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O trabalho investiga as concepções sobre gênero e sexualidade no Amazonas no período entre1890-1915 a partir de jornais da época. Dissertação defendida em 2005 no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da UFAM.
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FABIANE VINENTE DOS SANTOS
Filhas de Eva no País das Amazonas: gênero, sexualidade e condição feminina nos jornais
de Manaus (1890-1915)
Manaus
2006
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Dedicatórias
A Jean: amor, amigo, parceiro, companheiro, cúmplice.
A todas as mulheres deste estudo, por tudo o que ousaram e calaram para que eu estivesse aqui.
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Agradecimentos
Agradeço a todos que de alguma forma contribuíram para o resultado deste trabalho:
Ao apoio recebido dos colegas do Centro de Pesquisa Leônidas & Maria Deane, especialmentedas pessoas de Alice Alecrim e Ana Felisa Hurtado Guerrero, fundamentais para a conclusão domestrado que deu origem a este trabalho. Suas palavras e ações de incentivo nos momentosmais difíceis contribuíram para amenizar os dissabores e obstáculos enfrentados nesse períodoturbulento. Este trabalho também é um pouco de vocês.
A Universidade Federal do Amazonas, minha “casa” desde a graduação, por tudo que ela
representa para a Amazônia e para o Amazonas.Ao Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, professores e coordenação,
por levarem adiante este projeto tão importante para a formação de um pensamento socialcompromissado com o conhecimento regional.
Aos professores, Iraildes Caldas e Nelson Noronha, que contribuíram para a estruturação desta pesquisa através da composição da bancas de qualificação e ao Professor Ernesto Renan FreitasPinto, que generosamente fez preciosas sugestões na banca de defesa do trabalho.
À Professora Heloísa Lara Campos da Costa, orientadora desta minha primeira aproximaçãoacadêmica com o universo feminino.
À Cinthia Barreto, pela colaboração na coleta de dados em campo.
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“As pessoas já que tiveram o mau ensejo de encontrar-se com avisagem dizem que ela apresenta exterioridades femininas, trajandovestes amplas e pannejantes, mais ou menos parecidas com saias.Enquanto, porém, do conteúdo dessas saias nada se pode conjecturar,
porque nem o hábito faz o monje, nem as saias a mulher. Só temos portanto que julgar pelas apparencias, sobretudo porque o fantasmanão tem cabeça pela qual se poderia inferir o seu sexo. A falta decabeça é, entretanto, considerada pelos maliciosos como uma provaevidente de que o fantasma pertence ao bello sexo. Previno às leitorasd’O Rio Negro que não subscrevo tal opinião, pois sou incapaz denegar que as mulheres tenham cabeça. É verdade que algumas filhas de
Eva têm a cabeça fraca, mas não a deixam de ter. Diz-se também queas mulheres às vezes perdem a cabeça, mas isso é uma metaphora quenão calha ao caso do fantasma – effectivamente destituído da parteculminante da figura humana”.
(Manaus, O Rio Negro, n. 116 de 22/11/1897)
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................... 11
1 PROGRESSO E CIVILIZAÇÃO NA REGULAÇÃO DAS CONDUTASFEMININAS................................................................................
40
2 SUBVERTENDO A ORDEM: DIVERSÕES, RESISTÊNCIAS ECRIMINALIZAÇÃO DA SEXUALIDADE
3 USOS DO CORPO FEMININO: A MEDICINA DA MULHER, O SEXODOENTE E O SEXO PERVERTIDO
CONCLUSÃO 152
FONTES CONSULTADAS: PERIÓDICOS 159REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 161
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Lista de tabelas
01 Tabela 1 p. 88
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INTRODUÇÃO
Sobre escarradeiras, enchentes e relógios…
Disposta em alguns dos muitos cômodos do Teatro Amazonas, em Manaus, no piso
superior, é possível visitar uma exposição permanente de alguns objetos emblemáticos da
história do edifício e da própria cidade. A coleção conta com objetos peculiares como belas
escarradeiras de porcelana, utilizada pelos expectadores durante os espetáculos, assentos
originais da platéia, binóculos e outros utensílios que remetem os visitantes à estética art noveau, ao luxo e à glória de uma era mágica, cujos resquícios são conservados com extremo
cuidado e exibidos com a nostalgia devida à lembrança de uma festa inesquecível.
Encravado no coração da cidade de Manaus, com sua arquitetura neoclássica, o Teatro
Amazonas representa a apoteose do espírito burguês que predominou entre o final do século
XIX e início do século XX. Atualmente, o Teatro possui lugar privilegiado nos cartões postais
de Manaus e é parada obrigatória para os visitantes. A exemplo da maioria dos pontos
turísticos, conta com a estrutura de visitas guiadas, tudo para proporcionar aos estrangeiros um
pouco de conhecimento sobre a importância do Teatro e o contexto de sua construção – a “era
dourada” da borracha.
Tomando como ponto de partida a reflexão sobre a aparente hegemonia da Belle Époque
como único passado possível para Manaus, cabe-nos inicialmente abandonar a disseminada
“naturalidade” com que o acontecimento da borracha é adotado como referência nesta relação
do passado do lugar com seus moradores. Se por um lado o fausto é evocado como um marco
zero destacado dentro da historiografia amazonense, especialmente pelo poder público que o
utiliza proficuamente nas campanhas publicitárias de turismo e eventos culturais a fim de
vender a imagem de uma cidade culta, amante das artes e com uma consolidada tradição a ser
preservada neste sentido, por outro, à medida que mergulhamos nestas constatações, torna-se
mais perceptível a ausência de outros referenciais da cultura e da história local. As obras que
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destacam biografias pessoais de “grandes homens”, por exemplo, esquecem dos demais atores:
os índios, os imigrantes, os seringueiros, as mulheres. Estas ausências estão relacionadas à
forma como um povo lida com seu passado e ao modo como construímos a memória da cidade.
As dimensões tempo e espaço são a essência de nossa representação sobre aquilo que
chamamos de realidade.
Todo o sistema social comporta essas duas noções, e cada sociedade escolhe que
gradações cada um terá. Para os Nuer, povo sudanês, o tempo é calibrado por noções ecológicas
(dia e noite, as estações do ano) e por aspectos singulares da vida dos membros, como as classes
e gerações, marcando o passado pelo nascimento de algum membro mais velho, por exemplo, o
que fornece um significado de tempo totalmente diverso do ocidental. As unidades de tempo,
estas também definidas pelos grupos (dias, meses, luas, estações, a visualização no céu de uma
estrela determinada), tornam-se visíveis à medida que estão ligadas a uma atividade
convencionalmente marcada pelo grupo. (Evans-Pritchard, 2000).
A forma pretensamente universal como marcamos o tempo nos países ocidentais,
utilizando medidas oficiais, também está inserida numa determinada formulação cultural –
afinal, nosso “marco zero” é o nascimento da divindade cristã, religião sob a qual a própria
civilização ocidental ergueu-se. Desta forma, nossa noção de tempo foi disciplinada e pôde ser
então apropriada para os mais diversos fins, como os atos de vender e comprar, e para as
diversas tarefas, regulando o tempo de trabalho, de descanso, etc. Apesar da força destes
convencionalismos, diferentes formas de medir o tempo continuam a ser operacionalizadas
paralelamente a oficial. Estas formas “alternativas” estão relacionadas às formulações que
escapam do racionalismo aplicado às convenções universalizantes. Por exemplo, em Manaus
um dos marcadores de tempo mais populares são as cheias do rio Negro. As maiores cheias são
rememoradas para fazer referência a algum fato especial1.
1
Quem em Manaus nunca ouviu falar da famosa “cheia de 1953”, ou da de 1988? Estas são evocações comunsna fala dos mais velhos, como se fosse uma escala diferenciada de mensuração do tempo. Um exemplo deconcretização deste tipo de marco temporal pode ser visto da régua marcadora das cheias que se encontra noPorto do Roadway, em Manaus, onde aparecem testificadas, com as respectivas marcas d’água, as datas dasmaiores cheias.
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Segundo DaMatta, para serem concretizados, tempo e espaço precisam ser sentidos e
vividos como “coisas” de um sistema de contrastes. Desta forma, a memória é construída a
partir de uma enciclopédia de temporalidades e espaços, na qual os valores atribuídos variam
em intensidade de acordo com a importância social dada aos fatos e a forma como são
organizados e vividos.
Reter o tempo e torná-lo algo perpétuo, controlado, capaz de voltar todas asvezes em que é invocado. Assim é que cada sociedade ordena aquele conjunto devivências que é socialmente provado e deve ser sempre lembrado como parte e parcela do seu patrimônio – como mitos e narrativas -, daquelas experiências quenão devem ser acionadas pela memória, mas que evidentemente coexistem com as
outras de modo implícito, oculto, inconsciente, exercendo também uma formacomplexa de pressão sobre todo o sistema cultural (Da Matta, op. cit, 37).
É desta forma que o tempo é evocado de maneiras diversas da homogeneidade
pretendida pelos relógios e calendários, e que certas datas, décadas, séculos ou eventos são
rememorados com mais prazer ou destaque que outras, e também desta forma que certas
temporalidades são “remodeladas” pela imagem mais marcante que a caracteriza, num exercício
de reconstrução do passado pela ação da memória. Esse parece ser o caso de Manaus em
relação ao período que vai das últimas décadas do século XIX às duas primeiras do século XX,
quando a atividade extrativista da borracha ( Hevea brasiliensis) proporcionou uma grande
circulação de capital na cidade, repercutindo na aceleração da urbanização e em transformações
na ordem social. Durante o período de circulação do capital proveniente da borracha, toda uma
série de representações sobre o período foi engendrada, a maioria no sentido de enfatizar a
riqueza – tornando esta a marca do período, conhecido como “fausto” e ocultar a desigualdade
social que imperava, a ponto de praticamente subsumi-la.
Assim como outras cidades que reuniam condições econômicas para tal, Manaus sofreu
uma reforma urbana de grandes monta a partir do último quartel do século XIX. Guardadas as
proporções, Paris sofreu processo análogo entre 1853 e 1870, com as reformas urbanísticas do
Barão Haussman (Ortiz, 1991; p. 21), e no Brasil podemos citar o “Bota-abaixo” do prefeito
Pereira Passos no Rio de Janeiro, a partir de 1904, com a demolição de cortiços para a abertura
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de grandes avenidas, o que demonstra que, apesar da fenomenal estruturação proporcionada
pelas reformas urbanas nas “cidades da selva” (Belém e Manaus), estas estavam apenas
sintonizadas com uma tendência geral nas cidades ocidentais: o processo de urbanização e a
elevação das cidades a centro da vida social2.
O desenvolvimento urbano não era um processo isolado, mas estava articulado com
outros eventos externos e internos, como a proclamação da República e ao nascimento de uma
ideologia “civilizadora” nascida não apenas em função da borracha, mas em função de um
projeto de sociedade que já vinha se delineando desde a época do Império (DAOU 1988).
Este período coincide com o incremento do capitalismo mercantil na região através do
grande volume de lucro obtido pela venda da borracha no mercado internacional3. É necessário
que se lembre do significado da expansão gomífera para a região, que se transforma
repentinamente numa “metrópole das selvas”. As conseqüências dessa transformação foram a
circulação em Manaus - e em outras regiões amazônicas como Belém e algumas cidades no
Peru, Bolívia e Colômbia - de um volume de capital nunca visto, o aumento desmesurado das
imigrações, a ascensão das ideologias liberal no quadro político do republicanismo, e as
reformas urbanas, a formação de uma elite “gomífera”, cujo enriquecimento rápido
proporcionou a elaboração de um projeto de sociedade onde a riqueza, a beleza e o progresso
caminhariam juntos numa metrópole com arquitetura aos moldes europeus, tudo recheado pelos
2 O que torna a transformação de Manaus tão extraordinária é a rapidez do processo. Manaus só ganha status devila em 13 de novembro de 1832, quando a denominação tradicional do povoamento, Lugar da Barra, ésubstituída por Vila da Barra; a Vila passa a sediar a Capitania de São José do Rio Negro definitivamente. Atéentão, O Lugar da Barra havia alternado o posto de sede da capitania com Mariuá (atual Barcelos), desde acriação da Capitania pela Carta Régia de 03 de março de 1755. Em 13 de novembro de 1832, o Lugar da Barra passou a categoria de vila, com o nome de Vila da Barra. Se levarmos em conta que na década de 1870 Manaus já começava a sofrer a implantação de uma nova dinâmica urbana, o que significa que num espaço de 30 anostemos o desenvolvimento de um processo de urbanização em ritmo acelerado.3 Caracterizada desde os primórdios da colonização por uma economia fundamentada no extrativismo e naagricultura de subsistência (embora houvesse uma agricultura incipiente), a Amazônia viu-se, no final do séculoXIX, como um dos elementos fundamentais no desenvolvimento da revolução industrial que alcançava seu ápice
na Europa. Embora a borracha ( Hevea brasiliensis) já tivesse encontrado uso através da fabricação manufaturadade produtos como sapatos, bolas e seringas, clandestinamente transportados em pequena escala para a Europa jáno final do século XVIII, foi somente com o desenvolvimento de técnicas de otimização da borracha como o processo de vulcanização desenvolvido em 1844 por Goodyear que o produto encontrou seu nicho definitivo na pauta de exportações brasileiras, tornando-se junto com o café, o maior produto nacional (SOUZA, 1998).
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ideais do positivismo que penetrava na selva a partir dos segmentos médios urbanos que se
instituía a partir do crescimento da cidade.
Desse modo, temos no século XIX um cenário de grande intensidade social, que
transformaria definitivamente a região e o Amazonas. Escolher uma área urbana delimitada
como no caso da cidade de Manaus, ao invés de analisar outros centros urbanos que se
formavam na Amazônia, nos possibilitou maior facilidade na localização, seleção e reunião de
dados para a pesquisa.
Belle Époque é o termo cunhado posteriormente no século XX na França para
denominar um período compreendido convencionalmente entre os anos de 1880-1914, como
lembra Ortiz (1991). Na Europa, estava associado à “crise” de diversos significados: crise nas
instituições tradicionais, crises financeiras, crise de crenças; mesmo assim, foi guardada na
memória do Ocidente como a era da instituição do desejo pelo belo, da nostalgia que
proporcionou o resgate da estética clássica, expressa na popularização da arquitetura e da arte
que imitava os antigos gregos. Na Amazônia, contudo, a Belle Époque representa a “entrada”
desta região na modernidade, com a disseminação do modo ocidental de vida e profundas
mudanças na ordem das mentalidades. A contextualização da “modernidade nos trópicos”
implica numa reflexão profunda a respeito de qual foi o significados destas transformações sob
o ponto de vista da sociedade da época. Neste contexto, as respostas, e mesmo as questões, não
estão dadas tão simplesmente quanto possa parecer.
Nesta pesquisa, trabalhamos com a perspectiva de sexualidades padronizadas e
resistências a esses padrões. Foi importante abordar quais eram as bases das padronizações, no
caso a cultura burguesa, brilhantemente trabalhada por Peter Gay (1998), além de Ortiz (1998)
que caracterizou os primórdios da modernidade na França, matriz cultural do Ocidente na
época.
A “cultura burguesa” enfatizada por Gay está relacionada a um modo de conceber o
mundo muito particular dos segmentos médios urbanos no final do século XIX e início do
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século XX, pela ascensão da ideologia liberal, o positivismo, o republicanismo e pela
valorização de hábitos e posturas de distinção meritocráticas – ao invés da hereditariedade e da
linhagem, relacionadas à aristocracia européia - como a leitura dos clássicos, o domínio de
outros idiomas como o latim e o francês, além da reificação da ciência e do empirismo como
formas de explicar o mundo e os fenômenos. Por “cultura burguesa” não devemos entender uma
categoria, mas um conjunto de atitudes significativas para a constituição do sentido moderno.
Devemos esclarecer ainda que o uso do termo “cultura burguesa” neste trabalho não
pressupõe o uso da categoria “classe social” – burguesa ou não - como matriz epistemológica, o
que demandaria aportes teóricos bem diversos dos utilizados aqui, onde propomos um diálogo
da Antropologia Social com disciplinas como História e Sociologia. Por outro lado, tornar-se-ia
quase impossível expressar as transformações ocorridas no pensamento social no período sem
fazer uso do termo “burguesia”, tomado aqui na acepção de determinado ethos cultural, da
mesma forma que o fez Peter Gay em A educação dos sentidos (1988). Optamos por trabalhar
com tópicos temáticos relacionados, por exemplo, às prédicas morais para mulheres casadas, às
visões da imprensa sobre a prostituição ou mesmo sobre a questão do corpo feminino e a
intervenção da medicina e suas nascentes áreas especializadas na mulher: ginecologia e
obstetrícia.
A modernidade caracteriza-se ainda pela institucionalização e valorização de modelos
de conduta de “civilidade”, os signos de civilização, como chama Nobert Elias (1995), nascidos
a partir do desenvolvimento da vida urbana e dos valores ocidentais. A moral sexual, que até
então recebera as atenções da Igreja durante o processo de cristianização do Ocidente até o
depois do Renascimento, começa a sofrer um outro tipo de controle, baseado não mais no
sentido religioso, mas em outros pressupostos cunhados nas transformações do momento, que
repercutem por motivos diversos na instituição do modelo heterossexual monogâmico de
família burguesa.
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Carneiro (2000, p. 21) chama a atenção para a força deste modelo, que por ser tão
característico da civilização ocidental, não chegou a ser contestado nem mesmo pelos autores
mais críticos da herança cultural cristã como Engels e Freud. O confisco da sexualidade
vitoriana pela família conjugal, e seu encerramento no interior da casa e do quarto do casal foi
citado por Foucault (1988). O impacto da instituição desse modelo poderia, segundo sua
hipótese, se mensurado pelo empenho de alguns mecanismos de poder em fortalecê-lo, sustentá-
lo e torná-lo hegemônico.
As chamadas “sexualidades ilegítimas” (op. cit., p. 10), já que não podem ser
subsumidas, foram ocultas, circunscritas a “circuitos de produção do lucro”, no dizer de
Foucault: os bordéis e as zonas de meretrício, onde o sexo teria liberdade para fornecer prazer,
já que este estava excluído da esfera conjugal. Em Manaus não seria diferente. A cidade não se
contenta só com o amor casto e idealizado dos folhetins. Surgem os rendez-vous, as casas de
tolerância e espaços do prazer como a praça dos Remédios, a rua Costa Azevedo e Itamaracá,
porque Manaus emerge sob o signo da satisfação dos desejos e inebriamento dos sentidos,
porque a riqueza e luxúria se misturam: há no poder e no dinheiro um forte elemento erótico.
A sexualidade impõe-se de forma definitiva na clivagem das mulheres promovidas pela
sociedade da época a partir das normas de comportamento, da circulação nos espaços e do
exercício da sexualidade. Nesse sentido, o espaço possui um papel importante como marco das
categorizações: o espaço doméstico como espaço de circulação das mulheres consideradas
honestas - esposas, mães e filhas, e aquelas que não se enquadravam nesta conceituação, tendo
na rua seu espaço de excelência. Analisar estas distinções e suas diversas formas de
representação foi o principal objetivo desta pesquisa, que partiu basicamente do questionamento
sobre como tem sido construída a imagem da mulher no Amazonas e de que formas as
representações engendradas nesta construção foram estruturadas no sentido moderno de
sexualidade.
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Para empreender a seleção de fontes da pesquisa, realizamos um mapeamento das
principais referências disponíveis sobre a vida social relacionados à sexualidade feminina no
período de 1890 a 1915 em textos de jornais, para em seguida estabelecermos uma criteriosa
análise crítica das fontes, problematizando aspectos relacionados à visão de mundo dos autores
dos documentos; dado o limitado tempo para tal tarefa, fomos obrigados a nos restringir em um
número modesto de referências, em quantidade bem menor do que a desejada inicialmente, nos
limitando a trabalhar com o acervo de jornais disponíveis em microfilmes, de mais fácil
manipulação e facilidade de acesso.4
Dos vários títulos consultados, alguns de existência fugaz de alguns poucos exemplares,
consultamos jornais satíricos, de notícias e de grupos específicos como os de colônia de
imigrantes e religiosos. Entretanto, a maioria das referências trabalhadas na pesquisa é do diário
O Rio Negro, um jornal de postura republicana, pela sua maior disponibilidade, já que a maioria
dos microfilmes é deste periódico. Este fato reflete-se no caráter de algumas das afirmações que
fazemos ao longo do texto do trabalho, o que por vezes pode dar a impressão de fornecer apenas
“um lado da história”, aparentemente privilegiando o pensamento liberal-positivista. Entretanto,
não consideramos isto um fator negativo, uma vez que a afirmação e expressão dessas idéias
representavam grande parte dos embates ideológicos do período e podem nos fornecer um
panorama privilegiado das questões relacionadas ao papel da mulher na república e na
modernidade manauara. Evitamos jornais de edições únicas que tivessem como objetivo
exclusivo a homenagem de alguma figura pública, como era comum na época.
O jornal como meio de comunicação exerceu um papel político-ideológico importante
na “catequização” cultural que a elite da borracha buscava para se adequar aos novos tempos.
Os jornais periódicos constituíram-se em espaço de pregação dos novos ideais, por ser onde a
4 Lamentamos não ter inserido no trabalho as referências do célebre Jornal do Commércio, um dosmais tradicionais do estado, por não estarem microfilmados, o que tornaria a pesquisa mais demorada, bem comoo acervo do IGHA (Instituto Histórico-Geográfico do Amazonas), cujo rico acervo não pode ser facilmente
acessado. Os microfilmes aos quais nos referimos estão disponíveis na Biblioteca Estadual do Amazonas e noMuseu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas, gravados pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,onde estão também alguns dos originais.
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sociedade expressa suas questões mais presentes. Os jornais foram privilegiados como fonte de
pesquisa pelo papel de veículo comunicativo e de convergência dos conteúdos das mentalidades
da época. Segundo Aguiar (2003), os jornais podem ser caracterizados como importantes
instrumentos de pressão para preservação dos interesses da elite dominante:
No cenário da sociedade manauara, as idéias de progresso e modernidadeque eram difundidas pelos diversos jornais expressavam, sobremaneira, osinteresses capitalistas num empenho de divulgação da mudança cultural, da adoçãode novos bens de consumo, de refinamento de hábitos e de vigilância pública.(Aguiar, 2003:48)
O trabalho com documentos, no caso jornais de Manaus de 1890-1920, exigiu,
portanto posturas metodológicas diferenciadas: primeiro, foi necessário o abandono do
conformismo da “ausência de dados”. Num contexto marcado pela pouca quantidade de
trabalhos relacionados especificamente a aspectos sociais do Amazonas nos século XVIII e
XIX, apesar dos esforços de equipes de pesquisadores que tentam reverter este quadro, foi
necessária a negação da idéia de que “não há dados para trabalhar” e que, portanto, o melhor
seria fazer algo a partir de temas já consagrados ou mesmo de algum trabalho já realizado, ondeseria possível saber “o caminho das pedras”. Há um amplo leque de temáticas de pesquisas,
inclusive nos jornais, como o estudo das elites locais, a presença do negro, o papel das mulheres
e das igrejas, para citar alguns exemplos, das quais apenas uma pequena parte foi realizada.
Temos então um enorme campo a ser desbravado5.
No que diz respeito a como este período tão característico da modernidade foi vivido e
percebido, tanto no Pará quanto no Amazonas, é considerável a quantidade e a qualidade dos
5 É necessário neste ponto comentar os problemas relacionados às fontes de pesquisa, como o materialdocumental que desejávamos utilizar na investigação, os processos de defloramento e estupro da época, que nãoconseguimos localizar nos arquivos do judiciário local e que forneceriam dados importantes sobre os discursosrelacionados à sexualidade. A histórica ausência de um maior compromisso das autoridades e gestores públicoscom a memória local causa danos irreparáveis com a perda de documentos ou mesmo com sua desorganizaçãonos locais onde ainda são guardados. Não contamos até agora com um esforço de sistematização ou
disponibilização dos documentos históricos para o público de alguns acervos importantes do estado. Destaforma, o trabalho que envolve documentos históricos no Amazonas está sujeito a uma dupla contingência: anecessidade de analisar competentemente os dados disponíveis em quantidade menor que o desejável e anecessidade de organizar estes dados, o que nem sempre é possível dado o curto tempo que dispomos paraapresentar os resultados.
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trabalhos já produzidos a respeito de vários aspectos6. A competência e a profundidade com que
o período foi trabalhado não implicam no seu esgotamento como objeto de estudo. Pelo
contrário a Amazônia, enquanto universo social, ainda constitui-se numa grande seara para este
tipo de abordagem. Nesta pesquisa, optamos por abordar uma das facetas da sociedade da
época: as representações sobre as mulheres. Como estas representações eram explicitadas em
periódicos locais por homens, obviamente estamos falando de relações de poder, portanto de
relações de gênero.
Segundo, a superação da “hierarquia” entre os fenômenos. A abordagem de aspectos
cotidianos num estudo etnográfico busca abolir a idéia de que somente algumas coleções de
fenômenos já consagrados pela tradição etnológica merecem atenção, tais como as normas
matrimoniais, a circulação de mercadorias e a economia dos cargos dentro de determinado
grupo social. Para abordar estes fenômenos, elegemos alguns caminhos teóricos que nos
auxiliaram ao longo do trabalho.
Gênero e sexualidade como categorias históricas e sociológicas
A perspectiva de gênero nas ciências sociais surgiu com a crítica ao androcentrismo,
crítica esta possível somente a partir dos anos 60, quando o movimento feminista formula bases
teóricas capazes de dar sustentação à idéia de que a visão masculina predominava também nas
ciências, partindo da premissa do monopólio masculino das informações (os sociólogos,
6 No contexto do Amazonas, alguns desses trabalhos foram utilizados como referência para esta pesquisa as tesesde doutorado de Heloísa Lara Campos da Costa, que trata do contexto amazônico, No limite do possível: asmulheres e o poder na Amazônia - 1840-1930 (2000), e mais especificamente sobre Manaus, citamos a de SeldaVale da Costa (1996) O Eldorado das ilusões. Cinema & Sociedade. Manaus: (1897/1935), a de Ana MariaDaou A cidade, o teatro e o “paiz das seringueiras”: práticas e representações da sociedade amazonense navirada do século XIX (1998) e as dissertações de Edinéia Mascarenhas Dias A ilusão do fausto: Manaus 1890-
1920 (1999), a de Lileane P. P. de. Aguiar, Belle Époque: dois atos, dois palcos, defendida na UFAM em 2003 ea de Francisca Deusa Costa, intitulada Quando viver ameaça a ordem urbana: trabalhadores urbanos emManaus (1890-1915), dissertação de Mestrado em História defendida na PUC de São Paulo em 1997, para citar algumas.
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antropólogos, historiadores, entre outros, são em sua maioria homens, sem perspectiva crítica
sobre sua condição).
Embora a categoria gênero tenha sido inicialmente estabelecida dentro dos círculos
acadêmicos, é necessário fazer um apanhado do seu significado. É importante que se diga que a
categoria gênero, diferente de outras, não nasce apenas em virtude exclusivamente de esforços
explicativos acadêmicos. Ela é fruto principalmente das lutas políticas do feminismo e da
insuficiência que a noção de sexo como matriz de explicação para a questão das relações entre
homens e mulheres, cujo caráter biológico não suportava análises mais profundas sobre a
questão do poder. Durante a segunda metade do século XX, modifica-se o conceito de política,
que se amplia para refletir uma realidade social em mudança. Surgem novos “antagonismos
sociais” que, sem desprezar os de classe, raça e etnia, passam a incluir as relações sexuais e de
gênero, produzindo movimentos reivindicatórios com base nessas identidades emergentes, dos
quais o movimento feminista é o exemplo mais contundente, ajudando a construir novos
sujeitos coletivos da cena política.
Segundo Joan Scott (1990, p.15) por gênero entende-se um elemento constitutivo de
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos. O gênero é um primeiro
modo de dar significado às relações de poder. A identidade de gênero, portanto, é construída
socialmente, através das relações sociais das quais os indivíduos participam em diferentes
tempos históricos e sociais. A categoria gênero é relacional, uma vez que nasce do confronto
com “o outro”, através de vários mecanismos sociais diluídos na educação e em outras
instituições, traçando estereótipos que separam, desde a infância, indivíduos que devem agir
masculinamente ou femininamente, conforme a cultura em que estão inseridos. Esta diferença é,
portanto, construída socialmente, sendo o substrato biológico apenas um de seus elementos
Swain (2005).
Assim como gênero, a questão da sexualidade também sofreu durante muitos anos
dificuldade para ser determinada fora do enfoque biologicista. A sexualidade, entendida como
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um processo dinâmico e social pressupõe abordagens epistemológicas que rompam com as
teorias essencialistas e mono-explicativas que balizaram os estudos sobre a sexualidade durante
muito tempo. Todavia, há uma grande dificuldade em se obter uma visão unívoca acerca da
sexualidade. Isso é decorrente do fato de que a sexualidade é colocada como legitimadora de sentidos
não relacionados diretamente a sua ordem, além da grande quantidade de possibilidades de
abordagens, o que descondiciona seus conceitos de uma única direção e, de certo modo, torna suas
fronteiras disciplinares quase ilimitadas. Apesar da polissemia característica do campo, Loyola (1999)
aponta alguns aspectos que podem servir de pontos de articulação da questão da sexualidade como
objeto:O primeiro aspecto diz respeito a forma subordinada como a sexualidade aparece como
objeto de estudo das disciplinas de humanidades. Não existem, na literatura clássica, estudos
relacionados à sexualidade como um objeto em si. Concomitante a este fato há uma tendência
mais contemporânea em buscar a autonomia do campo, o que demonstra que este se encontra
inegavelmente num “estado da arte”, ainda bastante suscetível a interferências em sua
elaboração, delimitação e construção.
Um segundo aspecto que permeia a discussão teórica tradicional sobre a sexualidade na
modernidade é a sua vinculação exaustiva com a genitalidade e com a heterosexualidade. Este
fato tem a ver com os interesses normativos ou terapêuticos dos primeiros sujeitos que se
preocuparam com a questão. Mesmo a medicina, quando se debruça sobre a questão, não tem
finalidades terapêuticas, mas normativas, como lembra Loyola,
...transformando em postulados científicos (...) uma série de interditos e normassexuais, segundo as quais o erotismo deveria ser regulado pela exigência de reproduçãoda espécie e dos ideais de amor à Deus e à família. É na medicina que a sexualidadetermina por ser unificada como instinto biológico voltado para a reprodução daespécie... (LOYOLA, op. cit: p. 33).
De certo modo, a desnaturalização da sexualidade passou a ser um problema
desafiante de todas as disciplinas, e que de certo modo passou a ser enfrentado de várias formas,
embora esteja de certo modo presente nos conceitos e abordagens clássicas as quais
invariavelmente temos que recorrer. Assim como outros como o gênero, a sexualidade, tal como
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a concebemos e como dela falamos – ou seja, composta de práticas sexuais e subjetividades
como o desejo, a partir da relação do indivíduo com sexo, é uma invenção moderna. Segundo
Foucault (1988), a sexualidade moderna é específica de um momento histórico e somente foi
possibilitada por circunstâncias próprias das configurações sociais presentes nesse contexto: a
modernidade. Esta modernidade, entretanto, esconde uma série de disputas de sentido, se
observadas as diferentes configurações que ganha no Novo Mundo.
Como resultado das novas abordagens sobre a sexualidade, das quais Foucault é o
principal expoente, nasce o consenso sobre o fato de que os termos sexuais referem-se a seus
contextos históricos e sociais próprios; como decorrência disso, é mantido um maior cuidado
teórico frente às generalizações, dada a preocupação em mostrar a sexualidade como um
“dispositivo histórico”:
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não àrealidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede dasuperfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, daincitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e dasresistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de
saber e poder (FOUCAULT, 1988)
Em A Vontade de Saber , Foucault rejeita a chamada “hipótese repressiva”, que traduz o
discurso sobre sexo a partir do século XVII como exclusivamente proibitivo. Para ele, o que é
visto como proibição e repressão nada mais é que a tentativa do homem moderno em se
apropriar do seu sexo, conhecê-lo e esquadrinhá-lo, transformando-o em base da questão da
verdade.
Há uma diferença enorme entre a maneira como as pessoas lidam com o sexo na Idade
Média e na Idade moderna; essa diferença estaria relacionada principalmente a uma repressão
característica das sociedades burguesas; através desta repressão o sexo teve que ser apropriado
ao nível da linguagem, controlando sua circulação como discurso, banindo-o das coisas ditas e
extinguindo as palavras que o tornam presente de maneira demasiadamente sensível,
caracterizando uma censura traduzida na formulação de termos específicos – a maioria damedicina – para denominar as partes sexuais do corpo e comportamentos a elas relacionadas.
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No entanto, o efeito de todo esse cuidado é exatamente o inverso: acontece uma verdadeira
“explosão discursiva” sobre o sexo. Uma das questões desta pesquisa é tentar observar como
acontecem as articulações e embates entre as concepções burguesas de sexualidade e as
populares, expressadas nos “comportamentos dissonantes” de indivíduos na cidade,
constantemente criticados no primeiro veículo de comunicação de massa surgido, o jornal.
O sexo, de acordo com tal paradigma, não comporta análises que abranjam as dinâmicas
sociais e históricas porque é concebido como matriz, como único, invariável e causal. Em
contraposição a este sexo, Foucault cria o dispositivo da sexualidade:
Em oposição a essa falsa construção do “sexo” como unívoco e causal,Foucault engaja-se num discurso inverso, que trata o sexo como efeito e não comoorigem. Em lugar do “sexo” como causa e significação originais e contínuas dos prazeres corporais, ele propõe a “sexualidade” como um sistema histórico aberto ecomplexo de discurso e poder, o qual produz a denominação imprópria de “sexo”como parte da estratégia para ocultar e, portanto, perpetuar as relações de poder (BUTLER, 2003).
Esta normatização, longe de caracterizar de forma negativa o sexo pelas proibições,
vigilância ou coação, é parte do esquema de colocação do sexo em discurso e, portanto,
configura-se em “positividades”. Em vez de procurar os elementos da “economia da escassez”,
Foucault propõe encontrar as instancias de produção dos discursos – e dos silêncios – que
possibilitaram a produção de poder, saber, a história dessas instancias e de suas transformações.
Esta inversão conceitual é um dos pontos altos no pensamento foucaultiano sobre a sexualidade:
Certamente, o papel das proibições foi importante. Mas o sexo é, em qualquer condição, proibido? Ou antes as proibições não são armadilhas no interior de umaestratégia complexa e positiva? (FOUCAULT, 2005).
Esta perspectiva modifica o enfoque dado à sexualidade tradicionalmente. Foucault não
nega a repressão, apenas não aceita que as análises sobre a sexualidade pautem-se a partir delas.
Por isso, aparece nos escritos do autor outros significados para o problema do poder. Foucault
chama a atenção para o fato do poder ser sempre lembrado e falado como lei, interdição,
proibição e repressão, mas nunca como mecanismos e efeitos positivos.
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Um certo modelo jurídico pesa sobre as análises do poder, dando um privilégio absoluto à forma da lei. Seria preciso escrever uma história dasexualidade que não fosse ordenada pela idéia de um poder-repressão, de um poder-censura, mas por uma idéia de um poder-incitação, de um poder-saber; seria precisodesprender o regime de coerção, de prazer e de discurso que é não inibidor, mas
construtivo deste domínio complexo que é a sexualidade (Idem, ibidem.).
Ao invés de falar da lei e dos instrumentos do Estado, o que acaba sendo somente uma
conseqüência, Foucault fala sobre poder disciplinar e biopoder , caracterizado como o crescente
ordenamento em todas as esferas sob o pretexto de promover o bem-estar do indivíduo e das
populações (DREYFUS e RABINOW, 1995). Por este motivo a mulher foi, ao longo da
modernidade, o principal alvo destas práticas reguladoras através da interferência em seu
comportamento sexual e suas opções reprodutivas.
Analisando em linhas gerais as contribuições de Foucault para os estudos da
sexualidade, alguns pontos serão destacados em relação a este trabalho:
Primeiramente, Foucault enfatizou a importância da sexualidade para a constituição do
indivíduo moderno; a questão do indivíduo está intimamente relacionada à busca da verdade,
uma das pedras angulares da própria modernidade. É impossível pensar a modernidade emtermos apenas de instituições. O nascimento do indivíduo é a própria expressão da
modernidade.
Foucault situou os chamados “jogos de verdade” com a questão do poder. Esta
relação, a princípio simples, da maneira refinada como foi construída, foi fundamental para o
desenvolvimento de teorias mais sólidas e abordagens mais direcionadas em relação não
somente à sexualidade, mas à própria diferença entre os gêneros. A noção de gênero, que é
basicamente uma relação de poder, foi especialmente beneficiada pelas idéias de Foucault,
tornando a aproximação dos teóricos e teóricos do gênero, inevitável. (SCOTT, 1988). A
dimensão gênero será de fundamental importância para o entendimento das formações
discursivas locais.
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Finalmente, em Foucault é possível identificar a importância de localizarmos os
autores das falas dentro da “economia dos discursos” como fórmula imprescindível para a
contextualização destes.
Um segundo aporte teórico que exploramos nesta pesquisa foi o da sexualidade de
acordo com a antropóloga norte-americana Carole Vance (1995), que define dois tipos de
modelos de abordagem da sexualidade, em contraposição ao essencialismo, de explicação
biológica, que durante muito tempo reinou absoluto nas teorias sobre a sexualidade: o de
construção cultural (de 1920 a 1990) e o de construção social (de 1975 a 1990). A sexualidade,
para os construtivistas, é mediada pela história e pela cultura, embora as opiniões sobre
exatamente quais os aspectos da sexualidade que podem ser construídos pela história e pela
cultura variem.
O construtivismo na sua vertente cultural parte do pressuposto de que a sexualidade é
moldada pela cultura; há uma ênfase no papel da educação e do aprendizado dos papéis sexuais.
O estudo da sexualidade, porém, limita-se aos aspectos reprodutivos e à heterosexualidade,
inquestionadamente adotada como padrão e centro das investigações e universalizada como
noção. Exemplos desta abordagem são os trabalhos de Malinowski (A Sexualidade e a
repressão nas sociedade primitivas) e Margareth Mead (Sexo e temperamento).
O sentido da sexualidade, dentro do modelo de construção cultural, é dado como
universalizante, comum a todas as sociedades. É geralmente representado e analisado
enfaticamente como pulsão, e desta forma isolado de outras referências sociais. Talvez por esta
maneira vaga como o campo é concebido, em sua abrangência seja disposta uma coleção
caótica de elementos díspares como relações sexuais, sensibilidade, contos eróticos, anedotas,
adornos sexuais e tudo o mais que se relacione com erotismo. Uma das grandes críticas à esta
abordagem, além da acusação de universalização de conceitos ocidentais como o de hetero e
homossexualidade para outras culturas, é a não problematização da questão de gênero. Embora
gênero e sexo apareçam como intercambiáveis e interligados, a relação entre ambos aparece de
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forma naturalizada e não é questionada; embora os construtivistas tenham em comum a crença
de que a sexualidade é mediada pela história e pela cultura, as opiniões sobre quais aspectos da
sexualidade podem ser construídos são extremamente variáveis. Aceitar a não universalidade
das categorias relativas á sexualidade foi um passo importante para a formulação de novas e
aprofundadas questões sobre a sexualidade moderna e de outros povos.
Uma das correntes do construtivismo social, que aqui elegeremos como aporte para a
pesquisa, concebe a sexualidade como experiência organizada pela cultura, ou seja, por
estruturas cognitivas e construções simbólicas e práticas coletivas, que moldam e dão
significado aos comportamentos individuais, dimensionando os valores e técnicas sexuais. As
escolhas e saberes sexuais seriam não de ordem individual, mas coletivos e influenciados por
outros fatores sociais que vão além da “natureza humana” – aspectos como o econômico, o
educacional, o histórico, o cultural e o político. Embora esta abordagem esteja enquadrada nas
teorias durkheimanas de fato social, ela não exclui o papel do indivíduo nestas escolhas, embora
sua ação seja culturalmente determinada até mesmo quando resiste com se rebela contra a
ordem instituída.
No primeiro capítulo, intitulado Progresso e civilização na regulação das condutas
femininas procuramos discutir o impacto das transformações urbanas e ideológicas do período
na definição do papel da mulher nesta nova ordem, concretizada na valorização da instrução
feminina, na consolidação do casamento como suprema vocação feminina e na condenação
social e legal da bigamia e do adultério, ao mesmo tempo em que não criava formas de solução
para a viuvez desamparada que muitas mulheres enfrentaram em decorrência da guerra de
Canudos.
No segundo capítulo, Subvertendo a ordem: diversões, resistências e criminalização da
sexualidade, exploramos as formas de resistência aos ditames da ideologia liberal-burguesa
representadas pelas mulheres cujas condutas eram publicamente condenadas pelos jornais da
época ou apenas não se enquadravam no modelo de domesticidade estabelecido como ideal para
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as mulheres como as meretrizes, as atrizes, as arruaceiras, as negras e as artistas. Estes rótulos
diziam respeito não apenas à condição sócio-econômica de tais mulheres, mas principalmente a
forma como exerciam sua sexualidade. Suas identidades estão relacionadas aos locais que
freqüentavam – no espaço da rua, às suas atividades para garantir a sobrevivência em solo
urbano e até às elaborações lúdicas das quais tomavam parte: a dança de salão, os bares e as
outras expressões da cultura urbana marginal que se desenvolveu em Manaus na época.
No terceiro capítulo, A medicina da mulher, o sexo doente e o sexo pervertido,
buscamos esquadrinhar os sentidos da patologização e da criminalização da sexualidade, usando
como ponto de partida a questão da saúde, elaborando um breve panorama da questão sanitária
na província e os desafios para a medicina, representados pelas moléstias tropicais, para em
seguida abordar o nascimento em Manaus da medicina da mulher e o processo de apropriação
do corpo feminino. Um outro aspecto deste processo está relacionado às chamadas “doenças
venéreas”, e nos jornais de Manaus pudemos perceber como as doenças do sexo e seu
tratamento através de medicamentos específicos transformam-se num problema típico da
modernidade e ganham status de signo de distinção sexual entre as mulheres. Finalmente, após
abordamos as moléstias do corpo, dedicaremos espaço à complexa categoria dos crimes e
desvios sexuais, partindo da análise de alguns casos documentados nos jornais da época.
CAPÍTULO 1
PROGRESSO E CIVILIDADE NA REGULAÇÃO DAS CONDUTAS FEMININAS
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Antigamente o Amazonas era feliz. Não tínhamos telegrapho. [...] EmManaus só tínhamos notícias do Sul depois de cinco dias. Quando os suicídios, osassassinatos, as guerras, o diabo enfim, chegavam na pacata cidade ammazonica,estavam frios, frios de verdade, já tinham mandado rezar a missa de 7.º dia. Hojenão! Arrebenta um canhão na capital da Repúlica, e dahi a meia hora todo Manaós
sabe. Um horror! Uma desgraça! E isto chama-se o progresso do século XIX!Adeus sossego! Adeus tranqüilidade de espírito (O Rio Negro, 113, de 13/11/1897).
As rápidas transformações sofridas por Manaus no final no final do século XIX podem
ser bem ilustradas pelo comentário que faz Elizabeth Agassiz que descreve o lugar durante sua
passagem de 1877 como uma “vila miserável” (AGASSIZ E AGASSIZ, 1978). Apenas alguns
anos depois, a imagem da cidade transforma-se radicalmente, com a abertura de ruas mais
largas, a construção de pontes de ferro sob igarapés e a construção de suntuosos edifícios.
Pouco mais de vinte anos depois, em 13 de novembro de 1897 O Rio Negro publicava uma
nota, que transcrevemos acima, de um homem perplexo frente à velocidade da difusão de
informação representada pela chegada do telégrafo à cidade, pois assim como as últimas
novidades eram transmitidas rapidamente, também o eram as notícias sobre as revoluções, as
guerras, os crimes e os eventos de uma época de grande instabilidade política. Sua queixa
refletia a sensação de angústia de um morador de uma vila que de repente assistia um mundo
transformar-se rapidamente a partir da perspectiva da metrópole que se instalava, entre os
lamentos por um tempo de tranqüilidade que jamais retornaria e o deslumbramento frente às
novidades.
Os temores do autor tinham eco em notícias como a publicada na edição de 12 de
novembro de 1897 de O Rio Negro, que noticiava um crime político, um dos primeiros da
República. O novo regime mostrava a face cruel da disputa de poder através de um atentado
contra o primeiro presidente eleito pelo voto direto. A tentativa de assassinato do Presidente
Prudente de Moraes, que tinha nos chamados “florianistas” (adeptos do presidente anterior, o
militar Floriano Peixoto) seus principais inimigos, acabou com o assassinato do então Ministro
da Guerra, Marechal Carlos Machado Bittencourt7.
7 Em 5 de novembro de 1897 o presidente sofre um atentado no cais do porto do Rio de Janeiro. Um soldadoflorianista, Marcelino Bispo, tenta atingi-lo, e acaba matando o ministro da Guerra. O incidente dá pretexto parao Congresso decretar estado de sítio. Com poderes excepcionais, Prudente de Morais prende seus opositores,
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O Brasil inteiro acompanhava atento e temeroso as agitações políticas, e os jornais do
período refletem a instabilidade desse momento da jovem República, que ainda se defrontou no
mesmo período com a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul e com a Guerra de
Canudos, no sertão nordestino. Assim como ocorrera anos antes, durante a Guerra do Paraguai
(1864-1870), a jovem província do Amazonas mais uma vez era instada a arcar com uma parte
do ônus da guerra, talvez pesada demais para seus ombros.
As conseqüências repercutiram na província e na Amazônia como um todo:
contribuindo, por exemplo, para o agravamento do alegado “vazio demográfico” em áreas
estratégicas, ocasião em que os homens foram obrigados a embarcar nos piquetes para servir na
capital da república, na maioria das vezes compulsoriamente, como observou Elizabeth Agassiz
em passagem pela província durante o conflito que narrou um caso em que homens foram
acorrentados para o embarque. A ausência dos homens em função do recrutamento pelos
soldados da Guarda Nacional obrigara as mulheres a ocupar posições de comando
tradicionalmente próprias deles, como a administração dos negócios, especialmente no interior,
contribuindo para a formação de um sentido diferenciado de autonomia em algumas mulheres
do interior da província (SANTOS, 2005).
Passando pela política regional, a Amazônia ainda sofria com a indefinição de
fronteiras, como demonstram a polêmica diplomática entre Brasil e França, chamada Questão
do Amapá - de 1853 a 1900 (O Rio Negro, n. 108 de 13/11/1897) e a Questão do Acre, entre
Brasil e Bolívia (1899 a 1903)8.
Em 1897, Manaus mal começava a acordar para os primeiros acordes do inebriante som
da modernidade. Ainda guardava o aspecto de uma vila, e parecia que ainda não se apropriara
de suas novas funções como capital provincial. A rapidez da informação através do telégrafo
fecha jornais e acaba com qualquer manifestação política, consolida assim definitivamente a presença de civis no poder federal, substituindo o governo dos militares pela Oligarquia dos grandes donos de terra. Prudente deMoraes consegue, desta forma, eleger seu sucessor no mandato seguinte, o também cafeicultor Campos Salles.8 A Questão do Amapá ocorreu em torno da disputa entre Brasil e França por territórios situados entre oOiapoque e o Araguari, e foi solucionada mediante o julgamento de um tribunal internacional, que deu ao Brasila posse definitiva da região contestada. A Questão do Acre foi encerrada através do Tratado de Petrópolis, peloqual o Brasil comprou da Bolívia o atual território do Acre.
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possibilitava informações da capital federal em tempo muito menor do que jamais se pensara. É
necessário que diga, contudo, que antes do acontecimento da borracha já havia um “projeto de
cidade civilizada” sendo implantado, projeto este anterior à proclamação da república. Como
assinala Ana Maria Daou, os jornais locais já divulgavam as intervenções do poder público
imperial sob a malha urbana, através das ações dos presidentes da província no final da primeira
metade do século XIX.
Manaus, como capital da província, expressa a vontade do governo imperial emais especificamente sua intenção em relação ao território que constituía até entãouma significativa área do antigo Grão–Pará. Será o ponto avançado da expansão do
Estado monárquico, (...). Será ainda o locus por excelência do fazer civilizatório, alionde a existência de uma pródiga natureza conjugada à presença de uma população“considerada” inapta e incapaz recolocava para as elites brasileiras a questãodominante de construção de uma nação “civilizada” (DAOU, 1998; p.162).
Esta abordagem apresenta ainda um outro aspecto para reflexão da historiografia local:
vai de encontro às afirmações de que a cidade de Manaus foi produto exclusivo da elite da
borracha9. Por outro lado, detecta-se um contraste entre os projetos de cidade engendrados
durante o Império e aqueles levados a termo no período republicano. As ações da administração
provincial eram pontuais, ao contrário da atuação de caráter tecnicista dos engenheiros
republicanos; como a autora demonstra, as distâncias entre os tipos de intervenção podem ser
ilustradas pelos prédios “símbolos” de cada período: no Império, a Igreja da Matriz, na
república, o Teatro Amazonas.
Numa região onde as fronteiras não estavam bem consolidadas e onde as relações de
dependência com a metrópole portuguesa foram rompidas muito mais tardiamente que no resto
do país (mesmo após a independência a Amazônia continuou ligada a Portugal especialmente
em função do grande contingente de portugueses que predominavam nos cargos administrativos
locais), o ônus representado pela guerra não estava só no recrutamento de pessoas, braços
preciosos para a ainda tímida economia regional, mas no impacto cultural que a violência da
guerra proporcionava.9 A historiadora Francisca Deusa Sena da Costa (1997; p.30), também chama a atenção para o fato de que algunsautores locais contestam a visão de que a transformação da cidade só teria se dado através da economiagomífera.
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No que diz respeito ao desenvolvimento urbano de Manaus do final do século XIX, a
florescente civilização ocidental nos trópicos ainda debatia-se contra os “resquícios” de um
passado indígena que lutava para sepultar. A própria capital, Manaus, foi emblematicamente
construída sob um cemitério indígena. Focos de resistência indígena ainda atemorizavam os
brancos que se aventuravam pela aventura da borracha nas estradas de seringa dos interiores,
contribuindo para a constituição do imaginário regional negativo sobre a figura do índio, apesar
das epidemias que devastaram a população aborígine desde o século XVI.
O historiador Vitor Leonardi, Costa (1997) argumenta que a inserção da região
amazônica na divisão internacional do trabalho não teve o mesmo efeito que em outras regiões
do planeta, onde o capitalismo, mesmo coercitivamente, contribui para o desenvolvimento das
forças produtivas. Os altos lucros proporcionados pelo extrativismo constituíam-se numa
armadilha perigosa, pois se tornaram obstáculos para o desenvolvimento de outras modalidades
econômicas, requisito para a formação de uma mentalidade capitalista, uma vez que as práticas
de trabalho compulsório e o aviamento dificultavam a constituição e consolidação de um
mercado consumidor local.
Um outro problema, já mencionado, era a constante carência de mão-de-obra para o
trabalho na produção de seringa. As dificuldades para captação de trabalhadores nos seringais
foram constantes durante todo o ciclo. O problema da população foi desta forma, um dos
primeiros a serem abordados pela elite pensante local. O periódico O Rio Negro de 03/08/1897
alertava sobre recentes ataques dos índios Jauapery (em Mauá, no rio Negro) a colonos locais.
O articulista relata o número de 3.000 indivíduos “belicosos”, lembrava da importância da área
pela presença de várias árvores de seringa e castanha.
A questão do índio era alvo das preocupações das mentes iluminadas da época: no bojo
das tendências higienistas que propagavam a necessidade de “limpeza” da raça com a
miscigenação do negro e do branco, em Manaus alguns artigos apontavam para a necessidade
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de inserção de contingentes populacionais externos que pudessem contribuir para o
“melhoramento da raça”.
Em artigo sobre a temática das condições para o povoamento da região, publicado em O
Rio Negro, n. 13 de 08/08/1897, Torquato Tapajós aponta a necessidade de um conhecimento
mais amplo e aprofundado sobre o sistema hidrográfico, do solo e das condições climatológicas
da região e propõe a constituição, por parte do governo, de comissões de exploradores que
pudessem percorrer a vastidão da província fornecendo dados que possibilitassem o
planejamento de ações de colonização em áreas remotas. A lucidez das idéias de Tapajós,
contudo, mascaravam a tentativa de dar uma nova face à população provincial, face esta diversa
da então existente: a indígena.
As soluções propostas pelos intelectuais locais também passavam pelo consagrado
recurso da catequese, como demonstra artigo de 24/01/1898, no mesmo jornal, intitulado
Cathequese e civilização dos índios. É fato que a Igreja foi o grande braço do Império na
pacificação de índios pelos sertões do território, a fim de expandir a área colonizada através de
missões católicas que foram, até o início do século XX, praticamente as únicas interlocutoras da
sociedade nacional com os indígenas de grandes áreas.
Com a valorização internacional do preço da borracha, a falta de mão-de-obra que desse
conta da demanda internacional provocou a elaboração de diferentes soluções. O Rio Negro de
17/11/1897 publicou um anúncio da firma A. Fiorita & Cia. O produto que ofereciam: de mão
de obra migrante do Japão, oferecida aos empresários locais. Ferreira de Castro, no célebre
romance “A Selva” descreve a passagem de um dos navios de japoneses rumo às novas frentes
de trabalho no interior da província.
Contudo, o problema da mão-de-obra persistiu durante muitos anos, sendo um dos
principais obstáculos do empreendimento mercantilista ligado à borracha. São conhecidos os
dados que apontam para o estímulo dos governos locais à migração de nordestinos para a
Amazônia (cearenses, maranhenses, pernambucanos, entre outros), para o que muito
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contribuíram as secas no Nordeste do final do século XIX e início do século XX, além da
imigração estrangeira, especialmente de portugueses, peruanos, árabes, italianos, alemães,
bolivianos, entre outros.
As preocupações com os problemas da economia gomífera, contudo, estavam longe de
serem os únicos assuntos que figuravam nos jornais. Uma leitura nos anúncios revela a adoção
de novos hábitos de consumo, acessíveis aos enriquecidos com o dinheiro da borracha, direta ou
indiretamente. Ao lado dos reclames das livrarias anunciando a chegada dos últimos romances
de Machado de Assis e Eça de Queirós, e das últimas novidades da Europa em matéria de
roupas para senhoras, temos os anúncios de “farinha suruhy”, “chá de matte”, carne seca, feijão
preto, queijos do Ceará, carne seca, manteiga, goiabada.
Estamos num período especial da história local, quando os primeiros efeitos do
acontecimento da borracha10 já se fazem sentir, por exemplo, no aumento do número de
publicações na forma de diários de notícias, fundados na cidade durante o período. Através da
leitura dos jornais da emergente Manaus do final do século XIX é possível visualizar o caráter
ao mesmo tempo irremediavelmente provinciano e virtualmente cosmopolita que a cidade
manteve pelo século que se seguiu.
A maior circulação de mercadorias importadas das áreas industrializadas do restante
Brasil e do mundo possibilitou, além das transformações de hábitos de consumo, novidades no
trabalho doméstico. Embora as imagens das revistas da época retratassem as donas-de-casa
como felizes com as tarefas domésticas (MALUF e MOTT, 1988), a realidade é que o trabalho
de casa, considerado o único apropriado à sua fragilidade física, era demasiado pesado e
insalubre: as panelas eram lustradas com a ajuda de areia friccionada na superfície do metal –
daí vem o termo “areiar” - o processo para engomar as roupas era igualmente difícil, com
opções que variavam pelo uso de clara de ovo em certos tecidos, ou somente o uso do pesado
ferro de engomar, um artefato pesado, que tinha seu calor alimentado por brasas incandescentes
10 O termo “acontecimento da borracha” está empregado aqui no mesmo sentido que Daou (2000) emprega: nãoapenas relacionado às transformações na economia local, mas principalmente no modo de vida e valores dasociedade.
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e que não raramente proporcionava queimaduras às donas de casa. O fogão era à lenha, e como
não havia tantos produtos de limpeza como hoje em dia, a maioria dos recursos era de
fabricação das próprias mulheres, como sabão à base de gordura, entre outros. A “rainha do
lar”, no final das contas, não passava de uma trabalhadora braçal. Para as que podiam pagar
serviçais, porém, o julgo doméstico era mais ameno. Ter em casa uma mulher que podia
dedicar-se somente à supervisão do lar era um privilégio para poucos e, portanto, funcionava
como um signo de status.
Um arsenal tecnológico é colocado à disposição das classes mais abastadas para facilitar
a vida em casa, luxos da modernidade que se aventurava na selva: “machinas” de café e de
costura, “philtros para água”, conservas importadas. Para cuidar da vaidade, cintas milagrosas
que prometiam corrigir os corpos e afinar a cintura, toalhas higiênicas para os dias de “regras”,
espartilhos de barbatanas de ferro maleáveis e, é claro, os maravilhosos vestidos, chapéus,
meias e acessórios, segundo a última moda na França. O status de riqueza foi sendo associado
ao poder de compra. Para resguardar as fortunas, cofres a prova de fogo; para cuidar da cultura,
anúncios de livrarias e de novos lançamentos de livros recém-chegados da Europa. A felicidade
estava ao alcance das mãos... que portassem notas para comprá-las.
A grande quantidade de anúncios comerciais reflete uma ampliação considerável do
comércio: anuncia-se de tudo – chocolates, ateliês de fotografia, cervejaria, queijos finos, fitas
de seda, além dos médicos, dentistas, advogados e engenheiros, que passam a anunciar seus
serviços em anúncios, demonstrando o crescimento do segmento dos profissionais liberais na
cidade (O Rio Negro, 11/11/1897).
Para o pensamento local, tais elementos de prosperidade deveriam ser expressos não
apenas da ampliação da rede de serviços a uma parcela privilegiada da população, mas
deveriam ser acompanhados da concretização do fausto através da apropriação da tecnologia
urbana disponibilizada pelo capital. Os articulistas dos jornais eram porta-vozes desses anseios
e anunciadores entusiastas das novidades que chegavam à cidade. A re-inauguração do serviço
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telefônico em Manaus, ocorrida no dia 1.º de dezembro de 1897, por exemplo, mereceu
insistentes comentários louvando quando os telefones foram reinstalados (O Rio Negro n. 113
de 13/11/1897). A mesma paixão entusiasta, porém, poderia converter-se em cobranças,
demonstrando que o controle social pela imprensa consolidara-se também na república. As
reclamações eram muitas: A The Manaos Eletric Company é criticada por ainda não ter
instalado o sistema de iluminação elétrica na cidade na edição de O Rio Negro de 04/12/1897 e
o serviço de bonds, um dos orgulhos de Manaus, é adjetivado como vergonhoso, com “carros
immundos e indecentes, condutores mal-vestidos, machinas estragadas, impróprios d`uma
capital civilizada...” (grifo meu).
As queixas com finalidade didática eram também muitas. Reclamava-se de tudo que não
pudesse ser descrito como hábitos próprios de “uma capital civilizada”, como disse o articulista:
exigia-se que os fiscais de limpeza pública multassem os donos dos prédios que deixavam nas
ruas os restos dos materiais que não haviam sido utilizados nas construções, que se
cadastrassem os cães, que se cobrassem a higiene dos usuários dos bonds e condutores do
serviço, bem como o estado dos veículos urbanos, especialmente as carroças, malvistas pelo
significado rural de sua visão e que tinham sua circulação restrita de várias formas, através de
leis e interditos:
Os mesmos proprietários deveram pintar suas carroças e trazê-las comesmerado, sob pena de multa, e bem assim os proprietários de cocheiras vaccuna ecavallar, deverão trazer seus ferros a esta repartição para serem registrados até o dia15 de novembro, sujeitos à pena de multa se assim não fizerem (O Rio Negro,
03/12/1897).
Os códigos de postura, como lembram Dias (1999) e Costa (1997), foram instrumentos
eficazes de normatização das condutas em solo urbano. A obsessão por controle, típica da
administração pública moderna, levava a regulação dos atos mais simples, como a pintura e
reforma das casas, até problemas estéticos como as denúncias sobre o “péssimo estado do
Porto”, As preocupações dos articulistas dos jornais também estavam localizadas em aspectos
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estruturais do crescimento da cidade, como os insucessos da pecuária local e os problemas com
o abastecimento de víveres (O Rio Negro, 30/11/1897).
O tema campeão de reclamações, contudo, era mesmo a permanência de um símbolo
regional nas áreas centrais da cidade: as casas com cobertura de palha. Os jornais noticiavam
com presteza os incêndios em tais locações, com a afirmação de que não havia mais espaço para
tal tipo de construção na paisagem urbana (O Rio Negro, n. 106 de 11/11/1897), ou mesmo
manifestando alívio quando o poder público removia alguma delas.
Até que enfim sahiram da Praça da República as barraquinhas de palha! Nãosabemos quem as deveria demolir, sabemos, porem, que o gogo encarregou-se dedestruíl-as desentulhando ruas laterais do jardim. Foi um ato digno de benemerência publica e como tal ficará registrado no espírito do povo (O Rio Negro n. 130 de 06/12/1897).
Não há dúvidas, pela análise do que já foi exposto aqui e em outros trabalhos (DIAS,
1999), que a ideologia vigente desenha um quadro de segregação das classes baixas do espaço
urbano como tendência, convergindo no afastamento destes segmentos para a periferia da
cidade através da desapropriação de casas consideradas insalubres ou destoantes da paisagem.
Costa (1997) adverte, porém, que tal processo não pode ser tomado como linear nem direto.
Para a autora, as reformas de valorização dos espaços urbanos não foram as responsáveis diretas
pela expulsão, derrubando as teses “evolucionistas” da historiografia regional que passam a
imagem de uma transformação urbana quase instantânea e não-problematizada.
Segundo Costa, “A Manaus ideal e a Manaus real existiram concomitantemente”, o quesignifica dizer que os segmentos populares encontraram soluções para a ocupação do espaço
urbano, fosse através das habitações coletivas, os “cortiços”, cujas bem-cuidadas fachadas,
enquadradas nas exigências dos códigos de postura, escondiam a insalubridade e a pobreza de
seus interiores ou mesmo em porões alugados como dormitórios aos empregados pelos patrões.
A Manaus real também mantinha vivo o modo de viver indígena, fosse nos casebres ocultos
pelos edifícios ou nos hábitos comuns que seus descendentes insistiam em manter apesar da
consternação das autoridades, caracterizando
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...a cidade mestiça que teimava em sobreviver nos arrebaldes [sic] atravésdos hábitos populares como o banho de igarapé, o consumo de peixe, o uso da redee da casa de palha, já que aí o rigor fiscalizatório era menos intenso. (COSTA, op.cit.: p. 91)
E as mulheres? Na cidade as mulheres não estavam somente no interior das casas,
resguardadas dos olhares públicos. Com a expansão da rede de serviços, a administração
regional cultiva preocupações relativas à formação de uma província desenvolvida, de acordo
com o significado que o termo possuía: foram criados postos de trabalho na área da educação, e
as mulheres já ocupavam um espaço destacado nesta área em virtude do exercício da profissão
de professoras nos colégios religiosos para meninas ou nos domicílios, como preceptoras de
jovens, como demonstram os anúncios dos jornais de oferecimento de serviços.
D. Guilhermina Cruz, de regresso dos Estados Unidos da América do Norte,onde visitou os principais estabelecimentos de instrucção, aperfeiçoando-se nosmethodos modernos de ensino, offerece os seus serviços profissionais aos collegiose particulares. Pode ser procurada em sua residência à Rua Ramos Ferreira, n.º 17(O Grêmio, 05/09/1909).
Além de professoras, havia modistas (costureiras), atrizes, domésticas, operárias e
vendedoras ambulantes. Costa (2000) constata que traços de autonomia, como o trabalho
assalariado, é uma característica que foi alcançada pela mulher amazônica antes mesmo que as
mulheres de outras regiões do país. Durante nossa pesquisa exploratória nos jornais antigos,
encontramos uma referência de assalariamento de serventes do sexo feminino que trabalhavam
no quartel da Villa da Barra datada de 1856. Não queremos dizer com isso que o assalariamento
conflui necessariamente para a institucionalização de um sentido de equanimidade entre os
sexos. A mulher ainda é o elemento submisso da sociedade em Manaus e no resto da província,
embora tal submissão possua nuanças diferenciadas.
Os papéis de gênero eram fortemente estabelecidos e difundidos através da educação.
Às mulheres eram atribuídas características que reforçassem seu papel de matriz reprodutora,
qualidades que valorizassem o comportamento submisso e generoso, que viabilizassem a
diluição da individualidade e a entrega total à condição materna, sem esquecer dos atributos
constitutivos de sua imagem de “belo sexo” como a caridade, a presteza e a vaidade. Aos
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homens e mulheres que ousassem ultrapassar a linha dos papéis atribuídos, mesmo que fosse
num simples gesto, a exposição pública era inevitável, como fica claro no “poeminha” escrito
para um certo Dr. Azevedo que, aparentemente, foi pilhado usando uma espécie de cinta,
provavelmente para reduzir a barriga.
“Notas de um chronista”O que!?A moda está sofrendo grandes transformações.As mulheres bicicletistas já usam calças. Não será impossível que os homens passem a usar saias.O Sr. Azevedo já espartilha-se
Seriamente tenho medo,Estou mesmo atrapalhadoPois o Sr. AzevedoAndará espartilhado?
Não serão taes notas falsas?Que importa... Dê no que der Morrerei côas minhas calças...use saias quem quiser!(O Rio Negro, n. 06 de 31/07/1897).
O caso, sem dúvida cômico, acaba servindo de pretexto para um arroubo de
masculinidade por parte do articulista e para a reafirmação da definição de papéis sexuais e de
gênero, que inevitavelmente começava a sofrer mudanças, mesmo que as que mais chocassem
os jornalistas fossem as de vestuário. Homens e mulheres deveriam ter papéis e posturas bem
definidos, e tal diferença deveria estar refletida no modo de pensar e agir.
A mulher pensa com o coração, diz o provérbio inglês; o homem com acabeça. Quantos há que, se pudessem, trocariam bem os papéis! (Ed. Thibaudt) (O
Rio Negro, n. 175, 22/01/1898)
A sensação de que alguma coisa estava mudando, porém, permanecia. Com tamanha
perplexidade, não faltou quem prevesse que a humanidade estaria a ponto de sofrer um colapso,
como um certo sábio inglês, objeto de matéria de O Rio Negro de 30/01/1898 que, através de
cálculos matemáticos estatísticos, previa que a humanidade toda enlouqueceria em 400 anos.
Disputas discursivas em torno da mulher: religiosidade e liberalismo
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Uma das características da ascensão do liberalismo é a crítica ao poder da Igreja. É
importante deixar claro que esta crítica não se direcionava contra a religião propriamente dita; a
religiosidade era parte importante no projeto de sociedade do liberalismo, uma vez que esta se
concatenava com o sentido de ordem, tradicionalismo e estabilidade preconizados por este. Por
outro lado, era preciso retirar da Igreja sua coroa de “senhora absoluta da verdade”. Neste
sentido, o noticiamento de escândalos envolvendo padres como o caso do sacerdote Baptista
Salvi, preso em Roma no dia 18 de novembro de 1898 sob a acusação de cometer “torpezas”
com garotos (O Rio Negro, n. 123, 29/11/1897) ou a nota sobre o suicídio do Parocho Vicenzzo
Ingente foram formas de questionar a Igreja enquanto instituição, sem contudo romper
definitivamente com ela.
A Igreja é colocada em cheque pelos positivistas liberais. Para a elite pensante, a
religião passa a figurar entre os hábitos dos ignorantes, dentre os quais se inclui a mulher, como
demonstra este trecho de um artigo publicado em um jornal local sobre o caráter religioso da
mulher brasileira.
Tua mulher é catholica, quer dizer – meteram-lhe na cabeça o “padre nosso”,o “Creio em Deus Padre”, a “Ave-Maria’ e depois disso o pendor para osobrenatural e o gosto do mystico, levaram-na a ter fé em certa oração de santo ousanta, cuja especialidade é aplacar tempestades como Santa Bárbara e SãoJerônimo, ou livrar de espinhas na garganta como São Bráz; esta metade do teu ser é isto, como geralmente o é a mulher brasileira (O Rio Negro, n. 125 de01/12/1898).
Apesar das críticas, a devoção religiosa era considerada um atributo desejável nas
mulheres, contanto que tal devoção fosse racionalmente administrada “a mulher não devendo
ser nem devota, nem sábia”, como afirma um outro artigo. Os hábitos religiosos são
considerados uma forma eficiente de manter as mulheres ocupadas em algo que não trouxesse
maiores prejuízos à sua intelectualidade “frágil”, e os homens são admoestados a não
interferirem, e mesmo a acompanhá-las, mesmo que isso nem sempre fosse agradável, como
mostra o artigo “São José de Ribamar”, no qual um homem descreve as agruras pelas quais
passa ao acompanhar sua esposa ao Santuário de São José do Ribamar, no sertão maranhense,
onde supostamente esta iria pagar uma promessa.
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Sabes o que é o carro da carroça, essa carangueijola de rodas que vãogemendo, cae aqui, cae acolá, em solavancos que se avaliam pelas depressões doterreno quando, do solo de argila solidamente argamassada ao sol, o passo tardo dos bois resvala e se afunda na areia. Não sabes dou-te a imaginar esta delícia e dava-tana realidade para com ella te ninares, se eu, ai de mim! não a houvesse
experimentado em dia de devota romaria de minha mulher que, segundo minhacartilha, muito anterior à descoberta de Frei Piazza, nos passos de sua devoção,deve ir sempre acompanhada de seu marido, mesmo porque, até em couzas profanas eu penso, como na comedia de Molliere: “deve um marido pelas boasnormas, escrever tudo o que se escreve em casa (...) Permiti-se-lhe rezar, cumprir ovoto honesto que encerra uma idéia de religião, uma conspiração, um annelo, umacrença, e da mesma forma permite-se-lhe um devaneio, uma phantasia noauthographar do nome (inilegível) ou do rol de roupa que vae a fonte (O Rio Negro,n. 125 de 01/12/1898).
Apesar das duras críticas à igreja e a ridicularização de hábitos devotos, a religiosidade
não é desestimulada nas mulheres, pois é tida como uma característica feminina sendo, todavia,
constantemente associada à ignorância e ingenuidade, especialmente nos periódicos liberais.
É tão simples tudo isso e tão delicado, tão genuinamente feminino. Aprecia-ose es alma irmã dessa que elegeste para consorte (O Rio Negro, n. 125 de01/12/1898).
A mulher, por sua religiosidade, socialmente estimulada, é pintada como um ser
inconseqüente, cuja ignorância a levaria a ter na religião sua única preocupação real. Já omarido da devota de São José, que relata o caso, reclama o desconforto da viagem, mas acaba
conformando-se, afinal é um traço feminino, mais uma qualidade desejável numa boa esposa,
pois promove a doçura e a obediência.
O trabalho religioso era considerado digno das senhoras e senhoritas de família, através
do qual elas podiam dedicar seu tempo e talento sem maiores consternações:
Amanhã às 16 horas e trinta minutos, na Villa Municipal, a primeira pedra deuma capela que terá como padroeiro, ao que nos informam, N. S. do PerpétuoSocorro. Para essa cerimônia veio convidar este vespertino uma commissãocomposta de Maria de La salet e das gentis “Signoriñas” Zuila Moreira, BenedictaLemos e Joana Silva (O Esfola, 13/12/1913).
O Caso da Menina Margarida
Um fato marcante para avaliarmos o quanto a Igreja católica perdia terreno para outras
formas de explicar o mundo foi o ferrenho debate instaurado a partir de um episódio no mínimo
grotesco: uma criança, filha de uma migrante e moradora de uma área periférica de Manaus que
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nos últimos anos do século XIX, que alegava “incorporar” o espírito de um homem vítima de
assassinato.
Margarida é descrita nos jornais como “uma menina forte, bem disposta, loura e, a ser a
sua idade de doze anos”, de “desenvolvimento é demasiado precoce”. (...). Filha de uma mulher
portuguesa (que tudo indica que era mãe solteira, já que não há menção ao pai) afirmava
“incorporar”, em transe, o espírito de um homem chamado José Patella, cuja morte era capaz de
descrever em detalhes. As circunstâncias em que Margarida supostamente ganhara o dom eram
quase tão incríveis quanto o mesmo:
Margarida, quando banhava-se em um igarapé, vê duas serpentes e,atemorizada, corre a contar a portuguesa Maria, sua mãe, o que vira. A esta simplesnarração, o português Chico Folha, que se achava na casa, cahe em plenosonambulismo e conta o assassínio de Patella por um índio peruano. Naquele estadocomunica-se a menor, que pelos modos parece ser hoje paciente de uma doençanervosa, cujas crises se reproduzem. (O Rio Negro, n.03 de 29/01/1898)
O estranho caso levado à polícia e acompanhado com interesse pelos diários locais,
transformando-se no ponto crucial de disputas entre sujeitos de “conhecimentos emergentes”,
como a ciência médica e psiquiátrica, representada pelos esforços em extrair as informações
mediante o uso de hipnose na garota, primeiramente pelo próprio chefe de segurança, que tenta
em vão submeter Margarida a influência hipnótica, sem sucesso11, e depois a um médico local,
um certo Doutor Palhano, a quem a menina é levada depois do fracasso do policial. Este
aparentemente obteve êxito, embora os jornalistas desconfiassem que alguma coisa estava
errada:
Diz o nosso colega Comércio que o Doutor Palhano conseguia hipnotizal-aobtendo resposta de todo o questionário que ele fez, com exclusão apenas doreferente a morte de Patella. Achamos estranho, entretanto, que estando em talestado, reagisse por si voltando ao estado natural, o que não nos parece um bomindício de completa hipnotização (O Rio Negro, n. 03 de 29/01/1898).
O Dr. Palhano, contudo, não foi o único a fazer experiências com Margarida. Várias
seções foram realizadas, inclusive com a condução de outros médicos iminentes, acompanhadas11 Os métodos de hipnose na época, como hoje ainda, não eram de domínio público, o que torna a tentativafrustrada do policial em usar a mesma totalmente pitoresca e até certo ponto cômica.
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por jornalistas e outros homens de destaque, visto que o fenômeno da “sonâmbula” como foi
chamada em alguns artigos, constituía-se numa forma de dar vazão ao uso de técnicas
científicas modernas como a hipnose, nascidas em campos emergentes como a psiquiatria. Tudo
leva a crer que tais seções constituíram-se em interessantes “laboratórios” de experimentação
dos homens de ciência de Manaus naqueles primeiros meses de 1898 que antecediam a
passagem do século.
... não resistiu a influência hipnótica, cujo sono manifestou-se logo. Começouentão a repetir o mesmo acionado conhecido: mediu o cumprimento da lâmina dohomicida, reproduziu o movimento da punhalada, o impulso que atirou o corpo no
igarapé, e o col(?)tar das duas serpes e o trabalho destas devorando o cadáver.Disse as promessas que deveria cumprir, a libra em prata, as mirras, especificandoos mandatários que desejava, a conclusão da canoa, onde se devia inscrever seunome e tudo que já está no domínio público, como sendo José da Costa Patella avítima do crime. Ao terminar a sessão, manifestou-se na doente uma crise nervosa,em seguida um estado adinâmico (O Rio Negro, 30/01/1898).
Apesar dos jornais mencionarem que a polícia apelara para a prática hipnótica como
forma legítima de tentar elucidar os fatos, tudo leva a crer que em termos técnicos as
autoridades locais não tivessem condições para isso. Além da consolidação de teorias queoriginaram a criminalística, onde métodos científicos e médicos começaram a ser usados como
principal suporte para a investigação de crimes, na época a hipnose popularizara-se na Europa
através da Escola de Salpêtrière, na França, que tinha como principal expoente o médico Jean-
Martin Charcot. Em um de seus mais importantes trabalhos, apresentado na Academia Francesa
de Ciências, em 1882, Charcot descreve a hipnose como um estado patológico de dissociação,
no qual o transe seria o equivalente clinicamente “produzido” do processo histérico e das
anormalidades no sistema nervoso.
A vinculação entre hipnose e doença popularizou-se nos meios científicos e marcou toda
a definição da disciplina e prática hipnótica, lançando sua influência em vários estudiosos como
o próprio Freud, adepto desta acepção. O emprego de adjetivos como “robusta” e “precoce para
sua idade” para caracterizar Margarida, revela que no entendimento geral o caso tratava-se de
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uma manifestação de histeria, provavelmente devido a uma maturidade sexual antecipada, como
deixa claro um dos articulistas na passagem abaixo:
A polícia continua a trabalhar para a verificação deste caso estranho, que por nós levamos a conta de uma imaginação doentia, natural aos temperamentoshistéricos, como da menor em questão (O Rio Negro, n. 183, 30/01/1898).
Embora os jornalistas mostrassem-se céticos em relação ao fenômeno, creditando o
comportamento de Margarida a crises patológicas, um outro grupo interessou-se pelo caso e
também realizou experiências por sua conta: kardecistas, que realizaram seções espíritas com a
menina, por vezes logo em seguida às seções hipnóticas:
Seguiu-se uma experiência espírita por diversos cavalheiros, na qualMargarida ainda uma vez repetiu a mesma cena, com acréscimo apenas do perdãodo assassino – o índio peruano Domingos (O Rio Negro, n. 183, 30/01/1898).
Para compreender a importância da presença dos espíritas na cena social de Manaus e
seu acesso à Margarida, é necessário um breve panorama da emergência do kardecismo no
quadro das idéias do final do século XIX. Este se caracteriza pela reificação da ciência moderna
e racional em oposição à magia, religião e tradição. A ênfase na ciência como detentora da
verdade teve como repercussão o positivismo, o cientificismo, o empirismo e o evolucionismo.
A difusão destas teorias teve um grande impacto na formulação da doutrina espírita por Allan
Kardec, seu fundador, que a concebe como um corpo de conhecimentos racionais. “Além disso,
ele aproximou-se dos fenômenos associados ao espiritismo com uma curiosidade cética e
insistiu em sustentar as credenciais científicas da doutrina” (Emerson Giumbelli, apud
KANASHIRO, 2004). Assim sendo, o espiritismo é interpretado como uma produção histórica,
encontro de estratégias discursivas desenvolvidas por agentes diversos. Os espíritas reivindicam
reconhecimento público como seguidores de uma doutrina séria, por ser baseada em
pressupostos científicos supostamente verificáveis.
Em Manaus, a facilidade de obtenção de informações, a leitura de jornais franceses e o
intenso intercâmbio cultural com a Europa provavelmente tornaram os fenômenos das “mesas
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dançantes” dos salões franceses conhecidos, e não tardaram a chegar os primeiros adeptos do
kardecismo que, uma vez estabelecidos, instituíram grupos, recrutando membros entre o seleto
segmento dos intelectuais locais, como normalmente acontecia nos locais onde o kardecismo
era introduzido.
As primeiras referências da presença espírita na província do Amazonas, segundo a
própria Federação Espírita Amazonense (1984), são da revista “Reformador”, de 1884,
publicada na então capital federal, a cidade do Rio de Janeiro. As primeiras entidades, contudo,
começaram a reunir-se nos primeiros anos do século XX.
Ao que parece, o caso Margarida tornou-se estopim de uma disputa entre espíritas e
positivistas, ambos em busca de reconhecimento. Os constantes ataques aos kardecistas,
promovidos por liberais de vertente positivista através de chistes e ditos jocosos publicados
gerou a revolta do grupo, que se valeu também dos jornais para expressar sua indignação e
protestar respeito em função da seriedade do espiritismo e do alegado desprezo da doutrina ao
fanatismo e à ignorância.
Em um artigo indignado, publicado em 04/02/1898 e assinado pelo Sr. C. Gonçalves –
em cuja casa encontrava-se hospedada Margarida, os espíritas refutam energicamente o escárnio
contra os espíritos e evocam homens ilustres da ciência para embasar seus argumentos de que o
espiritismo possuiria uma postura séria e comprometida com a busca da verdade através de
procedimentos científicos.
Muito mais interessante que o caso de “mediunidade” descrito nos jornais é a disputa de
poder que se estabeleceu entre agentes sociais diversos. Chama a atenção que em nenhum
momento seja mencionado que se tenha recorrido ao auxílio da Igreja ou de algum
representante seu, como um padre. Margarida torna-se exclusividade dos médicos, da
autoridade pública, personificada na polícia, e dos espíritas, representantes de três ordens
sociais distintas, porém relacionadas, em intersecção, uma vez que como vimos, pertenciam a
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estratos médios urbanos e estavam sobre influência de idéias importadas em função das
possibilidades de comunicação ofertadas na época.
O episódio de Margarida também é emblemático ainda por exemplificar a apropriação da
intimidade pelas disciplinas e tecnologias que tinham como alvo o homem, transformado em
“objeto do conhecimento”: suas pulsões, angústias e transtornos.
Um outro aspecto que chama a atenção é a referência às práticas de confissão,
amplamente citadas por Foucault. Ousamos afirmar que a hipnose insere-se entre as chamadas
“regras meticulosas de exame de si mesmo” (FOUCAULT, 1988), representando inclusive uma
forma extrema dessa tecnologia, uma vez que se acreditava que o estado hipnótico poderia
quebrar as barreiras impostas pelas convenções sociais em busca da verdade absoluta dos
sentimentos mais ocultos.
A hipnose, segundo essa ordem de representação, possibilitaria o acesso à verdade do
corpo e da mente, as grandes aspirações modernas. Percebe-se ainda o esforço dos jornalistas
em apropriar-se da linguagem adequada a tratar dos fenômenos do sexo, emprestada do jargão
médico. Figuram nos jornais termos como biandria, estado adinâmico, histeria.
A condição de Margarida, atribuído a um estado histérico, e portanto característico de
uma sexualidade doentia, era não só contado e recontado várias vezes pela própria como
também ouvido e inquirido pelos médicos, jornalistas e curiosos, concretizando a síntese
foucaultiana da colocação do sexo em discurso.
Modelos de virtude: instrução, casamento, maternidade, família e caridade
Contudo, as representações sobre as mulheres não contavam só com grandes celeumas. A
abordagem dos papéis tradicionalmente destinados às mulheres no período em questão seria infrutífera
se não visasse o diálogo entre as concepções atuais e anteriores sobre gênero as relações de poder
entre os sexos. Neste sentido, podemos dizer que apesar das grandes transformações pelas quais
passou a condição da mulher no Ocidente, alguns “princípios motores”, ou linhas gerais das idéias
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sobre esses papéis ainda se fazem presentes, embora de forma menos determinante que no século
passado como, por exemplo, a própria situação de gênero e as hierarquizações sociais estabelecidas
entre homens e mulheres, notadamente construídas pelos primeiros.
Por outro lado, temos uma série de elementos cultural e historicamente localizados, relacionados
à realidade específica da mulher amazônica e da mulher na cidade de Manaus. Estes elementos estão
em constante câmbio com as idéias circulantes no restante do mundo, reelaborando e ressignificando
tais experiências externas, construindo uma forma própria de ver a mulher, inclusive no que diz
respeito à normatização dos corpos. Um instrumento importante neste sentido foi o ideal de
feminilidade trabalhado no romantismo, que serviu de balizador para o comportamento das mulheres
que desejassem ser vistas como parceiras socialmente legítimas para o casamento.
A idealização da mulher
Volvamos agora as vistas p’ra aquela linda morena, que traja seda de listasem campo cor de açucena. Repara a maga doçura d´aqueles olhos luzentes, na perfeição de seus dentes da mais esplêndida alvura. Como lhe ficam tão bem nonegro de seus cabelos o penteado em novellos, prendendo a flor que´ella tem!
Quando seus lábios ginga tem um sorrir de candura, não há mortal que a aventuraem alto grau não atinja. E quando sua voz divina desprende notas suaves semelha ocanto das aves, saudando a luz matutina. Euclides Faria (O Rio Negro, 29/11/1897)
A idealização da mulher característica da literatura romântica do século XIX tem grande
espaço nos jornais, seja na forma de poemas líricos, nos folhetins onde mocinhas românticas e
virtuosas ganham o coração de algum jovem mancebo, nos comentários elogiosos à beleza de
alguma filha de família eminente ou nas críticas que aquelas que fogem das convenções morais
sofrem.
De acordo com o ideal romântico, a mulher era feita para ser amada, contemplada e
conquistada. No plano da intimidade e das relações entre gêneros a introdução de “avanços
modernos” como a postura menos passiva de algumas moças no jogo da sedução - que até então
só tinha conhecido o protagonismo masculino - causava indignação em alguns homens, que não
toleravam que as mulheres fizessem-se objeto de disputa ou que pretendessem manipular o processo de conquista, como demonstra o consternado comentário transcrito abaixo:
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Não é ódio o que sinto por Ella. É pena. Doe-me vê-la tão formosa, tãoencantadora, tão ideal e tão indigna do amor que inspira. O seu olhar, o seu sorriso,a sua voz, que dir-se-ia um trinado, tudo faria-a acreditar um ser immaculado, àaltura da paixão mais impetuosa e ardente. Como a Cora ou a Graziela do Cantor Jocelyn, a musa inspiradora de um poema. Mas a natureza é assim. Tem caprichos
inexplicáveis. Põe no corpo de uma mulher, que é uma estátua, verdadeira criaçãogenial, uma alma que não pode ascender ao céu do sentimento e um coração quenão conhece senão pelo avesso o amor. A sua felicidade consiste no maior infortúnio de que se pode ser victima uma mulher: fingir que ama a todos e muito, para se supor muito amada. É um tipo digno de estudo. Estranha psychologia! (ORio Negro, 13/11/1897).
Apesar do espaço histórico que nos separam do século XIX, percebe-se claramente que os
discursos engendrados nesse processo têm algumas conseqüências diretas e ainda visíveis hoje:
a primeira seria a adoção de um duplo padrão moral – um normatizador, específico para as
mulheres e para o controle de seus corpos, e outro para o homem, privilegiando sua autonomia e
condição de comando. Para Foucault (1984), a vida social moderna está inevitavelmente
vinculada à ascensão de metodologias de normatização das condutas pessoais, o chamado
“poder disciplinar”, responsável pela produção de corpos dóceis, controlados e regulados pela
ordem social, em oposição aos corpos biológicos, instintivos e desejosos, guiados pela natureza
(GIDDENS, 1993). A idéia que sustenta o poder disciplinar é a de que não existe civilização
sem controle. Este é, notadamente, um ponto instigante para nortear as questões referentes ao
estudo das representações locais de sexualidade.
Num contexto como o da Belle Époque, o corpo feminino, controlado e “domesticado”
tem a finalidade de ostentar a riqueza do marido, seja na exclusividade do exercício de funções
domésticas, seja no uso de jóias, trajes e adornos caros. Os jornais são pródigos no anúncio de
lojas de artigos estrangeiros para as damas, confirmando a frase de Michelle Perrot “A mulher é
o espetáculo do homem” (PERROT, 2003). As mulheres deveriam refletir a riqueza e
prosperidade de seus parceiros.
Ana Maria Daou (1998) chama a atenção para o modo como as mulheres apropriam-se do
Teatro Amazonas como palco para sua apoteose “civilizada”. Em oposição à Igreja, que por
muito tempo fora o único espaço permitido às mulheres “honestas” para exibição, geralmente
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durante a missa de domingo, o Teatro funcionou, no dizer da autora, como uma “escola de
costumes” aonde se ia para observar e ser observado, especialmente as mulheres.
Exatamente as mulheres que duas, três décadas antes eram recorrentementedescritas pelos viajantes em função de sua postura recolhida às casas e por suaausência em determinadas comemorações que as fizessem se expor em pé deigualdade com seus maridos (DAOU, op. cit., p. 282).
Para preparar as almas femininas para apreciar as diversões requintadas era necessário o
fornecimento de educação de qualidade, mesmo que não que transcendesse as limitações até
então impostas às mulheres em nome das supostas “deficiências” de seu frágil corpo e cérebro
dito incapaz. Assim sendo, a educação feminina logo virou signo de distinção. Foram fundados
colégios religiosos para a preparação das “filhas-familia”, com a missão de convertê-las em
boas esposas e mães, conjugando o estímulo da já citada religiosidade com o brilho da
instrução. Tal cuidado com a formação espiritual, em detrimento da mente, valeu uma piada
publicada em O Rio Negro:
No collegio Sagrado Coração, apresenta-se o pai de uma educanda e perguntaa superiora:
- Que tal a minha filha?- Eh muito intelligente, muito submissa! Asseguro a V. Exc. Que não a
educamos para a Terra!...- Que eh isto? Exclama o pai – a Senhora pretende preparal-a para a
Marinha? (O Rio Negro, 04/02/1898).
Os eventos cívicos também passaram a contar com a participação de estudantes
femininas, como no dia 07 de novembro de 1897, as alunas do Gymnasio Amazonense
reuniram-se na escola pra uma ocasião solene: vestidas de branco e portando com fitas azuis de
cetim, elas foram as estrelas da homenagem que a cidade prestava a Candido Mariano,
comandante das tropas da província na Guerra de Canudos. A presença das jovens estudantes
no evento, representantes da nata da juventude manauense, tinha um significado especial.
Embora a escolarização entre as mulheres não tenha sido estimulada no período tanto quanto
entre os homens, a educação feminina era vista como condição para a superação da condição de
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vila e a incorporação de novos hábitos relacionados ao cultivo da cultura erudita e com a
formação de uma população instruída.
A presença das jovens na homenagem ao militar – aclamado como herói pelo sucesso da
campanha das tropas locais – e não nos custa lembrar a importância simbólica da presença
destas tropas no conflito, visto que a província do Amazonas lutava para obter destaque e
desvencilhar-se não só oficialmente, mas também de fato, do Grão-Pará – tinha um significado
especial, visto que estas garotas representavam o anseio de um futuro brilhante, tanto no campo
da intelectualidade e da prosperidade – pois as mulheres também representavam fertilidade e
continuidade, quanto no da força política, representada pela militarização.
A educação feminina passa a ser um atributo valorizado também na forma de cultivo do
amor às artes, símbolo de refinamento, como o aprendizado do piano, indispensável para
qualquer mocinha prendada que aspirasse a um bom casamento. A imposição do piano
disseminou-se de tal forma que chegou a ser ridicularizada:
- Meu querido Arthur, a tua prima é deliciosa, estou morrendo para que ela seja aminha mulher.- Tem um defeito!- Qual e?- Não sabe tocar piano.- Pois achas seriamente que isso seja um defeito?- Ouve! Não sabe tocar piano... Mas toca (O Rio negro, 10/12/1897).
Os jornais, todavia, cada vez mais expressam a valorização da instrução feminina.
Começam a aparecer anúncios pagos de pais parabenizando suas filhas por boas notas obtidas
na escola, como Beatriz Moura Alves, cumprimentada publicamente por seu orgulhoso genitor
nas páginas de O Rio Negro de 13/11/1897 pelas excelentes notas obtidas em seu exame escolar
final. O saber começava a constituir-se em um capital social importante para as mulheres, afinal
somente mulheres instruídas poderiam ter êxito na tarefa de formar cidadãos esclarecidos
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(ROHDEN, 2001), o que era enfatizado com uma das responsabilidades femininas na república.
Por outro lado, ainda imperava uma grande resistência à profissionalização feminina formal.
Nas escolas técnicas, os cursos franqueados as alunas eram apenas o de economia doméstica, e
visavam quase exclusivamente à atividade do lar, seguidos pelos cursos normais que formavam
professoras.
Notícias como a negação da petição de Mlle. Jeane Chauvin, formada bacharel em
direito pela Universidade de Paris à Ordem dos Advogados para obter o direito de exercer a
profissão ou os sucessos de Maria Augusto Generoso Estrella, a jovem brasileira formara-se em
Medicina em Nova York em 1881, além de cartas da escritora carioca Júlia Lopes12,
prenunciavam uma tímida agitação de um grupo de mulheres locais em prol da participação das
senhoritas manauaras em atividades ditas intelectuais. Assim, foi criado o “Grêmio Recreativo e
Litterário”, jornal com proposta de dar voz à produção escrita de mulheres na capital da
província, liderado por certa Senhorita Matilde Areosa.
Os argumentos das articulistas do Grêmio, que circulou entre 05 de setembro 1909 e 10
de julho de 1910, baseavam-se principalmente no significado que a instrução feminina
representava para as aspirações “civilizatórias” da elite local: “É preciso que os visitantes de
nossa terra fiquem convencidos de que em nosso meio há também moças intelligentes, educadas
e habilitadas”, conclamava Matilde, provocando os homens a apoiarem a nobre causa do
Grêmio com vistas a contribuir para a visibilidade cultural de Manaus frente aos estrangeiros.
Em alguns trechos podemos quase flagrar uma ponta de influência das “perigosas” idéias
feministas, que as autoras em nenhum momento ousam defender, embora citem, como no trecho
12 Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida (1862-1934) era poetiza, romancista e colaborava escrevendo para vários jornais, sendo uma das primeiras mulheres a exercer tal atividade no Brasil. Júlia Lopes de Almeidatambém estava preocupada com duas instituições sociais e políticas proeminentes: a família e a recém-declaradarepública. Para ela, a educação adequada às mulheres estaria ligada ao bem-estar social da família e, por extensão, à bem-sucedida consolidação dos ideais republicanos. Júlia defendeu a participação das mulheres nacidadania republicana e a valorizava a família como locus para fortalecimento de seus alicerces, propondo oabandono dos valores considerados ultrapassados e prejudiciais à consolidação de uma nova nação.
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a seguir, onde grifamos os termos que se aproximam das idéias de igualdade de condições entre
homens e mulheres para o desenvolvimento intelectual:
A intelligencia e a comprehensão da mulher estão em correlaçãoeqüitativa com o do homem, sendo porém a deste mais cultivada. Temosexemplos vivos na América do Norte, em alguns países da Europa e mesmo no suldo nosso paísem que mulheres, munidas de diplomas, desenvolvem as suas diversasactividades provando desta forma que suas intelligencias foram desenvolvidas eaperfeiçoadas, dando ela resultados e inteligência, faltando apenas o cultivo, e nodia em que o tivermos, nesse dia será feita a emancipação da mulher. Possuindo anossa capital uma sociedade como o Grêmio Familiar Amazonense, porque nãocollocam as nossas graciosas e intelligentes conterrâneas esta agremiação em uma plase diferente daquella em que está, concorrendo de boa vontade pressurosas parao esplendor dos seus concertos e de suas sessões literárias? Se temos meios paraisso, por que assim não os empregamos? (O Grêmio, 05/09/1909).
Apesar de tais “arroubos” feministas, as articulistas estavam longe da defesa de uma
transformação radical das relações de poder entre os sexos, como demonstra o artigo de Areosa
sobre o sufrágio para mulheres. No Grêmio, a defesa do sufrágio para mulheres apoiou-se no
caráter familiar da mulher, representada como o elemento mais próximo à casa, responsável
pela unidade da família e exercendo seu papel de “moralizadora”. A nota transcrita é longa, mas
vale a pena por explicitar vários elementos interessantes para análise:
Um jornal cita dois factos muito curiosos sobre a influência política das
mulheres na Austrália e na Noruega. Na Austrália, além de muitos outros, elasgozam de direitos eleitorais amplos; Na Noruega, o voto só lhes foi concedido paratodas as medidas relativas a higiene pública.
Em 1893, o primeiro parlamento australiano, para o qual concorreram ossufrágios femininos, decretou medidas severíssimas sobre o alcoolismo, regulandode modo a circunscrevel-a extraordinariamente, a venda de bebidas espirituosas.Mais tarde, em 1896, o chamado o Partido Proibicionista, por causa das leisverdadeiramente proibitivas que votava contra o abuso do álcool, foi derrotado.Teve, porém, ainda d’esta vez em seu favor a quase unanimidade dos sufrágiosfemininos.
Na Noruega, a situação ainda foi melhor. Apesar do campo restricto que seentregou a influência da mulher, ela obteve: primeiro o fechamento imediacto detodas as lojas de bebidas e logo após a proibição da venda do álcool sobre todas asformas. E digam que as mulherzinhas não mostraram energias?
Um escritor belga, Louis Frank, que sita este fato, diz que imediatamente oalcoolismo cessou de todo na Noruega. Parece que a conclusão era inevitável: semálcool, não poderia haver alcoolismo. Mas, apesar da sua evidência, faz gosto,escrevel-a bem pleunasticamente, quando se vê que esse grande flagelo, por suavez, causador de vários outros, tende a estender-se e a crescer de um modoextraordinário em todos os povos.
A influência feminina revelada nas medidas votadas, tanto na Austráliacomo na Noruega, é um grande argumento para as feministas. Isso prova que o
receio algumas vezes manifestado de que os votos das mulheres fossem apenasduplicatas dos maridos não tem razão de ser (O Rio Negro, n. 03, 29/01/1898).
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O jornal não reivindica a igualdade de direitos políticos nem a possibilidade da mulher
exercer um status público semelhante ao do homem, apenas justifica que a atividade política da
mulher poderia ajudar a resolver problemas sociais com os quais a mulher tivesse mais
“identidade”, no caso da higiene social, como se uma vez votando elas pudessem transferir o
cuidado com a família a sociedade em geral. É significativo que o partido fundado pelas
mulheres, ao qual o artigo faz referência, tenha se chamado “Proibicionista”. A mulher
burguesa é representada como agente social, e sua ação “ordeira” é requerida para a resolução
problemas sociais. A sociedade era objeto de uma analogia sutil com o lar, onde as mãos
femininas serviriam para “arrumar a bagunça”. Este parece ser o fundamento do exercício da
filantropia, concretizada em quermesses, chás beneficentes e sociedades de senhoras, muito
comuns na época.
Em Manaus, a Guerra de Canudos foi um dos tantos conflitos que mobilizaram as
respeitáveis damas da sociedade no auxílio das famílias dos militares da Guarda Nacional
mortos durante o conflito e que se constituíam num problema que demandava ações urgentes de
assistência social. Uma das primeiras providências da sociedade local depois da Guerra foi
organizar eventos de caridade para juntar fundos para as famílias das vítimas. Neste momento é
perceptível o protagonismo das mulheres da elite local. Elas tomam para si a tarefa de
organização dos eventos, amplamente noticiados nos jornais locais, como em O Rio Negro, em
sua edição de 11/11/1897. O jornal neste número e nos dois posteriores dá grande destaque à
série de comemorações por conta do retorno das tropas amazonenses de Canudos, quando as
damas organizaram uma “kermese” na Praça da República em benefício das famílias das
vítimas do Batalhão de Polícia do Amazonas. Os nomes de cada dona de barraca, chamada de
“patroa”, aparece em destaque, bem como o das demais participantes e de suas respectivas
barracas, que aliás constituem-se num detalhe curioso pelo que expressam sobre o que se
acreditava ser a cultura local: “Índia Nhamundá”, “El Dorado”, “Choupana das Rosas”,
“Palhoça de Iracema”, “Índia Marajó”, “Palhoça da Yara”, “Maloca dos Barés”.
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Apesar dos esforços das piedosas senhoras, finado o período de euforia pelo retorno das
tropas, pouco foi feito em prol das famílias dos militares mortos. Aparentemente faltara uma
ação sistemática por parte do governo de amparo às famílias vitimadas, o que se conclui pelo
conteúdo das petições de pensões que as viúvas de Canudos, alegando miséria extrema,
impetram junto ao poder público para buscar uma compensação financeira que minimizasse os
danos pela ausência do chefe da casa e garantisse sua sobrevivência e a de seus filhos nos anos
subseqüentes à guerra, como podemos ver no parecer publicado em O Rio Negro de
01/02/1898:
A comissão de justiça foi presente o requerimento em que Maria Francisca deSouza, viúva do 3.º Sargento do 4.º (ou do 1.º) Batalhão de Infantaria do Estado,Manoel Ferreira de Souza, solicita dos poderes uma pensão como arrimo à extrema pobreza em que se acha, conseqüência da morte de seu marido, victimado nagloriosíssima expedição de Canudos. Como, porém, no momento preocupa oespírito do poder Legislativo a crear providencias no sentido de serem amparadasas pessoas das famílias d’aquelles denodados e vallentes soldados que pereceram,dignificando a Pátria, nos arreiaes de Canudos – em cujo número por certo seráincluído o do suplicante; entende a commisão que, tratando só assim de estabelecer uma medida de caracter geral, qual é acolhida no Philantropico Projeto n.º 3 tãoenthusiastico e cordialmente recebido e acatado no seio deste Congresso, pensa quea suplicante deverá aguardar opportunidade para fazer valer os seus inconclusosdireitos.
A Santa Casa de Misericórdia de Manaus, fundada em 1880, que além de ser um dos
únicos serviços de saúde acessível aos pobres, como também funcionava como hospital e
sanatório, acolhia também pedintes, e não raro viúvas, como demonstra um registro de Maria da
Conceição, viúva de 28 anos que conseguira uma guia para entrar na instituição, conforme
notícia de O Papagaio, n. 2 de 13/08/1899.
O fato é que as viúvas pobres eram elementos extremamente fragilizados na ordem
social vigente, visto que uma vez privadas da proteção do marido só lhes restava a miséria,
posto que não possuíam escolaridade nem ofício que lhes sustentasse, demonstrando uma face
cruel de um sistema de exclusão social das mulheres.
Significados Sociais do Casamento Numa Era de Instabilidade
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O homem quando se casa prende-se... e a mulher, quando contraematrimonio, adquire plena liberdade... (O Rio Negro, n.º 116, 22/11/1987).
A quadrinha acima, publicada na seção “Pensamento diário” de um jornal de Manaus,
traduz como a sociedade da época formulava o significado do casamento para homens e
mulheres no final do século XIX. Vamos tomá-la como ponto de partida para nossa reflexão
sobre o casamento e seu papel para a imagem da mulher através dos jornais.
O papel sexual e social destinado à mulher atribuía a esta apenas uma tarefa: a de
convencer um homem, preferencialmente de um nível social igual ou superior ao seu, de pedir-
lhe a mão em casamento. Apesar de historiadores como Peter Gay (1988) afirmarem que a
frieza sexual da mulher burguesa da passagem do século, amplamente apregoada pela tradição
historiográfica, constituir-se num equívoco pela grande quantidade de evidências registradas em
cartas de amor e diários pessoais sobre a existência de paixão e satisfação sexual nos
casamentos, é fato que o papel passivo feminino era encorajado pela educação e considerado
desejável pelas famílias e pelos futuros maridos principalmente.
Sendo assim, cabia às mulheres a difícil tarefa de conquistar pretendentes sem exporem-
se de forma claramente insinuante; para tão complicada missão, uma série de estratégias,
algumas muito criativas, foram criadas para possibilitar a expressão do sentimento amoroso e a
sedução discreta como os códigos secretos de namoro à distância – a moça na janela e o
enamorado na rua - que incluíam além do gestual corpóreo comum aos momentos de sedução,
uma gama de movimentos e mímicas a serem executados com a ajuda de chapéus, bengalas e
lenços, divulgados em almanaques e publicações lúdicas, que tanto nos encantam hoje em dia.
Outra estratégia para chamar a atenção dos partidos locais para as jovens disponíveis na
cidade era a citação dos nomes de senhoritas nas seções de variedades dos jornais, sutilmente
destinadas a listar as jovens disponíveis da cidade, enaltecendo características como beleza,
elegância e inteligência. A gênese do colunismo social baré está, portanto, profundamente
ligado à propaganda de noivas à espera de candidatos.
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O casamento é um valor fundamental para a mulher da época, chegando a ser critério
para sua respeitabilidade e sanidade. Segundo o ideal da elite, a mulher casada poderia gerir sua
própria casa, seria admitida na vida adulta e estaria apta para o que até então era considerado o
ápice da missão da mulher: a maternidade, que deveria acontecer como a realização do
casamento, e idealmente dentro deste. As mães solteiras, porém, não deixaram de existir por
isso:
- Então menina, você é casada?- Não, senhor.- Ah! É filha de família...- Sim, senhor.
- E essa menina que tem nos braços?- É... neta da família.(O Rio Negro, 12 de janeiro de 1898).
Se por um lado a sociedade transformava em escândalo o sexo antes do casamento, por
outro era obrigada a conviver com casos da prática continuamente, mesmo punindo quem dele
ousasse fazer uso com a exposição pública. Para isso os jornais se valiam bem. Poucas coisas
poderiam ser piores para uma jovem “de família” do século XIX do que não conseguir casar.
Era algo como um fracasso social, o maior para a mulher da época. Um expediente de estímulo
ao casamento era o dote, um valor pago ao noivo pela família da noiva para apoiar na
construção da nova vida de casados, sendo não raramente o principal estímulo para o
matrimônio, como retrata José de Alencar no romance Senhora ou a quadrinha bem-humorada
publicada em O Rio Negro de 22 de janeiro de 1898, retratando o diálogo entre o pai da noiva e
o futuro genro:
Diálogo importante:- Está resolvido o Senhor a dar à sua filha o dote de 50 contos. Acho pouco.- É exacto, mas por minha morte, tudo é da pequena.- Está bem! Mas em que época mais-ou-menos pensa o senhor em morrer?
Moura (2002) relata que em São Paulo a instituição do dote não sobrevive ao século
XIX em função da ascensão de uma pequena burguesia mais ampla – ao contrário das grandes
fortunas do século anterior - e de elementos subjetivos como o sentido de individualismo e as
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transformações proporcionadas pelo meio urbano nas relações sociais e no próprio papel da
mulher. Para o autor, no contexto social complexo como o paulista, com uma grande maioria de
pequenos proprietários, comerciantes e profissionais liberais, os pais não dispunham dos
recursos semelhantes aos de seus antepassados para dotar suas filhas, de modo que as moças
iam, em boa medida, de “mãos abanando” para o casamento.
O declínio do dote deslocou a mulher de elite para uma posição secundária nocasamento, mas também alterou o próprio sentido do matrimônio, já que passarama não ser mais os atrativos de enriquecimento que levavam o noivo ao altar (MOURA, op. cit., p.20).
Podemos somar a estes aspectos os elementos românticos como a valorização do
casamento por amor, que passa a se fazer mais presente nas negociações maritais, chegando a
transformar-se em aspecto determinante, pelo menos no imaginário popular, até o final do
século XX. Em Manaus, não temos elementos para afirmar, mas supomos que a prática não teve
grande repercussão, especialmente se levarmos em conta o perfil da elite local, que diferente do
Pará, não era formada por famílias de grande tradição (DAOU, 2000). Contudo, mesmo
supostamente não tendo grande peso, o dote parece ter sobrevivido até a entrada do século XX,
mesmo que com outras utilidades, como podemos perceber a partir da nota publicada em O Rio
Negro de 03 de dezembro de 1897, que dava conta do “dotamento” de uma jovem como forma
de “indenizá-la” pelo seu defloramento.
Vimos documento de ter José da Silva Ribeiro desistido da ação que prepuser contra Alberto Alvez Braz Fernandes, por crime de defloramento praticado em suafilha, em vista de este a ter dotado.
A uma jovem de baixa renda, mesmo com a perda da virgindade publicamente
conhecida, o dote poderia ser um grande apelo aos pretendentes e aumentaria suas chances de
conseguir um casamento em breve se não mascarasse uma situação de profunda assimetria
social entre os atores envolvidos, pois livrava o Sr. Fernandes, o deflorador, que se tratava
aparentemente de alguém de posição social e recursos, da obrigação de casar ou mesmo de uma
dívida social.
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Portanto, o casamento era o primeiro objetivo da mulher tão logo chegasse à idade
considerada apropriada que, diga-se de passagem, era bem menor que a atual. Com a definição
do conceito de infância, no século XIX, já não eram tão comuns os casamentos de meninas de
12 e 13 anos como no período colonial, sendo este tipo de união considerado indesejável, entre
outros motivos, pela preocupação biomédica com a preparação do corpo da mulher para a
maternidade; entretanto a idade de 15 anos já funcionava como um marcador para a idade
adulta, e não raramente elementos próprios deste universo como os enxovais de noivado eram
começados a ser providenciados bem antes disso.
O papel da mãe da moça, por outro lado, está ligado à preocupação da família em
providenciar um matrimônio para a filha, selecionando candidatos e adulando os pretendentes,
sendo por isso seu comportamento estereotipado pela imprensa como uma intrépida caçadora de
maridos, como aparece nesta nota publicada nas páginas de O Passe-Partout de 23 de
novembro de 1909:
Num baile de casamento, a mãe da noiva, vendo um grupo de moçosconversando despreocupadamente a um canto da sala dirige-se a eles dizendo:
- Queiram vir servir-se de chocolate e espero que continuem a freqüentar anossa casa, pois ainda tenho quatro filhas solteiras!
Tão logo o casamento se realizasse, o papel da mãe da noiva mudava radicalmente; a
amável mãe metamorfoseava-se de aduladora incansável a megera insuportável: a sogra. Esta
sempre aparecia como alvo de chacotas e chistes, por vezes cruéis, como o seguinte, em que um
homem regozija-se por uma suposta viagem de sua sogra a Canudos, certamente o sonho de
muitos genros na época:
Estou imensamente contente, palavra de Jeremias! Quando tive a notícia deque minha sogra ia offerecer-se ao Governo, para seguir com destino a Canudos,que alegria! Rejubilei, exutei, fiquei doido de contentamento! A minha sogra, aminha rica sogra para Canudos!
Que enthusiamo, que delírio em toda família! Pobre e desgraçado éConselheiro, que vae morrer miseravelmente, covardemente pelas dentadas caninasda minha sogra! Ela está num furor patriótico incrível, minha querida mulher! Sófala em guerra, em sangue, em balas, espingarda, canhões e duelos! Diz que há de pagar o Conselheiro – minha sogra é legalista – e espanca-lo, reduzi-lo a pó.
Enquanto ela luta em Canudos, eu fico livre dessa canuda! Jeremias (O Rio Negro,10 de agosto de 1897).
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Pedro (1988) lembra que as críticas às sogras eram matéria comuns também nos jornais
da cidade de Desterro (atual Florianópolis) no século XIX. Para a autora, o fundamento da
crítica às sogras estava na ridicularização dos comportamentos tidos como desviantes como o
das solteironas, o das mulheres intelectuais e o das sogras, sempre pintadas como perigosas,
especialmente se morasse na mesma casa do genro, como demonstra o “singelo” versinho
publicado em O Rio Negro de 10/12/1897, um dentre tantos que encontramos durante a
pesquisa nas fontes:
Todo moço que se casaDeve ter um pão no cantoPara benzer uma sogra,Quando estiver de quebranto.
Embora os papéis submissos fossem destinados às mulheres, uma das únicas formas
dessa situação inverter-se seria na relação entre sogras e genros, onde estas teriam ao seu lado o
status de mãe/mulher sem as suas tradicionais limitações de subordinação em relação ao
elemento masculino, no caso, o marido da filha.
Por outro lado, o casamento antes de ser uma instituição romântica era uma instituição
social, e como tal, servia entre outras coisas para reafirmar o status dos nubentes ou para
oferecer perspectivas de subir níveis, como podemos entender da quadrinha publicada em
04/12/1897 em O Rio Negro:
Confidencia entre duas raparigas:- Sabes que o Paulo pediu-me a mão?
- E que lhe respondeste?- Que lha daria quando ele se collocasse.- Mas, minha amiga, és extraordinária!... Se elle tivesse se collocado, não teria
necessidade de te desposar.
A carência de reconhecimento da mulher como sujeito de direito na lei refletia-se no
status jurídico da mulher na república. Apesar das inovações, a imagem construída sobre a
mulher que aparecia no texto do código civil denotava a continuidade do pensamento que via a
mulher ideal como ente dedicado à família e sob o rígido domínio do esposo. No texto do
código é ainda conferida ao marido a chefia da sociedade conjugal, a responsabilidade pública
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da família e de sua manutenção, e a administração dos bens do casal, inclusive aqueles trazidos
pela mulher na ocasião do casamento (MALUF e MOTT, 1998)
Escândalo! Um caso de bigamia
A edição de O Rio Negro de 28/01/1898 trazia com destaque uma matéria sobre um
suposto caso de bigamia na capital. A julgar pelo destaque dado ao fato e a repercussão do
mesmo – com pelo menos quatro edições seguintes também dedicadas ao tema – percebe-se que
o acontecimento deve ter proporcionado muitos comentários, fossem eles jocosos ou alarmados.
Laureana Maria da Silva, residente em Manaus, havia recebido uma carta de um certoAntonio dos Santos Monteiro, no dia 05 de novembro de 1897, noticiando a morte de seu
marido, Francisco Arruda do Nascimento, com quem havia contraído matrimônio na igreja, em
Maranguape, Ceará; este aparentemente trabalhava num seringal no Rio Madeira, encontrando a
mulher eventualmente, quando voltava para a casa em Manaus, situação que deve ter sido
comum na época entre os homens que trabalhavam com extrativismo. Antonio era patrão de
Francisco, e além de informações sobre o falecimento de deste, a carta recebida por Laureana
falava da existência de uma herança no valor de 305 mil rés. Francisco teria acrescentado que
só entregaria o dinheiro em sua casa, no Rio Madeira. Mais tarde uma irmã e um cunhado de
Arruda teriam confirmado sua morte para Laureana. Considerando-se viúva, Laureana contraiu
matrimônio, no Amazonas, pela modalidade civil, com Francisco Baptista da Silva, em 1897.
Algum tempo depois, chegam até Laureana notícias de terceiros de que Francisco, o marido
considerado morto, havia reaparecido. O caso, como é fácil de se prever, aguçou a curiosidade
pública e valeu semanas de notas e artigos nos jornais locais.
Escândalo!Uma mulher com dois maridos!Casamento civil e religioso.Um ressuscitado!Marido que julgado morto, reclama os seus direitos!Ao fecharmos nosso expediente, tivemos notícia de um caso escandaloso. Uma
mulher de nome Laureana Maria da Silva. O sub-prefeito do terceiro districto dacapital, major Barbosa, está tratando do caso. O primeiro marido casou-sereligiosamente, o segundo civilmente. Os dois maridos não querem ceder os seusdireitos (O Rio Negro, 28/01/1898).
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O casamento civil no Brasil foi instituído pelo decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890,
fruto das ações dos parlamentares liberais, porta-vozes do Estado-laico, reduzindo o poder outrora absoluto da Igreja em pontos estratégicos para seu projeto de sociedade como o
casamento. O caso acabou sendo um motivo para embate entre os representantes da antiga
ordem – Igreja e monarquia e os republicanos, adeptos do espírito positivista e legalista.
No embate entre liberais e clero, Maria Conceição da Silva (2003) nos fornece dados
sobre a grande celeuma instaurada em torno da polêmica questão a partir da realidade de Goiás,
que em linhas gerais pode nos dar uma idéia dos ocorridos em outros pontos do Brasil: por um
lado temos as estratégias do clero para convencer os fiéis do perigo que na ótica da Igreja
representava o casamento civil, por outro temos o estado liberal, de inspiração positivista, que
tentava fortalecer-se através de ações restritivas ao seu principal inimigo: o poder do clero.
Não é demais recordar a importância do casamento como instituição social na época,
especialmente a forma como estava ligado à Igreja Católica. Segundo Silva, através do regime
do Padroado – que dividia responsabilidades entre Estado e Igreja, o primeiro delegava à última
a responsabilidade por questões fundamentais para a sociedade como a liberdade de culto, o
sepultamento dos mortos (por meio da gestão de cemitérios) e o casamento. Acrescentamos a
esses pontos, especialmente na Amazônia, a abertura de frentes de expansão para colonização
de territórios através da neutralização de grupos indígenas pela catequese. Não é difícil pensar
no peso da influência da Igreja se levarmos em conta que durante muito tempo a única forma de
registro de nascimento e de identificação eram as certidões de batismo e casamento religioso.
O casamento religioso tinha um caráter social importante, especialmente por ser o único
reconhecido até 1890. Só era possível entre cônjuges católicos, o que significava que, grosso
modo, só estes tinham garantido como certos direitos civis básicos como herança e
reconhecimento da prole, entre outros. Pelas regras do direito canônico, o casamento reunia os
dois elementos: a identidade de ato jurídico e a de sacramento religioso.
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Se por um lado os arautos da modernização do Estado apontavam o casamento civil
como condição para a adequação das instituições na nova ordem social, por outro lado a igreja
endurecia-se, adotando uma “linha de romanização conservadora, numa perspectiva marcada
pelo centralismo institucional de Roma” (SILVA, op. cit, p. 46) e, portanto, em rota de colisão
com o ideário liberal. A partir desses elementos, podemos dimensionar os sentidos negociados
no debate sobre o caso de Laureana, que ganhou os jornais em janeiro e fevereiro de 1898.
Embora longa, a citação seguinte foi deixada na íntegra por enumerar de forma clara
várias das questões que levantamos neste momento:
Não parece existir dúvida sobre o primeiro: o marido que casou-se civilmentedeve ficar de posse da mulher, por isso que o único casamento aceito éconsiderado como tal pelas leis em vigor, é o civil. Se, porém há entre os cônjuges,motivos particulares, que determinem a repulsa do legítimo marido, nada maisnatural que promover a mulher a ação do divórcio, conferida em lei e continuar emcompanhia do segundo marido, com quem religiosamente casou-se. Logo depois de promulgado o decreto do casamento civil obrigatório, clarezia, que não queriacomprehender bem o facto do casamento, alcançou o colo; e nas predicas, nosconselhos, no mesmo templo sagrado, investia contra as leis sociais, contra osactos do governo, e qualificava de cocumbinato o casamento que não fosseexecutando como preceitua a religião catholica. Não foram poucos os artigos
escriptos sobre o assumpto, artigos até doutrinários para a instrução do povo; mas,sem embargo de tudo isso, a classe menos culta da sociedade preferio attendermais à palavra dos “santos” sacerdotes do que a dos que têm por obrigaçãoexplicar e applicar as leis (O Rio Negro, 01/02/1898, grifos meus).
Apesar de pitoresco, o que chama a atenção nas matérias não é tanto o fato curioso da
bigamia, mas a forma como os articulistas se posicionam em defesa da união civil de Laureana
como única legítima e reconhecida, apesar desta ter sido realizada depois do casamento
religioso. O autor do texto também frisa a natureza contratual do casamento civil – que tantoincomodava aos padres, através da opção do divórcio, instituída na lei em 1891.
Na citação também aparece a defesa da legalidade “irrefutável” que o casamento civil
representa enquanto respeito às leis. No final do texto é feita uma perversa associação da
preferência pelo casamento religioso como sinônimo de ignorância das classes baixas,
justamente por ter sido nelas que as campanhas dos padres contra o matrimônio civil fizeram
mais efeito.
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A autora relata ainda as impiedosas campanhas do clero da época contra o casamento
civil na cidade de Goiás, associando-o à heresia e ao afastamento dos valores familiares. A
autora lembra que o próprio Papa da época, Pio IX, condena de forma enfática o casamento
civil no mundo todo com a frase: “O casamento civil é um torpe e vil concubinato”. Embora se
referindo a uma realidade específica, temos evidências de que esse debate se deu
nacionalmente.
O Rio Negro, de onde extraímos a notícia sobre este caso em particular, apresentava-se
como um veículo adepto das idéias positivistas e liberais, e portanto um crítico por tabela da
igreja, o que justifica seu posicionamento em relação ao casamento. Esta crítica, contudo,
estava estruturada em bases de gênero bem definidas: às mulheres, a religião era um recurso
desejável e um hábito a ser cultivado. Para os homens concatenados aos ideais modernizantes
da república, porém, não.
De qualquer forma, independente da conotação política do caso, transformado em arena
de embate entre dois projetos de sociedade – o da Igreja, que perdia força, e o dos liberais e
positivistas, que construíam seu respaldo na lei - a estória da bigamia rendeu muitas quadrinhas
humoradas, proporcionando boas risadas à população de Manáos:
Dois maridosDiz um marido o direitoÉ só meu, de no que der...E o outro a bater no peito:É meo, mas bem satisfeitoDesisto d éter mulher.
Se este facto é verdadeiro,Se a folha não nos engana Não é nada lisongeiroPara dona LaureanaEpla. (O Rio Negro, 01/02/1898).
Uma outra questão igualmente ponderada pelos defensores do casamento civil e
profundamente trabalhada nos anos subseqüentes através de debates nas sociedades médicas
nacionais, era a necessidade de adequar o casamento às preocupações com as variáveis “raça” e
“nação” através da eugenia, ponto no qual vemos convergir com impressionante sincronia as
questões de saúde e as questões jurídicas. Para proporcionar uma população saudável, era
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necessário na opinião dos médicos acabar com os casamentos consangüíneos, embora segundo
Castañeda (2003), só em 1919 apareça no código civil matéria referente a isso.
O Casamento Em Perigo: Livre União e Infidelidade Nos Jornais
Uma vez que a instituição do casamento provocava em debates apaixonados entre
legalistas e religiosos, o que dizer da “união livre”, uma modalidade “marginal” de união, sem
nenhum respaldo legal na época? Vamos nos aventurar nos comentários que apareciam nos
jornais sobre o assunto.
Uma peça teatral apresentada no Odeon causou comentários indignados por parte de um
dos articulistas, representante do nascente segmento dos críticos de arte, pelo tema da peça: a
união livre.
No Odeon deram peças novas, uma das quaes Menattes, do Beauborg, nãoalcançou resultado. O auctor tenta demonstrar que a união livre é superior aocasamento, que duas pessoas que se amam têm o direito de se juntar e que o mundo
é odioso com seus preconceitos. Um sub-secretario de Estado apaixona-se por umamulher que está separada do marido. Em vez de promover o divorcio e casar comella, não o faz, porque receia que suas irmãs não levem em gosto. Afinal, vivepublicamente com a tal mulher e queixa-se que a sociedade não ache issonatural. Sabendo mais tarde que a dama teve outro amante antes dele ficaindignado e a dama vae para um convento (O Rio Negro, 04/12/1876, grifos meus).
O dramático da peça, com a punição social da mulher através de sua ida para um
convento, não deixa dúvidas sobre a forma como as uniões consensuais eram vistas pela
sociedade da época.Apesar dos articulistas de O Rio Negro colocarem-se a favor do casamento civil no caso
de Laureana, numa postura aparentemente “liberal” não podemos considerar que condenassem
o casamento e seu valor moral. O status do casamento como fonte de reconhecimento social e
de estruturação da instituição familiar continuou a ser uma idéia cara aos positivistas e aos
idealizadores da Nação moderna na qual pretendiam transformar o Brasil.
A defesa do casamento é feita nas páginas do jornal de perfil positivista de forma
indireta, através da condenação da “união livre”, expressão que denotava idéia de uma união
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consensual, sem compromisso formal – ou seja, sem reconhecimento nem da Igreja e nem do
Estado, como fica claro na resposta cheia de ironia de um articulista, Florival – provavelmente
um pseudônimo, a uma suposta carta escrita por uma jovem viúva local sobre a união livre
como alternativa ao enfadonho casamento:
Conversáramos, - e numa confiança generosa; gratissima ao meu espírito,contou-me que o seu infeliz marido morrera há dois annos, deixando-a sem filhos,sem um consolo, sem uma alegria. Se não falha-me a memória, V. Exc.acrescentou-me que ficara com idéias muito particulares sobre o casamento.
Recordo-me que V.Exc. disse – com a pratica do casamento, pratica quemuito respeito, e venero, - que não achava verdadeira felicidade no matrimônio. Não tinha sido infeliz, mas essa “união forçada” de dois seres extranhos, passandoo período clássico do idyllio, era aborrecida, monótona e fatigante. Pergunta-me agentil missiva o que penso da “união livre”, sem preconceitos de sociedade, semescrúpulos tolos d’um burguezismo atrazado. E é eloqüente quando argumenta em prol do amor libertino: “Para ter uma marido, marido de Igreja, marido civil? Umcontracto eterno, até a morte, por que? Não julga preferível uma união voluntária,espontanea, que se romperá sem escândalo e barulho quando chegar o fastio e oaborrecimento?”
Ah! Minha Senhora, é extraordinariamente delicada a consulta. Sem a prática, não posso responder cabalmente. Mas, com espontaneidade pressuroso,corro ao apello de V. Exc. Nada mais que uma experiência, nada mais que isso. Por que V. Exc. Não escolhe-me para essa primeira “união livre” para introduzir omethodo e o systhema n’este pobre mundo atrazado e tolo? (O Rio Negro,03/08/1897)
Não sabemos se realmente uma mulher de Manaus do século XIX havia escrito um texto
tão “ousado” para a época ou se a carta era apenas uma construção da mente do jornalista, uma
desculpa para tratar de um tema tão inquietante. De modo geral, não podemos nos esquecer que
a ideologia positivista-liberal via nas instituições como a família e o casamento as formas para
uma sociedade harmoniosa, o que se justificava pela máxima “Só existe ordem no progresso. Só
existe progresso na paz”.
Para Luzia Castañeda (2003), os debates no século XIX guiaram-se, pos dois sentidos: o
primeiro era o da convicção de que o casamento não mais poderia se realizar como ato religioso
e, o outro, da resistência em cogitar a dissolução da instituição. A autora lembra que estas
preocupações já estavam presentes nas discussões do grupo positivista do Brasil que, em carta
enviada ao então ministro do Império, em 1854, discute o projeto do casamento civil.
O casamento não é um contrato, como a maioria dos legistas apregoa. Ocasamento é a sanção social (cívica ou religiosa) da união fundamental que institui
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a família. e a família é uma associação que se forma espontaneamente em torno damulher, em conseqüência dos vários instintos que constituem a natureza moral dasespécies superiores (LEMOS, 1887, apud CASTAÑEDA, 2003).
Como veículos de informação elaborados para homens, os jornais também se
dedicavam, embora discretamente, a comentar sobre outro inimigo da instituição do casamento:
a infidelidade conjugal:
Um amigo a outro:- Minha mulher comprou uma caixa de pó-de-arroz, que todas as vezes que lhe douum beijo parece-me que estou comendo açúcar.- Homem, é verdade! Exclamou o outro distraidamente, eu também já notei isso...(O Passe-Partout, 23/09/1909)
A infidelidade no casamento é mais um dos tantos discursos que tem leitura de gênero
diferenciada. Um dos casos de infidelidade mais marcantes na época, pelo desfecho trágico que
teve, foi o do famoso escrito Euclides da Cunha e de sua esposa Ana de Assis, cujo
relacionamento com o soldado Dilermando de Assis causou a morte de Euclides em uma troca
de tiros com seu rival em 15 de agosto de 1909. O caso mereceu um texto indignado nas
páginas de O Grêmio, não por acaso um jornal feminino, como vimos, comprometido com a
emancipação feminina:
Nessa mulher o glorioso escritor depositara todas as suas alegrias, todos osseus esforços, todas as suas glórias, todos seus sonhos de ouro, sonhos que ela lhedeu e que depois arrancou. Nela estava depositada a sua honra, a honra de seusfilhos queridos, desses órfans que ontem eram tão felizes e que hoje baixarão acabeça envergonhados de um tão triste acontecimento. No entanto, a infeliz é elaque desapareceu da sociedade e desaparecerá do mundo como um animal qualquer,sem prestígio algum. (O Grêmio, 05/09/1909).
No texto, além da notória condenação de Ana, temos como principal argumento contra
ela a família que ela, como “deusa do lar” manchou com o opróbrio de seu ato. Nota-se que,
mais que a morte de Cunha, o que verdadeiramente se lamenta é a desvalorização da família e
da instituição do casamento, supostamente decorrente da infidelidade de Ana. Sua pena está
explicitada nas palavras que destacam a necessidade de fazê-la desaparecer “da sociedade e do
mundo”, pois na sociedade burguesa brasileira os valores de afirmação social passavam pelo
sentido de honra familiar, do qual a mulher era a guardiã eleita pela tradição, sob a qual o
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sentido de nacionalidade deveria ser erguido, como afirma o conselho às jovens publicado em A
Voz de Loriga, jornal editado em Manaus pela colônia portuguesa, de 01 de agosto 1909:
E vós, moças ingênuas do meu berço, donzellas que a vossa alma se envolveno manto immaculado das vossas aspirações de felicidade conjugal que vos espera!Sede estudiosas, activas nos vossos misteres caseiros que com carinho com o vossosentimento de boas esposas, quando lá chegardes, a esse ninho em que os actirarvosde vossa alma carinhosa toda a virtude concentra, dareis aos vossos filhos essenobre dote que se chama instrução, que tereis assim cumprido com o vosso dever dando a pátria um filho digno de vós...
A historiadora Joana Pedro (1988) chama a atenção para o fato de que, entre os signos
de status constituídos pela elite, a mulher exclusivamente dedicada às funções de esposa, mãe e
dona-de-casa passa a ser um símbolo para as famílias, e para os homens, cuja renda
possibilitava manter a mulher em casa, ao contrário da população de baixa renda, cujas
necessidades materiais obrigavam as mulheres a trabalhar para reforçar o orçamento doméstico
ou mesmo para sustentar sozinhas as casas através de empregos de serviço ou exercendo ofícios
em casa como as lavadeiras e as doceiras. A casa deveria ser o domínio único do feminino, e a
família sua preocupação. Estas idéias articulavam-se à construção de uma sexualidade,
especialmente nesta definição moderna do papel da família. Por sua penetrabilidade e sua
repercussão voltada para o exterior, ela é um dos elementos táticos mais precisos deste
dispositivo (FOULCAULT, op. cit., p. 105).
A família é o referencial máximo das condutas sexuais, e qualquer coisa que atentasse
contra a estabilidade de uma delas era como um ataque velado à instituição que ela
representava. O casamento, portanto, tinha um papel importante para a reafirmação destes
valores e para garantir à mulher o cumprimento dos papeis a elas destinados, especialmente
porque era o casamento a única possibilidade de, pelas normas sociais, a mulher vir a exercer
sua sexualidade.
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CAPÍTULO 2
SUBVERTENDO A ORDEM: DIVERSÕES, RESISTÊNCIAS E CRIMINALIZAÇÃO DASEXUALIDADE
Mulheres faladas
Os moradores da Rua José Clemente, 5.ª feira passada, foram despertadoscom uma grande algazarra, partida da rua. Eram as célebres cuínas Maroca Não-Vou-Nisso e Constância Batalhão, que quase rompiam o Ano Novo debaixo de bofetadas, tudo isso porque a cuína Constância queria tomar o seu... da Não-Vou- Nisso (O Chicote, 07/11/1915).
A analítica da sociedade moderna identifica como uma de suas crises originais o
paradoxo do sujeito único e estável. Esta concepção, segundo Sousa e Ratts (2004), entra em
choque com a estruturação de um sujeito “fragmentado” composto de várias identidades,
contraditórias ou não resolvidas de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade, que
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passam a ser fluidas e cada vez mais intensas. O espaço funciona como um marcador social,
caracterizando quem nele circula, interagindo com papéis e práticas individuais. Roberto
DaMatta (2000) postula a importância dos espaços como marcadores sociais que, independente
das biografias individuais, constituem historicidade própria, emoldurando a vida social; um
exemplo emblemático dessa relação são as praças nas cidades. Nas cidades ibéricas e
brasileiras, a praça abre um território especial, uma região teoricamente do “povo” (DaMatta,
op. cit., p. 44). A constituição de territórios urbanos, diferenciados de acordo com essa
infinidade de culturas, passa a fazer parte de um fenômeno mundial, associado à vida nas
cidades. Deste modo, as “identidades territoriais” também estão relacionadas às transformações
sociais contemporâneas e a dimensão que as questões do poder, do corpo e do sexo passam a
possuir.
É importante que tenhamos em mente o caráter incrivelmente rápido em que se deu a
constituição de Manaus numa grande cidade e as características deste processo. Num espaço de
tempo de menos de 70 anos a cidade aumenta nada menos que doze vezes o tamanho de sua
população, mais de 1.200%, como podemos verificar na Tabela 1.
Tabela 1
População Total da Província, Depois Estado do Amazonas, Segundo o Sexo, nos anos de 1852, 1872,1890, 1900, 1910 e 1920
Sexo 1852 1872 1890 1900 1910 1920Homens - 31.470 80.921 136.636 - 196.202Mulheres - 26.140 66.994 113.120 - 166.964TOTAL 29.798 57.610 147.915 249.756 358.695 363.166
Fonte: Amazonas (1852) apud Relatório do Presidente da província do Pará, Dr. Fausto de Aguiar in: RPP-AM. Vol I. 1906:09(para 1852). Recenseamentos Gerais de 1872, 1890, 1900 e 1920 e Anuário estatístico do Brasil. 1908-1912, para 1910 apud Daou (1988).
Além dos problemas sociais advindos da falta de estrutura urbana para abrigar o
aumento da população, este fenômeno tem como conseqüência, a constituição de uma
diversificada gama de “tipos humanos”, a partir da complexificação das atividades, a criação de
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novos ofícios e ramos produtivos, além do extrativismo nos seringais. Nesta “fauna” urbana, as
mulheres buscavam seu espaço através do exercício de variadas atividades – possibilitadas ou
não pela moral vigente: professoras, costureiras, ambulantes, prostitutas, operárias das
indústrias locais, que mesmo não existindo em grande número, foi responsável pelo emprego de
mão-de-obra feminina. A ideologia vigente, porém, não endossava àquelas que não se
enquadrassem nos padrões de restrição aos espaços domésticos.
A disciplinarização dos corpos femininos constituía-se em uma das maiores
preocupações do pensamento social. Os mecanismos instituídos para tanto permeavam várias
esferas e instituições. A mulher que quisesse gozar de respeito e aceitação nos círculos sociais
locais deveria ter como principal meta de vida a preparação para o ofício de esposa e mãe. A
sexualidade foi então um aspecto fundamental para este controle, sendo alçadas à condição de
diferencial entre as mulheres consideradas respeitáveis, as “honestas” e as “faladas” (PEDRO,
1998).
A pregação moral foi mais contundente justamente onde os modelos de mulher despida
de iniciativa sexual, frágil e dependente do homem tornavam-se menos valorizados, ou seja, nas
mulheres que não se enquadravam no padrão de vulnerabilidade feminina apregoado pela elite:
entre as que transcendiam o espaço doméstico - as mulheres da rua, as adúlteras e as que
exerciam atividades remuneradas, todas agrupadas numa mesma categoria, embora com perfis
bem diversos.
As representações sobre a sexualidade feminina pautaram-se, como vimos, na suposta
existência de um componente de degeneração de potencial patológico presente no sexo
feminino. A partir deste pressuposto, cuja presença é perceptível em praticamente toda a
produção social na modernidade e especialmente a partir do século XVIII com a reificação da
moral burguesa, a repressão à sexualidade feminina passa a ser construída com base em dois
fundamentos básicos: o primeiro relacionado a chamada “natureza feminina”, denominação quecomumente designava o conjunto de características mentais, psicológicas e neurológicas da
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mulher, e o segundo, referente ao corpo, cuja frágil compleição, afetada pela árdua tarefa de
procriar, estava constantemente sob a influência de humores perigosos, cujo equilíbrio
deficitário provocaria as “doenças do espírito” como a histeria, uma patologia exclusivamente
feminina (GILMAN, 1985; CARNEIRO, 2002).
Nesta concepção, encontramos alguns dos fundamentos da diferença entre os sexos e da
divisão dos papéis sexuais; de acordo com o pensamento do século XIX, a mulher
caracterizava-se por uma indissociável identidade entre corpo e mente, sendo o primeiro
profundamente afetado pela última. Ao contrário dos homens, cujas representações mostravam-
no como um elemento que gozava de pleno domínio sobre suas emoções e para quem a
dissociação entre corpo e mente era uma exigência social, as mulheres viveriam na limiaridade
da instabilidade proporcionada pela constante ameaça que a biologia representava à sua
integridade.
Uma das principais fontes de distinção entre mulheres estava relacionada à
estigmatização de comportamentos a partir do local que as mulheres circulam – Casa e Rua,
surgem como categorias relacionais neste processo, como revela Da Matta (1997), o que
acarreta distinções arbitrárias no discurso social, como a que enquadra na mesma categoria de
marginalizadas as meretrizes e as vendedoras de rua, por exemplo. A discriminação lar – rua,
da qual, no caso da mulher, relacionava-se ao exercício da sexualidade articulado ao referencial
do local. O submundo da sexualidade devia ser exercido fora do lar, equilibrando por assim
dizer o saudável e o patológico, desde que cada um estivesse circunscrito à sua própria esfera. O
exercício do prazer só era possível, portanto, no mundo da prostituição, cabendo dentro do lar o
sexo com finalidade reprodutiva. A seguir, veremos como os jornais abordavam as mulheres
que estavam “no extremo” desta diferenciação: as prostitutas.
As meretrizes: a difícil vida fácil no processo de civilização
“Flor de carne” Na alva epiderme de teu corpo gyraO sangue quente de baccante impura,
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E n’essa noite horrendamente escuraDo vicio o coração te arde e delira
Embora! amo-te assim, fatal creatura,Lasciva e bela, estéril Hetaira;
Em ti o gozo lúbrico suspiraE a volúpia frenética murmura.
Há nos teus olhos um luar de estro.Quando tu passas, meu amor sombrioTe segue cheio de císpero desejo.
Sonho-me então victorioso e brutoCom um satyro alegre e dissolutoAmarrotando a rosa de teu beijo.
Livio Barreto (O Rio Negro, 26/11/1897)
Várias eram as denominações pejorativas comumente empregadas para designar as
mulheres que exerciam o ofício da prostituição, continuamente ou não, nos jornais de Manaus
do final do século XIX e início do século XX: “decaídas”, “marafonas”, “rameiras”,
“horizontais”, “cocottes”, “polacas”, “cuínas”, “bacantes”, “ratuínas”13. Elas refletem os
confusos sentimentos que a prostituição despertava na mente do homens e da mulher na
modernidade, explicitando como poucos fatos o fariam os conflitos das definições modernas de
papéis sexuais.
A questão das mulheres que forneciam serviço sexual mediante pagamento é delicada,
pois as fontes estão geralmente cheias de estigmatizações e elementos pejorativos. Mesmo as
abordagens mais cuidadosas correm o risco de incorrerem em erros graves, quer condenando a
prática de comercialização do sexo, ou mesmo, no extremo oposto, deturpando ou ocultando a
natureza financeira da prostituição na esperança de não depreciá-la. Esforçaremos-nos para não
cairmos nestas armadilhas buscando uma abordagem que tente conjugar alguns dos diversos
aspectos da questão.
Antes de tudo, é necessário que se diga que assim como os outros segmentos sociais
havia uma bem marcada hierarquia social entre as prostitutas. A célebre imagem da prostituta
em luxuosos cabarés só foi possível a um reduzido número de mulheres. A prostituição “de rua”
13 O termo “ratuína” parece ser um designativo comum para meretrizes do Norte ao Nordeste do território, nas primeiras décadas do século XX. Encontramos uma referência ao termo no romance “Angústia”, de GracilianoRamos, publicado em 1936.
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em Manaus foi sem dúvida a mais popular, se levarmos em conta a maior visibilidade que
possuía, sendo constantemente alvo de ataques da imprensa local e dos projetos destinados a
coibi-la. Mas analisar as hierarquizações entre prostitutas pobres e abastadas pela base espacial
– dividindo-as entre as que exerciam a atividade nas ruas e praças e entre as que recebiam seus
clientes em casas de tolerância não parece por si só ser suficiente para dar conta de outras
questões subjetivas das relações sociais que gostaríamos de abordar.
Na busca por captar outros aspectos das diferenciações entre estas mulheres, nos
deparamos com marcadores insuspeitados como a cor da pele. Segundo Tomas Orum (2001),
que se dedicou a estudar a prática da prostituição em Manaus e Belém no final do século XIX,
as mulheres mais valorizadas eram as que destoavam da população local, das caboclas e
mestiças de pele bronzeada.
The Amazon's traditional lack of success in securing European or even Luso-Brazilian immigrants and the small percentage of white women in a region wheremost inhabitants were phenotypically, if not socially, of color placed a premiumon Caucasianness. In Manaus observers called attention to the "few of pure white
race" and females a "long way from being white." Amazonians, according to anEnglish botanist, were a "pale coffee colour" (p. 23, grifos meus).
Havia no sucesso das meretrizes européias um forte componente racial: as mulheres
alvas, de sotaques estranhos, foram logo associadas a um dos tantos signos de status dos poucos
que enriqueceram com a borracha, como animais raros ou bens exóticos que só o dinheiro
poderia comprar.
These women were identified in the Amazon as "Panchita de Fulano” or “Margot de Sicrano," being, as one author surmises, a form of public demonstrationof economic power. To be seen in the company of an elegantly coiffed andfashionably dressed non-Brazilian Caucasian definitely earned socio-economicstatus for those who could afford the expense (ORUM, 2001).
Segundo Jeffrey Needell (1993), a partir de 1850, o Brasil começa a receber grande
número de migrantes francesas. As primeiras “polacas”, como eram chamadas as prostitutas
oriundas da Europa oriental (Austro-Hungaras, Romenas, etc.), teriam chegado ao Rio de
Janeiro em 1867. O termo “polaca” acabou popularizado transformado na designação genérica
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para as mulheres européias que exerciam o ofício da prostituição, indiferentemente a sua etnia
ou nacionalidade real. Por conta disso, havia certa confusão entre o uso das terminologias
“francesas” e “polacas”, ambas usadas para denominar as brancas européias que exerciam a
“profissão mais antiga do mundo”.
Orum chama a atenção para um fato até então pouco explorado na historiografia local,
que foi a presença ampla de judias exercendo a prostituição em Belém e Manaus no início do
século XX. Segundo o autor, com a depreciação das condições de vida na Europa oriental
(especialmente Rússia e Império Austro-Húngaro) pelas guerras constantes, a partir de 1880,
grande parte da população judaica desses lugares migrou para outras regiões da Europa e do
resto do mundo. Soma-se a estes outros cataclismos sociais nos anos posteriores, como a grande
fome de 1891 na Rússia e a epidemia de influenza (gripe espanhola) que varreu a Europa a
partir de 1893, tendo inclusive sido trazida para o Brasil pelos imigrantes, além de um quadro
de grande mobilidade de pessoas, muitas das quais se sentiram atraídas pelas promessas de
enriquecimento rápido no Novo Mundo.
Para Orum, a dificuldade em encontrar evidências sobre a participação de mulheres
judias exercendo a prostituição no demimonde da Amazônia deve-se à confusão de identificação
entre “francesas” e “polacas”, que serviu bem para mascarar as judias, a maioria migrantes
européias. No Velho Mundo a perseguição religiosa era o principal motivo para que ocultassem
suas identidades, no Novo Mundo, porém, os motivos eram outros: muitas se beneficiaram do
alto valor que as francesas tinham no mercado sexual local, passando-se por elas por terem
fenótipos semelhantes, mesmo não sabendo falar mais que duas ou três palavras de francês,
como observa indignado um viajante francês em visita ao Brasil: “All foreigners that can speak
two or three words of our language declare themselves French” (D'ASSIER apud ORUM,
2001).
A cultura francesa urbana em seus diversos aspectos como a língua, a culinária e hábitos
como os cafés, era cultivada em Manaus como símbolo de refinamento e traço de civilização.
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Por outro lado, as inovações nos meios de transporte, como o aumento da velocidade dos navios
transatlânticos possibilitaram a “diminuição” das fronteiras, melhorando a comunicação e o
comércio com esta área da Europa. Por conta dessas facilidades, as elegantes locais podiam se
vestir com a última moda de Paris, e eram várias as casas comerciais especializadas na
importação de roupas e demais artigos de luxo do “mundo civilizado” como a tradicional Au
Bom Marché, loja de roupas para senhoras, existente até os dias atuais na Avenida Sete de
Setembro (antiga rua Municipal), por acaso batizada com um nome em francês para combinar
com a idéia de elegância que a loja queria transmitir.
A cultura francesa era idolatrada e adotada como padrão, embora ainda se ouvisse
algumas vozes descontentes com tamanha fascinação, como o articulista que na edição número
112 de O Rio Negro, em 18/11/1897, queixava-se do hábito de imitar os parisienses, chamando
a atenção para o absurdo da adoção de uma moda própria de climas frios em uma região quente
como o Brasil:
A moda não passa de uma tradução. As senhoras brasileiras que, aquiregistro, nada ficam a dever em beleza e elegância à suas irmãs de além-mar, nadafazem sem uma consulta aos jornais parisienses. Se em Paris o diretor de umatellier , num momento de allucinação, entender que as senhoras devem apresentar-se com uma cesta de flores na cabeça, de flores ou de frutos, sendo outono, com achegada do figurino sahirão à rua, como thermophorias, todas as damas elegantes...Simplesmente porque é moda em Paris.
A partir desse verdadeiro culto instituído à França, não é difícil imaginar como a
companhia de uma cocotte era valorizada. A prostituição de luxo era a que normalmente
absolveria as migrantes brancas do Velho Mundo. Esta categoria de atividade gozava de certas
regalias pelas ligações que tinha com alguns políticos e homens influentes na sociedade –
geralmente os únicos que dispunham de dinheiro suficiente para freqüentar seus salões, e
mesmo suas profissionais sofrendo discriminação, era na prostituição de rua que as agências de
moralidade – Igreja, Direito e Ciência – investiram mais esforços para combater.
As meretrizes que circulavam em ruas, becos e praças, com a pobreza de seus recursos e
deboche que escandalizava os moralistas, indiretamente denunciavam que o fausto não era
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benevolente para todos. Mais do que a militância moral, que até então era o cerne do debate
sobre o tema, o que passou a motivar as ações contra o comércio sexual foi o aspecto de
problemática social que a prostituição representava para o pensamento da época.
No esforço de situar os discursos que circulavam sobre a prostituição, várias foram as
tentativas de formulação de teorias que dessem conta de explicar o assim colocado “problema”.
O rompimento do Estado com a Igreja, representado pela República, muito mais que fortalecer
ao primeiro, trouxe uma série de transformações no modo como a sociedade burguesa via a si
própria. A busca por explicações para os fenômenos sociais fora das tradicionais teses
teológicas estruturava explicações onde moral não se baseava mais nos critérios religiosos, mas
no sentido de defender a ordem e tudo o que fosse necessário para manter a sanidade dos
espaços e indivíduos. A partir de tal ordem de argumentos, a prostituição não apenas seria
discutida como um fenômeno, orgânico ou patológico, mas também como uma conseqüência do
meio social e da miséria econômica (SIMMEL, 2001). O meretrício, de acordo com essa
abordagem, seria inevitável, pois uma parte significativa de mulheres somente obteria a sua
sobrevivência pela prostituição a medida que as crises sociais agravassem-se.
As explicações referentes aos homens, contudo, espelhavam as nuanças diversificadas
que a questão da sexualidade possuía para homens e mulheres. Segundo diversos autores, a
prostituição era uma necessidade social como a antítese do lar doméstico sendo, portanto, na
opinião deles, inviável a coibição da prática. Aos homens, portanto, era concedido o privilégio
do exercício da sexualidade como forma de prazer; às mulheres, somente como forma de
sobrevivência. Mesmo assim, eram à elas que se direcionavam as punições e práticas
coercitivas.
Em artigo sobre a criminalização da prostituição em São Paulo no mesmo período,
Mazzieiro (1998) acompanha debates de criminólogos, juristas, médicos e outros profissionais
sobre a sexualidade julgada criminalizável e doentia, associada à pobreza. O autor realça as
práticas de esquadrinhamento da cidade e da plebe não-proletarizada levadas a termo por
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aqueles agentes e suas instituições como estratégias de disciplina e dominação em nome de
normas burguesas. No Brasil, alguns nomes como o do jurista Evaristo de Moraes ganharam
notoriedade ao abordar temas que causavam ansiedade na nascente sociedade republicana como
o da prostituição. Moraes tinha opiniões firmadas sobre a questão, afirmando o afastamento
entre a moral jurídica e religiosa, e categorizando o meretrício um mal necessário para a
preservação da moral no lar, não podendo ser criminalizado. O que se observa, contudo, é que
esta criminalização ocorreu quando a prostituição foi classificada de “ato imoral” que ameaçava
a vida social, portanto passível da intervenção do Estado para contê-la e controlá-la através de
seu enquadramento na legislação vigente (CARNEIRO, 2000).
A criminalização jurídica acontece no mesmo processo da repressão médica, que
perpassava a profilaxia da sífilis, e a suposta ameaça que esta representava ao desenvolvimento
de uma sociedade “saudável”, de acordo com a ideologia do higienismo importado da Europa,
vigente nas escolas de medicina do Brasil. Implantou-se, portanto, uma penalização da conduta
considerada anti-social e perigosa sob o ponto de vista da higiene e da moral que a prostituição
passou a representar.
A Medicina e o aparelho repressivo do Estado, representado pela polícia, agiram juntos
em grandes centros urbanos como São Paulo, cabendo à última a tarefa de capturar as
prostitutas para exames médicos. Mazzieiro afirma que este controle dava-se de forma especial
por ser o controle de uma sexualidade vista como criminosa pelo discurso da Criminologia;
declarava-se necessária uma polícia sanitária para controlar a prostituição.
No que diz respeito à moral pública, a modalidade do chamado atentado ao pudor e seu
enquadramento dentro do código penal “modernizador”14 constituiu-se em mais uma estratégia
para perseguição das meretrizes e da cultura social da qual era parte. O artigo 282 do Código
14
Com a proclamação da República, foi editado em 11 de outubro de 1890 o Código Penal Brasileiro, com a pretensão de “atualizar” os costumes legais aos novos tempos republicanos, numa das tantas tentativas dos pensadores locais em dissociar as leis das antigas normas do Império. O Código penal, para os juristas da época,deveria estar sincronizado com a idéia de uma nação soberana e moderna; desta forma, com ele aboliu-se a penade morte e instalou-se o regime penitenciário de caráter correcional.
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Penal previa punição legal para todo aquele que ofendesse “os bons costumes com exibições
impudicas, atos ou gestos obscenos, atentatórios ao pudor, praticados em lugar público”.
Outra forma de criminalizar a prostituição foi a sua equiparação à vadiagem15
, sendo
esta mais uma categoria constante no código penal. Para as meretrizes e mesmo demais
mulheres do povo, contudo, a ação policial de combate à vadiagem não passou de uma forma de
reprimir suas existências e ameaçar constantemente sua liberdade. Alegando que nas ruas onde
se explorava o meretrício as decaídas exibiam-se escandalosamente, ofendendo o pudor
público, falando palavras obscenas ou provocando transeuntes ao deboche, as autoridades
policiais procuravam enquadrar estes atos como crimes.
Foram presas e recolhidas a gaiola Xica Pau D’àgua, Sarah Velha e MariaAmélia. Todas por darem escândalo na Rua Independência, onde residem. (OChicote, n. 44, 23/08/1914)
O chamado “atentado público ao pudor”, descrito no Código Penal no artigo 206, serviu
não apenas como suporte maleável para as ações da polícia contra as meretrizes, mas também
contra os homossexuais, como deixa claro Sousa e Ratts (2004), o que dava subsídios legais à
polícia para o controle de áreas denominadas públicas como praças e ruas abertas.
Nas referências que encontramos nos jornais, as prisões raramente tinham uma
justificativa devidamente “tipificada” dentro da legislação, sendo freqüentes o uso de
terminologia obscura como “presas por escândalo” ou “presas por falar obsenidades”, como no
exemplo a seguir:Foram recolhidas ao gallinheiro as ratuinas abaixo: Não-Me-Lasque (lá ella),
a negra Angelina, Rata da Emília Moraes, Vagabunda Sinhá, todas por andaremcom palavras obscenas. (O Chicote, 01/01/1915)
Se por um lado a prostituição não era um problema novo, sendo conhecida desde os
primórdios da humanidade, nesta época novas explicações são engendradas para explicá-la e
15 Segundo o Código Penal de 1890 (Decreto n. 847, de 11 de out 1890), por vadiagem entendia-se: “Deixar deexercitar profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meio de subsistência edomicílio certo em que habite; prover a sua subsistência por meio de ocupação ofensiva da moral e dos bonscostumes (...): Pena – Prisão celular por 2 a 6 meses.”
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solucioná-la. O destaque fica por conta das teorias que relacionavam a prostituição moderna ao
fenômeno urbano, engendrando novos discursos e saberes. No ideal de higiene e sanidade social
que se valorizava nas camadas letradas, a prostituição passa a denotar um contraponto a estes
valores, uma vez que estava relacionada a um descontrole da mulher e de seu corpo – peça
fundamental no projeto civilizatório moderno. Portanto, as tentativas de normatização da
própria prostituição mostram-se plausíveis nesse quadro de idéias e os apelos nos jornais
justificavam o combate à prostituição como uma questão fundamental para a imagem de cidade
civilizada:
Não é esta a primeira nem a segunda vez que chamamos a attenção contra o procedimento indecoroso de certas “rameiras” da Estrada Epaminondas e com justarazão. O modo de proceder destas mulheres, n’esta Zona, constantemente transitada por famílias, é uma verdadeira afronta às nossas leis e aos nossos brios de povocivilizado (O Chicote, 20/02/1909).
A prostituição em Manaus era o ponto de atrito entre as concepções civilizatórias de um
segmento da elite, para quem era vista como um traço de depreciação do ambiente urbano
“saudável” e moralizado, mas que por outro lado adotava uma postura permissiva para aquestão, em nome dos privilégios dos poderosos extrativistas, que freqüentavam e mesmo
apoiavam os bordéis de luxo que proliferavam, junto com as pensões e “hotéis” que abrigavam
as não tão belas e pouco valorizadas meretrizes “populares”.
Apesar da preponderância das causas sociais na explicação do meretrício, subsistiam as
explicações que analisavam pelo viés patológico. As meretrizes eram, ao redor do mundo,
constantemente alvo dos estudos de psiquiatras e médicos que tentavam explicar seu
comportamento tido como desviante através de teorias científicas, como o célebre trabalho de
Cesare Lombroso, La dona delinqüente, citado por Gilman (1985), que serviu de inspiração
para muitos outros na mesma linha, como o do médico brasileiro Alexandre José de Mello
Moraes (CARNEIRO, 2002) e do já citado jurista Eduardo Viveiros de Castro (ESTEVES,
1989). Lombroso afirmava a existência da prostituição como um comportamento inato de
algumas mulheres, do mesmo jeito que existia a criminalidade inata para alguns homens, ambas
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marcadas pela hereditariedade. A discussão sobre os “desvios” de comportamento sexual era
uma tendência em vários pontos do planeta, como mostra o estudo de Karinj Jušek (1995) sobre
a moralidade sexual na cidade de Viena, em um período sobreposto ao que abordamos16
.
Apesar das calorosas discussões entre os pensadores da época sobre a possibilidade ou
não da mulher obter prazer através dos atos sexuais, é notável como a obsessão moderna em
classificar comportamentos entre a dualidade ”normal” e “patológico” tenha, por um lado,
encontrado na meretriz um objeto perfeito para as investidas de disciplina moral e sanitária e,
por outro, tenha gerado uma ideologia da prostituição como “um mal necessário” (JUŠEK,
1995) e uma separação tão abissal entre as mulheres, tendo o aspecto sexual como parâmetro.
O discurso sobre a prostituição vinha sempre associado à transmissão de umasérie de moléstias, sendo a intervenção do governo uma forma de proteger a saúdedo povo e manter a moralidade. (DIAS, 1999; pp. 149).
Nesta lógica, a sexualidade por si era considerada algo degenerativo. A civilização para
se estabelecer teria como uma de suas condições básicas o domínio desta, tida como um traço
de primitividade. Não é de se estranhar, portanto, que em Manaus, uma cidade emblemática da
modernidade, esta tentativa ideológica de controle e submissão da vida sexual tenha tomado
outras nuanças em função do profundo sentido do embate natureza versus cultura nos trópicos.
A imprensa local expressava a opinião de iminentes homens locais sobre a questão, onde
geralmente eram rejeitadas tanto as abordagens sociais quanto as “patológicas”, prevalecendo o
apelo à moralidade como justificativa para seu combate. M. J. Castro e Costa, citado por Dias
(1999), apressava-se em explicitar sua posição a respeito, mantendo-se firme contra a
importação dos “estrangeirismos” representados pelas teorias explicativas do fenômeno:
Entre os assuntos que mais me preocupam, acha-se o da prostituição. Soucontrário, por observação científica e prática, à regulamentação desse comércioilícito. Sou mesmo de parecer que com a regulamentação da prostituição abre-seuma fonte pra o lenocínio e o Estado que assim o entender, na minha fraca opinião,contribui involuntariamente para esse novo crime sem conseguir atenuar aquelemal. Se examinarmos a regulamentação Francesa e Belga e mesmo as do Rio Prata,veremos que a regulamentação não produz os resultados a que se propõe. No
entanto, julgo necessária a maior vigilância e critério por parte da polícia, comrelação a essas infelizes, de forma que seus desregramentos não venham prejudicar 16 A autora analisa o período entre 1890-1915, durante o qual Viena caracteriza-se culturalmente peladiversidade, decadência e anti-semitismo.
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a terceiros nem ofendam a moral pública. Existem nesta capital alguns hotéis oucoisas que melhor nome tenham onde se acotovelam meretrizes, sendo que algunsdesses estão situados em lugares muito freqüentados pela população, tornando-se bastante difícil manter a moralidade que é preciso...
As opiniões podiam divergir em alguns pontos, mas de modo geral a tendência era a
opção pela manutenção da situação sem a ingerência do Estado na questão, ou mesmo pela
condenação contundente da prostituição ou a qualquer questão a ela relacionada.
O poder público tinha várias formas de se manifestar em relação ao “problema”, através
de atitudes marcadas pela contradição entre as ações e os discursos dos políticos e moralistas.
Dias (op. cit., p.150) cita o combate instituído às casas de diversão pela Intendência de Polícia,
que buscavam dificultar ao máximo o funcionamento deste tipo de estabelecimento, onerando
com pesados impostos; nesta campanha moralizante os jornais tiveram um papel importante,
canalizando as queixas e denúncias dos “zelosos cidadãos” contra o que consideravam um
atentado aos bons costumes e à imagem da cidade. Lugares como a casa El Dorado, que
funcionava no Hotel do Comércio, eram constantemente citados nos jornais juntamente com
exigências de providências.
O projeto de civilização que se encontrava em curso estabeleceu uma vigilância
contumaz e sistemática sobre as atividades das meretrizes por parte do poder público, que
assumia como tarefa o saneamento – moral e físico – da cidade, no que era apoiado pelo
pensamento científico da época, que intentava intervir de forma contundente no regime da
economia sexual “ilícita”, representada pela prostituição e pelas demais “anomalias” sexuais,
criando a esfera da individualidade e intimidade apenas para ser invadida, moldada e
normatizada. O mesmo poder público que coibia a prostituição, dela tomava conhecimento e a
reconhecia, na prova da cobrança diferenciada - e de maior valor – para os impostos, como
demonstra a Lei Municipal n.º 388 de 31 de dezembro de 1904, citada por Dias, estipulava que:
as casas de pensão ou sem pensão, ou de cômodos, que derem hospedagem ameretrizes, no perímetro urbano compreendido entre as ruas Visconde de PortoAlegre e Leonardo Malcher e a margem do rio, independente do imposto deindústria e profissão estarão sujeitos ao pagamento de 10:000$000 anual.
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A perseguição ao modo de vida destas mulheres não se restringia, contudo, às páginas
dos jornais. O projeto moralizante da elite buscava segregar espaços e delimitar domínios. Se
por um lado a companhia das meretrizes brancas era tida como um símbolo do status de certos
homens, por outro a aceitação encontrava seus limites, dos quais elas eram avisadas,
especialmente no que se relacionava aos lugares públicos, onde eram consideradas indesejáveis.
Costa (1996), analisando o processo de elitização da principal diversão da época, o cinema, cita
uma referência a este respeito num dos periódicos da época:
Ao ghichet do Cinema Rio Branco assoma um rosto oval empoado, cold-cremado e artisticamente pintado de uma horizontal. Dá por momentos a ilusão deuma miniatura de esmalte, brilhando à luz indecisa da Manáos Light... – Umacadeirra si fachi favor , pede ela n’um português de contrabando... – Não há,respondem-lhe. – Hein? Não há? Mache non tem ninguém! – É que... não... nós não podemos vender bilhetes a vocemecês... isto é só para famílias... – Orra non, há! Isto só aqui sucede... é uma pouca verrgonhe...E a horizontal, furiosa contra amoralidade que parece expulgar de Manaus a lama viciosa dos aventureiros, foi-se pela rua afora batendo os tacões de pau na calçada... (Correio do Norte, 18/04/1912,apud Costa, 1996, p. 75-76).
Apesar da segregação a qual estavam sujeitas, havia eventos em que as mulheres
socialmente separadas pela ordem social podiam ser vistas juntas, dividindo por algumas horas
o mesmo espaço, como os bailes de Carnaval. Tal “mistura” não passava desapercebida pelos
jornais, que a denunciava e criticava, deixando claro seu desejo de manter as mulheres da Rua,
pelo menos nesta época do ano, em casa, ou melhor, invisíveis, como mostra o comentário a
seguir:
Domingo passado, no jardim publico a diversão carnavalesca primou pelasua grande afluência de alta aristocracia. Senhoritas, d’aquellas de feições alegresque deixam boiar nos seus carminados lábios angélicos risos, como se fossem pétalas das pallidas camélias nadando n’um mar de orvalho; tão interessantes e bellas vimos as senhoras de cabelos desgrenhados correndo jardim afora, debaixod’uma chuva de confetti multicores.Um delírio imenso dominou o jardim público n’aquelle dia correndo uma melhor ordem; podem duas cousas unicamente censuramos, porque achamos deconveniência corrigirem-se de alguns caixeiros de bodega que se atiramdespiedosamente sobre as senhoritas, atirando-lhes confetti, usando n’este meio afalta de consideração que deveriam ter. E a outra são as bailarinas do mundo quefaltam com o devido respeito a este lugar público, freqüentado por famílias, julgando ser o jardim de seus indecentes hotéis bailariniacos, onde a falta deescrúpulo escandalisa a phisionomia dos seus proprietários (A Máscara,17/02/1910).
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Aplausos! As Atrizes Estão em Cena
São comuns, entre as referências que encontramos na pesquisa, tanto das fontes de
dados quanto nas conclusões de alguns estudiosos, uma vinculação entre a figura da atriz e da
meretriz. Ora, não gostaríamos que esta vinculação fosse adotada neste trabalho, então optamos
por analisar as referências que achamos que poderiam servir para visualizar a dimensão de
autonomia das atrizes, numa ordem social que não via com bons olhos a autonomia feminina e
as formas como eram vistas pelos jornais.
As atrizes geralmente figuram nos jornais nas críticas de peças apresentadas em
Manaus ou mesmo no exterior. Devido a fascinação da elite local pela Europa, os leitores dos
jornais locais tinham acesso às transcrições dos comentários feitos em jornais de Paris, Londres,
Madrid e Lisboa sobre a atuação de artistas das peças em cartaz. Esta era também uma forma
eficaz encontrada pela elite leitora em construir opiniões estéticas sobre a atuação dos atores,
visto que era provável que algumas das companhias que figuravam nos comentário viessem a se
apresentar em Manaus posteriormente. Algumas das atrizes que passavam pela cidade eram,
portanto, mulheres viajadas, cultas e contrastavam com as mulheres locais, mesmo as que mais
tivessem se esforçado em adquirir o verniz da cultura:
A senhora Lucilia vai comprovando o seu valor à nossa platéa em peças daescola antiga como da escola moderna, emprestando a todas um relevo digno demenção, principalmente na alta comédia (A palavra, n. 01 de 21/08/1910).
Ângela Pinto, a consagrada artista que todos nós admiramos, continua ailuminar com as refulgências do seu peregrino talento o palco do nosso primeiroteatro (Tesoura, n. 03 de 09/10/1909).
A imagem da atriz, nos comentários que fugissem da mera crítica literária, era de uma
mulher sexualmente liberada, como demonstra o chiste malicioso transcrito do jornal O Rio
Negro de 10/08/1897:
Entre duas actrizes, uma delas casada de fresco:- Então collega, conta-me tudo, como foi a cerimônia religiosa e o resto?- Oh! Perfeitamente, tínhamos feito um ensaio geral na véspera!.
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Os elogios não as tornavam imunes às críticas, dirigidas especialmente àquelas que
rompessem com os silenciosos “pactos” de aceitação de condutas: relacionamentos “livres”seriam tolerados se fossem ter como parceiros homens de determinado prestígio social. Uma
vez que estas decidissem entregar seu amor a outros elementos menos bem colocados, como os
jovens, não eram poupadas de comentários mordazes da vigilância moral, sempre alerta:
Chamamos a atenção da polícia para certas mulheres do “Demimonde” quese fazem acompanhar de menores, tarde da noite, nos centros viciosos. A actrizEmma Biari é uma d’ellas. Mina, Yolanda e Biari continuam a ser a delicia dos
freqüentadores deste elegante centro de diversão (A Tesoura, n. 03, 09/10/1909).
Além das atrizes, outros tipos de artistas eram recebidas em Manaus. A aspiração de ser
capital cultural levava a elite a adotar ares de naturalidade ao acolher jovens musicistas:
cantoras líricas e pianistas tornavam seus saraus mais refinados.
Manaos hospedou por alguns dias a graciosa senhorita Ignez Mancine e suadistincta genitora, Madame Ida Mancine. A senhorita Ignez, estudiosa alumna decanto de um dos principaes conservatórios da Europa, realizou com grande gostoartístico. Prestaram valioso concurso a essa gentil senhorita além de apreciadosmusiciostas, madame Laura Lago, festejada pianista e cantora que em nosso meiosartístico tem alcançado fervorosos applausos, pelo seu talento(O Grêmio, n.02, 01/07/1910).
Pecado na Vizinhança: As adúlteras nos Jornais
Uma outra categoria de mulheres objetos dos jornais locais eram as que se arriscavam
em relacionamentos extra-conjugais. Seus comportamentos, encontros sexuais fortuitos em
pensões ou mesmo na própria casa, quando descobertos, eram noticiados sem nenhuma sutileza
ou clemência, sendo esta uma das ocasiões em que a imprensa local voltava-se para as mulheres
do povo, ao invés de noticiar as habituais notas sobre os encantos das moças da elite.
O controle social que comumente era exercido sobre o corpo da mulher, no caso das
adúlteras, parecia ser muito mais feroz e incisivo, uma vez que na condição de casadas, suas
vidas eram consideradas de domínio público, e a sociedade de modo geral se apropriava da
tarefa de vigiá-la. Essa vigilância era exercida não só pelos representantes da chamada “moral
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familiar”, mas também por pessoas da mesma camada social, vizinhos e conhecidos e não se
concentrava apenas nos fatos de adultério, mas em qualquer comportamento mais “ousado”,
como atesta a nota abaixo:
Previne-se a uma certa senhora casada que mora na praça São João (Mocó)que seja mais passiva em seus passeios pela cidade, pois os filhos da Candinha nãodormem e mesmo o seu marido está para chegar de viagem e pode ficar sabendodos seus passeios (O Bem-Te-Vi, n. 03, 19/05/1910).
A minúcia das informações deixa claro que a fonte dos articulistas não poderia ser outra
que não pessoas próximas a estas mulheres, talvez vizinhas. Os jornais funcionavam como um
instrumento eficaz de controle da sexualidade e de fragmentação de uma possível resistência
das mulheres aos ditames morais em voga através da delatação entre iguais. As informações
sobre a vida privada chegavam a ser por vezes tão pormenorizadas e íntimas que não deixam
dúvidas em relação às suas fontes de informação: as próprias companheiras da vítima, como
deixa claro a nota transcrita a seguir:
O escândalo praticado por certa casada sem respeito de nome M.S.M. lá noBoulevard, onde marca entrevistas para um caserna casado de nome B.F. em umcortiço lá na Preguiça, de acordo com a ratuína de nome A.V. Se continuarem,daremos os nomes por completo desses gallinhos (O Chicote, 20/02/1914, grifomeu).
No caso dos homens, a vigilância se fazia presente em função de situações de
fragilidade individual ante a ordem social, como no caso dos estrangeiros. O trecho a seguir,
bem como o anterior, mostra este tipo de situação na qual o homem é advertido através de umaameaça do jornal, em sua função de “polícia dos costumes” se faz de forma bem mais explícita.
Neste caso, vemos que a condição de estrangeiro – socialmente diminuída e marginalizada
aproxima esse tipo de homem da condição da mulher inferiorizada socialmente:
Prevenimos a um certo português ou italiano, arvorado a taverneiro, que senão deixar o namoro do sobrado, no próximo número lhe estamparemos o nome e arua. A mulher tem dono... Vê lá, Don Juan! (O Parafuso, n.º 5, 01/10/1912)
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É importante lembrar que embora o adultério não fosse – nem seja nos dias atuais –
exclusividade das classes populares, somente eram expostos nos jornais os nomes de mulheres
do povo. Graças à chamada “solidariedade de classe”, não ficamos sabendo nada sobre os casos
extra-conjugais das mulheres de elite, sempre salvaguardadas pelos articulistas, não só por seus
nomes, mas principalmente por seus maridos. Por outro lado, a moral social não perdoava o fato
de mulheres pobres abrirem mão do que na época seria o único status ao qual poderiam ter
acesso: a condição de mulheres casadas, para viverem experiências amorosas.
Para Trindade (1995), que pesquisou sobre as chamadas “mulheres de má vida” nos
jornais de Belém de 1890-1905, a adúltera estava próxima da meretriz, já que ambas feriam as
regras de submissão à figura masculina imposta durante séculos pelo modelo patriarcal que
vigorava desde a Colônia.
As Negras de Manaós
Entre as mulheres “faladas” de Manaus, os comentários em jornais que tinham como
alvo mulheres negras eram recorrentes. Compondo, juntamente com outros segmentos urbanos,
a parte menos privilegiada da população, negros e negras, mesmo não constituindo contingente
significativo numericamente, sofriam controle e discriminação de forma mais intensa em função
do marcador da raça.
De modo geral, as alusões feitas aos negros nos jornais da época raramente eram
positivas, como podemos perceber no artigo publicado em 1898, de tônica “científica”, como
era comum na época, porém com uma indisfarçada carga de racismo:
“Os pretos” N’um jornal estrangeiro lemos esta notícia de sensação, que deve causar a alegriada pretalhada. Notícias sobre os estudos do Dr. Luciano Brake, da Universidade deKansas, que alega ter descoberto um tratamento elétrico – estaforese, “graças aoqual affirma poder branquear, ou segundo a expressão do sábio “descarbonizar” o pigmento que torna preta a pelle do negro. Em alguns meses, segundo elle, será possível tornar o mais negro dos africanos tão branco quanto um europeu. Ao que
parece as primeiras experiências deram resultados maravilhosos. O doutor transformou já um certo número de creaturas, mulheres, crianças e até um velho (ORio Negro n. 164, 11/01/1898).
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Situando a figura do negro no Amazonas do século XIX, podemos dizer que seu número
na província era bem menos expressivo que em outros pontos do território, em função do papel
menor que a escravidão de africanos teve no local, o que não pode ser generalizado para a
região. Patrícia Sampaio (2004), falando sobre a presença do negro no Pará antes da abolição da
escravatura, lembra que o número não muito significativo de negros na época não deve servir de
pretexto para sua desconsideração na historiografia da região, pois está relacionada a processos
sociais mais amplos: a própria montagem e reiteração de uma sociedade escravista cuja lógica
de reprodução não se limita ao número de almas disponíveis, mas antes se traduz na reiteraçãode relações de subordinação e poder que dão vida ao próprio sistema.
Ao contrário de capitais como Rio de Janeiro e Salvador e mesmo Belém, onde a
população negra constituiu-se principalmente a partir dos escravos libertos, Manaus
aparentemente tem sua população negra constituída também a partir de outras fontes, como as
levas de migrantes em função da borracha, não só nordestinos, mas também de outros países. O
médico Hermenegildo Campos calcula o número de 300 barbadianos em Manaus no início do
século XX, “sendo em maior quantidade as mulheres empregadas em serviços domésticos”
(CAMPOS, 1988).
Apesar da abolição da escravatura na província ter ocorrido antes do resto do país, a
inserção do elemento negro localmente não foi mais tranqüila por isso, reverberando a exclusão
relacionada não apenas a negros, mas também a outros segmentos, já que estava baseada na
estrutura social.
As relações escravistas persistiram na região ainda que não tenham chegado aconstituir-se em seu eixo fundamental para a obtenção de mão-de-obra. Para alémde sua persistência enquanto relação de produção, está em jogo a própria reiteraçãode uma hierarquia social excludente que se reproduz, também, via diferenciaçãoétnica, reservando aos negros, índios, mestiços e tapuios, o papel de cidadãos de 3.ªclasse, em uma sociedade profundamente marcada pela pobreza, pela desigualdadee pelas relações de dependência (SAMPAIO, 2004).
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As desigualdades sociais faziam suas vítimas entre brancos e negros pobres
indistintamente, mas aos últimos somavam-se históricas injustiças sociais, o que no caso das
negras era ainda mais grave. Por se distanciarem do padrão de mulher idealizado pela sociedade
burguesa e presente nas pregações dos jornais - branca, culta, restrita ao âmbito doméstico, as
críticas sofridas pelas mulheres negras nos jornais geralmente se referiam ao seu
comportamento, ou mesmo à sua aparência.
Somos informados que a negra Angelina, moradora a Rua Dr, Horge deMorães e a magrella Leonor da 10 de julho são as duas typas mais feias de Manáos(O Chicote, 20/02/1914).
Na multidão de tipos e falares presentes na “selva urbana” de Manaus, as negras
buscavam sua sobrevivência trabalhando nas ruas, praças e dentro das residências em diversas
ocupações: vendedoras de comida na rua, lavadeiras, domésticas ou amas-de-leite. Seu lazer,
assim como o das classes baixas de modo geral, era alvo de perseguição e repressão.
Pelas ruas: A moral publica acha-se abalada... Calculem que a Elyra Gomes daSilva, uma preta retinta a valer, andava ontem pela rua Saldanha Marinho,completamente embriagada, a armar rolos e a offender a moral publica... acabou-sena Chácara do Braga, defronte do jardim (O Rio Negro, n.º 185, 01/02/1898)
Seus relacionamentos amorosos, pouco afeitos aos convencionalismos das pregações
moralistas que os jornais tanto enfatizavam, também eram expostos nas linhas dos periódicos de forma
depreciativa.
Consta... Que uma mulata de nome Punina “da Costa Azevedo” já parafusou a J.Barros. Assistimos aos beijos dados pelos beiços da indecorosa negra Otillia
Bahiana no seu rabujento companheiro de creação (O Parafuso, número único,07/01/1912).
As notas nos jornais reproduziam os conflitos vividos no cotidiano do solo urbano, e
explicitam a presença dessas mulheres e até mesmo a recriminação que sofriam suas tentativas
de ascensão social através da obtenção de educação ou quando “ousavam” habitar em áreas de
moradores de nível social maior que o seu, como demonstram as referências a seguir:
Consta... que a mulata Palmira, depois que se tornou chic, e é educada em Paris, sótrata as suas companheiras de “ratuinas”.
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Emburramos... com a pretensão da Negra Bahiana, querendo morar na ZonaEpaminondas (O parafuso, número único, 07/01/1912).
Assim como outras mulheres que tinham na rua seu espaço de circulação, não eram
raras as prisões de mulheres negras nas ruas e seu recolhimento à cadeia sob a alegação de
vadiagem ou atentado ao pudor.
Foram recolhidas ao gallinheiro as ratuinas abaixo: Não-Me-Lasque (lá ella),a negra Angelina, a Rata da Emília Moraes, Vagabunda Sinhá, todas por andaremcom palavras obscenas (O Chicote, 07/11/de 1915).
A forma hostil como a sociedade da época via as mulheres negras tinha seu fundamentono período da escravidão, o que contribuiu para gerar uma atitude de constante desconfiança em
relação ao elemento negro, como lembra Conceição Almeida (1995), quando lembra a
existência de um critério social geral de suspeição no Pará, no final do regime escravocrata
tendo como alvo as negras, que a tradição patrimonialista sempre adjetivou como lascivas.
Bebidas, brigas, palavrões e cadeia: as arruaceiras na berlinda
Um importante para destacar no contexto urbano de Manaus no período analisado é que,
apesar da ânsia dos administradores urbanos (própria deste período em várias cidades) em
identificar e controlar os habitantes da cidade, eram limitadas as possibilidades de um controle
eficaz do poder público e do aparelho policial em virtude do aumento do número de almas que
circulavam nas ruas, praças, igarapés e periferia da cidade. Neste sentido, os jornais foram
instrumentos valiosos no auxílio às identificações de personagens urbanos, especialmente se
fossem mulheres; nas páginas dos periódicos eram criadas alcunhas, descritos hábitos e locais
de circulação, como no caso de Adélia Preta que, longe do modelo de mulher “decente”, era
mais uma vítima dos comentários sarcásticos dos porta-vozes da elite, como podemos ver na
nota abaixo.
A ratuína mulata pernóstica messias, do frege Adélia Preta, andava hontem ànoite pelo jardim da Matriz procurando frete (O chicote, 20/02/1909).
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Analisando padrões de comportamento revelados por homens e mulheres da classe
trabalhadora em suas relações amorosas no Rio de Janeiro do século XIX, Sidney Chalhoub
(2002) ressalta a forma como se dava o “enquadramento” dos despossuídos ante a ordem
burguesa e seus ditames, ou seja, o contraste entre os padrões de comportamento impostos pela
burguesia e propalados nos veículos classistas de imprensa e aqueles que a realidade produzia.
Tais contrastes ficavam mais evidentes no detalhamento com que episódios envolvendo a
sexualidade eram relatados nos jornais. A mórbida curiosidade dos leitores parecia não colocar
limites nos textos dos articulistas, como comprova a nota a seguir:Com isto é que mamãe se dana: Com a briga aguda das marafonas do número 74Epaminondas, e as mesmas para distrair-se cantam a noite inteira “Ah, Maria!”...Quantas noites eu passei sem dormir; com os constantes porres da JosephaGallinha, na pensão Rolan; com a Lydia Cachaça, que achando-se em uma casa noLargo da Saudade, com um gajo, quando chegou a amante delle esbofetiando efazendo sahir no passo do constrangimento. A ratuína Lydia Cachaça quer ser muito boa mas, no entanto, ante-hontem andava de braço dado com uns italianoscarregadores (O Chicote, 07/11/1915).
As chamadas “arruaceiras” têm seus principais registros publicados nas seções da
Chefatura de polícia – como ironicamente ainda hoje ocorre, nas listas de prisões por
embriagues, desordem ou sob a acusação de cumplicidade com amantes em roubos ou
homicídios e eram acusadas da prática do meretrício.
Alta, magra, preta e rateira, equivalente e depravada, Mundica Marmelada é amarafona recentemente [instalada] na Zona Epaminondas. Tem por direito legítimode seu gênio a vagabunda é sempre o sumo pontifico da “alta roda do pessoal damescla”. Fascinada pelo calix da branquinha, goza sempre o sonno calmo no frio
cimento da 2.ª Intendência de Polícia (O Chicote, 23/08/1914).
As mulheres de “má fama”, freqüentadoras de bares, tidas como briguentas e
presenças constantes nas cadeias da cidade formavam um seguimento mais resistente aos
ditames da ordem social da época, demonstrando que nem sempre os discursos normativos da
sexualidade encontravam aceitação passiva.
As mulheres, a Rua e a cultura marginal urbana
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A diversidade de tipos humanos presentes em Manaus, além dos conflitos entre as
classes, gerou uma cultura urbana distinta, expressa através de danças de salão, cinema, bailes,
cervejarias e cafés. A rua era um espaço aberto para a diversão e a vida boêmia floresceu em
Manaus junto com a urbanização e com a importação dos hábitos europeus. Estes espaços,
contudo, estavam socialmente hierarquizados, e dentro deles, os seus habitantes. A cultura
urbana comportava uma gama enorme de manifestações que não estavam circunscritas a uma
classe determinada, mas que tiveram, porém sua expressão mais contundente entre as camadas
baixas. As chamadas “mulheres da rua”, marginalizadas e constantemente expostas ao opróbrio
público através dos jornais, faziam parte desta cultura.
As diversões destas mulheres contrastavam com os eventos sociais da elite, sempre
noticiadas elogiosamente nos jornais locais, muito mais em função da ostentação dos homens
que das mulheres que deles participaram, como o “sarau dançante” em comemoração ao
aniversário da esposa do Major Augusto, realizado no salão do Quartel de Segurança e
noticiado no número 135 do jornal O Rio Negro, de 30 de dezembro de 1897, onde nem sequer
o nome da aniversariante aparece, sendo ela identificada apenas pelo nome do cônjuge.
O ainda incipiente colunismo social documentava as festas da elite enaltecendo os
nomes das famílias através das mulheres e de signos de status como as toilletes femininas de um
“sarau à fantasia”, exaustivamente descritas, numa longa nota do mesmo O Rio Negro, em seu
número 187 de 03 de fevereiro de 1898. As donas das roupas foram todas devidamente
identificadas pelas iniciais de seus nomes. Longe dos inocentes saraus familiares, a vida boêmia
de Manaus refletia a adoção de hábitos estrangeiros, como a cerveja e o chopp, que com a
novidade da refrigeração passaram a ser servidos gelados nos bailes e confeitarias da cidade
(DAOU, 2000a, p. 58). A cervejaria Miranda Corrêa, inaugurada em 1909, constituiu parte
importante do imaginário sobre o fausto pelos bailes que oferecia e pela célebre cerveja XPTO
que fabricava, além de refrigerantes e gelo. São também ícones da época a Pensão da Mulata, o
bar High Life, o Hotel Cassina e os clubes fundados para colônias de estrangeiros – o Bosque
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Club, dos ingleses, o Luso Sport Club, dos portugueses ou o Ideal Club, símbolo das aspirações
de refinamento da elite por uma “vida ideal” (DAOU, 2000a).
Uma das diversões preferidas na sociedade eram os bailes, descritos por Ana Maria
Daou (1998, p. 55) como “rituais de civilização” pelo seu papel de eventos de manutenção ou
reforço da elite. Os símbolos de refinamento iam desde a exigência de trajes caros, adquiridos
nas lojas importadoras locais, como no baile veneziano (O Rio Negro, n. 108, 13/11/1897)
oferecido ao Governador do Pará durante sua visita à cidade em 1897, até as jóias oferecidas
como lembranças dos eventos.
Em um outro extremo estavam as “mulheres da rua”, cujas expressões lúdicas eram alvo
de constante vigilância. Elas circulavam em espaços próprios, com uma geografia definida –
formada pelas ruas onde geralmente concentravam suas moradias em lugares específicos como
as imediações do Porto Flutuante (o Roadway), a Rua Costa Azevedo e 10 de Julho – e por
modos de viver distintos, freqüentemente condenados pela imprensa local em nome das
“famílias”. Os bares e salões que freqüentavam, as músicas que ouviam e dançavam e até
mesmo os conflitos como brigas e relacionamentos figuravam constantemente nas páginas dos
pasquins locais.
Elas também tinham sua própria versão dos bailes, e os realizavam mesmo sob o olhar
atento da polícia e dos jornalistas locais, que não poupavam comentários indignados.
No baile: Munidos de competente cartão-convite, fomos no dia 16
distrairmos as idéias à casa de Madame Helena, mas triste decepção, quando julgávamos encontrar uma festa encantadora, deparousse-nos logo à queima-roupauma legião de formosas e castas damas da Costa Azevedo e outras. A sala despidade qualquer ornamento que agradasse, era de mosaico. Entramos e num relance devista ficamos a par das bellezas que alli se encontravam. Entre os folgazõesachavam-se conhecidos, valente que queriam a viva força matar alguém pacatocomo Mousier de... Patocas. Sahimos completamente aborrecidos, e daqui destacolumna pedimos à Madame Helena que para outra vez offereça nos uma festamais... lisonjeira (O Parafuso, 07/01/1912).
Os bailes do “populacho” eram espaço de alegria e liberdade, onde as manifestações da
cultura urbana eram expressas mais intensamente, mas também eram palco de conflitos entre os
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personagens da cidade, os estrangeiros, militares, marítimos, meretrizes e onde também
ocorriam brigas, desavenças e disputas amorosas.
O baile Argentina: No baile realizado na casa dessa marafona, soubemos queesteve bastante concorrido por grande número de ratuinas e distinctos cavalheiros.E como não nos sobra tempo para declarara tudo que se passou naquele “coito”,adiantamos apenas que houve muitos barulhos, sahindo em cena a falla do prático“Mundico”, ferido por uma “pitomba” arremessada por um militar, terminando por este facto o mesmo baile (O Rio Negro, 24/09/1912).
Esta referência tem uma característica semelhante às de outras do tipo: a presença de
militares. Lourenço Fonseca (1895), naturalista português que visita a cidade no final do século
XIX, admira-se da grande quantidade de militares na cidade que encontrou: segundo suas
contas, a cidade contava com o contingente de 1.000 praças – incluído o corpo policial – para o
contingente de 25.000 habitantes na cidade. Mesmo não deixando clara a proveniência da
informação, o que pode nos levar a pensar que o cálculo fosse apenas uma presunção do autor,
Fonseca nos oferece uma impressão especial sobre o alto número de militares. A maioria destes
homens provavelmente havia sido recrutada durante a guerra de Canudos, para fortalecer arepresentação da Província. Uma vez terminado os conflitos, os soldados que permaneceram na
cidade eram presença constante nas páginas dos jornais, juntamente com as “mulheres da rua”.
Hoje à uma hora da manhã, no Hotel Madeira, ao Largo dos Remédios,houve um grosso sarillho, no qual tomou parte um crescido número de portugueses,um soldado do 36.º de nome José Morais, um homem do povo de nome Justino eumas mulheres de vida livre.
O crime, pelo que está averiguado, foi a alma do rôlo, resultando sahir JoséMoreno com uma grande brecha na cabeça, que mede uns cinco centímetros deextensão na região parietal esquerda.(O Rio Negro, 24/09/1912).
Ratuínas baixaram cotação, procuram fretes, casernas arribados sem tostão balço, continuam a freqüentar aqui grande buchada incapaz serviço mundano,vagabundas que sujeitam-se a dormir a qualquer preço, estiveram aqui as seguintesrampeiras: Idalina Nery, Donana Sete-Saias, Luiza Três Buracos, Hellena Gallinha,Maria Martins, Mundica, Antonietta, Georgina Chupa-Pau, Maria Mucura (OChicote, 20/02/1914).
Por se acompanharem continuamente de “mulheres de vida fácil”, além do baixo valor do soldo que recebiam, os soldados de baixa patente eram considerados péssimos partidos para
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as mocinhas casadoiras da cidade, e o envolvimento ou mesmo a aproximação deste com as
“filhas-família” causava desconforto, como mostra os comentários dos articulistas do O Pau de
22/09/1912:
Aconselhamos a um militar que persegue diariamente a umas collegiaes,desde da Visconde de Porto Alegre à Avenida Joaquim Nabuco, que deixe asmeninas em paz.
A certa mocinha da Joaquim Nabuco que gosta de namorar sem calcular asconseqüências, aconselhamos-a a ser mais cautelosa porque soldado não dá “água a pinto”.
Ritmos Urbanos
No que diz respeito às manifestações culturais, uma das referências mais características
está relacionada às danças de salão. A variedade de ritmos importados da Europa e dos Estados
Unidos, populares tanto em Belém como em Manaus, revela o cosmopolitismo da cidade:
Belem and Manaus vibrated to waltzes, polkas, shottisches and the lasteddance craze of North American provenance in the early twentth century: the cake-walk (ORUM, 1998).
Todavia, um dos ritmos mais populares era brasileiro: o “maxixe”. Originado das rodas
de músicos de choro e bandas de coretos do Rio de Janeiro desde a década de 1860, o “maxixe”
como gênero musical surgiu a partir de 1880, sendo caracterizado por uma maneira
exageradamente requebrada de dançar, a exemplo do que já se observava na polca-tango. O
maxixe foi o primeiro tipo de dança urbana aparecida no Brasil; surgiu no Rio de Janeiro, por
volta de 1875, nos forrós da Cidade Nova e nos cabarés da Lapa. Considerada pelos estudiosos
de cultura brasileira como a primeira dança genuinamente brasileira17, do povo, considerada
imoral aos bons costumes da época, tendo sido muito perseguida pela Igreja, pela polícia, pela
igreja, pelos educadores e chefes de família.
17 Uma razão para o Maxixe ser tão condenado era a proximidade física entre os pares que proporcionavadurante a dança, cuja conotação sexual na linguagem dos corpos fazia o escândalo dos moralistas: "Os paresenlaçam-se pelas pernas e braços, apoiam-se pela testa num quanto possível gracioso movimento de marrar e,assim unidos, dão a um tempo três passos para frente e três para trás, com lentidão. Súbito, circunvolunteiam evão avançando e retrocedendo, como a quererem possuir-se" (João Chagas,1897, apud TINHORÃO, 2005).
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Na última década do século XIX, o Maxixe já era um ritmo conhecido em todo o país, e
seu apelo à alegria e ao movimento o fez amado pelas classes populares, razão pela qual foi
bastante perseguido, até a metade da primeira década do século XX, tendo decaído alguns anos
depois18. A exemplo do lundu (do qual se originou, além da habanera e da polca), tinha uma
forma "polida" e outra "selvagem", o que lhe valeu o título de escandalosa e excomungada. Para
que pudessem ser tocadas em casa de família, as partituras de maxixe traziam o impróprio nome
de "tango brasileiro".
Afeita aos modismos importados, Manaus não tardou a adotar o novo ritmo nas noitadas
boêmias do Centro da Cidade. Apesar de sua popularização, o maxixe na maioria das vezes
serviu apenas como mais uma marca de diferenciação entre as mulheres, e as amantes da dança
continuamente expostas nas páginas dos jornais como escandalosas.
Concurso de maxixe: Publicamos nestas columnas um pequeno concurso paraalcançar a maior votação das rameiras que dancem melhor o maxixe. Aquella quemerecer o maior número de votos lhe daremos... um doce.(O mesmo o Bem-tevi) 27-28 de março de 1910
Este jornal vai abrir um concurso para a rameira que melhor dançar maxixe, podendo os votos serem remetidos para as petisqueiras “leão do Norte e Coelhos”;
As conhecidas esbrogues Joaquina Cegueta, vulgo Moura Torta, andavamdançando maxixe no pobre Diabo, ao som de música. Oh, bruxas, tenhamvergonha! (O Chicote, 20/02/1904).
Falando sobre a ilha de Desterro (atual Florianópolis), no mesmo período, a historiadora
Joana Maria Pedro (1988) analisa a atuação do aparato do poder público na tentativa de controle
das mulheres a partir do viés ideológico que passa a permear a política populacional nas cidades
depois da instauração da República. O controle da circulação das mulheres pobres urbanas
passou a ser uma das principais preocupações auto-impostas pelo poder público, que contou
para isto com seus instrumentos mais repressivos como a polícia, cujos poderes, no início do
18 A entrada do maxixe nos salões elegantes das principais capitais brasileiras foi terminantemente proibida até1914, quando Nair de Tefé, a mais ousada primeira dama do país, esposa do então presidente Hermes da
Fonseca, escolheu um maxixe, o "Gaúcho" ou "Corta-jaca", de Chiquinha Gonzaga, para ser executado aoviolão, nos jardins do Palácio do Catete, o que causou grande polêmica em todo o país. O maxixe atingiria seu ponto culminante entre 1916 e 1919. A partir daí, iria decair, não antes de alcançar notoriedade internacionalatravés das chamadas “revistas”, números de danças apresentados pelas companhias de variedade que viajavamde cidade em cidade, das quais muitas passaram por Manaus.
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período republicano, foram ampliados e fortalecidos em função da ainda problemática definição
de atribuições entre executivo e judiciário. Esta característica passou a ter uma atuação mais
efetiva.
A fraca acumulação que se processou impediu, não só a concretização dasaspirações da elite quanto à “limpeza da cidade”, como dificultou a formação deuma esfera pública e a delimitação da esfera íntima familiar em relação à esfera privada. Com a proclamação da República, a elite local, amparada pelo poder público, tentará implementar medidas mais efetivas de reformas urbanas (PEDRO,1988, p. 153).
Joana Pedro toca então num ponto nevrálgico das distinções feitas pelo poder público e
pela imprensa em relação às mulheres: a questão da classe. Embora não seja nosso objetivo
trabalhar aqui este complexo conceito, nem tomá-lo de modo simplista, é suficiente afirmar que
a classe estava no fundamento das ações da perseguição levada a termo contra as mulheres que
tentavam sobreviver no espaço urbano sem se enquadrar nos modelos apregoados pela elite.
De modo geral, a geração de uma cultura urbana em Manaus, mesmo tendo nuanças
diversificadas para cada uma das camadas que compunham o quadro social local, expressava o
desenvolvimento de uma cidade que sofria influencias da chamada cultura do demimonde,
primeira expressão do que nos dias atuais chamamos de world culture. A difusão de elementos
desta cultura comum em vários lugares constituiu-se num dos fenômenos mais importantes da
ocidentalidade. No caso de Manaus, o que chama a atenção é que este processo se
“ocidentalização”, que Norbert Elias descreve como a busca pela apropriação de distintivos
denominados “sinais de civilização”, como a etiqueta social, os rituais de sentar à mesa, etc.,
insere-se na realidade da sociedade manauara a partir do afastamento do que é considerado
próprio à cultura local, ou seja, a herança indígena e cabocla, associada por esta ordem de
representações ao primitivismo e ao atraso.
Em Manaus, as características culturais locais como o consumo de produtos regionais ou
mesmo hábitos apropriados à região como o uso de redes ou palha como cobertura para as casas
é associado ao índio, e, portanto condenado a desaparecer. A cultura urbana popular, por outro
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lado, resgata a autonomia da população das camadas baixas ao promover momentos de festas e
expressões condenadas por este imaginário de civilidade. Não podemos dizer que a cultura
urbana adotou sempre características das populações tradicionais, pois como pudemos perceber,
ela congregava elementos cosmopolitas nas danças e eventos, mas certamente ela contribuía
para a afirmação de identidades urbanas divergentes das socialmente aceitas.
CAPÍTULO 3
A MEDICINA DA MULHER, O SEXO DOENTE E O SEXO PERVERTIDO
Em 24 de julho de 1897, o periódico O Rio Negro publicava, em meio às últimas
notícias sobre o desenrolar da guerra de Canudos, artigos de defesa do recém-instaurado
republicanismo e os avisos sobre uma festa no Hotel Cassina, denúncia sobre a grande
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quantidade de doentes acometidos de varíola pelas ruas. A nascente capital nos últimos anos do
século XIX começava a se deparar com os primeiros problemas de uma capital que
concentraria, nos anos posteriores, a maioria da população da província e a varíola seria durante
todo o período da borracha uma constante preocupação das autoridades que nunca conseguiram
estabelecer ações eficazes de vigilância sanitária nos portos, a fim de deter os surtos
epidêmicos. Outros problemas graves eram as febres, o sarampo, a tuberculose e o tétano,
relacionado ao uso de montaria que implicava no contato com as fezes de animais.
Nos anos subseqüentes, embora já contando com a circulação de grandes montantes de
capital, Manaus tardará em acesso aos últimos avanços nas ciências médicas, e as práticas
terapêuticas eram exercidas por profissionais populares. Eram comuns nos jornais os reclame de
vendas das chamadas “bichas hamburguesas”, como as anunciadas pelo Barbeiro Alfredo
Simões, na edição de 30 de julho de 1897 do mesmo O Rio Negro. A utilização de bichas
hamburguesas, ou sanguessugas19, segundo Couceiro (2004), remetia aos preceitos da medicina
francesa e as doutrinas antiflogísticas de Broussais, os quais indicavam como terapêutica das
doenças o tratamento e a aplicação de purgativos e sangrias, tidos como a solução para a
terapêutica de todos os males. Sendo os médicos profissionais raros nas paragens amazonenses,
parteiras, boticários e barbeiros empregavam a sangria como um dos métodos mais eficientes de
cura dos doentes, sendo este somente mais um dos inúmeros elementos “estranhos” aos quais se
recorria na difícil arte de curar.
Apesar da precariedade da medicina local, era com entusiasmo que na edição do dia 16
de janeiro de 1898 o mesmo jornal que noticiava a venda de bichas publicava nota sobre uma
“operação no olho” na Santa Casa de Misericórdia da cearense Maria de Jesus, de quarenta
anos. Não possuímos maiores dados sobre do que exatamente se tratava a operação, e sendo um
19 “Estas bichas, nas farmácias, se achavam conservadas em frascos cheios de água e para aplicá-las comosugadoras de sangue eram elas retiradas do seu depósito três horas antes, sendo colocadas na parte do corpoindicada pelo médico, depois desta estar convenientemente lavada e bem friccionada com um pano de linho até a
vermelhidão da pele, quando se umedecia com um pouco de água açucarada, para despertar o apetite dassugadoras de sangue. As bichas aí ficavam aferradas até se tornarem bem cheias do sangue do paciente, quandose despregavam por si mesmas e eram recolocadas no seu reservatório de emergência à espera de outra vítima”.(FREITAS, Octávio. Medicina e costumes do Recife antigo apud COUCEIRO, 2004 )
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procedimento tão delicado, causa-nos surpresa que dadas as condições da medicina local na
época o jornal assinale o êxito da intervenção cirúrgica. Os problemas de saúde da população
eram, porém bem maiores para serem solucionados com cirurgias. O paludismo também
conhecido como “febre palustre” ou malária, juntamente com a Leishmaniose, constituía-se no
grande flagelo dentre as doenças tropicais, ameaçando a estabilidade da já escassa mão-de-obra
dos seringais e, portanto, a própria sustentabilidade regional.
Uma das iniciativas de produzir um conhecimento local sobre a questão sanitária de
Manaus é o livro Geografia e Topografia médica de Manáos, escrito em 1915 pelo médico
Alfredo da Matta (1916), notável sanitarista local, onde elabora um detalhado levantamento do
que considerava as principais moléstias em Manaus e seus locais de concentração. O livro
destacava algumas doenças tropicais que na época assolavam a cidade preocupando os
dirigentes, onde mais uma vez figuram a malária (paludismo), a leishmaniose e a tuberculose.
No âmbito da questão sanitária o poder público mobiliza-se no sentido de tomar
providências que minimizassem o problema sanitário que se agravava e inviabilizava obras
como a famigerada estrada de ferro Madeira-Mamoré, no atual estado de Rondônia. Este foi o
motivo para a convocação do renomado médico Oswaldo Cruz, cujas ações de saneamento
haviam revertido o quadro calamitoso que se encontrava o Rio de Janeiro atingido pela febre
amarela. Em relatório sanitário de 1913 sobre a região Cruz (1972) reafirmava pela observação
o que a população local conhecia no cotidiano:
O duende do Amazonas é o impaludismo. Caminha-lhe ao lado, prestandomão forte, matando pouco, mas inutilizando enormemente, a leishmaniose, nas suasdifferentes manifestações: a ferida brava dos seringueiros.
Cruz, que estudara no Instituto Pasteur em Paris, representava uma geração de médicos
que, baseados em pressupostos científicos, defendia a transmissão vetorial de doenças como a
malária e a febre amarela, contrariando as crenças seculares que atribuíam a incidência deste
tipo de agravo aos miasmas que seriam emanações pútritas oriundas das águas paradas. Esta
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crença, era tão forte que em 1900 o governador Silvério Nery suspende todas as obras públicas
tentando reduzir a epidemia de malária atribuída às escavações do solo que, junto com a água,
seria responsável pelas emanações. Esta posição era sustentada pelos próprios médicos como
atesta o Relatório da Diretoria de Higiene Pública que apontava como causas dos surtos as
escavações e terraplanagens que, no tempo da vazante, deixava “a matéria orgânica sob a ação
do sol, fermentando-a, pois sol e água são dois veículos principais e mais comuns à propagação
do paludismo”. Somente por volta de 1906 é que a transmissão da malária por vetores será
reconhecida nos serviços públicos de saúde de Manaus, pela ação do médico Márcio Nery
(LOUREIRO, 2004).
O cuidado com o corpo feminino
Na Amazônia, a incidência de moléstias tropicais tornava a figura do médico algo de
grande importância social, já que em tese, pela sua intervenção seria viabilizado o projeto de
civilização em meio a tantos perigos sanitários representados pelos insetos e pelas doenças
estranhas que transmitiam. A missão civilizadora dos médicos repercutiu na formulação de um
projeto de sociedade que incluía não apenas a organização das instituições, como também a
produção de indivíduos saudáveis, a fim de obter uma nação verdadeiramente sã.
A valorização das prédicas médicas logo foi apropriada como sinônimo de progressismo
e modernidade por instituições como a escola, através da extensão das atividades físicas para as
mulheres, o que ocorreu em escolas de Manaus, como relata a nota a seguir:
Por intermédio de algumas jovens e intelligentes alumnas da Escola,influenciadas pelos novos méthodos de hygiene adaptados nas escolas da Suécia,Inglaterra, França e Allemanha como medida mais aceitável nos exercícios phisicos, foram convidadas as suas collegas a pedirem ao digno director da Escola Normal a aprovação de um uniforme [para a prática de educação física] que fossemais econômico. Ficou resolvido um uniforme simples e elegante, sendo blusa branca e saia azul. No primeiro dia deste mês, todas compareceram decentementeuniformizadas, notando-se que todas se achavam sactisfeitas com essa medida (ATribuna, 19/01/1911).
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A militância em prol do projeto de sanidade social, levada a termo pelos médicos, foi a
inspiração de muitos artigos publicados nos jornais e revistas científicas na época sobre temas
como família, casamento e capacidades de aprendizado das mulheres. O esforço para a
constituição de um conhecimento científico sobre as mulheres foi largamente utilizado para
subsidiar a construção de políticas públicas pelos governos. Martins (2004) chama a atenção
para o fato dos médicos constituírem, junto com os bacharéis de direito, a elite pensante do país
na época, constituindo um amplo poder de intervenção nas mais diversas áreas.
O corpo da mulher, até então resguardado da intervenção médica, a partir do início do
século XIX será objeto de intervenção da ciência, tornando-se “a última fronteira” da medicina,
sob a qual esta se debruçava avidamente no interesse de conhecer e intervir na fisiologia
feminina. Para Donzelot (1986, p. 24), as mulheres tinham suas próprias práticas terapêuticas
que era desprezada pela Faculdade e cuja lembrança foi guardada pela tradição sob a
denominação de “remédio de comadre”. O termo comadre trazia, por seu lado, uma série de
conotações negativas, associando estas práticas e seus campos de intervenção – o parto, as
doenças de mulher e das crianças – à esfera doméstica, e portanto aos saberes femininos,
notadamente inseridos na hierarquia dos papéis sexuais num estrato inferiorizado.
Uma das primeiras “vítimas” da cruzada da medicina ao corpo feminino foi o segmento
das “parteiras”, até então senhoras absolutas dos mistérios da reprodução que foram
paulatinamente expulsas dessa função pelos médicos, que se outorgavam novos senhores deste
preciso tipo de conhecimento. Campanhas foram empreendidas com o objetivo de convencer as
mulheres a substituírem o hábito de procurar parteiras pela procura dos hospitais e dos
nascentes especialistas em doenças de mulheres. Obviamente, estas mudanças não foram
rápidas, mas foram eficazes. Primeiramente, a medicina investiu na intervenção sobre dois
pontos pacíficos: a amamentação materna e o vestuário das crianças, no campo denominado de
Puericultura, cuja meta era ensinar às mães as formas “cientificamente” corretas e respaldadas
pela Medicina para tratar das crianças, num flagrante confronto às práticas tradicionalmente
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instituídas para tal. Martins (2004) lembra que estas mudanças repercutiram nas próprias
academias, onde foram introduzidas cátedras e temas específicos da nascente área da
Obstetrícia, que até então nunca havia merecido grande atenção dos velhos mestres, mas que
então passaram a contar com grande interesse, especialmente no que diz respeito à prática, por
parte de alunos e professores e na estruturação dos hospitais para receber as mulheres que
fossem dar a luz – fato que até então, tradicionalmente, acontecia no interior das casas, com a
máxima discrição e sem a participação masculina.
Em Manaus, onde os médicos locais eram importados do Recife ou de outros pontos do
território, percebemos pelos jornais os primeiros de uma série de profissionais que se
propunham a tratar do corpo feminino em situações liminares como as “moléstias de senhoras”
e mesmo o parto, mesmo que adicionassem a essa “especialidade” outras de tipo diverso:
O Dr. Galdino Ramos mudou a sua residência para o Largo São Sebastião, n.8, continua a dar consultas na Pharmácia Galeno, das 9 ás 10 horas da manhã, e naDrogaria Commercial, das 10 às 11. Especialidades: partos, vias urinárias, syphilise moléstias de creanças (A Tribuna, n. 1, 19/01/1911).
Dr. Costa Fernandes - Especialista em Siphilis, melestias de senhoras e decreanças. Consultório na Pharmácia do Povo. Residência: Rua Barroso, n. 50.Telefone n. 9 (O Correio do Norte, n. 01, 13/09/1909).
Dr. Grey - Especialista em febre e outras moléstias tropicaes, moléstias damulher, vias urinarias, syphilis, operações e partos. Consultório: Pharmácia Studart;residência Grande Hotel (O Correio do Norte, n. 01, 13/09/1909).
Os Anúncios dos Doutores Galdino, Costa Fernandes e Carlos Grey foram citados aqui
por uma razão: além de identificá-los como um especialista em partos e sífilis, assinalam
também, no caso do primeiro e do segundo, que se tratavam de médicos que se propunham a
lidar com doenças em crianças, o que demonstra a repercussão das idéias que viam a criança
como um ente social diferenciado do adulto, anunciando mais uma novidade moderna: a
infância.
Donzelot (1986) chama a atenção para um aspecto importante da discussão da
medicalização do corpo feminino relacionado à sua via de instauração, tomando uma categoria
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nascida com a burguesia: a unidade familiar. As crianças passam a ser alvo de profunda
vigilância e a casa da família é adequada para a vigilância dos espaços, os serviçais são
vigiados, pois são vistos como fonte de corrupção física e moral. Os jornais de Manaus
testemunham as novas exigências para contratação de amas de leite, que tinham que comprovar
idoneidade moral para o “serviço” a fim de evitar a contaminação dos bebês por doenças
venéreas ou pela ameaça de ter em casa uma má influência para os filhos.
Ama de leite: Uma mulher séria deseja tomar conta de uma ou mais creanças paraalimentar. Tratar na Grande agência, à Rua Municipal (O Monóculo, n. 2,22/10/1899, grifo meu).
Os jogos infantis passam a ser controlados, as roupas infantis passam a ter a
preocupação em proporcionar a liberdade de movimentos, tendo em vista as preocupações
higienistas. Ao invés de conceber a criança como um adulto em miniatura, a criança é vista
como um ser específico, com necessidades próprias. A mulher burguesa foi, segundo Donzelot,
a grande aliada dos médicos no processo de medicalização da família. Esta aliança se baseava
justamente no cuidado com as crianças.
Por outro lado, a própria mulher transformou-se em objeto privilegiado de análise. Os
efeitos das preocupações médicas e as descobertas científicas em fisiologia e microbiologia
sobre o corpo da mulher foram responsáveis pela introdução de uma cultura de cuidados que
liberou a mulher de alguns dos pesados ônus da opressiva moda do século XVIII como as saias
com longas caldas – que foram consideradas anti-higiênicas por carregarem para dentro de casagermes do chão da rua, ou de ter maior cuidado com o uso espartilho, antigo algoz de nossas
bisavós:
Desvantagem do espartilho: Morreu em Londres dentro de um bond umadama, por causa do espartilho! Era uma moça de 18 anos, que tinha a mania de seapertar demasiado com seu espartilho. Chamava-se Kate Dunett. De noite dormiamesmo espartilhada. Na autopsia que lhe foi feita descobriu-se que o espartilho lheformara uns tumores cancerosos no fígado e de baixo dos braços. Foi um lentosuicídio! Actualmente desenvolve-se na capital inglesa seria campanha contra osespartilhos que martiryzam as damas que têm a pretensão de ter a cintura estreita. Amorte de Kate Dunnet deve abrir os olhos de muita senhora (O Caniço, 16 de maiode 1897).
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Ora! O Dr. Sanarelli recomenda que as pessoas gordas (homens e mulheres)usem de preferência os espartilhos fabricados pela casa América de Montevideo,que, sem prejudicar organismo, dá [sic] elegância e fazem desaparecer a gordura. Omesmo diz que as pessoas magras (homens e mulheres) não devem espartilhar-se,
porquanto os tecidos não podem resistir ao arrochos de um espartilhos desde quenão os amarre uma grossa camada de carne ou banha - de um jornal do sul (O Rio Negro, 07/12/1897).
Os males do amor
Uma das questões vicerais do processo de exaltação da ciência médica e dos discursos
sobre corpo, gênero e sexualidade, foi a “ameaça venérea” que se tornou alvo de preocupação
dos gestores públicos das áreas urbanas: a sífilis. Foi a partir da segunda metade do século XIX
que na maioria dos países ocidentais a sífilis e as outras doenças venéreas emergiram como uma
ameaça sanitária, individual e coletiva percebida pelos governos e profissionais de saúde. Os
registros das manifestações de sífilis, todavia, são bem anteriores, embora houvesse uma
generalização de várias moléstias sexualmente transmissíveis que eram reunidas sob essa
denominação. Acima das controvérsias sobre onde teria se originado20, é a partir do século XIX
que a sífilis vira objeto de atenção das Academias de medicina por constituir-se numa espécie
de concretização dos principais temores modernos: uma moléstia aparentemente provocada
pelos excessos sexuais que comprometia a saúde das futuras gerações.
Apesar de ser notória a relação entre uma maior visibilidade da doença e as várias
possibilidades de maior liberalidade sexual no meio urbano, para Carrara (1996, p. 17), a
importância dada à doença não poderia ser explicada apenas por um recrudescimento
epidêmico, muito menos pelo agravamento de suas manifestações, visto que os médicos de
modo geral concordavam que com o passar do tempo a doença perdera seu caráter agudo e
grande parte dos sintomas aparentes; para o autor, o crescente interesse pela moléstia deve ser
tomado do ponto de vista
20 Os estudiosos se dividiam entre os que consideravam a sífilis como proveniente do Novo Mundo e os que aconsideravam uma antiga moléstia européia.
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...das profundas transformações do saber e da técnica médica que, ao longodaquele século, alteraram radicalmente os contornos nosológico da doença,“revelando” uma gravidade até então insuspeitada (CARRARA, op. cit. p. 17).
O autor refere-se ao maior grau de detalhamento científico que possibilitou a
determinação da sífilis e seu “isolamento”, visto que durante muito tempo o termo havia sido
relacionado a uma série de moléstias venéreas de etiologia diversa. Em contrapartida, vários
termos eram relacionados ao mal (gálico, lues venérea, avaria, gonorréia, blenorragia e cancro
mole) pelos médicos denunciavam o início da destituição da conotação de “pecado da carne”
que a doença até então carregava, ganhando um tratamento científico.
A categorização da sífilis para qualquer tipo de mal venéreo, todavia, permanecia sendo
feita entre as camadas populares, como na Amazônia, onde a sífilis não era, na opinião de
cientistas como Oswaldo Cruz, um problema realmente relevante no Amazonas, que
considerava que a maioria das queixas de agravos atribuídas à doença tinha origem em quadros
de leishmaniose ou outros problemas de pele.
O diagnostico da syphilis cabe erradamente à maioria das affecções cutaneasna Amazonia. Especialmente a leishmaniose, nos seus variados aspectos clinicos,fornece ás estatisticas, ou melhor, ás apreciações leigas e profissionaes sobre aepidemiologia da Amazonia, o grande contingente de erros que malsinam aquellaregião como um dos maiores fócos do morbus gallictus. E, praticamente, observam-se a consequencia daquella interpretação defeituosa no objectivo que levam todosos doentes, portadores de affecções cutaneas, aos clinicos, de quem solicitamsempre a applicação do 606 (...) Existe, é certo, na Amazonia, especialmente noscentros populosos, um coeficiente epidemico bastante elevado pela syphilis. Nãoexcede, porém, ahi, a intensidade dessa molestia ao observado por toda a parte. Nasregiões do interior, ao que observámos, somos mesmo levados a considerar asyphilis relativamente rara.
A leitura dos trabalhos de Alfredo da Matta também não explicita grande preocupação
com o problema. Em Geografia e Topografia Médica de Manaus Alfredo da Matta classifica as
doenças do sexo superficialmente, numa grande categoria: as moléstias cutâneas, que incluíam
“a ferida brava, a esponja e o gállico” (p. 66). Parece que somente na década de 1920 os
poderes públicos, seguindo as prerrogativas já adotadas em outros pontos do país, começam a
entrar na campanha sistemática contra as doenças venéreas21
.21 Embora o termo “doenças venéreas” carregue uma grande carga pejorativa, optamos por adotá-la para ser fiel àforma como as doenças sexualmente transmissíveis eram categorizadas no início período analisado.
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Fruto da ousadia que a imprensa começava a apresentar, os jornais de Manaus
começavam a referir-se às doenças venéreas como forma de controle da sexualidade de alguns
indivíduos utilizando termos obscuros e irônicos para denominar os males do amor. Embora os
jornais direcionassem a maior parte de seu conteúdo a um público masculino, o aparecimento
de seções de folhetim, de moda e de etiqueta social prenunciava a aproximação dos periódicos,
antes exclusivos dos homens, do público feminino. O uso de gírias e expressões nebulosas
certamente tinham como objetivo resguardar os olhos “castos” das senhoras que começavam a
interessar-se pela leitura de notícias, além de negar a estas um conhecimento maior sobre tal
tipo de moléstia, como mostra o emprego de uma estranha analogia eqüina para designar a
sífilis, presente em várias referências pesquisadas por nós, das quais transcrevemos a seguinte:
Vão ser recolhidas à Santa Casa, devido a grande cavalaria em que estãomontadas, as seguintes mesquilotas: Maria Encrenca, Não-Vou-Nisso, Jovita, JoanaPeruana, Burra Cega, Esther Duró, Luiza Peito de Aço, Bucho Quebrado, Leonor,Hellena Gallinha, Vallerita e Matta Homem (O Chicote, 20/02/1914).
Salvarsán: Remédio para o Corpo ou Signo das Sexualidades Periféricas?
No século XIX, a sífilis era um dos maiores problemas de saúde nas grandes cidades do
mundo. Os avanços na descoberta de novos medicamentos eram lentos e proliferavam as
soluções caseiras, permeadas pelas superstições culturais locais. Gilberto Freyre, em Casa
Grande & Senzala, lembra que o sexo com uma negrinha virgem era considerado um dos
melhores remédios para sífilis na época do Brasil Colônia.
Nos finais do século XIX (1879), Albert Neisser descobriu o agente responsável pela
blenorragia e batizou-o com o nome de gonococo. Em 1905, Schaudin e Hoffman descobriram
o Treponema pallidum, o agente da sífilis. A descoberta da penicilina por Fleming em 1922 e,
posteriormente, a sua utilização contra o Treponema pallidum e o gonococo permitiram obter a
primeira grande vitória sobre estas doenças venéreas, de tal modo que muitos acreditaram em
sua erradicação.
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Uma das grandes conquistas nesse campo foi o desenvolvimento do medicamento
injetável “salvarsán” ou 606. Para Obregón (2002), o salvarsán foi a mais importante descoberta
na luta contra a sífilis na época. Basicamente, o medicamento constituía-se de um composto de
arsênico, criado pelo médico Paul Ehrlich em 1909, a partir da descoberta que o arsenobenzol
proporcionava o desaparecimento dos sintomas da doença. A droga foi batizada de salvarsán
por motivos que não são difíceis de perceber se pensarmos nas marcas físicas provocadas pela
sífilis – marcas que o novo medicamento em determinadas ocasiões evitava e também por ter
sido o experimento número 606 com substâncias arsenicais.
Oswaldo Cruz, em seu relatório sobre as condições de vida e saúde no Valle do
Amazonas, referindo-se mais especificamente à província do Amazonas, chama a atenção para
a grande utilização das injeções de 606, mesmo para tratamento de agravos não relacionados à
sífilis, o que tornava o remédio inútil, levando a crer que o salvarsán era, junto com os espelhos,
tecidos, tabaco e demais quinquilharias, um produto valioso de comercialização dos regatões:
Também este prodigioso medicamento de Ehrlich muito depressa teveintroducção na Amazonia, mesmo nas regiões do interior, onde a sua applicaçãoestá muito diffundida, infelizmente sem corresponder ás indicações precizas, o queconstitue uma razão lastimavel do desprestigio do remédio (O Rio Negro, n. 05,30/07/1987).
O uso do medicamento, contudo, era popular em Manaus. São várias as referências
feitas nos jornais ao mesmo, principalmente relacionando-o às mulheres marginalizadas:
Relação nominal das marafonas que di-a-dia vão emprestando à notrida eesperançosa rapaziada desta capital e que precisam o quanto antes de tomaremalgumas injeções do específico 606: Maria Emilia, Maria Preta, Maria Rosa, MariaJary, Maria Não-Vou-Nisso, A Jardineira Banguella, A sem-cura Vicência, APortuguesa Benedicta, A pilota Ignez, Idalina Buchuda, A Bucho-de-Sapo AdéliaPolaca, Anna Colibry, Enedina Bahiana, Josepha Galinha, Maria Thereza, MariaAugusta, Raymunda Duquesa, Maroca Pirarara, Luiza Três-Buracos, MarcolinaVelhota, Felícia Pé-de-ouro, Sinhá Gallinha, Maria Bucho-Quebrado, Chica Piolho(O Parafuso, número único, 07/07/1912).
O uso de medicamentos contra as doenças venéreas não era exclusividade das mulheres
da rua, mas certamente a vigilância que se exercia sobre elas as expunha muito maisabertamente aos olhares públicos. Os jornais eram a expressão destes olhares condenatórios, e o
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uso dos medicamentos como o 606 acabava funcionando como mais um código de distinção
entre as mulheres. O Chicote de 07 de novembro de 1915 denunciava que uma certa “Maria
Reboque” por esta ter sido vista na Pharmacia Humanitária comprando mercúrio “para espantar
uns bichinhos que tem, semeados pelo corpo”, nas palavras do articulista.
Mesmo o recolhimento de meretrizes em casa para tratamento das moléstias venéreas,
por vezes tão degradantes fisicamente quanto a própria doença, não passava impune ante os
olhos vigilantes da imprensa. O 606, como já foi dito, era um composto a base de arsênico, o
que não deixa dúvidas sobre o caráter dos efeitos adversos da medicação.
Acha-se acamada a muitos dias a megera Julia, da Rua 10 de Julho, devidoaos efeitos rápidos que sentiu depois que começou a fazer uso das injeções “606”(O Raio X, n. 1, 21/11/1912).
Sexualidades desviantes
Devora um jornal da terra dos barés, leitor amigo. Da primeira à últimacolumna: escândalos! Escândalos! Uma barbaridade; homens que deflorammeninas; almas cândidas e puras, como diria um poeta romântico; estupros
horrorosos e terríveis; facadas, descomposturas, responsabilidades de imprensa [...]E eis o progresso! E eis a civilização. Mundo, onde irás parar? Moralidade, onde teescondes?
A objetivação social dos chamados “crimes sexuais” constitui-se num marcador
importante da modernidade, uma vez que sintetiza vários dos dilemas sociais das delimitações
entre a lei e o costume. A violência do estupro e rapto está registrada na história em várias
ocasiões. O estupro de mulheres de povos inimigos tem sido uma das atividades de guerra mais
cruéis e repugnantes das sociedades humanas, mas é somente a partir do século XVIII que
começa a esboçar-se nas legislações formais a preocupação em nomear, diferenciar e descrever
as diversas modalidades de violência sexual.
Georges Vigarello (1998), a partir do caso da França, analisa que as transformações
estão relacionadas a deslocamentos conceituais ocorridos depois da Revolução Francesa,
primeiramente pela instituição do conceito de individuo na Declaração dos Direitos Humanos
que serviu como preâmbulo à Constituição Francesa de 1789, onde aparece o sentido de posse
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de si mesmo na frase “Todo homem é o único proprietário de sua pessoa e essa propriedade é
inabalável”. O impacto desta premissa na vida sexual estaria na promoção da vítima como
sujeito, concentrando o dano da violência sobre sua pessoa, e não mais sobre seus tutores – pais
e maridos, como até então ocorria. A mudança da terminologia adotada para intercurso sexual
forçado sem o consentimento da vítima nos países de língua latina é emblemática deste
deslocamento: cada vez mais se abandona na lei os eufemismos como “atentado ao pudor” ou
“rapto” para adotar em prol de “estupro” ou “violação”; ocorre também uma definição mais
precisa da tipologia dos crimes sexuais.
Um outro deslocamento relaciona-se a processos mais abrangentes de substituição da
ciência pela religião na explicação dos fatos, a que já nos referimos anteriormente, que
desvincula crimes contra a Igreja e a moral religiosa - como heresia, devassidão, libertinagem,
concubinato e sodomia - dos crimes onde a violência é especificada com base nos pressupostos
modernos.
O terceiro e mais importante deslocamento, para nossos objetivos de análise, tem
relação com a transformação do estupro em ameaça social. A categoria “crime” passa a fazer
referência ao que atinge a sociedade e põe em risco as regras de convivência e segurança. O
estupro é incluído nesta categoria já no século XVIII. Segundo Vigarello,
Esse crime não pertence mais ao mundo suspeito da obscenidade ou do vício,não provoca mais a ordem divina, não é mais condenado pela depravação que ele poderia mostrar. Pertence ao universo que o código de 1791 chama pela primeiravez de “crimes e atentados contra pessoas”, distinguindo-os dos “crimes e delitos
contra propriedades”, duas únicas categorias reconhecidas para qualificar os“crimes contra particulares” (op. cit., p. 98)
O estupro e sua definição social podem ser colocados como símbolo das preocupações
classificatórias que passam a promover a intersecção de vários campos de poder e saber que,
como vimos, estão relacionados: o pedagógico, médico e jurídico. O desenvolvimento da
disciplina psiquiátrica, a definição da infância como estágio diferenciado da vida adulta e a
preocupação com a “civilidade” e os bons costumes no meio urbano, em consonância com a
sensibilidade de fim-de-século, têm uma importância fundamental na explicação da violência
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sexual na época, no refinamento da terminologia e na complexidade das análises. Para explicar
a sexualidade desviante não era mais suficiente analisar o fato e o presente do criminoso, era
preciso buscar no passado, na infância e nos traumas a complexidade do fato sexual e de suas
patologias. De todo o arsenal teórico desenvolvido na época, o de maior peso é do da
psiquiatria, que nascerá a partir da definição de seu objeto: a sexualidade doentia e ameaçadora.
Na opinião de Mazzieiro (1998):
... na análise desses atos, a Criminologia fez uma ligação direta com a Psiquiatria nainterpretação de uma sexualidade considerada anormal, ligando loucura esexualidade. Contrapondo-o ao sexo "sadio", os juristas e psiquiatras procuraramcontrolar e reprimir o que consideravam sexo "doente". Criminoso ou louco, o
fundamental era que esses "psicopatas" fossem reprimidos. Dentre esses "doentes",estavam desde o indivíduo que matava por ciúmes até o rapaz que beijava umamenor, passando pelo homossexual e pelo estuprador (op. cit., p. 18)
No Brasil, o Código Penal de 1890 estabelecia como categorias criminais puníveis,
relacionadas a sexualidade, o defloramento, o estupro, o rapto, o atentado ao pudor, o
homossexualismo22 e o adultério.
Vigarello esclarece que até o início do século XVIII não havia muita ênfase nos crimes
de estupro a menores. O termo pedofilia, por exemplo, só surgiu em 1880, e sofreu várias
transformações em seu sentido até chegar a noção que conhecemos hoje, e parece ter sua
criação relacionada ao “furor” nomenclatório que varreu a literatura criminalística dentro dos
moldes da categorização de outras mazelas sexuais como a necrofilia, o sadismo, o tribadismo,
a ninfomania e a histeria. Esta situação muda quando a criança passa a ser percebida como
alguém diferente do adulto, e o conceito de vulnerabilidade começa a ficar implícito na situação
do menor.
A criança, em especial, é menos percebida como algum equivalente“normal da vida adulta. O ato que a atinge sexualmente se torna específico, nãosubstituível, revelando uma ruptura, um deslocamento no horizonte: uma violênciaque só o irremediável desvio, se não uma anormalidade, poderiam explicar. (op.cit., p. 172).
22 Note-se que o termo “sodomia”, que remetia à ação da Santa Inquisição e ao controle moral da Igreja, ésubstituído no corpo da lei pelo termo “Homossexualismo”, que não por acaso faz alusão à antiguidade grega,cuja paixão pelo conhecimento o Ocidente do século XVIII e XIX tenta reviver.
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Para explicar o rompimento das fronteiras da consciência e civilidade que o ato sexual
com crianças representava, a ciência recorria à explicações de fundo patológico. As noções de
normal e patológico têm um papel definidor fundamental nos debates instaurados nesse sentido,
e a elaboração das explicações sociológicas também, uma vez que a promiscuidade das
moradias das classes populares – cortiços, porões, estâncias - é também responsabilizada pela
degradação moral que os jornais detectavam: o alcoolismo, a prostituição e até os terríveis casos
de incesto.
Defloramentos
Até a primeira década do século XX observa-se que não há um uso rigoroso das várias
categorias de “violência sexual” nos jornais de Manaus. A terminologia classificatória - que
diferencia estupro de atentado ao pudor e sedução de menores, embora tenha sido elaborada em
1895 na França, não estava diluída no senso comum, mas repercute na formulação de um
pensamento que vê a necessidade de proteção à condição de menor, refletida no horror com que
os casos de estupro e sedução de menores são relatados pelos articulistas dos periódicos.
O defloramento estava previsto como crime no Código Penal Brasileiro em seu artigo
267. Era descrito como a cópula com mulher virgem, com o rompimento do hímem (tido como
substrato material da “honra” feminina), sendo a mulher menor. Havia uma tipologização do
defloramento de acordo com o meio empregado para consegui-lo: sedução, engano ou fraude.
Mesmo com a legislação apontando para a punição dos atos de defloramento de
menores, a noção de menoridade ainda é bem diversa da que está vigente em nossos dias, visto
que os casos de defloramento de menores raramente tinham desfecho dramático, especialmente
para o autor do ato. Uma vez que a pressão popular e o poder policial se fizessem sentir, um
casamento poderia resolver tranqüilamente a questão.
Defloramentos
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A menor de nome Raymunda da Costa Caldas, que há poucos dias foideflorada pelo corneta-mor do 36.º de Infantaria, de cujo processo se acha incubidoo sub-prefeito Manoel Antonio José Barboza, em breve realizará o seu casamento.O offensor já obteve a devida permissão para este ato, do respectivo commandante.
O Sr. M. Barboza sabemos que está tratando também d’um facto idêntico,
cujo autor dizem ser Antonio Pereira, de nacionalidade portuguesa. A victima éuma menina sua patrícia, chamada Maria dos Anjos. Residem todos dois no bairrodos Tocos. (O Rio Negro, n. 127 de 03/12/1897).
Uma reparação: Antonio Joaquim Pereira que tinha deflorado Maria dosAnjos já reparou o crime, casando-se com sua victima.(O Rio Negro, n. 132 de 08/12/1897)
A compensação representada pelo casamento tinha como objetivo restaurar à vítima a
possibilidade da inserção social da única forma possível para as mulheres segundo o
pensamento normativo androcêntrico: como esposa. O principal pré-requisito para alçar essa
condição de parceira socialmente legítima era através da virgindade, considerada o mais
valorizado predicado feminino. Uma vez despida de tal valor, o casamento com seu sedutor
poderia “recuperar” a honra perdida. A reparação, contudo, ficava mais complicada no caso de
parceiros provenientes de classes sociais diferentes, como nos casos que descreveremos a
seguir.
Alberto, caixeiro português, um dos tantos imigrantes lusos que viviam no Amazonas,
seduz a filha de um comerciante local, vindo a casar para “reparar o mal”, embora tal união não
fosse bem vista pela família da moça, que considerava que Alberto não preenchia os requisitos
sociais para desposar sua filha, a quem destinavam um casamento mais “promissor”,
provavelmente com algum parceiro do mesmo nível social, e foi motivo para muitas notas e
chistes nos jornais locais devido ao desenrolar do fato, que contou até com a intervenção da
polícia.
Não era de alabastro a cor da bella,Pequena saudida,Porem era melhor, era dos jambos;e, dando inspiração à dithirambosFaria d’um poeta alma perdida.
Não era d’Alemanha nem francesaA nossa pequenotaDa terra dos bares era um produtoUm sazonado fruto...De despertar desejos d’um janota.
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Alberto, um caixeiro amaneiradoDa pátria portugueza,Galgou pomar sagrado; e, surpreendidoCom o fruto inda na mão já bem comido,Embargos chupou logo à ligeireza.
Depois já na polícia era bonitoAlberto confessar O crime do pomar da casa alheia;Velhaco... teve logo grande idéia:E disse que queria se cazar.
E cazão-se! Depois da acção da lei,O fruto é cousa sua.Que coma a te o caroço, não é crime,É bom e a ninguém isso deprimeSe é comido em casa e não na rua.(Aipe)
Incesto
A partir do processo pelo qual a modernidade estabelece a família burguesa como
padrão, o sentido de moral é refinado, e o comportamento passa a ser normatizado com base
numa série de prédicas médicas e morais. Não é de se admirar que a prática do incesto cause
tanta aversão e tenha sido alvo de uma grande campanha doutrinadora que condenava o ato
como crime e seu autor. A imprensa teve um papel preponderante na disseminação da
condenação pública do incesto, de um senso de constrangimento em relação a ele.
O incesto atinge a moral burguesa exatamente em seu cerne, a família. Mas o aspecto
mais notável do processo, sem dúvida, é o papel de relatora do crime que a imprensa assume. O
detalhamento das narrativas, as descrições minuciosas que captam a atenção do público leitor da
grande quantidade de jornais23. A curiosidade pública pelo crime e pelos criminosos era
alimentada pelos periódicos que não poupavam detalhes sobre o ato.
Triste notícia: Incesto – Ao delegado de Itá (São Paulo) foi denunciado queBenedicto Gonçalvez da Cruz havia desonrado suas próprias filhas. A autoridade, procedendo a averiguação soube que, com effeito, esse indivíduo havia há doisannos cometido incesto contra a sua filha mais velha de nome Anna; há cerca de 4meses fizera o mesmo com outra de nome Francisca; finalmente, há apenas 15 dias,havia desonrado a mais nova, que contava somente 11 anos de idade. O monstro,sendo preso, negou a princípio os seus crimes, acanhando-se por confessar com o
23
Segundo Renato Ortiz (1991), o século XIX é responsável pela popularização do hábito da leitura na Europa, para a qual corrobora as inovações tecnológicas em tipografia, a ampliação de um sistema educacional público ea diminuição do número de analfabetos nas cidades. Em Manaus não possuímos dados detalhados sobre omontante da população leitora, mas a julgar pela quantidade de jornais que circulavam entre 1890-1915, supõe-se que era razoável.
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maior cynismo. As victimas declararam que não tinham levado ao conhecimento da justiça aquelles crimes, porque seo pai as ameaçara de morte, se não guardassesegredo... Horres co refern!(O Caniço, n. 1, 16/05/1897)
Os escândalosUm caso repugnante: A nossa cidade, infelizmente, atravessa uma phase lamentável deescândalos. Dia a dia, a imprensa narra em períodos cheios de indignação factos repugnantes edignos do maior castigo. Felizmente, o honrado chefe de segurança Pública amazonense é umcumpridor fiel e rigoroso da lei. Ao número elevado de defloramentos que a policia temdescoberto n’estes dois últimos meses vem ajustar-se um repugnante e nojento. Por ora nãodevemos e nem podemos adiantar minuciosidades. Sabemos que o sub-prefeito do 3.ºDistricto, o activo major Barboza, está tratando de investigar seriamente um caso dedefloramento praticado por um irmão na pessoa de sua própria irmã! Horror! (O Rio Negro, n.132 de 08/12/1897)
Um caso singular
O periódico O Rio Negro de 12 de novembro de 1897 trazia a denúncia de um caso de
sedução. Poderia ser um dos tantos que assombraram o povo de Manaus naquele ano de 1897,
não fosse uma particularidade: o autor, além de ser tio da vítima, era um sacerdote. O Padre
Clementino José Contente (que havia sido político durante a monarquia) foi acusado de deflorar
sua sobrinha de 17 anos, descrita como “solteira, paraense, bem-educada, pertencente a uma das
mais ilustres famílias do Pará, menina bonita e gentil”. O caso tinha vários outros aspectos, que
o tornavam ainda mais interessante como, por exemplo, o fato da menina ser também aluna de
Contente, e de ter sido trazida para Manaus por este em 4 de maio a pretexto de estudar. - o
defloramento teria ocorrido em janeiro do mesmo ano.
No dia 29 de setembro a garota deu à luz a um menino, filho do relacionamento
proibido, que foi dado pelo padre a uma vizinha de nome Lucrecia, na tentativa de ocultar ocaso. A criança faleceu pouco depois, e um grupo de vizinhas encarregou-se de levar o fato à
imprensa, na tentativa de forçar Contente a assumir. Tanta pressão não era à toa: as
circunstâncias agravantes tornavam o caso problemático até do ponto de vista jurídico:
Tanto no defloramento quanto no estupro, a existência de laços de sangue e parentesto, relações de dependência ou facilidade para a realização do atentado ou aimpossibilidade de casar-se eram consideradas circunstâncias agravantes. Entre os
parentes, estavam englobados pai, irmão e cunhado; nas relações de dependência,tutor, curador, encarregado de guarda e educação ou que tiver alguma autoridadesobre a vítima. Na facilidade para o ato, situavam-se o criado e o doméstico. Na
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impossibilidade de casar, identificavam-se religiosos e homens já casados(MAZZIEIRO, 1998).
O episódio causou grande mobilização da imprensa e perplexidade na população, por reunir todos os elementos dos conflitos vividos na ordem social moderna: a crítica a
intocabilidade da igreja e a exposição da sexualidade, como demonstra um articulador no artigo
“Jornal d’um triste”, não por acaso um trocadilho com o sobrenome do Padre Contente:
[...] o caso sensacional do tio padre, do homem da batina preta. Este casodo pregador das idéias de Christo nunca há de sahir do meu pobre cérebro dehomem d’outrora. Quem diria, hein, que seu Contente?... Alegrou-se deveras, por Deus! (O Rio Negro, n. 130 de 06 de dezembro de 1897)
A pressão social foi devastadora. O Padre abandonou a batina e na edição de 27/11/1897
foi publicada na íntegra a certidão de casamento de Contente com Anna de Siqueira Mendes, de
17 anos, ocorrido em 15/11/1897, demonstrando que o controle social exercido pela imprensa
da época sobrepujava os direitos individuais e a privacidade. Certamente esta perseguição
motivou Clementino José Mendes Contente a solicitar autorização do juiz para suprimir o
“Contente” de seu nome, na tentativa de livrar-se dos trocadilhos infames dos quais passara a
ser alvo.
“Theatro livre”(Chronica a esmo)
I QuadroEpocha atualidade
O padre vio
Gostou.LeccionouElle quisElla quis- Pum!Resultado: foi-se a batinaO padre cazou.
II Quadro
Um brutoViu a creançaEndoideceu
- Pum!Estupro.
III quadro
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Chamava-se Alberto.Moço.Caixeiro.Dengoso.Adocicado.
Viu a moçoila.Apaixonou-se.Quizeram.- Pum!
O Alberto gostou.Viu outra pequena.Calculou:É comigo!Apromptou o tiro.- Pum!
IV quadro(cae o pano)ConclusãoIsto vae mal...(Paff!)
Estupros
A repercussão dada aos casos de estupros, defloramentos que ocuparam as páginas dos
periódicos de Manaus parecia indicar a constante luta pela instituição de valores morais que a
cultura burguesa venerava. Na edição 22/11/1897 o jornalista cita dois casos, que viriam a se
somar aos muitos já computados naquele ano de 1897 e aos que ainda viriam, a medida que a
cidade crescia, o de Manoel Antonio Gomes, acusado de estuprar uma menina de 06 anos. um
outro caso, cujo nome do acusado não é citado, somente sua profissão: comerciante do
Mercado. O poder público, contudo, parecia não conseguir dar conta de averiguar tantos casos,
especialmente se levarmos em conta as dificuldades de transporte entre as localidades
adjacentes á Manaus, podendo a investigação de um caso demorar dias para ser iniciada,
dependendo de onde ocorresse:
O Dr. Chefe de segurança já remeteu ao juiz competente o inquérito policialcom relação ao estupro praticado na menor Arcellia Rabello, no lugar denominadoFlor das Vistas, perto desta cidade, sendo autor do crime o individuo ManoelAntonio Gomes (O Rio Negro, 27/11/1897).
Perplexos, e até a perplexidade era uma exigência da civilidade, os honrados cidadãos
de Manaus não mais recorriam à religião para solucionar os problemas: preferiam apelar para a
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crença nas leis, e acreditavam que o aperfeiçoamento destas poderia combater as ameaças e
construir um futuro melhor.
Certamente estamos em uma epocha de regeneração, e a lei deve ser um dosmais salutares regeneradores da sociedade. Cumpra-se a Lei e a sociedade não teráocasião de ver reproduzir os fatos iguaes (O Rio Negro, n. 121 de 27/11/1897).
A crença na lei e nas instituições, marca do progressismo que se pretendia para Manaus,
parecia não encontrar a contrapartida adequada do poder público, incapaz de dar conta de tantos
problemas. Por outro lado, tais preocupações prenunciavam a tentativa de adequação da
sociedade aos parâmetros modernos, o que significa que tanto os problemas quanto as soluções
estavam apoiadas numa nova lógica social que tratava as questões sexuais com a obsessão
classificatória que pendia entre os termos normal e patológico, legal e ilegal.
CONCLUSÃO
A Manaus do final do século XIX e início do século XX é a síntese do embate
imaginário entre natureza e cultura que repercute na subjetividade de um mundo concebido
como natural, onde a civilização parece travar uma luta eterna para impor-se. Refletir sobre as
relações sociais entre homens e mulheres num contexto como o de Manaus, é abordar de um
prisma diferenciado as transformações ritmadas pela modernidade. Enquanto na Europa
presumia-se uma crise estrutural e moral, a pequena Vila da Barra transmutava-se em metrópole
das selvas, inventada totalmente dentro dos parâmetros de uma era de promessa de resolução
dos problemas da humanidade através da técnica.
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Manaus nasce em meio à euforia do luxo de alguns e da miséria de muitos,
conjugando a nostalgia de um passado que não viveu – personificada no estilo ora neoclássico
de seus edifícios – ao desejo de permanência de um futuro que mal sabia que não teria. Neste
espaço urbano, as relações moldam-se em função de um mimetismo social, onde o modelo
importado era adotado em detrimento a tudo que fosse autêntico. Junto com os livros que
chegavam encaixotados nos navios, destinados a polir com o lustre da erudição os filhos da
riqueza, chegavam as idéias modernas do amor como condição para o casamento, que
caracterizou o ideal romântico, concretizado nos poemas de amor, diariamente publicados nos
jornais, signo da civilização.
Os interesses comerciais, obviamente, ainda determinavam enlaces matrimoniais com
vistas a troca de interesses materiais entre as famílias, e o amor ainda era considerado um
evento fora do casamento, mas os poetas são importantes para a consolidação deste imaginário
sobre o amor e a idealização da mulher. A musa é a encarnação perfeita do “eterno feminino”,
mas a heroína romântica necessita também do verniz que só a instrução poderia fornecer: e os
atributos de cultura e inteligência começam a entrar no rol das características desejáveis às
“filhas-família”. Fora desse mundo idealizado, mulheres cuja identidade social não se
enquadrava nos padrões valorizados, exerciam suas sexualidades. Suas posturas “subversivas”,
fossem na prática da prostituição, no adultério ou na união consensual, transformavam-nas em
alvo preferencial das campanhas moralizantes empreendidas primeiramente pela igreja, e mais
tarde pela ciência sanitária, respaldada em Manaus pelo ideal da elite em implantar um projeto
civilizatório na cidade, o que pressupunha a normatização e controle dos indivíduos
considerados indesejáveis, entre eles, as mulheres pobres que tinham na rua seu espaço de
alteridade.
É interessante observar que embora Igreja e Ciência constituíssem-se em agências
sociais rivais, defendendo projetos diferentes, ambos partiam de subsídios conceituais diferentes
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– respectivamente, a moral religiosa, no caso da Igreja, e a higiene, no caso da Ciência, para
alcançar o mesmo fim: o controle do corpo feminino.
Uma das questões desta pesquisa foi analisar o papel da sexualidade na definição
destas identidades. Obviamente, como procuramos mostrar, estas identidades não estavam
exclusivamente relacionadas à sexualidade em si, mas também se relacionavam aos diferentes
tipos de hierarquização: econômica, social e de gênero, parte dos mecanismos de poder que
interferiam na vida dos indivíduos na cidade. Neste trabalho identifico basicamente três eixos
de tensão do poder como produtor de sentidos em Manaus da Belle Époque, com base nas pistas
do pensamento foucaultiano:
O primeiro diz respeito ao próprio gênero, ou seja, às hierarquizações sociais
estabelecidas entre homens e mulheres, notadamente construídas pelos primeiros. Os discursos
engendrados neste processo têm algumas conseqüências diretas e mais visíveis: a primeira seria
a adoção de um duplo padrão moral – um normatizador, específico para as mulheres e para o
controle de seus corpos, e outro para o homem, privilegiando sua autonomia e condição de
comando. Este aspecto da dupla moral é sustentado pelas instituições como a Igreja, ciência e o
Estado de várias formas, como veremos adiante.
Um segundo eixo diz respeito à forma como a sexualidade é “produzida” em Manaus
no período analisado. Os sujeitos institucionais, personificados na Igreja, no Estado e nos meios
científicos como a universidade, tenta esboçar o que seria ideal para o desenvolvimento de uma
civilização “saudável” conforme os critérios de intervenção adotados. As conclusões de sentido
normatizador são divulgadas através da imprensa da época, pelos jornais editados na cidade,
que veiculavam as considerações de uma classe de homens letrados, profundamente
concatenados com o compromisso de levar à população as formas adequadas de relacionamento
e sexualidade, o que fica claro nas notícias de difamação de mulheres “rebeldes”, por exemplo.
O controle social era um instrumento importante para levar adiante a moralização social, uma
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vez que funcionava como punição de atitudes consideradas indesejáveis e valorização do que
era desejável, como os valores da maternidade, do refinamento e da virgindade.
O terceiro eixo é referente à situação social do objeto da pesquisa – as representações
sobre as mulheres, considerando que estas não estavam categorizadas numa única tipologia,
mas refletiam a complexidade das relações sociais e hierarquizações responsáveis pela clivagem
dos indivíduos na cidade. Embora se trate sempre de mulheres urbanas, perceberemos ao longo
da dissertação que para cada categoria de mulheres poderemos identificar uma série de
mecanismos de poder diferenciados. Dentro da rede de forças que começa a ser engendrada no
alvorecer do século XVIII, é perceptível, já no século XIX, mais direitos nos contextos de poder
e saber.
No Brasil, tais idéias relacionam-se de forma intensa com a constituição da sociedade
burguesa durante as primeiras décadas da República. As preocupações dos pensadores locais
concentravam-se, como em outros lugares, na constituição de uma nação “saudável”, garantida
através de uma população com as mesmas características. Desta forma, o Estado tem um espaço
de atuação importante para a consolidação das novas ideologias do sanitarismo: o controle do
corpo da mulher, que como vimos, possuiu várias formas.
Ao longo do trabalho evitamos adotar o “discurso da vitimização” da mulher, não por
negarmos as tentativas de subordinação as quais sempre esteve exposta, mas por considerar que
tal abordagem não daria conta da complexidade da cena social na qual se desenvolviam a
sexualidade feminina, e cremos que obtivemos êxito neste esforço, mostrando que ao lado do
enquadramento, caminhava a resistência aos modelos que se pretendiam hegemônicos.
A normatização das condutas e padrões de comportamento elaborados para os corpos
esbarra continua e desesperadamente na tentativa ideológica do poder público em subjugar a
diversidade sócio-cultural proporcionada pela presença indígena no meio urbano. Deste modo,
sustenta-se o primeiro dos pontos de tensão entre a racionalidade civilizatória e as formas
culturais locais, que de certo modo dará a tônica das ações das políticas públicas e das
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formações discursivas engendradas no seio da sociedade no esforço de transformação do “porto
de lenha” na “Paris dos trópicos”, que começa, invariavelmente, pelo controle do corpo da
mulher. A sexualidade, ou das várias problemáticas a ela relacionada, é um aspecto-chave para
o entendimento desta questão.
Com a entrada da modernidade na região, a sexualidade ganha atenção do Estado, da
Igreja e da Ciência em suas mais diversas dimensões: a natalidade, o controle da natalidade, a
saúde da mulher como sustentáculo para a “saúde social”, o controle da pobreza pela
perspectiva malthusiana, a preparação de quadros de trabalhadores de corpo forte e moral
saudável, todas convergindo de forma direta ou indireta para a crítica do papel da mulher e de
sua forma de inserção na sociedade. As transformações refletem-se na emergência de outras
ideologias que lutam contra a religião pelo direito de serem ouvidas como intérpretes da
verdade.
Mas também não podemos restringir a discussão ao caráter repressivo do poder, embora
mesmo a ênfase na repressão por si só constitua-se numa forma de “positividade”, como diria
Foucault. A sexualidade também é formada de sentimentos, de desejos, de sensualidade. O sexo
fora dos padrões estabelecidos, tendo como objetivo a satisfação pessoal, personifica-se nas
mães solteiras, nas mulheres de “vida livre”, nos beijos indecorosos, nos encontros fortuitos,
nos bilhetes e cartas de amor. Infelizmente, neste trabalho não tínhamos como dar conta de
todos estes aspectos, mas não podemos deixar de dizer que observamos com satisfação que os
resultados desta pesquisa apontam para o sentido de autonomia das mulheres locais maior que
entre mulheres de outras regiões do país na mesma época. Tais resultados convergem com os da
pesquisa de Heloísa Lara C. da Costa (2000), que acredita que as culturas indígenas,
combinadas com outros fatores, como o ethos protestante de estrangeiros que aportavam na
cidade, proporcionaram às mulheres conquistas importantes como a criação de postos de
trabalho assalariados no mercado local e o acesso à educação superior logo na primeira turma
de egressos da Universidade Livre de Manáos.
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A sexualidade, portanto, analisada em várias de suas dimensões, constitui-se num
desafio; para superar o caráter “subversivo” que o falar sobre o sexo inevitavelmente possui,
como diria Foucault, é importante trabalhá-la como parte fundamental da identidade do
indivíduo moderno, denunciando estilos de vida, condição social e ideologias. No caso da
mulher, como vimos, a sexualidade funciona como um marcador social importante, não apenas
na Manaus do final do século XIX quanto na Manaus de hoje.
Se antes a ciência androcêntrica e a moral eram utilizadas como argumento para a
crença na “inferioridade” e fragilidade do corpo feminino, estipulando sua adequação ou não
aos parâmetros de comportamentos socialmente aceitos, hoje as exigências de adequação são de
outra ordem: estão relacionadas ao culto à perfeição física – expressas no alto índice de
cirurgias plásticas entre mulheres, implantes de silicone, lipoaspiração - tudo em nome do corpo
ideal. A ciência foi substituída pelo mercado como pregador social, mas afirmar que esta foi a
única transformação processada seria uma injustiça.
A mulher conquista dia-a-dia novos postos de trabalho, mesmo tendo que se virar com a
dupla jornada de trabalho – no emprego e em casa. Outras exigências geradas neste processo
incluem a produtividade, a dinamicidade. As mulheres ainda esbarram em antigos preconceitos,
ainda é a que cozinha, a que cuida dos filhos, a que mais sofre violência sexual e física, mas
certamente foi o ser social que mais sofreu transformações em sua identidade social ao longo
dos dois últimos séculos. A sexualidade não ficou imune a este processo, sendo por outro lado,
uma das bases para a definição da individualidade e da intimidade.
Esperamos que este trabalho, a partir de um diálogo com o passado, tenha servido para
refletir sobre estes temas tão pertinentes e contribuir com o conhecimento da realidade da
mulher amazônica e, quem sabe suscitar novas questões, buscando um entendimento mais
profundo de nossa própria forma de ver e viver a sexualidade e a condição feminina.
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