aberto a Inspire Escola de Dança neste período e estávamos num momento muito bom da escola. Mas tinha dias que eram bem difíceis, para mim, ir dar aula. Eu ia, mas sentia que por dentro estava explodindo de coisas. A primeira cena ia ser um trio masculino, mas os meninos acabaram saindo. Depois de um tempo, o Thiago chegou na escola, Bel já estava num período mais maduro da dança dela, já não era mais aquela bailarina pequeninha, bonitinha que a gente via antes. De técnica, de entendimento, ela já estava num período bem bacana. Não ficava muito destoante de mim e Aline. Aí eu comecei a montar. Jussyanne: Você convidou as pessoas para iniciarem o trabalho? Luciana: Na verdade eu nem perguntei pros meninos se eles queriam. Eu já fui montando. Nem pra Aline, depois que já tinha cena montada é que eu fui perguntar: “Aline, tu concorda de eu coreografar esse trabalho?”. Porque foi uma época que veio muita coisa a calhar: ia acontecer a Semana D da Dança94 e a escola foi convidada a levar um trabalho. Resolvemos trabalhar nisso e eu fui montando algumas cenas. Mas eu não tinha ideia nenhuma do que é coreografar um espetáculo contemporâneo, que é um processo muito mais complicado do que a gente acha que é. Demanda um olhar muito mais apurado do que você realmente acha que é quando você está por fora. Jussyanne: Em que sentido você vê essa diferença? Luciana: Você precisa se ver dentro. Como eu era bailarina também, eu precisava me ver dentro do trabalho, precisava me ver fora do trabalho. Como era o primeiro trabalho da escola, eu não podia colocar uma coisa muito longe da nossa realidade de formação da

94 Mostra de dança promovida anualmente pela Associação Dança Cariri, em Juazeiro do Norte.

205 escola, eu também não podia colocar uma coisa muito longe do que eu entendia de dança e, por não me achar tão madura nesse processo, muitas vezes eu fiquei insegura, tipo “será que isso é bacana? Será que isso não vai ficar apelativo?”. Em alguns momentos eu cheguei a pensar assim. Mas eu precisava tanto colocar essas coisas pra fora que depois de um tempo começou a ser algo muito natural, coreografar pra mim na verdade era um alívio. Quando eu falava pros meninos o que iríamos fazer, todos foram muito generosos. Eles abraçavam o que eu falava de uma forma muito deles, mesmo. E eu sou muito grata a eles, porque eles nunca disseram não, nunca. Isso foi muito importante no meu processo de me entender com o luto. Acho que se em algum momento alguém tivesse falado "não, isso não é legal, isso eu não quero", talvez tivesse barrado isso em mim. Eles foram entrando no processo conforme eu ia fazendo. Jussyanne: Então, vocês começaram como se fosse só mais uma coreografia? Aline: Sim, porque a gente tinha a necessidade de iniciar uma companhia de dança da escola e de ter um trabalho contemporâneo. Thiago: Para mim era tudo muito novo, porque foi logo no período que eu estava iniciando também na dança, estava lá há um mês, dois meses. E aí Luciana falou “vamos montar um trabalho?”. Ia ser uma coreografia de três a cinco minutos, e possivelmente não ia se tornar um espetáculo, não ia ter o tamanho que tem agora, então foi muito despretensioso. Fui na insegurança mesmo, porque era um momento de formação, os outros bailarinos já tinham mais experiência que eu. Quando o (S)em Mim foi tomando as proporções que tomou, foi um choque. Porque esse processo comigo foi de descobertas. A gente ia conversando, Jussy me falou coisas que eu não sabia enquanto eu dançava. E a todo momento a gente está descobrindo ainda novas coisas. Naquele período ainda era muito “inconceitual”, como bailarino, a dimensão, sabe? A dimensão que o (S)em Mim iria tomar. Jussyanne: Como é que vocês lembram desse processo? Como era que vocês dançavam essa coreografia, mas não sabiam o que era?

206 Bel: No começo foi difícil de entender o que ela queria. Eu só pegava a coreografia. Aos poucos, ela foi falando da história dela, que eu não sabia ainda, e a gente foi trazendo isso para cena. Thiago: Eu acho que não só foi difícil, o (S)em Mim ainda é um trabalho difícil. Não é um trabalho fácil emocionalmente, não é um trabalho fácil de se sentir, porque a gente acaba construindo nossas imagens para dançar o trabalho, mas nunca vai chegar na intensidade do que a Luciana viveu. Mesmo que a gente pense na perda, são tipos de perda diferentes, a gente nunca vai acessar a perda dela. Dramaturgicamente, o blog que ela criou serviu para gente tentar acessar, é como se a gente estivesse entrando um pouco na mente da Luciana para entender toda a situação que estava acontecendo com ela. Eu, na época, não conhecia muito bem a Luciana, não tinha essa proximidade tão grande. Mas o que ela escrevia no blog, me doía tanto, que eu lia o blog e chorava junto, porque eu tentava entender como que era a situação pra ela. Particularmente, nunca vai chegar o momento em que eu vou entender o sentido daquilo, porque eu não vivi, eu não estava na pele dela. E por isso eu posso buscar imagens que me façam chegar próximo, que me façam dançar o trabalho, mas não vou sentir igual. Foi e é tão forte pra ela que a cada apresentação, a cada retorno nosso é diferente, é tanta coisa que a gente descobre que é singular. Toda apresentação é singular, todo ensaio é singular, todo encontro é singular, toda a montagem... Uma música é singular, uma movimentação é singular. Por mais que a gente se utilize de outra movimentação ou de alguma música que tenha uma sonoridade parecida, é tudo muito próprio do trabalho. Por isso que eu falo que todo momento é uma descoberta, as conversas que eu tive contigo, as conversas que eu tive com a Luciana. Tem coisa que, observando hoje, eu ainda não sei, ainda não acessei. Tem coisa que é muito próprio, eu sinto que a Luciana ainda não revelou a fundo o trabalho pra gente, porque é tão forte, foi tão forte pra ela, que tem ido aos poucos. Acho que chegou um período que ela foi se retendo, porque é muito difícil, e colocar-se mais veio com o tempo, com trabalho, com vivência, com o espetáculo...

207 Jussyanne: E como foi pra vocês terem essas imagens a partir desses diálogos com ela? Aline: Na época, nós éramos próximas, mas eu não sabia quase nada da intimidade dela. Eu sei hoje, depois de um bom tempo que a gente desenvolveu mais segurança para conversar. Hoje seria um pouquinho mais fácil se eu soubesse dessas coisas que já sei. Na época, a gente lia o blog junto, e era muito difícil de entender aquilo. E se para gente era muito difícil, pra Bel, que era a mais nova, era mais ainda. Eu nunca passei por luto, nunca perdi alguém tão próximo a mim. Daí me perguntava: “E agora?”. E ficava pensando em alguma coisa que tinha sido significativa pra mim, mas nada. Na época, minha perda era o meu cachorro. E como se apropriar de uma dor que eu poderia ter passado? Cada um passa de um jeito. Eu me perguntava: “Como é que eu vou medir essa dor”. Lia o blog e não entendia. Quando ela falava sobre a cena, eu tentava ser ela, mas era muito difícil! Sabe, eu ficava imaginando como tinham sido os acontecimentos de cada cena, cada duo... Tinha momentos que a gente chorava por dentro, tinha cenas que eram muito difíceis de fazer. Até hoje cada apresentação é difícil. As duas primeiras apresentações eu chorei no final. Quando ela estava mais próxima, dançando, eu não aguentava, eu não conseguia estar sem o personagem, senão eu desmontava. Jussyanne: Você via como um personagem? Aline: Era, eu tentava ser um personagem, porque eu tentava me apropriar do que era dela, então não era eu, entendeu? Pra mim era difícil, porque eu a acompanhei naquela época do luto, e a escola surgiu também como um meio de ajudá-la, a companhia, tudo foi pra gente passar mais tempo juntas. Tínhamos vários projetos, passávamos o dia dançando e isso ajudou, mas até hoje é difícil tentar me sentir como aquela Luciana que eu conhecia. Eu ficava muito tocada. Dava vontade de chorar no meio da cena. Jussyanne: Vocês sentiam isso também?

208 Allef: Quando a Luciana me convidou pra participar do trabalho, eles já haviam apresentado um trecho do espetáculo na Semana D da Dança. Então, enquanto os meninos começaram a montar sem saber o que era, eu já sabia. Inicialmente eu pegava as coreografias, mas não tinha muita noção porque ela falava só por alto. E na medida que a gente ia ensaiando, às vezes aos domingos, passávamos a tarde toda conversando na Inspire, e eu saía de lá com a energia tão pesada por tudo que ela falava... Bel: A gente saía um pouco pessimista. Allef: Foi a partir dessa energia que eu ia colocando intenção nas coreografias que eu tinha aprendido. Criar sobre pessoas que já se foram é muito forte. Eu não conhecia o Maílson e conheci a Luciana há pouco tempo, mas havia apresentações que eu não conseguia me segurar mesmo no final. Eu sou uma pessoa muito emotiva e meio que absorvo a energia dos ambientes, das pessoas. Era bastante difícil de dançar nesse sentido, eu começava bem, no final eu já estava desmoronando. Luciana: Até a gente apresentar na Semana D, eu achava que sabia o que eu estava dizendo. Eu estava imersa em tanta coisa... engraçado que é um período que tá meio encoberto na minha memória, porque estava bombardeado de tanta coisa por tanto lado... Era uma outra vida que eu estava descobrindo. Até então eu tinha namorado por 5 anos com ele, eu tinha uma vida, já tinha uma rotina. Eu estava me redescobrindo de várias formas, era muita informação de todo lado. Acho que a minha memória acabou adormecendo algumas coisas. Mas eu só comecei a pensar no (S)em Mim artisticamente, como um trabalho que poderia se tornar maduro, depois daquele dia em que a gente mostrou o trabalho pra você. Até então, eu via o (S)em Mim como uma coreografia bacana, o que a gente estava dizendo até então era uma coisa sensível mas não tinha tanta força. Até que você assistiu aquele ensaio e falou: “Gente, vocês fazem cenas lindas. Se apropriem dessas cenas”. E aí você olhou pra mim e falou assim: “Lu, eu lembro que eu olhava pra você, e parecia que eu estava vendo o que estava passando na sua cabeça, eu sentia que você estava parada, mas que a sua cabeça estava cheia de imagens”. Você

209 até contou que quando você ia lá em casa eu relatava algumas dessas imagens pra você. Depois desse dia, eu fui parar pra pensar nessas imagens que eu tinha e de como o trabalho é montado em cima dessas imagens que eu sentia em mim, de estar parada e estar visualizando internamente. Tinha momentos que eu me sentia meio inerte e aí quando eu ia montar uma cena eu pensava nesse momento. Tinha momentos que eu me sentia totalmente frenética, e pensava em determinada cena a partir disso. Eu tenho essa habilidade, de trazer pra imagem algo que sinto. Na verdade isso era um trabalho pra mim, pra tentar transformar algo não palpável em algo que pelo menos pudesse mostrar. O espetáculo tem uma afinidade com situações que eu fui passando. A minha preocupação no momento que foi ficando mais denso, era realmente a questão do sofrimento deles [bailarinos]. Eu já estava sofrendo e estava montando o espetáculo pra sair disso, então, eu não queria que as pessoas a minha volta sofressem como eu! Só que chegou num momento em que isso aconteceu... E eu me esbarrei muito comigo mesma nisso. Eu fui me tornando um tipo de bailarina que não consegue usar a dança pra uma coisa em vão. Eu não consigo. Eu preciso dançar pra dizer alguma coisa, sabe? Eu não sei como as pessoas vão entender, mas eu vou estar dizendo. Em tudo o que eu faço, isso ficou muito forte. Eu precisava passar isso pros meninos: não me interessava uma perna alta, se essa perna não tivesse um significado que o processo pedia. Não me interessava o balé todo igual, todo esquematizado, e tal, se fosse só pra montar a cena. Precisava que aquilo realmente, verdadeiramente, passasse alguma coisa, que não fosse algo que eu esteja dançando e cada um entenda o que quiser. Neste trabalho, especificamente, eu queria que as pessoas entendessem o que eu passei, que isso chegasse de alguma forma, mesmo que cada um absorvesse da sua maneira. E aí eu precisava passar pelos menos pros meninos as impressões que eu tinha e isso era um processo sofrido. Tinha dias que eu ficava com pena deles, porque eu falava bastante no ensaio e de alguma forma aquilo me fazia bem, mas a eles fazia mal, por que eles saíam bombardeados de muita coisa. A gente, querendo ou não, meio que absorve as coisas do outro. Principalmente porque acredito que artista é um ser muito sensível, a gente acaba se apropriando. E eles precisavam mesmo se apropriar pra dizer aquilo com verdade, até

210 porque a gente estava falando de um processo muito delicado, um luto muito recente. Eu descobri, por obrigação, que é um dos processos mais difíceis que um ser humano passa na vida. Não só o luto, mas o que é relacionado às perdas mais profundas. Jussyanne: O que movia vocês a não saírem do trabalho? Por mais que fosse difícil, por mais que fosse complicado? Aline: Ele me trouxe maturidade em cena. Eu queria fazer algo real com movimento, que fosse realmente pessoal, e nesse processo eu sentia muita vontade de entender melhor essas questões. Isso era difícil também, porque em algumas cenas ela não dizia o que era, porque se ela dissesse ela desmontava. Aí eu ficava querendo perguntar: “Luciana, o que era aquilo?”. Pra eu poder entender, né... Aquele duo com Thiago é muito difícil, quando comecei a fazer eu não entendia, depois eu fui entender. Você se joga e não vai, se joga de novo e não adianta... Eu queria dizer: “Não me coloca pra fazer essa cena não?” (risos) Dava uma sensação surreal. Quando o ensaio acabava, eu estava cansada não porque era muito coreografado, mas porque era uma energia extremamente real, um desgaste emocional também. Mas eu queria fazer algo que eu realmente sentisse. E eu gostava de dançar, ela sempre trazia coisas que eu me apaixonava por aquilo, por mais que fosse sofrido, eu chegava em casa pensando, tentando me pôr no lugar. Acho que, se fosse eu, não conseguiria fazer um trabalho com algo tão recente como ela. Acho que ela foi muito corajosa. Thiago: Pra mim, o que não me fez sair do trabalho foi porque, mesmo começando na dança, este era um trabalho muito maduro, que me acordou enquanto ser sensível. Começou a reverberar dentro do meu corpo, trazendo sensibilidade. E pra mim, dançar o (S)em Mim são duas fases: eu dançava antes e depois que conversei com Jussy. Eu comecei a dançar de outra forma, mais concisamente, mais... É sobre o que se cria, sabe? Eu não me sentia apenas num palco, era como narrar sensações. Tinha horas que eu dançava com Luciana que eu não sei o que acontecia, eu me sentia o próprio Maílson dançando com ela. Era como se eu emprestasse meu corpo pra ele dançar naquele momento, como se fosse um sonho, como se

211 estivesse reverberando. Com Aline, eu me sentia realmente inerte, caminhando pra um caminho que ela não pudesse mais me tocar, e são coisas que a gente sente no palco que até fogem da realidade mesmo. Eu particularmente não sei explicar como isso acontece. Havia uma outra conexão, e aquele espaço que era o palco já não era mais só um palco, já não mais aquele espaço, não era mais algo “coreografado”. Era interno, já era memória corporal, já estava no corpo. Principalmente depois da conversa contigo, eu comecei a dançar com muitas imagens. Eu comecei a sentir como se fosse em mim mesmo a partir desse lugar, do imaginário. O espetáculo começou a fluir não só como mais um trabalho. Em outros trabalhos a gente dança, a gente sabe que é um trabalho, a gente tem consciência de cada coisa. No (S)em Mim eu não acho que seja só mais um trabalho. Aline: Eu também não. O trabalho trouxe essa maturidade pra gente em cena. E não havia dificuldade para lembrar a coreografia, não era como os outros trabalhos que eu costumei fazer, que era mais difícil de lembrar. Simplesmente saía. E mesmo que você visse a coreografia em cena, não era só isso. Luciana: Era mais difícil acessar as emoções do que a coreografia. Quando entrava no palco, a gente já tinha uma ligação muito forte, o movimento já estava no corpo, acho também por a gente ter absorvido fortemente que não era só um movimento pelo movimento, mas o que ele dizia. Então a sensação que aquele movimento me trazia não me deixava esquecer a forma completa de ele ser feito. Eu sabia que eu tinha que levar esse braço e fazer essa mão (faz o gesto), por que essa mão estava me dizendo alguma coisa, por que se eu só fizesse isso (faz outro gesto), não ia completar a frase, não ia completar o que eu tinha que dizer. Era muito forte por causa disso. Nas apresentações, a gente não saía do palco e dizia “ai, errei isso, errei aquilo”. Na verdade, a gente tinha que começar a juntar os nossos pedaços que a gente ia deixando nos lugares (risos). Mas dançar pra mim nunca foi sofrido como era pra eles, foram raras as vezes em que eu dancei e chorei, muito raras mesmo. E não porque eu não me entregava, mas eu acho que eu já tinha passado por tanta coisa, que era a vez de eles vivenciarem, mais que eu.

212 Allef: Uma coisa que me fez permanecer no trabalho é que foi uma oportunidade bem desafiadora! Por mais que o trabalho seja difícil emocionalmente, mas era muito satisfatório. E é por isso que eu não desisti. Tipo, ah é difícil? É. Mas eu saía realizado. É o trabalho mais bonito que eu já dancei até agora, em questão de movimentação e do que o espetáculo transmite. Acho que é por isso que eu nunca desisti. Jussyanne: O que mudou em vocês na forma de encarar a dança, depois desse espetáculo? Luciana: Pra mim, nossa, eu não imaginava que eu tinha essa capacidade de criar coreografias ou de falar de uma coisa tão, tão... Hoje eu fico pensando assim: “Como eu fui audaciosa!”. Eu fico pensando... Gente eu não tenho cabeça, né? Nossa! Eu fui muito maluca, fico pensando o risco que eu corri, porque dependendo da forma que saísse, aquilo podia acabar comigo como bailarina, como coreógrafa. Eu nem era coreógrafa, mas poderia estar acabando com uma carreira que poderia estar começando (risos). E sujar o nome da escola, dos meninos também, porque era uma responsabilidade muito grande. A Aline era uma bailarina que já tinha uma trajetória, mesmo a gente não tendo muita maturidade pra muitas coisas, já tinha um certo nome na dança. Eu também tinha alguns trabalhos. Mas os meninos estavam iniciando, então eu poderia ferrar com a vida deles (risos). Foram muitas coisas que hoje em dia são gratas surpresas que eu tenho. O meu amadurecimento na dança foi gigantesco, e não só na dança. Resultou em muita coisa no meu entendimento comigo mesma. Porque eu sempre me sentia meio me batendo comigo mesma, me dando soco, me dando murro, e não chegava a lugar nenhum. E esse processo me ajudou a amadurecer também, em relação a como eu me entendo no mundo, como eu olho pra outra pessoa, como a outra pessoa me vê. Foi um processo de ressignificação total. E que não acaba ali. Não só o luto, mas a perda em si. Depois que você entra nele, não é: “Eu escolho sair a partir desse momento, eu escolho não olhar mais para as pessoas”. É uma coisa que te leva além porque você continua nele, não tem como você não repensar algumas coisas. Um momento que foi muito difícil também foi quando o pai de Bel faleceu. Antes, lembro das coisas

213 que eu falava pra ela, chegava momento que eu era até cruel. Quando eu ia ensaiar com ela, eu falava assim: “Bel, pensa nisso, pensa numa hipótese bem remota, que sua mãe morreu e você tá ali fazendo aquilo”. E aí depois que o pai dela faleceu, teve uma amiga dela que falou que a primeira coisa que ela pensou foi no (S)em Mim, que agora ela ia dançar com “verdade”. Aquilo me doeu bastante. Eu pensei no blog, que nunca tive e não tenho o intuito de divulgar; as pessoas que chegavam nele, não chegavam nele por uma alegria, mas por uma tristeza. O meu blog estava sendo lido por pessoas tristes, por pessoas que o encontravam porque tinham perdido alguém. Em compensação, digamos que era uma alegria porque pessoas encontravam alívio no que eu dizia. Quando eu precisei, eu não tive. Eu procurava em outros lugares, mas eu não achava. A maioria dos comentários das pessoas dizia que se apropriavam do que eu dizia, que parecia que eu estava dizendo o que elas queriam dizer. Que parecia que elas tinham escrito aquilo. E que aquilo ajudava a aliviar. Então eram dois pesos, assim. Eu não entendia ainda como o (S)em Mim exercia uma força nas pessoas. Muita gente assistia e muito tempo depois chegava pra relatar as coisas. Aos poucos eu fui pensando: “Nossa, eu mexi num lugar muito difícil” e aí eu volto a pensar: “Como eu era doida!” Não é normal mexer nesse lugar, ninguém aceita você entrar nesse lugar assim. Allef: É um trabalho que marca muito. É um trabalho que dois anos depois ainda está na memória das pessoas, pela força que o trabalho tem. Aline: As pessoas lembravam da gente e era muito bom ter esse retorno por um trabalho que tenha sido tocante. Jussyanne: Vocês conseguiam compreender algum roteiro do espetáculo somente pelo movimento? Aline: Eu ficava tentando escrever aquilo pra mim, às vezes, pra tentar facilitar o entendimento. Mas havia dias que eu via de outra forma, outra história, outro começo, mas o mesmo fim. Às vezes o mesmo meio, mas eu ficava com vergonha de perguntar. Pela proximidade que tínhamos, todos os dias ela me contava alguma

214 coisa dele, e eu também o conhecia, então ela falava, falava, falava... E aquilo foi facilitando, pelo menos pra mim, de conseguir montar esse roteiro, porque todo dia eu escutava algumas coisas, que podiam ser cenas. Allef: Eu acho que o final sempre foi claro pra todos, mas pra mim o começo e o meio eram cenas meio jogadas que ela viveu. Ela sabia o que ela estava coreografando, mas quando nós íamos dançar, nós não o conhecíamos. Fomos passando a conhecê-lo a partir dos momentos em que ela falava que eles passaram juntos. E não falava tudo, tem coisas no trabalho que são dela, que é ela que sabe. A gente só fica imaginando: “O que é aquilo?”. Então nós colocamos outras imagens naquilo também. Jussyanne: Quando tivemos aquele momento, que fizemos um trabalho com repetição, o que vocês lembram que tenha marcado o espetáculo? Aline: O que me marcou mesmo é que mudou muito a forma como eu via aquela cena dos abraços, a forma de ver aquela cena do abraço. A minha maneira de ver as cenas mudou, como se pudesse vê-las na mente dela. Não era só um abraço, eu via muita coisa aqui ao redor: como se fosse ele chegando na casa dela ali, e aqui atrás estava ele na sala com ela, aqui estava uma conversa... Eu via cenas assim depois que a gente fez a aula, e que você mostrou. São essas coisas simples, que eu não tinha maturidade pra entender, eu só compreendia a forma do movimento, então aquilo foi muito bom pra mim. Foi nesse momento que passou a ser mais doloroso, mas acho que ficou bem melhor do que como eu fazia antes. Thiago: É engraçado a questão da repetição, quanto mais a gente repete, mais se transforma. Sempre que a gente apresenta o (S)em Mim, a gente encontra uma nova dramaturgia, uma nova história. Algumas cenas que pra mim ficavam muito claras, depois ganhavam um outro significado. A cena que eu acho mais complexa, por incrível que pareça, é a cena do abraço. Porque cada abraço que se repete, cada abraço vazio, cada abraço encontrado, é que vai ganhando novas imagens. Se repete, vai ganhando outros valores,

215 tanto psicológicos, estéticos, cognitivos... E aí, na construção da dramaturgia, tem coisas que a gente entende a partir do que a gente conversa com Luciana. Concordo com Aline, porque é muito difícil de perguntar, sabe, Jussyanne? Quando a Aline falava alguma coisa, ou você mesmo, ou outras pessoas que conviveram, você quer confirmar pra saber um pouco mais e a gente ficava meio receoso: “Lu, é isso mesmo, estou fazendo certo com essa imagem?” E as vezes ficava assim muito retraído, sabe? Jussyanne: E como é que você lidava com isso, Luciana, com o “Tá certo? Será que é isso?”? Em que momento você percebeu que estava bacana, ou que eles não estavam chegando? Luciana: Eu não sabia, mas depois eu fui descobrir que realmente eu era muito chata como coreógrafa e diretora da companhia. E enquanto não estivesse do jeito que eu queria dizer, eu não os deixava em paz! (risos). Mas não foi um processo longo, eles conseguiam. Quando eu coreografava, eles não demonstravam muito não. Era complicado porque eu realmente, em algumas cenas que montei, eu disfarçava o que era. Mesmo quando eu contava, eu meio que dava uma embelezada. Teve cenas que eu montei trazendo meus pensamentos do momento que eu olhava para Maílson no caixão. Eu achava muito complicado contar pra eles esse tipo de pensamento... Então, hoje pra mim é mais fácil dizer e pra vocês escutarem, mas não época não era. E eu não sei por que “luzes do destino” eu fui tendo essa sensibilidade, podia ser chocante pra eles. Isso não foi algo planejado. Mas acho que a movimentação do trabalho por si só ela já é muito forte, já diz muito. As minhas imagens eram bem complicadas: o último dia em que eu vi Maílson, na entrada do cemitério, conversando com um amigo sobre o velório, eu pensava na briga que a gente teve antes, eu pensava se existia vida após a morte, eu pensava que eu não queria estar pensando naquilo, que eu queria morrer... Sabe, era muita coisa que eu pensava duma vez só e aí eu tinha que ir pinçando algumas coisas pra poder fazer pelo menos alguma coisa que se “entendesse”. Aí quando vi o trabalho, ele tinha uma linha bacana, mas eu não pensei no trabalho linearmente. Mas acabou tendo. Tem cenas que são pinçadas: eu pensei nessa movimentação dessa cena que eu pinço e levo pra cena

216 do final e essa movimentação do final, pensei: “Vou pinçar aqui pra frente”. E aí foi indo. Acho que eu não percebi muito esse processo de dificuldade deles. Embora, às vezes a gente começa a acessar as memórias dos ensaios e eu lembro de algumas caras de desespero que eles faziam (risos). Acho que eu estava tão dentro de mim no processo, que fui muito egoísta, sabe? O processo fluiu, nunca foi uma coisa muito dura. Pelo menos esse entendimento que, de primeiro, não sairia, eu tinha. “Vamos repetir, vamos repetir, vamos repetir” e na repetição ia se encaixando. Depois, eu coreografava e eles viam coisas que eu não tinha visto, é muito engraçado isso. Alguém me falava alguma coisa: “Oh, Lu, mas isso aqui seria...?”, e eu: “Ah, é verdade, isso eu não tinha me tocado”. Jussyanne: Tem algo muito presente no espetáculo, que são trechos de repetição de movimentos específicos. Foi uma opção sua trabalhar a repetição do gesto? Ou houve parcela de improvisação de vocês no desenho coreográfico? Luciana: O (S)em Mim, em nenhum momento teve algum processo de improvisação. Do começo ao fim, ele tem toda a narrativa pensada e desenhada por mim. Neste ponto, nunca teve improvisação. A repetição veio porque eu percebi que o que eu sentia, eu não sentia só uma vez, eram sentimentos que se perpetuavam, que continuavam, que continuavam, e eu via que aquele movimento não podia ser feito só uma vez: ele precisava continuar, continuar, continuar. Mas isso eu só fui ver depois do processo dos exercícios que você passou pra gente em relação à repetição. É... Talvez porque, como eu falei antes, eu não tinha ideia de como as imagens que eu trazia podiam colaborar de uma forma tão forte pra cena. Só fui ter esse insight depois do que você falou pra gente, naquele dia, de que a gente tinha cenas muito boas, muito fortes, a gente só precisava torná-las verdadeiras. Acho que o “pulo do gato” foi ali, porque até então a gente fazia pensando na coreografia como sequência de movimentos. A gente não tinha mergulhado tanto em cada um deles. Uma coisa que eu lembrei, quando Aline fala do amadurecimento: antes do (S)Em Mim, enquanto bailarina, eu não me permitia mergulhar tanto no personagem... Na verdade, eu fazia personagens, sabe. Por exemplo,

217 no espetáculo Vórtices95, eu teria que escolher um cordel para dançar um solo. E eu escolhi o cordel “Saudade” pra ser o tema do meu solo. Na mesma semana, durante o feriado, Maílson faleceu. E como eu ia montar um solo chamado “saudade”? Foi super complicado. Eu tinha muita coisa pra dizer e eu não conseguia, eu não conseguia atravessar a parede. A minha movimentação ficava feia porque eu não estava conseguindo. Aí o Edney Dconti96 veio, em um dos ensaios. Ele falava assim: “Se entrega pro seu solo, Lu!”. Aí eu falei, já com a voz travando, que se eu me entregasse eu ia chorar em cena, e pra mim eu não podia chorar em cena. Ele: “Pois chora! A cena é sua, o solo é seu! Eu garanto que se você chorar em cena não vai faltar alguém pra te abraçar pra você continuar dançando”. Aquilo foi outro estalo: “Poxa, eu posso me permitir isso, eu posso me permitir a esse tipo de coisa em cena, eu posso ser mais humana, não preciso ser aquela bailarina que está só lá em cima do palco e eu não preciso ser um personagem, eu posso trazer as minhas experiências pra cá, pro palco”. Aquele foi um dos primeiros insights que possibilitou eu pensar no (S)Em Mim: que era permitido trazer tudo que eu sentia pra cima do palco, ou pro meu corpo no palco. Aline: Aquela primeira cena, que eu tinha que repetir um gesto de abraço. Eu não conseguia fazer, era só o abraço, mas eu não conseguia passar que abraço era aquele, e você viu a nossa dificuldade. Abraçava e não entendia. Depois que você deu aquela aula pra gente, aí ficou mais claro. Eu comecei a entender que o abraço aparecia em algumas cenas. Em alguns momentos eu abraçava, em outros eu era abraçada, teve um momento de desespero do abraço. Pra mim era muito difícil aquele começo. A gente já entrava e ficava aquela repetição, e nada e nada... Jussyanne: Dava pra ver que servia como aquecimento.

95 Espetáculo da Alysson Amâncio Cia. de Dança, que estreou em 2011. 96 Carioca, o bailarino e ator ministrou oficinas pela Associação Dança

Cariri. Integrante das Companhia de Dança, Companhia da Ideia e Arquitetura do Movimento.

218 Aline: Sim! E era o mesmo abraço do final, a mesma conexão e ausência, então por isso que eu chorava. Outro detalhe é que, como eu não tenho crença, quando ela escrevia no blog, falava muito de espiritismo e eu não concordava. Pensava: como é que eu vou acreditar numa coisa que não acredito e o que eu vou fazer nessas cenas? Tinha coisas que estavam em cena, que não faziam sentido pra mim. Mas acho que a energia da pessoa que se foi permanece, e foi aí que eu consegui continuar dançando. Então, eu parti pra pensar nessa energia, a energia que fica nas memórias, nisso eu acredito. Foi a forma que eu encontrei de chegar a algo próximo ao que ela queria dizer, o que ela queria mostrar que estava sentindo. Jussyanne: Quando vocês repetem movimentos, isso causa alguma transformação em vocês? Thiago: Principalmente a repetição do movimento chegava a ser insuportável pra mim, porque quando ficava nesse movimento [demonstra o gesto], de tanto se repetir ele se transformava: no começo era leve, fácil, fácil, mas quando ficava em repetição contínua era insuportável! Eu me sentia muito mal, fisicamente mesmo, até parar e respirar. Aí pronto, acabou. Aline: Era como se fosse um pedaço do final da história ali no começo. Bel: Tinha ensaios que ela falava: “Mais, mais, mais!”, mas eu não conseguia fazer com mais intensidade. No decorrer eu ia conseguindo, aí ficava aquilo mais rápido, até chegava no último, que era o mais forte. Aline: Acho que ela escolheu as pessoas que conseguiam mesmo atingir cada parte da coreografia, porque eu não conseguia fazer aquilo que Bel fez, como a cena do tecido que é mega, hiper, super, forte. Só ela conseguiria mesmo. Ela foi nos pontos fortes de cada um, mas não foi de forma lógica, foi dando certo. Tem cenas que eu não conseguiria.

219 Luciana: É engraçado pensar... como a gente reconhece isso. Por exemplo, o solo de Aline, eu não consigo fazer! Nem as cenas de Bel. Tem coisas que eu me coloquei pra dançar, porque as outras eu não conseguia fazer. Não é por questão física, é a parte emocional. Quando eu ainda estava bem insegura, pedi ao Alysson Amancio97 que assistisse a um dos nossos ensaios. Alysson foi muito bacana, falou coisas bem legais e foi bem pontual. Sobre Bel, ele falou: “Eu acho que você precisa trabalhar com ela pelo exagero, porque depois que ela tiver passado por isso, começa a retirar. O processo de retirada pode ser mais fácil pra ela entender, porque ela já acessou todos esses lugares”. Aí eu comecei a pegar pesado, eu exagerava, eu colocava situações no âmbito absurdo... Se pra Aline eu dizia que tinha que comer 2 maçãs, pra Bel eu dizia que ela tinha que comer uma árvore inteira. Muita coisa funcionou. Bel: Tinha dias que eu chorava, porque eu não conseguia fazer! Até hoje, no final da cena da saia, que tem a luz, até hoje eu não entendo muito bem, se é um fim, que está indo pra luz, ou se é um recomeço. Mas eu sempre uso essas duas saídas. Aos poucos, foi vindo mais naturalmente. Quando eu estava no palco eu não sentia que tinha alguém me olhando, eu dançava como se eu estivesse lá nos momentos: eu imaginava o que ela falava, pensava e fazia. Luciana: O espetáculo teve muitas versões, e até nisso está muito atrelado a mim. Isso porque tinha hora que eu precisava dizer mais coisas, ou menos coisas. Tinha horas que eu estava tão confusa que o espetáculo ficava confuso em si mesmo. E depois eu fui percebendo que isso acontecia porque eu estava dessa forma. Que nesse momento, o (S)Em Mim estava confuso porque eu estava tão confusa que queria dizer muita coisa e não sabia como, mas que eram importantes pra serem ditas. Mas chegou um momento em que eu já havia buscado muita coisa, agora era hora de pincelar. Pensando artisticamente, na companhia e em mim como coreógrafa, deixar só o que seria melhor. Também sempre gostava de escutar o que as pessoas tinham a dizer, pra mim era muito bom ouvir os relatos que

97 Diretor da Alysson Amancio Companhia de Dança, fundador da Associação Dança Cariri.

220 vinham me falar, e tinha coisas boas e ruins. Uma vez uma pessoa falou que o (S)Em Mim era apelativo. Outros já disseram que é um espetáculo muito delicado. E todas as pessoas que falavam eram pessoas que tinham base no que estavam dizendo, reconhecidas em suas áreas. Acho que as opiniões variavam de acordo com o desenrolar do processo e também com a forma que cada um via o espetáculo. Quando a gente estreou, a gente já tinha várias versões. O trabalho que a gente levou para o teatro não mudou mais, é aquilo mesmo. Eu sinto que cada coisa está no lugar que deveria estar, não tem nada de mais, nada de menos, tudo está onde deveria estar.

221 ANEXO 2 – ENTREVISTA COM MARCELA LIMA Entrevista concedida à Jussyanne Emidio via internet, gravada em áudio, no dia 10/12/2015. Jussyanne: Várias vezes você afirmou que uma das motivações para a fundamentação da pesquisa e para a criação do espetáculo veio de algumas experiências pessoais. Percebo que essa busca, nas experiências e narrativas pessoais, de materiais para a criação já fazia parte do teu trabalho (como em “Uma Impossível e Extraordinária Maneira de Não Amar”). É uma opção estética sua? Marcela: Sobre a minha escolha estética para criação dos espetáculos, eu na verdade não acredito numa arte que seja realizada, antes de tudo, de um lugar fora do corpo. Mas sim de um espaço interno do corpo. Estou falando mais de mim mesma enquanto artista e criadora. O que me move na criação são as minhas experiências de vida, é a própria vida, e os afetos que vão se dando nesse processo. Então qualquer acontecimento pode ser um motivo, um incômodo, na verdade, para a criação. Retratos de Mulher está relacionado muito sim com memórias, com relação à violência contra a mulher, algo que vivenciei muito na infância e me veio à tona quando eu estive no Ceará, porque a primeira coisa que fiquei impactada com relação à Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha (a região do Cariri), é justamente o número altíssimo de casos de violência contra a mulher. Com esse fato associado às minhas lembranças e à minha experiência, minha vivência, de uma infância que passou por esse processo muito doloroso, resolvi trabalhar isso em cena. De uma forma eu trabalhava a mim mesma, minhas memórias e dos intérpretes que faziam parte desse grupo. Todos, na verdade, tinham alguma vivência pra falar, pra comentar e pra ser trabalhada dentro do processo da criação do espetáculo. Então, por exemplo, uma das cenas em que você, Nadja e Jayane faziam aquele paredão e o Luka lançava a Dakini contra vocês várias e várias vezes, repetidamente, arrastando ela pelo chão, puxando ela pelos cabelos e jogando contra vocês como se fosse uma parede... Isso é um fato, uma memória muito forte que eu tenho de menina. Obviamente que não era uma parede de mulheres, era uma parede de

222 verdade onde meu pai fez isso com a minha mãe diante dos três filhos. Então, eu acho que é um dos momentos mais fortes do espetáculo. Lembro que várias vezes eu tive que sair da sala, de onde a gente ensaiava, pra respirar, porque foi muito intenso pra todos nós. Obviamente que eu não preciso estar detalhando de onde vêm determinadas coisas. Colocar isso em cena é mais do que uma catarse pessoal, imagina, não é muito por aí. Mas eu acho que a denúncia é a parte mais forte do espetáculo e eu acho que a gente conseguiu atingir isso. Quando a gente inicia o espetáculo com projeções de imagens de todos os intérpretes, inclusive minhas, de período de infância, de período de juventude, fotos de casamento, é um pouco aquela ilusão que a gente tem sobre o amor, sobre as relações afetivas amorosas, sobre sonhos, sobre desejos... Ilusões. A gente nunca sabe o que vai acontecer, é uma dúvida que a gente tem. Esse primeiro momento das imagens, é justamente uma questão que a gente apresenta para pensar sobre o tempo, sobre as mudanças do tempo em nós e, obviamente, isso acontece muito a partir daquilo que a gente vai vivendo, conhecendo, aprendendo no decorrer de nossas vidas. Também está relacionado aos afetos que são criados, tanto os bons afetos, quanto os maus afetos. Isso não tem fim, se formos pensar, é possível trabalharmos isso para o resto da nossa vida, porque são experiências que se dão até o último instante. No espetáculo Uma impossível e extraordinária maneira de não amar, um solo contemporâneo em dança, eu quis dizer algo sobre um rompimento amoroso e que foi muito transformador para mim. Como eu sou uma pessoa feita de muitos “eus” enquanto artista, meu lugar não é apenas nas artes cênicas, na dança, mas também nas artes visuais e também sou poetisa. Eu preciso desses vários espaços para poder me expor, exprimir a mim mesma. Então, tem horas que eu consigo satisfazer isso no movimento do corpo, no movimento como criação que vem do corpo, que vem dessas memórias, que vem do que a gente é, ou daquilo de como a gente está naquele momento. E tem horas que eu consigo resolver enquanto criadora, com palavras e com imagens. Para mim teatro e dança são imagem em movimento, só que é um trabalho mais colaborativo, enquanto nas pinturas e nos poemas é uma criação solitária mesmo. Eu não sei se isso é uma escolha, eu nunca parei para pensar se isto seria uma escolha minha. Só sei que o meu processo se dá dessa forma, sempre foi assim. Já

223 aconteceu de fazer exposições visuais relacionadas a poemas, porque eles me falavam coisas, eles me traduziam. As imagens que eu criei para algumas exposições foram a partir dessas reverberações que os poemas traziam pra mim. Às vezes, também, produção e arte se davam com a chegada de uma notícia no jornal que incomodava e eu queria tratar sobre aquilo. Então, na verdade é sobre como eu consigo me relacionar com esse mundo ao meu redor. Para isso, as memórias são fundamentais, mas também o incômodo do próprio viver no mundo. É o “algo” que me move para a criação. Eu gosto de fazer com que as pessoas reflitam, pensem diante de um espetáculo, diante de uma tela. Eu tive um professor na faculdade, Arlido Daybert98, artista plástico infelizmente já falecido, que dizia que o artista não pode ser burro, que ninguém pode sair da mesma forma que entrou em uma sala de exposição ou de uma sala de encenação, de um teatro, seja qual for a experiência estética em arte que você esteja tendo ali naquele momento. Então, acho que a arte ela tem esse poder de transformar, de fazer pensar, refletir, de absorver a si mesmo e de devolver a si mesmo ao mundo... De outra forma, claro. Jussyanne: Quando você fundou o Grupo de Pesquisa (Teatro/Dança e Novas Tecnologias), já havia a proposta de se criar um espetáculo com essa temática? De que forma as novas tecnologias, teatro e dança foram se imbricando na criação do roteiro? Marcela: Quando eu criei o grupo (como grupo de pesquisa CNPq, dentro da Universidade Regional do Cariri), era algo que eu já realizava muito antes de chegar ali, eram experimentações que eu já trazia na minha vida como artista: produções de espetáculos em dança, onde as novas matrizes estavam e estão presentes. Então não foi algo pensado, um espetáculo em cima dessa temática, foi algo natural, um interesse meu de pesquisa em um mundo contemporâneo, de trazer as novas mídias para cena: ora funcionando como cenário, ora funcionando como um corpo a mais, sobre o corpo do ator. Em outros espetáculos, que eu fiz também na Universidade

98 Artista plástico mineiro (1952-1993), professor do Departamento de Artes da UFJF.

224 Federal de Goiânia (como Claricianas: a palavra na carne), eu usei projeções de imagens sobre os corpos dos atores. É um outro corpo ali também, fazendo parte do espetáculo. Acho que isso é muito comum nos nossos dias e é algo que me interessava muito experimentar e ver o resultado disso esteticamente como imagem na cena. Acredito que eu continuarei nesse processo de pesquisa porque acho que os artistas, independentemente da época, eles sempre absorveram e utilizaram das novas tecnologias da sua época, para a produção de seus trabalhos, e a gente não pode esquecer das novas mídias que fazem parte da nossa vida, do nosso mundo contemporâneo. Estar em cena e trabalhar com isso para mim é algo super normal enquanto ferramenta de trabalho, de pesquisa e de criação. Jussyanne: Como foi reunir estudantes-artistas para o grupo de pesquisa e para o espetáculo? De que maneira você pensava a corporeidade das participantes, levando em consideração os afetos que elas traziam? Marcela: Quando criei o grupo de pesquisa, já via que o Luka estava investigando as novas mídias em cena, muito interessado também em pesquisar a dança no seu corpo. Dakini já havia me convidado para criar um espetáculo, mas aí eu resolvi levar essa proposta para dentro do grupo de pesquisa e fazer uma coisa única. Não lembro bem, eu acho que eu convidei alguns alunos para estar fazendo parte. Vi Nadja em algumas apresentações que ela fazia e, por ter aquele corpo volumoso, uma força cênica e expressiva, uma pessoa fantástica em cena e na vida, era uma pessoa com quem eu realmente queria muito trabalhar. Assim como você própria, Jussyanne, que tinha um trabalho de corpo na dança, já com algum tempo, e a Jayane. Foi um grupo muito diversificado, com pessoas que tinham essa experiência na dança, que vinham da dança do ventre, da dança contemporânea, do balé, e pessoas que não tinham nenhuma experiência como Nadja e Luka, mas que tinham vontade, interesse de estar trabalhando o corpo de outras formas. Foi um grupo de 5 pessoas. Além de Dakini, que foi bolsista durante um tempo, veio o Wanderson, responsável por edição de imagens, filmagens e tudo o mais, e também a Nadja. Eu acredito que qualquer grupo que tenha um conjunto de pessoas

225 envolvidas, dentro de um trabalho criativo, colaborativo, há sempre traumas e há sempre momentos de muito deleite, de muito prazer, de gozo e há também momentos difíceis, como é a própria relação humana em qualquer espaço em que habitamos. Então foi um grupo de pessoas que tinha um recheio, vamos dizer: diferentes idades, diferentes experiências, enquanto mulheres, enquanto seres humanos. E isso era o que mais me interessava: era ver o que vocês traziam, aprender com vocês e conseguir trabalhar esse material todo que é o mundo de cada um e como vocês se lançavam ali naquele momento. Como processo de criação, isso é fundamental, porque o material humano para a dança, para o teatro é um material criativo e, então, a gente está lidando com humano, com esse pacote complexo. E quando Edgar Morin fala sobre o significado da palavra complexidade, onde ele define complexidade como “tecer juntos”, esse trabalho, Retratos de Mulher, se deu assim, a gente foi tecendo junto. E ele se deu da forma como ele tinha que se dar: dentro dos limites de cada um, rompendo com alguns deles. Ele foi aquilo que tinha que ter sido naquele momento mesmo: nem para além, nem menos do que poderia ser. Foi uma experiência muito rica, foi um ano de processo, na sala de ensaio. Foi um ano de convivência mais próxima com estes estudantes artistas, muito rico para todos nós: aprendemos, rimos, choramos... e acredito que foi um trabalho que, de alguma forma, ganhou vários sentidos para cada um de nós.

226

227 ANEXO 3 – ENTREVISTA E DEPOIMENTO DO ELENCO DE RETRATOS DE MULHER Entrevista com Jayane Diniz, Dakini Alencar e Nadja Naiana. Concedida a Jussyanne Emidio, na residência de Dakini Alencar, no dia 20/12/15. Gravada em áudio. Jussyanne: Depois de alguns anos, o que vocês recordam mais diretamente do processo Retratos de Mulher?

Jayane: O que guardo de mais potente em mim do processo de pesquisa e montagem foram as memórias afetivas. Eu tive que acessar muita coisa, muitos sentimentos por vezes escondidos, para entrar no clima e estado que a cena me exigia. O processo, que era tão intenso, revirava muito da gente: memórias, coisas que eu tinha vivido na minha infância. E isso ajudou muito na cena, porque eu precisava acessar aquilo. Em algumas cenas, eu sentia essa necessidade para poder manter um desempenho naquele estado. E também fui acumulando outras experiências de troca. Essas memórias, de alguma forma, fizeram com que eu me conhecesse melhor, pois passei a refletir sobre meu corpo, gostos e minha posição social. As formas como as questões eram colocadas nas cenas me fizeram amadurecer quanto ao universo feminino, feminismo e feminicídio. E a partir disso, passei a me interessar mais por esses assuntos.

Dakini: É curioso porque, quando o processo do “Retratos de Mulher” chegou, veio do desencadear de todo um processo que eu vinha desenvolvendo internamente até chegar naquele momento. Hoje, mais do que nunca, eu acredito que a nossa arte reflete muito o que de melhor e o que de mais a gente deve e precisa trabalhar intimamente. Lembro de um primeiro momento que comecei a mexer lá dentro, nas minhas marcas, em coisas que eu tinha guardado. Foi na Megera Domada. Quando vi a apresentação, eu chorei muito, muito, chorei de um jeito que soluçava: parecia que eu tinha algo guardado e que eu não me atrevia nem a tentar olhar para aquilo, que era essa violência doméstica que eu tinha sofrido. E, naquele momento, quando eu vi aquilo que eu saí chorando de dentro da sala,

228 que eu não conseguia parar de chorar, acho que esse foi o gatilho para que o Retratos de Mulher viesse depois. Eu já vinha do processo do Clarícias99, que foi desvendando muito essas minhas cavernas internas, de coisas dessa mulher que estava se escondendo nessas dores lá dentro. E aí, quando eu peguei as minhas fotos, quando eu abri a minha caixa de memórias, quando eu trouxe pequenos detalhes da minha vida, quando aquilo foi tudo sendo ressignificado dentro do processo criativo do Retratos de Mulher – e era muito emotivo – a partir desse espetáculo, acredito que eu fui abrindo e consertando e aprendendo a lidar com coisas que eu queria escondidas e que eu não queria mais ver. Até porque depois do Retratos de Mulher, eu parei. É por isso que eu considero, portanto, que eu vim caminhando e cheguei no Retratos. Porque o “como” eu parei também foi muito importante. Por isso, digo que na minha caminhada vim num processo de desvendar coisas que eu tinha escondido e que eu precisava trabalhar. Não num psicologismo. Mas com autoconhecimento, com um entendimento de quem eu sou e do que eu quero para ser feliz. E depois que fechei esses ciclos com o Retratos de Mulher, dei um salto enorme da minha vida e hoje estou assim, como estou hoje: feliz, vivendo o que eu quero viver, me aceitando enquanto mulher, me aceitando como ser humano, sabendo dos meus limites, sabendo onde é que eu quero estar, sabendo que não tenho que fugir das coisas, e que eu não tenho que me abrir tanto para ser aceita, como eu achava antes. Retratos de Mulher foi um ponto entre o que existia antes e o que existiu depois. Isso por conta de tudo que ele significou na minha vida profissional, na minha vida pessoal, do que eu me livrei, quando eu cheguei nele. Nadja: Bom, lembro que fui convidada por Dakini e Luka, antes de entrar no grupo de pesquisa (o qual fui bolsista e pesquisei sobre tudo isso). Fiquei muito lisonjeada e sou agradecida até hoje, porque esse espetáculo foi um divisor de elos para mim, enquanto ser humano, enquanto artista-pesquisadora, enquanto uma pessoa que quebrou muitas barreiras para viver aquilo, pra viver o Retratos. Até hoje o Retratos de Mulher está em mim, por tudo que foi e ainda é.

99 Clarícias: a palavra que treme (2011), espetáculo dirigido por Dakini, inspirado na literatura de Clarice Lispector.

229 Do meu ponto de vista, existe um espaço entre o artista e a obra que ele almeja, e há o que ele busca para chegar nessa obra. As primeiras ações que eu tive dentro do grupo de pesquisa foram procurar dados que eram muito pesados: ler sobre a violência, o que estava acontecendo na época, o brutal e grave número de mulheres assassinadas na nossa região. Apesar de todas as ações que foram acontecendo como a Lei Maria da Penha, que trouxe algumas mudanças, a nossa região ainda é muito violenta. Era muito difícil e doído para mim ler aquelas notícias antigas, ver as histórias das mulheres, ver o que aconteceu. Eu ficava perplexa, tinha receios e medos, inclusive de ver certas coisas. Após essa primeira fase de levantamento de dados da pesquisa, quando entramos mesmo no processo criativo, foi então que fui entendendo o que aqueles números iriam representar e, com tudo aquilo que li sobre aquelas mulheres, o que eu poderia mostrar para as pessoas que pudesse ser um diferencial e elas, a partir dali, aceitarem e serem outras pessoas. O Retratos de Mulher tinha isso, de fazer as pessoas se colocarem no lugar daquelas situações que o espetáculo trazia. Quando a gente fazia alguma pergunta, quando o público interage, quando a gente perguntava: “E aí, você quer falar alguma coisa?”. As pessoas, naquela hora, estavam perplexas. Estávamos corporificando tudo aquilo que eu já havia estudado, pesquisado e compreendido Aí eu chego na “Nadja”. Porque o que aconteceu comigo foi, assim, uma coisa sem explicação. Antes de chegar ao início do processo criativo, eu não me via como uma pessoa que podia dançar em cena. Quando eu estava no Retratos, eu pesava 98 quilos. Era muito pesada, não me via em cena, não aceitava o meu corpo, não aceitava muitas coisas. Tanto é que, tudo que tinha que ser pensado pro espetáculo, como os figurinos, tinha que ser pensado também em mim, porque eu ainda tinha muitos bloqueios – ainda tenho até hoje muitos bloqueios – porque era muito pesada, ainda não aceitava que meu corpo podia dançar. Quando o processo criativo começou, fui percebendo, compreendendo, aceitando meu corpo, aceitando muitas coisas: que qualquer pessoa podia dançar, que qualquer pessoa podia estar ali. E o espetáculo não queria falar de “bailarinas”, não queria mostrar “corpo perfeito”: queria pessoas com idades e corpos diferentes, queria problematizar o corpo, o corpo em cena, mostrar que qualquer pessoa podia dançar, se transformar. Porque pra mim o Retratos

230 marcou a minha vida e até hoje marca, o Retratos e as pessoas com as quais eu trabalhei no espetáculo. Então, as três coisas que mais me marcaram foram: primeiro, a aceitação do meu corpo; segundo, a experiência do entendimento sobre o que é o ser humano diante de situações graves e, terceiro, o quanto o artista está para o âmbito humano como o humano está para o artista. Artista necessita se colocar no lugar do outro. As pessoas tentam às vezes dividir, e eu não consigo dividir: o artista sem o seu lado humano e o humano fora do artista. Porque nós conseguimos trazer coisas para as pessoas que podem mudar de um momento para outro, a forma como elas vem vivendo e trazendo as situações da vida delas. Para mim o Retratos de Mulher foi isso e sou eu até hoje. Jussyanne: Que momentos são lembrados logo que se fala do espetáculo? Darei um exemplo, que para mim foi a apresentação em Nova Olinda. Vocês também podem citar outros... Jayane: Mas não tem como não ser esse. Foi o mais forte mesmo. Foi onde eu não consegui me controlar no palco. Foi onde de fato a gente sofreu violência fazendo arte, dentro de um espetáculo. Foi muito forte aquilo: ver aquele monte de gente, na cena em que havia o espancamento, ver o pessoal aplaudir, pedindo pra fazer mais... Tanto é que a memória ficou muito nítida na cabeça da gente, do pessoal gritando: “Bate mais nela, puxa o cabelo dela” Nadja: Chegou uma hora que uma pessoa gritou: “Chama o Ronda, chama a polícia”. Aí, pensamos que iria mudar o rumo da situação, e só piorou. Teve uma hora que eu peguei na mão de Jayane e que apertei assim, lembro como se fosse hoje. Olhei pra Jayane, que já estava chorando, eu já estava chorando, e pensei: “Não, a gente tem que ir até o final”. Para mim, ali ficaram muito claras as questões de machismo da nossa região e do quanto a violência é banalizada, principalmente com as mulheres. Era muito forte. Quando o personagem masculino fazia algumas coisas e os homens da plateia se exaltavam e diziam como se pensassem assim: “Olha o macho, ele é homem, ele pode fazer isso”. Na hora eu fiquei muito chocada, mas era uma coisa que eu já esperava que pudesse acontecer em qualquer espetáculo, em qualquer cidade, já conhecendo como é a nossa

231 região. Há todas essas questões do patriarcado, do coronelismo, do machismo de muito tempo: que a mulher tem que ser dona de casa, que tem que aceitar as condições do homem, que o homem é quem manda. A gente sabe que, na nossa região, hoje mudou um pouco, mas ainda são muito fortes e claras as relações de poder entre homem e mulher. Dakini: A vivência que se fez entre nós e na relação com o público dentro do espetáculo, foi uma experiência muito intensa para mim como artista. O que eu pude confirmar, na realidade, é uma coisa que já vinha acontecendo em mim, mas que, de certa forma, eu não gostava de admitir. Não apenas na relação homem e mulher, estou falando da relação humana mesmo. Na forma como nós vivemos, a relação de poder se faz de uma forma que o homem acredita ter poder sobre a mulher porque ele tem mais força física que a mulher. Mas vejo que, se acontecesse o inverso, se a mulher tivesse mais força que o homem, viveríamos numa sociedade em que o homem seria reprimido pela mulher. A partir dessa vivência é assim que eu enxergo: as relações humanas são mais uma relação de quem pode mais, de quem manda mais, do que uma relação entre homem e mulher, entre duas mulheres, entre dois homens... O que mais se apresenta para nós hoje em dia, após o Retratos, é o entendimento do respeito com o outro enquanto ser humano. Quando eu te digo que existe antes do Retratos e depois do Retratos, é porque essa relação humana, que não se separa da artística, se fez de uma forma tão forte que eu me tornei realmente outra pessoa. No momento em que eu vivi isso tudo, não mexeu só com o público, mexeu com todos nós. Tanto que, a partir desse momento, se a gente for parar para pensar, cada um foi tomando posicionamentos diferentes com as relações de poder na sua própria vida. Seja em relações entre homem e mulher, seja de mãe pra filho, patrão-empregado, seja qual for, mas a relação de poder que nós vivíamos dentro da nossa vida, dentro da nossa arte, dentro da nossa profissão, dentro de todo o nosso âmbito, ela mudou depois desse espetáculo. Justamente porque foi neste ponto que nós batemos: a relação de poder de ser humano pra ser humano. Todos nós nos assumimos com o que nós realmente queríamos ser. Todos nós abrimos mão de um monte de coisas que talvez nós não tivéssemos aberto se não tivéssemos passado por este processo.

232 Jayane: Um estado de libertação... Dakini: É como um empoderamento de sua própria vida enquanto ser humano. Você viu que ela falou dos medos que ela encarou, eu falei dos medos que eu encarei e tenho certeza que se Jayane para para falar ela vai falar de seus medos também. Posso falar da minha parte, do que aconteceu e do que veio até mim e que atingiu vocês que estão aqui presentes. Eu acho que essa relação de poder que nós vivenciávamos, como uma prisão na vida, foi desfeita depois que nós vivenciamos o que realmente é uma prisão dentro desse espetáculo. Porque talvez nós não nos apercebêssemos o quanto nós vivíamos aprisionados na vida. Acho que é isso. Retratos foi isso, acho, para cada um de nós. Depoimento de Luka Severo. Concedido a Jussyanne Emidio via e-mail, no dia 02/01/2016.

Confesso que fiquei meio desconfiado quando tudo

começou. Como eu ia falar sobre esse tema, se eu não era nem mulher nem agressor de mulher? Sendo assim, durante o processo, tive que acessar sentimentos que, até então eu desconhecia. Lembrar de momentos de infância, de situações vividas e presenciadas, foi o que fez com que eu colocasse para fora aquela energia. Eu sempre relacionava a violência destacada no processo e no Retratos, com a vivida por nós homossexuais. Por mais que vivamos em uma sociedade que diga que há direitos iguais, gays, mulheres, negros, nordestinos, ainda tem direitos que nem são levados em consideração. Fazendo essa relação, com a sensações que eu mesmo já vivi, por ser gay e, nordestino, eu conseguia acessar aquela energia. Foi um trabalho onde eu pude ver que nós poderíamos tentar fazer qualquer coisa em cima de um palco: eu não dançava, e me arrisquei a isso, a Nadja enchia os olhos de quem a via nas cenas sem precisar do estereótipo da bailarina. Rompemos algumas barreiras, as nossas próprias barreiras. Pude ter um entendimento sobre tudo isso e, acho que o mais importante, me perceber submerso em tudo isso,

233 enquanto cidadão. Daí é hora de pensar o que fazer: Calar-se ou ir à luta. Eu e as meninas decidimos ir à luta.

A primeira vez que estivemos em cena, ainda em processo,

na Semana D da Dança100, senti o que aquele trabalho representaria futuramente, pois foi um momento em que pudemos ver o que as pessoas achavam. A apresentação em Nova Olinda foi realmente muito marcante. Principalmente nas cenas de violência em que as mulheres se pronunciavam a favor do homem – é doído você perceber que as próprias vítimas foram cúmplices da agressão. Neste mesmo dia, quando eu entrei numa das cenas com sutiã e falava a frase de [Simone de] Beauvoir “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”, eu tomei um choque. Os homens, principalmente, começaram a me xingar de “bichinha”, “viado”, “encubado”... e quando eu amarrava as meninas, ou jogava Dakini no paredão humano, eles aplaudiam. Percebi que muitos só se importam ou se pronunciam quando percebem que estão acima do outro. Me chamar de “viado”, “bichinha” ou “enrustido” fazia com que eles se sentissem os dominadores da situação. E o mais impactante é ver que, no momento em que as meninas apanhavam em cena, eu era colocado num “pedestal” porque eu estava fazendo o meu “papel de homem”.

As cenas de violência eram as que mais me impactavam

pessoalmente: eu tinha que agredir alguém em cena, coisa que não tenho coragem de fazer na vida real. Vendo os vídeos e fotos eu percebia uma transformação, e em muitas vezes eu disse que não reconhecia a mim mesmo. Naqueles momentos, pensava no meu lugar de vítima, das vezes que fui discriminado – por ser gay, pobre e nordestino, e até por ser artista –, e canalizava aquela energia para poder dar um grito de liberdade (mesmo sabendo que violência gera violência). Por mais que fosse uma encenação, cada apresentação era um martírio para todos nós, pois sabíamos que muitas pessoas passavam por aquilo ali todos os dias, naquele momento mesmo estavam passando, nós já havíamos passado. Em Nova Olinda, as

100 Mostra de dança promovida anualmente pela Associação Dança Cariri, em Juazeiro do Norte.

234 meninas não conseguiam se concentrar direito, nós sabíamos o que poderia acontecer ali. A energia foi realmente muito dura. O choro ali era como se tudo aquilo não fosse real, eu pensei que elas iriam parar no meio. Lembro de ver as meninas chorando nas coxias, era visível que elas estavam tristes por tudo aquilo – homens sendo “machos” e mulheres deixando que isso acontecesse.

Era um espetáculo muito forte. Um crescente de sentimentos.

Essa vivência, os estudos, os ensaios, as apresentações e a repercussão só afloraram a ideia de que ainda falta muito a ser feito, a violência é um tema que precisa ser trabalhado todos os dias. As mulheres precisam se perceber que elas têm um lugar que precisa ser respeitado. Os homens ainda precisam compreender esse espaço, conviver com ele. As diferenças nesse âmbito não têm mais por que existirem. Precisamos ver que o machismo chega a ser uma ignorância muito grande. Os grupos considerados como minorias precisam ver que não somos, nem devemos ser, diferenciados, mas precisamos ser respeitados: isso é mais difícil. Se uma mulher retira a queixa porque não tem quem dê comida a ela, ela precisa conseguir meios de se emancipar e ser respeitada. Ela precisa se impor, não para ser superior ao homem, mas para fazer valer os seus direitos. Como um gay, que é apontado na rua por ser gay, não resolve o problema com gritos ou violência, mas mostrando que sabe dos seus direitos e buscando com que eles sejam validados.

235 ANEXO 5 – DEPOIMENTO DE MARCIO RODRIGUES Depoimento concedido a Jussyanne Emidio, via internet, no dia 06/12/2015. Gravado em áudio.

Uma coisa muito interessante de ver no trabalho de direção da Luciana Araújo era que, como todos os presentes conheciam muito bem a história, todo e qualquer movimento criava muita ressonância. Um movimento simples fazia a gente pensar sobre o que aconteceu com ela e o namorado dela, e é interessante o jeito como ela própria trabalhava isso. Lembro claramente que pensava: “Nossa, como mexe com a gente”, de um movimento que mexia comigo porque me dizia algo sobre o meu passado, mas que ela tirou do passado dela. Aí ela imediatamente fez um gesto, tipo abanando a mão no ar, como se fosse: “Não vou me envolver com isso” e seguiu.

O ensaio era como se fosse um jeito de lidar com a dor. Mesmo com o trabalho tão intrínseco à vida dela, ela conseguia tocar isso como se o processo levasse ela adiante (que era inclusive o final da coreografia), apesar de cada movimento remeter a conexões muito pesadas, que faziam todo sentido para nós que conhecíamos a história. Era interessante observar como o fato de ela estar conduzindo um espetáculo que falava sobre a vida dela mobilizava toda uma qualidade de movimento diferenciada ao redor. O espetáculo todo tinha uma atmosfera específica que já começava nos ensaios, e continuava nas apresentações. Talvez não era tão claro que ela estava falando sobre a morte de alguém, eu não lembro de achar tão claro. Mas a gente via como a atmosfera que acontecia no palco chegava à plateia.

Sobre o processo do Retratos de Mulher, lembro claramente de um momento em que tudo aquilo era tão doloroso de ser revisto, relembrado, que as bailarinas/intérpretes começaram a faltar aos ensaios, ficavam doentes, ficavam mal de vir aos ensaios. No processo de criação, se constituía um desgaste esse processo de reviver, de retomar essas lembranças. O interessante é que, diferentemente da ideia da psicanálise, que aponta que ao falar isso ficaria mais leve, mais tranquilo de lidar, isso não acontecia ao dançar. Parecia que, ao dançar, essa memória corporal ia aflorando, aflorando e isso ia sendo incorporado ao espetáculo, e o espetáculo ia

236 ganhando densidade. O momento em que essas relações eram mais explícitas era o momento em que se jogava a Dakini no paredão. Essa qualidade de movimento era incorporada no espetáculo e ia se adensando cada vez mais. Tão interessante quanto isso era a ressonância que havia na plateia. Como o estado do Ceará tem esse histórico de violência e feminicídio muito grande, a plateia era muito impactada porque se identificava muito. A ressonância de atmosfera que acontecia nos ensaios, na cena e no vídeo chegava à plateia. Acontecia muitas vezes, ao término do espetáculo, as pessoas estavam visivelmente alteradas, chorando, e a atmosfera da sala muito alterada. Principalmente nas partes em que a opressão masculina que as mulheres viviam, que era o ponto mais forte do espetáculo, era ressaltada. Diferentemente do (S)em mim, onde as passagens não ficavam explícitas, no Retratos de Mulher isso era muito explícito e muito claro. O impacto disso era muito forte. A impressão que eu tenho é que, como nem tudo era autoral no decorrer do espetáculo (havia uma discussão do feminino em geral), aquilo que remetia à “autoralidade” (focado numa memória das criadoras) era muito mais impactante. A discussão do feminino acontecia, e tinha uma ressonância no corpo, mas a violência e a opressão, que eram situações vivenciadas, tinham uma ressonância muito mais presente.

Todo tempo que eu falo em ressonância no corpo eu falo que há uma mudança da qualidade de movimento, e uma mudança de atmosfera, em cena e na plateia. Tanto nos ensaios como nas apresentações, a atmosfera das salas era visivelmente alterada pela modificação dos corpos presentes.

Quanto às relações entre pessoal e social, entendo que o (S)em Mim surge de um trauma que tem pouco de social, é pessoal. Mas o processo da Luciana foi libertador, gerou ação, ao invés da inação. Mesmo já tendo gerado tamanha inação, ao ponto da tentativa de suicídio dela. O Retratos de Mulher tem uma postura voltada também a aspectos sociais, mesmo sendo focado em memórias pessoais. É como dizer assim: o Retratos de Mulher quer uma mudança de atitude das pessoas, e entende que afetar as pessoas pode afetar a sociedade. A intenção da Marcela não era a de fazer uma crítica voltada ao macro, a uma “sociedade capitalista de homens agressivos que batem em mulheres”, mas sim ao micro: as relações

237 afetivas e íntimas, que se convertiam em questões sociais: a violência. É um trabalho do universo pessoal que reverbera no social. O trabalho questionava muito mais a atitude das pessoas, como homens e principalmente mulheres lidavam com isso. Quando ela pergunta: “Alguém quer falar alguma coisa?” no meio de uma cena de espancamento, é uma pergunta direta ao modo como as pessoas lidam com situações de violência.

238

239 ANEXO 6 – DEPOIMENTO DE ZULEIDE QUEIROZ Depoimento concedido a Jussyanne Emidio via e-mail, no dia 23/02/2016. Querida Jussyanne,

Às vezes fiquei me perguntando porque demorei tanto em te

responder e ajudar na pesquisa. Talvez por medo de rever acontecimentos passados tão

marcantes nas nossas vidas. Agora me sinto à vontade de voltar ao ano de 2012. Neste

período completava 18 anos morando na região do Cariri. Já totalmente inserida neste lugar. Como mulher, professora, militante do movimento feminista, militante partidária, mãe e pesquisadora.

Acompanhei nestes anos muitos acontecimentos de violência contra a mulher no Cariri até aquela data. Foram anos duros, principalmente no período de 2001 a 2006, quando tivemos duas alunas da nossa universidade mortas.

Nesse mesmo período, construíamos uma universidade sólida e engajada na sua realidade.

Assim nasceu o Curso de Teatro. Nossa tentativa de responder às necessidades de professores na área de arte-educação, respeitando as especialidades da formação.

Assim foi a minha surpresa e alegria ao assistir ao espetáculo Retratos de Mulher.

Nunca vou esquecer... Ver nossos professores e alunos com extrema capacidade de

direção, produção, encenação e em especial, tratar de uma temática tão cara para todos nós do Cariri.

Meus Deus, como Marcela, Marcio e seus alunos tiveram a coragem de abordar este tema!

Um espetáculo acadêmico-militante. Digo isso porque não era intenção dos mesmos fazer um espetáculo somente midiático. Mas ensinar com realidade!

Como professora, olhei o espetáculo como possibilidade de formação dos docentes da educação básica. Mostrando uma realidade

240 nua e crua, com leveza, seriedade, reflexão e denúncia. Depois do espetáculo poderíamos ficar horas e horas debatendo o tema. Não faltaria o que falar, denunciar, chorar.

Como mulher e mãe confesso que chorei muito. Assisti duas vezes com amigos diferentes e sempre chorei. Chorei pelas mulheres mortas no Cariri. Chorei de alegria em assistir a um grupo engajado criado por professores e alunos da URCA. Pela interpretação de cada aluna-mulher. Chorei pela beleza daquela obra. Era a resposta e a síntese de tudo que ouvi durante 18 anos de militância no Cariri.

O espetáculo permitia isso. Refletir sobre nossas práticas no movimento de mulheres: como atuar, como combater, como escrever e denunciar.

Ainda escuto a música, ainda escuto os gritos, ainda lembro a luz do palco!!!!!

Vou parar senão volto a chorar.