Dissertação Martin

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

O Caso HaximuA construo do Crime de Genocdio em um Processo Criminal

Martiniano Sardeiro de Alcntara Neto

Martiniano Sardeiro de Alcntara Neto

O Caso HaximuA construo do Crime de Genocdio em um Processo Criminal

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social. Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Rio de Janeiro Junho de 2007 2

O Caso Haximu A construo do Crime de Genocdio em um Processo Criminal Dissertao submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de mestre. Aprovada por:

_________________________________________ Prof. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (Orientadora) PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________ Prof. Dr. Antnio Carlos de Souza Lima PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________ Prof. Dr. Henyo Trindade Barreto Filho Instituto Internacional de Educao no Brasil (IEB)

_________________________________________ Prof. Dr. Joo Pacheco de Oliveira (Suplente) PPGAS/Museu Nacional/UFRJ _________________________________________ Prof. Dra. Laura Moutinho da Silva (Suplente) Instituto de Medicina Social/UERJ

Rio de Janeiro Junho de 2007

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ALCNTARA NETO, Martiniano Sadeiro de. O Caso Haximu. A construo do Crime de Genocdio em um Processo Criminal/Martiniano Sadeiro de Alcntara Neto. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2007. xiii, 184; 31 cm. Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna. Dissertao (mestrado) UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de PsGraduao em Antropologia Social, 2007. Referncias Bibliogrficas: pp. 179-184. 1. Antropologia do Direito 2. Crime de Genocdio 3. Funcionalismo Pblico. I. Vianna, Adriana de Resende Barreto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. III. Ttulo.

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Resumo O texto que se segue focas-se na construo do Crime de Genocdio num Processo Criminal especfico. Tal Processo trata do conflito entre ndios Yanomami da aldeia de Haximu e garimpeiros brasileiros na fronteira do Brasil com a Venezuela, no ano de 1993. A anlise baseia-se, por um lado, na idia de que a coerncia dessa massa documental no pr-dada, mas gradualmente produzida a partir do trabalho de diferentes especialistas, como Antroplogos, Policiais Federais, Advogados, Defensores Pblicos, Procuradores da Repblica e Magistrados do Judicirio Brasileiro. Por outro lado, tenta-se entender especialmente como os expertos do Direito trabalham a arbitragem desse conflito, erigindo condutas, punies e, enfim, todo um modelo terico para dar conta, em termos judiciais, do embate entre garimpeiros e os Yanomami de Haximu.

Palavras-chave: 1. Antropologia do Direito; 2. Crime de Genocdio; 3. Funcionalismo Pblico

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Abstract The following text focus on the construction of the Genocide Crime in a specific Criminal Process. That Process is concerned to the conflict between the Yanomami Indians of Haximu and some Brazilian goldwashers, which takes place in the political border of Brazil with Venezuela in 1993. The analysis is based, on one hand, in the gradually constructed coherence of the documents that constitutes the Process what is the product of the work of different specialists, as Anthropologists, Lawyers, Federal Policemen, Counsels for indigents, General Attorneys, and Magistrates of the Brazilian Judiciary. On the other hand, it tries to understand especially the way in which the experts of the Right arbitrate this conflict, constructing ways of behaviors, punishments and, at last, all a theoretical model to comprehend, in judicial terms, the quarrel between goldwashers and the Yanomami de Haximu. Key-words: 1. Anthropology of Right; 2. Genocide Crime; 3. Public Office.

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Foi assim que fizemos. No inventamos nada, fora a disposio das peas. (Umberto Eco, O Pndulo de Foucault)

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Agradecimentos

Se as pginas que se seguem realmente conformarem uma dissertao de mestrado em Antropologia Social, devo agradecer, primeiramente, Carla Costa Teixeira. Foi ela que, no primeiro semestre de 1998, durante o curso de Introduo Antropologia, me fez pensar seriamente em abandonar a graduao em Histria, logo nos primeiros dias de aula. Sempre guardarei comigo os cursos brilhantes dessa mestra e seus incontveis ensinamentos. Da Universidade de Braslia, sou grato tambm Joana, ao Sapequinha, ao Jorge-Burro, Paloma, ao Cone, ao Tiaguinho e a todos os grandes amigos que por l fiz e que, como eles sabem, no lembrarei o nome nem mesmo da metade o que no quer dizer que os esquecidos tenham sido menos importantes. As horas de domin e truco no CAHIS e todos os que por l eu encontrava fazem parte das boas lembranas dos tempos de graduao na UnB. No Rio de Janeiro, agradeo inicialmente ao Antonio Carlos de Souza Lima. Sem as diversas oportunidades de pesquisa com as quais tive contato atravs dele, alm da boa antropologia ensinada, a presente dissertao simplesmente no existiria. Agradeo tambm a todo o pessoal do Laboratrio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento. No LACED, no apenas ganhei experincia como pesquisador, mas fiz timo amigos, como o Chiquinho ou a Maria. Das aulas do PPGAS/MN, agradeo s consideraes da mente ps-moderna da Jlia e s sempre teis dicas da Ferni. Agradeo especialmente Lets pela ajuda na reviso da primeira verso do texto e por todo o apio que ela me deu, relacionado ou no academia. Agradeo tambm aos amigos Levindo, Mundim e Pedro por terem me aturado como co-residente na Passagem. As cervejadas-sem-mveis, as festas-comemorativas e os almoos-explosivos com todos esses amigos ajudaram a desanuviar a mente nos momentos em que escrever se tornava quase um martrio. Nesse sentido, devo muito Bia e aos seus sempre fantsticos conselhos-de-mesa-de-bar. Na pesquisa especfica que deu origem presente dissertao, sou particularmente grato Doutora Dborah Duprat e sua incansvel solicitude em me ajudar na empreitada de conseguir uma cpia dos documentos que analiso a seguir. Sou grato tambm aos funcionrios da 6 Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal pela presteza com que me atenderam. O mesmo pode ser dito do corpo de funcionrios do Supremo Tribunal Federal. Agradeo especialmente aos bacharis 9

em Direito Rafael Rodrigues de Alcntara e Maiu Borba de Oliveira, que se esforaram pacientemente em esclarecer certas vicissitudes do Direito a um completo leigo. Devo muito tambm ao Rato, Jotinha e Pot, que direta ou indiretamente me levaram a estudar algo relacionado temtica do Direito. Mary, ao Bigode, Alisson, Galego, Marcondes, Mocoquinha e toda a Barca pelos timos momentos, j de volta Braslia. Agradeo especialmente ao seu Niz, que tentou (e ainda hoje tenta) pacientemente entender o que eu fui fazer no Rio de Janeiro. Ainda em Braslia, sou grato amiga Norma Breda dos Santos pela cuidadosa reviso de parte do texto. Por fim, agradeo Adriana Vianna pela pacincia quaseinfinita na orientao de um catico pisciano. Essa dissertao vai dedicada Cabea, Sra. Edith Rodrigues Afonseca, que sempre se empolgou e acreditou nas minhas viagens, mesmo quando essas me distanciavam dela.

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Convenes a abreviaturas

Esclareo aqui as convenes e abreviaturas que usarei no decorrer do texto. Uso o termo Processo, com a primeira letra em caixa-alta, para me referir ao Processo especfico analisado a seguir. Quando discuto algo que pode ser generalizvel para alm do objeto direto da presente dissertao, uso processo, em minsculas. Sigo a mesma regra para os termos Autos e autos, utilizados como sinnimos de Processo e processo. Reservo o itlico sem aspas para marcar termos estrangeiros, como settlement na introduo que se segue. As aspas simples referem-se a termos que emprego no sentido figurado, como, por exemplo, alimentao do processo no prximo pargrafo. O itlico combinado com a primeira letra em caixa-alta ser usado para todas as categorias que tive contato durante a pesquisa e que pretendo destacar, como o termo Genocdio na prxima pgina, por exemplo. O negrito, fora as citaes em que se usa tal destaque no documento original, ser aplicado para dar nfase aos meus prprios termos analticos, a exemplo de sedimentao do processo no incio da prxima pgina. Para as citaes tanto de documentos quanto de referncias bibliogrficas, sigo a seguinte regra: as que alcancem at cinco linhas sero destacadas entre aspas duplas e itlico, enquanto as que superarem tal marca tero as duas margens recuadas, conservando-se o itlico e suprimindo-se as aspas. Caso pretenda dar nfase especial a alguma citao, usarei o negrito combinado ao sublinhado, nico tipo de destaque que no encontrei nos documentos aqui analisados. Meus destaques viro sempre seguidos do termo nfase minha, enquanto as citaes originalmente destacadas viro indicadas pela expresso nfase do original. Uso as referncias bibliogrficas tendo como base o seguinte modelo FOUCAULT,2006, citando, no exemplo, a obra FOUCAULT, Michel. 2006. Vigiar e punir: nascimento da priso. Petrpolis: Vozes. No que tange s fontes documentais, opto por dois tipos de referncia: de incio, todas as fontes do Processo sero referenciadas pela numerao dada nos Tribunais por onde os Autos passaram. Como deixarei mais claro quando estiver analisando a construo e alimentao do Processo, praticamente toda folha constante nos Autos numerada. Tal numerao vai do nmero um quantidade final de pginas - at arquivamento do Processo, momento em que idealmente ele para de crescer. Mantenho, com isso, o tipo de referncia que os prprios operadores do Direito usam quando querem citar algum documento anterior ao que eles prprios esto produzindo em 11

determinado momento o qual tambm ser, mais tarde, numerado e incorporado aos Autos. Tal expediente dar margem para que seja possvel acompanhar o que batizo adiante de sedimentao do Processo. Por outro lado, trarei, sempre que possvel, a natureza da documentao em foco. Como se ver, os Autos so formados por uma gama particularmente heterognea de documentos, que podem ir desde um Recurso digitado e assinado por um Advogado de Defesa ou Promotor Pblico, at uma carta manuscrita de uma religiosa de Roraima que teve contato com os Yanomami de Haximu que sobreviveram ao Genocdio cf. Anexo. Isso ajudar a complementar a referncia mais geral, dada, como dito, pelo nmero de pginas, facilitando que se tenha mais informaes sobre a parte especfica do Processo a que fao referncia. Um exemplo desse modelo de citao o seguinte: Processo Haximu (PH), :479-518, Relatrio Final do Inqurito Policial, citando-se, a, o Relatrio Final do Inqurito Policial escrito pelo Delegado de Polcia Federal Raimundo Soares Cutrim, numerado no Processo entre as pginas 479 e 518. Para a grafia dos nomes indgenas, conservo as que mais se repetiram nos documentos: uso, portanto, Yanomami para o grupo indgena mais geral e Haximu para identificar a aldeia Yanomami especfica em que ocorreu o Genocdio relatado no Processo aqui em foco. Tal regra vale para todos os outros termos indgenas que por ventura sejam citados, como tuxaua ou curumim, ambos regularmente assim grafados nos Autos. Por fim, segue abaixo uma breve lista das abreviaturas recorrentes:

PH FUNAI STF STJ MPF TRF PF DPF CCPY

Processo Haximu (Fonte Documental) Fundao Nacional do ndio (rgo Pblico) Supremo Tribunal Federal (rgo Pblico) Supremo Tribunal de Justia (rgo Pblico) Ministrio Pblico Federal (rgo Pblico) Tribunal Regional Federal da 1 Regio (rgo Pblico) Polcia Federal (rgo Pblico) Departamento de Polcia Federal (rgo Pblico) Comisso Pr-Yanomami (Organizao-No-Governamental)

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CPP CP CF

Cdigo de Processo Penal (Fonte Documental) Cdigo Penal (Fonte Documental) Constituio Federal (Fonte Documental)

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Sumrio

1. Introduo ...............................................................................................15

2. Captulo I ................................................................................................18

3. Captulo II .............................................................................................39

4. Captulo III ...........................................................................................55

5. Captulo IV ..........................................................................................89

6. Captulo V ...........................................................................................120

7. Concluso ............................................................................................147

8. Anexo ................................................................................................. 143

9. Bibliografia ..........................................................................................179

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Introduo

O antroplogo sul africano Max Gluckman, num estudo do processo judicial nos tribunais Barotse, argumenta que: every [judicial] case is in a sense unique. How is a unique case to be settled? (GLUCKMAN, 1967, :203). A partir da Gluckman se preocupa em dar conta de como os mais diversos casos levados aos juzes Barotse so sedimentados, tendo como norte no s a jurisprudncia e leis gerais dessa sociedade, mas o pano de fundo moral que alicera tais contendas. exatamente tal settlement ou sedimentao de um caso especfico que pretendo analisar na presente dissertao de mestrado, tendo como objeto primeiro os documentos que compem o Processo Judicial originado da chamada Chacina ou Massacre de Haximu, ocasio em que um grupo de garimpeiros brasileiros matou cerca de duas dezenas de ndios Yanomami, fato ocorrido na fronteira do Brasil com a Venezuela no fim do ano de 1993. Penso que o movimento feito pelos especialistas do Direito, de se partir, inicialmente, de um acontecimento nico e, depois de uma apurada discusso e anlise, poder se classificar esse acontecido a partir de um cdigo legal previamente estabelecido, erigindo condutas e punies, no se d de maneira mecnica ou sem conflitos. Por outro lado, nem tampouco estabelece uma hierarquia entre leis gerais que pretensamente abarcariam situaes especficas. Tal procedimento depende, ao menos no que tange ao Direito dito Ocidental (e, num grau menor, tambm entre os Barotse estudados por Gluckman) de um cuidadoso e gradual trabalho de construo e anlise de provas, da escolha e exposio de outros casos tidos como similares, de capacidades e modos diferentes de argio e, enfim, de tcnicas diferentes de um complexo sistema de resoluo de conflitos que tem como norte um arcabouo cientfico ou positivo. No que tange aos Estados Nacionais, tal trabalho quase sempre levado a cabo por uma srie de castas de indivduos altamente especializadas, que monopoliza (ou, para ser mais preciso, visa monopolizar) praticamente todas as aes que podem ser pensadas, de modo geral, como passveis de serem judicialmente tratadas1.1

Com exceo dos chamados Tribunais Especiais ou Tribunais de Pequenas Causas, onde a presena de um advogado formalmente constitudo no se faz necessria, praticamente todas as aes judiciais no Brasil demandam a representao de um especialista desse tipo. Para uma anlise comparativa entre os

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Nesse texto, Gluckman analisa uma disputa especfica entre parentes que visavam definir quem teria ou no direito sobre uma determinada parcela de campos cultivveis. O autor argumenta que this case involved more than the question who had the right to cultivate the disputated gardens. (idem, :75). Com isso, os julgadores barotse tiveram que levar em considerao mais do que a regra dura e geral que dizia que aqueles que no residiam em determinado condado no teriam direito produo agrcola dos campos a situados. A tal procedimento analtico, que visa dar conta daquilo que no est, num primeiro momento, diretamente ligado ao caso que deve ser julgado (mas que acaba efetivamente compondo-o), Gluckman denomina crossexamination - e ele prprio argumenta a examinao-cruzada no est, de forma alguma, ausente nos julgamentos ocorridos nos Tribunais Ingleses ento vigentes na frica do Sul. Como penso em mostrar frente, a examinao-cruzada um expediente de inquirio tambm amplamente usado no Direito pensado e vivido como brasileiro. preciso lembrar que o Processo aqui em foco guarda uma peculiaridade: ao que tudo indica, foi nele que, pela primeira vez, condenou-se algum no Brasil por Genocdio. Tal Genocdio , por sua vez, tambm especial: as vtimas no so simplesmente minorias sociais, religiosas ou raciais. Os Yanomami, na verdade, so todas essas coisas juntas, encapsulados pelo termo tnico ou indgena. Esses so, portanto, os pontos principais que pretendo esclarecer nas pginas que se seguem: primeiramente, foco minha ateno na maneira como o Processo Haximu se sedimenta, tendo como base, principalmente, a evoluo dos depoimentos inquisitoriais e judiciais que o compem e, por outro lado, como tais depoimentos so apropriados pelos diversos especialistas no Direito que tomam parte no caso. Ao mesmo tempo, tento tambm mapear de que maneira um certo de fora do Direito, um certo conjunto de caractersticas que, a priori, podem ser pensadas como no propriamente constitutivas de um caso judicial, vo sendo gradualmente incorporadas aos argumentos daqueles que esto envolvidos nessa disputa. Para tanto, tenho como base principal os textos produzidos pelos defensores legais tanto de garimpeiros como dos sobreviventes de Haximu e, claro, de que maneira tais textos se interpelam mutuamente. Esses dois pontos, como se pode notar, esto sensivelmente intricados e so caudatrios da idia de que o acontecido em Haximu no foi propriamente um assassinato em massa ou um massacre, mas sim um Crime de Genocdio tnico.Tribunais de Pequenas Causas brasileiros, canadenses e estadunidenses, cf. CARDOSO DE OLIVEIRA, 2001.

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Por fim, o prximo captulo uma anlise das notas de campo que escrevi durante a tentativa de conseguir uma fotocpia do Processo Haximu. No segundo, tento contextualizar minimamente toda essa massa documental. J os trs ltimos captulos, dedico anlise do Processo em si. Na Concluso, tento ajuntar mais coerentemente as digresses de todo o texto, alm de esboar possveis desdobramentos do presente trabalho.

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Captulo I: O processo para ter acesso ao Processo Haximu

Esclareo aqui como fiquei sabendo da existncia do Caso Haximu, de que maneira acabei me interessando por analis-lo e como consegui ter acesso a tal massa documental. Logo aps minha graduao em Histria na Universidade de Braslia, durante o primeiro semestre do ano de 2003, fiz um curso como aluno especial no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do PPGAS/UnB, intitulado Estudos Etnolgicos de Problemas Sociais Antropologia da Conquista. Durante as aulas de Alcida Rita Ramos e Ndia Farage no PPGAS/UnB, fiquei sabendo, por relato de Alcida, de um caso judicial que seria a primeira condenao por Genocdio da Justia Brasileira. Entre outros casos relatados, como o de garimpeiros que jogavam de avio roupas contaminadas de doentes hospitalares em aldeias indgenas para dizimar populaes inteiras de ndios, o caso da aldeia Yanomami de Haximu se destacava porque parte dos acusados havia sido presa pela Polcia Federal e condenada nos tribunais nacionais. Tais condenados eram garimpeiros que atuavam na fronteira do Brasil com a Venezuela e que haviam dizimado cerca de duas dezenas de ndios Yanomami, entre crianas, mulheres, idosos e homens adultos. Em outubro de 1993 instaurou-se, depois das investigaes da Polcia Federal de Roraima, um Processo Criminal iniciado por Denncia do Ministrio Pblico Federal (MPF), o que deu origem, oficialmente, ao que venho chamando aqui de Caso Haximu designao comum do prprio Processo para se referir ao evento da morte dos ndios Yanomami. No segundo semestre de 2003, tive contato com uma publicao da Comisso Pr-Yanomami (CCPY2 - Organizao-No-Governamental que participou diretamente do Processo aqui em foco, sendo a primeira a atender os ndios sobreviventes em seu Posto de Sade) sobre o Genocdio relatado por Alcida Rita Ramos. O texto trazia uma pequena parcela dos Autos, mais precisamente a deciso da 5 turma do Supremo Tribunal de Justia (STJ). Devo esse contato preliminar com o Processo a Henyo Trindade Barreto, que no segundo semestre de 2003 ofereceu a disciplina Antropologia Aplicada no PPGAS/UnB, da qual pude participar, novamente,2 No tenho as referncias da publicao em questo, mas os documentos podem ser igualmente acessados atualmente (2006) atravs da pgina eletrnica da CCPY: http://www.proyanomami.org.br/.

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como aluno especial. Apresentei turma os documentos disponibilizados pela CCPY durante um dos encontros da referida disciplina. Henyo tambm foi o responsvel por me indicar onde achar novamente tal documentao, anos mais tarde (cf nota 1, acima). J como aluno regular do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ), decidi analisar tal fonte documental como objeto de minha dissertao de mestrado. Vrios foram os fatores que me levaram a retomar o Caso Haximu: primeiramente, inmeras discusses e textos lidos nos cursos que participei no PPGAS/MN/UFRJ fizeram-me criar gosto e me aproximar cada vez mais do que chamo genericamente aqui de uma etnografia dos arquivos judiciais. Inicialmente, meu intuito era trabalhar com as confisses tomadas pela Inquisio Portuguesa na Amrica no final do sculo XVI, com foco principal nas chamadas heresias indgenas. Contudo, alm de ser praticamente impossvel ter contato com tal documentao em sua plenitude (os originais se encontram na Biblioteca da Torre do Tombo, em Portugal), as discusses e leituras da qual vinha participando acabavam por me sintonizar mais com o Caso dos Yanomami de Haximu do que com as Confisses colhidas pelos primeiros Inquisidores Portugueses na Amrica. importante frisar que as discusses e leituras no se restringiram s disciplinas oficiais do PPGAS/MN/UFRJ: grande parte da inspirao (e tambm das prprias possibilidades efetivas de pesquisa) para se trabalhar com o Processo aqui em foco nasceu dos encontros organizados por Antonio Carlos de Souza Lima e Adriana Vianna entre alguns pesquisadores do Laboratrio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED, da qual eu mesmo fazia parte) e alunos do PPGAS/MN/UFRJ. Assim, alguns meses depois de cursar a disciplina Legalidades e Moralidades, oferecida por Adriana Vianna nessa ltima instituio durante a segunda metade do ano de 2005, decidi que o Processo Haximu seria meu objeto de estudo e, a partir de ento, passei a tentar ter acesso aos Autos na ntegra. A documentao da CCPY trazia a introduo de Luciano Mariz Maia, um dos Procuradores da Repblica que produziu a referida Denncia, dando, como visto, origem ao Processo. Atravs da pgina eletrnica de pesquisa Google3 consegui o endereo de correio-eletrnico de Maia e lhe mandei uma mensagem na qual me identificava como um pesquisador do Museu Nacional que estava procurando ter acesso3

http://www.google.com.br. Os acesso aconteceram durante o 1 semestre do ano de 2006.

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completude dos Autos do Caso Haximu. Maia me informou que no era mais responsvel pelo Processo e me passou o contato de Aurlio Rios, Subprocurador Geral da Repblica que, segundo Luciano, poderia me dar maiores informaes sobre o Caso Haximu. Rios tambm j no estava mais responsvel pelo Processo, encaminhando, por sua vez, meu pedido 6 Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal (6 Cmara/MPF) - que o rgo idealmente responsvel por tratar judicialmente todos os episdios envolvendo ndios e Minorias, como a placa na porta de entrada da 6 Cmara em Braslia deixa claro. Alm da indicao de Aurlio Rios, devo o contato com o pessoal da 6 Cmara, principalmente com sua ento Coordenadora, a Doutora Dborah Duprat, s possibilidades de pesquisa que o trabalho no LACED me proporcionou. Meu primeiro contato com a Coordenadora da 6 Cmara foi durante o Seminrio Interamericano sobre o Pluralismo Jurdico e Povos Indgenas, realizado em Braslia entre os dias 30-11 a 02-12 de 2005 e do qual eu ento participava como representante4

do

Projeto

Trilhas

do

Conhecimento,

de

responsabilidade do LACED . Uma das organizadoras do referido evento era a Doutora Duprat, juntamente com Rita Segato, docente do PPGAS/UnB. Nesse momento ainda no havia me decido por completo se estudaria mesmo o Caso Haximu e no tracei, assim, nenhum contato especial com a Coordenadora da 6 Cmara. Tive, ainda, uma segunda oportunidade de me apresentar pessoalmente Procuradora: ela era palestrante na 25 Reunio Brasileira de Antropologia (25 RBA), ocorrida em Goinia no ano de 2006. Novamente no me foi possvel tecer maiores contatos com a Coordenadora da 6 Cmara, mas Adriana Vianna, que tambm participava da RBA e sabia de meus interesses de pesquisa, se apresentou Procuradora, conseguindo, por fim, apresentar meu tema de pesquisa a ela, que prontamente disponibilizou-se a me ajudar. Entre mensagens eletrnicas e telefonemas, j se passavam trs meses (abril a junho de 2006) que tentava ter acesso aos Autos, sem conseguir qualquer avano alm dos j citados documentos compilados pela CCPY. Resolvi ento viajar Braslia pela primeira vez, mesmo sem conseguir combinar nada previamente para ter acesso a tal massa documental. O Processo se encontrava no Supremo Tribunal Federal (STF), mas decidi ligar primeiro na 6 Cmara, pois a Doutora Dborah Duprat era a nica pessoa4

O Projeto Trilhas do Conhecimento O Ensino Superior de Indgenas no Brasil visa incentivar a insero de indgenas no Ensino Superior brasileiro atravs do fomento implantao de ncleos universitrios modelares e da realizao de seminrios, pesquisas e publicaes voltados ao Ensino Superior Indgena.

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que havia, at ento, se disponibilizado explicitamente a me ajudar. Resolvi ir pessoalmente 6 Cmara, onde prontamente tive acesso a cerca de quinhentas pginas das mais de duas mil que compem o Caso Haximu. Tal acervo documental faz parte de um arquivo que esse rgo mantm sobre os processos em que seus procuradores atuam e devo meu acesso a ele aos contatos que mantive com a Doutora Dborah Duprat. No h a a cpia da ntegra dos Autos, porm me foi possvel acessar os textos com as principais decises judiciais sobre o Caso a Sentena de Primeira Instncia, alguns Laudos Periciais e Recursos a Tribunais Superiores, entre outros. Ficavam faltando, ainda, os depoimentos (nos Tribunais e aos Policiais Federais) de acusados e testemunhas, alm de documentos em que eu pudesse ter contato maior com os argumentos dos defensores dos garimpeiros papis que, logicamente, faltavam tanto na compilao da CCPY quanto na do MPF. Desconfio que praticamente impossvel conseguir acessar qualquer documento nos moldes do Processo Haximu (um caso judicial de grande repercusso, ao menos na poca em que foi noticiado e, at ento, ainda no julgado definitivamente) tendo como contato preliminar apenas mensagens eletrnicas a funcionrios desconhecidos. Enquanto tentava, do Rio de Janeiro, firmar laos mais estreitos e obter maiores informaes sobre os Autos por essa via, a fim de chegar Braslia com as coisas mais acertadas, no consegui nada alm de novos endereos de correio-eletrnicos e reticentes informaes. altamente improvvel que um outsider consiga, de antemo e sem qualquer tipo de intermediao, um contato privilegiado com os escales superiores de instituies como o MPF. De todo modo, as coisas s comearam a mudar quando apareci pessoalmente nos lugares onde antes apenas me correspondia por mensagens de correio eletrnico ou telefone. Essa ltima tecnologia de comunicao, apesar de mais antiga, foi-me muito mais til para acessar informaes que me levariam a conseguir uma cpia da ntegra do Processo. impossvel ignorar um desconhecido do outro lado da linha da mesma maneira que se ignora uma mensagem de correio eletrnico de uma pessoa que conserva esse mesmo status ainda mais quando o desconhecido passa a ligar diariamente, pedindo informaes sempre ao mesmo funcionrio. Porm, no que tange a respostas evasivas, o telefone no to superior ao correio eletrnico.

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Eu j sabia, por intermdio de um funcionrio da 6 Cmara, que o Recurso Extraordinrio5 impetrado pelos advogados dos garimpeiros ao Superior Tribunal Federal (STF) seria julgado em breve. Mesmo ligando ao menos uma vez por dia ao STF, acabei perdendo a data do julgamento e s fiquei sabendo do acontecido um dia depois, por mensagem eletrnica repassada por uma amiga antroploga que sabia de meus interesses de pesquisa. Adianto aqui que consegui toda a documentao do Caso Haximu que havia na 6 Cmara antes de conversar pessoalmente com a Coordenadora dessa repartio pblica mas, claro, usando reiteradamente seu nome, pois, como j dito, ela havia se disponibilizado previamente a me ajudar a conseguir ler os Autos, e sempre usei tal argumento com os funcionrios que me atendiam nas visitas que fazia 6 Cmara. A Doutora Dborah Duprat se disps, por fim, a mediar pessoalmente meu acesso ao Processo e realmente ela conseguiu que uma cpia dos Autos fosse encaminhada 6 Cmara, s que dias depois que eu j havia conseguido fotocopi-los integralmente no STF. Na segunda ida Braslia, foquei minha ateno mais no STF (local onde realmente os Autos estavam) do que na 6 Cmara (para onde a Doutora Duprat havia se comprometido em traz-los). Minha esperana era que, depois de julgado, fosse mais fcil conseguir ter acesso ao Processo na ntegra. Em termos estritamente legais, seria possvel olhar os Autos do Caso Haximu a qualquer momento, pois os mesmos no corriam em Segredo de Justia, sendo, portanto, um Processo Criminal em que a publicidade legalmente garantida. De todo modo, passei a ltima quinzena do ms de agosto de 2006 ligando diariamente ao STF e indo pessoalmente ao Tribunal pelo menos trs vezes por semana. Cito aqui algumas reparties para as quais liguei ou passei, sem nada conseguir: Seo de Informaes Processuais, Seo de Controle de Acrdos, Protocolo Judicial, Protocolo Administrativo (a confuso entre esses dois Protocolos me fez pedir informaes judiciais onde eu s poderia obter notcias do corpo administrativo do STF), Gabinete do Ministro Cesar Peluso, entre outros. Contudo, s pude efetivamente fotocopiar os Autos quando os mesmos estavam na Seo de Xerox do Tribunal. Como na 6 Cmara, o STF tambm guarda uma cpia dos processos que se mostram mais importantes, como me informou o operador da

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Esse tipo de Recurso feito somente ao Supremo Tribunal Federal e precisa envolver algum possvel desrespeito Constituio Federal. Discutirei mais detidamente essa questo frente.

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fotocopiadora. No Caso Haximu, houve um cordo do Plenrio6 desse Tribunal em que se definiu de quem seria a competncia especfica para julgar o Crime de Genocdio, provvel motivo do arquivamento de uma cpia dos Autos nesse Tribunal. necessrio aqui um breve parnteses: em conversas informais com operadores do direito e funcionrios de diversas reparties, descobri que tais decises do Supremo so objeto constante de provas de concursos pblicos para procuradores, juizes e analistas judiciais, entre outros cargos, formando, assim, um corpus de conhecimento acumulado que os juristas batizam de Jurisprudncia. O conhecimento de tal Jurisprudncia serve, entre outras coisas, para medir o grau de atualizao que determinado estudioso do Direito possui frente a um sistema de cdigos legais em constante desenvolvimento. Nessa segunda ida Braslia, havia falado por telefone e, mais tarde, pessoalmente com um funcionrio da Seo de Recursos Extraordinrios da Segunda Turma, que me disse o dia em que seriam feitas as cpias para o arquivo do STF. Combinei ento de visitar a referida Seo exatamente nesse dia 23-08-2006. Este funcionrio pediu que um estagirio seu me acompanhasse at a sala da Seo de Xerox, onde pude requerer uma cpia das 2.304 pginas que compe o Processo, incluindo a nove volumes e quatro apensos. Como me informou um outro funcionrio, ainda na Seo de Xerox, os apensos so compostos, basicamente, de documentos que no tocam o Mrito Principal do caso, como alguns pedidos de liberdade provisria, recortes de jornal e, no presente caso, at mesmo uma fita de vdeo de uma excurso da Polcia Federal aldeia de Haximu vdeo que, at o presente momento, no me foi possvel ter acesso. Os outros volumes, por conseqncia, tratam do Mrito em si o que, de maneira geral, pode ser resumido aos documentos que se referem, primeiramente, ao julgamento dos acusados e, num segundo momento, competncia, no Judicirio Brasileiro, para o julgamento do Crime de Genocdio.

II. O papel dos papis.

Acrdo a deciso de um colegiado de julgadores sobre determinado caso ele faz par com a Sentena, que a deciso de um nico juiz. Plenrio a reunio dos juzes ou ministros que compe as vrias Turmas de um tribunal.

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As situaes com as quais um pesquisador tem que lidar para conseguir certos documentos e, claro, aquilo que orbita em torno deles - so tambm parte efetiva do trabalho de pesquisa de tais fontes. Assim, esforo-me aqui em traar o esboo de uma anlise sociolgica da empreitada narrada acima. Enfatizo o termo certos documentos pois, por exemplo, tive acesso fcil a determinados laudos antropolgicos de outros casos judiciais envolvendo indgenas, tendo apenas que combinar um horrio, por mensagem eletrnica, para buscar as cpias. Em outras ocasies, como na leitura dos cdigos legais citados no Processo, simplesmente acessei a pgina eletrnica de determinada organizao internacional ou repartio pblica para conseguir, na ntegra e com comentrios, a documentao em questo. Porm, como visto, a cpia da ntegra dos autos do Caso Haximu envolveu contatos, negociaes e tenses que merecem um estudo mais detido. Primeiramente, vale voltar a um termo que usei sem maiores ressalvas acima: o funcionrio desconhecido. Na verdade, quem realmente desconhecido, um outsider alheio rotina comum de um tribunal qualquer, o antroplogo que tenta acessar tais documentos. Nas primeiras ligaes que fiz ao Gabinete do Ministro Cesar Peluso, Relator7 do Caso Haximu no STF, os funcionrios sempre estranhavam meu interesse em tentar acessar os Autos. A primeira pergunta que me faziam era: o senhor interessado?. Demorei algum tempo para responder corretamente essa questo, pois por interessado deve-se entender aqueles que acusam e os que so acusados num processo qualquer, tambm denominados genericamente por Requerido(s) (os que so alvo da ao judicial, no caso os garimpeiros) e Requerente(s) (os autores da ao, no caso o MPF, representantes legais dos indgenas de Haximu). Tais pessoas tm acesso privilegiado aos autos justamente porque so elas que, em termos nativos, deram-lhes origem, alimentam-no e sobre o destino delas que o processo versar. Assim, eu tinha, sem dvida, interesse no Caso Haximu, mas ele divergia sobremaneira dos que, na linguagem judicial, so os interessados. Conversando principalmente com analistas e tcnicos judiciais, que so as pessoas que atendem primeiramente qualquer um que chegue buscando informaes num tribunal, tento compreender melhor parte da tenso envolvida em ter acesso a um processo.

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Membro de um colegiado de julgadores que responsvel por fazer a leitura mais detida de um processo, escrevendo um Relatrio sobre o caso, apresentado, mais tarde ao colegiado como um todo.

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Vale aqui um novo parnteses: a diferena fundamental entre um tcnico e um analista que o primeiro ganha um salrio menor e presta um concurso pblico de nvel mdio para ser funcionrio num tribunal, enquanto o ltimo tem um ordenado sensivelmente maior e, por ttulo, necessita do diploma de bacharel em Direito para assumir o cargo. No que tange ao trabalho feito, contudo, ambos parecem exercer funes similares: atendem aqueles que chegam pedindo informaes sobre os processos em andamento, revisam os textos das Sentenas, Votos ou Relatrios dos juizes, quando no so eles mesmos que escrevem tais documentos. Cheguei a conhecer um tcnico que ganhava mais que um analista pois o juiz responsvel reservou uma Funo Comissionada (abono salarial considervel) ao primeiro em detrimento do ltimo. Tal tcnico judicial, quando me atendeu, escrevia o Voto8 do juiz num caso a ser julgado em breve. Algumas visitas depois, ele me esclareceu que esse um expediente comum entre os que ganham a tal Funo. Assim, apesar de ocupar um cargo de nvel mdio, ou seja, sem possuir o diploma de bacharel em Direito, tal funcionrio redigia documentos que, aps uma rpida passagem de olhos, seriam assinados pelo juiz responsvel - segundo o relato do prprio tcnico, claro. Voltando ao caso aqui em foco, depois de alguma insistncia, conseguir falar, por telefone, com a Chefe de Gabinete do Ministro Peluso todos os outros funcionrios foram reticentes em dizer se eu poderia ou no fotocopiar o processo. Ela me informou que seria preciso uma carta escrita por minha orientadora, timbrada pelo Museu Nacional e mandada, com registro dos Correios, ao Gabinete do Ministro. Depois de avaliar tal carta, a Chefe de Gabinete autorizaria ou no meu acesso ao Processo. Dias depois, a Doutora Dborah Duprat, Coordenadora da 6 Cmara, informou-me que esse expediente comum e necessrio, e que a referida carta poderia, inclusive, ser anexada ao Processo o que, segundo ela, mostraria que o pessoal do Museu Nacional est interessado no caso. De todo modo, a carta 6 Cmara foi mandada, mas, antes de envi-la tambm ao Gabinete de Peluso, consegui, como j dito, fotocopiar os Autos na Seo de Xerox do STF. Todo esse cuidado com quem pode ou no folhear um processo (principalmente se ele ainda no foi arquivado) se deve, entre outros fatores, a um motivo relativamente simples: h sempre o perigo de tais documentos serem destrudos, roubados ou8

O Voto um parecer apresentado por um julgador frente a um colegiado de julgadores, demonstrando qual a posio desse magistrado especfico sobre o caso em questo. Cada julgador, inclusive o Relator, apresenta um Voto.

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adulterados, principalmente pelos Interessados. So comuns as anedotas entre tcnicos e analistas, que contam casos de advogados que literalmente comeram as folhas dos autos para sumir com alguma evidncia ou documento. Num caso menos dramtico, um tcnico judicial me narrou a seguinte histria: um advogado havia entregue um documento a ele em branco, ou seja, no devidamente assinado. O funcionrio s notou isso depois, juntando outro documento ao primeiro que dizia que este ltimo no tinha efeito, j que no assinado pelo advogado. O advogado, dias depois, voltou ao Tribunal em questo e, sem que o funcionrio visse, sumiu com o segundo documento produzido pelo tcnico judicial e assinou o documento que ele mesmo havia esquecido de assinar dias antes. O problema que o advogado no poderia simplesmente ter assinado o documento mais tarde, pois o prazo para o pedido que ele fazia j havia se esgotado nesse interregno. A partir de tal acontecido, o tcnico guarda agora uma cpia de tudo que ele faz num processo em sua gaveta pessoal de trabalho, e toma especial cuidado com as visitas de todos que querem olhar os autos. Tanto tcnicos como analistas dizem que o ideal que sempre exista um funcionrio vigiando qualquer um que folheie qualquer processo. Assim sendo, nunca se permite que algum tenha acesso a tais documentos fora do balco de atendimento, o que faz com que seja necessrio um pedido oficial para retirar os autos, ainda que seja para uma simples fotocpia. Por outro lado, igualmente impossvel que se consiga ler quase duas mil e quinhentas pginas de p, apoiado apenas em um balco. Como se pode notar, h, nesse contexto, uma forte valorizao da documentao escrita. Como deixarei mais claro quando estiver analisando os depoimentos dos envolvidos no Processo, tudo o que dito, pedido ou oficialmente requerido numa disputa judicial precisa constar em documentos escritos nos autos. Ressalvo, contudo, que tais documentos no do conta, exclusivamente, de tudo que acontece num processo. claro que existem comentrios em testemunhos judiciais que so suprimidos e no aparecem na verso escrita, h discusses nos tribunais entre juzes e representantes das partes que no so anotadas por escrito enfim, existe todo um silncio dos documentos que central numa disputa qualquer mas que no , contudo, incorporado aos autos. No me foi possvel acompanhar tal faceta no Processo aqui em foco e, como j dito, centro-me apenas na verso condensada em documentos dessa contenda judicial

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Nesse sentido, cabe dar maior ateno ao papel dos papis num processo judicial. Jack Goody, numa anlise focada na apropriao da escrita por diversos grupos humanos, mais particularmente pelo Ocidente (GOODY, 1986), chama ateno para o fato de que a escrita no apenas uma nova tcnica de comunicao. Para o autor, a escrita muda tambm a natureza das interaes sociais, uma vez que altera as prprias possibilidades de comunicao. , portanto, uma nova forma de sociabilidade, diferente da forma oral, com outras propriedades e caractersticas gerais: The uses of writing affected not only the forms of interaction but also helped to change the nature of its rules, substituting the variable utterance for the fixed text (Goody, 1986:99). Esclarecendo melhor tal ponto, o argumento geral de Goody de que a introduo da escrita, tanto no campo do Direito quanto no da religio, por exemplo, pode dar margem a um maior e mais eficaz controle social sobre os indivduos, tanto entre os crentes quanto entre os operadores judiciais. Contudo, para o autor, a escrita pode ser usada tanto para estabilizar quanto para desestabilizar uma instituio ou organizao social qualquer: writing gets used not only to promote government and participation in government but to attack the existing regime, by mass communication where the democratic system permits, by samizdat where it does not (Goody, 1986, :121). Segue-se, numa nota (Goody, 1986:191, nota 13 do captulo 3), um breve comentrio sobre a Revolta dos Mals no Brasil e como ela foi potencializada, em sua organizao, pelo fato dos revoltosos poderem se comunicar por uma linguagem escrita que era desconhecida pelos senhores de escravo. Porm, como j dito, o norte do autor mostrar como, por exemplo, uma ordem escrita como um Mandado de Priso mais exata, individualizada e direta que uma ordem oral, atando mais eficazmente o mandatrio prpria ordem. exatamente tal faceta coerciva da escrita que explorarei nas pginas que se seguem. Voltando ao Caso Haximu, a desconfiana constante com os processos ainda em andamento , penso eu, um dos motivos do pedido de uma carta de apresentao institucional pela Chefe de Gabinete de Peluso. A carta me situaria, diria oficialmente de onde eu vinha e porque queria ler os Autos podendo ser mesmo ajuntada ao processo, como sugeriu a Doutora Dborah Duprat. Eu deixaria de ser, assim, um simples curioso ou uma potencial ameaa. Estaria filiado a uma instituio maior e, caso 27

algo acontecesse ao Processo, seria possvel saber mais tarde de quem cobrar e onde me achar. Contudo, todos esses esclarecimentos eu j havia feito verbalmente em vrias reparties do prprio STF, explicando que eu era um pesquisador em antropologia interessado no Caso Haximu, apresentando, inclusive, documentos que comprovavam tal identidade. No consegui, porm, ler uma pgina dos Autos nessas ocasies, nem mesmo no balco do STF. O que vale a pena notar que tal identificao teria que ser feita por escrito e com a assinatura de algum responsvel superior no caso, minha orientadora, funcionria de uma outra instituio pblica, o PPGAS do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No bastava dizer quem eu era: era preciso atestar isso por escrito, numa mdia que pudesse ser impressa e arquivada nos Autos9. H aqui um paralelo entre tal carta e o documento que o advogado esqueceu de assinar: certos papis que se encontram num processo no so meros papis; eles so produzidos por detentores de uma autoridade especfica que os fazem adquirir um poder especial inclusive o de transferir o poder de representar legalmente os Interessados, como na situao em que um advogado delega, por Procurao, poderes ao colega de profisso que reside em outro estado e que tem melhores condies de conseguir atuar num caso determinado. Jack Goody, no trabalho j citado, argumenta que o ato de assinar um documento pode ser visto como a substitute for the person [...]. But it is not only a card of identity, as individual as the print of the finger or the hand, but also an assertion of truth or of consent (Goody, 1986:152). Nesse sentido, a assinatura no somente garantidora da individualidade das pessoas, mas o prprio signo da veracidade dos documentos, uma espcie de atestado de autoria e reconhecimento de poder. preciso lembrar, contudo, que tais poderes representados nos documentos so dependentes de uma complexa srie de intervenes autorizadas e autorizadoras que, no caso do advogado, girava em torno da sua prpria condio de bacharel em Direito inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil10, da assinatura do documento, da entrega

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Jack Goody, em estudo j citado, faz o seguinte comentrio sobre os casamentos na Amrica espanhola: All unwritten marriages are consequently defined as common-law unions or as some form of concubinage. Under such a system, Are you married? means Have you got written proof of having spoken certain written formulae? (: 158). Assim, no basta apenas dizer que se casado: preciso ter a prova escrita de tal casamento.10

Ana Lcia Lobato de Azevedo (AZEVEDO, 1998), na anlise da contenda judicial de um grupo Potiguara frente ao de fazendeiros locais, nota que o depoimento de uma testemunha dos ltimos foi redigido diretamente pelo depoente, em deferncia do juzo por se tratar de bacharel em direito (Idem, :156, apud prprio depoimento). Em nenhuma passagem do Processo Haximu h algo parecido, mas o

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do mesmo no prazo correto, entre outros artifcios. Contudo, volto a tal tema mais detidamente nos prximos captulos dessa dissertao, deixando claro, de antemo, que no fiz uma etnografia exaustiva de tal conjunto de ingerncias que garante a especialidade de certos documentos. Os relatos que apresentei at aqui e os que se seguiro so, como j dito, apenas uma breve tentativa de enxergar uma sociolgica nas esparsas situaes que tive contato enquanto tentava acessar uma pea judicial especfica. H de se notar tambm que todas as dificuldades para se ter acesso a tais documentos pareceram se desmontar quando consegui ler os Autos pela primeira vez. Depois de ter feito as fotocpias no STF, seria possvel ler o Processo mais confortavelmente na Seo de Recursos Extraordinrios da Segunda Turma, como fui informado em outras ligaes que fiz aps conseguir a ntegra do Processo. Como visto, poderia tambm t-lo lido no Gabinete da Coordenadora da 6 Cmara tudo isso depois de j ter as fotocpias em mos. De todo modo, no que os empecilhos que narrei at aqui simplesmente tinham deixado de existir depois que consegui uma fotocpia dos Autos: que eles no operavam mais da mesma maneira para quem havia se tornado relativamente conhecido. Isso no quer dizer que a exibio de tais dificuldades para os desconhecidos seja apenas mera retrica sem sentido ou simples encenao. A apresentao, num primeiro momento, de uma regra rgida e impessoal para se ler o Processo parece ajudar a filtrar quem realmente est disposto a se esforar em cumpri-las ainda que, mais tarde, essas regras parem de operar e seja possvel acessar o Processo com maior liberdade. Assim, tal acesso ao Processo no problemtico apenas porque se tem medo de perder os importantes papis que o compem. H tambm um jogo de quem se conhece, de quem visto e se deixa ver, enfim, de quem consegue se inserir um pouco no cotidiano de uma repartio pblica e passa a ser visto, gradualmente, como menos estranheza. Ou, por outro lado, de quem tem indicao de um funcionrio superior com ordens explcitas para que se deixe um terceiro ler tais documentos, como no caso das intervenes feitas a meu favor pela Doutora Dborah Duprat. Sobre o Processo em si, interessante notar, primeiramente, que pelo simples fato de um papel constar nos Autos, ele ganha, no mnimo, uma numerao nica, umexemplo pode servir para melhor matizar o poder dos especialistas no Direito, mesmo quando eles no so os representantes diretos das nenhuma das partes numa contenda judicial.

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carimbo especfico com a data em que foi ajuntado e entra numa ordem cronolgica de arquivamento junto com uma srie de outros documentos11. O novato funcionrio da Seo de Xerox do STF que me atendeu disse que alguns advogados que l pediram fotocpias de processos reclamaram que faltavam pginas no servio feito por ele. Contudo, o funcionrio esclareceu que deixava apenas de fotocopiar pginas totalmente em branco - o que comprometia, claro, a contagem total das folhas dos autos. A partir de ento, o operador da fotocopiadora passou a fazer cpias de tudo nos processos, inclusive dos versos dos documentos. Tive que fazer um pedido especial para que ele no fotocopiasse tais pginas no servio que fazia para mim. Esse ponto merece uma ateno maior: h carimbos especficos no verso de tais folhas (ou nas folhas em branco) onde se l, em letras garrafais, apenas expresses como FACE EM BRANCO ou EM BRANCO. H a o pressuposto de que aquilo que consta nessas pginas tem uma fora tal que algum mal intencionado poderia abusar desse poder, escrevendo nos versos dos documentos ou nas folhas em branco algo que deturpasse seu sentido original. Assim, como bem nota Jack Goody, o que prova ou no a existncia judicial de algo no a palavra empenhada (como o condenado Zande tem a boca amordaada para no amaldioar aqueles que proferem a sentena) mas sim a palavra escrita (o condenado ou os interessados assinam um documento para dar cincia do que foi decidido) (GOODY, 1986, :151). Contudo, o autor ressalta que a escrito no engessa ou torna as mudanas impossveis no aparato judicial pelo simples fato da criao e arquivamento de uma mdia escrita: The norms of written religions often remain guides to ideal rather than to practical action, for saints rather than for sinners. To translate these general norms into everyday terms often requires a set of oral adjustments, or even written commentaries, which may serve both to interpret and even to change the law (Goody,1986:167). Na tentativa de apenas esboar melhor a dimenso desse poder conferido aos papis ajuntados no Processo, relato uma situao narrada como comum por determinado tcnico judicial: esse funcionrio me disse que certos condenados so11

Essa ordem perpassa todos os nove volumes do Caso Haximu a no ser pela Denncia, primeiro documento dos Autos, mas que cronologicamente anterior ao Inqurito Policial. Aps o Inqurito, todos os documentos seguem uma ordem cronolgica direta. Para uma viso melhor do que acabo de descrever, conferir a tabela data/documento das principais peas aqui analisadas, anexada no final da presente dissertao.

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presos dentro do prprio tribunal, no exato momento em que esto lendo o processo que so Interessados. Ele ressaltou que funcionrios experientes, quando pedem a identidade de algum para que o ltimo possa olhar os autos, conferem se h algum documento no processo que exija a priso imediata dessa pessoa. Em caso positivo, antes de levar o processo ao balco, o funcionrio liga para a segurana do tribunal e pede que um policial militar (sempre h um por perto, principalmente nas varas criminais, me esclareceu ele) prenda o indivduo. Assim, o Interessado levado cadeia no momento preciso em que l o documento que o condena. Sobre o Processo Haximu, interessante notar que a capa de todos os volumes contm a inscrio, em caixa alta e negrito, RU PRESO12. Ainda sobre a fora de certos papis num processo, h uma conhecida mxima entre os operadores do direito no tocante a tais documentos: se no est nos autos, no est no mundo. Max Weber, em sua anlise clssica sobre o campo jurdico, chama ateno para que aquilo que o jurista, com seu acervo conceitual no pode construir, no podendo pens-lo, no pode existir juridicamente (WEBER, 1999, v. II, :32). Como tentarei mostrar a seguir, grande parte da contenda judicial em torno do Crime de Genocdio est relacionada discusso de como classificar, em termos jurdicos, o que conformaria tal Genocdio. Assim, alguns julgadores entendem que tal Crime atentou, primeiramente, contra o direito individual vida de cada um dos Yanomami o que tornaria o Caso julgvel apenas pelo Tribunal do Jri. Por outro lado, os Procuradores do MPF constroem o mesmo Genocdio como ameaa, em substncia, vida coletiva dos habitantes de Haximu e os garimpeiros, nessa verso, no queriam matar apenas um ou dois ndios, mas dar cabo de todos os Yanomami da Aldeia. Nessa ltima situao a competncia de julgamento no seria do Jri Popular, mas do Juiz Singular, como analisarei frente. Assim, possvel dizer que o conflito em questo no apenas mediado e resolvido pelo judicirio, mas em grande medida tambm criado dentro do vocabulrio e possibilidades do prprio campo do Direito. No mesmo sentido, Pierre Bourdieu, num artigo que visa justamente abordar as possibilidades de uma sociologia de tal campo, argumenta que le champ juridique est le lieu dune concorrnce pour le monopole du droit de dire le droit (BOURDIEU, 1986, :4) - ou seja, as disputas judiciais se pautam,12 Maiu Borba, Bacharel em Direito, me esclareceu que tal inscrio serve tambm para que se d prioridade na tramitao de processos em que o ru j est preso e, portanto, j cumprindo uma pena da qual ele poder ser, mais tarde, inocentado.

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de antemo, na idia de que toda demanda entre os disputados deve ser construda, para ter validade, dentro de um arcabouo judicial especfico (prazos, assinaturas e um vocabulrio especial compe, entre outras coisas, tal arcabouo). Os demandantes, nesse sentido, so representados por especialistas do Direito que iro traduzir suas demandas em termos jurdicos. A disputa, a partir de ento, no se d mais entre dois indivduos que discordam em determinado ponto, mas sim entre expertos que, como tambm chama ateno Bourdieu no texto j citado, so capables de mobiliser les resources juridiques disponibles par lexploration et lexplotation des regles possibles et de les utiliser efficacement, cest--dire comme des armes symboliques, pour faire triompher leur cause (Idem, :8).

III. Sociabilidades distintas e complementares Detenho-me aqui nos tipos de interao que tracei para conseguir acesso ao Processo. Como j argumentei, penso ser bastante improvvel que se tenha contato com qualquer documento comparvel aos autos Haximu (um caso judicial de relevncia e ainda em andamento) tendo como contato preliminar apenas mensagens de correio eletrnico a funcionrios que no me conheciam. Como tambm j disse, muito mais difcil evitar um inoportuno pesquisador por telefone do que pela Internet. Graduando melhor tais interaes, penso que a o contato face-a-face foi primordial para conseguir fotocopiar na ntegra o objeto primeiro da presente dissertao e, claro, tambm entender parcialmente o contexto em que ele foi produzido. Nas interaes exclusivamente por telefone, era comum que me pedissem que ligasse outro dia, pois o funcionrio responsvel no poderia me atender naquele momento. No muito improvvel, por outro lado, que se espere minutos a fio a transferncia de um telefonema e, no final, a linha caia. O pior que, quando se liga novamente, segundos depois, no se consegue falar com o funcionrio que se falava anteriormente porque ele est, agora, ocupado. preciso, ento, explicar novamente o motivo da ligao e, a partir da, ter a sorte de falar com algum que no corte o dilogo rapidamente, dizendo que ir, mais uma vez, transferir a ligao. Contudo, visitando regularmente a repartio onde se encontra o documento, trajando sempre terno-egravata enfeitado com um crach de visitante, corre-se o bom risco de ser confundido com um advogado ou outro especialista do Direito. A partir da mais fcil escutar e, 32

por vezes, at tomar parte em conversas que no esto diretamente relacionadas ao objeto primeiro da visita como as histrias transcritas na subseo anterior. Quando se passa a conhecer um funcionrio pessoalmente (face-a-face), sabendo seu nome, a seo em que trabalha e a funo que exerce, conversas por telefone e mensagens de correio eletrnico mudam de tom. Se a pessoa que atende no exatamente aquela que se conhece, pode-se pedir para que ela chame o outro funcionrio sem maiores problemas. Nessa nova interao, raras vezes ocorreu de me dizerem que o funcionrio com quem eu gostaria de falar estava ocupado. Alm disso, quando eu pedia para falar diretamente com algum, quase nunca me perguntavam qual era o meu problema a nica vez que isso aconteceu com algum que eu j conhecia pessoalmente foi quando tentei conversar diretamente com a Coordenadora da 6 Cmara. Assim, eu havia aparecido pessoalmente algumas vezes na Seo de Recursos Extraordinrios da 2 Turma; havia conversado com seu Chefe e vrios funcionrios que l trabalhavam sabiam que eu era um antroplogo com interesses de pesquisa no Caso Haximu. Pelas conversas que tive, provvel que nenhum deles desconfiasse que eu pudesse estar interessado em fazer um estudo de tal pea judicial e do que girava em torna dela - ou seja, tambm deles prprios, ao menos em parte. Penso que, pelo fato do Processo envolver um grupo indgena e eu me identificar como um antroplogo social, tomava-se como certo que eu estava interessado somente nos aspectos indgenas do mesmo, por assim dizer. Mais de um funcionrio comentou comigo que o acontecido com tais ndios era um absurdo e que os brancos no poderiam tratar os silvcolas dessa maneira. Um funcionrio mais prestativo, justamente o que me indicou o dia em que os Autos estariam na Seo de Xerox, perguntou porque eu queria fotocopiar o Processo inteiro se eu estava apenas interessado em estudar os ndios. Esclareci, ento, que meu objeto de estudo no era exatamente os ndios, mas a resoluo, pelo Judicirio Brasileiro, de um determinado conflito entre ndios e garimpeiros. Contudo, de maneira geral, tal confuso foi positiva pois, a partir do momento em que se colava minha ocupao de pesquisador em Antropologia com a de um estudioso dos Yanomami de Haximu, diminua visivelmente o incmodo sobre meu interesse no Processo. Nesse sentido, preciso contextualizar a j citada frase da Coordenadora da 6a Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal. Quando a Doutora Dborah Duprat ressaltou que, a partir do momento que eu mandasse uma carta oficial seria mais fcil mostrar que o pessoal do Museu Nacional est interessado no caso, 33

provvel que ela estivesse fazendo uma correlao com outras organizaes que aparecem no Processo - como a CCPY, que pedia informaes sobre os Autos no intuito explcito conferir se os garimpeiros seriam ou no condenados. A partir do momento que me identifiquei como um mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, penso que, como outros operadores do Direito, a Coordenadora da 6 Cmara de Coordenao e Reviso - ndios e Minorias, me viu mais como um etnlogo engajado do que como um pesquisador indevidamente curioso. Antes de passar anlise interna dos Autos, gostaria apenas de esclarecer que no estou argumentando, frente a todos os diversos interessados no processo que relatei acima, que pretendo fazer um estudo neutro, diferente daqueles que no tm uma postura cientifica para analisar tais documentos, como se poderia pensar dos Interessados a que fiz referncia acima. Ao contrrio: tentei deixar claro nesse primeiro captulo que, na procura pelo Processo Haximu, eu tinha, claro, um interesse especfico mas que diferia pontualmente de outras pessoas que tambm procuravam ler os Autos. Alm desse interesse particular, procurei mostrar, nessa ltima parte, que os responsveis pelo arquivamento de tais documentos (ou aqueles que tm a possibilidade de franquear o acesso de diferentes pessoas aos autos, mas que muitas vezes no se confundem com os primeiros, a exemplo da Doutora Dborah Duprat) necessitam situar minimamente qualquer um que venha a pedir acesso a determinado processo - e, baseado nessa classificao, dizer se ele pode ou no ter contato com tal massa de documentos. Essa classificao, claro, nem sempre condiz com os interesses que o classificado realmente tem (ou, no mnimo, pensa ter) e essa espcie de gap ou mal entendido entre funcionrios do Judicirio e, no presente caso, um pesquisador em Antropologia Social, foi uma boa porta de entrada para colher pistas em que pude entender melhor o que orbita em torno dessa massa documental. Adianto que no prximo captulo tentarei contextualizar melhor o Caso Haximu, passando, em seguida, anlise dos documentos em si. Contudo, voltarei reiteradamente a determinados temas aqui tratados, a fim de concaten-los melhor com passagens especficas presentes nos documentos que compe o Caso Haximu.

IV. O Recorte dos documentos

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Primeiramente, a seleo do material que me detenho se baseia, em grande medida, nos documentos (ou excertos deles) que, durante as leituras que fiz do Processo, foram se repetindo nas argumentaes de Advogados, Procuradores, Juzes e outros pensadores ou operados do Direito13. De certo modo, tomo como norte uma seleo nativa, j existente no Processo, ainda que no de maneira explcita. Para dar um exemplo, h vrios excertos de depoimentos que iro se repetir constantemente nos Autos, o que faz com que eu me detenha especialmente nesses documentos e nos prprios excertos. exatamente esse o caso do Relatrio do antroplogo Bruce Albert, por exemplo, a ser analisado no captulo III. Por outro lado, minha idia de que o Processo se sedimenta, de que construdo, gradualmente, uma espcie de ncleo duro que ser a base das argumentaes tanto de Requeridos como de Requerentes a percepo desse movimento s foi possvel depois de voltar a documentos que at ento eu havia dado pouca ou nenhuma ateno. Exemplo disso so os Termos de Declaraes dissonantes que analisarei a seguir: eles nunca sero citados posteriormente e, como deixo claro no captulo III, isso se d por uma espcie de emoldurao gradual de alguns temas no Processo. Assim, no que tange ao tipo de documentos que escolhi para embasar a presente anlise, eles so exatamente da mesma categoria daqueles que embasaram, por exemplo, a Denncia dos Procuradores do MPF que d incio ao Processo: Termos de Declaraes ou Depoimentos Judiciais, Laudos Periciais e, mais tarde, as Decises, Acrdos e Recursos dentro dos diversos Tribunais por onde os Autos estiveram. Isso se d porque estou particularmente interessado em mapear como, no Processo, se sedimenta determinada idia sobre o acontecido com os Yanomami de Haximu e a Denncia, documento que primeiramente elabora um modelo terico para isso, foca-se prioritariamente nos Depoimentos Policiais e nos Laudos Periciais. Contudo, deixo claro aqui que essa uma possibilidade de recorte (e, conseqentemente, tambm de anlise) especfica: no presente estudo, dou pouca ou, por vezes, nenhuma ateno a documentos como os Ofcios e Despachos de Assessores ou Diretores de Secretaria, Pedidos de Vista, Atestados de Recebimento e outros papis que poderiam ser situados mais prximos da parte tcnica do que da cientfica do Processo14 e estes compem boa parte das cerca de duas mil e quinhentas pginas dos Autos. Cheguei a mapear a grande maioria deles(cf. a Tabela Tempo/Documento no13 14

Trabalharei tal diferenciao entre pensadores e operadores do Direito nos prximos captulos. Cf. Nota 11.

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Anexo), porm o fiz mais no intuito de ter alguma noo de quando e por onde passou o Processo, e no propriamente para analisar como se deu esse trmite. Esclareo que meu recorte no se baseia na pr-noo de que tais documentos seriam meras peas burocrticas ou administrativas e, portanto, pouco interessantes para a anlise. Na verdade, como visto acima, foi a partir de um Pedido de Vista15 de um Diretor de Secretaria, levando o Processo para a Seo de Xerox do STF, que consegui ler toda a documentao que analisarei a seguir. Do mesmo artifcio usou a Procuradora Dborah Dubrat para me disponibilizar, alguns dias depois, tais documentos na 6 Cmara do MPF. Porm, o estudo mais detido desse tipo de documentao seria impossvel sem uma empreitada comparativa com outros processos judiciais. Alm disso, aquilo que inicialmente me chamou mais ateno no Processo (mesmo antes de consegui-lo na ntegra), no foi exatamente sua tramitao, mas sim a discusso, dentro do Judicirio Brasileiro, de como tipificar, julgar e punir o Crime de Genocdio. Assim, na anlise que agora apresento, focalizo meu esforo interpretativo mais em documentos como Votos, Sentenas e Acrdos do que nos Pedidos de Vistas, Ofcios Internos ou Atestados de Recebimento. Vendo tal recorte de outra forma, podese dizer que estou menos preocupado com os documentos produzidos por funcionrios dos Tribunais para outros funcionrios dos Tribunais (os Pedidos de Vista entre as vrias reparties de um Tribunal, por exemplo), do que aqueles documentos que sero produzidos para que as Partes atuem no Processo e, claro, tambm os papis produzidos pelas Partes para figurarem nos mesmo.

V. A diviso dos captulos Dividi a anlise do Processo Haximu em 5 partes: no captulo imediatamente posterior ao presente dedicado a uma contextualizao mnima sobre o surgimento e o pano de fundo geral no qual o Processo se origina. No captulo III incio a anlise dos documentos em si. Ignoro, de incio, o primeiro documento dos Autos (a Denncia do MPF) e detenho-me no estudo das cerca de quinhentas pginas que compe o Inqurito Policial. Minha preocupao principal, nesse momento, ser mostrar como o Inqurito

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Defino melhor essa categoria no captulo III

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uma pea a ser domada a fim de ser tornar minimamente coerente (em termos judiciais) e, por outro lado, como o Relatrio de Bruce Albert, antroplogo especialista nos Yanomami e membro da CCPY, central na construo dessa espcie de harmonia do Processo. J no quarto captulo, volto Denncia do MPF e debruo-me no mapeamento da construo judicial do Crime de Genocdio pelos Procuradores da Repblica. Tal inverso dos documentos dos Autos faz-se necessria justamente para entender como os Procuradores conseguem descrever os ataques de garimpeiros que conformam o Caso Haximu de maneira minimamente coerente, sem contradies. tambm nesse momento que comeo a matizar melhor o que tpico da fase propriamente judicial do Processo (posterior ao Inqurito) e como se conformar os primeiros embates entre os Interessados no Caso. Nesse momento (captulo V) atenho-me discusso judicial do Crime de Genocdio - ou seja, como a tese dos Procuradores vai ser recebida pelos diversos julgadores que tomam parte no Processo e de que maneira ela ser combatida pelos defensores legais dos garimpeiros. Analiso ento a espcie de reviravolta judicial que o Caso Haximu sofreu com a anulao da primeira deciso judicial e, por outro lado, como se d, j na ltima instncia do judicirio brasileiro (o Supremo Tribunal Federal, STF), a deciso que, ao que tudo indica, finaliza o Processo objeto da presente dissertao. Ressalvo que minha anlise do Crime de Genocdio tem como ponto central (porm no exclusivo) o Processo Haximu. Contudo, uma investigao mais aprofundada de tal categoria teria, por exemplo, que mapear minimamente o contexto poltico europeu ps-2 Guerra Mundial - perodo em que se criou todo um aparato legal, alicerado em nascentes instituies supra-nacionais, visando dar as caractersticas gerais e prevenir atos genocidas por todo o mundo. A prpria lei16 que tipifica tal Crime no Brasil, datada de 1956, tem como norte tratados e convenes surgidas nesse contexto. Todavia, tal empreitada superaria em muito o exguo tempo disponvel para a pesquisa e escritura da presente dissertao. Com isso, ignoro, nas pginas que se seguem, toda uma complexa discusso sobre as origens histricas do16

Lei No. 5.010 de 30 de maio de 1966, retirada da pgina oficial da Presidncia da Repblica: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5010.htm, em 12/10/2006.

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Genocdio - que, claro, firmam razes para alm do Processo Haximu e do campo judicial brasileiro, o que demandaria um investimento de pesquisa que no me foi possvel dar conta satisfatoriamente at o presente momento. Por outro lado, dou especial ateno aos Cdigos Legais citados durante todo o Processo, analisando-os como peas relativamente independentes, porm sempre concatenadas ao caso especfico narrado nos Autos. Pretendo, assim, focar minha ateno na maneira como o Crime de Genocdio trabalhado numa pea judicial determinada, pea essa que tem como norte o julgamento de um conflito especfico: a morte de cerca de duas dezenas de ndios Yanomami por garimpeiros brasileiros na fronteira do Brasil com a Venezuela no fim do ano de 1993.

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Captulo II: o pano de fundo do Caso Haximu

impossvel analisar satisfatoriamente o Caso Haximu se no se fizer uma contextualizao mnima de como o acontecido na aldeia Yanomami de Haximu no fim do ano de 1993 acabou sendo apropriado como um processo judicial. Esse esforo no meramente acessrio: ele central para que se possa matizar a posio tomada pelas Partes17 no andamento da contenda nos Tribunais. Alm disso, um olhar no diretamente voltado dinmica interna do Direito ajuda a entender melhor a prpria diviso de documentos dos autos. Como exemplo, basta notar que todos os papis classificados como no-propriamente judiciais do processo, como os recortes de jornal, figuram nos volumes denominados Anexos apartados, portanto, dos documentos tidos como completamente judiciais. A prpria organizao dos documentos visa, portanto, limpar da contenda aquilo que no pode ser diretamente apropriado na discusso judicial em si o que obriga a uma busca fora do processo, visando aquilo que, em certo sentido, o prprio processo visa dar conta. Assim, dedico a primeira parte do presente captulo para a discusso de como se originou o Caso Haximu. Nesse momento me distancio parcialmente das fontes documentais que perfazem os autos, tentando situ-las melhor num plano mais geral. A ltima seo do captulo tentar mapear como esse aparentemente de fora do processo na verdade lhe compe.

I. O Massacre e os massacres Como se poder notar na anlise que se seguir, a documentao produzida pelos Procuradores representantes dos Yanomami mais complexa e, em termos legais, melhor elaborada que a dos advogados ou defensores pblicos dos garimpeiros. fcil notar que o Caso Haximu exigiu, por parte desses funcionrios do Ministrio Pblico Federal, dedicao e exposio maiores que em outros casos similares. Primeiramente, porque existiram vrias reviravoltas na prpria discusso judicial do processo, fazendo

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Para a discusso da categoria nativa Partes, conferir a definio anloga de Interessados, no captulo I

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com que a contenda nos Tribunais se prolongasse por vrios anos, como mostrarei nos prximos captulos. Porm, um outro fator parece ter influenciado a ao desses especialistas: o Caso Haximu teve uma repercusso mpar na mdia e na poltica tidas como nacionais. Para iniciar, o relatrio de Bruce Albert, pea central no processo, como mostrarei a seguir, foi publicado, de maneira adaptada, no jornal Folha de So Paulo ainda no ano de 1993. Em outro exemplo, um delegado da polcia federal, ainda no inqurito policial, argumenta que a cena do crime pode ter sido alterada pois jornalistas de todo o Brasil haviam chegado Aldeia Haximu antes mesmo dos peritos da PF. De todo modo, o pano de fundo no qual me apoio para caracterizar o Caso Haximu como especial no so somente as pistas colhidas nos prprios documentos dos autos. Pude fazer uma breve, porm esclarecedora pesquisa no arquivo do antigo Projeto Estudo sobre Terras Indgenas no Brasil (PETI), localizado no Laboratrio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (LACED/MN/UFRJ)18 As informaes que se seguem foram todas retiradas do arquivo citado e de conversas informais que tive com Antonio Carlos de Souza Lima. Primeiramente, preciso notar que 1993 (ano que processo Haximu instaurado) foi estabelecido pela Organizao das Naes Unidas (ONU) como o Ano Internacional dos Direitos Indgenas. Alm disso, um ano antes ocorreu, na cidade do Rio de Janeiro, a Conferncia da ONU para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92) e a relao que feita, principalmente pelo pessoal envolvido em rgos governamentais tutelares, entre as populaes indgenas e a questo ecolgica explcita. Na capa do ltimo nmero do peridico Aconteceu19 de 1991 (dois anos antes do Massacre, portanto) pode-se ler a seguinte notcia: Collor toma deciso histrica e18

Boa parte de tais arquivos esto tambm disponveis na pgina eletrnica do LACED: http://www.laced.mn.ufrj.br/produtos/textos/textos_online/publicacoes_peti.htm, com acesso em 19/01/2007. Agradeo especialmente a Antonio Carlos de Souza Lima por ter me indicado tais documentos e, ao mesmo tempo, por ter me dado importantes conselhos de como trat-los. Contudo, todas as consideraes que se seguem so de minha exclusiva responsabilidade.19

O Aconteceu era uma compilao quinzenal que reunia notcias dos jornais de maior circulao do pas que no necessariamente esto reproduzidas na ntegra e colaboraes espontneas de leitores e entidades diversas, como o prprio editorial do no ano de 1991 esclarece. Nesse peridico pode-se encontrar notcias desde a macro-poltica nacional, passando pela organizao do operariado brasileiro, at a situao de povos indgenas no pas. Tal compilao era produzida pelo Centro Ecumnico de Documentao e Informao (CEDI), instituio ligada Igreja Catlica e algumas igrejas evanglicas. O CEDI deu origem, direta ou indiretamente, a algumas das mais importantes Organizaes NoGovernamentais de defesa dos ndios no Brasil, como o Instituto Scio-Ambiental (ISA), a Rede

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Passarinho [Jarbas Passarinho, ento Ministro da Justia do governo Collor] delimita Terra Yanomami (Aconteceu. n. 579, nov/dez. 1991). Na reportagem interna, diz-se que o presidente da Venezuela, Carlos Andr Perez, aplaudiu a deciso [de Collor] dizendo que ela garantir Amrica Latina maior autoridade para discutir com os pases do 1 mundo da Eco-92 (idem). De todo modo, j no prximo nmero do mesmo peridico, pode-se ler a seguinte notcia: Reaes internas prometem bloquear recursos para a demarcao Yanomami (Aconteceu. n. 580, jan. 1992), fazendo ento referncia a senadores e deputados federais da regio norte, inclusive de Roraima, que estavam tentando barrar a verba especfica para a demarcao da Terra Yanomami o que acaba no acontecendo, sendo a rea demarcada em sua completude. No Congresso Nacional brasileiro, segundo Adriana Ramos (RAMOS, 2002), ento funcionria do Instituo Scio Ambiental (ISA), h um grupo organizado de parlamentares contrrios aos interesses dos povos indgenas no Congresso, a maioria visando alterar a Constituio para limitar o direito dos ndios terra. Tais propostas, em sua maioria, visam alterar o texto constitucional para que as terras indgenas fossem demarcadas pelo Legislativo e no, como acontece atualmente, pelo Executivo. (Ramos, 2002:36). Tal movimento organizado por parte da chamada bancada ruralista, que forma uma espcie de peloto de choque contra os direitos indgenas j assegurados pela Constituio de 1998. Por outro lado, no h um lobby organizado no Congresso para defender os interesses das populaes auto-denominadas ou rotuladas como indgenas, j que poucos parlamentares tm opinio formada sobre esse tema e os que a tem, no perfazem um grupo organizado. Ainda segundo a autora, quando h algum movimento a favor dos indgenas, ele se d de maneira conjuntural e pouco organizada. (Ramos, 2002:35-39)20. Voltando ao Aconteceu, numa breve anlise das edies dos anos de 1990 e 1991, pode-se notar que ao menos 1/3 de todas as notcias relativas a povos indgenasKOINONIA ou a Ao Educativa. Os anos de 1990, 1991 e 1992 esto disponveis praticamente na ntegra nos arquivos do PETI/LACED. Alguns nmeros do ano de 1993 tambm podem ser encontrados. Agradeo novamente a Antonio Carlos de Souza Lima por essas informaes.20

H de se ter em mente, de qualquer maneira, que alguns parlamentares se auto-denominam defensores da causa indgena. Como exemplo, basta citar a recente Audincia Pblica da Comisso de Direito Humanos e Legislao Participativa, ocorrida no Auditrio Petrnio Portela do Senado Federal em 19 de abril de 2007 para discutir a problemtica dos direitos diferenciados referentes aos ndios. Pude acompanhar tal reunio, que contou com lideranas indgenas de todo o pas, alm da presena de inmeros deputados federais e senadores. O senador Paulo Paim (PT-RS) organizou a mesa do encontro e dele o termo que vai entre aspas acima. A Audincia contou, ainda, com a presena da Procuradora Deborah Duprat como especialista em direitos diferenciados.

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desse peridico fazem referncia aos Yanomami. O Aconteceu n. 479 de maio de 1990, por exemplo, traz a informao de que havia um projeto no Congresso Nacional pela demarcao da Terra Yanomami em 19 ilhas isoladas, todas dentro de duas grandes Florestas Nacionais21. Segundo a reportagem, isso se daria para que fosse possvel s grandes indstrias da rea de explorao mineral a retirada de recursos j mapeados em terras de tradicional ocupao pelos Yanomami. De todo modo, nesse rpido apanhado, o mais importante a ser aqui notado que h, a partir do ano de 1991, incontveis notcias sobre a incurso do Exrcito e de Policiais Federais ento j (continuamente) demarcada Terra Indgena Yanomami. Essas constantes intervenes do aparato de violncia fsica estatal visavam, sem uma nica exceo, retirar da rea Yanomami inmeros garimpeiros invasores. Fica claro pelas reportagens que houve diversos confrontos entre garimpeiros e Yanomami situaes em que os ndios estavam sempre em desvantagem. Vrias reportagens relatam mortes e assassinatos diversos resultantes desses confrontos, mas nenhuma dessas situaes parece ter tido a repercusso que o Caso Haximu obteve. Por exemplo, na j citada edio 552 do Aconteceu, h a seguinte notcia da sesso dedicada aos indgenas: Yanomami baleado por garimpeiro invasor: um ndio Yanomami foi gravemente ferido [...] quando pedia alimentos a um grupo de garimpeiros que explorava a pista clandestina conhecida como Xiriaw. As retiradas promovidas pelo Exrcito e pela PF, contudo, nunca foram definitivas. Numa recente publicao do Instituto Scio Ambiental (ISA), Povos Indgenas do Brasil 2001-200522, h um artigo escrito pelo antroplogo Rogrio Duarte Pato cujo o ttulo O retorno ao caos: centenas de garimpeiros se aproveitam da morosidade e da desarticulao do poder pblico e voltam a invadir a TI [Terra Indgena] Yanomami, dando notcia de uma nova invaso de garimpeiros no ano de 2005. Nesse sentido, Joo Pacheco de Oliveira Filho (OLIVEIRA FILHO, 1999) chama ateno para o fato de que as demarcaes das reas indgenas nunca so definitivas e

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Souza Lima (SOUZA LIMA, 1998), num estudo sobre a construo scio-histrica da demarcao estatal de terras indgenas no Brasil, argumenta que as terras habitadas pelos ndios tm como base a noo de habitat natural da biologia, sendo que os vestgios de tal habitao humana, agora j considerada temporalmente imemorivel, devem ser materialmente recuperveis pela pesquisa histrica (idem, :197). Tal publicao um balano geral sobre a condio dos povos indgenas no Brasil durante os anos 2000-2005. Pode-se a encontrar artigos acadmicos, mapas, fotos de satlite, pesquisas quantitativas e toda uma gama de informao atualizadas referentes aos povos indgenas brasileiros. Tal peridico no conta com numerao de pginas e possvel acess-lo nos arquivos do PETI.22

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no garantem que os grupos a assentados iro, a partir de ento, viver sem maiores conflitos com os no-indgenas: Longe de serem imutveis, as reas indgenas esto sempre em permanente reviso, com acrscimos, diminuies, junes e separaes. Isto no algo circunstancial, que decorra apenas dos desacertos do Estado ou de iniciativas esprias de interesses contrariados, mas constitutivo, fazendo parte da prpria natureza do processo de territorializao de uma sociedade indgena dentro do marco institucional estabelecido pelo Estado-nacional (idem, :291). Por outro lado, nesse mesmo artigo, o autor argumenta que o reconhecimento das terras ocupadas pelas populaes indgenas por organizaes tidas como estatais uma importante vantagem poltica e pressgio de possveis melhorias nas condies gerais de vida dos ndios. H a um ponto importante: por que, entre tantos acontecimentos violentos envolvendo garimpeiros e Yanomami, somente as mortes dos indgenas de Haximu acabaram tendo a j citada repercusso? Para responder satisfatoriamente questo, caberia fazer uma pesquisa e anlise mais aprofundadas de todo o material que orbita em torno do processo inclusive os Anexos. Essa no a meta principal do estudo que agora desenvolvo. De todo modo, dentro das limitadas fontes que at agora tive contato, possvel apontar algumas direes a serem melhor exploradas mais frente. Assim, como j indiquei acima, o governo do Presidente Fernando Collor de Mello parece ter sofrido presses variadas no que tange ao trato com povos tutelados23. Realizara-se no Brasil, como j disse, a maior conferncia internacional sobre meio ambiente j ento vista. Se certo que as populaes indgenas so, de maneira geral, facilmente identificadas como mais prximas natureza (cf. nota 5 acima), pode-se deduzir que as pessoas relacionadas mdia e poltica tidas como nacionais dificilmente ignorariam ou deixariam margem uma denncia como a que feita no Caso Haximu, acontecida apenas um ano depois da ECO 92. Isso sem contar que o prprio ano do Massacre eleito pela ONU como Ano Internacional dos Direitos Indgenas, como tambm j deixei claro. Parece haver assim uma converso de fatores

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Para uma anlise de como se forjou a tutela indgena dentro do aparato estatal brasileiro, cf. SOUZA LIMA, 1995.

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para que os assassinatos de Haximu tivessem repercusso maior que as diversas outras mortes narradas em anos anteriores. H de se esclarecer que no estou dizendo, com tudo isso, que o empenho dos Procuradores da Repblica no processo Haximu foi oportunista, tentando mostrar trabalho num caso judicial de grande repercusso. Especialistas como Deborah Duprat apresentam um engajamento frente problemtica indgena que vai muito alm do Caso aqui analisado. Por exemplo, num seminrio da Escola da Magistratura Federal realizado em Braslia no ano de 2005 sobre Direitos de Minorias, esses dois ltimos eram vistos pelos prprios indgenas como claros exemplos de operadores do Direito francamente conscientes e favorveis resoluo dos diversos problemas das populaes indgenas. No cabe aqui citar nomes, mas outras pessoas presentes no mesmo evento (e detentoras de cargos pblicos do mesmo nvel que o de Duprat, como juzes ou desembargadores) no compartiam do mesmo status positivo atribudo aos dois Procuradores. Voltando aos arquivos do PETI, nas edies do Aconteceu fica tambm explcito um conflito entre funcionrios de rgos com jurisdio nacional, como a Polcia Federal ou o Ministrio Pblico, e aqueles que trabalham nas Polcias Civil e Militar ou no Governo Estadual de Roraima. Na compilao referente a maro/abril de 1991 (n. 558), pode-se ler a seguinte notcia, adaptada do jornal A Folha de So Paulo: O governador Ottomar de Souza Pinto [ento Governador de Roraima] acionou os Policiais Civil e Militar para impedir as operaes de fechamento de duas pistas de pouso na regio [da Reserva Yanomami], que deveria ser feito por agentes da PF. Nesse mesmo artigo, noticia-se ainda que o Governador Ottomar mandou que no fossem mais aceitos garimpeiros presos por Policiais Federais na Penitenciria Agrcola de Roraima. H de se notar que essa a mesma Priso que ir abrigar, anos mais tarde, Pedro Emiliano e Joo Pereira, os dois condenados presos pelo Genocdio de Haximu (cf. captulos III-V). Recordo tambm que o Delegado da PF Raimundo Soares Cutrim, autor do relatrio Final do Inqurito Policial do Caso Haximu, diz ter participado, nesse documento, da segunda operao Selva Livre que visava, mais uma vez, retirar garimpeiros da Terra Indgena Yanomami.

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Na edio seguinte desse peridico (n. 559, abril/maio de 1991) h a notcia de que o Procurador do MPF Aristides Junqueira pediu Interveno Federal em Roraima24. E que Governador havia chamado todo o aparato policial do estado para que os funcionrios federais no conseguissem levar a cabo a desocupao da Terra Indgena Yanomami. Por tudo o que foi exposto at aqui, pode-se notar que os Yanomami, no fim da dcada de 80 e incio da de 90, foram convertidos em espcies de cones da luta por melhores condies de vida para os povos tidos como indgenas no Brasil e no exterior. Isso pode ajudar a esclarecer, ao menos em parte, toda a repercusso que o Caso Haximu teve dentro e fora do pas. possvel desenvolver aqui um pouco mais a discusso sobre a posio das populaes tuteladas frente ao Judicirio Brasileiro. Tal questo advm de um embate poltico especfico, que remete, como bem chama ateno Dborah Duprat numa anlise das possibilidades de um Estado Pluritnico (DUPRAT, 2002), Constituio de 1988. Nessa ocasio, segundo Duprat, acertou-se que tais populaes seriam autorepresentveis (idem, :44) porm, nunca se criou leis infra-constitucionais para assegurar, de fato, tal independncia garantida, de direito, a partir da Carta Magna de 1988. A ttulo de exemplo, transcrevo abaixo a fala atribuda ao Ministro da Justia Jarbas Passarinho, numa reportagem do Aconteceu n. 553, de abril/maio de 1991 (trs anos aps a promulgao da Constituio, portanto): O Brasil no vai aceitar isso [pensar os indgenas como naes entre outras dentro do Brasil] porque no vamos nos transformar numa nao-intertnica (nfase minha).

Por outro lado, exatamente na Constituio que os Procuradores da Repblica que escrevem a denncia do Caso Haximu iro se basear para dizer que no se pode forar os indgenas a entregarem as cabaas com as cinzas dos mortos para uma possvel percia da Polcia Federal em Braslia, como mostrarei a seguir. Isso, segundo eles, iria contra o princpio constitucional que garante liberdade de costumes para tais povos.Encontrei o Pedido de Interveno escrito pelo Procurador Aristides Junqueira ajuntado na mesma caixa que trazia alguns documentos do processo Haximu (cf. captulo I) quando pesquisava os arquivos da 6 Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal. O Procurador culpa exclusivamente o Governador Ottamar pelo no cumprimento da desocupao dos garimpeiros da Terra Yanomami, pedindo que ele seja substitudo por um interventor federal.24

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Noto aqui que a primeira Lei que tipifica o Genocdio no Brasil de 1956, perodo que, segundo Duprat, ainda vigorava, inclusive em termos constitucionais, todo um aparato legal assimilacionista ou seja, tendo como norte a idia que os indgenas gradualmente seriam subsumidos sociedade genericamente tomada como brasileira. Duprat, 2002:42-44)25. Ressalto aqui que a fala citada acima de Jarbas Passarinho tem a ver com as tenses em torno da assinatura, pelo Congresso brasileiro, da Conveno 169, texto que substituiria outra antiga Conveno 132, base para a citada lei de 1956. A Conveno 169 da Organizao das Naes Unidas traz a idia de que as populaes tidas como indgenas devem ser tratadas como povos relativamente independentes, ainda que sob a ingerncia de um Estado Nacional idia que, ao que tudo indica, no agradou o ento Ministro da Justia do Governo Collor. Se o Caso Haximu for realmente a primeira condenao de Genocdio da Justia Brasileira26, ento possvel levantar a possibilidade de que estejamos passando, nos ltimos anos, por uma mudana em como a tutela indgena pensada e aplicada: os indgenas passariam a no serem mais vistos como um tipo de organizao fugaz ou passageira, destinada, como j disse, ao desaparecimento frente aos pretensamente brasileiros de fato. Tais povos comporiam, ao contrrio, parte da diversidade nacional e tais povos no seriam tidos a partir da premissa legal de relativamente incapazes. Essa digresso encontra apoio, em linhas gerais, em todos os artigos que compem a coletnea para a qual Adriana Ramos e Deborah Duprat contriburam (op. cit.) e, mais direta ou indiretamente, em artigos aqui citados de Joo Pacheco de Oliveira Filho e Antonio Carlos de Souza Lima. Existe, porm, como se pode notar, uma aparente contradio entre leis constitucionais e a situao vivida, de fato, pelas populaes indgenas. Uma interpretao possvel, porm extremamente simplista e reducionista, seria dizer que a Constituio no nada mais que letra-morta e que em nada influi na realidade dessas pessoas. Porm, a atuao dos Procuradores no processo Haximu parece apontar para uma situao mais complexa: como visto, eles se baseiam em princpios constitucionais25

Relembro aqui o j citado trabalho de Antonio Carlos de Souza Lima (SOUZA LIMA, 1995) que chama ateno para o fato de que no nome do Servio de Proteo aos ndios estava ajuntada tambm a sigla LTN ou seja, Localizao de Trabalhadores Nacionais, algo que, pensava-se, os ndios, cedo ou tard