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Mestrado Zagatto
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
Mestrado em Antropologia
BRUNA PASTRO ZAGATTO
EU SOU MARISQUEIRA, LAVRADORA E QUILOMBOLA: UMA ANLISE DO PROCESSO DE CONSTRUO DA IDENTIDADE NAS COMUNIDADES RURAIS DO GUA, MARAGOJIPE, BAHIA.
SALVADOR
2011
BRUNA PASTRO ZAGATTO
EU SOU MARISQUEIRA, LAVRADORA E QUILOMBOLA:
Uma anlise do processo de construo da identidade nas comunidades rurais do Gua, Maragojipe, Bahia.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Luis Nicolau Pars
SALVADOR
2011
ZAGATTO, Bruna Eu sou marisqueira, lavradora e quilombola: Uma anlise do processo de construo da identidade nas comunidades rurais do Gua, Maragojipe, Bahia. Salvador, 2011.
Orientador: Prof. Dr. Luis Nicolau Pars Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Programa de Ps-Graduao em Antropologia.
edico esta dissertao a toda famlia Calheiros, especialmente guerreira Lenira, que nunca cansa de lutar por
dias melhores no Gua e tia Maceta (in memoriam) e paito Luis (in memoriam).
D
AGRADECIMENTOS
Essa dissertao resultado de uma pesquisa que seria impensvel sem a
colaborao de um grande nmero de pessoas amigas, s quais gostaria de expressar
meu profundo agradecimento. Em primeiro lugar ao meu grande companheiro Marcos,
pelo apoio, colaborao e principalmente pela compreenso e carinho em momentos
cruciais desse estudo.
A todas as pessoas que me receberam no Gua, particularmente aquelas que
compartilharam comigo momentos, memrias, sentimentos e que me concederam
entrevistas. Sou especialmente grata famlia Calheiros, que to bem me acolheu em
Jirau Grande, a qual tambm dedico essa dissertao. Ainda no campo, agradeo a
equipe de regularizao dos territrios quilombolas do INCRA e os companheiros de
luta do Movimento dos Pescadores da Bahia.
No mbito acadmico, um agradecimento especial ao meu orientador Luis
Nicolau Pars, pela forma cuidadosa com que me orientou; aos professores Jos
Maurcio Arruti e Ldia Cardel, pelas ricas observaes durante a qualificao; s
professoras Ceclia MacCallum e Rosrio de Carvalho pelo aprendizado durante o
mestrado. Ao amigo Jos Carlos, que leu e comentou esse trabalho.
Minha imensa gratido minha me Maria, meu pai Pedro, meu irmo Nuno e
minha tia Edir por todo apoio durante a minha vida e pelos incentivos quase dirios via
skype, durante a escrita dessa dissertao; aos meus pais baianos Maurcio e Leda e aos
meus avs Rosa e Pedro, Alice (in memoriam) e Olmpio (in memoriam), cujas
trajetrias como lavradores serviram de inspirao.
RESUMO
Na ltima dcada, inmeras comunidades rurais brasileiras se autorreconheceram como remanescentes de quilombos, dentre elas, seis localizadas no distrito do Gua, em Maragojipe, Bahia, que foram objeto deste estudo. No processo de se tornar quilombola, as diferenas das comunidades do Gua foram produzidas sobretudo nos espaos de interao intercultural entre agentes comunitrios e agentes governamentais, tais como reunies polticas para identificao da historia e do territrio quilombola. Esta dissertao lanou luz justamente sobre esse locus da mediao cultural, com o objetivo de analisar a construo simblico-discursiva da identidade e da memria, em que os agentes polticos se constituram como mediadores simblicos das diferenas. Nesse sentido, a ateno se voltou principalmente para as narrativas sobre o passado do Gua, em que trajetrias individuais ganharam carter cada vez mais coletivo que resultaram na emergncia de novos lderes comunitrios e na construo da histria das comunidades quilombolas do Gua. Nesse processo, os lderes comunitrios assumiram o importante papel na articulao de diferenas particulares, sobretudo ligadas ao modo de vida do pescador/marisqueira e do lavrador(a), com categorias generalizadoras, como raa, tradio e cultura, buscando construir consensos em torno dos modos de apresentao e representao do grupo. Em decorrncia disso, ser negro e ser da roa e da mar foram ressignificados, passando de uma condio de inferioridade para a de dignidade coletiva e com possibilidade do acesso a direitos. Por fim, esse estudo apresenta como os impasses gerados pela possibilidade da coletivizao do ttulo da terra e a falta de retorno do Estado frente as demandas materiais do grupo impactam a auto-identificao quilombola no Gua.
Palavras-chave: Identidade. Etnicidade. Memria. Comunidade quilombola. Territrio. Agncia. Mediao cultural. Agenciamento simblico-discursivo.
ABSTRACT
In the last decade, many rural communities in Brazil have self-identified as remnants of quilombo (maroon communities). This dissertation focuses on six of these communities located in the Gua district in Maragojipe, Bahia. In the process of "becoming" a quilombo, the differences attributed to the Gua groups were produced mainly in the intercultural interaction between community and government agents, particularly in the political meetings organized to identify the quilombo's history and territory. This work intends to shed light precisely on the locus of cultural mediation, and aims to analyze the symbolic and discursive construction of identity and memory, whereby political actors emerged as symbolic mediators of differences. Accordingly, special attention was paid to narratives about the past of Gua, in which individual trajectories gained an increasingly collective character that resulted in the promotion of new community leaders and the elaboration of the history of the maroon community. In this process, community leaders took an important role in the articulation of particular differences, especially related to livelihood modes such as those of fishermen and farmers, and to generalizing categories, including race, culture and tradition, seeking to build a consensus around modes of presentation and representation of the group. As a result, "being black " and "being from the farm or from the tide" were reinterpreted, shifting their connotation of inferiority to one of collective dignity, with possibility of access to rights. Finally, this study shows how the troubles created by the prospect of land collectivization and the states failure to meet the material demands of the Gua community have affected its maroon self-identification. Keywords: Identity. Ethnicity. Momory. Maroon communities. Territory. Agency. Cultural mediations.
LISTA DE SIGLAS ABA - Associao Brasileira de Antropologia ADCT - Ato de Disposio Constitucional Transitrio ADI - Ao Direta de Inconstitucionalidade CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais CEAFRO Centro de Estudos Africanos CETA - Comisso Estadual de Trabalhadores Assentados (da fundao at 1998). Coordenao Estadual de Trabalhadores Assentados e Acampados (entre 1998 e 2005). Movimento dos Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas da Bahia (a partir de 2005). CDA - Coordenao de Desenvolvimento Agrrio CF/88 - Constituio Federal de 1988 CONAQ - Coordenao Nacional de Articulao das Comunidades Negras Rurais Quilombolas CPP - Conselho Pastoral dos Pescadores (antiga Comisso Pastoral da Pesca) CPT - Comisso Pastoral da Terra FCP - Fundao Cultural Palmares FETAG - Fundao dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia FUNAI - Fundao Nacional do ndio FUNDAC - Fundao da Criana e do Adolescente do Estado da Bahia GT - Grupo de Trabalho GIQ - Grupo Intersetorial do Estado da Bahia para Quilombos IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria IN 49/08/INCRA - Instruo Normativa 49 de 2008 do INCRA MDA - Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MOPEBA Movimento dos Pescadores do Estado da Bahia OIT - Organizao Internacional do Trabalho PA - Projeto Assentamento PEQ - Projeto Especial Quilombola PSF - Programa de Sade da Famlia PT Partido dos Trabalhadores PINEB- Programa de Pesquisas sobre os Povos Indgenas do Nordeste Brasileiro RTID - Relatrio Tcnico de Identificao e Delimitao SEAGRI- Secretaria da Agricultura, Irrigao e Reforma Agrria do Estado da Bahia SEDES - Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate a Pobreza do Estado da Bahia. SEPPIR - Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial SEPROMI - Secretaria de Promoo da Igualdade do Estado da Bahia SR05 - Superintendncia Regional do INCRA da Bahia STF - Supremo Tribunal Federal UFBA - Universidade Federal da Bahia UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
LISTA DE MAPAS E CROQUIS
Mapa 1: Localizao de Maragojipe no mapa da Bahia................................................. 33
Mapa 2: Localizao dos distritos de Maragojipe e de municpios vizinhos..................34
Mapa 3 - Comunidades rurais de Maragojipe, autorreconhecidas como quilombolas. As de Gua esto destacadas em colorido e as demais esto em cinza............................41
Mapa 4 - Das antigas fazendas do distrito do Gua.........................................................56
Croqui 1 - Croqui das comunidades Guaruu e Tabatinga, elaborado com moradores do Guaruu no dia 10/11/2008.............................................................................................69
Croqui 2: Trecho do croqui da comunidade quilombola Baixo do Gua....................122
Croqui 3: Croqui de Guaruu, elaborado na oficina de territrio em 04/10/2007........123
Croqui 4 - Croqui elaborado por mim de seis stios entre o Jirau Grande e Tabatinga, como se fossem vistos de cima..................................................................................... 124
Croqui 5- Comunidades quilombolas do Guai e comunidades confinantes..................126
Mapa 4- Comparao entre mapas do territrio quilombola e das fazendas em 1950..131
SUMRIO
APRESENTAO...........................................................................................................1
INTRODUO............................................................................................................... 3
CAPTULO 1 INCURSO TERICA E METODOLGICA NO CAMPO ..............9 Metodologia ..........................................................................................................9
Referencial terico...............................................................................................14
CAPTULO 2 - O TEMPO DAS COMUNIDADES: O PROCESSO DE
AUTORRECONHECIMENTO QUILOMBOLA NO GUA........................................33
CAPTULO 3 - MEMRIA DO TEMPO DAS FAZENDAS...................................51
A construo da memria....................................................................................51
O tempo das fazendas.....................................................................................55
De histria de vida trajetria do grupo.............................................................76
CAPTULO 4 - A HISTRIA DO TEMPO DOS ENGENHOS...............................85
Construindo o passado........................................................................................85
CAPTULO 5 - A CONSTRUO DO TERRITRIO.............................................107
A apresentao da cultura..................................................................................109
O parentesco de sangue, umbigo e histria.......................................................119
A identificao dos limites territoriais..............................................................122
Conflitos na definio das fronteiras sociais e territoriais................................131
CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................144
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.........................................................................149
ANEXOS......................................................................................................................155
1
APRESENTAO
Aps a promulgao do Decreto 4887 de 2003, que regulamenta o
procedimento para identificao, reconhecimento, delimitao, demarcao e titulao
das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos1, inmeros
povoados espalhados por todo Brasil passaram a se autorreconhecer como comunidades
quilombolas. Em 2006, a Bahia j contava com 178 comunidades quilombolas com
certido de autorreconhecimento junto Fundao Cultural Palmares, das quais nove se
localizam na zona rural de Maragojipe.
Em 2007, o Conselho Quilombola de Maragojipe, formado por lderes de quase
todas as comunidades quilombolas do municpio e por Marcos do Conselho Pastoral dos
Pescadores (CPP), reivindicou ao Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
(INCRA) a regularizao fundiria de um territrio contnuo das comunidades Guerm,
Baixo do Gua, Tabatinga, Jirau Grande, Guaruu, Porto da Pedra e Kizanga,
localizadas no distrito do Gua2. No mesmo ano, a pedido do Deputado Federal Luiz
Alberto, do Partido dos Trabalhadores (PT) e de lderes do Movimento dos Pescadores
da Bahia (MOPEBA) e do Movimento dos Trabalhadores Assentados, Acampados e
Quilombolas da Bahia (CETA), as comunidades do Gua passam a integrar a lista das
reas prioritrias do INCRA. Poucos meses depois, no dia trs de outubro de 2007, o
INCRA iniciou o processo de regularizao fundiria do territrio dessas comunidades.
Na poca, integrei a equipe tcnica que foi designada a identificar e delimitar o
territrio pleiteado, realizando uma pesquisa etnogrfica e histrica, cujo objetivo
central foi compreender a territorialidade das comunidades, identificando os usos do
territrio no presente e nos planos da memria e do imaginrio do grupo3.
O curto tempo entre o autorreconhecimento das comunidades e a chegada da
equipe tcnica do INCRA permitiu que eu acompanhasse um processo bastante inicial
de divulgao do que era ser quilombola, realizado por alguns poucos lderes do
MOPEBA. Mais do que isso, esses lderes, explicavam aos moradores do Gua os
motivos que os levaram a solicitar a Certido de Autorreconhecimento como 1 Esse decreto se fundamenta no Artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias. 2 A conformao do territrio alterou-se ao longo do processo de reconhecimento territorial. 3 A elaborao do relatrio antropolgico foi orientada pela Instruo Normativa 49/2009 do INCRA.
2
quilombolas e os benefcios que poderiam ser alcanados atravs dela. Percebi ento
que comunidade quilombola no tinha um significado determinado e que alguns agentes
mediadores estavam atuando decisivamente na negociao dos seus sentidos. Entre eles
incluo a prpria equipe do INCRA da qual eu fiz parte, cujas prticas promovidas foram
significativas na adequao de noes exgenas s experincias e percepes
endgenas. As inmeras reunies, conduzidas por mim ou pelos analistas do INCRA
com o objetivo de esclarecer o procedimento administrativo de reconhecimento do
territrio quilombola, foram tambm espaos privilegiados de traduo poltico-cultural
de categorias jurdicas em categorias locais, bons para pensar como produzida
histrica e socialmente a convergncia de horizontes simblicos entre agentes do Estado
e quilombolas. Desse modo, apesar do processo de autorreconhecimento das
comunidades do Gua ter iniciado antes da chegada do INCRA, foi durante a
organizao poltica de luta por direitos sociais e territoriais que a construo da
identidade de intensificou.
O exerccio comum e constante da comunicao, durante as atividades de
identificao dos usos e dos limites territoriais, provocou uma srie de transformaes
simblicas e discursivas sobre a histria das comunidades do Gua, orientadas, entre
outras coisas, por um ideal de futuro projetado no significado de territrio
quilombola. Nesse caso, a produo do territrio refletia um processo mais amplo de
produo da memria e da alteridade, sendo a afirmao territorial uma afirmao antes
de tudo identitria. Chamou-me a ateno, nesse processo, as estratgias de interao
dos lderes quilombolas do Gua, em que smbolos coletivos foram constantemente
mobilizados, transformando as formas de representao do grupo.
Apesar da questo da mediao cultural ter se mostrado bastante rica, ela no era
objeto do estudo que estava sendo desenvolvido na poca. Busquei ento uma
oportunidade de realizar um novo estudo no Gua, em que pudesse aprofundar a anlise
sobre o agenciamento simblico-discursivo da identidade. Para isso seria necessrio
deslocar a observao para os prprios espaos de produo das relaes de interao e
significao. Esse deslocamento me possibilitaria refletir tambm sobre a minha prpria
participao, enquanto mobilizadora de significados junto s comunidades e sobre a
atuao dos antroplogos de modo geral, na de produo de diferenas.
3
INTRODUO
Os estudos sobre as chamadas emergncias tnicas ou etnogneses (cf
OLIVEIRA, 2004 [1999]) contriburam para a retomada da reflexo acerca da
identidade e etnicidade em novos termos, uma vez que ampliaram os caminhos para se
pensar a produo social das diferenas dos novos sujeitos polticos no Brasil. Com
isso, a ateno se deslocou do estudo da alteridade em si, para os mecanismos de
gerao de consensos em torno dos modos de representao das diferenas. Isso
implicou na necessidade de repensar o recorte do objeto antropolgico, de modo que a
investigao recasse sobre os espaos de interao dos agentes, tais como redes
comunitrias, reunies polticas, cursos de formao, com vistas a observar de que
forma e com qual finalidade a diferena agenciada. Nesse sentido, Arruti, Montero e
Pompa (no prelo, 2009) propuseram uma abordagem antropolgica que coloca a questo
da agncia, e consequentemente a noo de agente, no centro das discusses.
A noo de agente social de Bourdieu (1989) se mostrou bastante apropriada
para a compreenso da produo da diferena, na medida em que entende que o agente
se constitui no processo da interao, sendo produto da relao entre sua posio social
no interior de campo de foras e uma viso de mundo. Essa noo corporifica posies
de mediao que resultam do cruzamento, no espao social e em um determinado
tempo, de um tipo particular de trajetrias com uma srie de enunciados (MONTERO
et al, no prelo, 2009). Nesse sentido, a noo bourdiesiana tambm pressupe a ideia de
agncia, enquanto capacidade dos agentes orientarem suas estratgias (conscientes e
no-conscientes) para adquirir mais capital social e simblico na disputa pelo poder de
classificao e representao de si mesmos e dos outros. preciso esclarecer que a
agncia se constitui na fuso entre as circunstancias estruturais e a capacidade
propulsora, ou seja, duplamente condicionada. Seria esse espao onde se encontram a
estrutura, enquanto capacidade de operao, e os agentes, enquanto capacidade de
ao4.
4 De modo geral, o conceito de agncia reporta s noes de resistncia e liberdade, fundamentadas na expresso ocidental e humanista do livre-arbtrio, central na "narrativa moral da modernidade" (MAHMOOD, 2005). Conforme aponta Keane (2003), preciso ter cautela na adoo destas noes, que implicitamente pressupem a oposio entre agncia e estrutura ou entre agncia e cultura. Diante dessas crticas ao conceito de agncia, faz-se necessrio esclarecer que a noo de agncia aqui
4
A ideia de agncia complexificou o conceito de ator social, muito evocado na
antropologia do contato, que entendia o ator como um personagem pr-definido
culturalmente em funo da sua posio social e que participava da cena do contato
cultural aderindo ou rejeitando o colonialismo. Tambm permitiu o afastamento do
paradigma colonialista presente nas etnografias dos processos de dominao cultural
ou aculturao, que definia previamente os lugares do ns e do outros (Idem).
partindo desse mesmo entendimento que Arruti, Montero e Pompa (Ibidem), propem
uma forma de fazer antropologia que deixe de formular o problema do encontro em
termos de contato (relao entre ns e eles), para formular em termos de relaes
interculturais, dando nfase questo da mediao cultural.
A mediao uma ao social contnua, que est presente nos mais variados
processos interativos e nos mais variados nveis, e que produzem e possibilitam trocas,
a comunicao e o intercmbio (VELHO & KUSCHNIR, 2001:10). por meio das
interaes que os agentes criam as formas de representar as diferenas, to
fundamentais nos processos de legitimao das identidades. Ao expressarem os modos
de pensar, ver, sentir e encenar as diferenas, os agentes polticos se constroem como
mediadores simblicos das diferenas (MONTERO et al, no prelo, 2009). O estudo da
mediao, especificamente atravs da observao do agenciamento5 discursivo dos
mediadores, nos permite compreender como se do as interaes entre categorias sociais
e nveis culturais distintos.
Como produtores e mediadores de diferenas, os agentes fazerem escolhas e
traam estratgias, agenciando os mais variados repertrios: nativo, cientficos,
ideolgicos, religiosos (Idem). As decises individuais ocorrem em um campo de
possibilidades sociocultural, entremeado de relaes de poder, em que esto em jogo
conflitos, disputas, alianas ou rompimentos. Num processo constante de negociao da
realidade, escolhas so feitas tendo como referncia sistemas simblicos, crenas e empregada no entendida como uma capacidade individual ou coletiva para a ao em termos de autoconscincia, emancipao e poder de autotransformao. Tampouco como um desejo de liberdade, autonomia, resistncia s estruturas de poder, subverso das normas sociais, como foi empregada sobretudo pela antropologia feminista da dcada de 1970.
5 O agenciamento seria a construo dos modos de perceber e mobilizar as diferenas, que simultaneamente produzem os agentes sociais e so produzidos por ele. Uma vez que os agentes se constituem enquanto tal atravs de agenciamentos discursivos e afetivos, eles se configuram tambm como lcus de uma multiplicidade de agenciamentos (MONTERO et al, no prelo, 2009).
5
valores, em torno de interesses e objetivos materiais e imateriais dos mais variados
tipos (VELHO & KUSCHNIR, 2001:10).
O sucesso da atividade de representao da identidade, no que se refere a sua
legitimao, depender da capacidade dos mediadores agenciarem um quadro de
categorias e darem verossimilhana a esse agenciamento. Quanto mais eles conseguirem
articular diferenas particulares com categorias generalizadoras, mais bem sucedida a
prtica da mediao. O trabalho do mediador , portanto, categorizar a alteridade,
compar-la e generaliz-la, para que dessa forma as alteridades se mantenham em
relao e no se expulsem mutuamente (MONTERO et al, no prelo, 2009:30). Como
exemplo de mediao bem sucedida, que resultaram em diversos processos
contemporneos de emergncia tnica, podemos citar o singular agenciamento entre
luta poltica e cultura, sobretudo atravs da apropriao, por parte dos agentes, das
categorias utilizadas tradicionalmente pela antropologia. (Idem; ARRUTI, 2006;
CUNHA, 2009; MONTERO, 2006).
Apesar disso, estudos recentes sobre comunidades etnicamente diferenciadas ou
sobre movimento sociais insistem em direcionar a investigao s diferenas do grupo,
ou seja, cultura do outro, sustentados pela ideia de que o papel da antropologia
estudar as diversas culturas como se elas fossem fixas e existissem a priori
(MONTERO et al, no prelo, 2009). Consequentemente, a questo das prticas
discursivas dos mediadores, na representao de seus grupos, por exemplo, no
problematizada. como se no fizesse sentido questionar-se sobre os fundamentos
simblicos da atividade de representao de atores sociais que se apresentam como
representantes da vontade de uma determinada coletividade com a qual mantm uma
relao de identidade pensada como primria ou primordial (Idem: 6)
Para Barth (2000), os antroplogos, ao optarem pela omisso de possveis sinais
de inconstncia, incoerncia ou de multiculturalismo nos estudos dos grupos tnicos
inevitavelmente presentes nos processos de agenciamento simblico-discursivo -
perpetuam alguns pressupostos holistas e de integrao, herdados das tradies
antropolgicas funcionalista e estruturalista. Acredito que outros trs motivos (ligados
ao lugar que o antroplogo tem ocupado nesses estudos), tambm contribuem para a
resistncia de pensar a questo da mediao cultural. Primeiro, porque muitos estudos
sobre grupos tnicos da atualidade esto sendo produzidos para subsidiar peas tcnicas
6
ou laudos periciais, no havendo, portanto, espao para abordagem com esse enfoque. O
segundo motivo uma consequncia do primeiro, uma vez que ao ocupar cargos no
interior do Estado ou de organizaes no governamentais, o antroplogo tambm
assume o papel de mediador, ainda que a prtica da mediao lhe seja opaca. Isso
porque, na sua interao em campo, o antroplogo (bem como outros agentes externos)
traduz categorias gerais, classifica diferenas e tambm produz e negocia discursos. Os
estudos e documentos produzidos nesses contextos, em geral apresentam os resultados
da agncia dos atores em jogo, mas raramente descrevem o lugar de onde eles falam,
seus interesses e conflitos, ou qualquer informao sobre as trocas interculturais, onde
os discursos de representao foram produzidos. O terceiro motivo se refere ao receio
dos antroplogos de que seus estudos sejam mal interpretados pelos grupos estudados
ou que sejam mal utilizados por agentes cujos interesses sejam contrrios aos dos
grupos estudados. Desse modo, escrever sobre agenciamento discursivo, migrao
de smbolos, produo da memria tornou-se um tabu.
Na tentativa de romper com o tabu da agncia - at mesmo para que o
agenciamento deixe de ser associado farsa ou fraude, como costumam fazendeiros
os fazendeiros a ser desapropriados - este estudo teve como objetivo analisar o processo
de construo da identidade e da memria, nas comunidades quilombolas do Gua, a
partir de uma perspectiva que priorizou o locus da mediao cultural. A ateno se
direcionou, portanto, aos discursos dos lderes comunitrios, produzidos em reunies
com agentes pblicos (no qual me incluo) e de entidades de apoio, destinadas a pensar a
identidade, a histria e o territrio dos quilombos do Gua.
A mobilizao de significados sobre as prticas culturais e os eventos ocorridos
no Gua gerou novos sentidos para todos os envolvidos nos jogos de linguagem. Esses
sentidos no apenas possibilitaram novas interpretaes das lembranas da relao entre
quilombolas e fazendeiros, como provocaram a prpria memorizao da origem, da
trajetria e da cultura do grupo6. Nesse sentido, as estratgias dos mediadores
6 Durante a permanncia da equipe tcnica do INCRA em campo, o termo cultura foi inmeras vezes mencionado pelos lderes do movimento quilombola. em determinadas situaes a cultura de um grupo tnico, adquire uma nova funo, essencial e que se acresce s outras enquanto se torna de contraste.(...) A cultura tende ao mesmo tempo a se acenturar, tornando-se mais visvel e a se simplificar e enrijecer (CUNHA, 2009:237).De acordocom Paula Montero, Jos Maurcio Arruti e Cristina Pompa (no prelo, 2009:2), (...) a ideia essencialista de cultura torna-se, no campo poltico, tanto um instrumento de autoafirmao identitria, quanto uma linguagem jurdica de atribuio de direitos.
7
provocaram uma reinterpretao das relaes interculturais coloniais, como diria
Sahlins (1997:21), em seus prprios termos.
Nos espaos de construo coletiva do passado (oficinas, reunies e entrevistas
em grupo) as trocas entre os diferentes mediadores (lderes e agentes externos) e entre
eles e os moradores do Gua, produziram novas configuraes sobre a histria do grupo,
cujo arranjo combinou distintas temporalidades, intenes, lembranas, smbolos e
conceitos. A construo coletiva da histria do Gua apontou para a necessidade de
pensar a historia no como um conjunto de fatos reais passados, mas como um dentre
outros objetos etnolgicos, fundamental na compreenso da relao entre quilombolas,
agentes governamentais e de movimentos sociais e produto mesmo desse encontro
(MONTERO, 2006:16). Evidentemente no significa que a produo histrica no Gua
tenha se inaugurado por meio desse encontro at porque os encontros interculturais
ocorrem h sculos - e sim que essas novas conexes produziram formas inditas de
conceber o tempo, de lembrar do passado, de atribuir significado aos eventos
lembrados e de posicion-los no seio da histria. Assim, as lembranas sobre a trajetria
dos habitantes do Gua foram divididas, no processo de construo da memria, em
duas fases: o tempo dos engenhos e o tempo das fazendas, sendo o conjunto dessas
fases identificado como a histria das comunidades quilombolas do Gua.
Esta dissertao est organizada em cinco captulos, em que o primeiro se trata
de uma incurso terica e metodolgica no campo, em que so apresentados a
metodologia de investigao da pesquisa, uma breve reviso da literatura sobre
quilombos e um referencial terico de alguns conceitos fundamentais anlise dos
dados, tais como comunidade, identidade, cultura, etnicidade, territorialidade e raa.
No segundo captulo, apresento como se deu o despertar poltico das
comunidades do Gua, descrevendo a contribuio dos agentes de entidades de apoio
aos movimentos sociais de luta pela terra e da rede social entre comunidades rurais
maragojipanas para a emergncia de lderes comunitrios no Gua. Descrevo tambm o
processo de fortalecimento da unio em torno do sentimento de comunidade que levou
ao autorreconhecimento delas como quilombola, situando esse momento dentro de um
contexto maior de efervescncia tnico-poltica no sul do Recncavo.
O captulo trs trata do processo de produo coletiva da histria do tempo das
fazendas, em que modos de vida e experincias de explorao, injustia e desigualdade
8
evidenciaram trajetrias comuns ao grupo, que passam a representar o conjunto das
comunidades do Gua. Procuro mostrar tambm nesse captulo de que maneira a
repetio de situaes de desrespeito na atualidade contriburam para a produo de um
discurso de luta de classes em algumas narrativas de histrias de vida, que resultaram
na emergncia que novos mediadores culturais nas comunidades.
J no quarto captulo, discuto como as comunidades construram a memria do
o tempo dos engenhos, a partir do agenciamento entre identidades partilhadas de
trabalho (em que se inclui a mobilizao de smbolos eficazes, tais como engenhos e
roas) e as categorias jurdicas quilombolas e comunidades tradicionais. Nesse processo
de elaborao do passado, evidencio a homogeneizao e a etnizao do discurso com a
valorizao da raa, da tradio oral e da continuidade histrica dos quilombolas-
lavradores-pescadores das origens dos engenhos at a atualidade.
No captulo cinco analiso prticas do Gua apresentadas como cultura
quilombola durante as oficinas de territrio, buscando entender porque algumas
diferenas foram valorizadas em detrimento de outras. Para isso procurei identificar
alguns discursos presentes na descrio dessas prticas, bem como a noo nativa de
cultura. Analiso tambm neste mesmo captulo de que maneira a noo de parentesco
incorporou a histria dos quilombolas e se mostrou fundamental na definio dos
limites do territrio.
Por fim, nas consideraes finais, retomo algumas questes j apresentadas em
captulos anteriores e fao uma breve reflexo sobre a importncia das demandas por
redistribuio na mobilizao da identidade quilombola.
9
CAPTULO 1 INCURSO TERICA E METODOLGICA
NO CAMPO
Metodologia
O primeiro contato com as comunidades Guerm, Baixo do Gua, Tabatinga,
Jirau Grande, Guaruu e Porto da Pedra ocorreu em setembro de 2007, com o incio das
atividades de regularizao fundiria do INCRA. Como o objetivo orientador do
trabalho era de grande interesse das comunidades o acesso terra a insero no
campo foi rpida e relativamente fcil. J no primeiro dia no Gua, algumas pessoas
contaram a histria de seus antepassados, descreveram a dinmica do cotidiano das
comunidades e, principalmente, os casos de violncia envolvendo quilombolas e
fazendeiros na disputa pela terra. Assim, boa parte das informaes sobre o Gua foi
obtida antes da minha insero no Programa de Ps-Graduao da UFBA, sendo
fundamental para a elaborao da dissertao7.
O trabalho de campo foi realizado em dois momentos. O primeiro ocorreu
durante a pesquisa para o INCRA, na qual realizei quinze viagens s comunidades entre
setembro de 2007 e dezembro de 2009, com uma permanncia mdia de dez dias em
cada uma delas, totalizando aproximadamente cinco meses de pesquisa de campo8. E o
segundo, quando retornei a campo em janeiro e maio e julho de 2010, num total de vinte
e cinco dias, no mais como funcionria do INCRA, cujo desligamento ocorreu em
maro de 2009, mas como estudante de mestrado.
Um dos mtodos que orientou a pesquisa para o INCRA foi o etnogrfico. A
tcnica da observao participante permitiu conhecer importantes aspectos da vida nas
comunidades quilombolas do Gua. Porm, a conjuntura poltica e social na qual estava
inserida a pesquisa me levou a priorizar outras tcnicas, tais como entrevistas abertas e
o registro (audiovisual e escrito) de reunies e oficinas com membros das vrias 7 De acordo com o Cdigo de tica da Associao Brasileira de Antropologia, ao antroplogo reconhecido o direito de autoria, mesmo quando o trabalho constitua encomenda de rgos pblicos ou privados. O direito de autoria implica o direito de publicao e divulgao do resultado de seu trabalho (http://www.abant.org.br/index.php?page=3.1). As lideranas comunitrias tambm autorizaram formalmente o uso das informaes obtidas anteriormente, para a elaborao dessa dissertao. 8 Algumas viagens tiveram durao de trs dias, enquanto outras chegaram a vinte dias. As viagens mais longas foram destinadas delimitao do territrio.
10
comunidades. As tcnicas de levantamento do material etnogrfico foram escolhidas
levando-se em conta as condies da pesquisa, bastante distintas de uma pesquisa
acadmica. Vale aqui contextualizar e refletir sobre algumas situaes que implicam
diretamente sobre o trabalho do antroplogo.
Os trabalhos de identificao e delimitao dos territrios quilombolas so
realizados por uma equipe interdisciplinar, conforme prev a legislao federal e as
instrues normativas do INCRA. Apesar do antroplogo ter a opo de realizar sua
pesquisa de campo sozinho, em geral, as viagens so feitas em grupo, para otimizar o
tempo, diminuir os custos de trabalho e garantir uma maior segurana aos funcionrios.
Logo, as to citadas condies apropriadas para a pesquisa etnogrfica - que nas
palavras de Malinowski (1922:43) consistem sobretudo em isolar-se da companhia de
outros homens brancos - literalmente no ocorreram. Os curtos prazos para a
realizao da pesquisa, a escassez de recursos e os riscos que o trabalho oferece, levam
o antroplogo em situao de percia a optar por tcnicas mais ativas, que possam
levantar um material etnogrfico com maior rapidez: as oficinas.
As oficinas eram reunies com membros das comunidades, cujo objetivo era
levantar a maior quantidade possvel de informaes sobre a histria da ocupao
territorial, sobre os usos do territrio no passado e no presente e sobre a relao entre
quilombolas e proprietrios de terras do Gua. Era tambm do meu interesse conhecer
aquilo que os participantes das oficinas identificavam como sendo elementos da sua
prpria cultura ou tradio. Coube a mim coordenar as oficinas realizadas no Gua,
uma vez que os relatos poderiam ter grande valor para a elaborao do relatrio
antropolgico e orientariam o incio da pesquisa histrica e etnogrfica. A tcnica
utilizada nas oficinas foi a do grupo focal, cujos dados so produzidos no decorrer das
interaes grupais ao se discutir um tpico sugerido pelo pesquisador, que ocupa uma
posio intermediria entre a observao participante e a entrevista conduzida (GATTI,
2005).
A primeira oficina, nomeada Oficina de Histrico, foi realizada no dia trs de
outubro de 2007, na comunidade Baixo do Gua, na casa de Laurncia Dias dos Santos,
com a presena de trs funcionrios do INCRA e moradores do Baixo do Gua,
Guaruu, Jirau Grande, Guerm e da comunidade Enseada do Paraguau, que fica
11
aproximadamente a 25 km do Baixo do Gua, totalizando sessenta e quatro pessoas. A
faixa etria dos participantes da oficina foi bem variada, predominando pessoas de meia
idade e idosos. Essa oficina foi direcionada para o levantamento de informaes sobre a
histria das comunidades, desde sua suposta origem, at os acontecimentos mais
recentes9.
Diante das primeiras indagaes sobre os antepassados e sobre a origem das
comunidades, houve um silncio at que alguns lderes comunitrios de meia idade
incentivaram os mais velhos a falar. Sugeriram-me que as questes fossem remetidas
primeiramente aos membros idosos, pois estes seriam os verdadeiros conhecedores
da histria do Gua. De acordo com esses lideres, as recordaes das experincias
pessoais de infncia e juventude dos idosos seriam a prova viva de uma histria no
documentada. Alm de terem presenciado momentos importantes da trajetria do grupo
- principalmente as disputas pela terra entre posseiros e as famlias de proprietrios - os
mais velhos tambm seriam os mais prximos temporalmente dos protagonistas das
antigas histrias do grupo, conferindo a eles ainda mais legitimidade de narrar o
passado10. Assim, alm da histria das comunidades em si, nestas oficinas puder
perceber a preocupao dos vrios interlocutores sobre quem estaria autorizado a falar
sobre o grupo ou pelo grupo.
Partindo dessa sugesto, elegi meus primeiros informantes para investigar as
origens das comunidades. Os lderes locais tambm sugeriam que eu realizasse
entrevistas individuais na presena de um grupo, pois essa dinmica seria uma forma de
provar a veracidade dos fatos narrados (j que ningum inventaria nada na presena
de outros) e ao mesmo tempo permitiria que os mais novos pudessem aprender mais
sobre a histria do grupo. Essa dinmica se mostrou uma estratgia importante da 9 As questes que orientaram a oficina de histrico foram: Como essa comunidade surgiu? Quem foram os primeiros moradores? Porque e como eles ocuparam o territrio? Como era a vida nas comunidades, na poca em que os atuais idosos eram jovens? Como os antigos habitantes se sustentavam economicamente? Havia festas e cultos religiosos? Eles existem da mesma forma at hoje? Aps um perodo destinado discusso sobre as respostas, os participantes foram divididos em subgrupos de idades e comunidades variadas para desenharem o que acharam mais importante a respeito do que foi relatado. Em seguida, cada participante exps sua ilustrao e justificou sua escolha. 10 Almeida (2006a: 30) descreve um caso semelhante nos quilombos de Alcntara, no Maranho, quando afirma que a singularidade mencionada tanto concerne ao fato de tais pessoas acharem-se dispostas numa linha de descendncia direta, por consanguinidade ou afinidade, de ancestrais que so apontados como tendo assegurado o livre acesso dos grupos familiares terra, quanto ao fato de possurem responsabilidades simbolicamente definidas em face de antigas famlias de proprietrios.
12
atividade mediadora, uma vez que permitiu certo controle dos discursos que estavam
sendo produzidos acerca da histria, e consequentemente acerca de si mesmos. Tambm
possibilitou uma maior uniformidade nas formas de apresentao e representao do
grupo e criou novos espaos para a mediao cultural.
As primeiras entrevistas foram pontos de partida para longas conversas entre os
presentes, em que aos poucos o passado foi sendo coletivamente elaborado. As
narrativas sobre a formao e os usos do territrio ganharam mais profundidade nas
oficinas de territrio, realizadas na comunidade Tabatinga, nos dias quatro e cinco de
outubro de 2007, com aproximadamente trinta participantes no primeiro dia e vinte no
segundo. Para iniciar, conduzi uma discusso sobre a noo de territrio, procurando
compreender como os participantes entendiam esse termo. Em seguida os presentes
listaram e descreveram todos os elementos que compunham (ou que compuseram) o
territrio quilombola do Gua, incluindo os patrimnios materiais e os elementos da
cultura do Gua. A partir dessa discusso foram produzidos cinco mapas, sendo um
das comunidades Tabatinga e Jirau Grande, um de Guerm e Baixo do Gua, um do
Guaruu e um geral, de todo o territrio.
Apesar de a pesquisa instrumental ser tambm produo de conhecimento, j
que para que um laudo seja antropolgico, deve obrigatoriamente ser elaborado
segundo os procedimentos metodolgicos e o rigor habituais disciplina (SILVA,
1994:61), compreendi que poderia aprofundar minha reflexo numa nova pesquisa. Isso
evidentemente mudaria minha relao com as comunidades estudadas e
consequentemente minha experincia de campo. Alm disso, os resultados da pesquisa
no mais estariam no centro de disputas entre quilombolas e fazendeiros ou entre
quilombolas e o Estado11. A pesquisa realizada anteriormente foi, portanto, um ponto
de partida. As entrevistas, as observaes de campo, as atas de reunies e dados
histricos sobre a regio do Gua contriburam para a construo da presente
11 O maior paradoxo da poltica de regularizao fundiria dos territrios quilombolas que o Estado reconhece a existncia de um territrio tradicional, mas paralelamente a isso cria empreendimentos pblicos que violentam ou inviabilizam esse territrio. Enquanto o INCRA fazia o reconhecimento territorial, o Estado da Bahia, sobretudo atravs da SICM Secretaria da Indstria e Comrcio da Bahia, junto com a Prefeitura de Maragojipe elaboravam o projeto de construo do maior polo industrial da Amrica Latina nos arredores do Gua.
13
dissertao, mas foi tambm preciso estabelecer um novo procedimento metodolgico,
para dar conta de responder as novas questes que o tema da mediao incitou.
Primeiramente procurei fazer uma nova anlise das narrativas sobre o passado,
dando maior importncia ao processo de produo da memria. Nesse sentido, alm de
apresentar seus contedos, preocupei-me em apresentar em que contexto se deu as
escolhas do que deveria ser lembrado e como os enunciados e smbolos foram
mobilizados nesse processo. Assim coloquei as narrativas memoriais no centro da
minha investigao, entendendo-as como material etnogrfico capaz de falar sobre as
formas pelas quais o presente relaciona-se com o passado, me afastando, portanto, das
perspectivas que utilizam a memria apenas como fonte para a construo da histria
(ARRUTI, 2006).
Apesar da releitura dos dados de campo coletados entre 2007 e 2008 senti
necessidade de retornar a campo para observar mais profundamente o cotidiano das
comunidades. Hospedei-me por duas semanas no stio da famlia Calheiros, onde reside
a principal liderana das comunidades quilombolas do Gua, Lenira dos Santos
Calheiros. A observao participante possibilitou ampliar minha compreenso acerca
das relaes entre famlias vizinhas, bem como da relao entre as comunidades e os
de fora, em geral agentes governamentais. Tambm propiciou um maior contato com
outros membros das comunidades, antes desconhecidos, que forneceu um denso
material para anlise dos significados compartilhados (ou no) a respeito da identidade
coletiva e de suas representaes12. Mas acredito que o que foi mais enriquecedor, tendo
em vista o recorte dado questo da mediao cultural, foi o convvio mais intenso com
os lderes comunitrios, que me permitiu conhecer um pouco mais de suas histrias de
vida e suas motivaes no presente.
Uma das tarefas importantes para o pesquisador procurar identificar situaes e contextos mais ou menos propcios atividade mediadora. O estudo das trajetrias individuais torna-se assim estratgico para nossas finalidades. Estamos em um territrio interdisciplinar, onde as biografias so relevantes e potencialmente reveladoras em termos antropolgicos (VELHO, 2001:9).
12 Nesse caso, procurei conhecer e conversar com pessoas que nunca tinham participado das reunies do movimento quilombola ou do movimento de pescadores. Busquei compreender as razes que as mantinham afastadas da mobilizao poltica do Gua.
14
Retornei ao Gua em maio de 2010, onde passei mais oito dias. Durante o
perodo em que estive em campo, tive a sorte de presenciar a chegada de tcnicos da
SEPROMI que tinham ido ao Gua para fazer pela segunda vez, oficinas de identidade
em cada uma das comunidades13. Acompanhei as primeiras oficinas em Jirau Grande e
Tabatingana na condio de observadora, j que um dos meus objetivos era observar
possveis transformaes na forma dos quilombolas apresentarem a cultura e a
histria do Gua aos agentes do governo. Essa foi uma oportunidade indita de
participar daquele tipo de atividade sem estar no papel de mediadora, o que me permitiu
ficar mais atenta aos momentos e s formas com que cada participante acionou a
identidade quilombola.
Foi igualmente nova a experincia de ficar na comunidade aps a sada dos
tcnicos e ver a continuidade do agenciamento e a leitura que os participantes fizeram
daquele encontro. Em funo disso, voltei ao Gua nos dias dezesseis e dezessete de
julho, para participar das oficinas de identidade do Guerm e Baixo do Gua. Essa
ltima ida a campo foi especialmente importante para uma maior reflexo sobre os
motivos que levam os agentes comunitrios a escolher algumas prticas do grupo para
serem apresentadas aos agentes governamentais como cultura, evidenciando assim os
entendimentos nativos (ou o metadiscurso) sobre a cultura.
Referencial terico
No centenrio da abolio da escravatura (1988), o termo quilombo passou a
ganhar maior visibilidade no cenrio brasileiro devido aos inmeros eventos que
evocavam o Quilombo dos Palmares e seu lder Zumbi, realizados pelo movimento
negro (ARRUTI, 2003). Mais do que referncias histricas, essas imagens, assim como
o dia vinte de novembro (aniversrio de morte de Zumbi), ganharam significado
metafrico de luta e conquista e foram utilizadas como palavras de fora e smbolo da
13 Para as comunidades j era a terceira vez que essas oficinas estavam acontecendo. A primeira foi em 2007, cuja oficina foi coordenada por mim na condio de tcnica do INCRA. A segunda foi no incio de 2009, durante a ao do Grupo Intersetorial para Quilombos, coordenada pela SEPROMI. E a terceira em maio e julho de 2010, em atividades da SEPROMI.
15
resistncia do negro no Brasil. Arruti (2003) descreveu este processo como uma
converso simblica do prprio quilombo enquanto metfora14.
No mesmo ano o pas passava por um processo de redemocratizao que ganhou
ainda mais fora com a nova Constituio Federal de 1988, que contemplou parte da
pauta de reivindicaes por reparaes oficiais para a populao negra, dando origem a
novos direitos. Atravs do Artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais
Transitrias da Constituio Federal, instituiu-se que aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos (BRASIL,
1988). Os formuladores dessa lei no poderiam prever que esta seria apropriada pelo
movimento social enquanto uma poderosa ferramenta de luta, sobretudo pela terra, e
tampouco que contribuiria para a emergncia de novos sujeitos polticos. A criao do
artigo constitucional implicou inovaes no s no plano do direito fundirio, mas
tambm no plano do imaginrio social, da historiografia, dos estudos antropolgicos e
sociolgicos sobre populaes camponesas e no plano das polticas locais, estaduais e
federais, que envolvem tais populaes (ARRUTI, 2003:12). Nesse sentido, alm de
uma criao jurdica, o artigo foi tambm uma criao social e simblica.
Foi nesse contexto de disputas sociais e territoriais que as categorias quilombos e
quilombolas foram acionadas. Muitas comunidades rurais passaram a se diferenciar
tnico-racialmente, recorrendo ao direito, a partir da publicao do Decreto Presidencial
4.887 de 200315, de se autorreconhecerem oficialmente como remanescentes de
quilombos. Em resposta ao nmero cada vez maior de autorreconhecimentos,
proprietrios rurais e a bancada ruralista brasileira16 passaram a contestar ativamente os
processos de regularizao das terras, previstos no Decreto 4887/2003. No entanto esse
decreto tinha respaldo legal na Constituio Federal, levando os envolvidos nos
14 o que Marshall Sahlins denomina processo de metaforizao, ou seja, quando velhas palavras adquirem novos sentidos a partir do esforo de explicar novos eventos (LEITE, 2007 :2 [no prelo]). 15 Decreto 4.887/2003: Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos tnico-raciais, segundo critrios de auto-atribuio, com trajetria histrica prpria, dotados de relaes territoriais especficas, com presuno de ancestralidade negra relacionada com a resistncia opresso histrica sofrida. 16 A bancada ruralista constitui uma frente parlamentar na Cmara dos Deputados, atuando na na defesa dos interesses dos grandes proprietrios rurais, embora, por razes estratgicas, s vezes se coloque ao lado das reivindicaes dos pequenos produtores.
16
conflitos de reconhecimento do territrio quilombola a mudar o foco das contestaes.
Proprietrios de terras e seus advogados passaram a apresentam discursos que atacam a
credibilidade das comunidades ou que apontam para uma descontinuidade na ocupao
das terras por seus remanescentes. Em contestaes de processos administrativos ou em
processos judiciais, frequentemente argumentado que a grande maioria dos quilombos
foi destruda e que os poucos que restaram so bastante afastados dos centros urbanos e
das sedes das antigas fazendas (SILVA, 1999: 268). Nesses casos, as runas de antigos
engenhos e casares coloniais e a ausncia de isolamento geogrfico seriam as provas
que sustentariam acusaes de fraude. De acordo com Valdlio Silva (Idem):
A base das argumentaes para a no aplicao do artigo 68 retoma o arcabouo jurdico colonial, que definia quilombo como grupo de escravos que, margem das leis existentes, fugiam e se embrenhavam nas matas para saquear, roubar e matar administradores e proprietrios de fazendas. Tal noo, ainda hoje, baliza e estrutura os argumentos legais dos que advogam contra os interesses das comunidades.
A antiga noo de quilombo, baseada nos preceitos jurdicos da legislao do
Brasil Colnia, tornou-se um obstculo para a aplicao da lei na atualidade. A ideia
mais comum na historiografia brasileira - de que os quilombos haveriam se extinguido
no passado, seja pela captura dos escravos foragidos por parte dos senhores, seja pelas
investidas do Estado para dizim-los - continua bastante viva no senso comum e nas
interpretaes jurdicas, dificultando que as comunidades remanescentes de quilombo
tenham assegurados seus direitos terra. Nesse sentido, inmeros antroplogos17
apontaram para a necessidade de libertar a definio de quilombo dessas concepes
escravocratas que serviram de alicerce para a historiografia que a criou. Assim, a noo
de quilombo deveria ser problematizada e ressemantizada com base em outras
categorias que pudessem dar conta da pluralidade histrica das comunidades
quilombolas, sobretudo no que concerne posse e ttulo de suas terras.
A participao militante de antroplogos nos processos de regularizao
fundiria dos quilombos deslocou o curso das discusses sobre a tradio das
comunidades negras rurais para a situao do campesinato ps-plantation (ARRUTI,
17 Alfredo Wagner, Jos Maurcio Arruti, Ilka Boaventura Leite, Eliane ODwyer, Maria Rosrio Carvalho, Valdlio Santos Silva, entre outros.
17
2006)18. O laudo antropolgico produzido pelo antroplogo Alfredo Wagner, que
classificou a comunidade Frechal (MA) como remanescente de quilombo, foi um marco
para a afirmao de um direito campons que se opunha s noes de fuga e
isolamento (Idem). Os novos significados atribudos ao termo quilombo permitiram que
as terras de pretos, terras de santo, terras comuns, at ento no contempladas
pela legislao, pudessem se enquadrar nessa categoria (ALMEIDA, 2006b). Em 1994,
a Associao Brasileira de Antropologia (ABA) lana um documento trazendo novas
definies para o termo quilombos, cujo contedo foi publicado no ano seguinte pela
ento coordenadora do Grupo de Trabalho Terras de Quilombo, Eliane ODwyer
(1995: 02):
Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo no se refere a resduos ou resqucios arqueolgicos de ocupao temporal ou de comprovao biolgica. Tambm no se trata de grupos isolados ou de uma populao estritamente homognea. Da mesma forma, nem sempre foram constitudos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram prticas cotidianas de resistncia na manuteno e reproduo dos seus modos de vida caractersticos e na consolidao de um territrio prprio.
A ressignificao do termo quilombo no foi protagonizada apenas por
antroplogos, por militantes do movimento social e por lderes de comunidades negras
rurais. Alguns historiadores tiveram grande participao na quebra do paradigma da
fuga e do isolamento, apontando para a necessidade de uma reviso da historiografia
sobre os quilombos brasileiros. Nesse sentido, deveriam ser repensados no apenas os
quilombos contemporneos, mas tambm os ditos quilombos histricos 19. Segundo
Joo Reis e Flvio dos Santos Gomes (1996: 332):
18 O Grupo de Trabalho sobre Terras de Quilombo, da Associao Brasileira de Antropologia, teve papel importante nesse processo. 19 Em reunies do Grupo de Trabalho Terras de Quilombo da ABANNE (Reunio de Antroplogos do Norte e Nordeste) e em grupos de trabalho sobre quilombos da REA (Reunio Equatorial de Antropologia), frequentemente o termo quilombo histrico foi utilizado para se referir queles quilombos originados a partir da fuga e do isolamento de escravos, em oposio ao termo quilombo contemporneo. O termo quilombo histrico reflete a viso equivocada de alguns antroplogos sobre a historiografia brasileira, que a concebem enquanto uma disciplina esttica e conservadora, que se contrape perspectiva mais atualizada da antropologia. Por essa razo, o termo foi questionado tanto por historiadores como por antroplogos que acreditam que isso incita uma falsa oposio entre antropologia e histria, no que se refere aos estudos de quilombos brasileiros.
18
A formao de quilombos um aspecto da escravido pouco estudado no Brasil. Menos ainda a relao entre quilombos e a sociedade que os cercava. Embora os especialistas sobre o assunto j tenham chamado a ateno para o engano, predomina uma viso do quilombo que o coloca isolado no alto da serra, formado por centenas de escravos fugidos que se uniam para reconstruir uma vida africana em liberdade, ou seja, prevalece uma concepo palmarina do quilombo enquanto sociedade alternativa. Um grande nmero de quilombos, talvez a maioria, no foi assim. Os fugitivos eram poucos, se estabeleciam prximos s povoaes, fazendas, engenhos, lavras, s vezes nas imediaes de importantes centros urbanos, e mantinham relaes ora conflituosas, ora amistosas, com diferentes membros da sociedade envolvente. Sociedade envolvente e tambm absorvente, no sentido de que os quilombolas circulavam com freqncia entre seus quilombos e os espaos legtimos da escravido.
O novo conceito de quilombo, com base em outros campos de referncia,
trouxe implicaes. Por um lado, libertou o conceito de suas amarras conservadoras e
ampliou sua abrangncia, abarcando inmeras comunidades rurais. Por outro, no
lugar do paradigma da fuga de isolamento, a ressemantizao lana mo do paradigma
do uso comum (ARRUTI, 2006: 90). Isso porque, na mesma definio de quilombos
apresentada pela ABA, ODwyer (1995:02) afirma que no que diz respeito
territorialidade para alguns grupos quilombolas (...) a ocupao da terra no feita em
termos de lotes individuais, predominando seu uso comum.
A terra de uso comum, observada em Frechal, aos poucos deixa de ser um
exemplo de diversidade para se tornar, dentro de um discurso jurdico, um modelo
sobre o qual se deve normatizar (ARRUTI, 2006). Assim, as instrues normativas do
INCRA (que apontam como terras ocupadas por remanescentes de quilombos devem
ser tituladas) partem do pressuposto do uso comum da terra, ainda que a legislao no
especifique que a propriedade quilombola tenha que ser coletiva20. Novamente, o termo
quilombo se prendeu a uma generalizao, voltando a se afastar da realidade de parte
do campesinato negro brasileiro. A ideia de um territrio coletivo, cujo uso e ocupao
se baseiam em laos de parentesco e vizinhana, assentados em relaes de
reciprocidade (ODWYER, 1995: 02) no se aplica a todas as comunidades que
atualmente se reconhecem como quilombolas. Os inmeros conflitos ocorridos nos
processos de reconhecimento territorial de quilombos baianos, a partir de 2005,
20 O Artigo 68 do ADT da Constituio de 1988 apenas diz que os remanescentes de quilombos tm direito s terras que tradicionalmente ocupam.
19
ilustram isso21. A ideia de quilombo cujas terras so coletivas nos remete, na verdade, a
outra ideia muito mais antiga: a de comunidade. Dessa forma, tambm preciso
problematizar os usos desse termo.
Cabe aqui o desafio de definir comunidade, j que se trata de um dos conceitos
mais vagos e evasivos nas cincias sociais. Nessa tarefa deparamos com vrias
dificuldades de tipo terico, devido diversidade de sentidos atribudos palavra (tanto
no meio acadmico quanto no senso comum) e s conotaes emotivas que ela pode
evocar. Comunidade se tornou um termo frequentemente utilizado por integrantes de
movimentos sociais e por agentes governamentais para descrever agrupamentos
humanos que variam de vizinhanas, conjuntos habitacionais, aldeias, grupos tnicos e
at naes e organizaes internacionais. Uma vez que o termo foi atribudo s mais
variadas escalas, necessrio que faamos uma rpida reviso das principais
perspectivas.
Uma das primeiras tentativas de conceituar o termo comunidade foi do socilogo
alemo Ferdinand Tnnies (1947 [1887]). Para o autor, Gemeinschaften (comunidade)
seria o resultado da unio de foras de vrios humanos, no sentido de conservar suas
vontades naturais. O autor usava o termo vontade natural para se referir s interaes
humanas motivadas por necessidades orgnicas como alimentao, reproduo e
autopreservao. Se guiadas pela vontade natural, as relaes de sociabilidade do grupo
seriam naturais e durveis, com valor em si mesmas, independentemente de fatores
externos. A livre expresso das vontades, o conhecimento ntimo (determinado pelas
condies de vida comum e por sentimentos como afeto, amor e devoo) e a
conscincia da dependncia mtua entre os membros do grupo, criariam um consenso.
(Idem: 41).
Para Bauman (2003) concepes de comunidade fundamentadas nas ideias de
liberdade e consenso, como a de Tnnies, nos remetem sempre a uma ideia a priori
positiva, como se toda comunidade fosse harmnica, aconchegante,
autossuficiente. O autor afirma que, pelo contrrio, nas comunidades existem tenses
21 Somente na Bahia foram registrados srios conflitos em trs processos de regularizao fundiria, envolvendo as comunidades So Francisco do Paraguau, em Cachoeira; Ara-Cariac Volta, em Bom Jesus da Lapa;Tapera, Pau Grande e Barreiros em Mata de So Joo. Nesse ltimo caso, os conflitos internos foram to intensos que levaram ao arquivamento do processo; Nos trs casos as comunidades permaneceram divididas no que se refere ao ttulo coletivo da terra. Algumas famlias concordavam, enquanto outras queriam a garantia do direito de propriedade individual da terra, mais prximo ao que seria o direito de usucapio.
20
permanentes entre a utpica e almejada proteo coletiva e a ideia de liberdade, uma
vez que os indivduos buscam segurana, mas tambm resistem a ela em prol de suas
individualidades. Assim, Bauman (Idem: 36) sugere o esforo de substituir o
entendimento natural da comunidade de outrora, o ritmo regulado pela natureza, da
lavoura, e a rotina, regulada pela tradio, da vida do arteso, por uma outra rotina
artificialmente projetada e coercitivamente imposta e monitorada. Com isso, o autor
procura dar conta de explicar a emergncia do sentido de comunidade em grupos
inseridos em uma nova estrutura de poder e a tendncia atual desses grupos a naturalizar
os padres de conduta impostos por outros grupos sociais.
Apesar das pertinentes crticas perspectiva evolucionista e romntica de
Tnnies, que naturaliza os comportamentos sociais, no podemos descartar suas
importantes contribuies no esforo de conceituar comunidade. Partindo da ideia de
consenso, enquanto um modo associativo comum e recproco de sentir, fundamental
para a formao das comunidades, o autor chega noo de sentimento de
pertencimento (TNNIES, 1947 [1887]). Ao analisar comunidades camponesas, o autor
observou que alm do uso de bens comuns e da partilha de amigos e inimigos comuns,
h um sentimento de pertencimento que pode se fundamentar em diferentes bases,
originando trs formas recorrentes de relaes comunitrias (Ibidem: 33). A primeira
baseada em laos de sangue, em funo do parentesco entre os membros do grupo. A
segunda resultante da coabitao e da convivncia de uma vizinhana num mesmo
lugar. A terceira baseada na afinidade de esprito, pautada na amizade entre os
membros do grupo, em funo da semelhana de suas identidades e profisses.
De fato, as relaes de consanguinidade, afinidade e reciprocidade listadas por
Tnnies so, at hoje, boas para pensar a perpetuao das fronteiras comunitrias.
Porm, Max Weber (1999 [1922]) d um salto analtico, indo alm nessa perspectiva, ao
constatar que os laos de parentesco e amizade s seriam essenciais para a existncia de
uma comunidade se assim fossem pensados pelo grupo. Assim, Weber (1999[1922]:25)
retoma um elemento central da definio de Tnnies o sentimento de pertencimento -
para afirmar que uma relao social denomina-se relao comunitria quando e na
medida em que a atitude na ao social (...) repousa no sentimento subjetivo dos
participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo22. Para Weber
22 Enquanto que nas relaes associativas as aes repousariam numa unio de interesses racionalmente motivados, que dariam origem ao que Tnnies (Idem) chamou de Gesellschaften (sociedade).
21
(Idem: 270), era a crena em uma origem comum - sendo esta objetivamente fundada
ou no - que favorecia a formao de comunidades polticas, baseadas na comunho
tnica. As comunidades tnicas seriam, portanto:
[...] aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanas no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranas de colonizao e migrao, nutrem uma crena subjetiva na procedncia comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagao de relaes comunitrias, sendo indiferente se existe ou no uma comunidade de sangue efetiva (Ibidem).
A noo weberiana de comunidade tnica foi retomada anos mais tarde, servindo
de base para inmeras fundamentaes tericas sobre grupos tnicos e suas fronteiras,
sobretudo no fim da dcada de 1960 (cf. BARTH, 1969; COHEN, 1974). Nesse mesmo
perodo, entretanto, outros socilogos se empenhavam em definir comunidade
baseando-se em critrios pouco subjetivos, por vezes desenvolvimentistas. Nas dcadas
de 1950 e 1960, intensificaram-se os chamados estudos de comunidade, que vinham
sendo realizados desde 1929 no Brasil, por pesquisadores norte-americanos e por
pesquisadores brasileiros vinculados ao governo estadual baiano. Destes trabalhos,
destacam-se os coordenados por Charles Wagley, na Bahia, via Universidade de
Colmbia e o coordenado por Donald Pierson, no Vale do So Francisco, herdando a
tradio da Escola de Chicago (MAIO: 1999).
Se tomarmos o conjunto das inmeras pesquisas realizadas em diferentes regies
da Bahia entre 1940 e 1960, no conseguimos chegar a uma nica definio para
comunidade, ainda que na maioria dos estudos o nmero de habitantes, o grau de
isolamento e de desenvolvimento do povoado estudado tenham sido critrios
recorrentes. Na pesquisa de Harris, realizada no municpio de Rio das Contas, no
Planalto da Serra do Espinhao, a definio de comunidade est muito associada
ruralidade enquanto um contraponto ao desenvolvimento, sendo demarcada a partir de
critrios considerados objetivos, tais como tamanho do local, tipo de atividade produtiva
e infraestrutura. Alm de bastante vago, essa conceito no d conta de explicar o
sentimento de comunidade presente em contextos diversos, tais como as comunidades
situadas em zonas urbanas ou as ditas emergentes. Um ponto ainda mais crtico que
a perspectiva terica dos estudos de comunidade, muito simplificadamente, congela o
22
grupo estudado no presente etnogrfico (sem diacronia) e em si mesmo, sem levar em
conta suas relaes com o contexto externo (ou sem o situar numa escala ampliada).
Novas definies se afastaram de um enfoque territorial, deixando de ver
comunidade como algo dado, abrindo espao para anlises que enfatizam o carter
situacional e processual das relaes comunitrias. A ateno ento passou a incidir
sobre as situaes em que as experincias dos atores sociais so concebidas como
comunais. A conscincia de participar de uma comunidade e os recursos acionados na
construo do pertencimento seriam eles prprios sujeitos da anlise. Cohen (1985:12)
parte desse entendimento para afirmar que as fronteiras que diferenciam os semelhantes
dos demais resultariam de delimitaes mentais construdas pelos indivduos, marcando
o incio e o fim da comunidade. Nesse sentido, as percepes dos limites da
comunidade so fluidas, pois os smbolos coletivamente partilhados so manipulados
conforme as interpretaes e interesses individuais dos seus membros (Idem). Assim, a
comunidade pode ser entendida como um mecanismo que expressa as suas prprias
fronteiras, uma forma de pensar, crer, sentir, agir e, de acordo com Benedict Anderson
(2008), imaginar.
medida que a conscincia individual e coletiva das diferenas do grupo
aumenta, o sentimento de identificao e pertencimento da comunidade potencializa-se.
Diferena e identidade so produzidas mutuamente, num mesmo processo de produo
simblica e discursiva e s podem ser compreendidas dentro de um sistema de
significao no qual adquirem sentido e pelo qual elas so representadas (SILVA,
2000:76). As representaes atuam classificando o mundo e as relaes sociais atravs
do estabelecimento de fronteiras que separam identidades, tambm em termos sociais e
materiais (Idem). Assim, desigualdades entre os diferentes grupos sociais so as formas
com que essas classificaes so experienciadas. Fica ento clara a dimenso poltica da
atividade de representao, se incluirmos na noo de poltica outros exerccios de
poder (mediao cultural, estratgias de produo de consensos em torno da forma de
representao) na vida comunitria familiar, em redes sociais e nas relaes intertnicas,
para alm do aparato estatal ou de instituies polticas formais (FOUCAULT, 1979).
O ato de demarcar fronteiras envolvem disputas no interior de um campo de
foras na maioria das vezes antagnicas, onde se constroem agentes polticos por meio
do agenciamento das diferenas (MONTERO et al, no prelo: 2009). nesse sentido que
23
em Identidade e Diferena (HALL et al, 2000), os autores enfatizam que a construo
social da diferena ocorre em um contexto marcado por disputas de poder, em que um
grupo simbolicamente marcado como inferior ser socialmente excludo e ter
desvantagens materiais em relao a outros. Uma vez que cria tambm atos de excluso,
a construo da identidade tanto simblica quanto social (WOODWARD, 2000:10).
Isso significa que ao construir simbolicamente uma comunidade, os indivduos
transformam-na num repositrio de significados, num referente para a identidade
coletiva e numa estratgia social e poltica, capaz de manter ou reverter uma situao
social (COHEN, 1985:13).
Essa perspectiva nos remete novamente definio de comunidade tnica (ou
grupo tnico) de Weber (1999 [1922]: 270), entendida como resultado de um processo
simultaneamente identitrio e poltico, uma vez que, para o autor, tanto a comunho
tnica fomenta as relaes comunitrias polticas, quanto a comunidade poltica
costuma despertar a crena na comunho tnica. A definio de Weber provocou um
rompimento com noes que utilizaram critrios biolgicos para determinar suas
fronteiras entre grupos, com frequncia substituindo a noo de raa por etnia. Tambm
se afastou de uma noo predominante nos estudos sociolgicos da poca, que
utilizavam o termo grupo tnico para designar agrupamentos ou populaes que
compartilham valores culturais fundamentais, como lngua ou religio, acreditando que
estes so capazes de gerar uma unidade que perdura ao longo do tempo e que mantm a
coeso do grupo.
Quase meio sculo depois, Fredrik Barth (1998 [1969]), na famosa introduo da
obra coletiva Grupos tnicos e Suas Fronteiras, retoma a perspectiva weberiana ao
propor que a ateno deveria ser dirigida anlise do grupo tnico enquanto um tipo de
organizao social, criticando as definies baseadas na diferena racial ou cultural, que
em geral recorriam ideia de isolamento dos grupos. O autor apontou para a
necessidade de substituir a concepo esttica de identidade tnica por uma mais
dinmica (situacional e relacional), uma vez que qualquer identidade coletiva se forma e
se transforma na interao dos grupos sociais.
A identidade tnica deveria ser entendida como sendo contrastiva, realizando
uma separao analtica em relao cultura. Nesse sentido, Barth nos oferece novas
respostas questo da diferenciao, ao apontar que os grupos tnicos surgem no a
24
partir de continuidades culturais, mas na medida em que os atores usam identidades
tnicas para categorizar a si mesmos e aos outros, com o objetivo de interao
(Idem:193). As fronteiras sociais que a se estabelecem so fundamentais para a
perpetuao da distino tnica, sendo os sinais diacrticos que marcam as diferenas do
grupo muitas vezes elementos da dita cultura agenciveis e, portanto, passveis de
transformaes ao longo do tempo.
A definio essencialmente poltica de "grupos tnicos" de Fredrik Barth foi
amplamente utilizada pelos antroplogos brasileiros na anlise de comunidades
autorreconhecidas como indgenas. A ideia de que os grupos tnicos, enquanto formas
de organizao social, tanto so identificados, como podem se auto identificar como
tais, se difundiu na antropologia e ganhou espao tambm nos movimentos sociais e na
legislao brasileira (CUNHA, 1983:100). A auto atribuio dos grupos, e no mais a
origem ou tradio, passou a ser o nico critrio para o reconhecimento dos povos e
populaes etnicamente distintos, incluindo os grupos autorreconhecidos como
quilombolas.
Se por um lado a formulao barthiniana foi fundamental nos processos de luta
poltica em prol dos direitos indgenas e quilombolas, por outro lado ela se mostrou
limitada no plano terico-analtico. Apesar de Oliveira (2006) concordar com Barth que
o conceito de identidade deva ter certa autonomia em relao cultura, esclarece que
no significa que a expresso da identidade tnica no sofra influncia da varivel
cultural. Para o autor, nos estudos das realidades intertnicas, a cultura deve ser
considerada no somente em sua funo diacrtica, mas por seu carter particularmente
simblico e representativo, se nela estiverem expressos os valores tanto quanto os
horizontes nativos de percepo dos agentes sociais inseridos na situao de contato
intertnico e intercultural (Idem: 35).
Anos mais tarde, o novo Barth de O Guru, o Iniciador e Outras Variaes
Antropolgicas (2000) problematiza exatamente essa ambivalncia presente na
categoria analtica de cultura, uma vez que se refere tanto a uma variedade de padres
(que podem ser observados e descritos pelo etngrafo), como a uma essncia
subjacente a esses padres. Segundo o autor, muitos antroplogos acabam por
essencializar algum padro escolhido ao acaso (de preferncia um que se mostre mais
claro e delimitado) reforando o pressuposto de que a cultura apresenta uma coerncia
25
lgica e uma ordem geral. Ao optarem pela omisso de possveis sinais de incoerncia e
de multiculturalismo, perpetuam alguns pressupostos holistas e de integrao, herdados
das tradies antropolgicas funcionalista e estruturalista.
Nesse sentido, Barth (Idem) aponta para a necessidade de reconceitualizar a
noo cultura, propondo que para descobrir significados no mundo dos outros,
precisamos ligar um fragmento de cultura e um determinado ator(a) constelao
particular de experincias, conhecimentos e orientaes desse/dessa ator(a) (2000:128).
Assim, o autor entende que a cultura distributiva, ou seja, compartilhada por alguns
atores sociais e no por outros, em que cada um est posicionado e age segundo suas
intenes, formadas tambm por partes de diversas correntes culturais (Idem). Em
outras palavras, os significados das coisas so produto da relao entre uma
configurao (ou signo) e um observador. Porm, na maioria das vezes, as intenes
individuais dos atores, observadas nos discursos, no so as causas dos eventos, uma
vez que estes resultam tanto da interao social quanto da situao material da
sociedade. Resumidamente, o significado no mundo do outro s pode ser corretamente
compreendido quando relacionado "ao contexto, prxis e inteno comunicativa"
(Ibidem:132).
A proposta de Barth dialoga profundamente com o entendimento de Marshall
Sahlins (1990:10), de que agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes
sociais diversos para a objetivao de suas interpretaes, as pessoas chegam a
diferentes concluses e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua maneira.
Os significados so, portanto, submetidos a riscos subjetivos - a comunicao social
um risco to grande quanto as referncias materiais - podendo levar a sociedade a
inovaes radicais (Idem). Se os significados so reavaliados quando realizados na
prtica, o autor conclui que a cultura historicamente reproduzida na ao (Ibidem:7).
Trazendo essas perspectivas tericas para a anlise dos processos de
etnognese23, percebemos que o prprio significado de cultura foi reelaborado na
prtica dos movimentos sociais. O que antes era uma categoria analtica, prpria da
23 Concordando com Joo Pacheco de Oliveira (2004:30), acredito que os termos etnognese, de Gerald Sider (1976) e emergncia tnica podem substantivar um processo histrico de formao de identidades, que no exclusividade dos grupos chamados tnicos. Portanto usarei os termos nessa dissertao sempre associados ideia de processo.
26
antropologia, ganhou outro sentido ao ser utilizada como categoria nativa dos novos
grupos tnicos. Manuela Carneiro da Cunha (2009) diferencia esse sentido utilizando
aspas. Assim, a cultura seria aquilo que dito acerca da cultura, ou seja, um
metadiscurso sobre a cultura. Ainda de acordo com a autora, alm de viver na cultura,
as pessoas tm conscincia da prpria cultura e tambm a vivenciam. Porm,
analiticamente, essas duas esferas so distintas, j que se baseiam em diferentes
princpios de inteligibilidade. A lgica interna da cultura no coincide com a lgica
intertnica das culturas (CUNHA, 2009:359). Para Arruti, Montero e Pompa (no
prelo, 2009:2):
A cultura passou a ocupar tantos lugares, funes, e papis no vocabulrio poltico, que deixou de ser eficiente enquanto um conceito analtico. Desse modo, os ditos especialistas da cultura ficaram cada vez mais reduzidos produo de uma antropologia que tem por objeto a cultura enquanto instrumento, resultado ou traduo de interesses que desguam no campo da poltica.
Tendo em vista a instrumentalizao poltica do conceito de cultura e,
paralelamente, a eroso desse conceito no plano terico-analtico, Arruti, Montero e
Pompa (Idem) propem a redefinio do objeto da antropologia e dos parmetros que
orientam sua abordagem. Assim, sugerem que o poltico deveria ocupar na
antropologia contempornea o lugar terico-metodolgico deixado vago pelo conceito
de cultura na antropologia clssica (Ibidem:1). Para os autores, os processos
contemporneos de reposio de alteridades em termos de identidades processos
em que a cultura constantemente agenciada - seriam o objeto de anlise dessa
antropologia do poltico (Idem: 3).
O entendimento dos processos de emergncia tnica enquanto processos
polticos j vinha sendo sinalizado desde a introduo da noo de territorialidade
vinculada de etnicidade. Na introduo de Urban Ethnicity (1974) Cohen j apontava
que a etnicidade seria pouco til se fosse usada para indicar diferenas culturais em
sociedades autnomas ou isoladas. Para o autor, a dimenso propriamente tnica da
identidade depende da interatuao de grupos culturais em contextos sociais e
territoriais comuns, sendo a etnicidade essencialmente a forma com que estes grupos,
com interesses distintos, interagem. Consequentemente, nas sociedades multiculturais, a
questo da identidade tnica e de seu reconhecimento ser mais crtica e em muitos
27
casos ter estreita conexo com a dimenso da territorialidade (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2006). Para Joo Pacheco de Oliveira (2004: 23), exatamente nesse ponto
que a formulao do velho Barth (1969) encontrou sua maior limitao, uma vez que
no deu a devida importncia ao contexto mais amplo no qual se constituem os grupos
tnicos.
Oliveira (Idem) enfatizou que a interao dos grupos sociais processada
dentro de um quadro poltico preciso, cujos parmetros so dados pelo Estado-nao.
Lembrando que este quadro sofre influncia poltica de outros Estados e de
regulamentaes internacionais que ganham a cada dia mais fora e que podem
instituir novos dinamismos na relao entre grupo tnico e Estado-nao (Ibidem). O
autor prope ento que a investigao antropolgica abranja tanto os mecanismos
internos populao em questo, quanto aqueles exteriores a ela, resultantes das
relaes de fora entre os diferentes grupos que integram o Estado. Segundo Arruti
(2006:40), somente assim seria possvel analisar alguns fenmenos envolvendo grupos
tnicos. Para o autor:
A ateno na autoatribuio, nas fronteiras intertnicas, na contrastividade ou mesmo na situacionalidade identitria no d conta da passagem entre o fenmeno de adscrio tnica (necessariamente local) do grupo (o etnnimo) e a sua adeso categoria genrica e englobante de "indgena" (ou de "quilombola"), de carter jurdico-administrativo (Idem).
Ao trazer o Estado para o centro das discusses sobre a formao dos grupos
tnicos, Pacheco de Oliveira (2004) lana mo do conceito de "territorializao". Para o
autor, se a administrao estatal realiza a gesto do territrio, divide a sua populao
em unidades geogrficas menores e hierarquicamente relacionadas, define limites e
demarca fronteiras (Idem: 21), a dimenso territorial se mostra boa para pensar a
incorporao de populaes etnicamente diferenciadas dentro de um Estado-nao. Os
processos de territorializao, desterritorializao e de disputas territoriais se tornam,
portanto, objeto central para a compreenso da formao de muitos grupos tnicos, de
relaes intertnicas e tambm de territrios. De acordo com Pacheco de Oliveira
(2004: 22), a territorializao como um processo de reorganizao social implica:
28
i) A criao de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade tnica diferenciadora;
ii) A constituio de mecanismos polticos especializados; iii) A redefinio do controle social sobre os recursos ambientais; iv) A reelaborao da cultura e da relao com o passado.
Ilustra bem essa perspectiva a afirmao de Alfredo Wagner Almeida (Apud
MALIGHETTI, 2007), de que nos processos de autoidentificao de comunidades
como quilombolas, a territorialidade se apresenta como condio de aplicao da noo
de etnicidade24. No caso dos quilombos, esses diferentes processos poltico-sociais
formam o que Almeida (2006:25) chamou de territorialidades especficas, que
originam territrios especficos no interior de um Estado pluritnico.
Os territrios tnicos devem ser entendidos, portanto, como fruto de relaes
sociais, polticas, jurdicas, econmicas e culturais que se estabeleceram num espao ao
longo da histria, no qual diversos acontecimentos territoriais se sobrepem (LITTLE,
2002). Mais do que seus aspectos fsicos-ambientais, destaca-se a conduta de seus
ocupantes na sua composio, administrao, e consequentemente, as suas
responsabilidades, individual e coletiva, frente aos cenrios que se constroem (Idem).
O campo de foras e as relaes de poder entre grupos sociais que se
estabelecem em um determinado espao se apresentam como pontos fundamentais a
serem abordados nos estudos territoriais. Com esse intuito, diversos pesquisadores
priorizam investigar as atividades produtivas, especialmente as relaes entre capital e
trabalho e os embates entre classes sociais25. Porm, o territrio tambm estabelecido
e mantido por dimenses mais subjetivas, que incluem os saberes, os sentimentos de
reciprocidade, identificao e pertencimento e as ideologias do grupo (LITTLE,
2002)26. Isso significa que para alm de uma apropriao poltica e econmica do
espao, h uma apropriao simblica, em que a distribuio, utilizao, classificao,
24 Roberto Malighetti (2007:238) seleciona citaes de documentos de 1996 sobre a comunidade quilombola Frechal, em que Alfredo Wagner Almeida afirma que a territorialidade funda a identidade tnica de cada comunidade negra.
25 Essa abordagem predominante nos estudos territoriais clssicos da geografia agrria. 26 Paul Little (2002:4) utiliza o conceito de cosmografia para definir esses saberes ambientais, ideologias e identidades coletivamente criados e historicamente situados que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu territrio. Outros autores, tais como Cardoso de Oliveira (2006), Almeida (2000, 2006b), Haesbaert (2005), Malighetti (2007) veem esses elementos subjetivos, como constituintes da prpria territorialidade do grupo.
29
delimitao e defesa do territrio so tambm produto do imaginrio coletivo,
(HAESBAERT, 2005: 6783).
Assim como a territorialidade, a diferena racial de um determinado grupo
social passa a se apresentar como elemento importante na configurao tnica27. Apesar
de as minorias tnicas no Brasil serem reconhecidas como componentes de um pas
pluritnico o que significa que elas no esto em um territrio propriamente
estrangeiro - os processos de disputas territoriais tambm contribuem para uma
frequente evocao de uma perspectiva de raa. Isso fica bastante evidente quando, ao
longo do processo de reivindicao territorial, um grupo passa a afirmar enquanto um
povo distinto e em alguns casos enquanto uma raa distinta. Diante disso, achei
pertinente buscar reflexes mais atuais acerca dos usos do conceito de raa nos estudos
sociolgicos e antropolgicos.
Atualmente, h certo receio, dentro das cincias sociais, do uso do conceito de
raa em funo da carga ideolgica opressiva que acompanha essa noo, acreditando
que ela contribuiria para a perpetuao das desigualdades entre diferentes grupos
humanos. Alguns recorrem a um discurso cientificista, alegando que o termo deve ser
abandonado, uma vez que a Biologia nega a existncia de diferentes raas humanas h
pelo menos quatro dcadas. Por outro lado, uma corrente de pesquisadores e militantes
do movimento social defende a utilizao da noo de raa nas ci