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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA Mestrado em Antropologia BRUNA PASTRO ZAGATTO “EU SOU MARISQUEIRA, LAVRADORA E QUILOMBOLA”: UMA ANÁLISE DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NAS COMUNIDADES RURAIS DO GUAÍ, MARAGOJIPE, BAHIA. SALVADOR 2011

Dissertação Mestrado Bruna Zagatto (1)

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Mestrado Zagatto

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    Mestrado em Antropologia

    BRUNA PASTRO ZAGATTO

    EU SOU MARISQUEIRA, LAVRADORA E QUILOMBOLA: UMA ANLISE DO PROCESSO DE CONSTRUO DA IDENTIDADE NAS COMUNIDADES RURAIS DO GUA, MARAGOJIPE, BAHIA.

    SALVADOR

    2011

  • BRUNA PASTRO ZAGATTO

    EU SOU MARISQUEIRA, LAVRADORA E QUILOMBOLA:

    Uma anlise do processo de construo da identidade nas comunidades rurais do Gua, Maragojipe, Bahia.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Luis Nicolau Pars

    SALVADOR

    2011

  • ZAGATTO, Bruna Eu sou marisqueira, lavradora e quilombola: Uma anlise do processo de construo da identidade nas comunidades rurais do Gua, Maragojipe, Bahia. Salvador, 2011.

    Orientador: Prof. Dr. Luis Nicolau Pars Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Programa de Ps-Graduao em Antropologia.

  • edico esta dissertao a toda famlia Calheiros, especialmente guerreira Lenira, que nunca cansa de lutar por

    dias melhores no Gua e tia Maceta (in memoriam) e paito Luis (in memoriam).

    D

  • AGRADECIMENTOS

    Essa dissertao resultado de uma pesquisa que seria impensvel sem a

    colaborao de um grande nmero de pessoas amigas, s quais gostaria de expressar

    meu profundo agradecimento. Em primeiro lugar ao meu grande companheiro Marcos,

    pelo apoio, colaborao e principalmente pela compreenso e carinho em momentos

    cruciais desse estudo.

    A todas as pessoas que me receberam no Gua, particularmente aquelas que

    compartilharam comigo momentos, memrias, sentimentos e que me concederam

    entrevistas. Sou especialmente grata famlia Calheiros, que to bem me acolheu em

    Jirau Grande, a qual tambm dedico essa dissertao. Ainda no campo, agradeo a

    equipe de regularizao dos territrios quilombolas do INCRA e os companheiros de

    luta do Movimento dos Pescadores da Bahia.

    No mbito acadmico, um agradecimento especial ao meu orientador Luis

    Nicolau Pars, pela forma cuidadosa com que me orientou; aos professores Jos

    Maurcio Arruti e Ldia Cardel, pelas ricas observaes durante a qualificao; s

    professoras Ceclia MacCallum e Rosrio de Carvalho pelo aprendizado durante o

    mestrado. Ao amigo Jos Carlos, que leu e comentou esse trabalho.

    Minha imensa gratido minha me Maria, meu pai Pedro, meu irmo Nuno e

    minha tia Edir por todo apoio durante a minha vida e pelos incentivos quase dirios via

    skype, durante a escrita dessa dissertao; aos meus pais baianos Maurcio e Leda e aos

    meus avs Rosa e Pedro, Alice (in memoriam) e Olmpio (in memoriam), cujas

    trajetrias como lavradores serviram de inspirao.

  • RESUMO

    Na ltima dcada, inmeras comunidades rurais brasileiras se autorreconheceram como remanescentes de quilombos, dentre elas, seis localizadas no distrito do Gua, em Maragojipe, Bahia, que foram objeto deste estudo. No processo de se tornar quilombola, as diferenas das comunidades do Gua foram produzidas sobretudo nos espaos de interao intercultural entre agentes comunitrios e agentes governamentais, tais como reunies polticas para identificao da historia e do territrio quilombola. Esta dissertao lanou luz justamente sobre esse locus da mediao cultural, com o objetivo de analisar a construo simblico-discursiva da identidade e da memria, em que os agentes polticos se constituram como mediadores simblicos das diferenas. Nesse sentido, a ateno se voltou principalmente para as narrativas sobre o passado do Gua, em que trajetrias individuais ganharam carter cada vez mais coletivo que resultaram na emergncia de novos lderes comunitrios e na construo da histria das comunidades quilombolas do Gua. Nesse processo, os lderes comunitrios assumiram o importante papel na articulao de diferenas particulares, sobretudo ligadas ao modo de vida do pescador/marisqueira e do lavrador(a), com categorias generalizadoras, como raa, tradio e cultura, buscando construir consensos em torno dos modos de apresentao e representao do grupo. Em decorrncia disso, ser negro e ser da roa e da mar foram ressignificados, passando de uma condio de inferioridade para a de dignidade coletiva e com possibilidade do acesso a direitos. Por fim, esse estudo apresenta como os impasses gerados pela possibilidade da coletivizao do ttulo da terra e a falta de retorno do Estado frente as demandas materiais do grupo impactam a auto-identificao quilombola no Gua.

    Palavras-chave: Identidade. Etnicidade. Memria. Comunidade quilombola. Territrio. Agncia. Mediao cultural. Agenciamento simblico-discursivo.

  • ABSTRACT

    In the last decade, many rural communities in Brazil have self-identified as remnants of quilombo (maroon communities). This dissertation focuses on six of these communities located in the Gua district in Maragojipe, Bahia. In the process of "becoming" a quilombo, the differences attributed to the Gua groups were produced mainly in the intercultural interaction between community and government agents, particularly in the political meetings organized to identify the quilombo's history and territory. This work intends to shed light precisely on the locus of cultural mediation, and aims to analyze the symbolic and discursive construction of identity and memory, whereby political actors emerged as symbolic mediators of differences. Accordingly, special attention was paid to narratives about the past of Gua, in which individual trajectories gained an increasingly collective character that resulted in the promotion of new community leaders and the elaboration of the history of the maroon community. In this process, community leaders took an important role in the articulation of particular differences, especially related to livelihood modes such as those of fishermen and farmers, and to generalizing categories, including race, culture and tradition, seeking to build a consensus around modes of presentation and representation of the group. As a result, "being black " and "being from the farm or from the tide" were reinterpreted, shifting their connotation of inferiority to one of collective dignity, with possibility of access to rights. Finally, this study shows how the troubles created by the prospect of land collectivization and the states failure to meet the material demands of the Gua community have affected its maroon self-identification. Keywords: Identity. Ethnicity. Momory. Maroon communities. Territory. Agency. Cultural mediations.

  • LISTA DE SIGLAS ABA - Associao Brasileira de Antropologia ADCT - Ato de Disposio Constitucional Transitrio ADI - Ao Direta de Inconstitucionalidade CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais CEAFRO Centro de Estudos Africanos CETA - Comisso Estadual de Trabalhadores Assentados (da fundao at 1998). Coordenao Estadual de Trabalhadores Assentados e Acampados (entre 1998 e 2005). Movimento dos Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas da Bahia (a partir de 2005). CDA - Coordenao de Desenvolvimento Agrrio CF/88 - Constituio Federal de 1988 CONAQ - Coordenao Nacional de Articulao das Comunidades Negras Rurais Quilombolas CPP - Conselho Pastoral dos Pescadores (antiga Comisso Pastoral da Pesca) CPT - Comisso Pastoral da Terra FCP - Fundao Cultural Palmares FETAG - Fundao dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia FUNAI - Fundao Nacional do ndio FUNDAC - Fundao da Criana e do Adolescente do Estado da Bahia GT - Grupo de Trabalho GIQ - Grupo Intersetorial do Estado da Bahia para Quilombos IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria IN 49/08/INCRA - Instruo Normativa 49 de 2008 do INCRA MDA - Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MOPEBA Movimento dos Pescadores do Estado da Bahia OIT - Organizao Internacional do Trabalho PA - Projeto Assentamento PEQ - Projeto Especial Quilombola PSF - Programa de Sade da Famlia PT Partido dos Trabalhadores PINEB- Programa de Pesquisas sobre os Povos Indgenas do Nordeste Brasileiro RTID - Relatrio Tcnico de Identificao e Delimitao SEAGRI- Secretaria da Agricultura, Irrigao e Reforma Agrria do Estado da Bahia SEDES - Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate a Pobreza do Estado da Bahia. SEPPIR - Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial SEPROMI - Secretaria de Promoo da Igualdade do Estado da Bahia SR05 - Superintendncia Regional do INCRA da Bahia STF - Supremo Tribunal Federal UFBA - Universidade Federal da Bahia UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

  • LISTA DE MAPAS E CROQUIS

    Mapa 1: Localizao de Maragojipe no mapa da Bahia................................................. 33

    Mapa 2: Localizao dos distritos de Maragojipe e de municpios vizinhos..................34

    Mapa 3 - Comunidades rurais de Maragojipe, autorreconhecidas como quilombolas. As de Gua esto destacadas em colorido e as demais esto em cinza............................41

    Mapa 4 - Das antigas fazendas do distrito do Gua.........................................................56

    Croqui 1 - Croqui das comunidades Guaruu e Tabatinga, elaborado com moradores do Guaruu no dia 10/11/2008.............................................................................................69

    Croqui 2: Trecho do croqui da comunidade quilombola Baixo do Gua....................122

    Croqui 3: Croqui de Guaruu, elaborado na oficina de territrio em 04/10/2007........123

    Croqui 4 - Croqui elaborado por mim de seis stios entre o Jirau Grande e Tabatinga, como se fossem vistos de cima..................................................................................... 124

    Croqui 5- Comunidades quilombolas do Guai e comunidades confinantes..................126

    Mapa 4- Comparao entre mapas do territrio quilombola e das fazendas em 1950..131

  • SUMRIO

    APRESENTAO...........................................................................................................1

    INTRODUO............................................................................................................... 3

    CAPTULO 1 INCURSO TERICA E METODOLGICA NO CAMPO ..............9 Metodologia ..........................................................................................................9

    Referencial terico...............................................................................................14

    CAPTULO 2 - O TEMPO DAS COMUNIDADES: O PROCESSO DE

    AUTORRECONHECIMENTO QUILOMBOLA NO GUA........................................33

    CAPTULO 3 - MEMRIA DO TEMPO DAS FAZENDAS...................................51

    A construo da memria....................................................................................51

    O tempo das fazendas.....................................................................................55

    De histria de vida trajetria do grupo.............................................................76

    CAPTULO 4 - A HISTRIA DO TEMPO DOS ENGENHOS...............................85

    Construindo o passado........................................................................................85

    CAPTULO 5 - A CONSTRUO DO TERRITRIO.............................................107

    A apresentao da cultura..................................................................................109

    O parentesco de sangue, umbigo e histria.......................................................119

    A identificao dos limites territoriais..............................................................122

    Conflitos na definio das fronteiras sociais e territoriais................................131

    CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................144

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.........................................................................149

    ANEXOS......................................................................................................................155

  • 1

    APRESENTAO

    Aps a promulgao do Decreto 4887 de 2003, que regulamenta o

    procedimento para identificao, reconhecimento, delimitao, demarcao e titulao

    das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos1, inmeros

    povoados espalhados por todo Brasil passaram a se autorreconhecer como comunidades

    quilombolas. Em 2006, a Bahia j contava com 178 comunidades quilombolas com

    certido de autorreconhecimento junto Fundao Cultural Palmares, das quais nove se

    localizam na zona rural de Maragojipe.

    Em 2007, o Conselho Quilombola de Maragojipe, formado por lderes de quase

    todas as comunidades quilombolas do municpio e por Marcos do Conselho Pastoral dos

    Pescadores (CPP), reivindicou ao Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    (INCRA) a regularizao fundiria de um territrio contnuo das comunidades Guerm,

    Baixo do Gua, Tabatinga, Jirau Grande, Guaruu, Porto da Pedra e Kizanga,

    localizadas no distrito do Gua2. No mesmo ano, a pedido do Deputado Federal Luiz

    Alberto, do Partido dos Trabalhadores (PT) e de lderes do Movimento dos Pescadores

    da Bahia (MOPEBA) e do Movimento dos Trabalhadores Assentados, Acampados e

    Quilombolas da Bahia (CETA), as comunidades do Gua passam a integrar a lista das

    reas prioritrias do INCRA. Poucos meses depois, no dia trs de outubro de 2007, o

    INCRA iniciou o processo de regularizao fundiria do territrio dessas comunidades.

    Na poca, integrei a equipe tcnica que foi designada a identificar e delimitar o

    territrio pleiteado, realizando uma pesquisa etnogrfica e histrica, cujo objetivo

    central foi compreender a territorialidade das comunidades, identificando os usos do

    territrio no presente e nos planos da memria e do imaginrio do grupo3.

    O curto tempo entre o autorreconhecimento das comunidades e a chegada da

    equipe tcnica do INCRA permitiu que eu acompanhasse um processo bastante inicial

    de divulgao do que era ser quilombola, realizado por alguns poucos lderes do

    MOPEBA. Mais do que isso, esses lderes, explicavam aos moradores do Gua os

    motivos que os levaram a solicitar a Certido de Autorreconhecimento como 1 Esse decreto se fundamenta no Artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias. 2 A conformao do territrio alterou-se ao longo do processo de reconhecimento territorial. 3 A elaborao do relatrio antropolgico foi orientada pela Instruo Normativa 49/2009 do INCRA.

  • 2

    quilombolas e os benefcios que poderiam ser alcanados atravs dela. Percebi ento

    que comunidade quilombola no tinha um significado determinado e que alguns agentes

    mediadores estavam atuando decisivamente na negociao dos seus sentidos. Entre eles

    incluo a prpria equipe do INCRA da qual eu fiz parte, cujas prticas promovidas foram

    significativas na adequao de noes exgenas s experincias e percepes

    endgenas. As inmeras reunies, conduzidas por mim ou pelos analistas do INCRA

    com o objetivo de esclarecer o procedimento administrativo de reconhecimento do

    territrio quilombola, foram tambm espaos privilegiados de traduo poltico-cultural

    de categorias jurdicas em categorias locais, bons para pensar como produzida

    histrica e socialmente a convergncia de horizontes simblicos entre agentes do Estado

    e quilombolas. Desse modo, apesar do processo de autorreconhecimento das

    comunidades do Gua ter iniciado antes da chegada do INCRA, foi durante a

    organizao poltica de luta por direitos sociais e territoriais que a construo da

    identidade de intensificou.

    O exerccio comum e constante da comunicao, durante as atividades de

    identificao dos usos e dos limites territoriais, provocou uma srie de transformaes

    simblicas e discursivas sobre a histria das comunidades do Gua, orientadas, entre

    outras coisas, por um ideal de futuro projetado no significado de territrio

    quilombola. Nesse caso, a produo do territrio refletia um processo mais amplo de

    produo da memria e da alteridade, sendo a afirmao territorial uma afirmao antes

    de tudo identitria. Chamou-me a ateno, nesse processo, as estratgias de interao

    dos lderes quilombolas do Gua, em que smbolos coletivos foram constantemente

    mobilizados, transformando as formas de representao do grupo.

    Apesar da questo da mediao cultural ter se mostrado bastante rica, ela no era

    objeto do estudo que estava sendo desenvolvido na poca. Busquei ento uma

    oportunidade de realizar um novo estudo no Gua, em que pudesse aprofundar a anlise

    sobre o agenciamento simblico-discursivo da identidade. Para isso seria necessrio

    deslocar a observao para os prprios espaos de produo das relaes de interao e

    significao. Esse deslocamento me possibilitaria refletir tambm sobre a minha prpria

    participao, enquanto mobilizadora de significados junto s comunidades e sobre a

    atuao dos antroplogos de modo geral, na de produo de diferenas.

  • 3

    INTRODUO

    Os estudos sobre as chamadas emergncias tnicas ou etnogneses (cf

    OLIVEIRA, 2004 [1999]) contriburam para a retomada da reflexo acerca da

    identidade e etnicidade em novos termos, uma vez que ampliaram os caminhos para se

    pensar a produo social das diferenas dos novos sujeitos polticos no Brasil. Com

    isso, a ateno se deslocou do estudo da alteridade em si, para os mecanismos de

    gerao de consensos em torno dos modos de representao das diferenas. Isso

    implicou na necessidade de repensar o recorte do objeto antropolgico, de modo que a

    investigao recasse sobre os espaos de interao dos agentes, tais como redes

    comunitrias, reunies polticas, cursos de formao, com vistas a observar de que

    forma e com qual finalidade a diferena agenciada. Nesse sentido, Arruti, Montero e

    Pompa (no prelo, 2009) propuseram uma abordagem antropolgica que coloca a questo

    da agncia, e consequentemente a noo de agente, no centro das discusses.

    A noo de agente social de Bourdieu (1989) se mostrou bastante apropriada

    para a compreenso da produo da diferena, na medida em que entende que o agente

    se constitui no processo da interao, sendo produto da relao entre sua posio social

    no interior de campo de foras e uma viso de mundo. Essa noo corporifica posies

    de mediao que resultam do cruzamento, no espao social e em um determinado

    tempo, de um tipo particular de trajetrias com uma srie de enunciados (MONTERO

    et al, no prelo, 2009). Nesse sentido, a noo bourdiesiana tambm pressupe a ideia de

    agncia, enquanto capacidade dos agentes orientarem suas estratgias (conscientes e

    no-conscientes) para adquirir mais capital social e simblico na disputa pelo poder de

    classificao e representao de si mesmos e dos outros. preciso esclarecer que a

    agncia se constitui na fuso entre as circunstancias estruturais e a capacidade

    propulsora, ou seja, duplamente condicionada. Seria esse espao onde se encontram a

    estrutura, enquanto capacidade de operao, e os agentes, enquanto capacidade de

    ao4.

    4 De modo geral, o conceito de agncia reporta s noes de resistncia e liberdade, fundamentadas na expresso ocidental e humanista do livre-arbtrio, central na "narrativa moral da modernidade" (MAHMOOD, 2005). Conforme aponta Keane (2003), preciso ter cautela na adoo destas noes, que implicitamente pressupem a oposio entre agncia e estrutura ou entre agncia e cultura. Diante dessas crticas ao conceito de agncia, faz-se necessrio esclarecer que a noo de agncia aqui

  • 4

    A ideia de agncia complexificou o conceito de ator social, muito evocado na

    antropologia do contato, que entendia o ator como um personagem pr-definido

    culturalmente em funo da sua posio social e que participava da cena do contato

    cultural aderindo ou rejeitando o colonialismo. Tambm permitiu o afastamento do

    paradigma colonialista presente nas etnografias dos processos de dominao cultural

    ou aculturao, que definia previamente os lugares do ns e do outros (Idem).

    partindo desse mesmo entendimento que Arruti, Montero e Pompa (Ibidem), propem

    uma forma de fazer antropologia que deixe de formular o problema do encontro em

    termos de contato (relao entre ns e eles), para formular em termos de relaes

    interculturais, dando nfase questo da mediao cultural.

    A mediao uma ao social contnua, que est presente nos mais variados

    processos interativos e nos mais variados nveis, e que produzem e possibilitam trocas,

    a comunicao e o intercmbio (VELHO & KUSCHNIR, 2001:10). por meio das

    interaes que os agentes criam as formas de representar as diferenas, to

    fundamentais nos processos de legitimao das identidades. Ao expressarem os modos

    de pensar, ver, sentir e encenar as diferenas, os agentes polticos se constroem como

    mediadores simblicos das diferenas (MONTERO et al, no prelo, 2009). O estudo da

    mediao, especificamente atravs da observao do agenciamento5 discursivo dos

    mediadores, nos permite compreender como se do as interaes entre categorias sociais

    e nveis culturais distintos.

    Como produtores e mediadores de diferenas, os agentes fazerem escolhas e

    traam estratgias, agenciando os mais variados repertrios: nativo, cientficos,

    ideolgicos, religiosos (Idem). As decises individuais ocorrem em um campo de

    possibilidades sociocultural, entremeado de relaes de poder, em que esto em jogo

    conflitos, disputas, alianas ou rompimentos. Num processo constante de negociao da

    realidade, escolhas so feitas tendo como referncia sistemas simblicos, crenas e empregada no entendida como uma capacidade individual ou coletiva para a ao em termos de autoconscincia, emancipao e poder de autotransformao. Tampouco como um desejo de liberdade, autonomia, resistncia s estruturas de poder, subverso das normas sociais, como foi empregada sobretudo pela antropologia feminista da dcada de 1970.

    5 O agenciamento seria a construo dos modos de perceber e mobilizar as diferenas, que simultaneamente produzem os agentes sociais e so produzidos por ele. Uma vez que os agentes se constituem enquanto tal atravs de agenciamentos discursivos e afetivos, eles se configuram tambm como lcus de uma multiplicidade de agenciamentos (MONTERO et al, no prelo, 2009).

  • 5

    valores, em torno de interesses e objetivos materiais e imateriais dos mais variados

    tipos (VELHO & KUSCHNIR, 2001:10).

    O sucesso da atividade de representao da identidade, no que se refere a sua

    legitimao, depender da capacidade dos mediadores agenciarem um quadro de

    categorias e darem verossimilhana a esse agenciamento. Quanto mais eles conseguirem

    articular diferenas particulares com categorias generalizadoras, mais bem sucedida a

    prtica da mediao. O trabalho do mediador , portanto, categorizar a alteridade,

    compar-la e generaliz-la, para que dessa forma as alteridades se mantenham em

    relao e no se expulsem mutuamente (MONTERO et al, no prelo, 2009:30). Como

    exemplo de mediao bem sucedida, que resultaram em diversos processos

    contemporneos de emergncia tnica, podemos citar o singular agenciamento entre

    luta poltica e cultura, sobretudo atravs da apropriao, por parte dos agentes, das

    categorias utilizadas tradicionalmente pela antropologia. (Idem; ARRUTI, 2006;

    CUNHA, 2009; MONTERO, 2006).

    Apesar disso, estudos recentes sobre comunidades etnicamente diferenciadas ou

    sobre movimento sociais insistem em direcionar a investigao s diferenas do grupo,

    ou seja, cultura do outro, sustentados pela ideia de que o papel da antropologia

    estudar as diversas culturas como se elas fossem fixas e existissem a priori

    (MONTERO et al, no prelo, 2009). Consequentemente, a questo das prticas

    discursivas dos mediadores, na representao de seus grupos, por exemplo, no

    problematizada. como se no fizesse sentido questionar-se sobre os fundamentos

    simblicos da atividade de representao de atores sociais que se apresentam como

    representantes da vontade de uma determinada coletividade com a qual mantm uma

    relao de identidade pensada como primria ou primordial (Idem: 6)

    Para Barth (2000), os antroplogos, ao optarem pela omisso de possveis sinais

    de inconstncia, incoerncia ou de multiculturalismo nos estudos dos grupos tnicos

    inevitavelmente presentes nos processos de agenciamento simblico-discursivo -

    perpetuam alguns pressupostos holistas e de integrao, herdados das tradies

    antropolgicas funcionalista e estruturalista. Acredito que outros trs motivos (ligados

    ao lugar que o antroplogo tem ocupado nesses estudos), tambm contribuem para a

    resistncia de pensar a questo da mediao cultural. Primeiro, porque muitos estudos

    sobre grupos tnicos da atualidade esto sendo produzidos para subsidiar peas tcnicas

  • 6

    ou laudos periciais, no havendo, portanto, espao para abordagem com esse enfoque. O

    segundo motivo uma consequncia do primeiro, uma vez que ao ocupar cargos no

    interior do Estado ou de organizaes no governamentais, o antroplogo tambm

    assume o papel de mediador, ainda que a prtica da mediao lhe seja opaca. Isso

    porque, na sua interao em campo, o antroplogo (bem como outros agentes externos)

    traduz categorias gerais, classifica diferenas e tambm produz e negocia discursos. Os

    estudos e documentos produzidos nesses contextos, em geral apresentam os resultados

    da agncia dos atores em jogo, mas raramente descrevem o lugar de onde eles falam,

    seus interesses e conflitos, ou qualquer informao sobre as trocas interculturais, onde

    os discursos de representao foram produzidos. O terceiro motivo se refere ao receio

    dos antroplogos de que seus estudos sejam mal interpretados pelos grupos estudados

    ou que sejam mal utilizados por agentes cujos interesses sejam contrrios aos dos

    grupos estudados. Desse modo, escrever sobre agenciamento discursivo, migrao

    de smbolos, produo da memria tornou-se um tabu.

    Na tentativa de romper com o tabu da agncia - at mesmo para que o

    agenciamento deixe de ser associado farsa ou fraude, como costumam fazendeiros

    os fazendeiros a ser desapropriados - este estudo teve como objetivo analisar o processo

    de construo da identidade e da memria, nas comunidades quilombolas do Gua, a

    partir de uma perspectiva que priorizou o locus da mediao cultural. A ateno se

    direcionou, portanto, aos discursos dos lderes comunitrios, produzidos em reunies

    com agentes pblicos (no qual me incluo) e de entidades de apoio, destinadas a pensar a

    identidade, a histria e o territrio dos quilombos do Gua.

    A mobilizao de significados sobre as prticas culturais e os eventos ocorridos

    no Gua gerou novos sentidos para todos os envolvidos nos jogos de linguagem. Esses

    sentidos no apenas possibilitaram novas interpretaes das lembranas da relao entre

    quilombolas e fazendeiros, como provocaram a prpria memorizao da origem, da

    trajetria e da cultura do grupo6. Nesse sentido, as estratgias dos mediadores

    6 Durante a permanncia da equipe tcnica do INCRA em campo, o termo cultura foi inmeras vezes mencionado pelos lderes do movimento quilombola. em determinadas situaes a cultura de um grupo tnico, adquire uma nova funo, essencial e que se acresce s outras enquanto se torna de contraste.(...) A cultura tende ao mesmo tempo a se acenturar, tornando-se mais visvel e a se simplificar e enrijecer (CUNHA, 2009:237).De acordocom Paula Montero, Jos Maurcio Arruti e Cristina Pompa (no prelo, 2009:2), (...) a ideia essencialista de cultura torna-se, no campo poltico, tanto um instrumento de autoafirmao identitria, quanto uma linguagem jurdica de atribuio de direitos.

  • 7

    provocaram uma reinterpretao das relaes interculturais coloniais, como diria

    Sahlins (1997:21), em seus prprios termos.

    Nos espaos de construo coletiva do passado (oficinas, reunies e entrevistas

    em grupo) as trocas entre os diferentes mediadores (lderes e agentes externos) e entre

    eles e os moradores do Gua, produziram novas configuraes sobre a histria do grupo,

    cujo arranjo combinou distintas temporalidades, intenes, lembranas, smbolos e

    conceitos. A construo coletiva da histria do Gua apontou para a necessidade de

    pensar a historia no como um conjunto de fatos reais passados, mas como um dentre

    outros objetos etnolgicos, fundamental na compreenso da relao entre quilombolas,

    agentes governamentais e de movimentos sociais e produto mesmo desse encontro

    (MONTERO, 2006:16). Evidentemente no significa que a produo histrica no Gua

    tenha se inaugurado por meio desse encontro at porque os encontros interculturais

    ocorrem h sculos - e sim que essas novas conexes produziram formas inditas de

    conceber o tempo, de lembrar do passado, de atribuir significado aos eventos

    lembrados e de posicion-los no seio da histria. Assim, as lembranas sobre a trajetria

    dos habitantes do Gua foram divididas, no processo de construo da memria, em

    duas fases: o tempo dos engenhos e o tempo das fazendas, sendo o conjunto dessas

    fases identificado como a histria das comunidades quilombolas do Gua.

    Esta dissertao est organizada em cinco captulos, em que o primeiro se trata

    de uma incurso terica e metodolgica no campo, em que so apresentados a

    metodologia de investigao da pesquisa, uma breve reviso da literatura sobre

    quilombos e um referencial terico de alguns conceitos fundamentais anlise dos

    dados, tais como comunidade, identidade, cultura, etnicidade, territorialidade e raa.

    No segundo captulo, apresento como se deu o despertar poltico das

    comunidades do Gua, descrevendo a contribuio dos agentes de entidades de apoio

    aos movimentos sociais de luta pela terra e da rede social entre comunidades rurais

    maragojipanas para a emergncia de lderes comunitrios no Gua. Descrevo tambm o

    processo de fortalecimento da unio em torno do sentimento de comunidade que levou

    ao autorreconhecimento delas como quilombola, situando esse momento dentro de um

    contexto maior de efervescncia tnico-poltica no sul do Recncavo.

    O captulo trs trata do processo de produo coletiva da histria do tempo das

    fazendas, em que modos de vida e experincias de explorao, injustia e desigualdade

  • 8

    evidenciaram trajetrias comuns ao grupo, que passam a representar o conjunto das

    comunidades do Gua. Procuro mostrar tambm nesse captulo de que maneira a

    repetio de situaes de desrespeito na atualidade contriburam para a produo de um

    discurso de luta de classes em algumas narrativas de histrias de vida, que resultaram

    na emergncia que novos mediadores culturais nas comunidades.

    J no quarto captulo, discuto como as comunidades construram a memria do

    o tempo dos engenhos, a partir do agenciamento entre identidades partilhadas de

    trabalho (em que se inclui a mobilizao de smbolos eficazes, tais como engenhos e

    roas) e as categorias jurdicas quilombolas e comunidades tradicionais. Nesse processo

    de elaborao do passado, evidencio a homogeneizao e a etnizao do discurso com a

    valorizao da raa, da tradio oral e da continuidade histrica dos quilombolas-

    lavradores-pescadores das origens dos engenhos at a atualidade.

    No captulo cinco analiso prticas do Gua apresentadas como cultura

    quilombola durante as oficinas de territrio, buscando entender porque algumas

    diferenas foram valorizadas em detrimento de outras. Para isso procurei identificar

    alguns discursos presentes na descrio dessas prticas, bem como a noo nativa de

    cultura. Analiso tambm neste mesmo captulo de que maneira a noo de parentesco

    incorporou a histria dos quilombolas e se mostrou fundamental na definio dos

    limites do territrio.

    Por fim, nas consideraes finais, retomo algumas questes j apresentadas em

    captulos anteriores e fao uma breve reflexo sobre a importncia das demandas por

    redistribuio na mobilizao da identidade quilombola.

  • 9

    CAPTULO 1 INCURSO TERICA E METODOLGICA

    NO CAMPO

    Metodologia

    O primeiro contato com as comunidades Guerm, Baixo do Gua, Tabatinga,

    Jirau Grande, Guaruu e Porto da Pedra ocorreu em setembro de 2007, com o incio das

    atividades de regularizao fundiria do INCRA. Como o objetivo orientador do

    trabalho era de grande interesse das comunidades o acesso terra a insero no

    campo foi rpida e relativamente fcil. J no primeiro dia no Gua, algumas pessoas

    contaram a histria de seus antepassados, descreveram a dinmica do cotidiano das

    comunidades e, principalmente, os casos de violncia envolvendo quilombolas e

    fazendeiros na disputa pela terra. Assim, boa parte das informaes sobre o Gua foi

    obtida antes da minha insero no Programa de Ps-Graduao da UFBA, sendo

    fundamental para a elaborao da dissertao7.

    O trabalho de campo foi realizado em dois momentos. O primeiro ocorreu

    durante a pesquisa para o INCRA, na qual realizei quinze viagens s comunidades entre

    setembro de 2007 e dezembro de 2009, com uma permanncia mdia de dez dias em

    cada uma delas, totalizando aproximadamente cinco meses de pesquisa de campo8. E o

    segundo, quando retornei a campo em janeiro e maio e julho de 2010, num total de vinte

    e cinco dias, no mais como funcionria do INCRA, cujo desligamento ocorreu em

    maro de 2009, mas como estudante de mestrado.

    Um dos mtodos que orientou a pesquisa para o INCRA foi o etnogrfico. A

    tcnica da observao participante permitiu conhecer importantes aspectos da vida nas

    comunidades quilombolas do Gua. Porm, a conjuntura poltica e social na qual estava

    inserida a pesquisa me levou a priorizar outras tcnicas, tais como entrevistas abertas e

    o registro (audiovisual e escrito) de reunies e oficinas com membros das vrias 7 De acordo com o Cdigo de tica da Associao Brasileira de Antropologia, ao antroplogo reconhecido o direito de autoria, mesmo quando o trabalho constitua encomenda de rgos pblicos ou privados. O direito de autoria implica o direito de publicao e divulgao do resultado de seu trabalho (http://www.abant.org.br/index.php?page=3.1). As lideranas comunitrias tambm autorizaram formalmente o uso das informaes obtidas anteriormente, para a elaborao dessa dissertao. 8 Algumas viagens tiveram durao de trs dias, enquanto outras chegaram a vinte dias. As viagens mais longas foram destinadas delimitao do territrio.

  • 10

    comunidades. As tcnicas de levantamento do material etnogrfico foram escolhidas

    levando-se em conta as condies da pesquisa, bastante distintas de uma pesquisa

    acadmica. Vale aqui contextualizar e refletir sobre algumas situaes que implicam

    diretamente sobre o trabalho do antroplogo.

    Os trabalhos de identificao e delimitao dos territrios quilombolas so

    realizados por uma equipe interdisciplinar, conforme prev a legislao federal e as

    instrues normativas do INCRA. Apesar do antroplogo ter a opo de realizar sua

    pesquisa de campo sozinho, em geral, as viagens so feitas em grupo, para otimizar o

    tempo, diminuir os custos de trabalho e garantir uma maior segurana aos funcionrios.

    Logo, as to citadas condies apropriadas para a pesquisa etnogrfica - que nas

    palavras de Malinowski (1922:43) consistem sobretudo em isolar-se da companhia de

    outros homens brancos - literalmente no ocorreram. Os curtos prazos para a

    realizao da pesquisa, a escassez de recursos e os riscos que o trabalho oferece, levam

    o antroplogo em situao de percia a optar por tcnicas mais ativas, que possam

    levantar um material etnogrfico com maior rapidez: as oficinas.

    As oficinas eram reunies com membros das comunidades, cujo objetivo era

    levantar a maior quantidade possvel de informaes sobre a histria da ocupao

    territorial, sobre os usos do territrio no passado e no presente e sobre a relao entre

    quilombolas e proprietrios de terras do Gua. Era tambm do meu interesse conhecer

    aquilo que os participantes das oficinas identificavam como sendo elementos da sua

    prpria cultura ou tradio. Coube a mim coordenar as oficinas realizadas no Gua,

    uma vez que os relatos poderiam ter grande valor para a elaborao do relatrio

    antropolgico e orientariam o incio da pesquisa histrica e etnogrfica. A tcnica

    utilizada nas oficinas foi a do grupo focal, cujos dados so produzidos no decorrer das

    interaes grupais ao se discutir um tpico sugerido pelo pesquisador, que ocupa uma

    posio intermediria entre a observao participante e a entrevista conduzida (GATTI,

    2005).

    A primeira oficina, nomeada Oficina de Histrico, foi realizada no dia trs de

    outubro de 2007, na comunidade Baixo do Gua, na casa de Laurncia Dias dos Santos,

    com a presena de trs funcionrios do INCRA e moradores do Baixo do Gua,

    Guaruu, Jirau Grande, Guerm e da comunidade Enseada do Paraguau, que fica

  • 11

    aproximadamente a 25 km do Baixo do Gua, totalizando sessenta e quatro pessoas. A

    faixa etria dos participantes da oficina foi bem variada, predominando pessoas de meia

    idade e idosos. Essa oficina foi direcionada para o levantamento de informaes sobre a

    histria das comunidades, desde sua suposta origem, at os acontecimentos mais

    recentes9.

    Diante das primeiras indagaes sobre os antepassados e sobre a origem das

    comunidades, houve um silncio at que alguns lderes comunitrios de meia idade

    incentivaram os mais velhos a falar. Sugeriram-me que as questes fossem remetidas

    primeiramente aos membros idosos, pois estes seriam os verdadeiros conhecedores

    da histria do Gua. De acordo com esses lideres, as recordaes das experincias

    pessoais de infncia e juventude dos idosos seriam a prova viva de uma histria no

    documentada. Alm de terem presenciado momentos importantes da trajetria do grupo

    - principalmente as disputas pela terra entre posseiros e as famlias de proprietrios - os

    mais velhos tambm seriam os mais prximos temporalmente dos protagonistas das

    antigas histrias do grupo, conferindo a eles ainda mais legitimidade de narrar o

    passado10. Assim, alm da histria das comunidades em si, nestas oficinas puder

    perceber a preocupao dos vrios interlocutores sobre quem estaria autorizado a falar

    sobre o grupo ou pelo grupo.

    Partindo dessa sugesto, elegi meus primeiros informantes para investigar as

    origens das comunidades. Os lderes locais tambm sugeriam que eu realizasse

    entrevistas individuais na presena de um grupo, pois essa dinmica seria uma forma de

    provar a veracidade dos fatos narrados (j que ningum inventaria nada na presena

    de outros) e ao mesmo tempo permitiria que os mais novos pudessem aprender mais

    sobre a histria do grupo. Essa dinmica se mostrou uma estratgia importante da 9 As questes que orientaram a oficina de histrico foram: Como essa comunidade surgiu? Quem foram os primeiros moradores? Porque e como eles ocuparam o territrio? Como era a vida nas comunidades, na poca em que os atuais idosos eram jovens? Como os antigos habitantes se sustentavam economicamente? Havia festas e cultos religiosos? Eles existem da mesma forma at hoje? Aps um perodo destinado discusso sobre as respostas, os participantes foram divididos em subgrupos de idades e comunidades variadas para desenharem o que acharam mais importante a respeito do que foi relatado. Em seguida, cada participante exps sua ilustrao e justificou sua escolha. 10 Almeida (2006a: 30) descreve um caso semelhante nos quilombos de Alcntara, no Maranho, quando afirma que a singularidade mencionada tanto concerne ao fato de tais pessoas acharem-se dispostas numa linha de descendncia direta, por consanguinidade ou afinidade, de ancestrais que so apontados como tendo assegurado o livre acesso dos grupos familiares terra, quanto ao fato de possurem responsabilidades simbolicamente definidas em face de antigas famlias de proprietrios.

  • 12

    atividade mediadora, uma vez que permitiu certo controle dos discursos que estavam

    sendo produzidos acerca da histria, e consequentemente acerca de si mesmos. Tambm

    possibilitou uma maior uniformidade nas formas de apresentao e representao do

    grupo e criou novos espaos para a mediao cultural.

    As primeiras entrevistas foram pontos de partida para longas conversas entre os

    presentes, em que aos poucos o passado foi sendo coletivamente elaborado. As

    narrativas sobre a formao e os usos do territrio ganharam mais profundidade nas

    oficinas de territrio, realizadas na comunidade Tabatinga, nos dias quatro e cinco de

    outubro de 2007, com aproximadamente trinta participantes no primeiro dia e vinte no

    segundo. Para iniciar, conduzi uma discusso sobre a noo de territrio, procurando

    compreender como os participantes entendiam esse termo. Em seguida os presentes

    listaram e descreveram todos os elementos que compunham (ou que compuseram) o

    territrio quilombola do Gua, incluindo os patrimnios materiais e os elementos da

    cultura do Gua. A partir dessa discusso foram produzidos cinco mapas, sendo um

    das comunidades Tabatinga e Jirau Grande, um de Guerm e Baixo do Gua, um do

    Guaruu e um geral, de todo o territrio.

    Apesar de a pesquisa instrumental ser tambm produo de conhecimento, j

    que para que um laudo seja antropolgico, deve obrigatoriamente ser elaborado

    segundo os procedimentos metodolgicos e o rigor habituais disciplina (SILVA,

    1994:61), compreendi que poderia aprofundar minha reflexo numa nova pesquisa. Isso

    evidentemente mudaria minha relao com as comunidades estudadas e

    consequentemente minha experincia de campo. Alm disso, os resultados da pesquisa

    no mais estariam no centro de disputas entre quilombolas e fazendeiros ou entre

    quilombolas e o Estado11. A pesquisa realizada anteriormente foi, portanto, um ponto

    de partida. As entrevistas, as observaes de campo, as atas de reunies e dados

    histricos sobre a regio do Gua contriburam para a construo da presente

    11 O maior paradoxo da poltica de regularizao fundiria dos territrios quilombolas que o Estado reconhece a existncia de um territrio tradicional, mas paralelamente a isso cria empreendimentos pblicos que violentam ou inviabilizam esse territrio. Enquanto o INCRA fazia o reconhecimento territorial, o Estado da Bahia, sobretudo atravs da SICM Secretaria da Indstria e Comrcio da Bahia, junto com a Prefeitura de Maragojipe elaboravam o projeto de construo do maior polo industrial da Amrica Latina nos arredores do Gua.

  • 13

    dissertao, mas foi tambm preciso estabelecer um novo procedimento metodolgico,

    para dar conta de responder as novas questes que o tema da mediao incitou.

    Primeiramente procurei fazer uma nova anlise das narrativas sobre o passado,

    dando maior importncia ao processo de produo da memria. Nesse sentido, alm de

    apresentar seus contedos, preocupei-me em apresentar em que contexto se deu as

    escolhas do que deveria ser lembrado e como os enunciados e smbolos foram

    mobilizados nesse processo. Assim coloquei as narrativas memoriais no centro da

    minha investigao, entendendo-as como material etnogrfico capaz de falar sobre as

    formas pelas quais o presente relaciona-se com o passado, me afastando, portanto, das

    perspectivas que utilizam a memria apenas como fonte para a construo da histria

    (ARRUTI, 2006).

    Apesar da releitura dos dados de campo coletados entre 2007 e 2008 senti

    necessidade de retornar a campo para observar mais profundamente o cotidiano das

    comunidades. Hospedei-me por duas semanas no stio da famlia Calheiros, onde reside

    a principal liderana das comunidades quilombolas do Gua, Lenira dos Santos

    Calheiros. A observao participante possibilitou ampliar minha compreenso acerca

    das relaes entre famlias vizinhas, bem como da relao entre as comunidades e os

    de fora, em geral agentes governamentais. Tambm propiciou um maior contato com

    outros membros das comunidades, antes desconhecidos, que forneceu um denso

    material para anlise dos significados compartilhados (ou no) a respeito da identidade

    coletiva e de suas representaes12. Mas acredito que o que foi mais enriquecedor, tendo

    em vista o recorte dado questo da mediao cultural, foi o convvio mais intenso com

    os lderes comunitrios, que me permitiu conhecer um pouco mais de suas histrias de

    vida e suas motivaes no presente.

    Uma das tarefas importantes para o pesquisador procurar identificar situaes e contextos mais ou menos propcios atividade mediadora. O estudo das trajetrias individuais torna-se assim estratgico para nossas finalidades. Estamos em um territrio interdisciplinar, onde as biografias so relevantes e potencialmente reveladoras em termos antropolgicos (VELHO, 2001:9).

    12 Nesse caso, procurei conhecer e conversar com pessoas que nunca tinham participado das reunies do movimento quilombola ou do movimento de pescadores. Busquei compreender as razes que as mantinham afastadas da mobilizao poltica do Gua.

  • 14

    Retornei ao Gua em maio de 2010, onde passei mais oito dias. Durante o

    perodo em que estive em campo, tive a sorte de presenciar a chegada de tcnicos da

    SEPROMI que tinham ido ao Gua para fazer pela segunda vez, oficinas de identidade

    em cada uma das comunidades13. Acompanhei as primeiras oficinas em Jirau Grande e

    Tabatingana na condio de observadora, j que um dos meus objetivos era observar

    possveis transformaes na forma dos quilombolas apresentarem a cultura e a

    histria do Gua aos agentes do governo. Essa foi uma oportunidade indita de

    participar daquele tipo de atividade sem estar no papel de mediadora, o que me permitiu

    ficar mais atenta aos momentos e s formas com que cada participante acionou a

    identidade quilombola.

    Foi igualmente nova a experincia de ficar na comunidade aps a sada dos

    tcnicos e ver a continuidade do agenciamento e a leitura que os participantes fizeram

    daquele encontro. Em funo disso, voltei ao Gua nos dias dezesseis e dezessete de

    julho, para participar das oficinas de identidade do Guerm e Baixo do Gua. Essa

    ltima ida a campo foi especialmente importante para uma maior reflexo sobre os

    motivos que levam os agentes comunitrios a escolher algumas prticas do grupo para

    serem apresentadas aos agentes governamentais como cultura, evidenciando assim os

    entendimentos nativos (ou o metadiscurso) sobre a cultura.

    Referencial terico

    No centenrio da abolio da escravatura (1988), o termo quilombo passou a

    ganhar maior visibilidade no cenrio brasileiro devido aos inmeros eventos que

    evocavam o Quilombo dos Palmares e seu lder Zumbi, realizados pelo movimento

    negro (ARRUTI, 2003). Mais do que referncias histricas, essas imagens, assim como

    o dia vinte de novembro (aniversrio de morte de Zumbi), ganharam significado

    metafrico de luta e conquista e foram utilizadas como palavras de fora e smbolo da

    13 Para as comunidades j era a terceira vez que essas oficinas estavam acontecendo. A primeira foi em 2007, cuja oficina foi coordenada por mim na condio de tcnica do INCRA. A segunda foi no incio de 2009, durante a ao do Grupo Intersetorial para Quilombos, coordenada pela SEPROMI. E a terceira em maio e julho de 2010, em atividades da SEPROMI.

  • 15

    resistncia do negro no Brasil. Arruti (2003) descreveu este processo como uma

    converso simblica do prprio quilombo enquanto metfora14.

    No mesmo ano o pas passava por um processo de redemocratizao que ganhou

    ainda mais fora com a nova Constituio Federal de 1988, que contemplou parte da

    pauta de reivindicaes por reparaes oficiais para a populao negra, dando origem a

    novos direitos. Atravs do Artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais

    Transitrias da Constituio Federal, instituiu-se que aos remanescentes das

    comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a

    propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos (BRASIL,

    1988). Os formuladores dessa lei no poderiam prever que esta seria apropriada pelo

    movimento social enquanto uma poderosa ferramenta de luta, sobretudo pela terra, e

    tampouco que contribuiria para a emergncia de novos sujeitos polticos. A criao do

    artigo constitucional implicou inovaes no s no plano do direito fundirio, mas

    tambm no plano do imaginrio social, da historiografia, dos estudos antropolgicos e

    sociolgicos sobre populaes camponesas e no plano das polticas locais, estaduais e

    federais, que envolvem tais populaes (ARRUTI, 2003:12). Nesse sentido, alm de

    uma criao jurdica, o artigo foi tambm uma criao social e simblica.

    Foi nesse contexto de disputas sociais e territoriais que as categorias quilombos e

    quilombolas foram acionadas. Muitas comunidades rurais passaram a se diferenciar

    tnico-racialmente, recorrendo ao direito, a partir da publicao do Decreto Presidencial

    4.887 de 200315, de se autorreconhecerem oficialmente como remanescentes de

    quilombos. Em resposta ao nmero cada vez maior de autorreconhecimentos,

    proprietrios rurais e a bancada ruralista brasileira16 passaram a contestar ativamente os

    processos de regularizao das terras, previstos no Decreto 4887/2003. No entanto esse

    decreto tinha respaldo legal na Constituio Federal, levando os envolvidos nos

    14 o que Marshall Sahlins denomina processo de metaforizao, ou seja, quando velhas palavras adquirem novos sentidos a partir do esforo de explicar novos eventos (LEITE, 2007 :2 [no prelo]). 15 Decreto 4.887/2003: Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos tnico-raciais, segundo critrios de auto-atribuio, com trajetria histrica prpria, dotados de relaes territoriais especficas, com presuno de ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida. 16 A bancada ruralista constitui uma frente parlamentar na Cmara dos Deputados, atuando na na defesa dos interesses dos grandes proprietrios rurais, embora, por razes estratgicas, s vezes se coloque ao lado das reivindicaes dos pequenos produtores.

  • 16

    conflitos de reconhecimento do territrio quilombola a mudar o foco das contestaes.

    Proprietrios de terras e seus advogados passaram a apresentam discursos que atacam a

    credibilidade das comunidades ou que apontam para uma descontinuidade na ocupao

    das terras por seus remanescentes. Em contestaes de processos administrativos ou em

    processos judiciais, frequentemente argumentado que a grande maioria dos quilombos

    foi destruda e que os poucos que restaram so bastante afastados dos centros urbanos e

    das sedes das antigas fazendas (SILVA, 1999: 268). Nesses casos, as runas de antigos

    engenhos e casares coloniais e a ausncia de isolamento geogrfico seriam as provas

    que sustentariam acusaes de fraude. De acordo com Valdlio Silva (Idem):

    A base das argumentaes para a no aplicao do artigo 68 retoma o arcabouo jurdico colonial, que definia quilombo como grupo de escravos que, margem das leis existentes, fugiam e se embrenhavam nas matas para saquear, roubar e matar administradores e proprietrios de fazendas. Tal noo, ainda hoje, baliza e estrutura os argumentos legais dos que advogam contra os interesses das comunidades.

    A antiga noo de quilombo, baseada nos preceitos jurdicos da legislao do

    Brasil Colnia, tornou-se um obstculo para a aplicao da lei na atualidade. A ideia

    mais comum na historiografia brasileira - de que os quilombos haveriam se extinguido

    no passado, seja pela captura dos escravos foragidos por parte dos senhores, seja pelas

    investidas do Estado para dizim-los - continua bastante viva no senso comum e nas

    interpretaes jurdicas, dificultando que as comunidades remanescentes de quilombo

    tenham assegurados seus direitos terra. Nesse sentido, inmeros antroplogos17

    apontaram para a necessidade de libertar a definio de quilombo dessas concepes

    escravocratas que serviram de alicerce para a historiografia que a criou. Assim, a noo

    de quilombo deveria ser problematizada e ressemantizada com base em outras

    categorias que pudessem dar conta da pluralidade histrica das comunidades

    quilombolas, sobretudo no que concerne posse e ttulo de suas terras.

    A participao militante de antroplogos nos processos de regularizao

    fundiria dos quilombos deslocou o curso das discusses sobre a tradio das

    comunidades negras rurais para a situao do campesinato ps-plantation (ARRUTI,

    17 Alfredo Wagner, Jos Maurcio Arruti, Ilka Boaventura Leite, Eliane ODwyer, Maria Rosrio Carvalho, Valdlio Santos Silva, entre outros.

  • 17

    2006)18. O laudo antropolgico produzido pelo antroplogo Alfredo Wagner, que

    classificou a comunidade Frechal (MA) como remanescente de quilombo, foi um marco

    para a afirmao de um direito campons que se opunha s noes de fuga e

    isolamento (Idem). Os novos significados atribudos ao termo quilombo permitiram que

    as terras de pretos, terras de santo, terras comuns, at ento no contempladas

    pela legislao, pudessem se enquadrar nessa categoria (ALMEIDA, 2006b). Em 1994,

    a Associao Brasileira de Antropologia (ABA) lana um documento trazendo novas

    definies para o termo quilombos, cujo contedo foi publicado no ano seguinte pela

    ento coordenadora do Grupo de Trabalho Terras de Quilombo, Eliane ODwyer

    (1995: 02):

    Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo no se refere a resduos ou resqucios arqueolgicos de ocupao temporal ou de comprovao biolgica. Tambm no se trata de grupos isolados ou de uma populao estritamente homognea. Da mesma forma, nem sempre foram constitudos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram prticas cotidianas de resistncia na manuteno e reproduo dos seus modos de vida caractersticos e na consolidao de um territrio prprio.

    A ressignificao do termo quilombo no foi protagonizada apenas por

    antroplogos, por militantes do movimento social e por lderes de comunidades negras

    rurais. Alguns historiadores tiveram grande participao na quebra do paradigma da

    fuga e do isolamento, apontando para a necessidade de uma reviso da historiografia

    sobre os quilombos brasileiros. Nesse sentido, deveriam ser repensados no apenas os

    quilombos contemporneos, mas tambm os ditos quilombos histricos 19. Segundo

    Joo Reis e Flvio dos Santos Gomes (1996: 332):

    18 O Grupo de Trabalho sobre Terras de Quilombo, da Associao Brasileira de Antropologia, teve papel importante nesse processo. 19 Em reunies do Grupo de Trabalho Terras de Quilombo da ABANNE (Reunio de Antroplogos do Norte e Nordeste) e em grupos de trabalho sobre quilombos da REA (Reunio Equatorial de Antropologia), frequentemente o termo quilombo histrico foi utilizado para se referir queles quilombos originados a partir da fuga e do isolamento de escravos, em oposio ao termo quilombo contemporneo. O termo quilombo histrico reflete a viso equivocada de alguns antroplogos sobre a historiografia brasileira, que a concebem enquanto uma disciplina esttica e conservadora, que se contrape perspectiva mais atualizada da antropologia. Por essa razo, o termo foi questionado tanto por historiadores como por antroplogos que acreditam que isso incita uma falsa oposio entre antropologia e histria, no que se refere aos estudos de quilombos brasileiros.

  • 18

    A formao de quilombos um aspecto da escravido pouco estudado no Brasil. Menos ainda a relao entre quilombos e a sociedade que os cercava. Embora os especialistas sobre o assunto j tenham chamado a ateno para o engano, predomina uma viso do quilombo que o coloca isolado no alto da serra, formado por centenas de escravos fugidos que se uniam para reconstruir uma vida africana em liberdade, ou seja, prevalece uma concepo palmarina do quilombo enquanto sociedade alternativa. Um grande nmero de quilombos, talvez a maioria, no foi assim. Os fugitivos eram poucos, se estabeleciam prximos s povoaes, fazendas, engenhos, lavras, s vezes nas imediaes de importantes centros urbanos, e mantinham relaes ora conflituosas, ora amistosas, com diferentes membros da sociedade envolvente. Sociedade envolvente e tambm absorvente, no sentido de que os quilombolas circulavam com freqncia entre seus quilombos e os espaos legtimos da escravido.

    O novo conceito de quilombo, com base em outros campos de referncia,

    trouxe implicaes. Por um lado, libertou o conceito de suas amarras conservadoras e

    ampliou sua abrangncia, abarcando inmeras comunidades rurais. Por outro, no

    lugar do paradigma da fuga de isolamento, a ressemantizao lana mo do paradigma

    do uso comum (ARRUTI, 2006: 90). Isso porque, na mesma definio de quilombos

    apresentada pela ABA, ODwyer (1995:02) afirma que no que diz respeito

    territorialidade para alguns grupos quilombolas (...) a ocupao da terra no feita em

    termos de lotes individuais, predominando seu uso comum.

    A terra de uso comum, observada em Frechal, aos poucos deixa de ser um

    exemplo de diversidade para se tornar, dentro de um discurso jurdico, um modelo

    sobre o qual se deve normatizar (ARRUTI, 2006). Assim, as instrues normativas do

    INCRA (que apontam como terras ocupadas por remanescentes de quilombos devem

    ser tituladas) partem do pressuposto do uso comum da terra, ainda que a legislao no

    especifique que a propriedade quilombola tenha que ser coletiva20. Novamente, o termo

    quilombo se prendeu a uma generalizao, voltando a se afastar da realidade de parte

    do campesinato negro brasileiro. A ideia de um territrio coletivo, cujo uso e ocupao

    se baseiam em laos de parentesco e vizinhana, assentados em relaes de

    reciprocidade (ODWYER, 1995: 02) no se aplica a todas as comunidades que

    atualmente se reconhecem como quilombolas. Os inmeros conflitos ocorridos nos

    processos de reconhecimento territorial de quilombos baianos, a partir de 2005,

    20 O Artigo 68 do ADT da Constituio de 1988 apenas diz que os remanescentes de quilombos tm direito s terras que tradicionalmente ocupam.

  • 19

    ilustram isso21. A ideia de quilombo cujas terras so coletivas nos remete, na verdade, a

    outra ideia muito mais antiga: a de comunidade. Dessa forma, tambm preciso

    problematizar os usos desse termo.

    Cabe aqui o desafio de definir comunidade, j que se trata de um dos conceitos

    mais vagos e evasivos nas cincias sociais. Nessa tarefa deparamos com vrias

    dificuldades de tipo terico, devido diversidade de sentidos atribudos palavra (tanto

    no meio acadmico quanto no senso comum) e s conotaes emotivas que ela pode

    evocar. Comunidade se tornou um termo frequentemente utilizado por integrantes de

    movimentos sociais e por agentes governamentais para descrever agrupamentos

    humanos que variam de vizinhanas, conjuntos habitacionais, aldeias, grupos tnicos e

    at naes e organizaes internacionais. Uma vez que o termo foi atribudo s mais

    variadas escalas, necessrio que faamos uma rpida reviso das principais

    perspectivas.

    Uma das primeiras tentativas de conceituar o termo comunidade foi do socilogo

    alemo Ferdinand Tnnies (1947 [1887]). Para o autor, Gemeinschaften (comunidade)

    seria o resultado da unio de foras de vrios humanos, no sentido de conservar suas

    vontades naturais. O autor usava o termo vontade natural para se referir s interaes

    humanas motivadas por necessidades orgnicas como alimentao, reproduo e

    autopreservao. Se guiadas pela vontade natural, as relaes de sociabilidade do grupo

    seriam naturais e durveis, com valor em si mesmas, independentemente de fatores

    externos. A livre expresso das vontades, o conhecimento ntimo (determinado pelas

    condies de vida comum e por sentimentos como afeto, amor e devoo) e a

    conscincia da dependncia mtua entre os membros do grupo, criariam um consenso.

    (Idem: 41).

    Para Bauman (2003) concepes de comunidade fundamentadas nas ideias de

    liberdade e consenso, como a de Tnnies, nos remetem sempre a uma ideia a priori

    positiva, como se toda comunidade fosse harmnica, aconchegante,

    autossuficiente. O autor afirma que, pelo contrrio, nas comunidades existem tenses

    21 Somente na Bahia foram registrados srios conflitos em trs processos de regularizao fundiria, envolvendo as comunidades So Francisco do Paraguau, em Cachoeira; Ara-Cariac Volta, em Bom Jesus da Lapa;Tapera, Pau Grande e Barreiros em Mata de So Joo. Nesse ltimo caso, os conflitos internos foram to intensos que levaram ao arquivamento do processo; Nos trs casos as comunidades permaneceram divididas no que se refere ao ttulo coletivo da terra. Algumas famlias concordavam, enquanto outras queriam a garantia do direito de propriedade individual da terra, mais prximo ao que seria o direito de usucapio.

  • 20

    permanentes entre a utpica e almejada proteo coletiva e a ideia de liberdade, uma

    vez que os indivduos buscam segurana, mas tambm resistem a ela em prol de suas

    individualidades. Assim, Bauman (Idem: 36) sugere o esforo de substituir o

    entendimento natural da comunidade de outrora, o ritmo regulado pela natureza, da

    lavoura, e a rotina, regulada pela tradio, da vida do arteso, por uma outra rotina

    artificialmente projetada e coercitivamente imposta e monitorada. Com isso, o autor

    procura dar conta de explicar a emergncia do sentido de comunidade em grupos

    inseridos em uma nova estrutura de poder e a tendncia atual desses grupos a naturalizar

    os padres de conduta impostos por outros grupos sociais.

    Apesar das pertinentes crticas perspectiva evolucionista e romntica de

    Tnnies, que naturaliza os comportamentos sociais, no podemos descartar suas

    importantes contribuies no esforo de conceituar comunidade. Partindo da ideia de

    consenso, enquanto um modo associativo comum e recproco de sentir, fundamental

    para a formao das comunidades, o autor chega noo de sentimento de

    pertencimento (TNNIES, 1947 [1887]). Ao analisar comunidades camponesas, o autor

    observou que alm do uso de bens comuns e da partilha de amigos e inimigos comuns,

    h um sentimento de pertencimento que pode se fundamentar em diferentes bases,

    originando trs formas recorrentes de relaes comunitrias (Ibidem: 33). A primeira

    baseada em laos de sangue, em funo do parentesco entre os membros do grupo. A

    segunda resultante da coabitao e da convivncia de uma vizinhana num mesmo

    lugar. A terceira baseada na afinidade de esprito, pautada na amizade entre os

    membros do grupo, em funo da semelhana de suas identidades e profisses.

    De fato, as relaes de consanguinidade, afinidade e reciprocidade listadas por

    Tnnies so, at hoje, boas para pensar a perpetuao das fronteiras comunitrias.

    Porm, Max Weber (1999 [1922]) d um salto analtico, indo alm nessa perspectiva, ao

    constatar que os laos de parentesco e amizade s seriam essenciais para a existncia de

    uma comunidade se assim fossem pensados pelo grupo. Assim, Weber (1999[1922]:25)

    retoma um elemento central da definio de Tnnies o sentimento de pertencimento -

    para afirmar que uma relao social denomina-se relao comunitria quando e na

    medida em que a atitude na ao social (...) repousa no sentimento subjetivo dos

    participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo22. Para Weber

    22 Enquanto que nas relaes associativas as aes repousariam numa unio de interesses racionalmente motivados, que dariam origem ao que Tnnies (Idem) chamou de Gesellschaften (sociedade).

  • 21

    (Idem: 270), era a crena em uma origem comum - sendo esta objetivamente fundada

    ou no - que favorecia a formao de comunidades polticas, baseadas na comunho

    tnica. As comunidades tnicas seriam, portanto:

    [...] aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanas no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranas de colonizao e migrao, nutrem uma crena subjetiva na procedncia comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagao de relaes comunitrias, sendo indiferente se existe ou no uma comunidade de sangue efetiva (Ibidem).

    A noo weberiana de comunidade tnica foi retomada anos mais tarde, servindo

    de base para inmeras fundamentaes tericas sobre grupos tnicos e suas fronteiras,

    sobretudo no fim da dcada de 1960 (cf. BARTH, 1969; COHEN, 1974). Nesse mesmo

    perodo, entretanto, outros socilogos se empenhavam em definir comunidade

    baseando-se em critrios pouco subjetivos, por vezes desenvolvimentistas. Nas dcadas

    de 1950 e 1960, intensificaram-se os chamados estudos de comunidade, que vinham

    sendo realizados desde 1929 no Brasil, por pesquisadores norte-americanos e por

    pesquisadores brasileiros vinculados ao governo estadual baiano. Destes trabalhos,

    destacam-se os coordenados por Charles Wagley, na Bahia, via Universidade de

    Colmbia e o coordenado por Donald Pierson, no Vale do So Francisco, herdando a

    tradio da Escola de Chicago (MAIO: 1999).

    Se tomarmos o conjunto das inmeras pesquisas realizadas em diferentes regies

    da Bahia entre 1940 e 1960, no conseguimos chegar a uma nica definio para

    comunidade, ainda que na maioria dos estudos o nmero de habitantes, o grau de

    isolamento e de desenvolvimento do povoado estudado tenham sido critrios

    recorrentes. Na pesquisa de Harris, realizada no municpio de Rio das Contas, no

    Planalto da Serra do Espinhao, a definio de comunidade est muito associada

    ruralidade enquanto um contraponto ao desenvolvimento, sendo demarcada a partir de

    critrios considerados objetivos, tais como tamanho do local, tipo de atividade produtiva

    e infraestrutura. Alm de bastante vago, essa conceito no d conta de explicar o

    sentimento de comunidade presente em contextos diversos, tais como as comunidades

    situadas em zonas urbanas ou as ditas emergentes. Um ponto ainda mais crtico que

    a perspectiva terica dos estudos de comunidade, muito simplificadamente, congela o

  • 22

    grupo estudado no presente etnogrfico (sem diacronia) e em si mesmo, sem levar em

    conta suas relaes com o contexto externo (ou sem o situar numa escala ampliada).

    Novas definies se afastaram de um enfoque territorial, deixando de ver

    comunidade como algo dado, abrindo espao para anlises que enfatizam o carter

    situacional e processual das relaes comunitrias. A ateno ento passou a incidir

    sobre as situaes em que as experincias dos atores sociais so concebidas como

    comunais. A conscincia de participar de uma comunidade e os recursos acionados na

    construo do pertencimento seriam eles prprios sujeitos da anlise. Cohen (1985:12)

    parte desse entendimento para afirmar que as fronteiras que diferenciam os semelhantes

    dos demais resultariam de delimitaes mentais construdas pelos indivduos, marcando

    o incio e o fim da comunidade. Nesse sentido, as percepes dos limites da

    comunidade so fluidas, pois os smbolos coletivamente partilhados so manipulados

    conforme as interpretaes e interesses individuais dos seus membros (Idem). Assim, a

    comunidade pode ser entendida como um mecanismo que expressa as suas prprias

    fronteiras, uma forma de pensar, crer, sentir, agir e, de acordo com Benedict Anderson

    (2008), imaginar.

    medida que a conscincia individual e coletiva das diferenas do grupo

    aumenta, o sentimento de identificao e pertencimento da comunidade potencializa-se.

    Diferena e identidade so produzidas mutuamente, num mesmo processo de produo

    simblica e discursiva e s podem ser compreendidas dentro de um sistema de

    significao no qual adquirem sentido e pelo qual elas so representadas (SILVA,

    2000:76). As representaes atuam classificando o mundo e as relaes sociais atravs

    do estabelecimento de fronteiras que separam identidades, tambm em termos sociais e

    materiais (Idem). Assim, desigualdades entre os diferentes grupos sociais so as formas

    com que essas classificaes so experienciadas. Fica ento clara a dimenso poltica da

    atividade de representao, se incluirmos na noo de poltica outros exerccios de

    poder (mediao cultural, estratgias de produo de consensos em torno da forma de

    representao) na vida comunitria familiar, em redes sociais e nas relaes intertnicas,

    para alm do aparato estatal ou de instituies polticas formais (FOUCAULT, 1979).

    O ato de demarcar fronteiras envolvem disputas no interior de um campo de

    foras na maioria das vezes antagnicas, onde se constroem agentes polticos por meio

    do agenciamento das diferenas (MONTERO et al, no prelo: 2009). nesse sentido que

  • 23

    em Identidade e Diferena (HALL et al, 2000), os autores enfatizam que a construo

    social da diferena ocorre em um contexto marcado por disputas de poder, em que um

    grupo simbolicamente marcado como inferior ser socialmente excludo e ter

    desvantagens materiais em relao a outros. Uma vez que cria tambm atos de excluso,

    a construo da identidade tanto simblica quanto social (WOODWARD, 2000:10).

    Isso significa que ao construir simbolicamente uma comunidade, os indivduos

    transformam-na num repositrio de significados, num referente para a identidade

    coletiva e numa estratgia social e poltica, capaz de manter ou reverter uma situao

    social (COHEN, 1985:13).

    Essa perspectiva nos remete novamente definio de comunidade tnica (ou

    grupo tnico) de Weber (1999 [1922]: 270), entendida como resultado de um processo

    simultaneamente identitrio e poltico, uma vez que, para o autor, tanto a comunho

    tnica fomenta as relaes comunitrias polticas, quanto a comunidade poltica

    costuma despertar a crena na comunho tnica. A definio de Weber provocou um

    rompimento com noes que utilizaram critrios biolgicos para determinar suas

    fronteiras entre grupos, com frequncia substituindo a noo de raa por etnia. Tambm

    se afastou de uma noo predominante nos estudos sociolgicos da poca, que

    utilizavam o termo grupo tnico para designar agrupamentos ou populaes que

    compartilham valores culturais fundamentais, como lngua ou religio, acreditando que

    estes so capazes de gerar uma unidade que perdura ao longo do tempo e que mantm a

    coeso do grupo.

    Quase meio sculo depois, Fredrik Barth (1998 [1969]), na famosa introduo da

    obra coletiva Grupos tnicos e Suas Fronteiras, retoma a perspectiva weberiana ao

    propor que a ateno deveria ser dirigida anlise do grupo tnico enquanto um tipo de

    organizao social, criticando as definies baseadas na diferena racial ou cultural, que

    em geral recorriam ideia de isolamento dos grupos. O autor apontou para a

    necessidade de substituir a concepo esttica de identidade tnica por uma mais

    dinmica (situacional e relacional), uma vez que qualquer identidade coletiva se forma e

    se transforma na interao dos grupos sociais.

    A identidade tnica deveria ser entendida como sendo contrastiva, realizando

    uma separao analtica em relao cultura. Nesse sentido, Barth nos oferece novas

    respostas questo da diferenciao, ao apontar que os grupos tnicos surgem no a

  • 24

    partir de continuidades culturais, mas na medida em que os atores usam identidades

    tnicas para categorizar a si mesmos e aos outros, com o objetivo de interao

    (Idem:193). As fronteiras sociais que a se estabelecem so fundamentais para a

    perpetuao da distino tnica, sendo os sinais diacrticos que marcam as diferenas do

    grupo muitas vezes elementos da dita cultura agenciveis e, portanto, passveis de

    transformaes ao longo do tempo.

    A definio essencialmente poltica de "grupos tnicos" de Fredrik Barth foi

    amplamente utilizada pelos antroplogos brasileiros na anlise de comunidades

    autorreconhecidas como indgenas. A ideia de que os grupos tnicos, enquanto formas

    de organizao social, tanto so identificados, como podem se auto identificar como

    tais, se difundiu na antropologia e ganhou espao tambm nos movimentos sociais e na

    legislao brasileira (CUNHA, 1983:100). A auto atribuio dos grupos, e no mais a

    origem ou tradio, passou a ser o nico critrio para o reconhecimento dos povos e

    populaes etnicamente distintos, incluindo os grupos autorreconhecidos como

    quilombolas.

    Se por um lado a formulao barthiniana foi fundamental nos processos de luta

    poltica em prol dos direitos indgenas e quilombolas, por outro lado ela se mostrou

    limitada no plano terico-analtico. Apesar de Oliveira (2006) concordar com Barth que

    o conceito de identidade deva ter certa autonomia em relao cultura, esclarece que

    no significa que a expresso da identidade tnica no sofra influncia da varivel

    cultural. Para o autor, nos estudos das realidades intertnicas, a cultura deve ser

    considerada no somente em sua funo diacrtica, mas por seu carter particularmente

    simblico e representativo, se nela estiverem expressos os valores tanto quanto os

    horizontes nativos de percepo dos agentes sociais inseridos na situao de contato

    intertnico e intercultural (Idem: 35).

    Anos mais tarde, o novo Barth de O Guru, o Iniciador e Outras Variaes

    Antropolgicas (2000) problematiza exatamente essa ambivalncia presente na

    categoria analtica de cultura, uma vez que se refere tanto a uma variedade de padres

    (que podem ser observados e descritos pelo etngrafo), como a uma essncia

    subjacente a esses padres. Segundo o autor, muitos antroplogos acabam por

    essencializar algum padro escolhido ao acaso (de preferncia um que se mostre mais

    claro e delimitado) reforando o pressuposto de que a cultura apresenta uma coerncia

  • 25

    lgica e uma ordem geral. Ao optarem pela omisso de possveis sinais de incoerncia e

    de multiculturalismo, perpetuam alguns pressupostos holistas e de integrao, herdados

    das tradies antropolgicas funcionalista e estruturalista.

    Nesse sentido, Barth (Idem) aponta para a necessidade de reconceitualizar a

    noo cultura, propondo que para descobrir significados no mundo dos outros,

    precisamos ligar um fragmento de cultura e um determinado ator(a) constelao

    particular de experincias, conhecimentos e orientaes desse/dessa ator(a) (2000:128).

    Assim, o autor entende que a cultura distributiva, ou seja, compartilhada por alguns

    atores sociais e no por outros, em que cada um est posicionado e age segundo suas

    intenes, formadas tambm por partes de diversas correntes culturais (Idem). Em

    outras palavras, os significados das coisas so produto da relao entre uma

    configurao (ou signo) e um observador. Porm, na maioria das vezes, as intenes

    individuais dos atores, observadas nos discursos, no so as causas dos eventos, uma

    vez que estes resultam tanto da interao social quanto da situao material da

    sociedade. Resumidamente, o significado no mundo do outro s pode ser corretamente

    compreendido quando relacionado "ao contexto, prxis e inteno comunicativa"

    (Ibidem:132).

    A proposta de Barth dialoga profundamente com o entendimento de Marshall

    Sahlins (1990:10), de que agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes

    sociais diversos para a objetivao de suas interpretaes, as pessoas chegam a

    diferentes concluses e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua maneira.

    Os significados so, portanto, submetidos a riscos subjetivos - a comunicao social

    um risco to grande quanto as referncias materiais - podendo levar a sociedade a

    inovaes radicais (Idem). Se os significados so reavaliados quando realizados na

    prtica, o autor conclui que a cultura historicamente reproduzida na ao (Ibidem:7).

    Trazendo essas perspectivas tericas para a anlise dos processos de

    etnognese23, percebemos que o prprio significado de cultura foi reelaborado na

    prtica dos movimentos sociais. O que antes era uma categoria analtica, prpria da

    23 Concordando com Joo Pacheco de Oliveira (2004:30), acredito que os termos etnognese, de Gerald Sider (1976) e emergncia tnica podem substantivar um processo histrico de formao de identidades, que no exclusividade dos grupos chamados tnicos. Portanto usarei os termos nessa dissertao sempre associados ideia de processo.

  • 26

    antropologia, ganhou outro sentido ao ser utilizada como categoria nativa dos novos

    grupos tnicos. Manuela Carneiro da Cunha (2009) diferencia esse sentido utilizando

    aspas. Assim, a cultura seria aquilo que dito acerca da cultura, ou seja, um

    metadiscurso sobre a cultura. Ainda de acordo com a autora, alm de viver na cultura,

    as pessoas tm conscincia da prpria cultura e tambm a vivenciam. Porm,

    analiticamente, essas duas esferas so distintas, j que se baseiam em diferentes

    princpios de inteligibilidade. A lgica interna da cultura no coincide com a lgica

    intertnica das culturas (CUNHA, 2009:359). Para Arruti, Montero e Pompa (no

    prelo, 2009:2):

    A cultura passou a ocupar tantos lugares, funes, e papis no vocabulrio poltico, que deixou de ser eficiente enquanto um conceito analtico. Desse modo, os ditos especialistas da cultura ficaram cada vez mais reduzidos produo de uma antropologia que tem por objeto a cultura enquanto instrumento, resultado ou traduo de interesses que desguam no campo da poltica.

    Tendo em vista a instrumentalizao poltica do conceito de cultura e,

    paralelamente, a eroso desse conceito no plano terico-analtico, Arruti, Montero e

    Pompa (Idem) propem a redefinio do objeto da antropologia e dos parmetros que

    orientam sua abordagem. Assim, sugerem que o poltico deveria ocupar na

    antropologia contempornea o lugar terico-metodolgico deixado vago pelo conceito

    de cultura na antropologia clssica (Ibidem:1). Para os autores, os processos

    contemporneos de reposio de alteridades em termos de identidades processos

    em que a cultura constantemente agenciada - seriam o objeto de anlise dessa

    antropologia do poltico (Idem: 3).

    O entendimento dos processos de emergncia tnica enquanto processos

    polticos j vinha sendo sinalizado desde a introduo da noo de territorialidade

    vinculada de etnicidade. Na introduo de Urban Ethnicity (1974) Cohen j apontava

    que a etnicidade seria pouco til se fosse usada para indicar diferenas culturais em

    sociedades autnomas ou isoladas. Para o autor, a dimenso propriamente tnica da

    identidade depende da interatuao de grupos culturais em contextos sociais e

    territoriais comuns, sendo a etnicidade essencialmente a forma com que estes grupos,

    com interesses distintos, interagem. Consequentemente, nas sociedades multiculturais, a

    questo da identidade tnica e de seu reconhecimento ser mais crtica e em muitos

  • 27

    casos ter estreita conexo com a dimenso da territorialidade (CARDOSO DE

    OLIVEIRA, 2006). Para Joo Pacheco de Oliveira (2004: 23), exatamente nesse ponto

    que a formulao do velho Barth (1969) encontrou sua maior limitao, uma vez que

    no deu a devida importncia ao contexto mais amplo no qual se constituem os grupos

    tnicos.

    Oliveira (Idem) enfatizou que a interao dos grupos sociais processada

    dentro de um quadro poltico preciso, cujos parmetros so dados pelo Estado-nao.

    Lembrando que este quadro sofre influncia poltica de outros Estados e de

    regulamentaes internacionais que ganham a cada dia mais fora e que podem

    instituir novos dinamismos na relao entre grupo tnico e Estado-nao (Ibidem). O

    autor prope ento que a investigao antropolgica abranja tanto os mecanismos

    internos populao em questo, quanto aqueles exteriores a ela, resultantes das

    relaes de fora entre os diferentes grupos que integram o Estado. Segundo Arruti

    (2006:40), somente assim seria possvel analisar alguns fenmenos envolvendo grupos

    tnicos. Para o autor:

    A ateno na autoatribuio, nas fronteiras intertnicas, na contrastividade ou mesmo na situacionalidade identitria no d conta da passagem entre o fenmeno de adscrio tnica (necessariamente local) do grupo (o etnnimo) e a sua adeso categoria genrica e englobante de "indgena" (ou de "quilombola"), de carter jurdico-administrativo (Idem).

    Ao trazer o Estado para o centro das discusses sobre a formao dos grupos

    tnicos, Pacheco de Oliveira (2004) lana mo do conceito de "territorializao". Para o

    autor, se a administrao estatal realiza a gesto do territrio, divide a sua populao

    em unidades geogrficas menores e hierarquicamente relacionadas, define limites e

    demarca fronteiras (Idem: 21), a dimenso territorial se mostra boa para pensar a

    incorporao de populaes etnicamente diferenciadas dentro de um Estado-nao. Os

    processos de territorializao, desterritorializao e de disputas territoriais se tornam,

    portanto, objeto central para a compreenso da formao de muitos grupos tnicos, de

    relaes intertnicas e tambm de territrios. De acordo com Pacheco de Oliveira

    (2004: 22), a territorializao como um processo de reorganizao social implica:

  • 28

    i) A criao de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade tnica diferenciadora;

    ii) A constituio de mecanismos polticos especializados; iii) A redefinio do controle social sobre os recursos ambientais; iv) A reelaborao da cultura e da relao com o passado.

    Ilustra bem essa perspectiva a afirmao de Alfredo Wagner Almeida (Apud

    MALIGHETTI, 2007), de que nos processos de autoidentificao de comunidades

    como quilombolas, a territorialidade se apresenta como condio de aplicao da noo

    de etnicidade24. No caso dos quilombos, esses diferentes processos poltico-sociais

    formam o que Almeida (2006:25) chamou de territorialidades especficas, que

    originam territrios especficos no interior de um Estado pluritnico.

    Os territrios tnicos devem ser entendidos, portanto, como fruto de relaes

    sociais, polticas, jurdicas, econmicas e culturais que se estabeleceram num espao ao

    longo da histria, no qual diversos acontecimentos territoriais se sobrepem (LITTLE,

    2002). Mais do que seus aspectos fsicos-ambientais, destaca-se a conduta de seus

    ocupantes na sua composio, administrao, e consequentemente, as suas

    responsabilidades, individual e coletiva, frente aos cenrios que se constroem (Idem).

    O campo de foras e as relaes de poder entre grupos sociais que se

    estabelecem em um determinado espao se apresentam como pontos fundamentais a

    serem abordados nos estudos territoriais. Com esse intuito, diversos pesquisadores

    priorizam investigar as atividades produtivas, especialmente as relaes entre capital e

    trabalho e os embates entre classes sociais25. Porm, o territrio tambm estabelecido

    e mantido por dimenses mais subjetivas, que incluem os saberes, os sentimentos de

    reciprocidade, identificao e pertencimento e as ideologias do grupo (LITTLE,

    2002)26. Isso significa que para alm de uma apropriao poltica e econmica do

    espao, h uma apropriao simblica, em que a distribuio, utilizao, classificao,

    24 Roberto Malighetti (2007:238) seleciona citaes de documentos de 1996 sobre a comunidade quilombola Frechal, em que Alfredo Wagner Almeida afirma que a territorialidade funda a identidade tnica de cada comunidade negra.

    25 Essa abordagem predominante nos estudos territoriais clssicos da geografia agrria. 26 Paul Little (2002:4) utiliza o conceito de cosmografia para definir esses saberes ambientais, ideologias e identidades coletivamente criados e historicamente situados que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu territrio. Outros autores, tais como Cardoso de Oliveira (2006), Almeida (2000, 2006b), Haesbaert (2005), Malighetti (2007) veem esses elementos subjetivos, como constituintes da prpria territorialidade do grupo.

  • 29

    delimitao e defesa do territrio so tambm produto do imaginrio coletivo,

    (HAESBAERT, 2005: 6783).

    Assim como a territorialidade, a diferena racial de um determinado grupo

    social passa a se apresentar como elemento importante na configurao tnica27. Apesar

    de as minorias tnicas no Brasil serem reconhecidas como componentes de um pas

    pluritnico o que significa que elas no esto em um territrio propriamente

    estrangeiro - os processos de disputas territoriais tambm contribuem para uma

    frequente evocao de uma perspectiva de raa. Isso fica bastante evidente quando, ao

    longo do processo de reivindicao territorial, um grupo passa a afirmar enquanto um

    povo distinto e em alguns casos enquanto uma raa distinta. Diante disso, achei

    pertinente buscar reflexes mais atuais acerca dos usos do conceito de raa nos estudos

    sociolgicos e antropolgicos.

    Atualmente, h certo receio, dentro das cincias sociais, do uso do conceito de

    raa em funo da carga ideolgica opressiva que acompanha essa noo, acreditando

    que ela contribuiria para a perpetuao das desigualdades entre diferentes grupos

    humanos. Alguns recorrem a um discurso cientificista, alegando que o termo deve ser

    abandonado, uma vez que a Biologia nega a existncia de diferentes raas humanas h

    pelo menos quatro dcadas. Por outro lado, uma corrente de pesquisadores e militantes

    do movimento social defende a utilizao da noo de raa nas ci