Dissertação Deleuze

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    JOO GABRIEL ALVES DOMINGOS

    DIFERENA E SENSIBILIDADE EM

    GILLES DELEUZE

    BELO HORIZONTE

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    2010

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    JOO GABRIEL ALVES DOMINGOS

    DIFERENA E SENSIBILIDADE EM

    GILLES DELEUZE

    Dissertao apresentada ao Curso de

    Mestrado da Faculdade de Filosofia e Cincias

    Humanas da UFMG como requisito para a

    obteno do Ttulo de Mestre em Filosofia

    Linha de Pesquisa: Esttica e Filosofia da Arte

    Orientadora: Virginia Figueiredo de Arajo

    BELO HORIZONTE

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    2010

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu pai, Gabriel Domingos; minha me (por me ensinar o valor da educao), Dorotea

    Alves; aos meus irmos

    minha me, Laura Alves; aos meus irmos

    minha querida orientadora, ProfessoraVirginia Figueiredo

    Aos meus amigos, mas, sobretudo, queles que marcaram de um modo muito singular as

    vivncias mais importantes dos anos de faculdade: Celso Neto, Daniel Pucchiarelli, Mara

    Nassif, Rmulo Dornelas,, William Mattioli

    Professora Lvia Guimares do Departamento de Filosofia da UFMG pela solidariedade

    Aos dedicados funcionrios do Departamento de Ps-Graduao em Filosofia da UFMG

    Ao Osias e Crislida Livraria e Editora

    Rosa

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    SUMRIO

    RESUMO/ABSTRACT...............................................................................................................8

    INTRODUO CRIANDO MONSTROS: DELEUZE E A HISTRIA DA

    FILOSOFIA...............................................................................................................................10

    CAPTULO 1 IDENTIDADE E DIFERENA, ANALOGIA E MULTIPLICIDADE.....22

    1.SELETIVIDADE, HIERARQUIA, DISTRIBUIO.............................................22

    2.O MTODO DA DIVISO......................................................................................26

    I. O DRAMA DE UM NOIVADO........................................................................26

    II. PLATO E OS GREGOS..............................................................................30

    III. POR QUE NO H MITO NO SOFISTA?...........................................................31

    IV. MOTIVAO DO PLATONISMO.......................................................................36

    3.ARISTTELES CONTRA PLATO.......................................................................37

    4.A FORMA DA QUESTO...................................................................................40

    5.A IDEIA....................................................................................................................436. IDEIA COMO MULTIPLICIDADE.........................................................................48

    7.ENTRE A ONTOLOGIA E O TRANSCENDENTAL.............................................57

    8.DIFERENA E SENSIBILIDADE................................................ ..........................60

    CAPTULO 2 EMPIRISMO TRANSCENDENTAL ........................................................63

    1. INTRODUO........................................................................................................63

    2. EM BUSCA DAS CONDIES DA EXPERINCIA REAL ................................65

    3. EMPIRISMO TRANSCENDENTAL.......................................................................67

    I. TEORIA DA REPRESENTAO....................................................................... .68

    II. A INTENSIDADE...................................................................................... .......74

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    III. O TRANSCENDENTAL...................................................................................79

    4.KANT CONTRA O (SEU) EMPIRISMO ...............................................................83

    I. FORMA PURA DO TEMPO.............................................................................85

    II. O SUBLIME...........................................................................................................89

    III. ETERNO RETORNO E UNIVOCIDADE DOSER...........................................91

    IV. SENSIBILIDADE E MEMRIA EM PROUST.....................................................96

    CONCLUSO DELEUZE, ENTRE FILOSOFIA E ARTE.................................................106

    BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................114

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    RESUMO

    Abordamos o problema da arte na filosofia de Deleuze atravs de uma

    contextualizao da sensibilidade em um projeto de pensar a diferena nela mesma. Na

    introduo, abordamos o procedimento utilizado por Deleuze para fazer sua histria da

    filosofia. Logo aps, mostramos como Deleuze desenvolveu uma crtica da analogia atravs

    de sua leitura do mtodo da diviso presente nos dilogos platnicos (Poltico, Sofista,

    Fedro). Na segunda parte, lemos Kant, mostrando como sua doutrina das faculdades 1tambm

    realiza uma imagem do pensamento como representao. Mas, em ambos os casos, a

    interpretao de Deleuze ambgua. Ele encontra, nesses sistemas representacionais, um

    momento no qual a diferena pensada. Em Plato, quando no Sofistao filsofo grego prope

    a aventura de pensar o no-ser(indicando ele mesmo o que significa a expresso nietzschiana

    reverter o platonismo) e em dois momentos da obra kantiana: (1) na Crtica da Razo Pura,

    quando um terceiro elemento (a forma pura do tempo) inserido na lgica de dois termos do

    cogitocartesiano e (2), na Crtica da Faculdade do Juzo, quando o sublime capaz de levar

    as faculdades at os seus respectivos limites, produzindo acordos contingentes (isto , no

    pressupostos) entre elas. Segundo Deleuze, a teoria das condies abandonada para a

    assuno da perspectiva gentica; as condies de possibilidade so abandonadas para a

    assuno das condies da experincia real. A noo de repetio encontrada no conceito

    nietzschiano de eterno retorno, como repetio intensiva da diferena, crucial para a

    perspectiva gentica porque este conceito expressa uma lgica que no faz apelo a nenhuma

    forma de transcendncia.

    Palavras-Chave: Diferena - Deleuze - Esttica - Ontologia

    1 Segundo a qual pressuposto o exerccio harmonioso de todas as faculdades fundada no sujeito pensantetido como universal e se exercendo sobre o objeto qualquer (DELEUZE, G. Diferena e Repetio).

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    Personne ne sait ni ne prtend dire ce qu'est 'la' philosophie de Deleuze ; nous nous sentons affects

    par Deleuze, nous autres ses explorateurs, pour autant que nous essayons de faire aujourd'hui de

    la philosophie ; nous prsumons que la philosophie ne sortira pas indemne de l'aventure

    deleuzienne, mais nous savons que c'est nous de le montrer et de l'accomplir (Franois

    Zourabichvili,Deleuze. Une Philosophie de l'vnement).

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    INTRODUO

    CRIANDO MONSTROS: DELEUZE E A HISTRIA DA FILOSOFIA

    Os procedimentos tpicos na obra de Deleuze assemelham-se muito queles utilizados

    em arte moderna. Por exemplo, a sua histria da filosofia pode ser entendida como uma

    colagem por realizar deliberadamente deslocamentos de conceitos e noes de outras obras,

    produzindo assim atualizaes de sentidos e usos. Como a colagem, outras imagens da

    histria da filosofia proliferam em sua obra como, por exemplo, o retrato. Poderamos, ainda,

    somar mais uma no menos apropriada: a do ventrloquo. Todas essas imagens expressam o

    aspecto essencial do modo de funcionamento e do contedo de sua filosofia: o privilgio da

    criatividade sobre a permanncia, da produo sobre a reproduo, da diferena sobre a

    identidade, do nmade sobre o sedentrio 3. Ao ler o que Deleuze diz sobre outros filsofos,

    h a impresso que o seu olhar volta-se para aspectos no convencionais desses filsofos,

    como se ele entrasse nas obras cannicas por uma via incomum. E, no final das contas, isso

    parece legtimo, pois ele consegue, ainda assim, oferecer leituras rigorosas (de acordo com a

    letra dos textos), mas que repousam a sua unidade sobre pontos at ento insuspeitos.

    Poderamos, portanto, nos perguntar: as leituras de Deleuze realmente repetem os filsofos ou

    criam a partir deles? E no ser a indistino entre criar e repetir o convite mais profundo

    desse autor?

    A noo de conceptual breakthrough, em fico cientfica, descreve os momentos nos

    quais o conjunto de referncias significativas de um personagem, que sustentam o seu modo

    3 Entre parnteses colocaremos a data da primeira edio da obra de Gilles DELEUZE ou, quando for o caso, adata indicada pelo prprio autor. "Seria preciso que a resenha em Histria da Filosofia atuasse como umverdadeiro duplo e que comportasse a modificao mxima prpria do duplo. (Imagina-se um Hegel

    filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente glabro, do mesmo que uma Gioconda bigoduda)"(DELEUZE, 1988, p.19[DELEUZE, 1993 (1968), p.5]).

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    de apreenso da realidade, desfeito por um elemento perturbador. Ento, o personagem

    lanado em uma busca por conhecimento s que agora sob um outro ponto de vista. A partir

    desse instante traumtico, ele descobre, por exemplo, que ele mora em uma cidade onde, com

    exceo dele mesmo, todas as pessoas ao seu redor so atores e a vida comum , na verdade,

    uma grande encenao. Em um outro contexto, algo similar ocorre com dipo. Alm da fico

    cientfica e da tragdia, o efeito do conceptual breakthroughpode ser encontrado tambm em

    romances policiais ou mesmo nas mitologias religiosas. Em suma, o processo em que o

    personagem (e por tabela o leitor) tem a sua viso do mundo modificada e recebe o primeiro

    vislumbre de outra viso, geralmente mais complexa, fascinante, at assustadora, que vir

    substitu-la 4. Em termos deleuzianos, o conceptual breaktrough o inverso da recognio,

    ou seja, o reconhecimento de um objeto como sendo sempre o mesmo em momentos e

    condies distintas. O que Deleuze quer mostrar o fundo diferencial em que repousa toda

    assuno de identidade. No basta ento recorrer a pensadores clssicos para encontrar os

    conceitos a partir dos quais seja possvel pensar diferencialmente, preciso que a prpria

    repetio desses filsofos, a saber, o prprio mtodo de leitura, seja ele mesmo diferencial.

    No entanto, no h posio mais avessa das obras de Deleuze do que tomar a

    diferena como algo sem sentido, como se a sua teoria fosse uma hipstase da

    ininteligibilidade das coisas 5. Parece claro que, com esse conceito, Deleuze quer levar em

    considerao o mais singular, a novidade mais radical, porm toda sua argumentao seria v

    se acreditssemos que a diferena merece ateno justamente por sua falta de sentido. Falando

    sobre a estratgia terica de referir toda a inteligibilidade de um fenmeno a uma conscincia

    4 TAVARES, 2006, p.67.5 BRYANT radical sobre esse ponto, posicionando-se no outro extremo dos comentadores de DELEUZE ao

    afirmar a tese segundo a qual DELEUZE um hiper-racionalista (!). Thus, far from being a sense-dataempiricist who bases the formations of being on the irrational surds of experience, Deleuze is in fact a hyper-rationalist who discovers intelligibility even in the apparent chaos of the matter of intuition (BRYANT,2008,p.41).

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    capaz de fornecer-lhe sentido, Deleuze argumenta contra a tendncia de sermos obrigados a

    aceitar a alternativa que compromete inteiramente ao mesmo tempo a psicologia, a

    cosmologia e a teologia: ou singularidades j tomadas em indivduos e pessoas ou o abismo

    indiferenciado6

    . A argumentao de Deleuze sugere-nos que a expectativa de sentido

    associada totalidade (individual, por exemplo, mas tambm qualquer tipo de transcendncia)

    que nos leva a tomar o singular e a diferena como um abismo indiferenciado ou um

    infinito ruim. Seramos ento como o espectador desavisado de obras de arte abstrata que

    procura a figuratividade de todas as formas. Devemos, ao contrrio, levar a srio a sua

    proposta e supor que a sua obra nos oferece ferramentas conceituais para pensar a diferena

    nela mesma.

    Essa problematizao da identidade, por exemplo, pode ser pensada nas cincias

    humanas, o que nos auxiliaria a especificar melhor essa proposta. O belo elogio de Deleuze ao

    estruturalismo ( A quoi reconnat-on le structuralisme ? 7) consiste no fato de autores como

    Claude Lvi-Strauss e Jacques Lacan proporem um tipo de interpretao de fenmenos

    sociais e psquicos a partir de uma rede de elementos que s produzem efeitos de sentido na

    sua relao diferencial uns com os outros. Longe de tomar o simblico como a ordem na qual

    se dramatiza um enredo de personagens determinados de antemo, o texto de Deleuze nos

    convida a pens-lo como a ordem onde elementos sem designao extrnseca ou significao

    intrnseca se determinam reciprocamente. Por outro lado, o reconhecimento da identidade

    subjetiva, de objetos exteriores, as produes ideolgicas ou os personagens mitolgicos so

    da ordem do imaginrio e ocorreriam como efeitosde uma complexa articulao simblica 8.

    6 DELEUZE, 1974, p.105-106 (DELEUZE, 1971 [1969],p.125).7 No texto originalmente publicado em um livro sob o ttulo de Histoire de la Philosophie, DELEUZE faz

    questo de observar estamos em 1967 (DELEUZE, 2006, p.221-247 [DELEUZE, 2002 (1967), p.238-269]).

    8 Uma boa hiptese tomar a relao do virtual com o atual como sendo da mesma natureza que a relao dosimblico com o imaginrio.

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    Em seu artigo A Estrutura dos Mitos, o que Lvi-Strauss recusa veementemente a

    pesquisa de um significado originrio de um mito em favor de uma leitura a partir da relao

    entre unidades constitutivas chamadas de mitemas. O mesmo pode ser encontrado na lgica

    do significante de Lacan e sua recusa da ego psychology.

    Poderamos afirmar que Deleuze quer constranger as nossas expectativas de

    reconhecimento e talvez seja esse o caminho mais correto para situarmos o potencial crtico

    de sua filosofia 9. Quem poderia, por exemplo, querer encontrar teses comuns ao

    estruturalismo francs e ao empirismo de Hume 10? No ambiente intelectual francs dos anos

    50 e 60, dominado por figuras como Marx ou Heidegger, Hume no era um filsofo muito

    frequentado. De todo modo, reencontramos uma tese fundamental do estruturalismo na

    definio deleuziana do empirismo. No livro sobre Hume, Deleuze define o empirismo pelo

    privilgio das relaes sobre os termos que as compem. Ao contrrio do racionalismo que

    busca internalizar as relaes, para o empirista, s a associao constante dos elementos que

    constitui aquilo que eles so. A inverso consiste em dizer: o modo como as coisas esto

    relacionadas confere-lhes inteligibilidade, portanto a relao entre as coisas no uma

    expresso de suas essncias 11. Algo como a famosa cena do filme Tempos Modernos(Modern

    Times,1936)de Charles Chaplin, em que, a despeito da inteno banal do personagem, ele se

    torna um militante poltico. Um outro exemplo o que Lacan expe no seminrio sobre as

    psicoses:

    9 Sobre esse aspecto, concordamos inteiramente com D'AGOSTINI e devemos voltar a esse ponto mais vezesem nosso texto: em toda a caracterizao do pensamento afirmativo existe um ponto que deve ser

    sublinhado com vigor, porque se aproxima das teses ontolgicas de Heidegger, mas tambm das tesesantiontolgicas de Adorno: trata-se da crtica da afirmao como positividade, ou melhor, a crtica dapositividade e a distino, correlativa, entre afirmao e posio ou 'assuno'. D'AGOSTINI, 2002.p.375.Algo muito prximo da direo de leitura de WILLIAMS. Segundo ele,Diferena e Repetio is a book thatclaims that pure differences are the other face of all actual things there is no such thing as a well-definedactual life (WILLIAMS, 2003, p.13).

    10 MACHADO, 2009,p.139.11 Denominar-se- no-empirista toda teoria segundo a qual, de uma ou de outra maneira, as relaes decorram

    da natureza das coisas (DELEUZE, 2001 [1953], p.123).

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    Um dia, a srta. de Montpensier estava nas barricadas, talvez estivesse ali por acaso, e talvez

    isso no tivesse importncia numa certa perspectiva, mas o que h de certo que apenas isso

    que resta na Histria, ela estava ali, e deram sua presena um sentido, verdadeiro ou no

    verdadeiro. No momento em que as coisas acontecem, alis, o sentido sempre um pouco

    mais verdadeiro, mas o que se tornou verdadeiro na histria que conta e funciona. Ou isso

    vem de um remanejamento posterior, ou ento j comea a ter uma articulao no momento

    mesmo em que as coisas acontecem 12.

    Assim, de modo anlogo ao empirismo, Deleuze lembra que, para Lvi-Strauss, as

    relaes so exteriores aos termos. O sentido sempre um sentido de posio. o lugar que

    se ocupa dentro de um espao relacional (chamado por Deleuze de ideia ou estrutura) que

    confere sentido a alguma coisa. Os elementos de uma estrutura no tm nem designao

    extrnseca nem significao intrnseca. O que resta? Como lembra com rigor Lvi-Strauss,

    eles tm to somente um sentido: um sentido que necessria e unicamente de 'posio' 13.

    Por outro lado, contrariamente ao que ocorre na ordem dos significantes, a oposio

    binria que est em jogo no imaginrio pode ser encontrada na leitura comum da filosofia de

    Plato. Nesse caso, os dois termos que entretm uma relao de identificao so a aparncia

    12 LACAN, 1988, p.131. Importa pouco as intenes internas e profundas da stra. de Montpensier. Para adeterminao do sentido, interessa mais a relao entre os elementos do que a inteno.

    13 DELEUZE, 2006, p.225 [DELEUZE, 2002 (1967), p.243]. DELEUZE refere-se discusso entre ClaudeLVI-STRAUSS e Paul RICOEUR publicada em 1963 na Rvue Esprit.DOSSE pontua corretamente ondese situa a diferena entre DELEUZE e GUATTARI e o estruturalismo, em especial, o RSI [Real-Simblico-Imaginrio] lacaniano: Avec une telle conception, Deleuze et Guattari dplacent le grand schma dominant

    du lacanisme qui distingue trois niveaux htrognes dans la relation RSI (Rel - Symbolique - Imaginaire),accordant une prvalence au niveau symbolique, avec des ples Rel - Imaginaire loigns l'un de l'autre etquasiment antithtiques. Deleuze et Guattari insistent au contraire sur la dimension rel de l'imaginaire et surle caractre littral des nonces comme des images (DOSSE, 2007, p.547). Mas inegvel que DELEUZEdesenvolve constantemente uma crtica da imagem, pensada como representao, e uma das suas principaisestratgias tericas nos anos 60 o recurso a autores estruturalistas. Em grande medida, o estruturalismorealiza os critrios da filosofia da diferena. Arriscamos uma hiptese sobre as rupturas no pensamento deDELEUZE preservando o seu carter sistemtico: a adeso e a ruptura com uma teoria no ocorrem emrelao ao mesmo aspecto. Ou seja, enquanto a adeso graas ao aspecto X, a ruptura graas ao aspecto Y.

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    modo hegemnico de fazer filosofia, porque a partir deste instante o seu domnio prprio ser

    a representao e toda diferena deve estar subordinada a ela para que haja pensamento. Uma

    tima forma de ler Diferena e Repetio como uma anatomia dos diversos modos de

    confundir o pensamento com a representao e o que h de comum a todos o privilgio da

    identidade. No h surpresa em concluir, portanto, que a reverso do platonismo significa

    justamente a liberao dos simulacros e o pensamento da diferena nela mesma.

    A verso filosfica da liberao dos simulacros e da reverso do platonismo

    encontrada em Nietzsche, mas isso est muito longe de ser um consenso entre os leitores de

    Nietzsche. Mais uma vez, Deleuze aplica o seu procedimento de leitura. Frequentemente, o

    eterno retorno entendido como o eterno retorno do mesmo. Deleuze diz justamente o

    contrrio: s a diferena retorna no eterno retorno. O eterno retorno tambm entendido

    como uma prova tica. Deleuze afirma que ele no somente uma prova tica da vontade,

    mas ele o ser. Desse modo, a teoria do eterno retorno uma teoria ontolgica. Afinal, por

    que um filsofo como Nietzsche, que repetidamente elogia o devir, faria uma teoria da

    estabilidade e da coerncia radical do mundo? E ser que o eterno retorno compatvel com

    um sujeito de vontade para acreditarmos que ele apenasuma prova tica?

    O eterno retorno no o efeito do Idntico sobre um mundo tornado semelhante; no uma

    ordem exterior imposta ao caos do mundo; ao contrrio, o eterno retorno a identidade interna

    do mundo e do caos, o Caosmos. E como o leitor poderia acreditar que Nietzsche implicava

    no eterno retorno o Todo, o Mesmo, o Idntico, o Semelhante e o Igual, o Eu [Je] e o Eu

    [Moi], ele que foi o maior crtico dessas categorias? Como acreditar que concebeu o eterno

    retorno como um ciclo, ele que ops 'sua' hiptese a todo hiptese cclica? Como acreditar que

    tenha cado na ideia inspida e falsa de uma oposio entre um tempo circular e um tempo

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    linear, um tempo antigo e um tempo moderno? 17.

    preciso estar atento ao argumento de Deleuze sobre o eterno retorno. Antes de tudo,

    porque Deleuze enxerga nele uma lgica para a ontologia que no faz recurso a qualquer

    transcendncia. Com o eterno retorno, o ser imanente. Renovar a noo de repetio atravs

    de uma apropriao do eterno retorno crucial para toda a filosofia de Deleuze de uma forma

    tal que o seu aspecto central est presente em vrios momentos de sua obra. A preocupao de

    Deleuze em relao histria da filosofia no exatamente produzir uma repetio na qual o

    que produzido seja uma novidade, uma diferena?

    Com Deleuze, devemos pensar a histria da filosofia como um quadro de Andy

    Warhol no qual a reiterao de uma figura sempre acompanhada de modificaes de cores e

    de intensidade 18. Um dos trechos mais bonitos deDiferena e Repetiodiz que: (...) todos

    somos Narcisos, pelo prazer que sentimos ao contemplar (auto-satisfao), se bem que

    contemplemos outra coisa que no ns mesmos 19. Acreditamos que o modo como Deleuze

    repete os filsofos afirme esse mesmo fracasso do duplo que tem sempre o seu reflexo

    distncia, buscando, com isso, elevar-se condio autnoma de um simulacro.

    * * *

    Ao longo do presente trabalho, no sero encontradas confrontaes entre

    interpretaes sistemticas da obra de Deleuze. Para citar um exemplo, recorremos a autores

    17 DELEUZE, 1988, p.468-469[DELEUZE, 1993 (1968), p.382].18 (...) na passagem de uma qualidade a outra, mesmo sob o mximo de semelhana ou de continuidade, h

    fenmenos de no correspondncia e de patamar, de choques de diferena, de distncias, todo um jogo deconjunes e de disjunes, toda uma profundidade que forma uma escala graduada, mais que uma durao

    propriamente qualitativa (DELEUZE, 1988, p.381[DELEUZE, 1993 (1968), p.307]).19 DELEUZE, 1988, p.134[DELEUZE, 1993 (1968), p.102].

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    to distintos como Slavoj iek e Roberto Machado, Alain Badiou e Franois Zourabichvili,

    Michael Hardt e Peter Hallward. Achamos mais prudente, considerando as exigncias de uma

    dissertao de mestrado, privilegiar tanto quanto possvel apenas a capacidade descritiva dos

    comentadores de Deleuze. Ou seja, considerando que os comentrios, em geral, fazem leituras

    sistemticas, o nosso recurso bibliografia secundria ser pautado pela descritividade de

    passagens locais, mais do que pela avaliao de leituras globais. Por exemplo, no

    aprofundaremos no debate entre Badiou e Zourabichvili sobre a existncia de uma ontologia

    em Deleuze, mas faremos recurso pontualmente a cada um desses autores para auxiliar-nos na

    compreenso de passagens especficas. Obviamente, no somos inocentes sobre a

    neutralidade dessas descries. Em contrapartida, no nos furtaremos a reconhecer

    posteriormente as consequncias interpretativas de nossas escolhas.

    O livro Gilles Deleuze, Um aprendizado em filosofia 20, prope uma srie de critrios

    metodolgicos sem os quais no poderamos entender a obra de Deleuze: (1) reconhecer o

    objeto e os termos do antagonismo principal, (2) ler Deleuze filosoficamente, (3)

    reconhecer a [sua] seletividade e (4) ler o [seu] pensamento como uma evoluo 21.

    uma aposta metodolgica de Hardt, e esses critrios podem eventualmente ser colocados em

    questo. Porm, ao invs de discutir sobre as dificuldades nas quais se lanam tais critrios,

    concordamos totalmente com Hardt (assim como a maioria dos comentadores de Deleuze)

    sobre o terceiro ponto (e, consequentemente, sobre o segundo):

    A jornada de Deleuze pela histria da filosofia assume uma forma peculiar. Muito embora as

    monografias de Deleuze sirvam como excelentes introdues, elas nunca fornecem um

    sumrio compreensivo do trabalho de um filsofo; ao invs disso, Deleuze seleciona os

    20 HARDT, 1996.21 Idem.

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    aspectos especficos do pensamento de um filsofo, que fazem uma contribuio positiva ao

    seu projeto naquele ponto 22.

    E ele continua:

    Se suas leituras so parciais, elas so, no obstante, muito rigorosas e precisas, com

    meticuloso cuidado e sensibilidade para tpicos selecionados; aquilo que Deleuze perde em

    abrangncia, ele ganha em intensidade de foco 23.

    No outra coisa que defende Roberto Machado ao tomar Deleuze como um

    historiador da filosofia que ousou pensar filosoficamente 24. Segundo Machado, se sua

    atividade criadora liga-se essencialmente histria da filosofia, no sentido de instituir a

    leitura do filsofo como parte essencial de seu modo prprio de filosofar 25. Tambm para

    Bento Prado Jr., no pensamento de Deleuze, histria da filosofia e filosofia se entrecruzam, a

    ponto de se tornarem indiscernveis 26.Em suma, no h outro modo de entrar na filosofia de

    Deleuze seno se submetendo aos desvios a que ela nos obriga. Procurando a verdadeira face

    de Deleuze, seremos inevitavelmente confrotados com outras.

    Portanto, para realizar o nosso objetivo de apresentar alguns dos principais conceitos

    da filosofia deleuziana, estabeleceremos uma interseo entre Deleuze e outros filsofos.

    22 HARDT, 1996.p.22.23 Idem.p.22.24 MACHADO, 2009,p.19. Foi Hegel quem iniciou esse estilo de Filosofia em que no h praticamente

    diferena entre Filosofia e histria da Filosofia ou do pensamento, refletindo a partir da tragdia, doestoicismo, do empirismo, do cristianismo, da Fsica, etc. Apesar das diferenas evidentes, Heidegger emuitos outros tambm esto em continuidade com esse estilo filosfico. Deleuze tambm. A ideia de pensar a

    partir de intercessores essencial para ele (MACHADO, R. Interdisciplinaridade para a Filosofia dadiferena. In: Revista Filosofia. Edio 37. Entrevista concedida a Patrcia Pereira. [online] Disponvel nainternet via WWW. URL: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/37/artigo144487-1.asp.Acesso em 05 de agosto de 2010).

    25 Idem. p.2126 PRADO JR., 1996.

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    Inevitavelmente faremos um percurso por autores importantes da histria da filosofia

    apresentando os aspectos relevantes para Deleuze nas suas obras. Esta introduo foi dedicada

    a pensar esse procedimento de leitura.

    A primeira parte da dissertao voltada analogia como uma das formas de

    pensamento do ser que o submete identidade. Plato o exemplo filosfico privilegiado.

    Deleuze prope uma leitura original do mtodo da diviso. O seu objetivo ao analisar o

    mtodo destacar a motivao do platonismo 27. Como vimos acima, a expulso dos

    simulacros o que caracteriza o platonismo, justamente porque, ao invs do simulacro ser

    entendido como uma cpia da cpia, ele uma imagem sem semelhana, uma imagem que

    no estabelece relao de analogia. O simulacro a instncia que compreende uma diferena

    em si, como duas sries divergentes (pelo menos) sobre as quais ele atua, toda semelhana

    tendo sido abolida, sem que se possa, por conseguinte, indicar a existncia de um original e de

    uma cpia 28. Desse modo, o seu projeto mostrar como o pensamento da diferena coincide

    com a reverso do platonismo e a liberao dos simulacros.

    Na segunda parte, apresentaremos a leitura de Deleuze da doutrina kantiana das

    faculdades, cujo cerne a tese segundo a qual o uso concordante entre elas engendrado e

    no natural. Assim, ele pode propor um uso discordante no qual cada faculdade apreende o

    objeto que lhe prprio. o caso da sensibilidade. Para Deleuze, o objeto prprio da

    sensibilidade (o ser do sensvel ou o que d a sentir) a intensidade envolvida em um signo 29.

    27 DELEUZE, 1974, p.259 [DELEUZE, 1971 (1969), p.292].28 DELEUZE, 1988, p.124 [DELEUZE, 1993 (1968),p.95].29 Isso significa que [Deleuze] considera a grande obra de Proust no s um sistema de pensamento, mas

    principalmente uma criao literria que se ope filosofia da identidade e da representao. Assim, se eletorna aRecherche um instrumento da formulao de sua prpria filosofia da diferena, por encontrar nelaum tipo de pensamento em que as faculdades entram em num exerccio transcendente, cada uma atingindo oseu limite (MACHADO, 2009, p.194).

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    Por que essa importncia dada aos signos e (...) aos signos da arte, na estrutura daRecherche?

    A razo a mesma de todos os estudos de Deleuze: o signo ou a partir de Diferena e

    Repetio, a intensidade o que fora o pensamento em seu exerccio involuntrio e

    inconsciente, isto , transcendental. S se pensa sob presso. Na gnese do ato de pensar est a

    violncia dos signos sobre o pensamento 30.

    Na concluso, argumentaremos porque a relao entre filosofia e arte na obra de

    Deleuze no hierrquica graas natureza mesma dos conceitos desenvolvidos por ele. Ou

    seja, ao final do trabalho pretendemos ter elementos para pensarmos a relao entre arte e

    ontologia de modo a preservar a singularidade de cada um desses domnios. Haver espao

    ainda para levantarmos a questo: existe uma filosofia da arte em Deleuze? uma questo

    difcil porque a relao entre arte e filosofia no parece ser orientada no sentido de ser uma

    funo filosfica oferecer critrios de legitimidade arte. Nem as fronteiras parecem estar

    delimitadas pela atribuio do pensamento ao filsofo e da sensao ao artista. Proust e os

    Signos um exemplo de como artistas podem ser lidos como verdadeiros pensadores. Ao

    mesmo tempo, obras filosficas como Diferena e Repetio utilizam procedimentos

    facilmente encontrados em arte. Portanto pressentimos que, se h uma esttica em Deleuze,

    em um sentido muito original.

    30 MACHADO, 2009, p.197.

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    CAPTULO 1

    IDENTIDADE E DIFERENA, ANALOGIA E MULTIPLICIDADE

    1. SELETIVIDADE, HIERARQUIA, DISTRIBUIO

    Um impasse frequente que o leitor de Deleuze enfrenta : como unir a recusa dos

    dualismos proposta pela sua filosofia (em especial, entre essncia e aparncia) com a criao

    incessante de dualismos tais como representao/diferena? E isso no tem fim. Dos anos 70

    em diante, veem-se surgir outros de natureza no muito distinta dos primeiros como entre

    macro e micropoltica, liso e estriado, rizoma e rvore, esquizofrenia e neurose.

    Do mesmo modo, a sua posio sobre as metforas parece ambgua. Deleuze no

    cansa de repetir a sua recusa das metforas, mas, por toda sua obra, a metfora parece ser o

    modo privilegiado de exposio. A proposta de uma ontologia da diferena radicalmente

    oposta estrutura metafrica, porque a metfora pressupe um campo significativo tomado

    como original e outro como derivado sem os quais no poderamos fazer uso do como se....

    Em suma, a metfora analgica, ela deixa subsistir a semelhana com um significado

    originrio que a informa.

    Lemos algo metaforicamente quando no acreditamos que um discurso possa ser uma

    descrio fiel da realidade. Ento, por uma comparao sem correspondncia em um

    determinado estado de coisas, o autor de uma metfora d nfase a um aspecto no contido

    em uma descrio literal. Ocorre que se Deleuze pretende liberar os simulacros ou a potncia

    do falso 31, no h motivo para distinguir sentido literal e sentido metafrico, todo sentido

    31 Trata-se do falso como potncia, Pseudos, no sentido em que Nietzsche diz: a mais alta potncia do falso,(DELEUZE, 1974, p.268 [DELEUZE, 1971 (1969), p.303]).

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    torna-se literal, justamente porque no h uma forma mais adequada que outra para descrever

    a realidade. Por outro lado, ele no deriva disso uma defesa da indiferena ou da indistino

    32. De um modo muito original, a sua filosofia no abre mo de critrios. Porm, o critrio no

    a adequao ou a descrio. Desse modo, entendemos mal se projetamos na obra deleuziana

    raciocnios analgicos como aquele suposto pela estrutura metafrica. Veremos que os

    critrios em Deleuze so sempre imanentes e devem ser encontrados, em ltima instncia, nos

    desdobramento da tese da univocidade do ser. Talvez isso lance luz tambm sobre a forma de

    exposio de sua filosofia.

    De fato, um verdadeiro contrassenso algum dizer-se contra as metforas ou, ainda

    mais amplamente, contra a representao, porque metfora e representao so fatos. A recusa

    de Deleuze , na verdade, voltada contra o tipo de comprometimento ontolgico 33

    pressuposto na estrutura da metfora e da representao. Portanto, para continuarmos, se

    talvez inevitvel ler a maioria das imagens de Deleuze como metforas, no podemos, porm,

    concluir dizendo que ele aceita o tipo de comprometimento ontolgico envolvido nesse uso da

    linguagem.

    Feita essa observao preliminar, afirmamos que h pelo menos trs imagens s quais

    Deleuze recorre para tornar compreensvel o funcionamento de sua ontologia. Seletividade,

    hierarquia e distribuio so imagens ou noes descritivas eleitas por Deleuze para

    explicitar a forma de relacionamento do ser com os entes. Se no concebermos o ser como

    instaurando uma seletividade, uma hierarquia e uma distribuio entre os entes no

    entenderemos as aproximaes de Deleuze de teorias importantes, como o mtodo da diviso

    ou o eterno retorno.

    32 (...) preciso no se deixar enganar com a falsa idia de que o pensador nmade um apologista do caos ouque sua filosofia desordenada e pouco rigorosa (SCHPKE, 2004, p.14).

    33 Agradeo ao professor Ernesto PERINI (UFMG) a sugesto da expresso (talvez usada em outro sentido) emsuas valiosas aulas de ontologia.

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    Em primeiro lugar, o ser seletivo porque confere cidadania ontolgica a este ou

    quele ente. Lembremos da condio do objeto artstico a partir de uma ontologia baseada na

    adequao da realidade e da sua descrio. Nesse contexto terico, diramos que a arte no

    tem cidadania ontolgica. Ela expulsa nessa seletividade baseada em um critrio de

    adequao com a realidade. Em suma, a arte no real. Por outro lado, possvel falarmos em

    uma hierarquia de acordo com esse critrio. H uma hierarquia que mede os seres segundo

    seus limites e segundo seu grau de proximidade ou distanciamento em relao a um princpio

    34. H aqueles que se aproximam mais ou se aproximam menos do ser de acordo com a sua

    capacidade de descrever a realidade. Segundo o critrio de adequao, a cincia tem privilgio

    sobre a arte justamente porque ela descreve melhor a realidade e no se entrega s derivas da

    imaginao.

    Se a hierarquia faz pensar em uma espcie de poltica do ser, a distribuio faz

    pensar a ontologia sob a perspectiva da questo agrria. Deleuze v na assuno de um quadro

    de categorias uma forma de estabelecer divises e partilhas no ser. (...) pois as categorias

    pertencem ao mundo da representao, no qual elas constituem as formas de distribuio de

    acordo com as quais o Ser se reparte entre os entes segundo regras de proporcionalidade

    sedentria 35.

    Porm, mais uma vez, encontramos uma dualidade. H uma distribuio sedentria e

    uma distribuio nmade, h uma hierarquia por participao e h uma anarquia coroada

    (diria-se, um anarquismo ontolgico), e cada uma delas supe uma seletividade especfica.

    34 DELEUZE, 1988, p.77 [DELEUZE, 1993 (1968),p.55].

    35 Idem,p.447 [Idem, p.364]. O conceito de ser distributivo no sentido em que 'no tem um contedo em si,mas apenas um contedo proporcionado aos termos formalmente diferentes dos quais ele predicado'. ParaAristteles, o sentido do ser no pode ser separado dos sentidos irredutveis que as categorias determinam; aunidade do ser enquanto ser no existe fora das categorias substncia, qualidade, quantidade, relao, lugar,tempo, posio, ao, paixo , que so os sentidos irredutveis do ser, os sentidos primitivos dos quais o serse diz, e que nem podem ser reduzidos unidade nem so radicalmente heterogneos. (). Alm disso, oconceito de ser hierrquico. Os termos, as categorias, no tm uma relao igual com o ser. A sucesso dasdiversas categorias () uma sucesso em que h um primeiro sentido primordial (MACHADO, 2009,

    p.54-55).

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    O que isso quer dizer?

    O que caracteriza a distribuio sedentria dispor os entes de modo fixo em torno do

    ser. A semelhana com o ser um critrio de hierarquia dos entes. A participao no ser

    determinada pela semelhana do ente com o ser. Semelhana interna e essencial. Por ter um

    centro idntico a si mesmo, organizador e fixo, Deleuze chama-a de distribuio sedentria. A

    distribuio nmade, ao contrrio, dispe os entes de modo anrquico, sem centro. O critrio

    de hierarquia entre eles no a semelhana, mas apotncia. Quanto mais os entes elevam sua

    potncia, o que equivale a dizer que quanto mais eles se aproximam deles mesmos

    expurgando a relevncia de um critrio exterior, mais eles participam do ser. Por um lado, um

    critrio transcendente e fixo de participao, por outro, um critrio imanente e dispersivo 36.

    H por outro lado uma distribuio totalmente diferente desta, uma distribuio que preciso

    chamar de nomdica, um nomosnmade, sem propriedade, sem cerca e sem medida. A j no

    h partilha de um distribudo, mas sobretudo repartio daqueles que se distribuem num

    espao aberto ilimitado ou, pelo menos, sem limites precisos. Nada cabe ou pertence a algum,

    mas todas as pessoas esto dispostas aqui e ali, de maneira a cobrir o maior espao possvel.(). Tal distribuio mais demonaca que divina, pois a particularidade dos demnios

    operar nos intervalos entre os campos de ao dos deuses, como saltar por cima das barreiras

    ou das cercas queimando as propriedades 37.

    Sem as noes de seletividade, hierarquia e distribuio difcil entender a

    interpretao do eterno retorno de Nietzsche. Uma das teses maiores deDiferena e Repetio

    aquela segundo a qual a repetio seletiva e o seu objeto a diferena, a diferena retorna

    na repetio ou, dito de outro modo, a repetio um processo de afirmao da diferena. O

    36Plato e os Gregos (DELEUZE, 1997 [1993], p.154-155).37 DELEUZE, 1988, p.77 [DELEUZE, 1993 (1968),p.54].

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    eterno retorno s pode fundar uma distribuio nmade porque ele no dispe os elementos

    de acordo com a proximidade de um centro; e sim de acordo com a capacidade de cada

    elemento de repetir-se. E essa reiterao intensiva e no qualitativa. Algo como o que ocorre

    no romance de William Faulkner, Luz em Agosto38

    , em que o modo de compor a histria e

    mesmo de mobilizar o destino dos personagens a insero de uma personagem repetitiva,

    Lena Grove, que constituda por uma srie de comportamentos estereotipados.

    Ao contrrio, encontramos a distribuio sedentria sob duas formas principais na

    histria da filosofia: a analogia e a contradio. Deleuze as enquadra em teorias que fazem

    uma imagem do pensamento a partir do modelo da representao. Isso o obriga a forjar uma

    teoria da representao a partir da qual aspectos essenciais, selecionados das obras de outros

    filsofos, so avaliados. Dentre eles, um filsofo marcante por fazer uso de uma distribuio

    sedentria em ontologia e por sua posio inaugural: Plato.

    2. O MTODO DA DIVISO

    I. O DRAMA DE UM NOIVADO

    A dialtica platnica pode ser considerada uma dialtica da rivalidade, j que, quando

    lanada a pergunta quem o poltico?, a preocupao est em determinar, face aos

    diferentes homens da polis que viro para reclamar esta qualidade, quem efetivamente a

    merece. Comerciantes, agricultores, atletas e mdicos diro: eu sou o poltico, eu mereo esta

    qualidade 39! A dialtica parte constituinte da diviso cujo fim erigir um procedimento no

    38 FAULKNER, 2007.39ESTRANGEIRO: Sabes que todos os comerciantes, agricultores, moleiros, inclusive atletas e mdicos,

    protestariam energicamente junto a estes pastores de homens a quem chamamos polticos afirmando que eles que cuidam da criao dos homens, no apenas dos membros do rebanho, mas tambm dos governantes?

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    qual se torne possvel selecionar, filtrar, dentre as pretenses, a pretenso pura, (...) distinguir

    os pretendentes, distinguir o puro e o impuro, o autntico e o inautntico 40.

    Um dos aspectos irnicos do mtodo nos fazer pensar que ele foi levado a cabo

    graas ao abandono da dialtica e insero de um mito. Porm, exatamente o contrrio. O

    mtodo no foi finalizado, mito e dialtica so dois procedimentos que o constituem. Ele

    rene em si a potncia dialtica e a potncia mtica para realizar a seleo 41. Isso fica claro no

    dilogo, porque o mito surge graas incapacidade de a dialtica realizar sozinha a demanda

    efetiva de Plato, a motivao de sua filosofia.

    O mito (o outro caminho 42, como escreve Plato no Poltico) surge como parte

    integrante do mtodo porque, at o momento, o esforo da diviso no conseguiu impedir de

    maneira satisfatria que os outros homens da polis dissessem: eu sou o poltico. No foi

    possvel impedir que mdicos, agricultores e comerciantes reclamassem, ainda que de maneira

    ilegtima, esta qualidade. O mito surge porque o motivo do mtodo da diviso no , como

    acreditava Aristteles, dividir um gnero em espcies contrrias para subsumir a coisa

    buscada sob a espcie adequada, no entanto, de maneira distinta, a sua finalidade selecionar

    os pretendentes. Ou seja, em certo sentido, a questo no exatamente dizer o que o

    poltico 43, mas quem o poltico 44. Trata-se muito mais de selecionar, de determinar um

    domnio, impedindo tudo que possa vir a bagun-lo, do que, propriamente, analisar esse

    (Poltico,268).40DELEUZE, 1974, p.260 [DELEUZE, 1971 (1969), p.293].41 prprio da diviso ultrapassar a dualidade entre o mito e a dialtica e reunir em si a potncia dialtica e a

    potncia mtica (Idem, p.260 [Idem, p.294]).

    42Poltico, 268.43 ESTRANGEIRO: No teramos ns razes para inquietao quando, ainda h pouco, nos assaltou a suspeitade que talvez houvssemos traado um esboo plausvel do carter real mas que, no entanto, no levramosat o retrato fiel do poltico, pelo fato de no o distinguirmos de todos aqueles que sua volta se agitam e quereclamam uma parte dos seus direitos de pastor? No o separamos suficientemente dos seus rivais paramostra-lo, unicamente, na sua pureza? (Poltico, 268).

    44 Plato no divide de modo imperfeito como dizem os aristotlicos o gnero, caador, cozinheiro,ou poltico; no quer saber o que caracteriza a espcie pescador ou caador de lao. Quem ? e no, oque ? Quer descobrir o autntico ouro puro (FOUCAULT, [19--], p.38).

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    domnio.

    Para realizar a sua finalidade no mtodo da diviso, o mito erige um critrio pelo qual

    as pretenses sero avaliadas. a partir desse critrio de medida que os diversos pretendentes

    de uma determinada qualidade sero julgados. Ser selecionado, ento, qual dentre eles

    pretende de maneira pura e verdadeira (por exemplo, qualidade de poltico) ou, para ser

    mais preciso, qual deles tem a sua pretenso fundada.

    Segundo Deleuze, os trs dilogos que utilizam o mtodo da diviso so o Fedro, o

    Sofista e o Poltico. Neste ltimo, o objetivo encontrar quem o verdadeiro poltico. o

    mito dos tempos arcaicos que erige o critrio pelo qual ser realizada a seleo: o verdadeiro

    poltico, o verdadeiro pastor dos homens, buscando assemelhar-se ao deus arcaico, deve

    cuidar da comunidade humana de uma maneira geral e no apenas de modo especfico

    (alimentao, sade, etc.) 45. Porm,

    (...) o mito circular mostra que a definio do poltico como pastor dos homens no convm

    literalmente seno ao deus arcaico; mas[, apesar disso,] um critrio de seleo da se destaca,

    de acordo com o qual os diferentes homens da Cidade participam desigualmente do modelo

    mtico 46.

    Somente o deus arcaico o fundamento possui a qualidade de poltico em primeiro

    lugar. Esse um privilgio nico que nenhum dos demais pretendentes usufrui, nem mesmo

    aquele que, dentre os homens da polis, pretende a qualidade de maneira mais legtima (no

    caso da qualidade de poltico, o rei47

    ). O mito faz surgir um fundamento, faz surgir aquele

    45 ESTRANGEIRO: Pois bem. Nenhuma arte pretenderia, com maior pressa e maior razo que a arte real, ter asi os cuidados para com a comunidade humana, em seu todo, e constituir-se numa arte de governo doshomens, em geral (Poltico, 276).

    46 DELEUZE, 1974, p. 261 [DELEUZE, 1971 (1969), p.294].47 ESTRANGEIRO: Mas a meu ver, Scrates, esta figura do pastor divino ainda muito elevada para um rei;

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    que possui a qualidade em primeiro lugar (apenas a Justia justa, apenas a Coragem

    corajosa, etc. 48) e que fornece o critrio pelo qual os pretendentes sero julgados. Porm,

    ainda falta dizer algo importante sobre a seleo. necessrio dizer que o fundamento o

    modelo ao qual os pretendentes devem se adequar para receberem a qualidade. A palavra

    fundamento adquire um significado peculiar, a saber, o mesmo que a palavra modelo.

    Estar fundamentado estar de acordo com o modelo.

    Por serem os pretendentes aqueles que so submetidos a uma adequao e o

    fundamento aquele que fornece o critrio de adequao, os pretendentes possuem a qualidade

    sempre em segundo lugar, em terceiro, em quarto e assim por diante. por isso que

    participar , na melhor das hipteses, ter em segundo lugar 49. Funda-se uma hierarquia ou,

    nos termos usados por Deleuze, uma participao eletiva 50. Depois do fundamento, qual

    deles merece a qualidade? Qual dos pretendentes que possui a verdadeira e pura pretenso, a

    boa potncia, ou para ser mais preciso: qual deles se assemelha mais ao fundamento, ao

    modelo?

    Temos trs personagens que fazem do mtodo da diviso o drama de um noivado. O

    primeiro o pai: o imparticipvel, o fundamento (a Justia, a Coragem, etc.). O segundo a

    filha: o participado, o objeto da pretenso (a qualidade de justo, a qualidade de corajoso, etc.).

    O terceiro o noivo: o participante, o pretendente (o justo, o corajoso, etc) 51.

    O que distingue um pretendente do outro a maior ou a menor semelhana que cada

    um tem com o fundamento. Poderamos dizer, no caso do Poltico, aqueles que cuidam mais e

    aqueles que cuidam menos da comunidade dos homens de um modo geral e no apenas

    os polticos de hoje, sendo por nascimento muito semelhantes aos seus sditos, aproximam-se deles, aindamais, pela educao e instruo que recebem (Poltico, 275).

    48 DELEUZE, 1974, p.264 [DELEUZE, 1971 (1969), p.299].49 Idem, p.260 [Idem, p.294].50 Idem. p.261 [Idem. p.294].51 Idem. p.264 [Idem. p.294].

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    especificamente, sendo que esse o critrio do modelo que deve ser passvel de ser

    assemelhado. porque a semelhana existe em relao ao fundamento, ao pai, que ela uma

    relao interior, pois no acontece entre duas coisas, ou seja, entre o pretendente e a

    qualidade. Ao contrrio, ela acontece entre uma coisa e a ideia52

    da coisa qual se assemelha.

    Existe uma mediaopor um terceiro personagem (a essncia, o fundamento, o pai) que serve

    como critrio de seleo. Da porque o fundamento pode ser chamado de modelo e os

    pretendentes de cpias. O pretendente deve modelar-se no pai, passar pelo critrio de seleo

    fornecido a partir dele, para ganhar a filha. Para possuir determinada qualidade, o pretendente

    deve assemelhar-se ideia que a possui sempre em primeiro lugar.

    II. PLATO E OS GREGOS

    Alguns dos principais filsofos interpretados por Deleuze constroem suas filosofias

    utilizando um mtodo seletivo. So os casos de Plato e Nietzsche. Para Deleuze, o ser

    seletivo. Porm o que distingue esses filsofos em relao a esse mesmo aspecto no apenas

    o modo pelo qual, em cada caso, a seleo realizada, enfatiza-se tambm aquilo que ela

    seleciona. Em Plato, o modo pelo qual ele realiza a seleo erigindo uma transcendncia e

    o que ele seleciona so as boas pretenses, as boas cpias.

    A seleo de pretendentes remonta esfera da polis que constitua um espao

    horizontal de disputa entre os cidados, onde cada um defendia a sua opinio na tomada de

    decises que diziam respeito cidade. No apenas questes polticas, mas toda espcie de

    assunto era objeto de discusso. O espao pblico da cidade grega formava campos de

    52Por que ideia se no Polticono h uma teoria das ideias? Segundo DELEUZE, o projeto platnico saparece verdadeiramente quando nos reportamos ao mtodo da diviso. Desse modo, mesmo a teoria dasideias tem a sua motivao passvel de ser desvelada a partir do mtodo da diviso. DELEUZE, 1974, p.261[DELEUZE, 1971 (1969), p.292].

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    imanncia, no sentido em que a relao estabelecida entre os cidados era horizontal, no

    existia nenhuma medida exterior a eles que fosse determinante nessa relao (por exemplo,

    um aparelho de Estado). Em contrapartida, apesar de todos serem equivalentes (sociedade de

    amigos), esses campos de imanncia eram preenchidos por rivais livres. Os cidados eram

    obrigados a se diferenciarem entre si atravs da defesa de sua prpria opinio, de seu prprio

    ponto de vista, em suma, buscavam realizar a sua pretenso.

    O problema que incomodava Plato no que diz respeito a esses campos de imanncia

    que eles permitiam que qualquer um pretendesse a qualquer coisa. No existiam critrios

    absolutos que transcendessem disputa entre os cidados e que servissem como medida para

    julgar as pretenses. Os critrios percebidos por Plato como sendo os determinantes na

    esfera pblica eram, sob seu ponto de vista, relativos demais (por exemplo, a persuaso). O

    fato de um discurso ser ou no verdadeiro uma questo secundria em relao sua

    capacidade de convencimento. Relativos, porque no dependiam de uma medida exterior e,

    sobretudo, invarivel. O que Plato faz instaurar uma transcendncia na seleo dos

    pretendentes 53. Dizer que existem padres eternos pelos quais devem ser julgadas (avaliadas)

    as pretenses. No mtodo da diviso, o mito assume a funo de erigir tais padres

    normativos (os modelos). a necessidade da insero de um mito no dilogo, como substituto

    da dialtica, que permite a Deleuze afirmar que o mtodo platnico no aplicado buscando

    simplesmente uma definio (dividir um gnero em espcies contrrias para subsumir a coisa

    buscada sob a espcie adequada), no entanto, mais do que isso, ele um procedimento

    seletivo e buscafazer a diferena.

    53 O professor Marcelo MARQUES (UFMG), em seu livro Plato, Pensador da Diferena Uma leitura doSofista (2006), oferece uma descrio da polis como espao habitado por discursos diversos, dentre eles ofilosfico, peculiar pela sua posio de exterioridade. O filsofo socrtico-platnico notrio por exercerum olhar de estrangeiro com relao aos assuntos da cidade; uma perspectiva que pretende 'escapar' das ouultrapassar as obrigaes e determinaes humanas, tomando como referncia uma medida divina, absoluta,que relativiza e subverte os valores humanos comuns, tal como vemos na famosa digresso do Teeteto(MARQUES, 2006. p.22).

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    III. POR QUE NO H MITO NO SOFISTA?

    At agora o que descrevemos sobre o mtodo da diviso, segundo Deleuze, convm

    perfeitamente ao Poltico e ao Fedro. Ambos unem neste mtodo potncia mtica e

    potncia dialtica. Mas, e o Sofista? Por que ele est entre os dilogos em que aparece o

    mtodo da diviso sendo que nele no h nenhum mito? Neste dilogo, o mito abandonado,

    ou seja, ele no evocado para desempenhar o seu papel no mtodo da diviso porque a

    pergunta sobre qual dos pretendentes pretende de maneira pura e verdadeira substituda pela

    pergunta oposta: qual deles no possui a verdadeira e pura pretenso e ainda assim pretende

    54? A questo agora no mais selecionar o verdadeiro pretendente, e sim o falso 55. Ser

    possvel, recorrendo ao mito, fazer surgir um modelo do falso pretendente (ou denunci-lo)?

    Ou mesmo, possvel uma seleo que selecione (ou condene) os falsos pretendentes?

    Nisto consiste toda dificuldade e aventura do Sofista: a seleo lida diretamente com

    aquilo que no deve ser selecionado, com aquilo que deve necessariamente ser excludo na

    seleo, com o falso pretendente como tal. Paradoxalmente, com a tentativa de aprisionar o

    sofista, o mtodo aplicado para selecionar aquilo que , necessariamente, excludo da

    seleo: o no-ser. Porm, essa tentativa aponta, ao mesmo tempo, para a motivao da

    filosofia platnica e para o que significa revert-la: selecionar de outra forma ou selecionar

    no mais aquilo que est sob a ao dos modelos, ao contrrio, o que escapa a essa ao.

    Porm, o que escapa a ela? Todos os falsos pretendentes?

    No Poltico, o mdico reclama, ilegitimamente, a qualidade de poltico. Ento, ele

    54DELEUZE, 1974, p.281 [DELEUZE, 1971 (1969), p.295].55(...) no Sofista, o mtodo da diviso paradoxalmente empregado no para avaliar os justos pretendentes,

    mas ao contrrio para encurralar o falso pretendente como tal, para definir o ser (ou antes o no-ser) dosimulacro (Idem, p.281 [Idem, p.295]).

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    seria o falso pretendente? Mais ou menos. Por mais que ele no ocupe o lugar do rei, ou seja,

    daquele que possui a qualidade em segundo lugar (depois do deus arcaico que possui em

    primeiro), de uma forma ou de outra, ele continua sob a ao do modelo, assim ele ocupa um

    lugar na hierarquia. Ele uma cpia imperfeita, porm, ainda assim, uma cpia. No caso do

    mdico que pretende a qualidade de poltico, poderamos dizer: basta achar um modelo

    adequado para ele e o mesmo procedimento para cada pretendente. Existe um modelo para o

    mdico que, apesar de pretender a qualidade de poltico indevidamente, pretenderia a

    qualidade de mdico de maneira devida. Multiplicaramos os modelos o quanto fosse

    necessrio: para o mdico, para o amante, para o justo. No entanto, como aplicar tal

    procedimento ao sofista? A que qualidade ele reclama legitimamente, quando sabemos que

    exatamente o fato de ele reclamar toda e qualquer qualidade que o caracteriza 56? Como achar

    um modelo para o sofista quando sabemos que ele tem por peculiaridade sempre se esquivar

    de qualquer modelo? H um modelo do no-ser? impossvel aplicar o mesmo procedimento

    do mtodo da diviso ao sofista, porque ele no uma falsa cpia e sim um simulacro57. Por

    esse motivo, segundo Deleuze, encontramos a razo da sintomtica ausncia do mito no

    mtodo da diviso aplicado no Sofista.

    Plato divide a arte mimtica em duas outras artes: a de produzir cpias e a de

    produzir simulacros 58. A primeira produz uma imagem a partir de uma semelhana com um

    modelo. Em contrapartida, a segunda arte tambm produz uma imagem s que a partir de uma

    diferena com o modelo. Nela enfatiza-se a diferena, no a semelhana. O simulacro

    constitudo sobre uma disparidade, sobre uma diferena, ele interioriza uma dissimilitude 59.

    56A simulao o prprio fantasma, isto , o efeito do funcionamento do simulacro enquanto maquinaria,mquina dionisaca (DELEUZE, 1974, p. 268 [DELEUZE, 1971 (1969), p.303]).

    57O prprio sofista o ser do simulacro, o stiro ou centauro, o Proteu que se imiscui e se insinua por todaparte (Idem, p.261 [Idem, p.295]).

    58Sofista, 236.59 DELEUZE, 1974, p.263 [DELEUZE, 1971 (1969), p.297].

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    Dessa forma, a cpia e o simulacro, para Plato, so duas imagens de naturezas distintas.

    Os dois tipos de imagem so pretendentes. O simulacro sempre um falso

    pretendente, porque construdo a partir de uma diferena com o modelo, ento ele nunca

    passa no critrio oferecido, que se baseia exatamente no grau de semelhana entre a cpia e o

    modelo para, dessa forma, fundar uma participao eletiva. O simulacro, de maneira oposta

    cpia, pretende por meio de uma diferena. Na sua relao com a qualidade, falta a mediao,

    o pai ou o fundamento que sirva como modelo e, consequentemente, produza a semelhana,

    parmetro da pretenso. O simulacro pretende a qualidade por baixo do pano, graas a uma

    agresso, de uma insinuao, de uma subverso, contra pai e sem passar pela Ideia 60. De

    maneira diversa, a falsa cpia construda ainda a partir de uma semelhana com o modelo,

    mesmo que distante. O simulacro uma mquina de metamorfoses, no enfatiza a semelhana

    com a essncia, ao contrrio esquiva-se dela. A despeito disso, o simulacro possui uma

    potncia que lhe garante vir tona. Se procuramos uma proximidade entre o conceito de

    simulacro e o de acontecimento, que, por sua vez, d unidade Lgica do Sentido, ela deve

    ser encontrada na potncia de furtar-se ao presente, em suma, furtar-se de uma determinao

    temporal (atualizao), o que denota a categoria do intempestivo, o devir fora de toda

    limitao.

    Quando lanada a tarefa de selecionar os simulacros, deve-se levar em conta a

    natureza deste pretendente, assim como no mtodo da diviso leva-se em conta a natureza da

    cpia. Dessa forma, a seleo dos simulacros deve ser feita no mais visando quilo que

    assemelha e sim quilo que difere. A diferena substitui a semelhana na funo de parmetro

    para selecionar. Numa tal seleo, a conseqncia o desabamento da hierarquia entre cpias

    e modelo. Instaura-se uma horizontalidade: um mundo de simulacros ou anarquias

    60 DELEUZE, 1974, p. 261 [DELEUZE, 1971 (1969), p.296].

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    coroadas 61. A seleo das cpias j deixa perceber esse afundamento: se nenhuma das cpias

    possui a qualidade em primeiro lugar, todas elas conservam uma diferena com o modelo,

    assim a imitao adquire de forma necessria um sentido pejorativo 62. As cpias, assim como

    os simulacros, tambm no passam, todas, de pura simulao. No seria tambm o rei uma

    falsa cpia do deus arcaico, apesar de ser o primeiro da fila dos pretendentes, na medida em

    que s o modelo possui a qualidade em primeiro lugar 63? E no a essa concluso que chega

    Plato quando admite a distncia do rei com o deus arcaico? No mais possvel falar em

    cpias verdadeiras, pois todas as cpias esto destinadas falsidade quando no passam

    todas de pura simulao. A semelhana est na superfcie como simulao, enquanto que, em

    profundidade e internamente, h apenas diferenas. Este o princpio que rege a reverso do

    platonismo: a afirmao da diferena em oposio representao, entendida como o domnio

    das cpias e dos modelos e que tem a semelhana como pressuposto, ou, em outros termos, a

    liberao dos simulacros.

    Costuma-se dizer que, segundo Plato, h dois mundos. Em certo sentido, para

    Deleuze, essa afirmao verdadeira, porm, desde que no estejamos nos referindo somente

    distino entre o mundo das aparncias e o mundo das essncias. Mas, sobretudo,

    distino entre as cpias, das essncias-aparncias, da semelhana interior, o domnio da

    representao; e, do outro lado, os simulacros e a diferena interiorizada, o domnio da

    filosofia da diferena. Para Deleuze, a primeira distino somente a dualidade manifesta,

    aquela que tem como funo tornar possvel uma distino mais importante, a segunda,

    denominada dualidade latente.

    A motivao da filosofia platnica no (...) distinguir essncia e a aparncia, o

    61Idem, p.268 [Idem, p.303].62DELEUZE, 1974, p. 263 [DELEUZE, 1971 (1969), p.298].63E no o mesmo tipo de impasse que coloca Scrates, indistinto em relao ao sofista no final do dilogo?

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    inteligvel e o sensvel, a Ideia e a imagem, o original e a cpia, o modelo e o simulacro 64.

    Ao procurar a definio do sofista (ou aprision-lo), Plato percebe que o simulacro no pode

    ser includo em uma relao com um modelo, como prprio das cpias, sendo assim deve

    ser excludo. A dualidade latente existe entre os que devem ser excludos, os simulacros, e os

    que devem ser selecionados, as cpias. O papel do platonismo para grande parte da filosofia

    foi balizar o seu domnio, isto , em fund-lo, selecion-lo, excluir dele tudo o que viria a

    embaralhar seus limites 65. Plato estabelece a representao como o domnio positivo da

    filosofia.

    Assim o mtodo da diviso, procedimento pelo qual Plato busca selecionar os

    pretendentes, mostra-nos qual a motivao de sua filosofia: trata-se de assegurar o triunfo

    das cpias sobre os simulacros, de recalcar os simulacros, de mant-los encadeados no fundo,

    de impedi-los de subir superfcie e insinuar-se por toda parte 66.

    IV. A MOTIVAO DO PLATONISMO

    Analisamos como o mtodo da diviso, utilizado nos dilogos platnicos, busca

    responder pergunta quem merece tal qualidade? (quem o poltico?; quem o

    amante?). Visto que diferentes homens da polisreclamaro uma mesma qualidade, preciso

    erigir um procedimento pelo qual seja possvel selecionar: separar o verdadeiro pretendente

    do falso. O mito substitui a dialtica com a funo de construir um modelo que servir de

    critrio para a seleo. Os pretendentes devem estar de acordo com o modelo (o pai), eles

    devem pretender a qualidade (a filha) tornando-se cpias (noivos). A semelhana ser o

    parmetro da pretenso e o que fundar uma hierarquia das participaes, uma fila de

    64 Idem. p.262 [Idem. p.295].65 DELEUZE, 1974. p.264 [DELEUZE, 1971 (1969). p.299].66 Idem. p.262 [Idem. p.296].

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    pretendentes (participao eletiva).

    Porm, no Sofista, o mtodo da diviso paradoxalmente aplicado quilo que, de

    maneira necessria, no deve ser selecionado. O mtodo da diviso aplicado ao falso

    pretendente. A tentativa achar um modelo para o falso pretendente. Mas um falso

    pretendente no maneira do mdico em relao qualidade poltica e sim maneira do

    sofista em relao a qualquer qualidade. Aprisionar o sofista tentar achar um modelo para

    aquilo que no aceita modelos, pois ele reclama qualquer qualidade (simulao e

    mascaramento). O sofista aquele que sempre se esquiva dos modelos, porque ele pretende a

    qualidade por meio de uma diferena e no por meio de uma semelhana. Isso caracteriza-o

    como simulacro: a diferena como parmetro da sua pretenso.

    O Sofistadeixa transparecer um compromisso que a reverso do platonismo assumir

    como o seu: selecionar simulacros, tomar a diferena como princpio para a seleo. Se a

    motivao da filosofia platnica selecionar cpias, selecionar os pretendentes que

    pretendem a partir de uma semelhana com um modelo e excluir os simulacros, a motivao

    da reverso do platonismo selecionar exatamente estes ltimos, pois o critrio para a sua

    seleo a diferena.

    3. ARISTTELES CONTRA PLATO: ESPECIFICAR OU SELECIONAR?

    Vimos como Plato ocupa um lugar inaugural na histria da representao. O seu

    papel fundar o domnio no qual a filosofia se desenvolver. No entanto, por causa mesmo

    desse lugar instaurador, o monstro da diferena ainda se insinua por todos os lados. como o

    animal em vias de ser domado; seus movimentos, numa ltima crise, do melhor testemunho,

    do que em estado de liberdade, de uma natureza perdida: o mundo heraclitiano freme no

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    platonismo 67. Segundo Deleuze, possvel vislumbrar a diferena em estado puro nos

    dilogos e a reverso do platonismo assume esta posio ambgua: "que esta reverso

    conserve muitas caractersticas platnicas, isto no s inevitvel, como desejvel" 68.

    Tambm no motivo para espanto a linguagem psicanaltica de Plato e o Simulacro,

    porque o objetivo de Deleuze justamente trazer tona o que est latente nos dilogos sob a

    significao manifesta. O ponto encontrar o simulacro ou a diferena no momento mesmo

    em que ela deixa de ser o foco da filosofia, ao menos em seus momentos mais clebres. Nesse

    sentido, possvel reconhecermos o papel duplo de Plato e tomarmos a sua obra tambm

    como uma filosofia da diferena 69.

    A crtica de Aristteles ao mtodo da diviso compreende mal o que est em jogo,

    porque as suas exigncias so j as exigncias da representao, e exatamente o elemento

    frutfero para se pensar a diferena que o filsofo censura no mtodo. Segundo Aristteles, o

    problema que, ao pretender dividir um gnero em espcies contrrias para subsumir a coisa

    buscada sob a espcie adequada 70, o mtodo opera sem um termo mdio que seria capaz de

    nos levar a decidir em qual dos dois lados opostos da diviso a encerraramos. Ento a crtica

    que no h necessidade lgica no modo como se opera a diviso 71. Ao contrrio, ela

    procede sem mediao, de uma singularidade a outra.

    67 DELEUZE, 1988, p.111[DELEUZE, 1993 (1968), p.83].68 DELEUZE, 1988, p.110 [DELEUZE, 1993 (1968), p.82].69 Sem ter Deleuze como referncia, o projeto foi levado a cabo pelo professor Marcelo Pimenta MARQUES

    (UFMG) em seu livro Plato, Pensador da Diferena: Uma Leitura do Sofista (2006).70 DELEUZE, 1974, p.259 [DELEUZE, 1971 (1969), p.292-293].71 Para Aristteles, a diviso platnica por dicotomias consiste em dividir os gneros em espcies por suas

    diferenas opostas, de modo a explicar as relaes entre as ideias e legitimar a predicao. Plato parte de

    uma ideia composta e, por uma diviso metdica e exaustiva, reconstitui racionalmente o real. Trata-se assimde um mtodo sinttico que opera dicotomias sucessivas e eliminaes consecutivas, produzindo umaclassificao. Considerando a diviso platnica um 'silogismo impotente', Aristteles critica-a por noestabelecer uma ligao analtica entre as noes e proceder sem mediao, isto , sem termo mdio, demodo que a concluso no apresenta nenhum carter de necessidade lgica. O mtodo platnico de diviso um mtodo sinttico que pede que se lhe conceda justamente o que ele deve demonstrar, pois precisoconhecer previamente a natureza da coisa a ser definida para escolher as diferenas que vo servir parademonstr-la. Assim, o mtodo da diviso incapaz, segundo Aristteles, tanto de provar quanto de refutar(MACHADO, 2009, p.46).

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    Segundo Aristteles, trata-se de dividir um gnero em espcies opostas; ora, este

    procedimento no carece apenas de 'razo' por si mesmo, mas tambm de uma razo pela qual

    se decida que algo est do lado de tal espcie mais que de outra. Por exemplo, divide-se a arte

    em artes de produo e de aquisio; mas por que a pesca com linha est do lado da aquisio?

    O que est faltando a mediao, isto , a identidade de um conceito capaz de servir de meio

    termo 72.

    Lembremos que o mito assumia justamente o papel de erigir uma instncia que

    serviria de mediao. O mito instaurava uma transcendncia frente aos elementos tornando

    possvel continuar a diviso. Porm, na direo inversa de Deleuze, Aristteles ignora o mito

    como parte integrante do mtodo 73, porque o mito no possui um estatuto conceitual; e sim

    meramente imaginrio ou fictcio.

    Em Aristteles, o problema dividir os gneros em espcies e ele fracassa quando

    projeta a expectativa de que funcione da mesma forma em Plato. Pelo contrrio, a

    interpretao de Deleuze nos sugere que o objetivo do mtodo selecionar, instaurar um

    domnio, evitando ao mesmo tempo tudo aquilo que possa vir a bagun-lo. Nesse sentido,

    atravs da representao, h uma continuidade de Plato a Aristteles, porm enquanto um

    pretende selecionar ou fundar, o outro quer especificar; enquanto a questo para o primeiro

    fundar um domnio, para o outro organizar ou distribuir os elementos em um domnio j

    instaurado. Em Aristteles, a diferena inscrita ou mediada no conceito e no mais tomada

    imediatamente como em Plato

    74

    .

    72 DELEUZE, 1988, p.111-112 [DELEUZE, 1993 (1968), p.83].73 Mas esta introduo do mito parece confirmar todas as objees de Aristteles: a diviso, carente de

    mediao, no teria qualquer fora probante e deveria ser substituda por um mito que lhe forneceria umequivalente de mediao sob uma forma imaginria (Idem. p. 114 [Idem. p.86]).

    74 A est um dos elementos que o levam a considerar a obra de Aristteles como uma filosofia da

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    A pergunta inevitvel : como possvel proceder sem mediao? Alguma teoria

    satisfaz a exigncia da singularidade, do simulacro? Como no submeter a diferena

    identidade de um conceito e, ainda assim, conseguir pens-la?

    4. A FORMA DA QUESTO

    Para Deleuze, h uma concepo de essncia assumida pela filosofia da identidade e

    ela, por sua vez, supe um modo especfico de formular um problema filosfico.

    A Idia, a descoberta da Idia, inseparvel de um certo tipo de questo. Primeiramente, a

    Idia uma 'objetidade' ['objectit'] que, como tal, corresponde a uma maneira de levantar

    questes. Ela s responde ao apelo de certas questes. no platonismo que a questo da Idia

    determinada sob a forma: Que ...? Esta questo nobre tida concernente essncia e ope-

    se a questes vulgares que remetem apenas ao exemplo ou ao acidente 75.

    A questo que ?prejulga a Idia como simplicidade da essncia 76. Nos dilogos,

    Scrates no cessa de censurar seus interlocutores por responderem com meros exemplos s

    suas perguntas. o caso do problema da justia que no bem colocado quando dizemos

    quem justo? ou quando se justo?, mas sim quando questionamos o que a justia?.

    Porm, ao invs de Plato ser por isso aquele que assume a posio de um essencialismo

    abstrato, Deleuze interpreta essa correo da pergunta de um modo muito peculiar. Segundo

    ele, Plato no quer tomar a questo o que ? como o verdadeiro problema. Levant-la

    representao: o privilgio da identidade sobre a diferena est na concepo do gnero como o quepermanece o mesmo ou idntico para si, tornando-se outro ou diferente nas diferenas que o dividem. Omtodo da diviso tornou-se um procedimento de especificao (MACHADO, 2009. p.52).

    75 O Mtodo de Dramatizao (DELEUZE, 2006, p. 130 [DELEUZE, 2002 (1967), p.132]).76 Idem. p. 130[Idem. p.132].

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    durante os dilogos apenas um procedimento irnico para apontar para as condies

    segundo as quais as questes como quem?ou quando?ganham o seu alcance e sentido ideais.

    (...) a questo que ?acaba animando apenas os dilogos ditos aporticos 77. como se,

    enquanto os interlocutores inbeis ou os sofistas se satisfazem permanecendo no plano dos

    simples exemplos empricos, Scrates buscasse a ideia no como uma essncia 78, mas como

    um campo problemtico positivamente determinvel em funo de uma tipologia, de uma

    topologia, de uma posologia, de uma casustica transcendentais 79. A pergunta o que ?(por

    consequncia, tambm a ironia) tem, para Deleuze, uma funo propedutica de apontar, para

    alm das solues empricas, o campo problemtico das ideias. exatamente por isso que ele

    interpreta o mtodo da diviso a partir da questo quem? (quem o poltico? quem o

    sofista?).

    A ambiguidade da leitura deleuziana da obra de Plato reside no fato de encarar ao

    mesmo tempo o mtodo da diviso como um procedimento seletivo no qual o simulacro

    excludo e como um procedimento para percorrer a ideia como multiplicidade. Como isso

    possvel? No uma ambiguidade involuntria. Deleuze assume a afinidade do platonismo

    com a sua reverso. Convm levar em conta o fato de que, quando fala positivamente do

    mtodo da diviso, Deleuze j no o considera como tentativa de fundar uma mediao graas

    transcendncia de uma instncia erigida pelo mito, ou seja, como nos parece habitual em sua

    obra, no sobre o mesmo aspecto que reside o elogio e a recusa. Ao contrrio, Deleuze

    elogia o mtodo por proceder, sem mediao, de uma singularidade a outra. Assim, a questo

    77 Idem [Idem].

    78 A Idia de modo algum a essncia. O problema, como objeto da Idia, encontra-se do lado dosacontecimentos, das afeces, dos acidentes, mais que do lado da essncia teoremtica. A Idia desenvolve-senos auxiliares, nos corpos de adjuno que medem seu poder sinttico, de modo que o domnio da Idia oinessencial. Ela se reclama do inessencial de uma maneira deliberada, com tanta obstinao quanto aquelacom a qual o racionalismo, ao contrrio, reclamava a posse e a compreenso da essncia. O racionalismo quisque o destino da Idia estivesse ligado essncia abstrata e morta; e na medida em que a forma problemticada Idia era reconhecida, ele ainda queria que esta forma estivesse ligada questo da essncia, isto , ao'Que ?' (DELEUZE, 1988, p.304 [DELEUZE, 1993 (1968), p.242-243]).

    79 O Mtodo de Dramatizao (DELEUZE, 2006, p. 130 [DELEUZE, 2002 (1967), p.132]).

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    mostrar como no est em jogo uma arbitrariedade por causa da ausncia de mediao, mas

    uma determinao de dimenses singulares, de dinamismos especficos ideia. A questo de

    Plato (como na expresso coloquial)fazer a diferena.

    O que h de insubstituvel no platonismo foi bem visto por Aristteles, embora ele faa

    precisamente disso uma crtica contra Plato: a dialtica da diferena tem um mtodo que lhe

    prprio a diviso , mas esta opera sem mediao, sem meio-termo ou razo, age no

    imediato e se reclama das inspiraes da Idia mais que das exigncias de um conceito em

    geral. verdade que a diviso, em relao suposta identidade de um conceito, um

    procedimento caprichoso, incoerente, que salta de uma singularidade a outra. Mas, do ponto

    de vista da Idia, no esta a sua fora? E em vez de ser um procedimento dialtico entre

    outros, que devesse ser completado ou substitudo por outros, no a diviso, no momento em

    que ela aparece, que substitui os outros procedimentos, que rene toda a potncia dialtica em

    proveito de uma verdadeira filosofia da diferena e que mede, ao mesmo tempo, o platonismo

    e a possibilidade de reverter o platonismo? 80.

    Quando Deleuze diz que, de acordo com o mtodo da diviso, passamos de uma

    singularidade a outra, no podemos entificar esse termo e entendermos, de modo algum, que

    passamos de uma coisaa outra. A objetidade [objectit] da ideia ou o solo sobre o qual a

    diviso encontra abrigo deve ser encontrado nos seus dinamismos espao-temporais. Sem

    eles [diz Deleuze], permaneceramos sempre nas questes que Aristteles levantava contra a

    diviso platnica: e de onde vm as metades? 81. A singularidade uma noo que remete a

    uma espcie de operao especfica, interna ideia, toposou lugares ideais. Nesse sentido,

    casos como aqueles dos dilogos sobre a pesca com linha (cercar-bater ou bater de cima

    80 DELEUZE, 1988, p.111 [DELEUZE, 1993 (1968), p.83].81 Idem. p. 350 [Idem. p.281].

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    para baixo ou de baixo para cima) no so determinaes empricas, mas propriedades

    internas da ideia, dinamismos singulares e ideais. (...) v-se bem isso no processo platnico

    da diviso, que age apenas em funo de duas direes, da direita e da esquerda, e com a

    ajuda, como no exemplo da pesca com linha, de determinaes do tipo 'cercar-bater', 'bater de

    cima para baixo de baixo para cima' 82. Percebe-se que essas objetidades, s quais

    Deleuze pretende dar destaque, so melhor determinadas a partir de questes como quem?

    onde? quando? como?, principalmente porque no so entidades, substncias ou essncias,

    mas processos ou dinamismos.

    Continuaremos explorando a noo deleuziana de ideia. Ela no uma essncia

    idntica a si mesma, nem um conceito geral que permite subsumir os casos. Menos ainda ela

    estabelece uma relao de analogia com a aparncia. Ento, perguntamos, qual o estatuto da

    ideia e quais so os critrios de uma ideia?

    5. A IDEIA

    At agora, colocamos o problema da seguinte forma: possvel pensar para alm da

    analogia? possvel pensar algo sem ir at um significado originrio que o seu princpio de

    inteligibilidade? A analogia preserva as caractersticas da filosofia da representao porque ela

    supe um significado originrio e idntico a si mesmo a partir do qual outro termo explicado

    atravs dele porque participa do seu sentido por semelhana. A tarefa do pensamento

    ascender at essa origem, ir rumo a essa identidade primeira. Devemos ir rumo essncia,

    alm de todos os acidentes, pequenas diferenas e aspectos inessenciais. Por isso questes

    contextuais como quem?, onde?, quando?so irrelevantes perto da questo o que ?, sendo

    82 Podemos ter uma noo da complexidade e da sistematicidade do pensamento deleuziano se lembrarmos que,alm desse exemplo platnico, Deleuze relaciona a relao entre fonemas em uma estrutura (por exemplo,

    p/d) e o esquematismo kantiano. DELEUZE, 2006, p.132 [DELEUZE, 2002 (1967), p.135].

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    elas talvez mais apropriadas s cincias empricas como a histria, a psicologia ou a biologia

    83. O filsofo, ao contrrio, deve perguntar: o que algo para alm de todas as suas

    manifestaes e aparncias? Obviamente, essa no a tese de Deleuze. Alm de no

    encontrarmos nesse autor uma estratgia que consiste em reduzir a filosofia a um outro campo

    do saber (como literatura), pois ele apostava na especificidade da filosofia, Deleuze ainda

    defende que os grandes filsofos pensaram com questes casusticas ou contextuais 84.

    Mas no deveramos supor que a analogia (e, consequentemente, seu essencialismo)

    prpria apenas de uma leitura do platonismo, porque certo que algumas categorias modernas

    de pensamento podem ser entendidas a partir dela. Por exemplo, no tambm a estruturaum

    quadro normativo anterior aos fenmenos? Ela no os determina analogicamente?

    justamente esse tipo de raciocnio que levar Deleuze e Guattari a recusarem o complexo de

    dipo como um quadro explicativo para as manifestaes do desejo. Tendo-o como drama

    explicativo a questo clnica apenas reconhecer os personagens nos fenmenos: o meu

    pai, a minha me.

    Tambm em Mil Plats, reaparece a crtica da analogia.Deleuze e Guattari falam do

    devir-animal nos fenmenos de mimetismo em tribos indgenas, em casos clnicos e em obras

    de arte. Eles defendem que os homens no imitam os animais por analogia. No se imita a

    figura do pssaro, assim como, lembrando o exemplo de Sodoma e Gomorra de Proust, o

    inseto no imita a orqudea. Um devir no uma correspondncia de relaes. Mas

    tampouco ele uma semelhana, uma imitao e, em ltima instncia, uma identificao 85.

    Eles recusam at mesmo a compreenso atravs de uma homologia estrutural entre dois

    83 Foi justamente a posio de Ferdinand ALQUI durante a apresentao de DELEUZE Socit Franaisede Philosophieem 1967 (O Mtodo da Dramatizao).

    84 Na sua apresentao Socit Franaise de Philosophie(DELEUZE, 2006, p.129-154 [DELEUZE, 2002(1967), p.131-162]), DELEUZE afirma que talvez apenas HEGEL tenha estabelecido sua filosofia em tornoda questo o que ?.

    85 DELEUZE & GUATTARI, 1997 (1980), p.16.

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    grupos de elementos (o casamento para a mulher aquilo que a guerra para o homem,

    donde decorre uma homologia da virgem que se recusa ao casamento e do guerreiro que se

    disfara de moa). Parece-nos que Franca D'Agostini tem toda razo quando diz que Deleuze

    recusa toda pr-estruturao lgica normativa86

    e procura pensar o acontecimento no

    momento mesmo de sua gnese, sem refleti-lo em qualquer outra instncia, seja ela

    lingustica, histrica ou metafsica.

    A crtica da analogia recorrente na obra de Deleuze. Quando nos dedicarmos a

    Proust, veremos como, um pouco antes de O Anti-dipo, a analogia entre dois momentos

    distintos no tempo para explicitar o funcionamento da memria em Proust j era questionada.

    Mais uma vez, constrangendo a nossa expectativa de reconhecimento dos autores, Deleuze

    defende que o essencial daRecherche no a memria 87.

    Em Diferena e Repetio, gnese e estrutura no so opostos 88. No entanto, ao

    mesmo tempo em que a estrutura no se confunde com o fenmeno, ela no um alm. Ao

    contrrio, um estado de coisas uma atualizao da estruturae a atualizao um processo

    imanente de diferenao, no de semelhana. Deleuze reinvindica para a estrutura um

    estatuto transcendental no sentido de que ela a condio de um estado atual de coisas, assim

    ela imanente ao fenmeno, mas sem se confundir com ele 89.

    86 D'AGOSTINI, 2002,p.376.87 Os campanrios de Martinville e a pequena frase de Vinteuil, que no trazem memria nenhuma

    lembrana, nenhuma ressurreio do passado, tm, para Proust, muito mais importncia do que a madeleine eo calamento de Veneza, que dependem da memria, e, por isso, remetem a uma 'explicao material'(DELEUZE, 1987. p.3 [DELEUZE, 1998 (1964), p.9-10]).

    88 (...) a gnese no vai de um termo atual, por menor que seja, a um outro termo atual no tempo, mas vai dovirtual a sua atualizao, isto , da estrutura a sua encarnao, das condies de problemas aos casos desoluo, dos elementos diferenciais e de suas ligaes ideais aos termos atuais e s correlaes reais diversasque, a cada momento, constituem a atualidade do tempo. Gnese sem dinamismo, evoluindo necessariamenteno elemento de uma supra-historicidade; gnese esttica que se compreende como o correlato da noo desntese passiva e que, por sua vez, esclarece esta noo (DELEUZE, 2006, p.262 [DELEUZE, 1993 (1968),

    p.237-238]).89 Em Foucault, Deleuze reclama o mesmo estatuto para os enunciados: no visveis e no ocultos (DELEUZE,

    2005 [1986], p.27).

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    (...) a estrutura correspondente no tem relao alguma com uma forma sensvel, nem com

    uma figura da imaginao, nem com uma essncia inteligvel. Nada que ver com uma forma:

    porque a estrutura de maneira alguma se define por uma autonomia do todo, por uma

    pregnncia do todo sobre as partes, por uma Gestalt que se exerceria no real e na percepo; a

    estrutura se define, ao contrrio, pela natureza de certos elementos atmicos que pretendem

    dar conta ao mesmo tempo da formao dos todos e da variao de suas partes 90.

    No dizemos que uma ideia ou uma estrutura 91 isso ou aquilo. Ela no tem

    designao extrnseca, nem significao extrnseca. Ento no tem como funo elementar

    um valor descritivo ou denotativo. Mesmo vazia, o que resta ainda muita coisa. A ideia,

    para Deleuze, um conjunto de elementos assignificativos cuja produo de sentido

    determinada pelas relaes diferenciais entre eles.

    como o comeo de um drama policial em que sempre h o confronto dos

    personagens com uma cena composta de elementos assignificativos (a dead donkey on a

    piano). Eles simplesmente no tm significado, apenas foram o pensamento, do o que

    pensar. O que se passou?. E sempre h a polcia profissional precipitada na primeira

    sugesto de sentido e um detetive perspicaz que distingue o relevante do ordinrio 92.

    tambm muito parecido com a situao analtica, em que o conjunto de sintomas do

    analisando no compe um significado evidente. Eles apenas do o que pensar, no so

    objetos de recognio.

    Uma ideia um sistema e cada domnio tem o seu tipo peculiar. Os elementos ideais

    90 DELEUZE, 2006, p.224 [DELEUZE, 2002 (1967), p.242].91 Estrutura e ideia so sinnimos emDiferena e RepetioeLgica do Sentido.92 provvel que as noes de singular e de regular, de relevante e de ordinrio tenham, para a prpria

    Filosofia, uma importncia ontolgica e epistemolgica muito maior que as de verdadeiro e de falso, relativas representao, pois o sentido depende da distino e da distribuio de pontos brilhantes na estrutura daIdia (DELEUZE, 1988, p.438 [DELEUZE, 1993 (1968), p.357]).

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    podem ser genes, partculas fsicas, mitemas ou fonemas 93. Ter uma ideia, ento, destacar

    em um domnio especfico os elementos mnimos que lhe so peculiares e a relao

    estabelecida entre eles.

    A ideia (ou um objeto) possui duas faces, uma virtual e outra atual. Por isso, ela

    composta por dois processos complementares. Virtualmente, a ideia completamente

    diferenCIada. Seus elementos se determinam de forma completa uns em relao aos outros.

    Mas a ideia se atualiza nesse ou naquele estado de coisa, isso significa que ela produz efeitos

    de sentido. Esse ltimo processo chamado por Deleuze de diferenao. No estamos

    errados em entend-lo como sinnimo de encarnao. Uma ideia s pode se atualizar porque

    s relaes entre os elementos correspondem singularidades. As singularidades se distribuem

    na ideia fazendo dela um spatium. Parece-nos que todos esses conceitos de Deleuze esto

    muito longe de uma epistemologia. A ideia menos algo que se apreende do que algo que se

    experimenta ou mesmo se ocupa. Ela um territrio composto de regies: as singularidades

    94.

    93 Tal como definida pela Fonologia, a ideia lingustica tem certamente todas as caractersticas de umaestrutura: a presena de elementos diferenciais chamados fonemas, extrados da corrente sonora contnua; aexistncia de relaes diferenciais (traos distintivos) determinando reciprocamente e completamente esseselementos; o valor de pontos singulares assumido pelos fonemas nessa determinao (particularidades