DISSERTAÇÃO RICARDO DA SILVA GAMA

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS APLICADAS

RICARDO DA SILVA GAMA

PARTICIPAO E DEMOCRACIA NA GESTO DE RECURSOS HDRICOS: ESTUDO SOBRE OS EFEITOS DA ATIVIDADE DE GERAO HIDRELTRICA NA BACIA HIDROGRFICA DO LITORAL PARANAENSE

PONTA GROSSA 2009

RICARDO DA SILVA GAMA

PARTICIPAO E DEMOCRACIA NA GESTO DE RECURSOS HDRICOS: ESTUDO SOBRE OS EFEITOS DA ATIVIDADE DE GERAO HIDRELTRICA NA BACIA HIDROGRFICA DO LITORAL PARANAENSE

Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado Multidisciplinar em Cincias Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa, como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre. Orientador: Prof. Dr. Jos Robson da Silva

PONTA GROSSA 2009

Ficha Catalogrfica Elaborada pelo Setor de Processos Tcnicos BICEN/UEPG

G184p

Gama, Ricardo da Silva Participao e democracia na gesto de recursos hdricos : estudo sobre os efeitos da atividade de gerao hidreltrica na Bacia Hidrogrfica do Litoral Paranaense. / Ricardo da Silva Gama. Ponta Grossa, 2009 219f Dissertao ( Mestrado em Cincias Sociais Aplicadas ), Universidade Estadual de Ponta Grossa. Orientador: Prof. Dr. Jos Robson da Silva

1 .Democracia. 2. Participao. 3. Gesto de recursos hdricos. 4. Bacia litornea do Paran. 5. Gerao hidreltrica. I. Silva, Jos Robson. II. T. CDD : 306.85

RICARDO DA SILVA GAMA

PARTICIPAO E DEMOCRACIA NA GESTO DE RECURSOS HDRICOS: ESTUDO SOBRE OS EFEITOS DA ATIVIDADE DE GERAO HIDRELTRICA NA BACIA HIDROGRFICA DO LITORAL PARANAENSE

Dissertao apresentada para obteno do ttulo de mestre na Universidade Estadual de Ponta Grossa, rea de Cincias Sociais Aplicadas.

Ponta Grossa, 22 de dezembro de 2009.

Prof. Dr. Jos Robson da Silva Orientador Doutor em Direito Universidade Estadual de Ponta Grossa

Prof. Dra. Lucia Cortes da Costa Doutora em Servio Social Universidade Estadual de Ponta Grossa

Prof. Dr. Edson Luiz Peters Doutor em Direito Pontifcia Universidade Catlica do Paran

s minhas meninas, Jerusa, Valentina e Bett, fontes perenes de inspirao e fora.

AGRADECIMENTOS

Ao incansvel Prof. Jos Robson da Silva, pela sua pacincia e iluminao do caminho do autor deste trabalho e admirador.

Aos Professores Edson Peters e Lucia Costa pelas sbias sugestes para enriquecimento da pesquisa e pela pronta disponibilidade.

Aos Professores Divanir Munhoz, Danuta Luiz, Jos Leandro, Edson Silva, Srgio Gadini, Solange Barros, Constantino Jr. e Emerson Cervi, pela prazerosa convivncia durante o curso de mestrado e pelos valiosos ensinamentos transmitidos durante este curto perodo de compartilhamento de experincias.

Aos colegas do curso de Mestrado em Cincias Sociais Aplicadas da UEPG, pela amizade, sinceridade e contribuio para o enriquecimento deste trabalho e da viso de mundo de seu autor, em especial s amigas Gislaine Rocha e Giovana Ribas.

Aos amigos, familiares, colegas de trabalho, incentivadores e crticos que todos os dias fazem com que o pesquisador tenha fora e vontade de lutar pelos seus objetivos e pelo desenvolvimento e aplicao equilibrados do Direito Ambiental em nosso pas.

Ela branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu nico vcio: o peso; dispe de meios excepcionais para satisfazer esse vcio: contornando, penetrando, erodindo, filtrando. Dentro dela mesma esse vcio tambm age: ela desmorona incessantemente, renuncia a cada

instante a qualquer forma, s tende a humilhar-se, esparrama-se de bruos no cho, quase cadver como os monges de algumas ordens [...] Poderamos quase dizer que a gua louca devido a essa necessidade histrica de s obedecer ao seu peso, que a possui como uma idia fixa [...] LQUIDO por definio o que prefere obedecer ao peso a manter sua forma, o que recusa toda forma para obedecer a seu peso. E que perde toda compostura por causa dessa idia fixa, desse escrpulo doentio [...] Inquietude da gua: sensvel menor mudana de inclinao. Saltando as escadas com os dois ps ao mesmo tempo. Brincalhona, de uma obedincia pueril, voltando logo que a chamamos mudando a inclinao para este lado. (Francis Ponge)

RESUMO

Existe gesto democrtica dos recursos hdricos na bacia litornea do Paran? A atividade de gerao hidreltrica tem influncia neste fato? A resposta a estes questionamentos constitui a linha mestra de conduo deste trabalho, que possui como perodo de interesse aquele posterior edio da Lei Federal de Recursos Hdricos (Lei Federal n 9433/1997) at a presente data. A verificao da implementao (ou no) da gesto democrtica e participativa da gua no local estudado foi buscada mediante aprofundamento no local investigado e suas relaes sociais, busca de conhecimentos especficos sobre os efeitos da atividade de gerao hidreltrica, anlise dos marcos jurdicos balizadores da poltica de recursos hdricos e uma incurso terico-conceitual. O objetivo especfico do trabalho dirige-se verificao da existncia de gesto participativa da gua na bacia hidrogrfica do litoral do Paran e a influncia das geradoras hidreltricas neste contexto, bem como da gerao de externalidades econmicas e impactos ambientais negativos ocasionados pela operao destes empreendimentos na regio. Para avano no processo de pesquisa e elaborao da dissertao partiu-se de uma perspectiva ancorada na complexidade das relaes entre sociedade e ambiente, estabelecendo-se uma pergunta de partida que foi desdobrada em hiptese, a qual deu origem a variveis, cuja apurao subsidiou a resposta ao problema proposto. Com relao base de dados, foram coletados elementos junto ao poder pblico, agentes do mercado, pesquisadores, sociedade civil e comunidades ribeirinhas, conjugando-se aqueles produzidos num ambiente de conhecimento cientfico com informaes marcadas por impresses do senso comum. O encadeamento do estudo terico e os dados coletados permitiram o oferecimento de resposta pergunta inicial, a qual aponta para a no implementao da gesto democrtica e participativa dos recursos hdricos na bacia litornea do Paran, com influncia da atividade de gerao hidreltrica para perpetuao desta condio. Palavras-chave: Democracia. Participao. Gesto de recursos hdricos. Bacia litornea do Paran. Gerao hidreltrica.

ABSTRACT Is there a democratic management of the water resources at the coastline basin of Paran? Does the hydroelectric generation activity influence this fact? The answer of these questions constitute the master line in the conduction of this academic work, that has as interest period the one before the Water Resources Federal Law (Federal Law n 9433/1997) up to the present date. The implementation verification (or not) of the democratic management and participative of the water at the studied place was searched through deepen at the researched place and its social relations, search of specific knowledge about the hydroelectric generation activity effects, analyses of the referential juridical limit of the hydroelectric generation activity and a theoryconceptual incursion. The specific objective of the work addresses to determinate the existence of water participatory management in the water parting of the Paran coast, the influence of hydroelectric dams in this context, but also the generation of economic externalities and negative environmental impacts associated with the operation of these developments in the region. The advance in the process of research and preparation of the dissertation came from a perspective rooted in the complexity of the relationships between society and environment, establishing a starting question that was deployed in hypotheses, which gave rise to variables, whose determination supported the answer to the proposed problem. Regarding the database, information was collected with the government, market players, researchers, civil society and coastal communities, combining those produced in an environment of scientific knowledge with information marked by common sense impressions. The link of the theory study and of the collected data will allow the initial question to be answered, which signalizes to the non implementation of the democratic management and participative of the water resources at the coastline basin of Paran, with influence of the hydroelectric generation activity for the perpetuation of this condition. Keywords: Democracy. Participation. Water resources management. Coastline basin of Paran. Hydroelectric generation.

LISTA DE SIGLAS AAE ABRH AgRg no RESP ANA ANEEL APA APP APPAM CBA CBH CCEE CEDEA CEHPAR CERH CF CMI CNRH COG COLIT CONAMA COPEL CREA/PR CTPLAN DNAEE DRDH ECO-92 EDcl EPA EPE FATMA FEHIDRO IAP IBAMA IBGE ICMBio ICMS IDH IDH-M IQA IQAR IPARDES IPEA LACTEC Avaliao Ambiental Estratgica Associao Brasileira de Recursos Hdricos Agravo Regimental no Recurso Especial Agncia Nacional de guas Agncia Nacional de Energia Eltrica rea de Preservao Ambiental rea de Preservao Permanente Associao Paranaense de Proteo dos Mananciais do Rio Iguau e da Serra do Mar Companhia Brasileira de Alumnio Comit de Bacia Hidrogrfica Cmara de Comrcio de Energia Eltrica Centro de Estudos, Defesa e Educao Ambiental Centro de Hidrulica e Hidrologia Professor Parigot de Souza Conselho Estadual de Recursos Hdricos Constituio Federal Coeficiente de Mortalidade Infantil Conselho Nacional de Recursos Hdricos Centro de Operao e Gerao Conselho de Desenvolvimento Territorial do Litoral Paranaense Conselho Nacional do Meio Ambiente Companhia Paranaense de Energia Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Paran Cmara Tcnica de Acompanhamento do Plano de Recursos Hdricos Departamento Nacional de guas e Energia Eltrica Declarao de Reserva de Disponibilidade Hdrica Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento Embargos de Declarao Environmental Protection Agency Empresa de Pesquisa Energtica Fundao de Tecnologia e Meio Ambiente de Santa Catarina Fundo Estadual de Recursos Hdricos do Paran Instituto Ambiental do Paran Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Servios ndice de Desenvolvimento Humano ndice de Desenvolvimento Humano Municipal ndice de Qualidade das guas ndice de Qualidade das guas de Reservatrios Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econmico e Social Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento

MERCOSUL MMA ONS PCH PEC PERH PMDB PNMA PNRH PNUD RESP SANEPAR SEAB SEGRH SEIM SEMA SIAGI SINGERH SISNAMA STF STJ SUDERHSA SUREHMA UE UED UHE UNAM VAF

Mercado Comum do Sul Ministrio do Meio Ambiente, dos Recursos Hdricos e da Amaznia Legal Operador Nacional do Sistema Eltrico Pequena Central Hidreltrica Proposta de Emenda Constitucional Poltica Estadual de Recursos Hdricos Partido do Movimento Democrtico Brasileiro Poltica Nacional de Meio Ambiente Poltica Nacional de Recursos Hdricos Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento Recurso Especial Companhia de Saneamento do Paran Secretaria de Agricultura e do Abastecimento do Paran Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hdricos Secretaria da Indstria, do Comrcio e Assuntos do MERCOSUL do Paran Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hdricos do Paran Sistema de Acompanhamento e Gerenciamento da Informao Sistema Integrado para a Gesto de Recursos Hdricos Sistema Nacional de Meio Ambiente Supremo Tribunal Federal Superior Tribunal de Justia Superintendncia de Desenvolvimento de Recursos Hdricos e Saneamento Ambiental do Paran Superintendncia dos Recursos Hdricos e Meio Ambiente do Paran Unio Europia Unidade Executiva Descentralizada Usina Hidreltrica Universidade Livre do Mxico Valor Agregado Fiscal

SUMRIO Introduo CAPTULO I 1 1.1 1.2 PARA ENTENDER A CONCEPO DO TRABALHO.............. SISTEMA NORMATIVO E EFICCIA SOCIAL: UMA 21 25 ANLISE CRTICA DA POLTICA DE RECURSOS HDRICOS Constituio Federal de 1988..................................................... Federao brasileira e competncias ambientais....................... Gesto de recursos hdricos no Brasil a partir da Constituio Federal de 1988........................................................................... 30 1.2.1 1.2.2 1.2.3 1.2.4 1.2.5 1.3 Poltica Nacional de Recursos Hdricos....................................... 35 Bacia Hidrogrfica como unidade de gesto............................... Descentralizao......................................................................... Usos mltiplos com prioridade para a dessedentao................ Usurios de recursos hdricos..................................................... Poltica de Recursos Hdricos do Estado do Paran: Lei Estadual n 12726/1999............................................................... 54 CAPTULO II 2 2.1 2.1.1 2.1.2 GESTO DEMOCRTICA E PARTICIPATIVA Participao: perspectiva de anlise......................................... Participao na perspectiva ambiental........................................ Campo ambiental........................................................................ Participao na perspectiva da Poltica de Recursos Hdricos: Gesto democrtica X Cidadania responsvel.......................... 2.1.3 Participao no Sistema de Gerenciamento de Recursos Hdricos: Conselhos e Comits de Bacia.................................... 2.2 2.3 2.4 Esfera Pblica e Democracia...................................................... Pluralismo.................................................................................... Antropocentrismo x Biocentrismo (ou radicalizao da viso ps-moderna?)............................................................................. 98 CAPTULO III 3 3.1 AMBIENTE E SOCIEDADE: BACIA HIDROGRFICA DO LITORAL DO PARAN Delineamentos da Bacia Litornea do Paran............................ Aspectos geogrficos.................................................................. 103 104 80 86 95 75 58 65 70 39 43 47 50 13

3.1.1

Disponibilidade

qualitativa

e

quantitativa

dos

recursos 108 111 115 121

hdricos........................................................................................ 3.1.2 3.1.3 3.1.4 3.2 Aspectos institucionais................................................................ Aspectos econmicos dos municpios do litoral paranaense..... Indicadores sociais da bacia hidrogrfica litornea.................... Participao e democracia na gesto das guas da Bacia Litornea do Paran: Inexistncia de Comit de Bacia.............. 3.3 Conflitos de uso da gua na Bacia Hidrogrfica do Litoral Paranaense................................................................................. 3.3.1 3.3.2 CAPTULO IV 4 4.1 4.1.1 4.1.2 4.1.3 4.2 Conflitos aparentes..................................................................... Conflitos no aparentes.............................................................. APROFUNDAMENTO DO CONFLITO: GERAO

125

129 129 133

HIDRELTRICA E ALGUNS DE SEUS EFEITOS Atividade econmica de gerao hidreltrica............................. Apontamentos econmicos......................................................... Alguns reflexos sociais................................................................ Consequncias ambientais......................................................... Utilidade pblica.......................................................................... Hidreltricas como usurias de recursos hdricos: contexto geral............................................................................................ 4.2.1 4.3 4.3.1 4.3.2 4.3.3 4.3.4 CAPTULO V Hidreltricas instaladas na bacia litornea do Paran................ Viso de mundo dos sujeitos sociais envolvidos........................ Comunidades ribeirinhas............................................................ Sociedade civil............................................................................ Geradoras.................................................................................... Poder Pblico.............................................................................. ANLISE E CONCLUSES: FATORES RESPONSVEIS PELA INCOMPLETA IMPLEMENTAO DA POLTICA HDRICA NA BACIA LITORNEA DO 184 197 PARAN..................................................................................... REFERNCIAS ..................................................................................................... 149 157 171 173 175 177 180 136 137 142 144 147

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PARA ENTENDER A CONCEPO DO TRABALHO As preocupaes com os recursos ambientais sempre perpassaram o contexto de insero do pesquisador, primeiramente, numa esfera de familiarizao e, depois mediante a adoo de uma postura mais ativa pela direo do foco profissional , com o desenvolvimento de atuao especfica no ramo do Direito Ambiental. Aprofundando as discusses, o tema pertinente gesto das guas despertou interesse (haja vista as razes bvias para tanto, pertinentes ao recorrente mau uso desse bem ambiental e sua iminente escassez), sobretudo a investigao dos reflexos sociais e ambientais das relaes que a permeiam, o que gerou a necessidade de incurso no campo da multidisciplinaridade, pois a formao jurdica originria no era suficiente para enfrentar e suplantar o desafio proposto. A gua, embora seja um recurso natural renovvel, finita e encontra-se sob alarmante ameaa em face da concentrao populacional e das mudanas climticas (BEEKMAN, s/d: 7), dentre outras intervenes humanas. Logo de incio, pode-se verificar que severas mudanas haviam ocorrido com o regime social, poltico, econmico, jurdico e at mesmo cultural ligado aos recursos hdricos. Este fato se comprovou historicamente, medida que o marco institucional vigente desde a dcada de 1930 (representado pelo Decreto n 24643/1934 Cdigo de guas) sucumbira diante da reforma democrtica que culminou com a promulgao da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, em 1988. Diversas foram as consequncias decorrentes deste processo (ainda em curso), no que pertine ao tema que abarca o objeto de pesquisa, j que a parte da gua que lhes cabia foi retirada da dominialidade dos particulares que eram um dos proprietrios das guas, de acordo com o arranjo legal e institucional anterior , passando condio de bem difuso de interesse coletivo (de acordo com a doutrina jurdica especializada, conforme se ver a seguir), e de bem pblico, de titularidade da Unio e dos Estados, na forma delimitada pela nova Constituio da Repblica. Neste ponto, h uma questo a ser superada, na medida em que os bens difusos possuem, por definio, titularidade indefinida, como se ver adiante. Desta

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feita, admite-se neste trabalho1 que a gua no se enquadra nas definies clssicas de bem produzidas pela cincia jurdica, j que possui tanto natureza de bem difuso (quando relacionada a seu aspecto de bem essencial vida no planeta Terra) como de bem pblico (quando compreendida como bem econmico de titularidade pblica, cujo uso passvel de outorga aos particulares). O avano neste percurso ganhou reforo atravs da edio da Poltica Nacional de Recursos Hdricos e das polticas hdricas dos Estados e do Distrito Federal2, com seus arcabouos normativos e institucionais respectivos, portadores de potencial vis participativo e emancipatrio. Dentro desta dinmica, as geradoras hidreltricas historicamente desempenham forte atuao na condio de usurias de recursos hdricos, j que o aproveitamento energtico de potenciais hidrulicos uma atividade, de modo geral, necessria ao crescimento econmico e bem vista pela sociedade brasileira, que a concebe como uma forma de gerao de energia limpa e renovvel, relativamente proporcionadora de baixos impactos ambientais. Pois bem, diante desta sucinta exposio conjuntural preliminar, que representa a posio dominante no discurso competente (por representar a manifestao dos representantes do poder pblico e setores de usurios dos recursos hdricos), traa-se como objetivo apresentar resposta satisfatria seguinte questo, dentro de um contexto de produo de conhecimento cientfico: Diante da conjuntura apresentada no Brasil aps a Constituio Federal de 1988 e a publicao da legislao federal de recursos hdricos (1997), qual tem sido a influncia da atividade econmica de gerao de energia hidreltrica na relao entre os sujeitos que integram o sistema de gesto das guas dentro do espao geogrfico da bacia hidrogrfica do litoral paranaense?Sem prejuzo de outros entendimentos sobre a matria, que chegam a conceber a gua como patrimnio social. 2 Leis Estaduais e do Distrito Federal para a matria de Recursos Hdricos: Acre Lei n 1500/2003; Alagoas Lei n 5965/1997; Amap Lei n 686/2002; Amazonas Lei n 2712/2001; Bahia Lei n 6855/2005; Cear Lei n 11996/1992; Distrito Federal Lei n 2725/2001; Esprito Santo Lei n 5818/1998; Gois Lei n 13123/1997; Maranho Lei n 8149/1994; Mato Grosso Lei n 6945/1997; Mato Grosso do Sul Lei n 2406/2002; Minas Gerais Lei n 11504/1994; Par Lei n 6381/2001; Paraba Lei n 6308/1996; Paran Lei n 12726/1999; Pernambuco Lei n 11427/1997; Piau Lei n 5165/2000; Rio de Janeiro Lei n 3239/1999; Rio Grande do Norte Lei n 6908/1996; Rio Grande do Sul Lei n 10350/1994; Rondnia Lei Complementar n 255/2002; Roraima Lei n 547/2006; Santa Catarina Leis n 9022/1993 e 9748/1994; So Paulo Leis n 898/1975 e 9034/1994; Sergipe Lei n 3870/1997; Tocantins Lei n 1307/2002.1

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Perante a delimitao proposta, dirige-se o foco constatao e anlise de alguns dos reflexos da atuao da atividade econmica de gerao de energia hidreltrica, enquanto integrante da coletividade responsvel pela gesto participativa e democrtica (de acordo com a lei) dos recursos hdricos existentes na bacia litornea do Estado do Paran. Ressalte-se que os resultados obtidos a partir deste empreendimento foram colhidos dentro do limite da maior objetividade possvel e no so passveis de desavisada generalizao, haja vista as particularidades e caractersticas prprias dos sujeitos, objeto e relaes analisados. E os reflexos que se procura identificar dizem respeito aos principais efeitos sociais, econmicos e ambientais que esta atividade econmica tem causado, desde 1997 (ano de edio da lei nacional de recursos hdricos), no territrio do espao territorial proposto. Com suporte nesta apurao, buscar-se- ainda embasar um posicionamento acerca da efetivao do ordenamento legal pertinente gesto dos recursos hdricos na localidade investigada. O estudo no se prende exclusivamente ao campo jurdico e procura abrir caminhos nas complexas vias da multidisciplinaridade, abrangendo questes pertinentes economia, geografia, histria, sociologia, cincia poltica e comunicao. Haja vista a pergunta de partida proposta e a delimitao programada, busca-se partir, no desenvolvimento da abordagem da temtica, para as seguintes questes chave: Houve alterao na poltica de uso de recursos hdricos por parte das geradoras hidreltricas da bacia litornea do Paran, considerando o perodo da publicao da Lei n 9433/1997 e o momento atual? As diretrizes jurdicas nacionais pertinentes ao manejo da gua esto implementadas de forma eficaz no espao territorial sob exame? Quais os principais efeitos sociais, econmicos e ambientais do agir das investigadas na regio proposta? H mobilizao social na regio para discusso deste tema? Como se v, a tentativa de oferecer uma resposta defensvel ao problema proposto exige intercurso por variados campos do saber cientfico haja vista a necessria apropriao de conceitos de cincias como a sociologia, o direito, a histria, a geografia, a economia e a poltica , o que vem a contribuir e enriquecer a viso acerca da questo, transcendendo anlise meramente jurdica.

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Estes so importantes questionamentos aos quais se prope buscar soluo satisfatria, servindo as respostas como contribuio destinada a esclarecer pontos relevantes ao dimensionamento da coexistncia de diversos interesses pertinentes ao uso dos recursos ambientais no litoral paranaense, especialmente da gua. Em decorrncia da problematizao apresentada e dos dados preliminares colhidos e para que houvesse avano na identificao de elementos pertinentes ao objeto da pesquisa , foi suscitada a seguinte hiptese, que norteou todo o processo de produo do conhecimento: No se encontra implementada a gesto democrtica e participativa dos recursos hdricos na bacia litornea do Estado do Paran, sendo que as grandes geradoras hidreltricas instaladas na regio, de modo geral, exercem influncia neste sentido, alm de promover a gerao de externalidades econmicas negativas sociedade e causar impactos negativos ao meio ambiente. Ao longo da perseguio do objetivo proposto (identificao dos efeitos das geradoras hidreltricas na gesto participativa dos recursos hdricos dentro da bacia hidrogrfica do litoral paranaense), buscar-se- verificar a plausibilidade da hiptese de pesquisa, a fim de verificar a sua sustentabilidade diante dos dados e elementos tericos e empricos manejados.

Questes metodolgicas Parte-se, para elaborao deste trabalho, da perspectiva da atividade cientfica voltada para a aproximao de uma realidade social complexa, multi-facetada e no linear, com relao qual no se admite a simples relao de causa e efeito estandardizada pelas cincias denominadas de exatas (em que pese os vcuos expostos por estudos que vo desde a fsica quntica at a psicanlise demonstrem que no h tanta segurana nesta exatido Capra, 1996; Morin, 2000a e Bertalanffy, 1977). Resulta do pensamento complexo que a realidade se constitui de processos dinmicos, orgnicos, cuja fluncia decorre da interao de todas as coisas (sujeitos e objetos), de modo dialgico (articulao entre sujeitos, entre

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sujeito e objeto e entre objeto e sujeito), sem o afastamento entre sujeito e objeto pelo conhecimento (DALLA VECCHIA, 2008:157). De fato, afina-se o trabalho ao entendimento de que no h ponto de referncia absoluto que sirva de suporte s descries e aproximaes da realidade, encontrando-se os sujeitos imersos em uma recursividade contnua de interaes aptas a esta finalidade, que no pode ser explicada pela abordagem representacionista3 (MATURANA; VARELA, 2007:263). Logicamente, a teoria da complexidade comporta vrias crticas e no tomada como superior ou verdadeira, mas somente como a mais adequada4 no atual momento da produo cientfica para iluminar discusses acerca da forma de se produzir cincia num enfoque de multidisciplinaridade (FLORIANI; KNECHTEL, 2003), especialmente no campo ambiental, onde a viso antropocntrica perde muito sua fora de persuaso e a disputa pela hegemonia pode se processar de inmeras maneiras, conjugada com questes econmicas, sociais, histricas, culturais, geogrficas, geolgicas, polticas, biolgicas, de engenharia, de sade, etc. Justifica-se esta afirmao com base no fato de que os problemas ambientais compreendem sistemas complexos, nos quais intervm processos de diferentes racionalidades, ordens de materialidade e escalas espao-temporais (LEFF, 2000a: 20), pelo que se pode asseverar que o campo ambiental constitui-se das interconexes entre sociedade e natureza e seu conhecimento exige uma abordagem integralista e uma investigao multidisciplinar, as quais permitam integrao das cincias naturais e sociais, bem como das esferas do dever ser e do material, da economia, da tecnologia e da cultura. Disto decorre a necessidade, no campo ambiental, de interconexo e colaborao entre os muitos campos do conhecimento, tanto no que alude s disciplinas acadmicas, como s prticas no cientficas que incluem as instituies e sujeitos sociais (LEFF, 2000a:21). De qualquer sorte, os marcos tericos e categorias utilizados neste trabalho como base de desenvolvimento da pesquisa so atravessados por um vis crtico-dedutivo, decorrente da absoro de elementos terico-conceituais de ordemViso de mundo segundo a qual o conhecimento um fenmeno baseado em representaes mentais que fazemos do mundo. A mente seria, ento, um espelho da natureza. O mundo conteria informaes e nossa tarefa seria extra-las dele por meio da cognio. (MATURANA e VARELA, 2007:16). 4 Em contraponto s posturas positivistas e reducionistas, que optaram pelo fracionamento do conhecimento e pela degradao do ambiente, marcados pelo logocentrismo da cincia moderna e pelo transbordamento da economizao do mundo guiado pela racionalidade tecnolgica e pelo livre mercado. (LEFF, 2000:19).3

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mais geral e confrontamento dos mesmos com os dados especficos relativos ao estudo de caso promovido na dissertao. A estruturao do trabalho se d em cinco captulos. O primeiro envolve uma apresentao e anlise das diretrizes normativas que compreendem a gesto dos recursos hdricos no contexto nacional e regional, passando-se para um aprofundamento terico acerca dos temas participao e democracia, conformado no segundo captulo da dissertao. J o terceiro momento do trabalho abrange a caracterizao do ambiente e da sociedade nesta poro de territrio denominada bacia hidrogrfica do litoral do Paran, com a indicao de alguns de seus focos de conflito considerando uma amplitude geral , no que diz respeito ao uso dos recursos hdricos. O quarto captulo compreende um engajamento na investigao das disputas pelo uso da gua no espao territorial pesquisado, decorrentes do uso prioritrio deste bem ambiental com fins gerao de energia eltrica atravs do aproveitamento de potenciais hidrulicos. Adiante, no quinto e ltimo captulo, se far o confrontamento da hiptese levantada (e da problemtica que lhe d suporte) com os dados e indicativos colhidos durante o processo de pesquisa. E para tornar esse confrontamento mais objetivo, a ponto de poder ser validado como cincia, necessrio o desdobramento da hiptese de pesquisa em variveis, o que se procede da seguinte forma: Para verificar se h gesto democrtica e participativa dos recursos hdricos na bacia litornea paranaense ser verificada a existncia ou no de instncia participativa para gesto hdrica (Comit de Bacia Hidrogrfica), implementada na forma da lei, no local investigado (o que se dar por meio da verificao da existncia ou no de ato normativo instituidor do Comit de Bacia). A partir da verificao desta varivel, possvel se aferir, de modo relativamente seguro, mediante adoo de critrio objetivo, se h ou no gesto participativa com relao aos recursos hdricos na respectiva bacia hidrogrfica, j que os Comits de Bacia Hidrogrfica, na viso da grande maioria dos estudiosos, se constituem na instncia identificada como adequada para este tipo de gesto das guas. Isto no quer dizer

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que a mera presena de Comit de Bacia signifique que a gesto democrtica e participativa, o que ser elucidado adiante de forma mais completa; Para verificar a influncia da atividade de gerao hidreltrica no vis democrtico e participativo da gesto hdrica, ser levantado se a controladora das centrais hidreltricas tem atuao nas frentes de trabalho que discutem a criao do Comit de Bacia Hidrogrfica da bacia litornea do Paran, e de que forma se exterioriza (o que se colher mediante realizao de entrevista com representante da sociedade civil, apreenso de dados informados pelo poder pblico e empreendedores, alm de verificao presencial nas reunies da Cmara Tcnica do Comit de Bacia do Alto Iguau e Afluentes do Ribeira, para fins de comparao); Para verificar a gerao de externalidades econmicas (conceito que ser tratado frente) sociedade decorrentes da operao das hidreltricas, ser verificado primeiramente, se as hidreltricas retribuem ou no, mediante pagamento, o uso da gua como insumo de sua atividade lucrativa (o que se verificar junto ao poder pblico SUDERHSA, responsvel pelas outorgas de uso das guas de domnio do Estado). Aps, como segundo indicador, ser apurado se h alterao da disponibilidade hdrica montante e jusante dos empreendimentos hidreltricos (o que ser buscado em informaes prestadas pela SUDERHSA e Instituto Ambiental do Paran, bem como na produo cientfica existente sobre o assunto). Com base nos resultados apresentados pela identificao ou no das variveis apontadas, se faz possvel a constatao segura da existncia de prejuzos a terceiros em face da reserva da disponibilidade hdrica para as geradoras hidreltricas, o que suficiente para o presente trabalho, mas no chega a precisar o valor de eventuais sinistros de forma detalhada; Para verificar a ocorrncia de impactos ambientais negativos decorrentes da operao das geradoras hidreltricas instaladas na bacia litornea do Paran, buscar-se- verificar se h ou no constatao de assoreamento ou eroso nos reservatrios e jusante dos respectivos corpos hdricos ou microbacias (mediante busca de artigos cientficos sobre o assunto, verificao dos balanos contbeis da controladora das hidreltricas e realizao de entrevista com representante da sociedade civil) e; se h aes dos empreendedores dirigidas

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manuteno ou melhoria da qualidade das guas dos rios e reservatrios (mediante verificao da existncia de condicionante neste sentido nas licenas ambientais das usinas e se h o seu cumprimento). Em relao entrevista realizada com representante da sociedade civil organizada, foi adotada pelo pesquisador a tcnica de realizao de entrevistas abertas haja vista o desconhecimento da existncia de material produzido sobre o tema at o momento na qual se buscou o detalhamento das questes chave da pesquisa, como a participao social na gesto hdrica e os efeitos sociais, econmicos e ambientais da atividade gerao hidreltrica na regio estudada. Em relao estruturao da entrevista, o entrevistador introduziu o tema e o entrevistado teve liberdade para discorrer. Na concepo de Boni & Quaresma (2005:74-75), este um modo de investigar determinado assunto de forma mais ampla com a possibilidade de obteno de uma melhor amostra da populao de interesse , realizando-se a entrevista em tom de uma conversa informal, com a mnima interferncia do pesquisador, o qual deve adotar uma postura de ouvinte, intervindo apenas em caso de extrema necessidade. Ressalte-se que, a pedido do entrevistado, a conversa no foi gravada, sendo repassadas para o trabalho de pesquisa as impresses colhidas das falas do representante da sociedade civil ouvido. Identificadas e desveladas as variveis, num passo seguinte, ser testada a hiptese e empreendida anlise acerca de sua confirmao ou rejeio, extraindo-se posteriormente as concluses justificadamente entendidas como mais relevantes, de acordo com o foco dado investigao. Apresentado o problema e alguns de seus desdobramentos, passase a uma incurso no cerne do objeto de estudo, com o fito de se promover uma aproximao da realidade defensvel num ambiente de produo de conhecimento cientfico.

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CAPTULO I - SISTEMA NORMATIVO E EFICCIA SOCIAL: UMA ANLISE CRTICA DA POLTICA DE RECURSOS HDRICOS

1 Constituio Federal de 1988 A dcada de 1980 representa um marco na histria do Brasil (e do mundo), pois foi testemunha da introduo de uma srie de novos pontos de vista em vrios campos da vida. A abertura poltica dos pases da Amrica Latina em geral, passando de um regime de totalitarismo militar para uma democracia formal, foi um dos destaques deste perodo, aliado a vrios outros processos que culminaram, por exemplo, com a queda do bloco socialista e a consolidao dos tigres asiticos. Em nosso pas, os reflexos dessas reviravoltas desencadearam um irrefrevel processo de democratizao das relaes entre o Estado e a sociedade civil5, com uma crescente abertura dos espaos de interlocuo em uma esfera pblica cada vez mais plural (DAGNINO, 2004:95). O resultado mais exaltado desta abertura democrtica a Constituio Federal promulgada em 1988, denominada Constituio Cidad. Representa a Constituio Federal de 1988 um marco decisivo na histria do Brasil, remontada como smbolo da abertura democrtica, originria de uma intensa dinmica de articulao poltica e social. Na viso de Tepedino (2003) a Carta Poltica foi resultado de um processo de mudana na cultura jurdica nacional, causadora de marcantes impactos nas relaes de direito privado (dentre elas a antiga relao entre os sujeitos de direito e os recursos ambientais) e da necessidade de realizao de um esforo interpretativo no sentido de empregar regulamentao toda a sua potencialidade de gerar efeitos sociais. No cabe mais ao direito, como cincia

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Nas palavras de Nogueira (2003:197), A sociedade civil social - que, hoje, prepondera nos ambientes democrticos e de esquerda - expressa uma indignao em marcha. Trata-se, antes de tudo, de um campo de resistncia. Sua fragmentao em boa medida inevitvel, j que espelha uma situao explosiva, multifacetada, complexa, despojada de centros organizacionais. No h nela, ainda, por isso, sujeitos capazes de se universalizarem, ou seja, de fixarem projetos em condies de converter a resistncia em "ataque", em estratgia de poder, em anncio de um futuro desejvel para todos. Enquanto projeto poltico, ela se mostra essencialmente como uma traduo daquilo que j foi chamado de "sociedade civil de baixo", seja no sentido de identificar os atores do campo econmico por oposio ao Estado, seja para reduzir a sociedade civil a tudo o que considerado bom e louvvel.

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social, apenas regulamentar a forma pela qual os sujeitos podem saquear a vida at exausto de seus frutos (FACHIN, 1993). O regramento citado representa uma maior interveno estatal na gesto privada dos bens ambientais, o que prevalecia no regime jurdico anterior, de natureza eminentemente burguesa e patrimonialista (FACHIN, 1993). Ressalte-se que esse procedimento de desapropriao particular dos bens e meios de gesto foi identificado e descrito por Weber (2005:61), quando da apresentao do modo pelo qual o Estado assumiu o uso da fora, de forma legtima (pelo menos em tese), para fazer cumprir suas determinaes na direo de promover segurana aos cidados e a consecuo do interesse pblico. A partir deste enfoque, assim como ocorreu no Direito Civil, a proteo constitucional dos bens ambientais supera a compartimentalizao da tutela jurdica bem como a tipificao de situaes prvias de incidncia da norma, dirigindo-se sua concepo como valor mximo protegido pelo ordenamento, capaz de submeter toda a atividade humana a um novo paradigma de legitimidade. Passa o Estado de uma funo meramente repressora (tpica de uma concepo positivista do direito como norma) para a promoo de valores e polticas pblicas, desencadeando uma cultura jurdica ps-moderna representativa de uma nova postura metodolgica, identificada com a teoria da complexidade , oferecedora de critrios interpretativos adequados ao tempo presente, identificada pelo pluralismo, pela comunicao, pela narrativa e pelo retorno aos sentimentos (Tepedino, 2001). Nesse intercurso de abertura democrtica da sociedade brasileira, os acontecimentos de maior envergadura que envolvem as relaes no manejo de recursos ambientais (em especial para este trabalho, dos recursos hdricos) dizem respeito sua crescente escassez, em vista da emergente demanda, de seu mau uso e contaminao por substncias poluentes, com a conformao de uma enorme potencialidade conflitiva. Trata-se de um fato notrio de alcance global (respeitadas as particularidades regionais e locais), cujos reflexos demarcaram novas relaes jurdicas no trato com o meio ambiente, especialmente a partir do advento da Constituio Federal de 1988, a qual instituiu de forma definitiva o direito de todos (presentes e futuros) ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como a titularidade pblica dos bens ambientais, retirando sua livre apropriao e utilizao das mos dos particulares. Sobre o tema, Benjamin destaca que

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Esboa-se, dessa maneira, em escalas variveis, uma nova dominialidade dos recursos naturais, seja pela alterao direta do domnio de certos recursos ambientais (gua, p. ex.), seja pela mitigao dos exageros degradadores do direito de propriedade, com a ecologizao de sua funo social.

E nesse contexto, a constitucionalizao do meio ambiente se deu durante a consolidao do prprio Direito Ambiental enquanto ramo da cincia jurdica, com base na experimentao (BENJAMIN, 2007:64). Da mesma forma como ocorreu com os direitos fundamentais, radicou-se no campo do direito ambiental uma (questionvel) cronologia de geraes de direitos, definindo-se pelos estudiosos os problemas ecolgicos de primeira gerao e de segunda gerao6 (CANOTILHO, 2007:1). Aprofundando a questo relativa ao papel do Estado na poltica ambiental, Canotilho (2007:2) referindo-se ao Estado portugus, em raciocnio que pode ser utilizado com a devida cautela para o caso brasileiro assevera que as dimenses da juridicidade ambiental apresentam-se, resumidamente, atravs de quatro formas: dimenso garantstica-defensiva: na defesa contra intervenes abusivas do Estado e do poder pblico em geral; dimenso positivo-prestacional: obrigao do Estado e poder pblico a assegurar a organizao, procedimento e processos de realizao do direito ao ambiente; dimenso jurdica irradiante: vinculao dos particulares ao direito de todos ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado; e dimenso jurdico-participativa: impondo e permitindo aos cidados e sociedade civil organizada o dever de defender os bens ambientais.

Os mais relevantes problemas ecolgicos de primeira gerao, segundo a maioria dos pesquisadores, dizem respeito preveno e controle da poluio (bem como de suas causas e efeitos) e instituio do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental ambiental, ainda num enfoque antropocntrico, vinculado dignidade da pessoa e ao direito vida (CANOTILHO, 2007:2). No que alude aos ditos problemas ambientais de segunda gerao, apontam os mesmos para uma sensitividade ecolgica mais sistmica e possuidora de base cientfica, que exige uma atuao a partir de um pluralismo legal global na regulao dos dilemas ambientais (CANOTILHO, 2007:2). Tratam-se de problemas que superam as fronteiras dos Estados e exigem solues mais bem construdas e articuladas com os interesses das futuras geraes, como por exemplo os efeitos combinados dos vrios fatores de poluio e suas implicaes globais e duradouras para o planeta, como a destruio da camada de oznio, as mudanas climticas e a rpida desagregao da biodiversidade.

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A partir da atuao nos pilares acima encadeados, o Estado v-se obrigado a dar suporte jurdico s reivindicaes consubstanciadas pela articulao dos problemas ambientais de primeira e segunda gerao, dando ensejo a novas categorias como a responsabilidade de longa durao (para com as futuras geraes); a necessidade de buscar-se um desenvolvimento sustentvel; de aproveitar-se de forma racional os recursos ambientais e de salvaguardar-se a capacidade de renovao dos estoques naturais (CANOTILHO, 2007:6). E esta articulao de problemas intergeracionais acaba por desembocar na necessidade de superao da proteo da mera sobrevivncia condigna da humanidade (responsabilidade antropocntrica) para estender-se a todas as formas de vida, no sentido de manuteno do equilbrio e estabilidade dos ecossistemas naturais ou transformados para manuteno e perpetuao da vida (responsabilidade biocntrica) CANOTILHO, 2007:7. Nas palavras de Benjamin (2007:58-59)a ecologizao do texto constitucional traz um certo sabor hertico, deslocado das frmulas antecedentes, ao propor a receita solidarista temporal e materialmente ampliada (e, por isso mesmo, prisioneira de traos utpicos) do ns-todos-em-favor-do-planeta.

Esta transio, na viso de Benjamin (2007:59), representa uma trplice fratura no paradigma vigente, na em medida que: 1) acarreta a diluio das posies formais entre credores e devedores (com a criao de uma verdadeira confuso7 dessas posies, legitimada constitucionalmente), j que atribui a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; 2) irrelevante a caracterizao do sujeito como pblico ou privado, j que ambos podem dar azo degradao ambiental; e 3) d ensejo a uma disfuncionalidade da separao entre sujeito e objeto de direito, com a limitao jurdica da ao daquele em face deste em direo sustentabilidade, agregando funo social da propriedade um componente ambiental. A crescente presena de normas ambientais constitucionais sinaliza o fortalecimento de um novo paradigma tico-jurdico (e poltico-econmico), que se distancia de uma viso fragmentria, utilitarista e individualista do meio ambiente (BENJAMIN, 2007:66). Prope-se, desse modo, uma viso de mundo vinculada No sentido tcnico-jurdico do termo, o qual, na forma do art. 381, do Cdigo Civil, significa que Extingue-se a obrigao, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.7

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edificao de uma nova ordem pblica (que conduz o Estado de Direito a assumir a forma de Estado de Direito Ambiental), centrada na co-responsabilidade pela manuteno das bases da vida e na redistribuio, de forma mais equitativa, dos nus sociais da degradao ambiental (BENJAMIN, 2007:66). E este ponto de vista ganha perenidade, na medida em que a constitucionalizao vem seguida de maior segurana jurdica, j que os direitos e garantias fundamentais dentre os quais o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem status de clusulas ptreas (artigos 5, 2 e 60, 4, IV, da Constituio Federal), restando, por isso, juridicamente inafastveis. Reconhece-se assim que o meio ambiente no uma entidade robusta e invencvel, com poder de se autocurar indefinidamente. Muito pelo contrrio, com a promulgao da Constituio Cidad identificou-se a natureza como ente frgil, composto por redes interdependentes. Pode-se ver assim que as noes relativas ao meio ambiente trazidas pela Constituio Federal de 1988 superam a abordagem estritamente jurdica, ingressando nas trilhas da multidisciplinaridade j que se entrelaam com questes ticas, biolgicas e econmicas, conducentes a uma compreenso mais ampla (BENJAMIN, 2007:109). Apresentados assim os delineamentos constitucionais da matria que diz respeito ao meio ambiente, passa-se a uma introduo ao tema das competncias constitucionais em matria ambiental e de recursos hdricos.

1.1 Federao brasileira e competncias ambientais Para se ter em mente a conformao da diviso de competncias no Estado brasileiro necessrio investigar alguns aspectos da federao, originria dessa forma de diviso de atribuies. Nas palavras de Souza (1998:12) A existncia de um sistema federal implica cooperao poltica e financeira entre o governo federal e as demais esferas da Federao, e tem referncia aos elos que vinculam determinada populao e suas instituies (SOUZA, 1998:13). Corrobora deste entendimento Silva (2004:71), para quem o federalismo diz respeito a uma forma de Estado que tem como caracterstica a unio de coletividades polticas autnomas e tem como fulcro a repartio de competncias.

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Cada federao tem sua criao relacionada a motivos especficos e, no caso do Brasil, esta causa tem ligao com a acomodao dos interesses conflitantes das elites e busca pela reduo das desigualdades regionais (SOUZA, 1998:15). No modelo brasileiro, o governo central precedeu as demais esferas da federao, o que justifica parte da centralizao fiscal e poltica que tem caracterizado a federao brasileira (AFFONSO, 1994:321). Dessa forma, prevalecem, desde o incio da histria da Repblica no Brasil, profundas desigualdades regionais no interior da federao (SOUZA, 1998:11). A este respeito, destaca Almeida (2005:29) que do ponto de vista das relaes intergovernamentais, a federao brasileira um arranjo complexo em que convivem tendncias centralizadoras e descentralizadoras, impulsionadas por diferentes foras, com motivaes diversas. No caso especfico dos impactos ambientais, verifica-se que os mesmos no so limitados pelas linhas divisrias existentes entre os entes da federao, o que acarreta problemas inevitveis de distribuio de poderes governamentais (SILVA, 2004:73). Nesta medida, atribuiu-se aos entes da federao brasileira competncias legislativas e materiais privativas, divididas horizontalmente e competncias concorrentes, com repartio vertical, o que evidencia o seu carter cooperativo (GUIMARES, 2005:209). Para diviso das competncias ambientais, Mateo (2003:82) elenca uma srie de tcnicas utilizadas pelos pases para distribuio de atuaes, invocando os seguintes exemplos: os Estados Unidos, que possuem uma agncia ambiental federal independente - EPA, vinculada Presidncia da Repblica, a qual conta com facilidade de penetrao em outros nveis da federao; o Brasil, possuidor de um sistema nacional que integra rgos executivos e comisses assessoras, para responder ao carter disperso das competncias ambientais; o Chile, que possui uma comisso nacional e unidades executivas em distintos ministrios e a Inglaterra, Frana e Dinamarca, que concentram grande parte das competncias ambientais em nico ministrio, dentre outros mencionados. No caso especfico do Brasil, atualmente, a diviso de atribuies decorrente do modelo federativo adotado discriminada essencialmente na Constituio Federal de 1988, a qual distingue a competncia legislativa da competncia material ou executiva. Todas as demais normas referentes ao tema

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devem obrigatoriamente possuir simetria ao texto da Lei Maior, sob pena de inconstitucionalidade. Com relao competncia para editar normas, pode esta ser privativa de um determinado ente federado ou concorrente entre eles, de acordo com a matria. Para definio da competncia legislativa privativa, o texto constitucional enumerou as matrias de competncia privativa da Unio (art. 22, da CF) e dos Municpios (art. 30, CF), deixando a cargo dos Estados a matria residual e um estrito espao de competncia privativa ( 2 e 3, do art. 25, da CF) Guimares (2005:209). Nesta seara, determina a Constituio Federal competir Unio legislar privativamente sobre guas e energia (art. 22, IV, da Carta Magna), o que significa caber ao ente maior da federao brasileira a criao do direito8 sobre as guas e a edio de normas administrativas sobre os recursos hdricos de seu domnio (POMPEU, 2006:47). Em vista desta configurao das atribuies do poder pblico, pode-se afirmar que a Constituio Federal centralizadora com relao aos recursos hdricos, j que atribui grande parte de sua gesto Unio (GRAF, 2006:58). A criao do direito, no que pertine poltica hdrica, pode ser delegada aos Estados pela Unio, atravs de Lei Complementar (art. 22, pargrafo nico, da Constituio Federal), o que no foi concretizado em nosso ordenamento at o presente. No que diz respeito gesto das guas de sua dominialidade, cabe Unio editar as normas legais e administrativas necessrias para tanto. Aos Estados compete apenas a edio dos atos necessrios ao gerenciamento das guas de sua titularidade, estando vedado aos mesmos a criao de direito sobre recursos hdricos at que seja editada Lei Complementar da Unio que contenha autorizao para tanto. Salienta-se que muitos dos atos necessrios aos Estados para gesto de seus recursos hdricos precisam ser expressados atravs das respectivas Constituies Estaduais e mesmo mediante leis estaduais, o que no afasta a natureza da ao estatal, de mera auto-tutela dos bens sob seu domnio (POMPEU, 2006:47).

A criao de direitos, neste caso, diz respeito atuao da Unio no sentido de impor, mediante lei, a observncia de obrigaes e abstenes aos sujeitos, estimular ou inibir determinadas prticas, bem como autorizar determinadas condutas, de acordo com as definies das polticas pblicas competentes.

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Alm da competncia legislativa privativa, trata a Constituio Federal da competncia concorrente dos entes federativos para edio de normas, em relao s matrias definidas no seu art. 24. O art. 24, VI, da Constituio Federal atribui competncia concorrente Unio, Estados e Distrito Federal9 para legislar sobre conservao da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteo do meio ambiente e controle da poluio. J os incisos VII, VIII e XII, do mesmo artigo da Constituio Federal estabelecem a competncia concorrente entre Unio, Estados e Distrito Federal para legislar sobre proteo ao patrimnio histrico, cultural e paisagstico, bem como sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente e proteo e defesa da sade. Tratando-se de competncia concorrente, cabe Unio o estabelecimento de normas gerais, sendo dado ao Estado federado produzir as normas de interesse regional e aos Municpios o estabelecimento de regras atinentes ao preponderante interesse local ambos de forma suplementar. Assim, tratando-se dos temas vinculados ao meio ambiente (inclusive atinentes gua) descritos nos incisos VI, VII e VIII, do art. 24, da Constituio Federal, a competncia legislativa concorrente, obedecidos os critrios estabelecidos pela Carta Magna. Isto significa dizer que, nas matrias sujeitas competncia concorrente, cabe Unio a edio de normas gerais (nem sempre de fcil reconhecimento), estabelecedoras de princpios e diretrizes, relegando aos Estados, Distrito Federal e Municpios a edio de normas complementares, de cunho regional e local, respectivamente, de acordo com suas especificidades (GUIMARES, 2005:213). Questo tormentosa neste ponto diz respeito definio do que seriam as normas gerais relacionadas pelo texto da Carta Magna. Na literatura especializada tem-se destacado que as normas gerais so aquelas que no descem a pormenores, estabelecendo uma moldura (imposio de limites), dentro da qual facultada a atuao dos demais entes federativos (MOREIRA NETO, 1988:141). Aprofundando a questo, Moreira Neto (1988:149) sugere que as normas gerais so aquelas que: definem princpios, diretrizes, linhas mestras e regras jurdicas gerais; no entram em pormenores ou detalhes nem buscam esgotar o assunto sob foco;Majoritariamente, entende-se que esta competncia reconhecida tambm aos Municpios, no atendimento do preponderante interesse local, na forma do art. 30, I e II, da CF.9

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refletem regras nacionais, uniformemente aplicveis a todos os entes pblicos; trazem regras uniformes para todas as situaes homogneas; s cabem quando preencham lacunas constitucionais ou disponham sobre reas de conflito; devem referir-se a questes fundamentais; so limitadas, no sentido de no poderem violar a autonomia dos demais entes federados e no so normas de aplicao direta. Cumpre relatar, em relao competncia concorrente, que no caso de no edio da norma geral pela Unio, cabe aos Estados e Distrito Federal competncia legislativa plena supletiva (art. 24, 3, CF). E a norma estadual ou distrital ter sua eficcia suspensa, quando da posterior edio de norma geral da Unio, naquilo que lhe for contrria (art. 24, 4, da CF). Mencione-se que a norma estadual ou distrital no revogada neste caso, mas sim tem sua eficcia suspensa, pois no cabe a um ente federado (Unio) revogar norma de outro (Estados ou Distrito Federal) sem comprometimento do pacto federativo. No plano das aes materiais, cabe ressaltar que a Constituio Federal define as atribuies dos entes pblicos responsveis pela imposio de sanes, fiscalizao e prtica de aes executivas, em regra realizadas pelas mesmas pessoas que possuem competncia legislativa para tanto (GUIMARES, 2005:218). E estas atribuies para realizao de atos concretos podem se dar de forma exclusiva ou concorrente. Nesta frente, o art. 21, da CF dispe sobre as aes de competncia exclusiva da Unio, o art. 30, IV, V, VI, VII, VIII e IX, prev as medidas executivas de competncia dos Municpios, cabendo aos Estados a adoo das demais aes materiais (FERREIRA, 2007:215). Decorre disto que toda apropriao particular de recursos hdricos ser objeto de concesso do poder pblico (federal ou estadual, dependendo do caso) sem a gerao de direitos de propriedade (DERANI, 2005:459). Importante fazer meno ao entendimento no sentido de que cada ente da federao dever atuar no estrito respeito de sua competncia legislativa, admitindo-se, majoritariamente, que a aplicao da lei seja realizada por ente diverso daquele que a editou (FERREIRA, 2007:217). Adiante, de se fazer referncia competncia executiva comum, prevista no art. 23, da Constituio Federal, em virtude da qual, em relao s matrias elencadas, cabe Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios ao

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cooperativa10, fundada no princpio da subsidiariedade, desde que respeitados seus limites territoriais (FERREIRA, 2007:216). Adentrando no plano da ao executiva do poder pblico para consumao da poltica hdrica direito de fiscalizar e impor sanes (BRUNONI, 2006:80) , a Constituio Federal (art. 23, VI, IX e XI) estabelece ser comum a competncia da Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios para, mediante ao cooperativa, proteger o meio ambiente e combater a poluio, promover melhoria nas condies de saneamento e fiscalizar as concesses de uso de recursos hdricos em seu territrio (GRAF, 2006:61). Mesmo porque, na forma do art. 225, da Constituio Federal, dever do poder pblico (independentemente da esfera federativa de pertinncia) atuar na proteo do meio ambiente e no combate poluio em todas as suas formas. A competncia administrativa, apesar de comum, no importa em que um ente federativo interfira na rea de atuao do outro nem na existncia de um nvel hierrquico entre os entes do poder pblico envolvidos (BRUNONI, 2006:80). A definio da natureza jurdica da gua como bem de domnio pblico, objeto de fiscalizao comum pelos entes federados, autoriza a interveno das autoridades pblicas responsveis pela gesto da poltica hdrica, as quais definiro as formas de uso deste recurso ambiental (DERANI, 2005:459). Dessa forma, a Constituio Federal mapeia a forma de estruturao das competncias dos entes federados para intervir na gesto dos recursos hdricos, dividindo atividades legislativas e executivas.

1.2 Gesto de recursos hdricos no Brasil a partir da Constituio Federal de 1988 Teceram-se anteriormente consideraes sobre o regime jurdico do meio ambiente aps a Constituio Federal de 1988 e alguns de seus principais efeitos, em relao aos quais se faz pertinente uma contextualizao mais

O pargrafo nico do art. 23, da CF estabelece a regulao dessa cooperao atravs de Lei Complementar, a qual no foi editada at o momento. Dessa forma, em regra, a literatura especializada considera o art. 23, da CF como uma norma de eficcia plena, pois esta a exegese mais favorvel do ponto de vista do meio ambiente (FERREIRA, 2007:216).

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aprofundada com foco na poltica pblica direcionada gesto de recursos hdricos.11 Como retratado, a partir da Constituio Federal de 1988, os bens ambientais passam a ser encarados pela Constituio Brasileira de forma integrada, como componentes de ecossistemas nos quais se encontram interligados de forma indissocivel, fazendo parte do meio ambiente ecologicamente equilibrado vislumbrado no art. 225, da Carta da Repblica. E ressalte-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado concebido como um bem de uso comum do povo pelo mesmo dispositivo constitucional.12 Entretanto, no que se refere gua especificamente, defende-se que a mesma, embora conexa, deve ter regime de gesto dissociado dos demais bens ambientais, pois regulamentada por princpios e regime legal prprios (POMPEU, 2007:147). Caubet (2004:209-210) v nesse ponto uma fragilidade da Poltica Nacional de Recursos Hdricos, a qual, a seu ver, trata a questo ambiental como mero apndice e possui preponderante carter economicista, que encara a gua como insumo de produo sem preocupao com a sustentabilidade. Ainda nesta frente, suscita Caubet (2004:210) queEnfrentar o desafio de promover os recursos hdricos condio de garantia do bem-estar social, entretanto, no compatvel com a deciso de ter separado a gesto dos recursos hdricos da dos demais componentes da questo ambiental.

Trata-se de uma situao bastante delicada que precisa ser enfrentada com maior profundidade, que refoge ao escopo do presente trabalho, contudo, possui suma importncia para o amadurecimento da gesto dos recursos hdricos no Brasil. Seguindo adiante, pode-se conceber que, ao defender a ideia de que a gesto privada das guas no mais atendia aos interesses da coletividade, o Estado brasileiro abarcou, com a promulgao da Constituio cidad, o domnioDe todo modo, cabe destacar que antes da Carta poltica de 1988 existiam regramentos de cunho ambiental e de proteo das guas, como o Cdigo de guas de 1934 e o Cdigo Florestal de 1965. Este ltimo, apesar de dirigir-se proteo da flora, tem importante reflexo na defesa das guas, especialmente em razo dos institutos jurdicos das reas de preservao permanente e reserva legal, os quais, muitas vezes, funcionam como meio de proteo dos corpos hdricos. 12 Embora o artigo 225, da Constituio Federal faa referncia ao meio ambiente como bem de uso comum do povo, a doutrina jurdica majoritria o concebe como bem difuso, cujo conceito apresentado na nota de rodap 20, abaixo. Acerca desta discusso, h maior detalhamento no tpico que segue.11

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da parte dos recursos hdricos que no era de sua titularidade (bem como dos potenciais de energia hidrulica), os quais, nos termos dos artigos 20, III e VIII; 26, I e 176, da CF, passaram para as mos da Unio ou dos Estados federados, dependendo do caso13. Conforme disposio do art. 20, III, da Carta Magna, so guas da Unio aquelas encontradas em corpos hdricos situados em terrenos de seu domnio, aquelas que sirvam de limite com Estados estrangeiros (ou que a ele se estendam ou dele provenham), bem como aquelas que banham o territrio de mais de um estado federado. Ademais, deve-se esclarecer que os potenciais de energia hidrulica tambm so de domnio da Unio, cabendo a esta, em articulao com os estados, promover sua explorao direta ou mediante concesso ou autorizao, no interesse nacional, na forma do art. 176 e seus pargrafos, da Constituio Federal (POMPEU, 2006:55). J aos estados da federao, pertencem as guas superficiais ou subterrneas que no sejam de domnio da Unio ou que no decorram de obras da Unio (art. 26, I, da Constituio Federal). Dessa forma, verifica-se que a Constituio Federal estabeleceu uma definio residual da propriedade das guas estaduais, com uma ampliao considervel de seu domnio hdrico, j que pelo regime anterior as guas subterrneas no possuam titular definido (POMPEU, 2006:56). Neste ponto, interessante trazer colao as disposies da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n 43/2000, do Senado Federal, de autoria do Senador Jlio Eduardo, a qual tem por objeto, dentre outros temas, a reduo do domnio dos Estados no que diz respeito s guas subterrneas, passando ao controle da Unio os aquferos encontrados em terrenos do seu domnio ou que se estendam por mais de um estado da federao, limitem-se com outros pases ou venham ou se estendam a partir de pas estrangeiro. A PEC n 43/2000, do Senado Federal encontra-se em tramitao desde sua proposio em 21.11.2000 e atualmente aguarda reexame do relatrio pelo relator Renato Casagrande, na Cmara de Constituio e Justia do Senado,H na doutrina jurdica discusso acerca de uma hiptese de existncia de guas municipais, no caso de uma corrente dgua que nasce em um Municpio e tem sua foz junto ao mar, no territrio da mesma municipalidade (MACHADO, 1996:329). Contudo, o autor deste trabalho no concorda com a hiptese identificada pelo importante estudioso do direito ambiental, na medida em que a Constituio Federal (art. 26, I) clara ao apontar a propriedade do corpo hdrico na situao acima referida aos Estados, desde que o mesmo no sirva de limite com outros pases.13

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situao que perdura desde 10.07.200914. Merece destaque o fato de que o Conselho Estadual de Recursos Hdricos de Sergipe, bem como outros rgos estaduais de recursos hdricos, manifestaram-se por escrito nos autos do processo legislativo, de forma contrria proposio. De toda forma, este processo de maior interveno estatal no campo da gesto das guas impulsionado pela Constituio da Repblica, culminou, no Brasil, em 1997 alinhando-se com a principiologia extrada de diretrizes internacionais com a edio da Poltica Nacional de Recursos Hdricos, consubstanciada na Lei n 9433/1997 (o que foi seguido pelos estados federados salvo algumas excees, onde estes se anteciparam legislao federal15 , como, por exemplo, o Paran, em 1999, com a aprovao da Poltica Estadual de Recursos Hdricos). Aqui se deve considerar o seguinte: em que pese todo o discurso dominante veiculado pelo poder pblico e setores usurios esteja voltado para a valorizao de uma nova postura epistmica e metodolgica, que albergue a noo de complexidade, participao e democracia, visando o atendimento do interesse coletivo, verifica-se, na aproximao da realidade concreta da gesto das guas no Brasil, em especial do campo normativo, uma retomada da influncia hobbesiana, atuando a poltica de governo de forma interventiva, para garantir paz e segurana aos homens (Leviat, 2002). Ao considerar os indivduos incapazes de gerir satisfatoriamente os bens ambientais, o Estado brasileiro, por meio da Constituio Federal de 1988, expropriou-os, tomando para si a titularidade desses bens especiais necessrios preservao da vida e administrando-os atravs de polticas pblicas especficas. A Poltica Nacional de Meio Ambiente (PNMA) e a Poltica Nacional de Recursos Hdricos (PNRH) apresentam-se, dentro desse contexto, como redes de segurana que submetem o agir humano na esfera pblica (CASTEL, 2005). Nesse sentido, a viso de Castellano (2007:20), para quemSegundo Ostrom (2000), Ophuls (1973), dentre outros autores, teria argumentado que a possibilidade de se resolver os problemas ambientais,

Informao colhida junto ao website do Senado Federal, http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=45833, 19.11.2009. 15 Como os Estados do Rio Grande do Sul, So Paulo e Cear.

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disponvel acesso

em: em

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por exemplo, atravs da cooperao, inexiste, sendo a nica soluo recorrer ao Leviat de Hobbes.

Numa viso contempornea, Bauman (2003) traz novamente tona a discusso acerca deste tema (liberdade x segurana) trazendo o conceito de comunidade, ente fechado e quase imaginrio transmitido como ideal pela opinio pblica, representativo de uma sensao de segurana (contudo, quase desprovida de liberdade), no perpassado pelas mazelas que afligem a sociedade. Dentro deste espectro de viso, as guas representam um recurso estratgico para a manuteno da paz e segurana no seio das relaes humanas, j que, nas sociedades onde haja prejuzos em sua disponibilidade qualitativa ou quantitativa que levem escassez, certamente o conflito despontar, ameaando as estruturas instaladas. No entanto, o direcionamento das polticas pblicas com base em polticas de governo nem sempre tem buscado o atendimento do interesse coletivo, restando por vezes direcionada ao atendimento de grupos de presso, representantes de poderosos interesses econmicos e polticos. Como pano de fundo de toda essa mudana institucional provocada a partir da Constituio Federal de 1988, encontra-se a crescente e complexa presso social gerada com a cada vez mais iminente escassez dos recursos hdricos, o que tem gerado a necessidade de internalizao do custo social do uso da gua nas atividades econmicas (SCARE, 2003:122). Em resposta a esta conjuntura, modificou-se a estrutura institucional de gesto das guas no Brasil, adotando-se um modelo que, segundo o discurso hegemnico, concebe este bem ambiental como um recurso limitado, de titularidade pblica e possuidor de valor econmico, de uso mltiplo, gerido de forma descentralizada a partir da bacia hidrogrfica, com a participao do poder pblico, usurios e comunidade (SCARE, 2003:123). Nessa perspectiva, afirma-se, de modo dominante, especialmente pelos representantes do poder pblico, que o modo de gesto das guas adotado pelo Brasil assemelha-se ao modelo sistmico de integrao participativa, com a busca de maior envolvimento dos sujeitos sociais (CASTRO, 2005:18).

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1.2.1 Poltica Nacional de Recursos Hdricos A Constituio Federal, em seu art. 22, IV, determina que compete Unio legislar sobre guas. E no art. 24, VI, VII e VIII, a Carta Poltica complementa esta disposio ao apontar que compete Unio, Estados e Distrito Federal, de forma concorrente, legislar sobre: florestas, caa, pesca, fauna, conservao da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteo do meio ambiente e controle da poluio; proteo ao patrimnio histrico, cultural, artstico, turstico e paisagstico; responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artstico, esttico, histrico, turstico e paisagstico. Nessa linha, o marco jurdico institucional na gesto hdrica no Brasil, aps a Constituio Federal de 1988, consubstanciado na Lei n 9433/97, que implementou a Poltica Nacional de Recursos Hdricos, norma geral da Unio sobre recursos hdricos, que pode ser suplementada pelos Estados e Distrito Federal nos aspectos condizentes ao artigo 24, VI, VII e VIII, da Constituio Federal. Os fundamentos desta poltica pblica, de acordo com o art. 1, I, do texto da lei, compreendem as seguintes mximas: a gua um bem de domnio pblico16; a gua um recurso natural limitado, dotado de valor econmico; em situaes de escassez, o uso prioritrio dos recursos hdricos o consumo humano e a dessedentao de animais; a gesto dos recursos hdricos deve sempre proporcionar o uso mltiplo da gua17; a bacia hidrogrfica a unidade territorial para implementao da Poltica Nacional de Recursos Hdricos e atuao do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hdricos18; a gesto dos recursos hdricos deve ser descentralizada e contar com a participao do Poder Pblico, dos usurios e das comunidades19.

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Analisado no item 1.2, acima. Analisado no item 1.2.4, abaixo. 18 Analisado no item 1.2.2, abaixo. 19 Analisado nos itens 1.2.3 e 1.2.5, abaixo.

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Os fundamentos eleitos pela lei demonstram a adoo de certas posturas ideolgicas pela poltica pblica setorial. A imputao (ou reconhecimento) de valor econmico gua pode ser compreendida como uma incurso do capitalismo nesta seara, j que vislumbrada a possibilidade de obteno de bons resultados econmicos. Caubet (2003:213) chega a conceber esta opo do legislador como um ataque ultraliberal s garantias fundamentais, subjugando at mesmo o direito vida ao vis economicista. Por outro lado, no campo da economia, defende-se que o valor de troca e de uso da gua inerente sua condio de escassez, tratando-se de uma fora capaz de desencadear um conjunto organizado de aes que induzissem o usurio a uma utilizao racional deste bem ambiental, da mesma forma como realizado com outros bens desta natureza, como os recursos minerais e o solo (CARRERA-FERNANDEZ & GARRIDO, 2003:106). Mas nem s de interesses econmicos composto o caldo ideolgico conformador da poltica brasileira de recursos hdricos. A compreenso da gua como bem de interesse comum, aliada sua destinao preferencial para garantia do direito vida digna (dessedentao) nos apresenta um fundo tico bastante enraizado neste campo, como observado por Boff (2003). Pode-se extrair tambm do primado legal que h uma carga de anseio democrtico de participao na poltica de recursos hdricos, pois prev a maximizao dos usos da gua (usos mltiplos) e a participao social e descentralizao, como medidas de abertura democrtica em que pese as crticas a esses imperativos colacionadas ao longo do trabalho. Um passo adiante, a poltica hdrica faz meno a que seus objetivos devem ser perseguidos atravs de meios eleitos como adequados pela lei. Estes instrumentos para materializao da poltica pblica dizem respeito : elaborao de planos de recursos hdricos (em nvel federal, estadual e local); enquadramento dos corpos-dgua; sujeio do uso da gua concesso de outorga; cobrana pelo uso dos recursos hdricos; a compensao aos municpios atingidos por obras hidrulicas e elaborao de um sistema de informaes. Previstos os fundamentos da poltica pblica de gerenciamento das guas no Brasil e seus instrumentos de implementao, a Lei n 9433/97, em seu ttulo II, estabelece o arranjo institucional responsvel pelo manejo das guas, conformador do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hdricos

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SINGERH, que tem por meta coordenar, arbitrar administrativamente os conflitos, implementar a poltica, planejar, regular e controlar o uso, conservar e recuperar os recursos hdricos e promover a cobrana pelo uso dos recursos hdricos. Fazem parte do SINGERH, os seguintes rgos: a Agncia Nacional de guas (ANA); o Conselho Nacional de Recursos Hdricos (CNRH); os conselhos de recursos hdricos dos estados e do Distrito Federal; os comits de bacia hidrogrfica; os rgos dos poderes pblicos federal, estadual e municipal, cujas competncias se relacionem com a gesto de recursos hdricos e as agncias de gua. Acompanhando os termos da Constituio Federal, a legislao federal base que trata dos recursos hdricos (Lei n 9433/1997) determina de forma taxativa que a gua um bem de domnio pblico (art. 1, I). Assim, em conformidade com a boa tcnica jurdica, encontram-se revogadas as disposies em contrrio presentes no Decreto n 24643/1934 (Cdigo de guas), relativas ao domnio privado dos recursos hdricos (DERANI, 2005:455). E isto foi procedido, de acordo com o discurso hegemnico, em vista da preocupao no sentido de proporcionar uso mltiplo ao bem ambiental gua, de forma sustentada, obstando a sua utilizao apenas como insumo para atividades setoriais e especficas (DERANI, 2005:456). No que alude natureza jurdica do bem ambiental gua, existe controvrsia no campo da cincia jurdica acerca de sua definio como bem pblico (art. 1, I, da Lei n 9433/1997) ou como bem difuso20 (art. 225, da Constituio Federal), situaes que lhe conferem tratamento jurdico diferenciado (GRAF, 2006:45). Isto porque, alm de tratar-se de bem de uso comum do povo caracterstica de bem pblico , a gua essencial para a gerao e manuteno da vida sadia e com qualidade, fundamental garantia da dignidade humana e dos seres vivos em geral, o que a aproxima sobremaneira da definio de bem difuso. Defende-se atualmente que os bens difusos representam a superao entre a dicotomia entre direito pblico e privado (bens pblicos e privados), encontrando-se numa terceira categoria sui generis, incompatvel com a viso simplista trazida pela doutrina jurdica clssica (SALGE JR., 2003). Acerca deste ponto as discusses so muitas, existindo, alm das posies destacadas,Segundo o professor Zavascki (1993:10), so bens difusos os transindividuais, de natureza indivisvel, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstncia de fato.20

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entendimentos diversos, que consideram bens ambientais (e no pblicos, no sentido da tcnica-jurdica) aqueles que se tornam essenciais para a manuteno da vida de todas as espcies e culturas (MARS, 1999:2-10). Merece considerao o fato de a gua ser considera um bem dotado de valor econmico, restando encarada como matria-prima destinada efetivao dos propsitos de seus usurios sob um prisma bastante utilitarista (SAYEG, 1998:1). A justificativa mais utilizada para a imputao de valor econmico gua relaciona-se diretamente com o fato de sua iminente escassez frente ao mercado e necessidade de internalizao do custo social para sua recuperao, com base no princpio do usurio-pagador (MOTTA, 1998:2). Neste vis, admite-se, de modo geral, que preos timos para o financiamento da gesto de recursos hdricos podem no representar necessariamente os preos adequados para atendimento de objetivos ambientais (MOTTA, 1998:2). Contudo, uma postura mais atenta sustenta que a definio do regime de uso da gua baseado em critrios oriundos de normas aplicveis ao domnio privado (mercado) podem ser insuficientes e inadequados, haja vista que a escassez da gua estaria mais ligada a um problema de gesto social de seu manejo do que com as condies naturais de escassez (DERANI, 2005:458). Com base neste argumento, defende Derani (2005:458) que A gua passa a ser considerada um bem econmico por uma lgica de regulao da extrao, e no pela insero natural de um mecanismo de mercado. Vale a pena citar neste momento os ensinamentos de Castellano (2007:13), para quem existe distino entre os termos gua e recursos hdricos, na media em que aquele diz respeito ao elemento da natureza, enquanto que este se relaciona considerao da gua como bem econmico, passvel de utilizao para tal fim21. Nesta medida, com base neste raciocnio, pode-se entender que a gua pode ser vislumbrada como um bem ambiental de natureza dplice, com feies tanto de bem difuso (na medida que possui titularidade indefinida e indivisvel, sendo essencial para a vida) como de bem pblico (j que de uso comum e passvel de expresso econmica).

No entanto, ressalte-se, desde logo, que neste trabalho os dois termos so compreendidos como sinnimos, sendo aplicados dessa forma ao longo da apresentao da pesquisa.

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Seguindo um enfoque crtico a este respeito, Caubet (2004:175) defende que a instituio de valor econmico para a gua, sem um debate social prvio mais aprofundado, permite a consolidao de uma nova modalidade de acumulao de capital que no corresponde necessariamente a uma racionalizao do uso deste bem ambiental. Isto porque, especialmente no caso de diluio de poluentes, o poluidor no estimulado a amenizar ou suprimir os danos que causa ao meio ambiente, bastando pagar pelo uso da gua para transferir seu problema particular para a sociedade (CAUBET, 2004:175).

1.2.2 Bacia Hidrogrfica como unidade de gesto Como vimos, existe uma norma geral da Unio sobre a poltica hdrica, que no Estado do Paran suplementada por uma poltica regional, representada pela Lei Estadual n 12726/1999 e sua regulamentao. Tanto a poltica nacional (art. 1, V, da Lei n 9433/1997) como a poltica estadual de recursos hdricos (art. 2, V, da Lei Estadual n 12726/1999) preveem que a gesto das guas deve ser implementada levando-se em considerao a diviso dos corpos hdricos e aquferos em bacias hidrogrficas. A bacia hidrogrfica, bacia de drenagem ou bacia fluvial (BARROS, 2002:1) concebida como unidade de gesto reflete uma novidade na poltica pblica brasileira, pois sabidamente as unidades territoriais mais utilizadas para administrao so os limites territoriais. Neste espectro, a bacia hidrogrfica representa alm de um recorte geogrfico, uma unidade territorial e de planejamento (CASTRO, 2005:19). Popularmente, a bacia hidrogrfica era conhecida como vale, representada por uma regio de baixa altitude, plana, que se comporta como reservatrio das guas oriundas de reas prximas mais elevadas (BARROS, 2002:1). Pode-se definir atualmente a bacia hidrogrfica, de forma bastante simples, como parte da superfcie terrestre que contribui para alimentar um rio ou lago (ONS, 2009). Este conceito, incorporado pelos agentes operadores do setor eltrico, adotado, via de regra, tambm no campo jurdico (POMPEU, 2007:343).

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Pode ainda ser integrado mais um elemento neste conceito, proposto pela cincia da geografia (CASTRO, 2005:19), pelo que se pode afirmar que a bacia hidrogrfica uma rea delimitada por divisores de gua e drenada por um certo rio ou sistema fluvial. Ou seja, nas palavras de Castro (2005:19), trata-se deuma rea definida topograficamente, drenada por um curso dgua ou um sistema conectado de cursos-dgua tal que toda vazo efluente seja descarregada atravs de uma simples sada.

Como sustentam Carrera-Fernandez & Garrido (2003:105), a definio de bacia hidrogrfica teve de ser estendida fisicamente para abarcar os fatores que a afetavam (como a influncia dos aquferos, de bacias adjacentes e das atividades antrpicas), chegando-se a um conceito holstico de bacia hidrogrfica, segundo uma visualizao de espectro amplificado. Os limites de uma bacia hidrogrfica so definidos por dois tipos de divisores de gua, sendo um divisor topogrfico ou superficial e um divisor fretico ou subterrneo, cujas reas dificilmente coincidem (CARRERA-FERNANDEZ & GARRIDO, 2003:104). Assim, como a determinao do divisor fretico muitas vezes no precisa, costuma-se considerar que a rea da bacia de drenagem aquela determinada pelo divisor topogrfico (CASTRO, 2005:19), a qual tem em sua linha mais alta o divisor de guas e na mais baixa o talvegue (POMPEU, 2007:343). Podem ser distinguidas trs partes nas bacias, denominadas: bacia de reunio, canal de descarga e bacia de depsito (POMPEU, 2007:343). Contudo, a concepo da bacia hidrogrfica como unidade de gesto das guas deve ir alm da conceituao estritamente geogrfica, com a abordagem de seus elementos fsicos, biolgicos, sociais, culturais e ticos e suas inter-relaes, haja vista que praticamente tudo que ocorre em seu espao afeta direta ou indiretamente a disponibilidade hdrica (CASTRO, 2005:20). Nesta mesma linha, Pompeu (2007:350) elenca que a definio de bacia hidrogrfica diz respeito ao territrio, acrescido de seus complementos ambientais, sanitrios, econmicos, culturais, vegetais, animais e minerais. Neste sentido tambm o entendimento de Barbosa et al. (1997:258), para quem as bacias so sistemas terrestres e aquticos geograficamente definidos, compostos por sistemas fsicos, econmicos e sociais.

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Pois bem, a legislao brasileira relativa aos recursos hdricos estabelece a bacia hidrogrfica como unidade de gerenciamento das guas no Brasil, como ocorre, por exemplo, com os regramentos da Alemanha, Frana e Estados Unidos (GUIVANT & JACOBI, 2003:9). Ao adotar esta sistemtica, a Poltica Nacional de Recursos Hdricos rompe com as tradicionais fronteiras fsicopolticas dos estados, exigindo uma integrao entre os poderes municipais, estaduais e federal (GUIVANT & JACOBI, 2003:9), o que apresenta a todos uma gama de novos desafios que necessitam superao. Tem-se visto de forma bastante forte na produo cientfica nacional, a reverberao das vantagens da utilizao da bacia hidrogrfica como unidade de gesto dos recursos hdricos. Neste sentido, sustenta-se que este recorte, que tem como limite os divisores de gua, faz com que a bacia hidrogrfica seja representada por uma delimitao concreta no espao e tempo (CASTRO, 2005:21). Suscita-se ainda, neste sentido, que em comparao com os limites poltico-territoriais, a bacia hidrogrfica promove maior integrao na sua gesto, com maior possibilidade de participao social e valorizao dos recursos naturais locais, j que os entes federativos (Unio, Estados, Municpios e o Distrito Federal) que integrem uma mesma bacia precisam atuar de forma colaborativa e complementar, sem que uma unidade administrativa federal tenha supremacia sobre as demais (CASTRO, 2005:21). Outros aspectos positivos na adoo da bacia hidrogrfica como unidade de gesto hdrica, segundo Castro (2005:23), constituem-se: na possibilidade de organizao comunitria em face questo ambiental, com a superao de entraves impostos por limites polticos e administrativos; na maior facilidade para sistematizar e executar aes dentro do espao da bacia; na possibilidade de avaliao dos resultados alcanados com a gesto dos recursos ambientais como um todo; no favorecimento do desenvolvimento econmico, mediante o uso racionalizado dos recursos ambientais da bacia e da infra-estrutura existente. No entanto, alm das vantagens acima elencadas, tambm existem dificuldades decorrentes da adoo da bacia hidrogrfica como unidade de gesto dos recursos hdricos.

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O primeiro grande desafio que se apresenta para a gesto por bacias consiste no fato de que a unidade territorial que a constitui, via de regra, no corresponde a identidades culturais e sociais comuns, o que dificulta sobremaneira a implementao da respectiva poltica pblica (GUIVANT & JACOBI, 2003:19). Ora, se os sujeitos que vivem em uma determinada bacia hidrogrfica no se identificam entre si como indivduos envolvidos num mesmo sistema de gesto, bastante difcil se torna a sua articulao para tratar de temas de interesse comum. Neste ponto, acrescenta Barros (2002:2) que h dificuldades na articulao social e na estrutura poltico-administrativa para a gesto por bacias, haja vista a pouca presena, via de regra, de capital social e de qualificao tcnica nas questes de interesse pblico e social. Indivduos com fracos laos de identidade dificilmente podero se articular com a formao de uma rede consistente de capital social. Compromete tambm a boa implementao da poltica de gesto hdrica o fato de as bacias hidrogrficas no coincidirem, via de regra, com os limites poltico-administrativos das unidades da federao, o que implica em trabalhar com interesses e possibilidades distintos, atinentes a cada esfera governamental (CASTRO, 2005:23). Ainda neste caminho, Barros (2002:2) defende que h um problema decorrente da formao dos laos federativos22 no Brasil, onde a instituio da federao se deu de cima para baixo, o que levou os entes federados a perder a noo de nao, estabelecendo bases competitivas onde cada um se preocupa exclusivamente com seu resultado individual. Para alm desses argumentos, tem-se observado que a delimitao pelo critrio das bacias hidrogrficas no seria eficiente, pois no leva em conta o espao de real influncia nem leva em considerao a vocao local. Desta feita, alguns autores sugerem a adoo da bacia ambiental como unidade de gesto dos recursos hdricos, cujos limites so estabelecidos de forma flexvel em razo das relaes ambientais de sustentabilidade de natureza ecolgica, econmica e social (RUTKOWSKI & SANTOS, 1998). Em outra frente, h estudiosos que propem a22

Optou-se por utilizar o termo laos federativos neste trabalho em vista da posio defendida pelo Ministro Gilmar Mendes, atual Presidente do Supremo Tribunal Federal ( qual o autor desta obra adere integralmente), para quem a expresso pacto federativo no reflete a realidade da formao da federao brasileira, imposta verticalmente e no oriunda de verdadeiro pacto entre os entes que a integram.

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diviso do espao que compreende as bacias hidrogrficas em unidades menores, segundo caractersticas hidrolgicas, geomorfolgicas e usos da gua e do solo (CASTRO, 2005:24).

1.2.3 Descentralizao Alm de determinar que a gua um bem pblico avalivel economicamente e que a gesto das guas deve ser empreendida considerando-se a bacia hidrogrfica como unidade locacional, as polticas nacional (art. 1, VI, da Lei n 9433/1997) e regional (art. 2, VI, da Lei Estadual n 12726/1999) de recursos hdricos impem a necessidade de gerenciamento descentralizado23 desse bem ambiental. No Estado brasileiro, o processo de descentralizao tem incio de modo concomitante e paralelo ao processo de abertura democrtica, a partir da dcada de 1980, especialmente com a descentralizao fiscal suscitada pelos governos dos Estados e Municpios, consolidando-se na Constituio de 1988 (VEIGA, 2007:98). Esta dinmica se aprofunda a partir da dcada de 1990, quando os ajustes neoliberais previstos no Consenso de Washington apontam para o enxugamento do Estado nos pases em desenvolvimento, com a transferncia de muitas das suas atribuies para as esferas estadual e municipal (VEIGA, 2007:98) e para a sociedade civil e o mercado. No panorama internacional, a partir da dcada de 1970 o modelo de organizao do poder pblico de forma centralizada passou a apresentar claros sinais de esgotamento, tanto em regimes liberais como em social-democratas, contexto no qual ganha destaque nas cincias da poltica, economia e sociologia a ideia de descentralizao (MELO, 1996:12). De toda forma, a descentralizao poltica vista sob enfoques diversos quando observada a partir de diferentes prismas. Por um lado, defende-se que o robustecimento das esferas locais e regionais de governo revela umaConforme nos apresenta Almeida (2005:31), Descentralizao um termo ambguo, que vem sendo usado indistintamente para descrever vrios graus e formas de mudana no papel do governo nacional por meio de: a) transferncia de capacidades fiscais e de deciso sobre polticas para autoridades subnacionais; b) transferncia para outras esferas de governo de responsabilidades pela implementao e gesto de polticas e programas definidos no nvel federal e c) deslocamento de atribuies do governo nacional para os setores privado e no-governamental.23

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dinmica positiva, que fortalece a democracia e gera maior eficincia do poder pblico, j que a competio entre os entes da federao pode gerar inovaes na gesto pblica (MELO, 1996:11). Alm disso, a gesto descentralizada reduz o nmero de decises que precisam ser levadas considerao das instncias superiores (CARRERA-FERNANDEZ & GARRIDO, 2003:108). Em outra banda, argumenta-se que os estados e municpios so locais nos quais vigoram o clientelismo (particularismo) e a ineficincia, onde a irresponsabilidade fiscal pe em cheque o empenho de estabilizao e coordenao do poder central (MELO, 1996:11). Ademais, os fundamentos das atuais reformas descentralizadoras tm suporte fundamentalmente na ideologia neoliberal, com a assimilao da ideia de desmantelamento do poder central e reduo de sua atividade regulatria e produtiva (MELO, 1996:12). Um passo frente, na concepo de Caubet (2004:115-116) que tambm compartilhada por Melo (1996:13) , a descentralizao compreende a transferncia efetiva do exerccio do poder de deciso de onde institucionalizado em um primeiro momento para uma outra entidade, rgo ou comunidade, que passa a exerc-lo, de modo irreversvel, com a assuno desta responsabilidade. Isso implica uma redistribuio do poder, de forma a tornar seu exerccio mais democrtico, pois resulta na participao de pessoas que no podiam influir decisivamente at ento. No deve ser confundida a descentralizao com participao, como por vezes ocorre na literatura nacional sobre recursos hdricos (VEIGA, 2007:98). A gesto pblica tem sido tradicionalmente uma competncia dos administradores pblicos, experincia esta que tende a cair em desuso, dando espao a modalidades mais atuais que incluem a participao de representantes diretos da coletividade (CARRERA-FERNANDEZ & GARRIDO, 2003:107). Adentrando no cerne da questo, para Tobar (1991:32), verifica-se n