Dissertação Laura

Embed Size (px)

Citation preview

Universidade de Braslia Faculdade de Educao

LAURA CRISTINA PEIXOTO CHAVES

EDUCAO INFANTIL EM CONTEXTO: A RELAO COMPLEMENTAR FAMLIA/INSTITUIO COMO FATOR DE QUALIDADE

Braslia 2004

LAURA CRISTINA PEIXOTO CHAVES

EDUCAO INFANTIL EM CONTEXTO: A RELAO COMPLEMENTAR FAMLIA/INSTITUIO COMO FATOR DE QUALIDADE

Dissertao apresentada Comisso Examinadora da Faculdade de Educao da Universidade de Braslia como exigncia para obteno de ttulo de Mestre em Educao. rea de confluncia: Magistrio - Formao e Trabalho Pedaggico. Orientadora: Prof. Dr. Maria de Fatima Guerra de Sousa

Braslia 2004

LAURA CRISTINA PEIXOTO CHAVES

EDUCAO INFANTIL EM CONTEXTO: A RELAO COMPLEMENTAR FAMLIA/INSTITUIO COMO FATOR DE QUALIDADE

COMISSO EXAMINADORA

Prof. Dr. Maria de Fatima Guerra de Sousa Orientadora Universidade de Braslia

Prof. Dr. Eliana Maria Bahia Bhering Universidade do Vale do Itaja

Prof Dr Maria Carmen Villela Rosa Tacca Universidade de Braslia

Braslia, 30 de abril de 2004.

Aos meus pais, Carlos (in memorian) e Maria Augusta, que compreenderam o valor da famlia e nela apostaram para educar os sete filhos. Ao meu marido, Benedito e aos meus filhos, Felipe e Lucas, pelos desafios que enfrentamos juntos.

AGRADECIMENTOS

Ao se concluir um trabalho como este, surge, inevitavelmente, a necessidade de se recordar do percorrido e de deixar registrados agradecimentos queles com quem tivemos relevantes interaes. Meus agradecimentos minha orientadora, Prof Dr Maria de Fatima Guerra de Sousa, pelo potencial intelectual e cientfico, e por ter-me acolhido e ajudado com precisas e incisivas pontuaes. Prof Eliana Bhering, pelo entusiasmo que tem pelo objeto de estudo deste trabalho e pela permanente disponibilidade de interagir, mesmo que a distncia. Prof Maria Carmem Tacca, pelas valiosas contribuies dadas a esta dissertao e pelas muitas formas de interao. Prof Stella Maris Bortoni-Ricardo, pelo apoio afetivo e pela qualidade de suas contribuies no decorrer do curso e na concretizao deste estudo. Cludia Basso, minha amiga, colega de curso e companheira inseparvel, por nunca ter permitido que eu me sentisse s nesse percurso. Acreditou em mim, incentivou-me e participou de todas as etapas deste trabalho, contagiando-me com sua incontestvel alegria de viver. s famlias, professoras e gestoras do Jardim, pelo caloroso acolhimento, pela disponibilidade e confiana. Aos meus irmos Carlos Augusto, Jorge Luis, Jos Csar, Paulo Fernando, Luis Henrique e Marco Aurlio, com carinho e admirao. Helena, minha tia, madrinha e professora-alfabetizadora, com quem, alm de aprender a ler e a escrever, descobri que a interao afetiva potencializa o desenvolvimento e a aprendizagem. Aos meus sogros, Jos Thophilo e Taninha Chaves, pela torcida e constante incentivo. s colegas e grandes amigas Rosi, Andra e Maysa um agradecimento muito particular e grande amizade e admirao. Ao Professor Francisco Mximo Ferreira Netto, pela reviso criteriosa e profcuas sugestes.

CHAVES, Laura Cristina Peixoto. Educao Infantil em contexto: a relao complementar famlia/instituio como fator de qualidade. 2004. 138p. Dissertao (Mestrado em Educao). Universidade de Braslia/ Faculdade de Educao, Braslia/DF.

RESUMO

A famlia e as instituies de educao infantil, tais como as concebemos hoje, so construes histricas e culturais. Nas ltimas dcadas, ocorreram mudanas sociais significativas, assim como um avano das pesquisas na rea da educao infantil. Isso vem provocando alteraes nas duas instituies e na dinmica da relao entre as mesmas. Diante disso, a relao entre as famlias e as instituies de educao infantil est relacionada s mudanas sociais em curso e tambm ao impacto que a interconexo entre os dois ambientes provoca no desenvolvimento da criana. Assim, entendendo ser consenso a relevncia dessa relao, a pesquisa desenvolvida buscou identificar se a relao entre as famlias e um Jardim de Infncia Pblico do Distrito Federal indica a complementaridade necessria para uma educao infantil de qualidade. Para tanto, usou-se como referencial tericometodolgico a abordagem ecolgica do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner. Por meio de uma entrevista estruturada, identificou-se: a) as concepes e ideias que as famlias, as professoras e gestoras tm sobre a criana, a infncia, a educao infantil de qualidade e a relao entre a famlia e a instituio de educao infantil; b) os motivos de aproximao, a natureza das informaes trocadas, as estratgias de comunicao, os facilitadores e dificultadores da relao entre as famlias e o Jardim. Os resultados demonstraram que a relao entre as famlias e o Jardim de Infncia uma relao de proximidade, respeito mtuo e envolvimento afetivo. Entretanto, apesar de apresentar condies positivas, a relao percebida no pode ser definida como complementar, nos termos que envolve essa relao: parceria, envolvimento recproco, co-responsabilidade e comunicao bidirecional na conduo de um projeto formativo integrado a favor das crianas, das famlias e dos profissionais. Assim, conclui-se que a qualidade das relaes entre as famlias e as instituies de educao infantil constitui-se, ao mesmo tempo, em fator imprescindvel de qualidade na educao infantil, tanto quanto um desafio sociedade e aos sistemas de ensino pblico e privado, nos diferentes mbitos de atuao.

Palavras-chave: educao famlia/instituio

infantil,

qualidade,

relao

complementar

entre

CHAVES, Laura Cristina Peixoto. Childrens education in context: The complementary family/institution relationship as a quality factor. 2004. 138p. Dissertation (Master Degree in Education). Education College/ University of Brasilia, Brasilia/DF.

ABSTRACT

Family and childrens education institutions, as they are conceived nowadays, are historical and cultural constructions. In the last decades, significant social changes have happened, as well as progress in research in the childrens educational area. That has been provoking alterations in the two institutions and in the relationship dynamics between them both. In this sense, the relationship between families and institutions of childrens education is related to the social changes in course and also to the impact that the interconnection between the two environments provokes in the child's development. Therefore, understanding the consensus relevance of such relationship, this study tried to identify the relationship between a Public Federal District Kindergarten and related families, indicating the necessary complementation for a childs quality education. Thus, as theoretical-methodological reference, Bronfenbrenners ecological approach of human development was used By means of a structured interview, the following aspects were identified: a) the conceptions and ideas that families, teachers and managers have upon the child, childhood, childrens quality education and the relationship between family and the childs educational institution; b) the reasons for this approach, the nature of the exchanged information, communication strategies, the facilitators and draw backs within the relationship between families and the Kindergarten. The results demonstrated that the relationship between families and the Kindergarten involves proximity, mutual respect and affectionate involvement. However, despite the positive conditions presented, the relationship noticed cannot be defined as complementary, in those terms which involve such relationship: partnership, reciprocal involvement, co-responsibility and bi-directional communication when leading a formative integrated project, favoring the children, families and professionals. Therefore, the conclusion achieved was that the relationship between families and childrens educational institutions represents both, an indispensable factor of childrens quality education, as well as a challenge to society, and to the public and private educational systems, in their different performance scopes.

Key Words: relationship.

childrens

education,

quality,

complementary

family-institution

SUMRIOINTRODUO .................................................................................................................... 01 1. A RELAO ENTRE A FAMLIA E A EDUCAO INFANTIL: UM FATOR DE QUALIDADE ................................................................................................................... 1.1 Educao Infantil: a demanda e a oferta ................................................................. 1.2 Educao Infantil: a questo da qualidade .............................................................. 1.3 Qualidade e envolvimento das Famlias e Comunidades: aspectos legais ............ 1.4 Envolvimento dos Pais, Famlias e Comunidades: viso internacional .................. 2. EDUCAO INFANTIL: CONTEXTO DA REALIDADE BRASILEIRA ......................... 2.1 Educao Infantil legitimada e institucionalizada ................................................... 2.2 Mundo Infantil ......................................................................................................... 2.3 Escola para a Infncia ............................................................................................ 2.4 Instituies de Educao Infantil ............................................................................ 3. EDUCAO INFANTIL: CONTEXTO RELACIONAL ................................................... 3.1 Sentimento de Famlia ............................................................................................ 3.2 Famlia Brasileira .................................................................................................... 3.3 Famlia, Educao Infantil e Sociedade ................................................................. 3.4 Lar e Instituies de Educao Infantil: ambientes de desenvolvimento humano ... 3.5 A relao entre as famlias e a instituio de educao infantil: um mesossistema de desenvolvimento.................................................................................................. 3.6 A relao complementar entre as famlias e a instituio de educao infantil: um desafio ..................................................................................................................... 4. A RELAO ENTRE AS FAMLIAS E O JARDIM: CAMINHOS DA INVESTIGAO... 4.1 Delineamento da pesquisa ...................................................................................... 4.2 Caso Objeto de Estudo ........................................................................................... 4.2.1 Critrios de Escolha ...................................................................................... 4.2.2 Descrio do Jardim .................................................................................... 4.3 Sujeitos da Pesquisa .............................................................................................. 4.4 Coleta de Dados...................................................................................................... 4.5 Instrumento de Pesquisa ........................................................................................ 4.6 Anlise dos Dados .................................................................................................. 4.7 Resultados: anlise e interpretao ........................................................................

06 06 07 12 15 19 19 22 27 28 31 31 32 34 36 40 44 51 51 52 52 53 55 55 56 57 58

CONCLUSO E RECOMENDAES ............................................................................... 119 REFERNCIAS.................................................................................................................... 123 APNDICE

Lista de QuadrosQuadro 1 Quadro 2 Quadro 3 Quadro 4 Quadro 5 Quadro 6 Quadro 7 Quadro 8 Quadro 9 Quadro 10 Quadro 11 Quadro 12 Quadro 13 Quadro 14 Quadro 15 Quadro 16 Quadro 17 Quadro 18 Quadro 19 Quadro 20 Quadro 21 Benefcios do Envolvimento dos Pais ......................................................... Contedo das Entrevistas ........................................................................... Famlias: formao ..................................................................................... Famlias: ocupao principal ...................................................................... Professoras: tempo de docncia ................................................................ Professoras: formao ............................................................................... Gestoras: Identificao .............................................................................. Famlias, Professoras e Gestoras: Ideias e concepes de criana .......... Famlias, Professoras e Gestoras: Ideias e concepes de infncia ......... 49 56 61 61 63 63 63 65 67

Famlias, Professoras e Gestoras: Ideias e concepes de educao infantil............................................................................................................ 68 Famlias, Professoras e Gestoras: Jardim de Infncia de Qualidade ......... 75

Famlias, Professoras e Gestoras: Como deve ser a relao entre famlia e Jardim ....................................................................................................... 78 Famlias, Professoras e Gestoras: Opinio acerca da relao complementar .............................................................................................. 82 Famlias: Informaes que julga necessrio e importante saber sobre o Jardim de Infncia ........................................................................................ 87 Professoras e Gestoras: Informaes que julgam necessrias e importante saber sobre as famlias ............................................................. 90 Famlias, Professoras e Gestoras: Fatores facilitadores da relao .......... Famlias, Professoras e Gestoras: Fatores dificultadores da relao ........ 99 102

Professoras e Gestoras: o que poderiam fazer para melhorar a relao com as famlias ............................................................................................ 106 Professoras: percepo quanto diferenciao da criana cuja famlia envolve-se mais ........................................................................................... 110 Famlias, Professoras e Gestoras: O que no pode deixar de existir na relao ......................................................................................................... 112 Famlias, Professoras e Gestoras: O que caracteriza qualidade ................ 113

Lista de TabelasTabela 1 Tabela 2 Tabela 3 Tabela 4 Tabela 5 Tabela 6 Tabela 7 Tabela 8 Tabela 9 Tabela 10 Tabela 11 Tabela 12 Tabela 13 Famlias: grau de parentesco ........................................................................ 60 Famlias: idade .............................................................................................. Professoras: idade ........................................................................................ Famlias: Razes para a escolha do Jardim ................................................. Famlias, Professoras e Gestoras: O que fazem para obter as informaes Famlias: Motivos que procuram o Jardim .................................................... Professoras e Gestoras: Motivos que procuram as famlias ........................ Famlias: motivos que o Jardim procuram as famlias ................................. Professoras e Gestoras: motivos que as famlias procuram o Jardim ......... Famlias, Professoras e Gestoras: Estratgias de Comunicao ............... Famlias: o que poderiam fazer para melhorar a relao com o Jardim ..... Famlias: o que poderia ser feito pelo Jardim para melhorar a relao? .... 61 62 71 92 94 94 95 96 98 105 108

Professoras e Gestoras: o que as famlias poderiam fazer para melhorar a relao com o Jardim ..................................................................................... 108

Lista de GrficosGrfico 1 Grfico 2 Grfico 3 Grfico 4 Grfico 5 Procedncia das famlias ............................................................................... 58 Arranjo familiar ............................................................................................... 59 Pessoa que se relaciona com o Jardim ......................................................... 59 Natureza do envolvimento ............................................................................. 60 Assuntos das Correspondncias ................................................................... 116

INTRODUO

A inquietao que gerou o problema

Tudo o que fizemos e construmos no est separado da nossa vida. Assim, esta dissertao fruto das minhas experincias, dos meus questionamentos, das minhas relaes pessoais e profissionais. Fruto da minha trajetria de vida. poca do Curso Normal (Ensino Mdio), havia uma professora que, ao final de cada trabalho, fala ou reflexo que fazamos, no deixava de fazer uma pergunta; pergunta da qual todos fugamos: Mais alguma coisa.... O que mais? Na verdade, no me lembro do nome da professora, nem da disciplina. Recordo-me do quanto ela insistia em dizer que em educao h sempre algo mais. Algo que preciso buscar. Que no est apenas nas aparncias ou nas aes. Eu no sei se compreendia bem o que ela queria provocar. O fato que a ideia no me abandonou e, com frequncia, pergunto-me: E ento Laura, o que mais? Na minha trajetria profissional, poucas vezes repeti as vivncias. Acostumeime a enfrentar sempre novas e inesperadas experincias, o que talvez justifique a presena daquela frase, sempre me alertando: Investigue mais! O tempo me trouxe muitas respostas e tambm muitas perguntas. O que mais?... O que mais? A convivncia com a pergunta tem sido positiva. Ela tem provocado um clima de inquietao, fazendo-me refletir sobre as minhas prticas e tambm sobre as tantas abordagens tericas nas quais tenho pautado minhas aes. um processo de construo e reconstruo, que me faz sentir confortavelmente incomodada. Nas muitas experincias, sempre me envolvi com projetos que buscassem implementar ou fortalecer relaes. Busquei sempre trabalhar com a realidade dos meus alunos e de suas famlias. Algumas deram certo, outras no. Os saberes relacionais no fizeram parte da minha formao e tampouco eram tratados como assuntos relevantes nas escolas por onde passei. Mas, e aquela pergunta: O que mais? Hoje enxergo uma resposta: em Educao se processam muitas interaes e o entendimento delas fundamental para a compreenso do fenmeno educativo, em especial num momento de 1

mudanas sociais bruscas. Vivemos, hoje, um tempo marcado por mudanas e transformaes sem precedentes em toda a histria da humanidade, as quais, obviamente, influenciam toda a organizao social. H, portanto, uma transformao geral da sociedade que se reflete na cultura, nos valores, nas crenas, na economia e na relao que se estabelece entre as pessoas e destas com as instituies. Um novo contexto social est sendo construdo. Nesse novo contexto, a relao entre as famlias e as instituies educacionais vem sendo apontada como necessria e imprescindvel na conduo de uma educao de qualidade. Assim, dada a relevncia da dinmica da relao entre os diferentes ambientes em que a criana em desenvolvimento vive, este estudo priorizou a investigao da relao complementar entre famlia e uma instituio para a infncia, por entender que esta constitui fator de qualidade na educao infantil. Para a relao acrescentou-se a palavra complementar, com a inteno de atribuir-lhe uma qualidade desejvel, entendendo que a interao entre as famlias e a instituio possa, efetivamente, ser potencializadora do desenvolvimento da criana. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, Lei 9.394/96, a educao infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da criana, complementando a ao da famlia e da comunidade. Alm da legislao, muitos autores da rea a definem como complementar: Rossetti-Ferreira et. alii (2002), Bhering; De Nez (2002), Dalberg, Moss; Pence (2003) e Formosinho (1996) apud Bhering; Siraj-Blatchford (1999). No entanto, no se encontrou na literatura uma discusso terica acerca do termo complementar, e tampouco a sua definio. Diante disso, justifica-se o presente estudo: a possibilidade de uma definio da palavra e uma investigao emprica da possibilidade de implementao de uma relao complementar entre as famlias e a instituio de educao infantil.

2

Por que na Educao Infantil?

A criana de zero a seis anos de idade depende dos adultos para sua formao e desenvolvimento. Isto no significa que as maiores e os jovens de outros nveis de ensino no necessitem de intervenes de qualidade. Sem dvida, os adultos tm uma preponderante, importante e indispensvel atuao na vida da criana pequena, podendo seus efeitos ser prolongados. justamente a natureza da interveno do adulto que poder ser potencializadora ou no da formao de crianas e adultos independentes, autnomos e seguros do seu papel de cidados, no presente e no futuro. Nesse sentido, no mbito da educao infantil, a relao entre a instituio, as famlias e a comunidade merece especial ateno, seja pela dependncia que as crianas tm dos adultos, seja pelo fato de que as relaes entre adultos so na sua forma, modelo para as crianas. Isso no significa esquecer as demais relaes existentes no mbito da instituio.

E, ainda, por que a preocupao com a qualidade na educao infantil?

O reconhecimento legal da educao infantil como etapa inicial da educao bsica Lei Federal n 9.394/96 e o significativo crescimento do nmero de instituies pblicas e privadas para atender crianas de zero a seis anos, ampliando o acesso, constituem, em certo sentido, ponto de partida para uma educao infantil de qualidade, pelo menos em termos de sistema de ensino. Paralelamente conquista da quantidade e do atendimento, outros fatores apontam na perspectiva da qualidade, apresentando-se, ao mesmo tempo, como propsito e como desafio. No mbito da educao infantil, as relaes sociais perpassam necessariamente pelo eixo da qualidade na educao e na vida, significando que uma educao infantil de qualidade considera importantes todos os atores da sua rea de atuao e, principalmente, a qualidade da interao que se estabelece entre eles.

3

Caracterizao do Problema:

Assim, levando-se em conta os atores e as relaes que se do no contexto da educao infantil, a pergunta que se faz : A relao entre as famlias e o Jardim de Infncia indica a complementaridade necessria para a educao infantil de qualidade?

Objetivos:

Considerando-se que a relao entre a instituio de educao infantil e as famlias uma relao particular de cada realidade, do contexto histrico-cultural e das pessoas nela envolvidas, e, entendendo-se que em cada instituio h um modelo de relao que se configura e se torna prprio do sistema social em que se insere, a pesquisa buscou entender como se d a relao entre as famlias e uma instituio infantil do Distrito Federal e se esta pode ser identificada como complementar, segundo a conceituao atribuda mesma, ao longo deste estudo. Isto , buscou-se entender como essa relao pode contribuir para o

desenvolvimento integral da criana e para a qualidade de vida, nos diferentes ambientes em que vive, o que aponta para os seguintes objetivos:

Objetivo Geral: Identificar se a relao entre as famlias e um Jardim de Infncia pblico do Distrito Federal indica a complementaridade necessria para uma educao infantil de qualidade.

Objetivos Especficos: 1) Caracterizar em que se constitui a relao complementar necessria para a educao infantil de qualidade.

4

2) Analisar as ideias e concepes que as famlias, as professoras e as gestoras tm sobre a criana, a infncia, a educao infantil de qualidade e a relao entre as famlias e a instituio. 3) Analisar os motivos de aproximao, a natureza das informaes trocadas, as estratgias de comunicao, os facilitadores e dificultadores da relao entre as famlias e o Jardim.

5

1 A RELAO ENTRE A FAMLIA E A EDUCAO INFANTIL: UM FATOR DE QUALIDADE

1.2 Educao Infantil: a demanda e a oferta

H um movimento relativamente recente na poltica educacional brasileira que destaca a avaliao da educao superior, o que originou o Sistema Nacional de Avaliao da Educao Superior (SINAES), alvo de amplo debate poltico. A proporo que vem atingido tal movimento provoca certa preocupao quanto educao bsica, que poder ficar margem das discusses e aes pblicas. Na atual legislao educacional, Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, LDB 9.394/96, a educao bsica envolve a educao infantil, o ensino fundamental e o ensino mdio. Destes, apenas o ensino fundamental obrigatrio e destina-se a todas as crianas a partir dos 7 anos. Provavelmente, em razo disso, nos ltimos anos pde-se observar a adoo de medidas e aes que privilegiaram o ensino fundamental em relao educao infantil e ao ensino mdio. A supremacia do ensino fundamental sobre os demais nveis da educao bsica foi evidenciada no Censo Demogrfico (2000) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). No ensino fundamental, a cobertura escolar para crianas e adolescentes entre 7 e 14 anos em 2000 chegou a mais de 94%. A realidade da Educao Infantil bem menos animadora, como se pode comprovar pelos dados a seguir, referentes a esse mesmo ano: Dos 13 milhes de crianas com idade entre 0 e 3 anos, pouco mais de 1 milho estavam sendo atendidas no sistema educacional, o que representa 9,4% da populao dessa faixa etria. O ndice melhora a partir dos 4 anos. Dentre 3.351.232 crianas nessa faixa etria, 1.375.141 estavam frequentando uma instituio educacional, ou seja, 41%. Na faixa etria de 5 a 6 anos, a populao identificada foi de 6.739.018, sendo que 4.816.385 estavam frequentando uma instituio educacional. 6

Em termos percentuais chega-se a 71,5%. Desses, 75% esto na prescola e 25% no ensino fundamental. Outro dado importante revelado no Censo (2000) a existncia de uma relao entre a classe social e a frequncia a um estabelecimento de ensino. Quanto maior a renda familiar, maiores as possibilidades de frequncia. A incluso ou no da criana na educao infantil deveria ser opo da famlia e no consequncia da condio social e econmica. Portanto, a equidade est muito distante do desejvel. A desigualdade social continua a ser um marco na sociedade brasileira. Uma das questes que emerge desses dados referidos saber qual o impacto desta precria oferta da educao infantil na sociedade. Em outras palavras: Quais os benefcios ou prejuzos que a oferta ou no da educao infantil pode causar criana, famlia e sociedade? A sociedade brasileira j tem uma grande dvida social com os adultos no alfabetizados. Estaremos gerando uma nova dvida social? Como essa dvida ser paga e, sobretudo, como poderia ser evitada?

1.2 Educao Infantil: a questo da qualidade

No qualquer educao infantil que serve. Por isso, a qualidade defendida neste trabalho no da lgica do mercado, mas da valorizao da vida, priorizando a conquista de uma educao infantil que oferea a todos os mesmos direitos e as mesmas condies de desenvolvimento pessoal e social. A esse respeito, este trabalho se identifica com o pensamento de Kuhlmann Jr. (2001):No desta qualidade total que as propostas aqui defendidas so tributrias. No se pode aceitar que a defesa da qualidade seja desvinculada de nossa trajetria de lutas que tem todos os tropeos inevitveis queles que se propem a seguir por um determinado caminho propostas que tm seguido sempre a perspectiva no do consumo, do mercado, mas do direito de todos a uma vida digna (p. 209).

O que nos faz pensar, ento, que a educao infantil de qualidade seja, de fato, indispensvel? As instituies de educao infantil alm de estarem sendo apontadas como uma das medidas mais efetivas na conciliao de 7

responsabilidades familiares, ocupacionais e sociais, vm colaborando com a promoo da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Dentro dessa perspectiva macrossocial, constitui-se num efetivo apoio ao papel parental e ao desenvolvimento de uma sociedade mais igualitria (HADDAD, 2002). Essa perspectiva est diretamente relacionada a uma nova ordem social, com significativas modificaes na famlia, que necessita, entre outras coisas, do auxlio de instituies na conduo do processo educativo das crianas. Essas outras instituies so definidas por Bronfenbrenner (1996) como ambientes apoiadores.[...] a possibilidade de os pais apresentarem um desempenho efetivo em seus papis na educao dos filhos dentro da famlia depende das exigncias dos papis, estresses e dos apoios oriundos de outros ambientes. [...] as avaliaes dos pais de sua prpria capacidade de funcionar, assim como sua viso dos filhos, esto relacionadas a fatores externos como a flexibilidade dos horrios de trabalho, a adequao dos arranjos de atendimentos para as crianas, as presenas de amigos e vizinhos que possam ajudar em emergncias grandes e pequenas, a qualidade dos servios social e de sade e a segurana do bairro (p. 8).

A instituio de educao infantil pode e deve constituir-se em um importante ambiente apoiador da famlia. Mas, segundo o autor, a capacidade desse ambiente funcionar efetivamente como um contexto de desenvolvimento vai depender da existncia e interconexo social com um outro ambiente de desenvolvimento da criana, no caso, o lar. Isso inclui a participao conjunta, a comunicao e, ainda, a existncia de informaes em cada ambiente a respeito do outro, ou seja, uma relao complementar. Nesse sentido, espera-se que a educao infantil seja de qualidade e, portanto, promotora do desenvolvimento da criana em todos os seus aspectos, atendendendo as suas necessidades e tambm as de suas famlias, o que nos faz questionar: o que significa a qualidade na educao infantil? No existe um significado comum do termo qualidade. Do ponto de vista da educao, abordar qualidade , antes de qualquer coisa, entender que um termo polissmico (Zabalza, 1998; Sacristn, 2000), o que suscita diferentes abordagens e conceituao. Para Demo (1994), a expresso educao de qualidade pode ser tomada como pleonasmo, pois no parece possvel se chegar qualidade sem educao. 8

Mas, ao se pensar em qualidade e educao preciso compreend-las enquanto processos.Nesse sentido, -a qualidade, pelo menos no que se refere s escolas, no tanto um repertrio de traos que se possuem, mas sim algo que vai sendo alcanado. A qualidade algo dinmico (por isso faz-se mais aluso s condies culturais das escolas do que aos seus elementos estruturais), algo que se constri dia-a-dia e de maneira permanente (ZABALZA, 1998, p 32).

Qualidade na educao infantil, portanto, no se reduz a partes isoladas. Ela coletiva e exige que se enfoque o sujeito infantil na totalidade das relaes sociais, culturais e educacionais em que est inserido. Tem sido habitual a afirmao de que qualidade ope-se a quantidade. Demo (1994), ao discutir Educao e Qualidade, com muita propriedade afirma que qualidade no difere de quantidade; so, na verdade, facetas do mesmo todo, embora seja possvel, preferir uma a outra. Quantidade, para qualidade, base de condio (IDEM, p.10). De fato, no se pode pensar em uma educao infantil de qualidade onde apenas uma quantidade limitada de crianas atendida, conforme constatado nos dados do IBGE (2000), anteriormente referidos. Privilegiam-se poucos e excluemse muitos quando apenas uma parcela de crianas assistida. Na realidade brasileira, elevar a quantidade se constitui em uma meta e um indicador de qualidade. A discusso sobre a qualidade no nova na educao. O tema ganhou espao no campo da educao infantil, o que se justifica pelo conhecimento que se tem hoje, dos possveis efeitos de uma escola infantil de qualidade no desenvolvimento da criana. Segundo o Relatrio de Comit de Educao da Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE),[...] o acesso equitativo das crianas a uma educao e cuidado de qualidade poder fortalecer os alicerces da aprendizagem para o resto da vida, alm de oferecer apoio a necessidades educacionais e sociais mais amplas das famlias (UNESCO, 2002, p.13).

9

Sousa (1998, p. 3-4) aponta alguns pontos-chave para se identificar a qualidade num dado programa de educao infantil, cuja clientela a criana de 0 a 6 anos e, indiretamente, suas famlias. So eles: a. buscar examin-lo a partir do olhar ou da experincia da criana; b. ver se existe um ambiente acolhedor, seguro e confivel para todas as crianas, em que cada uma delas se sinta bem, segura, protegida, amada, aceita e feliz; c. interesse explcito pelo bem-estar e segurana da criana, e profundo respeito sua individualidade, associada a um planejamento de aes integradas que possam contribuir, positivamente, para os processos de desenvolvimento e aprendizagem; d. interesse pelo olhar dos pais e das famlias sobre a qualidade e a busca de uma comunicao aberta com os mesmos, para se compartilhar afetos, interesses, deveres e responsabilidades; e. interesse pela viso dos profissionais que atuam na escola sobre a qualidade da educao infantil; f. a evidncia de condies para que a criana efetivamente se desenvolva, aprenda e caminhe na direo da autonomia e do exerccio pleno da cidadania, com alegria e prazer; g. reconhecimento de que o desenvolvimento do programa e as

interferncias devam ser criteriosamente planejadas e permanentemente avaliadas; h. desafio de trabalhar-se na condio de melhores resultados, capazes de significar uma diferena positiva na vida presente e futura da criana. A construo de uma educao infantil de qualidade est atrelada luta pela qualidade de vida, como direito universal para todas as idades e em todos os contextos. Por tudo isso, qualidade um tema sobretudo complexo e que envolve muitas dimenses e distines, por exemplo:[...] em relao instituio escolar podemos estabelecer essa distino: uma escola que atua como contexto de vida enriquecedor para os meninos e as meninas que so assistidos por ela e uma escola (uma forma de

10

enfocar e desenvolver a ao escolar) que no s no melhora as possibilidades de desenvolvimento dos meninos que introduz rudos e alteraes em seu desenvolvimento (ZABALZA, 2002, p. 2 - traduo da autora).

Dentre outras consideraes, o autor afirma que a escola se constitui num ecosistema privilegiado em sua funo de contexto de vida. E nomeia quatro caractersticas do contexto escolar: escola como espao de encontro enriquecedor, como ecosistema regulado, como mbito de desenvolvimento de tarefas de aprendizagem e como porta aberta para o entorno (ZABALZA, 2000, p. 4 - traduo minha). Considerando-se os mltiplos aspectos e benefcios destacados, necessrio e urgente que a qualidade na educao infantil seja amplamente debatida, pesquisada e compreendida. H que se identificar e propor indicadores dessa

qualidade, sensveis diversidade e especificidade de cada contexto. Estar sensvel diversidade e especificidade de cada contexto nos permite afirmar que no existe uma soluo de qualidade pr-fabricada. A qualidade um conquista diria que requer delimitao de parmetros e avaliao sistematizada, no mbito de cada instituio. Ao se afirmar que no qualquer educao infantil que serve criana e que a relao com as famlias , necessariamente, um fator de qualidade, no est se dizendo que a educao infantil deva estar a servio dos pais (famlias) no sentido de atender o que eles compreendem e esperam de cuidado e educao. Essa compreenso varia no conjunto das famlias. Algumas so mais adequadas, considerando-se o desenvolvimento da criana e o prprio papel da instituio infantil, enquanto outras no. Por isso, a qualidade da relao entre as famlias e a instituio implica, necessariamente, instrumentalizar tanto as famlias como os profissionais para melhor compreender o desenvolvimento da criana, suas necessidades e seus interesses. Isto exige envolvimento, parceria e comunicao de mo dupla. Pode-se pensar, por exemplo, numa situao comum na educao infantil: a cobrana das famlias no sentido de que a criana comece a ler cada vez mais cedo. Ao atender tal exigncia, no se pode dizer, a rigor, que a instituio seja ou no de qualidade. Nesse sentido, espera-se que a instituio esteja em melhores condies 11

tcnicas para provocar o debate e o dilogo na defesa dos direitos da criana e na promoo de maior qualidade.

1.3 Qualidade e Envolvimento das Famlias e Comunidades: aspectos legais

Definir metas, critrios e indicadores de qualidade no tarefa fcil, nem mesmo no mbito legal. Os principais documentos da legislao educacional, de maneira geral, referem-se qualidade. No entanto, o termo surge no texto como se o seu conceito estivesse definido e claro para todos e a qualidade da educao resolvida. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional - LDB n 9.394/96 o termo aparece nove vezes. O artigo 4, inciso IX, trata da garantia de padres mnimos de qualidade como um dos princpios do ensino. No artigo 4, inciso IX, o texto diz ser dever do Estado garantir educao escolar pblica mediante padres mnimos de qualidade de ensino. O artigo 7, inciso II refere-se ao ensino como de livre iniciativa privada, devendo atender a algumas condies, entre elas a avaliao de qualidade pelo poder pblico. O artigo 9, inciso VI, determina que a Unio dever assegurar processo nacional de avaliao do rendimento escolar no ensino fundamental, mdio e superior, em colaborao com os sistemas de ensino, objetivando a definio de prioridades e melhoria da qualidade de ensino. Neste, a preocupao maior com os resultados ou rendimentos. Talvez, por isso, a educao infantil tenha sido excluda. Mas a lei parece desconsiderar a importncia de se avaliar tanto o seu processo, como os seus resultados, com vistas melhoria da qualidade. O artigo 47, que trata da educao superior, no pargrafo 4 diz que as instituies de ensino superior oferecero cursos de graduao perodo noturno nos mesmos padres de qualidade mantidas no perodo diurno[...] Os artigos 70, 71, 74 e 75, inseridos no Ttulo VII da Lei, em que so definidos os recursos financeiros e sua aplicao, contemplam: aprimoramento da qualidade, ensino de qualidade e padro mnimo de qualidade. Da mesma forma, no Documento Introdutrio do Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (MEC, 1998), a palavra qualidade aparece pelo 12

menos quatorze vezes no texto, a comear pela Carta do Ministro, ao apresentar o referido documento que pretende apontar metas de qualidade. Nas demais citaes, o termo, entre outras coisas, est relacionado qualidade das experincias, busca da qualidade que envolve questes amplas, s novas funes da educao infantil associadas a padres de qualidade e ao fato de que essa advm das concepes de desenvolvimento. Diz-se, ainda, que as crianas podem dar pistas importantes sobre a qualidade do que esto recebendo. Na leitura do referido Referencial (MEC, 1998) percebe-se uma

superficialidade na abordagem do termo qualidade. A situao no muito diferente num terceiro documento: Subsdios para Credenciamento e Funcionamento das Instituies de Educao Infantil (MEC,1998). Organizado em dois volumes, o mesmo parece dar sinais de avano quanto ao tema. O primeiro volume traz orientaes especficas e sugestes de como elaborar o Projeto de Estabelecimento de Critrios para o Credenciamento e Funcionamento de Instituies de Educao Infantil. Tais critrios devero ser definidos pelos sistemas de ensino que tero a tarefa de autorizar o funcionamento das instituies de educao infantil. No segundo volume, textos de diferentes autores problematizam a questo da qualidade. No conjunto, o documento sugere a necessidade de padres mnimos de qualidade para as instituies de educao infantil. No entanto, alerta para o cuidado no sentido de que os projetos que venham a ser construdos, no mbito dos sistemas de ensino, respeitem a realidade local. visvel o receio quanto ao possvel fortalecimento de uma regulao externa da qualidade, em detrimento de uma qualidade processual. Talvez, por essa razo, o documento avance bastante na discusso de concepes de educao infantil e de temas correlatos, mas se retrai na definio de critrios de qualidade. No que diz respeito relao com a famlia e a comunidade, a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional Lei n 9.394/96, no artigo 12, inciso V, diz que os estabelecimentos de ensino tero a incumbncia de articular-se com as famlias e a comunidade, criando processos de integrao da sociedade com a escola. O artigo 13, inciso VI, define que uma das incumbncias dos docentes colaborar com as atividades de articulao da escola com as famlias e comunidade. Alm desses, o artigo 14 define que os sistemas de ensino definiro 13

as normas de gesto democrtica... Apesar da natureza genrica desse tipo de legislao, o envolvimento com as famlias parece estar legitimado. No Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (MEC, 1988) a relao com a famlia, assim como a questo da qualidade, so tratadas de forma superficial e bastante resumida, embora apontadas como importante. Souza (1991) chama a ateno para a necessidade de uma viso mais ampliada e democrtica nesse documento, nos seguintes termos:A verdadeira participao deve incluir a incorporao dos pais no processo de discusso e anlise de sua prpria condio de vida. Participao inclui conscincia dos fatores polticos, econmicos e sociais que interferem na realidade de vida das famlias e, consequentemente, no desenvolvimento da criana. Numa sociedade democrtica, as verdadeiras alternativas devem resultar de uma participao consciente e organizada das classes interessadas, na busca de caminhos que permitam enfrentar seus problemas. No basta falar de participao, mas devemos, principalmente, reconhecer os canais de participao criados pela prpria sociedade civil. O que podemos observar que as propostas de educao pr-escolar ainda esto na busca do caminho de um verdadeiro entrosamento com as comunidades. Se acreditamos que a ao pedaggica da pr-escola deve ser voltada para os interesses e necessidades das classes populares, ento esta deve ser construda num verdadeiro dilogo com aqueles que dela se beneficiam (p. 45-46).

Segundo Bronfenbrenner (1996), a qualidade do ambiente mais prximo da criana, o microssistema (escola, famlia), recebe influncias diretas e indiretas de outros ambientes. Por exemplo, os diferentes modelos de participao social j assumidos pela sociedade podem influenciar no modelo de relao a ser vivido entre a instituio de educao infantil e as famlias. A poltica de participao das famlias e comunidade na instituio de educao, incentivada pelo poder pblico e at pela mdia, evidencia uma concepo de participao como o cumprimento de tarefas e a realizao de trabalhos voluntrios. O Programa Amigos da Escola 1 um dos exemplos dessas formas de participao. H que se questionar esse tipo de participao, no sentido de no se favorecer a transferncia da responsabilidade do Estado para as famlias e para as comunidades.1

O Projeto Amigos da Escola, coordenado pela TV Globo, foi iniciado em 2000 e tem como objetivos: - Contribuir com a educao pblica fundamental, por meio da mobilizao da sociedade para o exerccio da responsabilidade social; - Fortalecer a formao e a organizao de aes voluntrias para colaborar com a educao pblica, interagindo com diretores, professores e funcionrios das escolas.Disponvel em < http://redeglobo6.globo.com/Amigosdaescola/0,6993,1245,00.html> acesso em 12.jan.2004.

14

1.4 Envolvimento dos Pais, Famlias e Comunidades na Educao Infantil: viso internacional

O Comit de Educao da Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento Econmico (OCDE) realizou um estudo internacional temtico sobre a Poltica de Educao e Cuidado da Primeira Infncia, do qual participaram, voluntariamente, doze pases: Austrlia, Blgica - Comunidades Flamenga e Francesa, Dinamarca, Estados Unidos da Amrica, Finlndia, Itlia, Holanda, Noruega, Portugal, Repblica Tcheca, Reino Unido e Sucia. O estudo gerou a possibilidade de se fazer uma anlise internacional, de forma a aprimorar a formulao da poltica de Educao e Cuidado da Primeira Infncia (ECPI) nos pases membros da OCDE (UNESCO, 2002). O envolvimento dos pais, famlias e comunidades foi um dos temas considerados no estudo acima referido, o que nos permite ter uma viso internacional sobre essa questo. O relatrio mostra que, na realidade dos diferentes pases, o papel dos pais nos servios da ECPI est sendo incrementado e formalizado. Os modelos de participao variam, e segundo aquele estudo, foi possvel identificar cinco categorias desse envolvimento nos diferentes pases: Envolvimento marginal quando o envolvimento dos pais tido como sem importncia; Envolvimento formal quando est previsto nas diretrizes ou na regulamentao oficial; Envolvimento informal frequente, variado e planejado. Acontece, por exemplo, quando os pais acompanham seus filhos na instituio; Envolvimento na participao quando os pais participam ativamente nos programas de ECPI; Envolvimento na direo reconhecida a responsabilidade dos pais nas tomadas de deciso. O envolvimento dos pais assume diferentes modalidades e opera em diferentes nveis. Muitos esforos foram constatados no estudo, mas o profissional da ECPI ainda acha difcil ir alm de um simples envolvimento marginal com os pais. 15

A falta de tempo dos pais, em funo das suas atividades profissionais ou outras, apontada como uma das principais barreiras. Entretanto, muitas iniciativas destacaram-se, conforme se pode ver, a seguir: Nos Estados Unidos da Amrica criou-se uma legislao especfica que incrementou o envolvimento dos pais, reconhecendo o direito de serem includos nas discusses sobre a incluso dos filhos nos programas de educao infantil, assim como nos debates sobre o Plano Individual de Educao ou sobre o Plano Individualizado dos Servios da Famlia. No Reino Unido, a ECPI pode oferecer servios diretos aos membros da comunidade ou funcionar como um centro de referncia, atravs do qual possvel provocar mudanas em outras reas, tais como: sade, meio ambiente ou emprego. Na Itlia, um grande nmero de leis trabalhistas ou polticas regionais e locais tornaram obrigatria a licena maternidade/paternidade, para que os pais possam acompanhar os filhos durante o delicado perodo de adaptao passagem do domiclio para os servios da ECPI. Na Sucia, durante as duas primeiras semanas em que as crianas comeam a pr-escola, os pais passam o tempo com os filhos no centro educativo, o que favorece o entrosamento. Nos pases como Blgica (Comunidades Flamenga e Francesa), Dinamarca, Finlndia, Noruega e Holanda existem dispositivos que flexibilizam as horas de trabalhos dos pais para que possam participar das atividades da ECPI. Mas, a despeito das imensas possibilidades, o Relatrio conclui que o envolvimento dos pais, famlias e comunidades um desafio a ser enfrentado pela ECPI nas diferentes comunidades internacionais. Recomenda, como essencial, que os profissionais da educao infantil recebam formao especfica para trabalhar com os pais. Assim, tanto o envolvimento dos pais, famlias e comunidades, como a qualidade na educao infantil diferem segundo a especificidade e diversidade de cada pas, regio ou local, e as caractersticas dos atores envolvidos. Mas h uma tendncia mundial de que a relao com as famlias seja apontada como um dos 16

fatores de qualidade da educao infantil. Alm disso, parece haver uma tendncia de que o foco das decises polticas e dos investimentos na educao e cuidado na primeira infncia devam se centrar no acesso equitativo e na qualidade do atendimento educacional e social das crianas, famlias e comunidades. Do Brasil, o que se pode afirmar que, pela primeira vez na sua histria, temse um conjunto de leis que favorecem uma poltica voltada qualidade do atendimento s crianas. No entanto, pouco se avanou nesta direo, assim como nas polticas de promoo do envolvimento das famlias e comunidades. A educao infantil de qualidade , ao mesmo tempo, responsabilidade social e direito das crianas e suas famlias. Diante do exposto, conclui-se que a qualidade no um conceito universal e absoluto. Ela envolve juzo de valor e qualquer conceituao no neutra. Entretanto, no Brasil, parece urgente que se chegue a um consenso da qualidade que desejamos para a educao infantil. A partir da, faz-se necessria a definio clara de critrios de qualidade, de metas e formas de avaliao do processo e dos resultados. Ao acaso, no chegaremos a lugar algum. Muito se tem a fazer pela educao bsica e pelo ensino superior, e sabe-se que h muitas instituies e profissionais de educao infantil que lutam pela qualidade, a despeito das muitas dificuldades e entraves. Todavia, em mbito macrossocial, um nvel de ensino no pode ter supremacia sobre outro, pois a educao se d ao longo da vida e seu impacto ser tanto mais positivo se ela for de qualidade em todas as etapas. Acredita-se, portanto, que o padro de qualidade decorre, principalmente, de decises firmes na esfera macrossocial e do engajamento e compromisso dos atores envolvidos no mbito local, acrescidas as condies humanas, financeiras, materiais e fsicas. Muitos so os fatores que configuram esse padro: ambiente, equipe, currculo, gesto e as relaes interpessoais no interior da instituio e no seu entorno. Para Oliveira(2002),Hoje, na educao infantil, o debate centra-se na autonomia da creche e da pr-escola para elaborar e desenvolver seu projeto pedaggico e na necessidade de que esse projeto se comprometa com padres de qualidade. No se trata de aceitar qualquer modelo, mas de garantir qualidade no modelo educacional proposto. Padres de qualidade no so, entretanto, intrnsecos, fixos e predeterminados, mas historicamente especficos e negociveis no sentido de garantir os direitos e bem-estar das crianas. (p. 47)

17

No que se refere s relaes interpessoais, entre elas, a relao com as famlias, espera-se que a gesto democrtica no fique engessada na legislao ou no discurso. Na educao infantil de qualidade a instituio no deve apenas abrir seus portes para pais e comunidade. Precisaro, juntos, aprender e exercitar o envolvimento, a parceria e o compartilhar responsabilidades, para, assim, se reconhecerem como complementares na educao das crianas pequenas e no cuidado com as mesmas.

18

2 EDUCAO INFANTIL: CONTEXTO DA REALIDADE BRASILEIRA

2.1 Educao Infantil legitimada e institucionalizada

Para melhor se entender a relao entre as famlias e a instituio de educao infantil necessrio compreender alguns conceitos bsicos. Por isso, este captulo apresenta e discute as concepes de infncia, de criana e da educao infantil. A educao infantil, como se viu anteriormente, tem sido um tema de debate da agenda mundial. Tem-se destacado a necessidade de investimentos na rea, de abertura para estudos e pesquisas e a relevncia da conquista do direito educao para todas as crianas de zero a seis anos. Portanto, a educao infantil uma rea definida de atuao que, a cada dia, vem construindo seu espao prprio, sua identidade e sua autonomia. A Conferncia Mundial sobre a Educao para Todos, realizada em Jomtien, na Tailndia, no ano de 1990, foi considerada um marco na luta pela educao para todos e ao longo da vida. Nela destacou-se, entre outros aspectos, a importncia da aprendizagem a partir do nascimento, reconhecendo-se a educao e o cuidado na primeira infncia como essenciais na educao bsica. Dez anos mais tarde, o Frum Mundial de Educao para Todos, realizado em Dacar/Senegal, fixou como uma das metas da educao mundial a expanso da assistncia e educao na primeira infncia. Pouco antes da Conferncia em Jomtien, o Brasil j havia assegurado, na Constituio Federal de 1988, a educao infantil como um direito. Em 1996, com a promulgao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB), ela foi reconhecida como a primeira etapa da educao bsica. Dessa forma, no se pode negar que houve, nas ltimas dcadas, um avano na legislao e nos movimentos mundiais e locais para concretizao de uma efetiva oferta da educao infantil. No entanto, isto ainda no se refletiu, significativamente, na realidade. A legislao, por si s, no capaz de modificar a prtica. 19

No mbito das polticas pblicas de educao, o Ministrio da Educao publicou, em 1998, os Referenciais Curriculares Nacionais de Educao Infantil (RCNEI), compostos por trs volumes, em que os assuntos so agrupados por temas. O primeiro volume Introduo traz uma reflexo sobre creches e prescolas, concepes de criana, de educao e sobre o perfil do profissional da educao infantil. O segundo volume Formao Pessoal e Social - busca favorecer, em especial, a construo da Identidade e Autonomia da Criana. O ltimo volume, o que se intitulou Conhecimento do Mundo, foi organizado com o objetivo de orientar a construo de diferentes linguagens pelas crianas e as relaes que estabelecem com os objetos das diversas reas do conhecimento. No Brasil, o Conselho Nacional de Educao aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil (1999), estabelecendo oito diretrizes gerais para orientar as propostas pedaggicas das instituies de educao infantil. As Diretrizes so amplas e sinalizam a necessidade das Instituies de Educao Infantil promoverem prticas de educao e cuidados que possibilitem a integrao entre os aspectos fsicos, emocionais, afetivos, cognitivos, lingusticos e sociais da criana, entendendo-a como um ser completo, total e indivisvel. O conhecimento cientfico j acumulado sobre o desenvolvimento e a aprendizagem da criana, o que j se sabe sobre o aprender e ensinar na primeira infncia e, tambm, o reconhecimento da importncia da educao das crianas de zero a seis anos, e, ainda, tudo o que mais se apresenta naquelas Diretrizes mostram que a educao e o atendimento a essas crianas no podem ser uma prtica espontanesta. Pressupem uma prtica de qualidade, com inteno social e pedaggica, objetivos e aes previamente estudados e planejados, alm de continuamente avaliados. Ou seja:Os fundamentos da educao da criana no diferem, essencialmente, dos da educao, em sentido mais amplo. A diferena d-se no nvel da prtica ou do desenvolvimento do trabalho pedaggico a criana necessita de tratamento diferenciado, capaz de considerar seu contexto, sua histria de vida, seu conjunto de caractersticas, necessidades e desejos (SOUSA, 2000, p. 30).

20

Alm disso, a Lei de Diretrizes e Bases Nacional (1996) determinou a elaborao do Plano Nacional de Educao (PNE), a ser construdo em sintonia com a Declarao Mundial sobre Educao para Todos. Nesse Plano, aprovado em 2000, foram estabelecidas as diretrizes, metas e objetivos de todos os nveis e modalidades de ensino. No que se refere educao infantil, o referido Plano (2000) explicita a coresponsabilidade das trs esferas governamentais Unio, Estados e Municpios e da famlia. O objetivo dessa articulao o mtuo conhecimento dos processos de educao, valores e expectativas, de tal maneira que a educao familiar e a escolar se complementem e se enriqueam, produzindo aprendizagens coerentes, mais amplas e profundas. Quanto orientao da prtica pedaggica na educao infantil, o mesmo Plano alerta para a importncia da superao das dicotomias creche/pr-escola, assistencialismo/educao, atendimentos a carentes/ educao para classe mdia e outras que foram equivocadamente criadas ao longo da histria da educao e, mais especificamente, da educao infantil. O contedo do Plano tambm discutido por Zabalza (1998), ao argumentar que o debate acerca da educao infantil enfrenta duplo caminho. No primeiro, uma estrutura assistencial comprometida com a guarda e a custdia. No segundo, o de transformar a educao infantil em um perodo escolar com enfoques e exigncias da aprendizagem, que prepare ou adiante o Ensino Fundamental. O deslocamento para um desses sentidos significa, para o autor, o esvaziamento de um sentido formativo prprio. Tal debate reconhece tanto a identidade prpria da educao infantil, quanto necessidade da clara definio pedaggica para o atendimento s crianas de zero a seis anos de idade. Esses avanos legais, alm de outras mudanas que vm ocorrendo no cenrio da educao nacional, legitimaram e institucionalizaram o atendimento s crianas de zero a seis anos. O que no deixa de provocar antigos ou novos debates, como, por exemplo, sobre o modelo pedaggico e sobre a necessidade de se definir a natureza educacional do trabalho a ser realizado na educao infantil. Merecem destaque algumas mudanas trazidas pelo debate na rea. Uma delas refere-se ao fato de que o direito das mulheres ao atendimento dos filhos, no 21

perodo em que trabalham, foi substitudo pela nfase ao direito da criana (CAMPOS, 2002). A educao infantil , hoje, um direito da criana. Direito ao cuidado e educao. Direito ao pleno desenvolvimento, qualidade de vida e acesso aos bens culturais e sociais da humanidade. Portanto, no se pode aceitar qualquer forma ou modelo de atendimento s crianas pequenas. Isso faz com que o debate inclua, obrigatoriamente, a discusso e o entendimento sobre a qualidade da educao infantil. Persistir no avano e enfrentar os desafios da equidade e qualidade exigem vontade poltica, investimentos e definio de aes concretas. No se pode ignorar que a educao infantil atual fruto da evoluo histrico-social da humanidade, que, ao longo da sua trajetria, vem definindo a concepo de criana e de educao infantil, assim como afirma Oliveira (2002):O delineamento da histria da educao infantil por pesquisadores de muitos pases tem evidenciado que a concepo de infncia uma construo histrica e social , coexistindo em um mesmo momento mltiplas ideias de criana e de desenvolvimento infantil. Essas ideias, perpassadas por quadros ideolgicos em debate a cada momento, constituem importante mediador das prticas educacionais com crianas at 6 anos de idade na famlia e fora dela (p. 57).

2.2 Mundo Infantil

Numa perspectiva histrica, entender o mundo infantil compreender a evoluo da representao social da infncia e da criana. Philippe Aris, autor do clssico Histria Social da Infncia e da Famlia, tornou-se referncia obrigatria aos interessados em investigar a histria da infncia. Seus estudos pioneiros tornaramse ponto de partida para outros pesquisadores do tema, inclusive para os seus crticos. Neste trabalho, entende-se que as suas contribuies so bastante relevantes. Para Aris (1981), a representao de infncia tem sido um fenmeno relativo. A cada poca h uma idade privilegiada e uma periodizao particular da vida humana. Segundo o autor, o sculo XVII foi o sculo da juventude, enquanto o 22

sculo XIX privilegiou a infncia. O da adolescncia foi o sculo XX. Para ele, estas representaes so, na verdade, testemunhos da interpretao ingnua sobre as idades da vida, que acarretam variaes de um sculo para outro, em funo das relaes demogrficas. No Brasil, Kuhlmann Jr. vem fazendo significativas pesquisas neste sentido, tornando-se, tambm um referencial para este estudo. Para se discutir as concepes de infncia e criana, parece pertinente levantar algumas questes problematizadoras: possvel afirmar que existe um mundo infantil? Quem o inventou? Quem mora nele? real ou de faz-de-conta? Como fazer para entrar nele e compreend-lo? O que pensam os seres que nele habitam? O que pensam dele os que l no esto? Faz sentido pensar-se num campo que possa ser identificado como o das cincias da infncia? Freitas e Kuhlmann Jr. (2002) alertam que estudos e pesquisas nesse campo acabam por referenciar a voz e a percepo do adulto. A argumentao que apresentam acha-se sintetizada na seguinte proposio:Podemos compreender a infncia como a concepo ou a representao que os adultos fazem sobre o perodo inicial da vida, ou como o prprio perodo vivido pela criana, o sujeito real que vive essa fase da vida. A histria da infncia seria ento a histria da relao da sociedade, da cultura, dos adultos, com essa classe de idade e a histria da criana seria a histria da relao das crianas entre si e com os adultos, com a cultura e a sociedade. Mas a opo por uma ou por outra perspectiva algo circunscrito ao mundo dos adultos, os que escrevem as histrias, os responsveis pela formulao de problemas e pela definio das fontes a investigar (FREITAS; KUHLMANN JR., 2002, p. 7).

Aris (1981) argumenta que a descoberta da infncia comeou no sculo XIII, evoluindo nos sculos XV e XVI. O autor usou como meio para identificar e interpretar a evoluo dessa descoberta a histria da arte e da iconografia. Para ele, os reais sinais do desenvolvimento da infncia tornaram-se significativos a partir do fim do sculo XVI e no transcorrer do sculo XVII. O sentimento de infncia como perodo peculiar de nossas vidas, ao contrrio do que se possa pensar, no um sentimento natural e existente desde sempre. Segundo o prprio Aris, essa concepo diferenciada sobre a criana teria comeado s ao final da Idade Mdia.

23

Observa-se, assim, que a histria da criana e da infncia no est isolada do seu contexto social, demogrfico e temporal, razo por que se tem modificado ao longo dos sculos. Nessa perspectiva, como falar hoje de criana e infncia? O nosso tempo marcado por transformaes bruscas. um tempo ps-industrial, informatizado, robotizado e globalizado. Para Smolka (2002),Falamos hoje da passagem para o sculo XXI. Vivenciamos profundas mudanas nas condies de existncia, nas relaes de produo, nas concepes de trabalho e da prpria vida. O life span se expande (mas em que condies?) (p. 122).

Para a autora, o fato que chegamos ao sculo XXI, ouvindo, assumindo e partilhando certos modos de olhar e de pensar sobre a criana e sobre a educao infantil (IDEM, p.100). Esses modos foram construdos historicamente e vo afetando e transformando educadores e educandos (SMOLKA, 2002). Essa construo histrica sobre a infncia e a criana, presente no trabalho de Aris (1981), pode ser assim sintetizada: por muito tempo, na sociedade tradicional, a passagem da criana pela sociedade e pela famlia era muito breve. Na Idade Mdia - o ponto de partida do trabalho do pesquisador no havia um sentimento de infncia, o que no deve ser confundido com uma aluso ausncia, nos adultos, de uma afeio pelas crianas. Sentimento de infncia, segundo Aris (IDEM), corresponde conscincia da particularidade infantil. As primeiras demonstraes sentimento superficial de infncia so, segundo aquele autor, caracterizadas pela paparicao criana nos seus primeiros anos de vida. Ele aponta uma mudana considervel a partir do final do sculo XVII, em que a criana e a famlia assumem um novo lugar nas sociedades industriais. Nesse perodo, com a intensificao das crticas dos educadores e moralistas, surge outro sentimento de infncia, que traz consigo uma preocupao com a disciplina e a racionalidade dos costumes, que assim foi traduzido: Era preciso antes conhec-la melhor para corrigi-la, [...] (ARIS, 1981, p. 163). Como se pode perceber, embora o primeiro sentimento paparicao tenha surgido na famlia e o segundo, no meio intelectual, eclesistico ou moralista, torna-

24

se evidente que a criana saiu do anonimato e passou a ocupar papel central no meio da famlia e, por extenso, na sociedade. Aris (1981) argumenta, ainda, que esse novo sentimento inspirou toda a educao do sculo XX, por provocar interesse psicolgico e preocupao moral em relao infncia. A partir dele ocorreram mudanas considerveis. Era preciso separar a criana da famlia, para educ-la. No era recomendvel que ficasse misturada com os adultos e que aprendesse a vida diretamente. E ento: A escola substitui a aprendizagem como meio de educao (ARIS, 1981, p. 11). A este respeito, Boto (2002), complementa:Ao separar a criana do universo adulto, a modernidade cria a infncia como uma mnada - unidade substancial ativa e individual; presente, no limite, em todos os seres infantis da espcie humana: sempre a mesma; sempre igual, inquebrantvel, inamovvel, irredutvel um mnimo denominador comum. No falamos mais das crianas, e sim da infncia (2002, p. 57).

Essa perspectiva moderna de infncia emergiu a partir das preocupaes em relao ao futuro, preservao e existncia real (CORAZZA, 2002, p. 85). A propsito, Corazza (2002) em Infncia e Educao: Era uma vez... quer que conte outra vez? avana nos estudos sobre a infncia. Com o intuito de narrar a criao da infncia moderna, a referida autora apresenta um texto interessante, nos moldes das histrias infantis, em que conta a histria da inveno do Indivduo, um sujeito grande que passou a viver num perodo chamado Modernidade, alis, um perodo que tambm estava sendo inventado. Esse Indivduo passa a atentar para as gentes pequenas e acaba por criar algumas equivalncias preferidas das gentes grandes, que assim relacionam: pequenas = brinquedo/jogo; pequenas = uma das raas antigas; pequenas = circo; pequenas = famlia; pequenas = desenhos animados; pequenas = escola. A autora faz um percurso pela histria da infncia, examinando alguns autores Aris(1975, 1981, 1986), Calligaris (1994), DeMause (1995), Ghiraldelli (1994), Postman (1984) e Rizzini (1993) e acaba por identificar trs grandes momentos: a inveno da infncia, brevemente descrita no pargrafo anterior; o apogeu do sculo XIX, quando a criana considerada essencial famlia e sociedade, tendo inclusive, seus direitos protegidos pelo Estado; e o 25

desaparecimento da infncia, sendo este o aspecto que no seu estudo, mais chama a ateno. Em sntese, ela defende a tese de que a infncia nunca foi verdadeiramente assumida, efetivada, praticada, como idade, etapa ou identidade especficas (CORAZZA, 2002, p 196). E acrescenta:Minha concluso irreversvel: o bom infante desfaleceu, acabou, morreu. Ele um figura de areia, entre uma mar vazante e outra montante. Uma composio que s aparece entre duas outras: a de um passado que o ignorava e a de um futuro que no o reconhecer mais. A partir disso preciso perguntar: O que faremos ns, sem este infante? O que faremos com o que fizemos da infncia? (IDEM, p. 203).

A indagao e a tese da autora so, como um todo, provocativas e tm o poder de fazer refletir, especialmente porque desnuda a realidade e discute a infncia contempornea com fatos e dados que fazem parte do nosso cotidiano. So crimes, matanas e formas de consumo, alm da crise poltica, econmica e social, entre outros aspectos atuais. Por isso, ao concluir a leitura de seu trabalho, pode-se inferir que aquilo que parece ser o fim pode ser o comeo de um novo olhar e de um novo pensar sobre a infncia. Para tanto, h que se romper com alguns paradigmas, questionar o passado enquanto ensinamento, o presente por aquilo que produz e o futuro em funo do que acreditamos ser possvel do ideal. Alm disso, preciso assumir eticamente as idades da vida, lembrando que elas so vividas por sujeitos histricos e sociais do seu tempo. Isso implica, naturalmente, num repensar das relaes humanas. Significa modificar as relaes dos adultos com as crianas, de tal forma que possamos construir uma histria da infncia, no apenas para ser contada, mas principalmente para ser vivida na sua plenitude, em todos os espaos, em todos os tempos e para todas as gentes pequenas do nosso planeta. Do mundo infantil, todos fazem parte. Faz-lo melhor dever de todos os cidados e educadores.

2.3 Escola para a Infncia

26

O surgimento da criana como categoria social e o sentimento de infncia foram capazes de gerar uma escola para a infncia? Com que inteno? Voltada para quais crianas?Se j antes da Modernidade o infantil se tornara um animal batizado, agora, por efeitos da escolarizao, ele se torna um animal escolarizado (CORRAZZA, 2002, p 196).

Hoje, uma criana fora da escola causa espanto e at revolta; mas no foi sempre assim. Por exemplo, quando falamos em uma criana em idade escolar, consenso que ela tenha por volta de seis a sete anos. No perodo medieval e at pelo menos o sculo XVIII, a realidade era outra. Na segunda parte de seu livro, anteriormente referido, Aris (1981) faz uma retrospectiva histrica das condies e mudanas da vida escolar, da qual buscamos extrair, em especial, a relao entre o sentimento de infncia e a concepo de escola. Segundo o autor, at o sculo XVIII a escola tinha caractersticas medievais. O seu objetivo era tcnico, voltado aos clrigos ou a pessoas outras de qualquer idade, menos s crianas. Na viso do autor, isso se justifica pelo fato dos pedagogos da Idade Mdia terem confundido educao com cultura, ou seja, por estenderem a educao a toda durao da vida humana, sem, contudo, dar valor infncia e juventude. Manifestam-se a, concepes e significados de educao que parecem desconsiderar a natureza aprendente de todo o ser humano, ao longo de toda a sua vida, o que no privilgio apenas daquele tempo. Ainda hoje, pode-se flagrar tais concepes. Para Aris (1981), at o sculo XVII e, provavelmente, at o sculo XVIII, a escola mantinha-se alienada relao entre idade e classe escolar. As idades todas eram agrupadas numa mesma classe, ou melhor, num mesmo auditrio, pois a escola no dispunha de acomodaes prprias. No seu entender, o avanar da indeterminao medieval para o rigor do conceito moderno, em que a classe adquiriu seu aspecto de classe de idade, foi um longo caminho intimamente ligado s concepes de infncia e educao. So dele as palavras: Essa evoluo da 27

instituio escolar est ligada a uma evoluo paralela do sentimento das idades e da infncia (ARIS, 1981, p. 170). No sculo XVI e incio do sculo XVII havia uma admirao pela precocidade, que durante o sculo XVIII foi repugnada e fez surgir um novo sentimento de infncia: a ideia de longa infncia e a infncia escolstica. Pelo menos, at metade do sculo XVIII, a idade de 5-6 anos era considerada o trmino da primeira infncia, mas o surgimento do novo sentimento prolongou-a para 9-10 anos, retardando assim, o ingresso na escola. A justificativa para isso era a fraqueza, a imbecilidade ou a incapacidade dos pequeninos (ARIS, 1981, p. 176). A despeito dessa ideia, a mistura das idades num mesmo espao fsico persistia, sendo possvel encontrar, por exemplo, crianas de 10-14 anos e rapazes de 19-25 anos frequentando as mesmas classes. Por outro lado, as meninas eram excludas da escolarizao e, portanto, na maioria, semi-analfabetas. S no fim do sculo XVII que as meninas passaram a ingressar na escola, com idade entre 7 e 12 anos.

2.4 Instituies de Educao Infantil

Quando teriam, ento, surgido as escolas infantis? Por que sempre nos referimos origem das instituies de educao infantil considerando-as assistencialistas? Por que insistimos na superao desse modelo por um modelo educacional? Educao seria o oposto de assistncia? Normalistas, pedagogos e professores, de maneira geral, pelo menos uma vez, na sua formao, ouviram ou leram que as instituies infantis, no Brasil e no mundo, nasceram com objetivos exclusivamente assistencialistas. O Referencial Curricular Nacional (Brasil, 1988) acena para essa direo, no seu volume introdutrio, quando faz algumas consideraes sobre creches e prescolas:O atendimento institucional criana pequena, no Brasil e no mundo, apresenta ao longo de sua histria concepes bastante divergentes sobre a finalidade social. Grande parte dessas instituies nasceram com o

28

objetivo de atender exclusivamente s crianas de baixa renda. A concepo educacional era marcada por caractersticas assistencialistas, sem considerar as questes de cidadania ligadas aos ideais de liberdade e igualdade (BRASIL, 1988, p. 17).

comum tratar-se a educao a partir de dicotomias: ou ensino ou aprendizagem, ou contedo ou forma, ou processo ou resultado. Parece no ser diferente em Educao Infantil: ou assistencial ou educacional. Para Kulmann Jr. (2001) essa polarizao entre assistir e educar historicamente equivocada, fruto da pressa de pesquisadores dos primeiros textos da histria da educao infantil em responder s questes do presente e, ainda, por haverem tido um olhar desatento aos documentos histricos. O autor esclarece:O pensamento educacional tem mostrado resistncia em aceitar os elementos comuns entre as instituies constitudas para atender a segmentos sociais diferenciados. Insiste-se na negao do carter educativo daquelas associadas a entidades ou propostas assistenciais, como se educar fosse algo positivo, neutro ou emancipador adjetivos que dificilmente poderiam ser aplicados a elas (IDEM, p. 73).

Kulmann Jr. vem aprofundando seus estudos sobre a histria da educao infantil, desde 1990, tornando-se reconhecido como um dos pensadores dessa rea. Diferentemente do que se tem dito, o autor insiste na interpretao histrica de que as creches e pr-escolas assistencialistas foram concebidas e difundidas como instituies educacionais (2001, p.200). Analisando-se os elementos que o autor apresenta na defesa de suas ideias pode-se inferir que a educao infantil no mundo e no Brasil, nos diferentes momentos histricos da sua origem aos dias atuais sempre teve presente o aspecto educacional, o que no significa a ausncia da assistncia, ou ainda, a no predominncia de um sobre outro. Hoje, o que parece emergente que se defina de que educao infantil se est falando. No se est falando de uma educao infantil que seja uma adequao, preparao ou antecipao ao Ensino Fundamental. Que seja ou s educacional, ou s assistencial. De acordo com Rocha (2000):Para isto, fez-se necessrio, em primeiro lugar, destacar que a creche e prescola diferenciem-se essencialmente da escola quanto s funes que assumem no contexto ocidental contemporneo. Particularmente, na sociedade brasileira atual, estas funes apresentam em termos de organizao do sistema educacional e da legislao prpria contornos bem

29

definidos. Enquanto a escola se coloca como espao privilegiado para o domnio dos conhecimentos bsicos, as instituies de educao infantis se pem, sobretudo com fins de complementaridade educao da famlia. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e, como objeto fundamental o ensino nas diferentes reas, atravs da aula, a creche e a pr-escola tm como objeto as relaes educativas travadas num espao de convvio coletivo que tem como sujeito a criana de 0 a 6 anos de idade (ou at o momento em que entra na escola) ( p. 68).

Para a autora, portanto, a educao de crianas nas instituies de educao infantil passa a ter uma diferenciao de funes quando o sujeito a criana e no o sujeito escolar o aluno. Em resumo, neste trabalho, a educao infantil que se defende a que tem funo complementar ao da famlia e da comunidade. Tem, portanto, carter social e educativo amplo, em especial, pelo impacto positivo que pode causar na criana, nos profissionais, nas famlias e na sociedade como um todo.

30

3 EDUCAO INFANTIL: CONTEXTO RELACIONAL

3.1 Sentimento de Famlia

Quando a famlia entra em cena, cabe questionar: Qual o sentimento de famlia presente na sociedade, hoje? E na escola? A escola est preparada para lidar com a diversidade das famlias atuais? Para Aris(1981):o sentimento de famlia, o sentimento de classe e talvez, em outra rea, o sentimento de raa surgem portanto como as manifestaes da mesma intolerncia diante da diversidade, de uma mesma preocupao de uniformidade(p.279).

Da mesma forma que o sentimento de infncia, o sentimento de famlia tambm mudou e percorreu um longo caminho. Esses caminhos, tm, entre si, estreita relao e mtua influncia. Houve uma revoluo significativa da famlia dos tempos medievais para a famlia do sculo XVII. No captulo anterior, percebeu-se que a criana conquistou, nos sculos XVI e XVII, um lugar junto aos pais. Elas voltaram ao lar, no eram mais confiadas aos estranhos. Na famlia do sculo XVII, a criana tornou-se elemento indispensvel vida cotidiana. Os adultos passaram a se preocupar com a sua educao, carreira e futuro (ARIS, 1981). Segundo Aris (1981), a famlia do sculo XII distingue-se da moderna pela enorme sociabilidade que a caracterizava. Havia, naquela poca, as grandes casas - centro de relaes sociais onde entravam e de onde saam muitas pessoas. Os cmodos, que podiam ter mltiplas finalidades, possivelmente tornavam rara a privacidade, ou seja, misturavam-se a vida pblica e as relaes sociais. Para o historiador, essa preservao da famlia, com carter privado e ntimo, era uma ideia inicialmente burguesa. Ressalta ainda, que as classes populares mantiveram o gosto pela multido at quase nossos dias, o que lhe permitiu afirmar que existe, portanto, uma relao entre o sentimento de famlia e o sentimento de classe (ARIS, 1981, p. 278). 31

3.2 Famlia Brasileira

Segundo a sntese de indicadores sociais divulgadas em 2002 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), a famlia brasileira encolheu. Nas ltimas duas dcadas diminuiu o nmero de pessoas que compem a famlia e paralelamente cresceu a proporo de famlias lideradas por mulheres, embora ainda predomine no Brasil o tipo de famlia nuclear, formada pelo casal e filhos. Em 1980, as famlias brasileiras tinham, em mdia, 4,5 componentes. Em 1992, a mdia passou para 3,7 componentes. E em 2001 a mdia cai para 3,3 pessoas. Portanto, de 1980 para 2001, a famlia brasileira perdeu um integrante. Em relao aos arranjos familiares, a famlia nuclear ainda o tipo predominante. Em 2001, o percentual revelado foi de 53,3% do total. Apesar de continuar a ser a maioria, houve uma queda desse tipo de arranjo familiar, pois em 1992 atingiu o ndice de 59,4%. Paralelamente, cresce a proporo de famlias compostas por mulheres sem cnjuges e com filhos, passando de 15,1% em 1992 para 17,1% em 1999, chegando a 17,8% em 2001. Crescem tambm, proporcionalmente, tipos alternativos de famlia, com destaque para o crescimento dos ncleos unipessoais. Em 1992, de cada mil pessoas, 7 moravam sozinhas. Em 2001, chegou-se a 9,2 por mil. Quanto aos casamentos, homens e mulheres esto casando menos e mais tarde. Os homens, por volta dos 30 anos e as mulheres, aos 27 anos. Houve, tambm, uma reduo do nmero de registros de casamentos civis. Em 1990, o ndice de casamentos por mil habitantes com mais de 15 anos era de 7,5%. Em 2001, caiu para 5,9%. Entretanto, o ndice de divrcios e separaes, que era de 0,9% por mil habitantes, ficou relativamente estvel, pois em 1999 esse ndice passou para 1,2%. Por outro lado, o tempo de durao das unies civis aumentou, passando de 9,5 anos, em mdia, para 10,5 anos em 2001. Esses dados so significativos na medida em que possibilitam uma avaliao estrutural e tambm de possveis crenas, valores e novos costumes na famlia brasileira e na sociedade como um todo. Ao ser consultada sobre esses dados, a antroploga Lia Zanota (2003) teceu algumas explicaes em relao ao casamento. Segundo a mesma, at os anos 70 era uma transgresso manter um 32

relacionamento sem se casar, sendo que agora um casal pode morar junto sem oficializar a unio. Afirma, ainda, que o fato das pessoas casarem mais maduras favorece a longevidade das unies. Quanto ao nmero de filhos, a antroploga afirmou que a classe mdia tem a inteno de manter um padro de vida confortvel e, por isso, prefere ter penas um filho. Levando-se em conta que hoje vivemos na sociedade da informao e do conhecimento, em que a educao tornou-se unanimidade, ao falar-se em um padro de vida confortvel, a educao dos filhos parece ter peso significativo. Os pais querem uma educao de qualidade para os mesmos por saberem da sua necessidade para a vida futura. No campo poltico, observa-se que a famlia retoma um lugar de destaque. Em dcadas anteriores, era quase um consenso que Estado ou mercado poderiam substituir a famlia no seu papel formador. Superado este modelo, a famlia passa a ser revitalizada na sua funo socializadora (CARVALHO, 2003). Segundo a autora (IDEM), esse potencial socializador da famlia, que tambm protetor e relacional, em muitas situaes precisa ser otimizado com servios e iniciativas pblicas, pois o Estado no pode se desresponsabilizar de suas funes de garantir e assegurar as atenes bsicas de proteo, desenvolvimento e incluso de todos os cidados. A autora alerta, entretanto, que os programas devem superar o enfoque fortemente tutelar e assistencialista, a exemplo da distribuio de cestas alimentares, por uma poltica movida pela lgica dos direitos sociais. Retoma-se, portanto, a recomendao feita pelo relatrio do Comit de Educao e Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico (UNESCO, 2002), de que essencial que os profissionais da educao infantil recebam formao especfica para trabalhar com os pais. As mudanas estruturais, crenas e valores da atual famlia brasileira so variveis que precisam ser conhecidas e analisadas para elaborao de uma proposta de atendimento de qualidade criana e famlia.

33

3.3 Famlia, Educao Infantil e Sociedade

Famlia, escola e sociedade: qual a relao? Diante da abordagem histrica j apresentada neste estudo, possvel afirmar que famlia e escola se constituram no interior da sociedade com objetivos comuns, entre eles: cuidar e educar as crianas. Por consequncia, h entre as mesmas e a sociedade uma estreita relao influenciam e so influenciadas. So partes de um mesmo contexto histrico, social e cultural. No se pode, portanto, compreender escola e famlia sem considerar o contexto e o sistema social em que esto inseridas e os movimentos sociais que se articulam na sociedade como um todo. Partindo de uma perspectiva sociolgica, Perrenoud (1993 apud Carvalho, 2002) enfatiza que a profisso docente uma profisso relacional. No ambiente da escola se processam muitas interaes: criana-criana, criana-professor,

professor-professor, professores-dirigentes, professor-famlia, entre outras. Algumas exigem maior grau de envolvimento emocional e afetivo, como as j apontadas; outras exigem maior grau cognitivo, como as relaes da criana com o objeto do conhecimento. Portanto, no h ambiente educativo que possa excluir as relaes interpessoais. Assim, se a qualidade das relaes vivenciadas pelas crianas no mbito das famlias so relevantes para o seu desenvolvimento, no menos importantes so, para esse mesmo desenvolvimento, as relaes da escola com a famlia, pois independente do papel que assuma, de filho ou de aluno, a criana um ser total, em formao, e depende da interveno dos adultos com os quais se relaciona. A famlia primeiro sistema social em que o ser humano se insere tambm o primeiro ambiente de cuidado e educao da criana. um ambiente dinmico, interativo e de complexas relaes. Existe no interior desse sistema a definio de atividades, papis e relaes interpessoais, que no so estticos, pois alteraram-se com o passar do tempo e com novos fatos, por exemplo, com a chegada de um novo membro na famlia. Os papis, claro, podem se alterar ainda em funo da idade, do sexo e at por influncia de outros ambientes (BRONFENBRENNER, 1996).

34

Hoje, parece haver um consenso em torno da famlia como locus privilegiado para o adequado desenvolvimento humano (BECKER, 2002). Nesse sentido, necessria a valorizao da famlia, entendendo-a como locus privilegiado de identidade bsica para qualquer criana (NEDER, 2002). No h dvidas, portanto, de que a famlia que oportuniza as primeiras relaes sociais e, por isso, tem papel fundamental na educao dos filhos (DALLEPIANE, 2002). Portanto:A famlia se constitui no elemento mediador primeiro entre a criana, o mundo, a cultura, a sociedade, um diafragma protetor e, mais que isso, a matriz da unidade de reproduo humana nas suas condies de subsistncia, na existncia sociocultural e na qualidade de sujeito em processo de singularizao desde a segurana afetiva, a capacidade imaginativa, o autoconceito e a confiana em si (MARQUES, 2002, p. 23).

Porm, no se pode deixar de considerar que fatores relacionados evoluo demogrfica, social e econmica modificaram substancialmente, nas ltimas dcadas, a organizao familiar. Entre eles destacam-se: a insero da mulher no mercado de trabalho, a concentrao da populao nos centros urbanos, a expectativa de vida elevada, a queda da mortalidade infantil e a j citada diminuio do nmero de membros da famlia. Cresce o nmero de casais que dividem a responsabilidade de gerar renda, bem como o nmero de pais ou mes que, isoladamente, criam os filhos sozinhos, alm de garantir a renda (OECD, 2000). Assim, a famlia, hoje, no mundo e no Brasil, est adaptando-se a novos modos de vida e organizao social. Dessa forma, o olhar da escola em direo famlia precisa contemplar amplamente toda a evoluo da organizao familiar e social, tendo em vista o desenvolvimento da criana, da famlia, da comunidade e da prpria escola. Diante disso, necessrio considerar a diversidade das famlias e dar significado s diferentes formas de relao que se configuram no seu interior e no contexto do qual fazem parte. Isto porque:O mundo familiar mostra-se numa vibrante variedade de formas de organizao, com crenas, valores e prticas desenvolvidas na busca de solues para as vicissitudes que a vida vai trazendo. Desconsiderar isto ter a v pretenso de colocar essa multiplicidade de manifestaes sob o caminho de fora de uma nica forma de emocionar, interpretar, comunicar (SZYMANSKI, 2003, p. 27).

Parece que j se chegou ao consenso, nas propostas de educao infantil e 35

entre os profissionais da rea, de que se conhea o universo da criana como um dos requisitos bsicos para se traar o trabalho a ser desenvolvido. Para tanto,[...] uma das primeiras preocupaes que todo educador deve ter: conhecer individualmente cada criana. Isto significa ser capaz de identificar, em cada uma delas, respostas s questes: Quem esta pessoa que est aqui na sala? De onde veio? Que valores e crenas ela carrega? O que ela j sabe? O que ela sente? O que pensa sobre si e os outros ao seu redor? Quais as expectativas quanto ao seu presente e ao seu futuro? (SOUSA, 2000, p. 104).

Responder a essas questes no fcil nem simples. Provavelmente, sozinho, o professor no dar conta de respond-las. Poderia ento a parceria com a famlia ser um dos caminhos? Um caminho necessrio? Um caminho possvel? Ressaltando a importncia do envolvimento da famlia no contexto da educao infantil, Bhering e Nez (2002) afirmam que ela auto-explicativa, pois o olhar sobre o desenvolvimento integral da criana levar sempre em conta os diversos contextos onde a criana se insere (p. 63). Na perspectiva da teoria ecolgica de Bronfenbrenner (1996), a alienao das crianas e dos adolescentes e suas sequelas desenvolvimentais destrutivas so um fenmeno de mesossistema inter-relao entre dois ou mais ambientes dos quais a pessoa em desenvolvimento participa. O que significa que houve, provavelmente, um colapso das interconexes entre os vrios segmentos da vida da criana, includos a a famlia, a escola, grupos de iguais, vizinhos, entre outros. Portanto, reafirma-se que a educao infantil de qualidade e a qualidade da relao com as famlias so responsabilidade social.

3.4 Lar e Instituio de Educao Infantil: ambientes de desenvolvimento humano

Segundo Bronfenbrenner, alm do lar familiar, o nico ambiente que serve como contexto abrangente para o desenvolvimento humano a partir dos primeiros anos de vida a instituio infantil (1996, p. 104). Parece, ento, indiscutvel a importncia que os contextos educativos de qualidade tm para o desenvolvimento integral da pessoa. Sabe-se, no entanto, que 36

os contextos educativos, como por exemplo lar e instituio de educao infantil, podem variar significativamente quanto s experincias que conduzam ao desenvolvimento e maior qualidade de vida das crianas. Assim, entende-se que, para se tornarem potencializadores positivos do desenvolvimento, precisam ser ambientes seguros e ricos em experincias de aprendizagem afetiva, emocional, cognitiva, motora e social. Na concepo ecolgica, lar e instituio so microssistemas, ou seja, ambientes com padro de atividades, papis e relaes interpessoais experenciados pela pessoa em desenvolvimento (BRONFENBRENNER, 1996, p. 18). O autor entende que o ambiente um local onde as pessoas podem facilmente interagir face a face (IDEM, p. 19). Segundo ele, atividades, papis e relaes interpessoais so os elementos ou blocos construtores do microssistema. palavra atividade, o autor acrescenta os termos molar e continuada, com o intuito de diferenci-la de um ato. Sorrir um ato; construir uma torre com cubos uma atividade. Os papis so a srie de comportamentos e expectativas associados a uma posio social. Quanto relao afirma que: sempre que uma pessoa em um ambiente presta ateno s atividades de uma outra pessoa, ou delas participa, existe uma relao (IDEM, p. 46). Para Bronfenbrenner (1996), a existncia de uma relao condio mnima para a existncia de uma dade. Todas as dades apresentam certas caractersticas que podem se manifestar em graus diferentes. So elas: a) Reciprocidade - o que faz A influencia B e vice-versa. b) Equilbrio do Poder - mesmo que os processos didicos sejam recprocos, uma das pessoas pode ser mais influente que outra, mas, gradualmente, quem tem o domnio passa para a pessoa em desenvolvimento. c) Relao Afetiva quanto mais os participantes se envolvem na interao, provvel que desenvolvam sentimentos mais afetivos em relao ao outro. Quanto mais positiva a relao, maior probabilidade de ocorrncia de processos desenvolvimentais. Em termos de potencial desenvolvimental, a dade, segundo Bronfenbrenner (1996), pode assumir trs formas funcionais: observacional, de atividade e primria. 37

Dade observacional: quando um dos membros presta ateno atividade do outro, que, por sua vez, reconhece o interesse demonstrado. Dade de atividade: quando os dois participantes se percebem fazendo alguma coisa juntos; que podem ser atividades diferentes, mas complementares, ou seja, parte de um padro integrado. Por fim, dade primria: sem estarem juntos, os membros aparecem no pensamento um do outro, o que passa a ter uma poderosa influncia no desenvolvimento da pessoa. O autor ressalta que, embora tenham propriedades distintas, as dades no so mutuamente exclusivas; podem ocorrer