26
António Ribeiro Sanches Dissertação sobre as Paixões da Alma Universidade da Beira Interior Covilhã – Portugal 2003

Dissertação sobre as Paixões da Alma

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Dissertação sobre as Paixões da Alma

António Ribeiro Sanches

Dissertação sobre as Paixões daAlma

Universidade da Beira InteriorCovilhã – Portugal

2003

Page 2: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Snr. D.or

Bem quisera eu não ser obrigado a desculpar-mecom VM por haver dilatado tanto tempo esta parteda Patologia. Mas a dificuldade e utilidade da maté-ria tem sido a causa. Poucos médicos consideraramaté aqui as paixões da alma como objecto da Medi-cina, todos notaram que são causa de muitos males,e mesmo da morte, mas raríssimo aquele que entrouna indagação da causa delas. Se esta matéria se tra-tasse tão amplamente como ela requer seria necessá-rio sair dos termos da Medicina. Enfim tratarei aquias paixões da alma como causa de muitas doenças eenfermidades, o que pertence essencialmente à Pa-tologia, e, ainda que não seja deste lugar, tratarei depasso mas não confusamente da causa das paixões daalma, o que pertence tanto ao teólogo [e ao] juriscon-sulto como ao médico prático ou terapêutico.

Todas as nações civilizadas assentaram que o ho-mem constava de alma e de corpo, todos observaramque o homem era capaz de conceber, julgar, e discor-rer acções distintas totalmente das corporais que sereduzem ao sentimento e ao movime[nto]. Os filóso-fos e os legisladores tomaram à sua conta regrar asdesordens e as enfermidadeses da parte inteligente eos médicos da segunda. As religiões gentílicas, queparece tiveram todas a sua origem no Egipto, nãoconsistiam mais do que obrigar os povos a certos ac-tos públicos de festas, jogos, divertimentos e banque-tes, não tendo outro objecto os legisladores neles queacostumarem os seus súbditos a viverem em socie-dade e boa inteligência. Regravam naquele tempo oque nós dizemos hoje a consciência os filósofos tantopelas instruções públicas como particulares e princi-palmente depois que Sócrates descobriu ao mundoaquela ciência dos costumes e formosura da virtude.Os legisladores com leis penais tiveram o cuidado decurar os males que causam as paixões desordenadas;não ensinavam nem persuadiam mas castigavam asfaltas daquela parte inteligente que eram prejudiciaisà sociedade. Castigando induziam o medo nos âni-mos desregrados e atemorizavam os inocentes paranão ousarem cometer delitos e é o que fazem aindahoje os nossos legisladores e jurisconsultos.

Pela misericórdia do altíssimo revelou a sua SantaReligião e tanto os Santos Apóstolos como os SantosPadres tomaram da Cristandade off.os dos filósofosda Grécia e como mais soberanamente instruídos re-graram pela Santa Religião aquela parte inteligentecom dogmas e conselhos mais úteis e necessáriostanto para a conservação do corpo e da Sociedadecomo para a perfeição daquela parte inteligente deque constamos. Esta foi a causa porque os médicos,

que todos devem ser filósofos, não cuidaram mais dasdesordens do ânimo.

Pitágoras, Demócrito e Empédocles não somenteforam filósofos mas também médicos. Estes me-ditando e ensinando como se havia de conservar ocorpo são, livre tanto de males como de moléstias,regravam ao mesmo tempo o ânimo. Todos sabem adieta pitagórica e a Filosofia desta seita que consis-tia muita parte dela na Medicina chamada Higicne.Todos os médicos gentílicos até Galeno observarame praticaram nos seus enfermos esta parte da Medi-cina incluindo nela regrar o ânimo; mas depois queos médicos cristãos viram que os teólogos tomaramà sua conta esta parte, pouco a pouco largaram estaII incumbência a que eram obrigados depois dos pri-meiros médicos e filósofos.

Farei o meu possível para mostrar os efeitos daspaixões da alma e também a causa delas. Não inqui-rirei que pela observação a origem delas mas mostra-rei todos os movimentos que produzem. Não entrareina discussão de que modo a alma, sendo espiritual,para mover o nosso corpo, nem porque razão o corpovariamente disposto faça pensar, discorrer, e querer,ou aborrecer a alma racional. Conte[nta]r-me-ei emrelatar as aparências destas duas substâncias distintaspor natureza uma da outra mas ligadas de um modoque é impossível a natureza humana compreendê-las.

Por este imperscrutável vínculo sabemos que umhomem pacato e na melhor saúde sendo afrontadocom uma palavra injuriosa que todo o seu corpose altera. Sai logo o ânimo daquela tranquilidade,mostra-se pela cara vermelha, carrancuda, os olhosem fogo, por todos os membros em acções desor-denadas, treme, espuma, o coração palpita, o pulso étrémulo e desordenado, o estômago não digere os ali-mentos, todas as secreções se perturbam e este estadoé o que se chama doença. Aqui vemos que o ânimotem sumo poder no corpo para alterá-lo até fazê-loenfermo e às vezes até perder a vida.

Todos os homens sensatos experimentaram atéagora que a fome, uma comida demasiada, as mui re-petidas vigílias e o sono continuado, como tambémas bebidas do vinho e licores espirituosos, certas mu-danças de ar mudam o vigor do pensamento aindaque o corpo não esteja enfermo. Todos observaramquão vário, quão extravagante é o ânimo nas mulhe-res prenhadas: que uma violentíssima dor deprimetanto o ânimo que não lhe ficam forças para pensarcom tranquilidade em outro objecto que aquele quea aflige[;] que esta dor intensa causando a febre, eaumentando-se esta que perde o ânimo toda a refle-xão delir(i)ando e extravagando como se não exis-tisse antes inteligência naquele febric[it]ante. Quedirei dos efeitos da atrabílis, do veneno dos cães da-

Page 3: Dissertação sobre as Paixões da Alma

2 António Ribeiro Sanches

nados, do ópio, da datura e da cicuta aquática? To-dos sabem quão miseravelmente transformam, con-fundem e perturbam aquela parte inteligente.

VM vê claramente que ninguém negará este po-der da parte inteligente naquele corpo nem o poderdeste na substância ainda que espiritual de que secompõe(m) o homem. Vamos agora observando aspropriedades destas duas substâncias enquanto estãounidas e que uma obedeça à outra tão placidamenteque todas as suas acções tendam à sua conservaçãoque é o estado da saúde.

1. Temos a faculdade de perceber os objectos queentram pelos cinco sentidos. VM sabe que muitosincluem na classe destes a fome e a sede e aqueleinquieto estímulo que incita à geração. Aquele sen-timento se faz no sensório comum no qual fica im-presso de tal modo que fica persuadido da existênciado objecto, da sua distância, estimativamte da sua cor,e outras propriedades que alcança dele.

2. Temos a faculdade de conservar naquele sen-sório comum, ou princípio de todos os, aquelasideias ou impressões que [a]presentaram os sentidosquando falamos, discorremos, e tratamos destas im-pressões conservadas. Esta acção se chama memória.Bem se vê que esta potência é material porque porvárias doenças se extinguiu às vezes e totalmente.

3. Temos também a faculdade de perceber cadaobjecto de três diferentes modos. Ideia agradável,ideia desagradável, ideia indiferente. Ponho a mãodentro de água fria e sou obrigado a retirá-la por-que não me agrada; ponho a mão fria dentro de águamorna, aquele suave calor me convida a deixá-lamais tempo porque aquela sensação me é agradável.Vejo um globo de metal, contemplo as suas propri-edades na sua aptidão para voltar-se posto em mo-vimento, aquela ideia nem me é grata nem ingrata esomente placidamente fixa a minha atenção. Consi-dera por acaso um gramático a etimologia da pala-vra infame[;] na[s]ce nele uma ideia que o não movenem a pena, nem o desgosto, porém se alguém lhedeitar na cara o opróbio de infame logo a mesma pa-lavra, que lhe era indiferente enquanto inquiria a suaetimologia, lhe causará a ideia mais ingrata e maisatormentadora.

4. Enquanto o corpo e a potência da alma que cha-mamos vontade vivem em união natural e perfeitasaúde ambas estas substâncias se movem e obede-cem mutuamente. Quero mover o dedo polegar parafechar a mão, o movo; quero a mão toda em um ins-tante fica aberta. Chego sequioso a uma clara fonte,a vontade condescende a mover os músculos que ser-vem a beber.

5. Mas além destes movimentos regrados e quedependem do arbítrio, produzimos e fazemos outros

sem que se aperceba a vontade. Vê o menino nasmãos da mãe uma maçã, agrada-lhe no mesmo ins-tante [e] começa a mover todos os seus músculos,estende os braços e as mãos tão a propósito que aapanha como o mais perito anatómico. Aquele que-rer ou não querer produziu aqueles movimentos quede antes não existiam e sem conhecimento do meninonem reflexão alguma mais do que a força do que lheagradou.

6. Temos a faculdade de perceber todas as sen-sações agradáveis ou desagradáveis não só causadaspelos objectos imediatos mas também por aquelasimpressões que ficaram impressas no sensório co-mum.

Esta Snr. D.or é uma propriedade tal do nossocorpo vivente que é a origem de toda a metafísicaque se estende com inumeráveis ramos por todas asciências e que na Medicina largou a maior parte de-les. Do meu modo rasteiro, com a cordialidade comque amo e venero a VM, lhe direi como o compre-endo e quanto uso podemos fazer dele para sermosmais úteis aos homens por cujo bem devemos pensarcomo parte deles.

Sabe VM que todo o nosso corpo é composto deduas sortes de canais. A mais grossa e aparente éaquela que compreende o coração com todas as suasartérias, e veias pela qual circula aquele admirável einimitável licor, quero dizer o sangue. A outra sorte éa mais subtil sita no mais oculto e profundo do corpo.São os nervos que saem damedula oblongaque é omesmo que o remate do cérebro e do cerebelo. Comoo coração é o princípio e o fim das artérias assimaquelamedula oblongaé o princípio e o fim dos ner-vos e dos seus efeitos. Vê VM com quanta razãochamou Hipócrates o corpo vivente um círculo. Masaqui há outra maravilha maior. Separe VM todo océrebro e cerebelo ou substância branca, separe todaamedula oblongatae todos os nervos que saem dela,de todo o sistema das artérias e das veias e verá umcorpo perfeito ficando somente aquele vazio onde es-tavam as artérias c as veias o que VM verá na Neuro-logia de Vieussens. E para que tenhamos deste corposensiente e movente uma ideia mais completa, separeVM o coração com todas as artérias que saem delecom a sua continuação que são as veias e que vêmpor dois canais acabar no coração direito, e verá quefarão na aparência um homem sanguíneo o que VMpoderá ver nas tábuas anatómicas de Vesálio. O vazioque haverá entre estas artérias e veias o ocupavam osnervos. Tem VM dois homens, dois corpos, ambosda mesma figura, da mesma grandeza, e das mesmasdimensões. O ofício do homem nervoso é de sentire de mover o todo por meio dos músculos. O ofíciodo homem sanguíneo é de animar, nutrir, conservar

Page 4: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 3

a si e à espécie mas com tal dependência um homemdestes do outro como um círculo dentado com ou-tro semelhantemente armado. Sydenham, o Hipócra-tes dos nossos tempos, sem maior conhecimento quea reflectida observação, chamou aquele homem ner-voso homo internus e aquele sanguíneo o consideracomo casca do corpo vivente.

Ora vejamos agora como sentimos e como nosmovemos. Enquanto estes dois sistemas estão noseu estado natural, todos os objectos que entram pe-los sentidos continuam a sua sensação até àmedulaoblongata, mas primeiro explicarei em que parte donervo se faz a sensação, já que sabemos em que partese termina. Ponhamos o exemplo naquele par de ner-vos mais avultado que forma o sentido da vista. Estessão os chamados ópticos[;] estes nervos não exerci-tam o seu ofício de ver senão depois que largaram atúnica da pia e dura madre com que saem forradoscomo em bainhas. Logo que fica o nervo nu, delese forma a retina dos olhos nos quais se faz a vistade tal modo que nenhum nervo dentro do crânio nemfora dele, enquanto está forrado com as ditas túni-cas da pia e da dura madre, não sente nem representao objecto que o toca. Distribui-se V.g. o nono parde nervos e o oitavo na língua ao coração e ao dia-fragma, tanto que chegam àquelas partes as túnicasde que vinham forrados se espalmam e se estendemna língua ou no coração e formam túnicas mui subtis;fica a polpa do nervo nu e se formam em pequeninospontos como cabeças de alfinete. Nesta polpa ou pa-pilas de que se faz o sentimento, nestas papilas oupolpa é que se faz a vista; nesta polpa no ouvido sefaz o ouvir; nesta polpa coberta da epidermis se faz osentido do tacto, mas com tal artifício que logo queaquela polpa sente continua aquela sensação grata,ou ingrata, ou indiferente até [a]o sensório comumou medula oblongata, ali termina a sua impressão.Esta impressão se conserva ali e esta é a memória.

Há nervos que servem para ver, ouvir, causar sede:há nervos que servem para dar gosto, titilados bran-damente fazem uma sensação agradável; os mesmosroçados e esfregados fazem dor; os mesmos tratadosmais rudemente até quase ao último grau da sua ju-risdição causam dor violentíssima. Mas há nervosque tocados rudemente mesmo na sua polpa jamaiscausam dor. Os nervos do par oitavo, e intercostalque se distribuem ao coração, diafragma, ventrículo,duodeno, fígado, até [a]o mesentério, tocados nassuas polpas ou fins aonde se terminam não causamdor, causam ansiedades, aflição, tormento, inquieta-ção. Todos sentem e todos transmitem ao sensóriocomum, de donde na[s]ceram, a sua sensação. Mascada sensação é diferente[:] a sensação de ver é di-ferente daquela de ouvir; a sensação de gostar é di-

ferente daquela do tacto[;] esta diferente daquela daansiedade e assim do resto. Aqui tem VM como osmeninos percebem as primeiras impressões dos ob-jectos que entram pelos ouvidos.

Mas dirá VM: se não tivermos outro caminho poronde entrem as impressões dos objectos que conhe-cemos como poderemos jamais discursar nem conce-ber o que é Espírito, Anjo, Glória, Deus; como pode-remos conceber os nomes abstractos e o que por elesse significa como virtude, reputação, ódio. Como po-deremos conceber o que é a quina sem a ter visto, dis-correr do fogo elementar e enfim de todos os objectosque não entram pelos sentidos ou que tocam aquelaspapilas de nervos que são a sua polpa? Devo esteconhecimento ao meu amado e venerado P. M. Ma-nuel Baptista de quem aprendi Filosofia em Coimbrae ainda que ele teve por guia o Pe. Cordeiro [que] tãobem soube explicar, e inculcar esta doutrina que o re-conheço sempre per proo. autor. Tudo o que não en-tra pelos sentidos o concebemos ao modo da ideia eda impressão que temos das cousas corporais[;] destemodo conhecemos a alma racional que concebemoscomo um espírito e o vulgo como uma linda menina,representamos um anjo como um menino com asas ea Deus como a uma luz sem termo, puríssima, semmudança. Sempre a imitação da ideia daquele quevemos ou vimos do Sol. Do mesmo modo concebe-mos os nomes abstractos e o que por eles se significa.Não me estendo mais nesta matéria por ser vulgar evou-me apressando a tratar das mais propriedades.

A todo o vivente implantou o Altíssimo aquelesumo desejo de conservar-se e de produzir seu se-melhante. Estes desejos são a origem de todas aspaixões da alma. Se o vivente racional usar dela coma moderação que requer o seu natural e o seu estadosatisfará o objecto para que lhe foram dadas[;] masse os desejos ou a aversão passarem além da medidade se conservar, servirão à sua destruição.

Temos a propriedade de imitar o que vemos fa-zer e mesmo padecer;] é este princípio causa de mui-tas utilidades para conservar-nos e causa também demuitos males que nos destroem.

Tenha nos braços a amorosa mãe o seu filhinhoquando o quer alimentar com a papa[;] não queiraeste abrir a boca, toma ela então a comida no dedo,chega-a aos beiços, move-os, finge que engole. Acriança atenta logo abre a boca, logo mastiga e sealimenta, Galeno no Comentário das Epidemias trazesta constante observação para provar que a natureza,sem ser instruída, produz admiráveis movimentos so-mente pela imitação.

A maior parte das acções da vida civil que faze-mos, que aprovamos ou reprovamos, dependem des-tes princípios. Entramos a ver representar uma co-

Page 5: Dissertação sobre as Paixões da Alma

4 António Ribeiro Sanches

média ou a ver uma corrida de touros. Considera-mos o espectáculo todo[s] cheio[s] de esperança dedivertir-se e alegrar-se. Vemo-lo contente, risonho[e] pensamos que participaremos no mesmo diverti-mento[;] e em um instante e de pensativos tomamoso semblante dos circunstantes.

Vamos ouvir um sermão de exéquias [e] vemos naIgreja aquele aparato lúgrube, rcparamos no auditó-rio sisudo, morno e pensativo[;] entra o pregador comvoz lúgrube adequada ao assunto do sermão, imita-mos na cara, no gesto, e no pensamento todo aqueleauditório.

Lemos em Suetónio as maldades, as infâmias esobretudo a tirania de Nero e não nos movemos nemdetestamos com horror aquelas acções tão debeladas.Lemos as mesmas em Tácito [e] não podemos conti-nuar com a leitura[;] ansiamo-nos, detestamos o ho-mem tanto como as suas preversas acções. QuandoTácito escreve parece que era espectador, e que parti-cipava daquele flagelo da humanidade, movia-se es-crevendo, e estes movimentos de aversão se comu-nicam ao leitor; Suetónio, pelo contrário, parece quetudo escreveu sem amor nem ódio seguindo as leis daHistória que Tácito ensinou e ele mesmo não seguiu.

Quantas vezes choramos e lamentamos ouvindorepresentar uma comédia ou tragicomédia como sãoas Castelhanas, Ainda que saibamos ser fábula a re-presentação, imitamos o choro, a aflição, o gesto, otom de voz do comediante porque temos implantadono ânimo aquele princípio da imitação.

Mas não para aqui o domínio deste princípio: pelavista entram aquelas sensações das acções morbo-sas [e] tal impressão fazem no sensório comum queproduzem os mesmos males. Somente vendo aten-tamente um epiléptico, uma mulher histérica, umahemorragia, um homem vesgo, caíram muitos nestesmales. Ouvi dizer ao grão Boerhaave que houveraperto de Leyde uma escola pública de ler e escreverda qual era mestre um homem vesgo; todos os me-ninos em poucos dias observaram os pais que seusfilhos tinham o mesmo defeito na vista. Esta foi arazão porque Quintiliano defende que a ama do me-nino que se há-de determinar a servir o público nãoseja gaga, vesga, nem disforme.

Refere Salmuth. (cent.3a Observ.56) que morrerauma menina em acidentes epilépticos [quando] es-tava seu irmão presente. Cai no mesmo mal, escapadeste insulto, mas repetindo-lhe veio por último amorrer com convulsões semelhantes. No mesmo lu-gar se refere que dois amantes passeando-se em umjardim caíra a moça com um abundante fluxo de san-gue pelo nariz. O moço ansiado, sem saber como(que) socorrê-la, tanto se alvoraçou que caiu em se-melhante hemorragia.

Roberto Boyle (trait.douze da Philop. experimen-tal) diz por cousa afirmada com muitas experiênciasque uma mulher histérica vista por outras no tempodo insulto que lhes comunicara a mesma enfermi-dade.

Nicolao Pechelino nas suas observações tão cer-tas como estimadas e Mr. Mortimer, Secretário daSociedade Real de Inglaterra referem (este nasTran-sações484) que duas senhoras caíram em bexigassomente por verem ainda que de muita distância doisenfermos desta doença. Já disse a VM em outraparte me parece que em um recolhimento de Harlemem Holanda tanto que uma menina caiu em convul-sões que a maior parte das suas companheiras caiu namesma queixa e como Boerhaave curou este mal denatureza epidémica. O maior estrago que faz a pestenão é somente pela sua [en]venenada violência: temainda muitas causas simultâneas quais são o terror e omedo da morte, mas uma das principais é de ver mor-rer. Admirar-se-á quem não tem lido a história ecle-siástica e profana. O presidente de Thou na históriados seus tempos Lib.36 refere que na guerra de 1589entre os de Génova e os de Saboia aparecera umaepidemia entre os dois exércitos que se comunicavasomente vendo os sãos aos enfermos. Eram os sin-tomas dela tremores contínuos com delírio. RefereMiguel de Montaigne nos seus Ensaios (em francêsessais) que na guerra de Milão na qual militara seupai os habitantes desta populosa vila tanto se acostu-maram aos honores da morte que homens, mulheres,e ainda os meninos saíam a afrontar os perigos, dese-jando morrer com tal ânsia que parecia frenesi sendoo pai de Montaigne testemunha desta desesperaçãoou doença do juízo.

Tantas tísicas nos conventos e tantos males his-téricos pode ser [que] muitas vezes procedam destaorigem.

Como há epidemias que fazem apodrecer os nos-sos espíritos e humores assim há epidemias que ofen-dem somente aquela parte sensitiva; o princípio destadesordem também procede de sermos forçados a imi-tar o que vemos fazer ou padecer.

Refere Plutarco (trat. de virtutib. mulier.) que emMileto, cidade de Caria, se gerou tal constituição doar que todas as donzelas se matavam sem causa al-guma; parece que as primeiras que foram as vítimasdesta epidemia serviram de original às mais para sematarem igualmente. Nem todos os que morrem notempo da peste morrem de doença. Como já disse-mos muitos morrem por verem morrer.

Parece também que aqueles sectários que contraí-ram tão rapidamente as heresias ou falsos dogmasdas religiões erradas foram mais determinados pelaimitação do que pela força das razões sólidas que

Page 6: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 5

pregavam e declamavam os heresiarcas. Quem lera História Eclesiástica, e a Maometana nesta parte,verá facilmente que não é tão precário o que aqui sepropõe(m).

E quem dissera que deste princípio de imitarmoso que vemos fazer, e padecer [é] que depende muitaparte a concórdia das sociedades? Somos instrumen-tos temperados ao unísson[o], tocada que for umacorda as mais vibrarão um tom semelhante. Esta-mos em companhia, por acaso um de maior autori-dade ri[;] inesperadamente, sem nos apercebermos,todos rimos, tossimos, escarramos sem pensarmos,somente porque ouvimos que outros circunstantestossem e escarram com decoro. Deixo muitas outrasprovas que pertencem aos políticos e a quem tem aseu cargo governar os costumes.

Na[s]cemos destituídos de muitas defesas e como-didades de que gozam os animais logo que na[s]cem.Somos logo mais fracos, mais inermes que eles, maissujeitos às injúrias do ar e com menos instinto paraevitar o que nos pode ser prejudicial e buscar o ne-cessário para a nossa conservação. Pouco era naverdade necessário para satisfazer estas necessida-des, mas o homem foi tão engenhoso a aumentá-lase a dar a cada momento evidentes sinais da sua fra-queza e vaidade que ultrapassam de muito a tudo ode que os animais necessitam. Leia VM lhe peçoaquele prefácio do sétimo livro de Plínio e observeque depois de lamentar a miséria, a fraqueza e a ig-norância do homem continua ainda por estas palavras“uni animantium luctus est datus, uni luxuria et qui-dem innumerabilibus modis ac per singula membra;uni ambitio, uni avaritia, uni vivendi imensi cupido,uni superstitio, uni cura arque etiam post se de fu-turo. Nulli viata fragilior, nullum omnium rerum li-bido maior, nulli pavor confusior, nulli rabies acrior.Denique cetera animantio in suo genere porbede-gunt...est Hercules homini plurima ex homine suntmala”. Desta multidão de desordenados (pela maiorparte) apetites que o homem inventou procedem o vi-gor, o número, e a variedade das paixões d’ alma.

Temos pela simples observação mostrado de quemodo percebemos os objectos que entram pelos sen-tidos, de que modo se conservam no sensório co-mum, de que modo nos movemos e aonde reside estemovimento. Especifiquemos agora de que modo segeram as paixões d’ alma, aonde reside a sua origeme aonde se mostram. Consideraremos os seus efeitostanto no ânimo como no corpo.

Todas as paixões d’alma são actos repetidos domesmo objecto agradável ou desagradável.

Vê uma criança a luz de uma vela. Levada ao agra-dável da flama a quer tomar com a mão[;] queima-se,retira-se; ficou impresso no sensório comum aquela

sensação ingrata e quanto mais intensa ela for maisaversão ficará para outra semelhante sensação.

A primeira vez que um cervo ouve no monte umtiro ou latido dos cães não teme[;] salta atordoadoe logo que se sossegou aquele estrondo ou ruído oanimal pára. Mas quando um velho cervo que foi ca-çado, perseguido e ferido, chegou a ouvir um tiro oumínimo latido de um cão, então salta, corre, excita-se nele a ideia ingrata da ferida e do cansaço, já temmedo, e com ele corre até às vezes se ir meter naágua.

O menino que se queimou a primeira vez com aflama da vela não temia a queimadura porque delanão tinha sensação nem memória, mas se depoisde haver-se queimado o obrigassem a pôr a mãona mesma flama logo temeria, gritaria, mostrando amaior aversão.

Se corrermos pelas sensações de todas as paixões,acharemos que é necesso. que o homem tenha pri-meiro todas as sensações impressas no sensório co-mum que lhe são agradáveis para a sua conservação,ou desagradáveis porque lhe causarão a sua destrui-ção, para romper ou manter movimentos vigorososque lhe chamamos paixões da alma.

Passeie um homem de noute cm uma dilatada salasem luz com uma criança nos braços[;] acenda-se nocanto dela uma porção de pólvora sem ser advertido.No mesmo instante, teme, treme, e ficará pálido esem sentidos; pelo contrário, a criança não dará sinaldo menor susto. Quando este homem foi tão vio-lentamente atacado do medo foi porque sabia previ-amente os horrendos efeitos da pólvora. Lembrou-seem um instante do estrago que fez nos edifícios e noshomens. Nenhum deles conhecia o menino e não seassustou nem temeu.

Tanto mais vivas e penetrantes forem as primei-ras impressões que adquirimos das cousas que po-dem servir à nossa conservação ou destruição, tantomais forte será a paixão por toda a vida quando aque-las impressões forem renovadas.

Já vimos a forte impressão que fica dos efeitosda pólvora e porque razão causa tanto medo. Des-cartes afirma que toda a vida amou os olhos verdesporque na sua adolescência estivera enamorado deuma moça que os tinha semelhantes. Aquela sensa-ção permanente que se conserva no sensório comumlogo que se excitava por impressão semelhante se re-novava e se seguia a paixão para abraçar o novo ob-jecto com eficiência.

Daqui vem que chamamos [e]stúpidos e fátuosaqueles em quem as sensações não fazem impressãoalguma no ânimo, não ficando não se renovam poroutras e nestes não se conhecem paixões.

Page 7: Dissertação sobre as Paixões da Alma

6 António Ribeiro Sanches

Até agora temos mostrado como se geram as pai-xões que dependem do sensório comum e que sãototalmente materiais[;] agora falaremos daquelas queafectam a alma.

Nenhum animal nem ainda os meninos, quandopercebem uma sensação que entrou pelos sentidos,compara esta com outra semelhante impressão. Estacomparação é lembrar-se do tempo passado, a me-dida dele, a situação, e outras circunstâncias queacompanhavam aquela primeira sensação; só o ho-mem dotado de razão é o que compara as sensaçõespresentes com as passadas, que combina as qualida-des de uma com outra. Deste modo a alma produzconceitos ou ideias, enuncia, e explica este conceitopor muitas palavras que chamamos julgar e discorrer;além disso o homem inteligente e dotado de razãonão só compara as ideias presentes com as passadasmas ainda as combina com o futuro. Estas combina-ções fazem-se pela reminiscência, e não pela memó-ria. Mas para o racional usar desta propriedade comopara produzir conceitos, julgar e discorrer, necessitaque o seu ânimo esteja pacato, o seu corpo são e queobedeça ao império daquela espiritual vontade ilus-trada já com as combinações que fez, excitadas pelassensações que existiam no sensório comum.

Considere VM a pintura que faz Horácio,de artepoetica,158 et seq.,da puerícia e da adolescência eobservará todas as acções destas idades não seremmais que a sucessão das sensações gratas ou ingratas.Chega a descrever a idade pueril [aonde] já os seusdesejos são mais combinados com acções passadase futuras, já são filhas da vaidade e daquelas ideiasabstractas que adquirimos no mundo tão vãs comopomposas[:] honra, glória, e autoridade.

...actas animusque virilisquœrit opes, et amicitias, inservit honori

commisisse cavet, quod mox mutare laboret

Se VM ponderar o lugar de Plínio já citado acharánele maior matéria de ideias novas que são tantascombinações ou conceitos abstractos das sensaçõesdo sensório comum. Ali verá a luxúria refinada, aambição, a avareza, a superstição, a vaidade de vi-ver na memória dos homens depois de morto e porúltimo chorar a morte dos que amou como se injus-tamente o autor da natureza lhes tirasse a vida.

Tantas mais ideias ou conceitos adquirimos seme-lhantes aos referidos, tanto pela educação como pelaforça das leis políticas às quais estamos sujeitos tantoque começamos a discorrer, tanto maior matéria te-remos para cair em mil paixões da alma que não co-nhecem os animais.

Vemos defender umas conclusões da Filosofia pu-blicamente com inteligência sem excitação de pala-

vras nem falta de memória. Vemos responder e in-fringir os argumentos que [a]parecem com força dossilogismos e da voz sonora que conturbariam o de-fendente, com tal graça e agrado no gesto que todoo auditório rompe em aclamações de vitória [e] ficouo sensório comum e também a alma do novato ocu-pada desta acção gloriosa. Considera-o como sumobem ser superior e louvado por tão doutos e respeita-dos mestres e pelo auditório dotado das mesmas vir-tudes. Chega este mesmo a fazer o mesmo acto mastudo faz pelo contrário, observa a cara dos mestrestristes, dos condiscípulos alvoraçada e dos circuns-tantes descontente; nasce neste novato a paixão maisviolenta da desonra, nesta se inclui o medo, a vergo-nha e o desprezo. Se este estudante ignorante nuncativesse formado o conceito daquele universal aplausoque se segue ao saber e sabê-lo mostrar, se nunca ti-vesse combinado aquele conceito presente da sua in-suficiência com a capacidade daquele estudante lou-vado e aclamado nunca sentiria uma paixão de almacomo sofreu por ver-se reprovado.

Deste modo se geram as paixões da alma que de-pendem da reminiscência, da combinação de sensa-ções passadas, presentes e futuras. Essas são aquelasque transladei acima de Horácio e de Plínio e não ne-cessitarei, me persuado, a alargar-me em especificá-las.

Estas são as paixões que nos fazem viver uma vidacontenciosa, e turbulenta, Estas são as que levam tan-tos racionais à sepultura; aquele afano de ser esti-mado e venerado, aquele cuidado e tormento de que-rermos obrigar os que nos conhecem e ainda os quenão conhecemos a que pensem bem de nós; a quedesastres, inquietações, vigias e desgostos nos nãoprecipitam. Aquela tão significativa frase de Horácioinservit honorio explica melhor que tudo o que eupudera ainda dizer.

Goza o homem também, como o animal, de mui-tos gostos e comodidades e sente(m) e sofre(m)igualmente as ingratas sensações das dores, da fomee da sede[;] mas estas sensações são mui limitadascomparadas com aquelas que forma o homem e com-põem a sua imaginação. A maior parte do que esteimagina mais serve para a nossa destruição do quepara a nossa conservação e portanto a natureza sópor este fim nos deu o contentamento e a dor quedependem das sensações corporais. Ela representa àalma ilusões e fantasmas e também a força e o en-leio de se ocupar e meditar nelas. Quantas vezesquisemos depor do nosso entendimento nas pertina-zes vigias estas imagens exageradas do gosto e domedo sem sucesso ainda [que] ardentemente dese-jado. Mais agitada fica a alma por estas desregradasimagens do que pelos mais sensíveis objectos físicos;

Page 8: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 7

então a alma deprimida perde a faculdade de julgare às vezes também de querer. Neste caso diz Mr. deBuffon, hist. natur. tom.4, p.44[:]tanto que quiser-mos ser mais felizes do que a natureza nos permitelogo seremos desgraçados. Tudo o que nós procu-ramos e buscamos mais do que a natureza nos podedar tenhamos por certo que não será mais que pena,ânsia, e tormento e que não há gosto perfeito senão oque vem da sua mão.

Todos os que trataram esta matéria unanimementeassentaram que uma paixão da alma é uma doudicemomentânea[;] aquelas violências de amor e de có-lera ocupam e deprimem tanto a alma que não ficacapaz de pensar outra cousa, não pode comparar opensamento com o passado nem pensar o futuro.Ampara-se de todas as potências tanto espirituaiscomo corporais aqueleimpetu faciensde Hipócratesque são todas as forças reunidas no sensório comume que se distribuem ao diafragma e a todos os nervos,como veremos abaixo.

Veremos agora o contrário que é um homem pru-dente, homem como Sócrates a quem Deus concedeuo juízo inteiro em um corpo são. Este, quando per-cebe um objecto real ou arbitrário, que pela maiorparte depende(m) da opinião, o compara com ou-tros que concebeu antecedentemente e com todas assuas circunstâncias. Compara também com ele o fu-turo até que forme um conceito e que se determine avontade[;] o que tudo tão apropriadamente significouVirgílio:

Quæ sunt, quæ fuerint quæ mox ventura sequamur.

Logo uma paixão da alma não é mais do que umadoença dela; não é mais do que uma fraqueza, e o seuser mais limitado e oprimido. Chamamos maníaconão aquele que não discorre mas aquele que com fe-rocidade discorre de um só objecto sem ordem e semcomparação do verdadeiro, do honesto, nem do útil.Este é o estado do cativo da paixão da alma violenta eeste é o que chamamos doença. Só Juvenal,Satyr. 10parece-me o compreendeu melhor que os mais poe-tas e filósofos porque o exprimiu melhor que todos:

Orandum est ut sit mens sana in corpore sana,fortem posse animum & mortis terrore carentem

Naturæ, qui ferre, queat quoscumque laboresNesciat irasci, cupiat nihil, et potiores

Herculis œrumnas credat sœvosque laboresEt venere, et cœnis, et pluma Sardanapali

Pode ser que VM me acusará que larguei o que ne-cessitava tratar para discorrer de uma matéria que pa-rece alheia da Medicina, mas espero que VM achará

acertado o referido depois que vir a história dos efei-tos das paixões da alma e quanto pertence o seu co-nhecimento tanto moral como físico ao médico prá-tico.

Galeno,de Caus. Sympt. , c.5,reduziu todos osefeitos das paixões a dois movimentos universais nocorpo humano. Aquele da periferia dele para o cen-tro, que se faz com o medo, com a tristeza, o contrá-rio deste é quando o movimento é do centro para acircunferência o que sucede nas paixões da alegria,ira, e csperança; mas como esta divisão, ainda quecerta na Medicina, não compreenda todas as que cha-mamos paixões seguirei a descrição de Varrão, ale-gado por sério, (Coment. ad Lib.6, vers.733. Vir-gilii ) do modo seguinte. Há quatro sortes paixõesda alma[:] as primeiras duas são contrárias à nossaconservação, a dor e o medo. A primeira é a per-cepção do mal presente, e a segunda a percepção domal futuro ou impendente. As outras duas são o con-tentamento e o desejo[;] a primeira afecta o ânimoactualmente, a segunda com a percepção do futuro.Virgílio compreendeu todas no verso já citado:

Hinc metuunt cupiuntque, dolent gaudentque,... ...

Nestas duas classes de dor e de medo se incluemvárias espécies de paixões[:] a dor do ânimo que nóschamamos do coração e os latinosagritudoé quandoo ânimo está tão deprimido pelo mal presente quenão pode pensar noutro objecto. A dor pela morte dacousa amada se chama oplanto ou luto. A dor quesentimos pelo aumento de quem não amamos compaixão chamamos inveja. A dor que sentimos pelamiséria alheiamisericórdia. Por haver cometido ac-ções contra a consciênciapenitência. A dor e a tris-teza que sentimos por não achar remédio à ideia domal que nos ocupa desesperação; a dor da perda ouda ausência do objecto amadosaudades.

O medo produz aquela ideia triste que percebe malo futuro ou impendente. Mostra-se na cara desco-rada. Se for súbito então tememos, arrepia-se todo ocorpo e os cabelos, a circulação vem lânguida, todoo corpo se encolhe e se faz todo o movimento de cir-cunferência para o centro.

O medo da moléstia que acompanha o trabalho éa preguiça. Tudo o quc nos representar o ânimo paradesistir do honesto trabalho, tanto da nossa conser-vação como para alcançar as comodidades honestasda vida a que pertençam a obrigação ou a ser útil àsociedade, são paixões desordenadas que os Latinoschamaram com vários nomes quais são:desidia, ig-navia, inertia, segnities, socordiaevecordia.

O medo de cometer cousas injustas ou desonestasse chamavercundiaou vergonha. O medo que temosde ser convencidos pelas más ou injustas acções que

Page 9: Dissertação sobre as Paixões da Alma

8 António Ribeiro Sanches

cometemos é o que chamamospejoou pudor[;] am-bos se mostram pela cara vermelha e olhos baixos epor falta ânimo.

O medo que incertamente nos representa o danoou do corpo ou da reputação e com tristeza e aflição,se chamasuspeitas. Nesta classe entram aquelas pai-xões dos zelos, terror, pavor, horror, e superstição.

Sanctório (Sect. 7 dos Aforismos) demonstrou aideia que Galeno fez das paixões dor e medo[;] ob-servou que a transpiração insensível se diminuía, queo pulso vem lânguido, que todo o corpo se encolhe evem seco, que as potências da alma perdem do seuvigor, a memória vacila, o juízo vem confuso e o dis-curso impedido, a respiração varia e se a dor não forviolenta sempre é lânguida e rara.

De donde vemos que o corpo neste estado é fracoe, por consequência, que o ânimo se afecta com ele.Tão fortes serão as ditas paixões tão vários serão osseus efeitos no corpo humano. Há males hereditáriostanto corporais como do ânimo. O terror que senti-ram as mulheres prenhes dispõem os cérebros da suaprole a mover-se mais facilmente com semelhantessensações. Jacob VI da Inglaterra não podia ver es-pada nua porque sua mãe, estando dele prenhada, seassustou vendo ferir um seu súbdito.

Trazemos outras mais disposições hereditáriasque influem nas acções que fazemos para toda a vida.Além disso há temperamentos naturais ou adquiridospelo modo de viver e de doenças que incitam o ânimoa produzir mais facilmente umas paixões do que ou-tras.

Observou Haller [qu]e aquelas dores mornas docoração (animi agritudinis) encolhem e cerram todasas partes do nosso corpo dedicadas ao movimento.Dissemos acima que o ofício dos nervos tanto na suaorigem, que é a medula oblongata, como nos seusfins quando se espalham nas partes aonde acabam,era de sentir e de mover. É força que eles mesmohão-de ser os instrumentos de encolher e cerrar oudo estender e alongar as partes aonde se terminarem.O mesmo célebre autor na dissertaçãode nervorumin arterias imperio, 1744. L.5, mostrou evidente-mente que as artérias que se distribuem pela cara,garganta, bofe, coração, diafragma e mais víscerastodas tinham nervos que as abraçavam e enrodavamde tal modo que encolhendo-se ou estendendo-se al-gum destes logo o sangue da artéria ou se deti[nh]anela ou se acelerava. O nome destas artérias abraça-das e enlaçadas com os nervos do par sétimo, oitavo edo intercostal [são] a subclávia do tronco da aorta, asartérias dos braços, ambas as mesentérias e as celía-cas Naquela judiciosa observação se vê claramenteque o pulso pequeno, a respiração interrompida erara, a cor da cara mudada, as insónias, as dores de

cabeça, lassidão e peso de todo o corpo, as ânsiase sufocações, os aneurismas e pólipos do coração eda aorta, os desmaios, a desesperação, a coagulaçãodos humores até à morte, [o] marasmo, o pericárdiocomo vi pegado ao coração depois da morte, provêmdas alterações que recebem as artérias pela força dosnervos que as abraçam, encolhidos e cerrados ou ti-rados para a sua origem.

Mas para que mais perfeitamente fiquemos con-vencidos dos efeitos das paixões do ânimo no corpodirei em breves períodos os danos que sentimos nelasnaquela parte tão sensível que é a boca do estômagocomo se chama comummente e os médicos chama-ramscrobiculum cordis.

Hipócrates ([Lib ].2 de morbis, sect. 7aeditit. Van-derlinden) falando das paixões da alma diz “cura(œgortir morbus difficilis in visceribus velut spinaessevidetur et pungere et anxietas cum corripit et lu-cem, ac homines fuggit et tenebras amat, et timor in-vadit et septum transversum forastum et contractumdolet et expavescit, et terriculamenta ac somnia hor-rendavidet quandoque etiam mortuos &a”.

Helmontis (tratactibus imago mentis, demensidea, sedes animœ, ad morbos, Archæus faber) pormuitas observações remarcáveis assentou que o prin-cípio de todos os movimentos que causam as enfer-midadcs, residia no piloro e que o seu império se es-tendia até afectar a nossa alma.

Todos os médicos até agora concordaram que, en-quanto o homem está pacato e em perfeita saúde, quepela força de vontade não poderá acelerar o movi-mento do coração nem impedir que o estômago nãodigere (digira), nem que do sangue se separe a saliva,a cólera, a urina e a matéria seminal; todos tambémexperimentaram e qualquer em si o poderá experi-mentar que logo que um homem sente uma forte dor,um tiro, estando descuidado ou aflito com medo, tris-teza, ou qualquer paixão violenta, que não só todas asacções naturais e vitais se alteram prodigiosamentemas que sente um peso ingrato, uma ânsia, um comoinchaço molesto na boca do estômago. Aquele lugaré como o ponteiro que indica o estado do nosso pen-samento, triste ou alegre, contente ou descontente.Recebemos uma nova agradável, chegamos a abraçarum amigo que não esperávamos, somos estimuladospelo vigor da mocidade à propagação da nossa es-pécie, sentimos na boca do estômago, naquele lugardebaixo da espinhela, uma sensação tão agradável,uma consolação tão suave que todo o corpo o res-sente como descanso, e o ânimo como alegria.

A leitura dos médicos gregos me instigou a con-siderar se o diafragma era aquela parte que sentia ouaonde residia aquele sentimento grato ou ingrato, oua boca do estômago ou o piloro, como assentavam a

Page 10: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 9

maior parte dos médicos, e achei, anatomizando al-guns cadáveres, que só Hipócrates disse a verdadeneste ponto. Achei que a parte tendinosa, que co-mummente chamam nervosa, estava logodebaixo daespinhela; que a boca do estômago estava sita maispara a esquerda, achei que todos os nervos que seterminam no diafragma não somente eram os dia-fragmáticos mas que os do oitavo par, e o intercostal.Mas estes três nervos têm conexão mais íntima e muiconsiderável com todos os nervos que regem as fa-culdades animal, vital, e natural; daqui vem que logoque o nosso ânimo está ocupado e dominado por umapaixão que todo o sistema do diafragma como termouniversal dos nervos se comove, se encolhe, se cerra,se estende e se alarga, que por outras palavras maisfilosóficas adquire maior elasticidade ou inércia.

Vê VM no lugar acima de Hipócrates quão verda-deiramente observou este sintoma naquelas paixõesde triste[za,] cuidado e aflição. Por esta razão a umhomem em perfeito juízo diziam que estava em per-feito estado do diafragma, queriam dizer, sem pai-xões porque quando estes existem no ânimo logovem enfermo[;] assim todas as paixões são enfermi-dades da alma e o ponteiro que as mostra são aque-las alterações do diafragma e como este se comunicaem todos os nervos que servem ao sentimento e mo-vimento, todos incita, todos deprime ou exalta. Aliparece que deve existir visivelmente aqueleimpetumfaciensde Hipócrates como no coração existe a forçade mover todas as artérias.

Já vimos acima que a maior ou menor violênciadas paixões depende da vária conformação e consti-tuição do corpo humano. Observou [E]stêvão Hales(no seu tratadoHemostaticks) que os animais medro-sos como os cervos, e as lebres tinham as fibras docoração mais tenras e laxas que os animais genero-sos. Que nos primeiros a circulação era sempre maisacelerada mas menor e que os contrários movimentosse achavam nos segundos.

As paixões acima ditas da tristeza e do medonas constituições delicadas dotadas de uma imagi-nação viva, expressão agradável e de nervos delica-dos ainda que elásticos, as queixas que se geram sãonas vísceras entrando nelas todas as desordens do(s)estômago(s) e dos intestinos. Estes [doentes] logosentem flatos, dores de cabeça, zunidos nos ouvidos,ansiedades, convulsões, o ventre constipado. Estestodos vêm ou hipocondríacos ou histéricos.

Nas constituições robustas e laiertosas, aonde o vi-gor das artérias e do sangue são dominantes no corpo,as enfermidades que resultam destas paixões se mos-tram mais geralmente pelas enfermidades das arté-rias. Nestes (como vi) se fazem hemorragias, escar-ros e vómitos de sangue, aneurismas, pedras da be-

xiga do fel, icterícias, atrabílis, manias [e] epilepsias.Os zelos das mulheres turcas as faz morrer, e aca-bar miseravelmente nestas queixas às vezes em fe-bres, hécticas e a desesperação é a última cena destaqueixa como da vida.

Somos feitos com tal ordem que um exemploexorbitante ou do ânimo ou do corpo basta para res-sentirmos para toda a vida; ficaram por enfermos doestômago enquanto vivem aqueles que uma só vezcomeram e beberam tanto que fizeram violência àsfibras dele. Basta que por uma só vez a bexiga se es-tenda além do seu estado natural com a urina, paraficar, por toda a vida, meia paralítica. Do mesmomodo uma paixão violentíssima, principalmente notempo que correm os lóquios ou os mênstruos, bas-tará para ficarem estas miseráveis histéricas enquantoviverem, como todos aqueles que as sofrerem, paracaírem nos males acima referidos. Quando uma vezo sistema de nervos perdeu a sua elasticidade, ficaeste vício enquanto vivem. Deste irremediável es-tado desesperaram os médicos até agora [para] curarinteiramente os enfermos.

Já dissemos acima que quando o veneno da pesteé violentíssimo mata em breves horas e às vezes ins-tantes, não aparecendo outro sintoma mais que pin-tas negras em algumas partes do corpo. Se o ve-neno é tão moderado que ficam forças à naturezapara expulsá-lo então aparecem náuseas, vómitos, di-arreias, febres ardentes, delírios, convulsões, bubõese antrazes. Desta sorte de peste sempre escapa maisde a metade.

Do mesmo modo, quando as quatro sortes de pai-xões da alma são violentíssimas destroem num ins-tante aquele princípio sensiente e movente e morre ohomem. Se a paixão deixa forças àquelas potênciasentão por lágrimas, soluços, suspiros, ânsias, gritos,tremores, convulsões, vómitos, diarreias , faz todosos esforços para emendar o dano que causou a pai-xão: se não houver tantas forças vitais ficam cata-lépticos, maníacos, às vezes fátuos ou melancólicose desgraçadamente por toda a vida. Raros foram osmédicos práticos que não observaram estes efeitosainda que não lembre haver lido algum deles que di-vidisse e comparasse as paixões da alma como fa-zemos. Citarei as observações delas ordenando-asconforme a sua violência.

Refere Marcello DonattoLib.3. Cap.13.que ummenino indo pela madrugada à escola vira dous ho-mens vestidos de negro e que se assustara tanto comeste medonho aspecto que morrera subitamente.

Miguel de Montaigne nos seusEnsaios, Lib.lCap.20refere que um criminoso se atemorizara detal modo ouvindo ler a sentença de morte que o acha-

Page 11: Dissertação sobre as Paixões da Alma

10 António Ribeiro Sanches

ram morto aqueles que lhe traziam a nova do perdãode EI-Rei.

O mesmo Marcello Donato ibidem diz que nocerco de Buda, na guerra do imperador FernandoI, um mancebo pelejara com tanto valor que a to-dos causara admiração. Cai por último: todos que-riam ver o cadáver[;] tiraram-lhe o capacete [e] opai que presenciou como pelejara, e que estava pre-sente quando despiam o filho, fica com os olhos fixoscontemplando-o e sem dizer palavra cai morto. PauloJóvio na história dos seus tempos e Marcello Donatoatestam este facto.

Pintaram nesta paixão os poetas transformandoem pedra dura os vencidos dela. OvídioLib.6, v.301representa Niobe depois de ver mata seus filhos destemodo:

“Dumque rogat, proqua rogat accidit.Orba resedit examines

inter natos, natas que virum que diriguitque malis: nullos

movet auro capillos in vultu color est sinesanguine lumina

moestis stant immota genis, nihil est ima-gine vivi.”

Mas mais patética e lastimavelmente nosso Ca-mões representou Adamastor convertido no cabo tor-mentório pelo mortal desgosto do engano de Dóris:

Não fiquei homem mas mudo e quedo ejunto de um penedo outro penedo

Estes são os efeitos da suma tristeza acompanhadada des[es]peração. Vejamos agora efeitos menos vi-olentos ainda que igualmente funestos.

Refere Schelhamerus (tract. de animi affectib.Cap. 12, p.mihi 174) que um pai avaro obrigara o seufilho a casar com uma mulher rica mas mui disformee hedionda. Celebra-se o casamento, chega o tempode a ver nua[;] tal horror se ampara do pobre moçoque caiu em convulsões e em pouco tempo morreuepiléptico.

Refere o Presidente [de] Thou na história do seutempo que Gorrens. aquele doutíssimo médico quenos deixou os dicionários das definições médicas,fora perseguido naquele calamitoso dia de S. Barto-lomeu por aqueles que trucidavam os Hug[ue]notes eque tal medo se amparara do seu ânimo que por todaa vida ficou insensato deplorando ao mesmo tempoa perda que neste cultíssimo engenho fizera a leituragrega e latina. Stalpart Vandreviel (Obs.l cent.l) re-fere que a mulher de um hortelão se assustara tantopor haverem entrado de noute ladrões na sua hortaque os ossos do crânio se separaram podendo-se me-ter um dedo entre eles, que ao mesmo tempo caíraem uma violentíssima febre e que escapara.

Refere Roberto Boyle que uma mulher assentadaperto de um canal de água com seu filho, este, comomenino brincando, viera a cair nele no tempo em quea mãe estava descuidada. Levanta os olhos, vê o filhoafogando-se [e] cai na paralisia de um braço, mal quelhe durou por toda a vida.

São inumeráveis [os] testos que observaram quedepois de sustos, tristezas [e] terrores, apareceramcirros nos peitos às mulheres de todas as idades e quefacilmente degene[ra]ram em cancros e que nenhumveneno irrita mais o vírus canc[ e ]roso que uma pai-xão da alma. Veja-se Riveris,cent.4 obs.57; Schelha-merus, citadap.180; Pechelinus,lib.3, obs.23 e 24esobre todos o que li em Bernerus no apêndice ao seutrat. de ...[p] 80.

Se fossem comuns os livrosEphemerides Germa-nicænão tivera o motivo de copiar aqui o que se lênesta matéria no tom.9 e 1O de Curs.B obs.57. Emuma noite se viram cabelos brancos; ficarem mudos,apoplécticos, perder a memória, abortos, fluxos desangue, causam hérnias, paralisia do intestino coe-cum e cólon. Como vi e cuja observação anda im-pressa nasTransacções Filosóficas.

Estes são os efeitos das paixões violentas mas asmoderadas podem às vezes curar algumas enfermi-dades, achando aqui verdadeira a consideração quefez o célebre Guntz, Físico-mor de El-Rei da Poló-nia, no comentário que fez ao livrode humoribusdeHipócrates (Lipsia,1745. 8o, p.219), [de] que as pai-xões inesper[a]das e os sustos não horrendos servemde cura a muitos males. Curou-se a paralisia causadapor velhos reumatismos, a ciática, a hidrofobia, osfluxos de sangue, as quartãs, as febres, os soluços eas hérnias.

Mas é coisa notável que a mesma paixão produzaefeitos contrários em vários corpos. Refere MarcoAurélio Severino (de abscessum recondita natura,p.197) que uma freira vendo entrar no seu conventosoldados inimigos com as espadas desembainhadascaíra em tão enorme hemorragia que lhe arrebenta-ram as artérias de todos os orifícios do corpo até aca-bar a vida nesta evacuação.

Pelo contrário, vemos cada dia que aqueles quese assustam ficam sossegados e pensativos antes dasangria que apenas sai o sangue e às vezes gota agota[;] põe(m)-se a atadura na cisura e depois de al-gum tempo, desatando-se para sangrar de novo, co-meça então o sangue a correr abundantemente. Já emoutra parte considerámos os danos que causa o medonas operações, razão porque não repetimos esta im-portante matéria e que tão raras vezes mereceu aatenção dos médicos nem dos cirurgiões.

Foram as paixões do medo [e do] terror às vezessaudáveis como testeficam as seguintes observações.

Page 12: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 11

Helmontis (trat. Demens idea, no47) refere quemuitos hidrofóbicos se curaram mergulhando-se naágua fria descuidados, que o terror súbito e aquelemedo de morte muda o sensório comum e ficam cu-rados daquela ideia falsa que tinham de antes. Osmaníacos, por semelhante operação, e os enamora-dos ou [com] delírio amoroso, se podem curar porsemelhante método ainda que depois seja necessáriocurar o corpo. O mesmo autor relata muitos enfer-mos curados pelo terror quando os mergulham deti-dos da hidrofobia e mania, donde é falso que a águado mar é que cura a hidrofobia banhando-se nela.

Vimos acima que o terror e o pavor podem cau-sar a paralisia mas temos observações que a mesmapaixão curou o mesmo mal. Os efeitos desta paixãosempre seguem a disposição do corpo. Caiu um ho-mem em uma hemorragia ou paralisia[;] com o sustotodas as partes sólidas se relaxam e ficou o corponeste estado. O mesmo medo, terror e pavor em graumenor fez encolher os nervos daqueles que estavamdoentes da hemorragia ou paralisia[;] assim a circu-lação pára e suprime a evacuação do sangue com osmúsculos que estavam paralíticos.

Refere Salmuth (cent.1o, obs.48) que um artrí-tico, tendo os pés com cataplasmas feitos com nabospara aplacar as dores [e] entrando um porco no lugaraonde estava, começou a roer a cataplasma[;] tal ter-ror se emparou do seu ânimo que começou a saltar ea correr, de que ficou curado.

Milhares de observações atestam que as febres in-termitentes por acaso se curaram por estas paixõesviolentas. Já a VM disse em outra ocasião que na se-gunda viagem que Vasco da Gama fez à India, tocouo navio na terra[;] havia neles muitos febricitantes[e] com o medo e susto que tiveram todos ficaramcurados dela.

Fora transladar o que se acha no citado tomo dasEphemerides de Alemanha, pag.114 & 115, se qui-sesse continuar esta matéria; basta para sua inteligên-cia sabermos que a mesma paixão em diferente grause diferentes constituições e estado de corpo pode cau-sar e curar as mesmas enfermidades.

Perguntará VM se poderemos seguramente inci-tar e fazer uso destas paixões, medo, e tristeza, sus-tos e horror para curar fluxos de sangue, paralisias,hérnias, hidrofobias, manias e febres intermitentes.Ao que respondo que se não devem pôr em práticaestes métodos violentos quando houver outros remé-dios mais seguros, mas se totalmente não tivermosoutros poderemos usar deles como usamos na hidro-fobia e nas manias [;] e se o corpo se deve incitar porpaixões, as menos perigosas são aquelas da ira e daesperança de que falaremos abaixo.

Vimos acima que o medo de cometer acções con-tra a nossa reputação ou conservação se chamaver-cundia ou vergonha e que o medo de sermos difa-mados por haver cometido crimes se chama pejo oupudor.

Trataremos desta paixão como sintoma do efeitohipocondríaco do qual raríssimos são os A.A. que fa-laram e trataram dela, e veremos os seus efeitos.

Na língua grega se chama a este efeito dificuldadede olhar para o objecto que se quer ver. Os que se en-vergonham sentem na boca do estômago uma ansiosaangústia, um como nó na garganta, não respiram poralguns momentos, fica o ar dentro do bofe, adquireaí maior raridadc, estende-se, comprime as veias pul-monais que levam o sangue ao ventrículo esquerdo[;]não se vaziando o ventrículo direito, não pode entrarno sinusdo mesmo lado o sangue da veia cava supe-rior que traz o sangue da cabeça. Daqui vem que osangue se espalha pela cara, além disso os nervos seencolhem e aquela porção do par sétimo que se es-palha por toda a cara comprime as veias das fontes;daqui fica por mais tempo a cara vermelha, o pensa-mento se turba, turba-se a memória, o pulso é vazioe irregular[;] então se sente[m] na cara ingratos e do-lorosos movimentos, todos os músculos se retiram ese mudam de mil modos, os olhos vêm turvos, ficatodo o ânimo com todo o corpo consternado.

Também sinto esta paixão meu S.D.or porque a so-fro há catorze anos. Ela tem sido a causa da vida maisaflita. Larguei as companhias mesmo dos homens aquem amava, do concurso mesmo deles por não sercapaz de sofrê-lo, às vezes mesmo dos mais familia-res e domésticos[;] basta-me em certos tempos enca-rar mesmo como uma criança para cair neste ingratosintoma. Assim aqueles enfermos deste mal evitam afamiliaridade e os consolos públicos, sempre temem,sempre se acanham diante dos homens e são inca-pazes de exercitar cargos públicos e mesmo ofícioshonestos.

Caem neste sintoma logo que atentamente queremouvir a relação de al[guma] história ou conto da suavida. Por essa razão deixei a prática da Medicina.Logo que um enfermo me começava a relatar a histó-ria da sua enfermidade, logo caía e caiu nos sintomasreferidos de tal modo que fico incapaz de percebernem formar juízo do que queria saber.

A causa desta terrível e mortificante queixa con-siste na debilidade dos nervos ou do ânimo. Os ho-mens fortes e destemidos não conhecem esta queixa.Nenhum cego, nenhum que tem a vista curta não seobservou até agora que sofresse esta queixa. Esta é arazão que só se observa naqueles hipocondríacos quechamamsine materiaaonde o (que) homem interno

Page 13: Dissertação sobre as Paixões da Alma

12 António Ribeiro Sanches

de Sydenham, que é o sistema dos nervos, está débile fraco.

Poucos A.A. escreveram de propósito destaqueixa e de sua cura. O que Plutarco escreveu dela noseu tratadode vitioso pudorese reduz para governara vida civil. Quem escreveu mais ao nosso propó-sito foi um nosso compatriota, e doutamente, consi-derando o século em que viveu, foi Antonius Ludu-vicus De ocultibus proprietatibusem Lisboa, 1540.No fim da obra se acha um tratado intituladoDe pu-dore. Doutíssimo homem na literatura médica gregae latina: havia naqueles tempos muitos semelhantesem Portugal e não sei a causa porque se perderamnele os ditos conhecimentos sem embargo que depoisdaquele tempo se erigiu a Universidade de Coimbraactual e tantos Colégios em todo o Reino.

Já disse que este sintoma da vergonha que melhorsoavercundiaé especial a hipocondria. Um A. in-glês, médico chamado Fleming, hipocondríaco, tam-bém castigado com este sintoma, compôs um poemaà imitação de Lucrécio intituladoNeuropatiaondetratou desta enfermidade com toda a elegância e dou-trina. Começa o Livro Segundo lamentando o estadodos hipocondríacos dominados desta queixa por es-tes expressivos versos:

O fortunatos nimium sua si bona norintQueis cerebrum et nervi nativo robore pollent

Non illi vitæ detrectant numera honestaNec loetus hominum coetus, turbasque celebres

Suspecti sibi devitant, fugiunt ve paventesQuippe pudor morbum sequitur &.a

Esta paixão do pejo ou da vergonha em todosos homens produziu estupendos efeitos e mesmo amorte. Plíniolib. 7 refere que Diodoro morreu devergonha por ter sido convencido por Stilpo não po-dendo responder a um argumento. Vimos acima queas donzelas da cidade de Mileto se mataram a si mes-mas; o remédio que acharam para curá-las daqueladoudice fatal foi expô-las nuas depois de se matareme esta paixão da vergonha pôde tanto no seu ânimoque depois daquele decreto nenhuma mais se matou,o que se poderá ler em Plutarco no mesmo lugar ci-tado acima. Os rapazes da Lacedemónia sofriam [ao]ser açoutados até à morte sem darem um suspiro so-mente por não sofrerem a desonra de fracos. Nãoé extraordinário nem tem sucedido raras vezes queuma donzela que não pode sofrer a picadela de umaabelha sem cair em desmaios, pode parir e pare emcasa dos seus pais sem dar o menor gemido; a vergo-nha de ser descoberta a perda da sua reputação deuum valor vironil naquele caso: mas o que ultrapassaa imaginação nesta paixão é o que me contou o meuíntimo amigo o Doutor Amman, A. do livroPlantæ

Sibericæ, in 4o. Assistiu ele no Hospital de Londresem um dia, quando se curavam nove rapazes para lhetirarem a pedra da bexiga. Nesta cruel operação osprimeiros dois rapazes gritaram como é crível. Co-meçou o cirurgião a animar os mais e a dizer-lhesque não mostrassem [que] eram meninos, que des-sem sinais à companhia que tinham ânimo varonil.Um deles diz com tom de voz e ânimo intrépido[:]pois eu não hei-de gritar. E na verdade, e que admi-rava de horror agradável toda a companhia, sofreu aterrível operação sem dar o mínimo gemido. Não ti-nha mais que nove, até onze anos. Toda a companhiase [co]moveu tanto desta acção prodigiosa de valorque cada um fez um presente de dinheiro a esta almaintrépida. Este é o efeito da vergonha o mais remar-cável que até agora pude alcançar: quem viu fazeraquela operação ficará atónito deste sucesso.

Todos os remédios são quase inúteis nesta queixa[;] os mais fáceis e às vezes apropriados são, que logoque começam estes enfermos a sentir aquela opres-são, que escarrem e que tussam. Deste modo, saindoo ar do bofe, acelera-se a circulação e não se encheo cérebro de sangue o que turba o pensamento. Massão tão desgraçados estes enfermos que logo (que)perdem a memória e não se lembram deste remédio.A natureza é mais provada. Vemos o menino que malsabe de memória a sua lição, o pregador em quemva(s)cila a memória, o sacerdote que recita em pú-blico os mistérios sagrados que sem querer tossem eescarram.

Irar-se também é remédio desta queixa [;] por essarazão facilmente se agastam estes, falam alto semprecom tom áspero e não se apercebem; a Natureza pro-cura por aquela voz alta, áspera e contenciosa, pro-mover a circulação do bofe, mas logo que se cala,logo que atentamente quer ouvir o que lhe diz ou quelhe conta o mesmo caro amigo e doméstico fiel, cainaquele lastimoso, e agoniador sintoma. Relatei aVM o que sofro há tantos anos sem esperança de re-médio.

É bem comum em Portugal a paixão dos zelos enão necessitava expô-la diante de VM se não qui-sesse mostrar que é uma enfermidade e que dependeda brandura e da fraqueza do ânimo, e que necessitauma cura como todas as mais paixões que dependemda fraqueza e lassidão do sistema nervoso. Nesta pai-xão há dous tempos aonde os efeitos são diferentes:o 1oé quando o amante vê que o objecto amado épossuído por outro e que ele fica destruído. Esta pai-xão pode causar a morte e todos os males do cére-bro. Referem asHistórias de Espanhaque a mãe deCarlos V vendo seu marido, Filipe I, dar sinais nãoequívocos do seu amor a uma dama da sua corte napresença daquela Rainha que ficou tão sentida e tão

Page 14: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 13

atónita que perdera o juízo por toda a vida, de quelhe ficou o nome Joana, la Loca. Não me lembro quelesse esta paixão tão bem pintada que em Horácio,Lib.1, od.13quando ele via a preferência que Lídiadava à beleza de Telepho

Cum tu, Lidia, TelephiCervicem roseam, lactea TelephiLaudas brachia; væ meumFervens difficile bile tumet jecurTune nec mens mihi, nec colorCerta sede manet: humor et ingenasFurtim labitur arguensQuam lentis penitus maceret ignibus

Vêde VM os efeitos desta paixão que não é nograu mais violento nesta descrição. Como fica todoo peito e o coração tomado, como o juízo fica con-fuso, como as cores do rosto vão, e vêm sinais dosvários e desordenados movimentos do coração, vêbrotar em lágrimas esta paixão que servem de alívio atantos males quando são acompanhadas com choros,suspiros e lamentos. Busca a natureza nestes movi-mentos a circulação acelerada no bofe o que serve deremédio. Juvenal admira (Sal.lO, v.131) a providên-cia da benigna natureza dando-nos as lágrimas paracompensar-nos [d]os infortúnios.

Molissima cordaHumanum generi dare se natura fatetur

Quœ lacrimas dedit: hœc nostri pars optima sensusPlorare ergo jubet causam lugentis amici

Squallorem rei pupilum &a

Mas as paixões violentas de zelos, tenor, tristeza,como já dissemos que deprimem, e destroem o sen-sório comum, causam maiores males[;] quando fi-cam forças bastantes para vencer o mal que fez a pai-xão então se seguem as lágrimas, os suspiros, e oslamentos, e fazem o ofício que faz a febre.

A paixão de zelos acompanhada com suspeitas,com desonra, com vergonha, não só é capaz de fa-zer cair melancólico e atrabiliário, mas ainda ma-níaco. A origem sempre é fraqueza e enfermidadedo ânimo. Se reduz àquela queixa chamada por Hi-pócratcscura sui sollicitudocomo vimos acima e osefeitos que faz e que ali copiei.

A esta classe pertence também aquela paixão quechamaram muitos superstição e nós comumente falsadevoção. Esta inquietação do ânimo, esta desespera-ção da salvação pode causar todos os males do cére-bro depois da vertigem, que é o mais livre dos seussintomas, até à apoplexia completa. Ordinariamentenos climas meridionais a [paixão] produz a atrabílis.Dela diremos os efeitos e se pode ver da superstição

causada por ela [em] Aræteus Capadox,de causis etsignis diuturnorum, Lib.1, cap.6, pág.33, edit. Bo-erhaave.

Tenho tratado da primeira divisão das paixões daalma que são aquelas que relaxam e enfraquecem osistema nervoso e que o seu movimento é da cir-cunferência para o centro. Estas paixões são ordi-nariamente contrárias à nossa conservação. São aorigem das mortes aceleradas. São ordinariamentea porta mais patente e mais frequentada pela qualsaem deste mundo os homens em sociedade. Leia-senesta matériaNueva Philosophia de L’hombrepor D.Oliva Sabuco, 2daEdit. 1728, 4o, Madrid e OctaviusBranciforti, de animorum perturbationibus, Cataneœ,1632,4o.

Vai esta carta cada vez sendo mais extensa por-que a matéria incita a dilatar-me nela pela utilidadeque considero ou pela raridade dos A.A. que a trata-ram na intenção de servir a cura das enfermidades.Poderá ser que VM me acuse de que trato uma ma-téria tratada por muitos e que sou mais o colector doque está escrito que de declarar o que nela se nãoconhece.

Mui persuadido estou que VM é inteirado da Lite-ratura que cito, e citarei. Mas, contanto que desta osmédicos possam usar dela com utilidade nos seus en-fermos, darei o meu trabalho por bem empregado enão me envergonharei [de] com OvídioMetamorph.Lib. 10, fab.8, dizer:

ut hymettia soleceraremollescit, tratacta que pellice multos

certitud in facies, ipso que fit utilis uso

Agora trataremos das paixões da alma que ser-vem para a nossa conservação quando são modera-das. Elas conservam a vida. São a alma da Soci-edade e da perpetuidade do género humano[;] alémdisso servem de remédio às paixões daqueixaquetratamos acima.

Estas são o contentamento, a alegria, a amizade, aescandecência e a esperança.

Sanctorius, sect. 7, nos seus Aphorismos obser-vou que fazem o corpo ligeiro e desembaraçado, quea respiração insensível se aumenta, que o pulso e aperspiração são regulares, que dormem [e] digeremperfeitamente, que o trabalhador não sinta cansaço,que o caminhante sem moléstia continua o seu cami-nho e mais expressivamente o nosso Camões:

Canta o preso docementeOs duros grilhões tocandoCanta o segador contentee o trabalhador cantandoo trabalho menos sente

Page 15: Dissertação sobre as Paixões da Alma

14 António Ribeiro Sanches

Nestas moderadas paixões o corpo sente um nãosei quê que somente se pode expJicar pelo senti-mento e o ânimo, um bem como em névoa que gozasem o distinguir perfeitamente. Quem for de tão felizconstituição que puder conservar a alegria do ânimoterá alívio e ainda remédio de muitos males. Peche-linus (Lib.2, obs.27, pag.463) viu artríticos que nãosentiram as dores daquela queixa com a alegria quetinham pela conversação agradável, pela música, epela companhia de pessoas que amavam. Todos sa-bem o que se diz de Afonso, rei de Nápoles, que aleitura de Quinto Cúrcio, de que gostava sumamente,o curara de uma febre lenta e o mesmo se diz da-queles dous doutíssimos homens Nicolau Peyrèse eCoríngio. Ali refere este autor que um gotoso rece-bendo a nova [de] ser eleito a um ilustre cargo se cu-rara logo, e que um velho sexagenário que desejavasumamente sucessão, parindo-lhe a mulher um filho,ficara tão contente que se curara logo de uma terçã[de] que padecia.

Vejamos cortado da pedra a um menino ou mesmoum adulto (como vi) e tanto que tem a pedra en-tre os dedos já não sente aquelas atrozes dores quedeve ainda sentir estando laceradas e ensanguenta-das as partes por onde saiu[;] tanto se consola de vera causa dos seus males acabada que o ânimo, naquelacontemplação, não adverte na causa da dor existente.As venturosas mães que pariram felizmente, tantoque vêem a criança viva, que a tocam ou beijam, jánão sentem as dores e o tormento que deviam sentir.Aquelas que parem filhos curam-se mais facilmenteainda que lhe sobreven[ham] febres do que aquelasque parem filhas. A alegria que lhes causam estesventurosos sucessos fortificam as forças, os nervosadquirem elasticidade e a circulação continua regu-lar.

É um grande segredo na mão do médico prático tera alegria em seu poder para usar dela na maior parteda sua prática, conserve e aumente a sua reputaçãopara que o enfermo tenha nele a mais firme espe-rança[;] far-se-á agradável com decoro porque coma conversação agradá[vel] e um não sei quê no modode expressão e do gesto muitas queixas tiram daqui omaior vigor dos remédios que ordenar. Fora ingratose neste lugar calasse este dom de que foi dotado omeu amado Mestre Dor Bernardo Pinho, médico dacidade da Guarda. Fui seu praticante e observei quenaquele mês que entrava a curar [n]o Hospital da Mi-sericórdia da mesma cidade que sempre saíam dele amaior parte curados que no outro mês no qual cu-rava outro médico, ainda que douto, mas de um na-tural a fazer-se aborrecer. Lembro-me que entrandomeu mestre na enfermaria cada doente levantava acabeça para o ver. Em todos se via a alegria pintada

na cara, até os que desesperavam dos seus males fi-cavam consolados porque a graça, com decência, osaber da judiciosa conversação, a cordialidade comque mostrava magoar-se nas dores difíceis, animavaaqueles ânimos ainda que abatidos.

Sabemos por experiência que há mulheres tão fá-ceis em entrar em aversão pela presença de quem lhesnão agrada que não podem parir ainda que estejam noestado mais próximo àquele estado. Em outras mui-tas doenças se notam estas aversões e também ami-zades que todo o médico prático deve considerar nacura dos seus enfermos e tenha por máxima assen-tada que o primeiro ponto para ser feliz consiste emagradar.

Mas estas mesmas paixões que servem da conser-vação da vida como o movimento as águas e, comoo ar livre a continuação da flama, quando chegam aexistir(em) em grau intenso, quando arrebatam a sitodo o ânimo, produzem efeitos contrários. São en-tão causa de perder a vida e de produzir todos os ma-les das três faculdades do nosso corpo. Estas se cha-mamlatitia subita, amor insanus, ira ferocia, rabiesindignatio, desiderium, que nós chamamos alegria,amor, ira ou cólera, indignação e saudades.

Estas definiu Cícero nas suasquestões tusculanas(lib.3) que são como terremotos do ânimo destituídoda razão pensando que goza do bem que deseja.

Vejamos agora os seus efeitos no corpo humano.Sanctório nos citadosAphorismosobervou que a ale-gria demasiada, principalmente não atendida, dissipaos espíritos vitais, faz parar a circulação, relaxar to-dos os nervos até à total paralisia[;] que a alegriamais moderada mas não atendida, como é aquelados jogadores [a]fortunados que faz perder o sono,que dissipa(m) os espíritos vitais e consome(m); peloque pode esta paixão continuada causar a atrabílis.Poucos são os jogadores por ofício que não sejammelancó-licos e a paixão do jogo é uma doença doânimo que tem a sua origem no humor atrabil[i]ário.

Se lançarmos os olhos nas Histórias tanto antigascomo modernas acharemos muitos que morreram dealegria não esperada. Chilon de Sparta vendo seu fi-lho coroado nos Jogos Olímpicos, abraçando-o caimorto (Plínio, Lib.7, Cap.32). Nos mesmos jogosexpirou de repente Sófocles ouvindo-se aclamar vi-torioso. O mesmo Plínio o relata no mesmo lugar,Cap.53, e outros muitos que se podem ver em Mar-cello Donato tantas vezes citado,Lib.3, Cap.13.

No tempo de Luís XIV, Monsieur Fouquet, vedorprincipal de fazenda, havendo estado preso por mui-tos anos sem esperança de ver-se livre recebe por úl-timo a graça da liberdade e no instante que lha noti-ficam deu logo o último suspiro.

Page 16: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 15

Aqui tem VM tudo tão coerente com o que tantasvezes dissemos[:] que as paixões das almas violentassão semelhantes ao veneno activíssimo da peste; sechegam a consumir e destruir aquele princípio sen-siente e movente (que) fazem acabar a vida em uminstante; se a alegria não for tão intensa produz malesmenores que se mostram por febres diárias, insónias,relaxação dos sólidos.

Observou o D.or Mead (Monita Medica Londini,8o) que a maior parte dos maníacos que se achavamno Hospital dos Doudos em Londres, pelos anos de1721 a 1722, que foram a causa [da doença] as gran-des e imensas riquezas a que chegaram muitos cida-dãos não esperadas nem atendidas. Muitos as conser-varam e não deixaram de cair(em) maníacos[;] ou-tros as perderam, e de tristeza caíram no mesmo es-tado. Já observaram os políticos que todos os monar-cas felicíssimos em ganhar vitórias que por últimocaíam melancólicos. De Carlos V admiram muitos, écerto, que a repetida alegria não atendida faz dissiparo mais subtil do nosso corpo[;] fica o sangue desti-tuído dos seus licores, vem térreo e deste se forma aatrabílis. Não fomos formados para sofrer excessosainda que sejam de contentamento.

A paixão de amor é um desejo de se unir com abeleza apresentada por tal. Aquela ideia do objectoamado se lhes apresenta tão fixa que não ficam forçasao pensamento para pensar em outra, estão domina-dos por aquela representação. Esquecem-[se] do pas-sado, nenhuma providência do futuro. Estão fora desi, deliram neste objecto, sinal da fraqueza do ânimoenervado pelo ócio. Tem esta paixão a origem nestevício e já vimos acima quedesideriaera a paixão domodo que teme o trabalho. Perguntando Teofrastoque causa era o Amor respondeu, como se lê em Sto-beo (Sermon 62) que era uma doença da alma ociosa.O que já conheceu Ovídio:

Otia sitollas periere cupidinis arcus.

Difere o amor da amizade. Esta é aquele amor quetemos para nos unir com a utilidade que redunda davirtude. Aquele (o) amor que temos para nos unircom o objecto amado representado por este tem porobjecto a representação natural da causa amada, e aamizade a representação das potências da alma orde-nada.

Os efeitos do amor desordenado no corpo humanosão vigias, cara descorada, os olhos encovados e que-brados. Sentem como na tristeza aquele desagradá-vel peso na boca do estômago, o pulso, enquanto es-tão naquele cego enleio do que desejam, é lânguido,na presença do mesmo objecto acelerado, desigual, epor estas diferenças conheceram os médicos depoisde Erastrato o pulso dos amantes. Nesta sucessão

de paixões se consomem os espíritos vitais, se per-vertem as digestões, se enfraquecem a memória eo raciocínio, vêm maníacos, fátuos, ordinariamentemelancólicos. Ninguém pintou este estado melhor, ameu gosto, do que Camões, mas como é conhecidode todo o mundo, citarei os poetas latinos ou por se-rem mais concisos nesta matéria ou por não ser a lín-gua tão vulgar.

Pinta Virgílio a Dido amorosa de Eneias dominadada paixão de tal modo que não vê nem ouve outracausa, parece toda transformada no objecto que ama.

...est mollis flamma medullasInterea, et tacitum vivit sub pectore vulnus

Uritur infelix Dido... ... ...Solo domo moeret, vacua, stractis que relictis

incubat, illum absens absentem auditque, videtque

Perde-se nesse estado o ofício dos sentidos e até afala se embaraça mais; este estado somente no epi-grama de Catulo(49 ad Lesbiamque é a traduçãodaquela admirável ode de Safo, se acha admiravel-mente descrito:

Dulce ridentem, misero quod omnesEripit sensis mihi: nam simul teLesbia, aspexi nihil est super mi

Lingua sed torpet; tenuis sub artusFlamma dimanat; sonitu suopte

Tintinant aures: gemina teguntur lumina nocte

Neste estado muitos se deram a morte como re-fere Amatus Lusitanus (Cent.3, Curat.56 et Cent.5,Curat.84) os que vivem são devorados de zelos,de suspeitas, e nesse tempo diz Lucrécio (Lib.IV,vers.1117)

Labitur interea res et vadimonia fiuntLaguent officia atque œgrotat fama vacillans

Transforma esta paixão tanto estes desgraçadosdotados do melhor natural ordinariamente que pare-cem diferentes de si mesmos, e na verdade que o são,admirando-se todos com aquele Parménio de Terên-cio.

Dii boni, quid hoc morbi est adeon homi-nes immutarier

ex amore ut non cognoscas eumdem essehoc nemo fuit

Minus ineptus, magis severus quisquamnec magis continens

Produz todas as enfermidades do cérebro, causa amorte como o mais violento veneno. Relatarei algu-mas histórias menos conhecidas para que os médi-cos tenham matéria tanto para conhecê-la como para[a]conselhar a evitá-la.

Page 17: Dissertação sobre as Paixões da Alma

16 António Ribeiro Sanches

Refere Nicolau Túlpio (Lib. 1, Cap.22) que ummoço inglês enamorado de uma bela recusando-lhopara casar caíra cataléptico ficando imóvel comouma estátua.

Marcello Donato (Lib.3, Cap.13) [refere] que umcarniceiro casado proibindo-lhe o Bispo de continuarna mancebia em que vivia que se atrevera tornar a vera sua amiga[;] esta recusando recebê-lo ou por medoda lei ou por ingratidão, caíra em tão lastimosos la-mentos acusando-a de perfídia e de ingrata com tantofuror, e com tanta desesperação ajuntando as mãos,que naquele instante cai morto.

NasEphemerides de Alemanha ou Miscelania Cu-riosa, Decurs.3, anno 9 e lO, pag. 293, se lê que umsoldado enamorado de uma moça tinha ajustado comela de o ir ver em uma noute. Como lhe tardasse,levanta-se, procura encontrá-la, conseguiu achá-la eno maior furor dos amorosos abraços, dando um las-timoso grito, expira neles. Abre-se o cadáver, acha-se o coração suando sangue e muito coalhado entre ocoração e o pericárdio.

Bonsinius na suaHistória da Hungria (Lib.3, De-cad.3) relata que o Conde Euryalo enamorando-seem Sena de uma donzela, chamada a Vénus por ex-celência daquela cidade, fora também correspondidoque adquirira o objecto da sua pretensão e que sendoobrigado a ausentar-se, na despedida acabou subita-mente a donzela, ficando por toda a vida o Condetão melancólico que pelo resto da sua vida jamais oviram rir.

Eu abri o cadáver de uma donzela que se tinha afo-gado por haver sido recusado a casar com ela o seuamante. Com atenção e curiosidade indaguei todo ocadáver e não achei mais que [no] ovário direito al-gumas gretas como se fossem feitas apertando aquelaparte com a mão[;] estavam ainda sanguinolentas e atúnica exterior do ovário sensivelmente separada docorpo dele.

As constituições delicadas nos climas austraiscaiem em febres lentas, tísicas, em enfermidadesatrabiliárias, cirros e cânceres, tanto ocultos do úteroe ovários como dos peitos.

Fora copiar muitos lugares, tanto da história mé-dica como profana, se quisesse mostrar por observa-ções que esta paixão pode causar todos os males dossistema[s] dos nervos e das artérias. É certo que temo seu assento naquele langor e brandura do ânimo na-queles naturais mais maviosos e nos engenhos maisdelicados. É observação de Baco Verulamius (Ser-man fidelis, Cap.lO, de amore) que aqueles célebrescapitães da antiguidade, e mesmo dos nossos tempos,jamais foram tocados do furor desta paixão.

Para persuadir-se qualquer da desordem do juízonesta paixão leia-se Marcello Donato no lugar já ci-

tado acima[;] ali se verá que houve homens que ama-ram estátuas, árvores, vários animais e todos sabemos amores de Anacreonte.

Mas o que parece cousa incrível é que um cegocaiu nesta paixão por se lhe recusar o objecto queamava, que caiu maníaco[;] e não o crera se Lanzoni,médico italiano de tantas e verídicas observações onão comunicasse naMiscellanea Curiosa (Deccen.3,anno 9 e lO. pag.32).

A cura desta paixão merece uma atenção particu-lar [;] sendo tão comum e até agora tão pouco conhe-cida que deve entrar na consideração do médico prá-tico. Este considerará o degrau da paixão e o estadodo enfermo, a desordem já feita no ânimo e o quantoestão já alterados os humores do corpo [assim] comoos seus sólidos.

Logo no princípio, enquanto a paixão não causainsónias, ânsias, nem se sente aquele peso na bocado estômago, o melhor remédio é [a] ausência, fa-zer jornadas, viagens por mar[;] nesta mudança dear e variedade de objectos e principalmente se en-joarem, alimpa-se o estômago, adquire maior elas-ticidade o diafragma e todas as vísceras[;] muda-seaquela ideia amorosa do sensório comum. Quem nãotiver possibilidade para usar deste meio tome o con-selho de Baco de Verulâmio em todas as perturba-çõcs do ânimo. Diz este Aristóteles dos seus tem-pos que devemos conservar pela vida pacata e ânimotranquilo o contentamento que tivermos, mas que de-vemos fazer o contrário quando a tristeza, o cuidadoou qualqucr outra paixão da alma violenta nos fazviver ansioso[s] e possivelmente devemos exercitar-nos, ocupar-nos em trabalho corporal, mesmo poroutras paixões moderadas mudar as ideias ingratase fortificar o corpo por toda a sorte de movimentos.

Mas não bastam estes remédios quando já oamante estiver melancólico ou dominado por uma fe-bre lenta ou humor atrabil[i]ário[;] é necessário entãocurar o corpo porque existindo estes humores melan-cólicos já acres e podres incitam as ideias mais te-nazes do amor, das suspeitas, zelos e desesperação.Neste caso aconselham todos, com Helmontis, mer-gulhar na água fria subitamentc estes frenéticos amo-rosos mas com pouco efeito por último. É verdadeque mergulhando-se o terror da morte com os açou-tes fará mudar aquela ideia amorosa, ficará curado osensório comum mas de nenhuma sor-te o corpo[;]fica nele ainda a atrabílis e ela produzirá os mesmosefeitos.

Cura-se também o ânimo excitando paixões con-trárias àquela dominante. Quem pudesse inculcar oódio do objecto amado, e conservar por mil modosesta ideia e fortificá-la, extinguiria aquela do amorcontanto que se curassem os efeitos morbosos pro-

Page 18: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 17

duzidos por ele. O mudar de clima, o comer frutosdo Estio com regra e debaixo da direcção de um pru-dente e douto médico, seria a cura naqueles que nãopodem fazer longas viagens nem jornadas dilatadas.

Pertence a esta classe tratar da ira. As suas espé-cies são várias. Incluímos a escandecência ou o quechamamosagastar-sena classe acima das paixõesmoderadas que servem para conservarmos a saúdeperfeita. Estes primeiros movimentos da ira é umdesejo de evitar a ideia do mal presente que con-cebemos. A natureza deu este movimento em mui-tas queixas como remédio; todos os supurados dobofe, os hidrópicos, os melancólicos e os caquéticosse agastam facilmente. Estes primeiros movimentosservem para aumentar a circulação do sangue[;] 1 ad-quirindo o coração mais forças, fazem-se as secre-ções da cólera, da urina e da transpiração. Os efeitosdesta paixão, sendo moderada, sem desejo de vin-gança, fazem os mesmos eleitos no corpo que faz aalegria e a consolação do ânimo, as quais referimosacima. Não deve o médico reprimir, nem pelos prin-cípios médicos nem dos teólogos. estes movimentosinvoluntários da cólera nas enfermidades referidas,deve antes prevenir os assistentes que servem de re-médio naquelas doenças. Como a companhia de umíntimo amigo faz abrir o coração, como dizemos, edes[en]rugar o rosto, assim o agastar-se ou meter-seem cólera inadvertidamente produz os mesmos efei-tos no corpo.

A ira é um sumo desejo de castigar a quem ofen-deu. O ódio é uma ira antiga, a inimizade e desejo devingar-se observando a ocasião, e é discórdia um ran-cor procedido de aversão e antigo des.ode vingar-se.Os efeitos desta paixão, se forem justos, com espe-rança certa de vingar-se, não é mortal, a consolaçãoque recebe o ânimo de alcançar o que desejou recom-pensa muita parte do dano que causou aquele tumultono ânimo e no corpo.

A ira junta com a desesperação de vingar-se,aquele que fica dentro do peito, que os Latinos cha-mamirœ memorescausarão a morte ou fluxos de san-gue, aneurismas, pólipos do coração e das artériasmaiores, lebres ardentes, cálculos na bexiga do fel,vómitos e diarreias de cólera.

Os efeitos desta paixão são diametralmente opos-tos àqueles do medo, nestes todos os nervos se encur-tam e todas as partes sólidas por último vêm a perdera elasticidadc. Com a paixão da ira aquela ideia re-presentada vivissimamente no sensório comum arre-bata a si todas as faculdades tanto espirituais como asdo corpo. Todas obedecem à tirania daquela potênciaque adquiriu as forças juntas de todo o corpo sensi-ente e movente e naquela acção se combinam todasas potências delas. Mostra-se pela cara incendida,

pelos olhos vibrando fogo, pela voz rouca e entoada,pelos tremores dos beiços, pelo morder das mãos ebater com elas, e com os pés. O pulso é forte, ve-loz, cheio, a boca seca e virada, todas as secreções sedetêm e todo o corpo se conhece alterado, e enfermo.

Neste estado muitos acabaram a vida. Valentini-ano I deitando em rosto a ingratidão aos deputadosda Boémia, tanto se transportou de cólera que emu-deceu e logo caiu morto. Venceslau, rei da Boémia,tirando de um punhal para matar um traidor, detidopelos seus por não manchar a Majestade, nos seusbraços caiu apopléctico no qual acidente acabou avida, o que refere Marcello Donatoubi supra. Domesmo modo acabou o imperador Nerva por se haverirado contra um régulo. Tais clamores, tais agitaçõeslhe incitou esta paixão que logo caiu em profundís-simos suores, logo depois em horripilações nas quaisacabou a vida, como se lê em Aurelius Victor (in Epi-tome).

Causa palpitações mortais que Zacuto Lusitano(Prax. admir. obs.147) (como) observou em umamulher sumamente irada. Também causa dificuldademortal de respirar como refere Platerus,obs.Lib.1,pag.48.

Causa hemorragias mortais, e aquelas sem remé-dio, são as que sucedem nas mulheres pejadas. NaMiscelânea Curiosa, decc.3 anno 9, ele diz que umamulher pejada, por se haver irado com excesso, caíraem um fluxo de sangue sem remédio.

Hyeronimus Welchius, citado por Schelamerus,de animi aftectibus, pag.179, [conta] que um homem,por se haver transportado na ira mais atroz, caíra derepente morto[;] acha-se o pericárdio todo cheio desangue por haver roto a artéria aorta.

Uma mulher colérica tanto sentia osameaços,tanto se encolerizava com eles que logo lhe corria osangue pelos bicos dos peitos. Stalpart Wander-Wiel,tom. I, obs.79.

Esta paixão fez mudo por alguns dias curando-seaquela paralisia por um vomitório.Misc. Curiosa(dec.3, anno 4, obs.1O3) aonde se poderá ver queesta paixão na sua violência causa febres efémeras,biliosas, diarreias, icterícias.

A ira suprimida não mata subitamente mas comoveneno lento faz terminar a vida. Refere GuilhelmoHarveo,Exercitation 2a. de motu cordis, p.149, edit.in 4o que conhecera um homem de bem [a] padecerpor alguns anos todos os sintomas de uma violentaasma da qual fora a causa uma afronta feita por umpoderoso. Sofreu por muitos anos: morreu [e] acha-se o coração tão dilatado que parecia de boi e a artériaaorta e as jugulares dilatadas excessivamente e quasecheias de sangue coalhado.

Page 19: Dissertação sobre as Paixões da Alma

18 António Ribeiro Sanches

O presentâneo remédio contra a ira é o medo.Enfureça-se o mais destemido, agite-[se] mais queum frenético, saia-lhe o fogo dos olhos, ameace como punho fechado, arranque do interno do peito amaior medonha voz e ao mesmo tempo apareça ou-tro semelhante com a espada nua arrimada ao peitoe que com voz rouca o atordõe. Logo aquele colé-rico mudará de cor inflamada no rosto, empalidece,de voz sonora em submissa, o pulso será já pequenoe intermitente e ficou curada esta paixão em um ins-tante pelo medo que é a sua contrária.

Bem conheceram os legisladores estes remédioscontra os ladrões de estrada e malfeitores, Não orde-naram leis para persuadir a virtude, decretaram cas-tigos e a perda de vida [para] não só cumprirem a leide Talião, mas que a sua vergonhosa morte causassemedo aos mais cidadãos. Por isso dizia o grande Bo-erhaave que um algoz fazia os homens mais virtuososque cem pregadores. As insígnias de maior crédito eautoridade que conheceram os Romanos consistiamno medo. Eram feixes de varas para castigar os levescrimes acompanhados de machados para executar oúltimo suplício.

Aqueles que por constituição particular são colé-ricos devem usar de dieta vegetal, dormirem o maisque puderem, evitar exercícios violentos, diminuir aatenção dos sólidos por banhos de vapor e dormir emcama mole.

Tenha cuidado o médico de jamais purgar com le-nientes nem dar vomitórios àqueles que suaram comvómitos, cursos de cólera ou do fel, depois de sofre-rem esta paixão. Neste estado todo o corpo está con-vulso, os nervos tenríssimos, e irritá-lo seria acelerar-lhe a morte que se seguiria às convulsões das vísce-ras e do diafragma com dores horrendíssimas destaspartes. Neste caso o ópio desfeito em vinagre, emul-sões [de] soro de leite seria o remédio. Melhor quetudo banhos de vapor. Veja-se Theodorico Hoffman,tom.1, pag.190. Edit. Geneve.

Ainda que o enfurecer-se e agastar-se com desejode vingar-se seja prejudicial à nossa saúde, esta pai-xão incitada por um prudente médico poderá curarmuitas enfermidades que tocam a natureza da parali-sia e fatuidade.

Conheceu Hipócrates servir de remédio a váriosmales a cólera naqueles que abundam de humores pi-tuitosos. NasEpidemias, Lib.2, §4, pag. 705. Tam-bém no tratadodas fístulas, tom.2, pag. 685, Edit,Vanderlinden, manda irritar os narizes até espirrar eincitar a ira na relaxação do intestino recto. NaMis-cellanea Curiosa, decurs. 2, anno 5, pag.23, obs.34,se refere que um velho paralítico de um braço foravexado de seus filhos de propósito a tal extremo que

o velho enfurecera de raiva e que se achara restituídoda paralisia com que estava.

Ouvi dizer a Boerhaave que um médico árabesendo mandado para curar a mulher de um califa, de-tida da paralisia de um braço, pedira perdão ao ma-rido para cometer à enferma um desacato. Impetrou alicença, chega perto da enferma e, quando ela jamaiscuidava, levanta-lhe a saia de repente. Enfureceu-sea enferma e ficou curada.

São comuns na História Médica as observaçõesem que nos aprendem que as intermitentes, quartãs,gota e artrites acompanhadas de humores pituitososforam curadas por acaso por esta furiosa paixão.

Sucede muitas vezes caírem os hipocondríacos na-quele estado de indiferença sem desejos nem aver-são naquela total indiferença e jamais quererem ounão quererem. Naquele estado parece que os espíri-tos animais não continuam o seu curso até [a]o dia-fragma, ponteiro, por dizer assim, que mostra o gostoou o desgosto que percebeu a imaginação. Estado omais miserável da vida porque os que chegam a cairse dão a si a morte[;] contemplam, falam com toda aprudência, não se lhes conhece erro nem incoerênciano discurso mas falta-lhes aquele querer ou não que-rer. Duvidaram muitos do Plínio naquele celebradodito: Est aliquis morbus per sapientiam mori, (Lib.7,cap.50). O certo é que em Inglaterra esta enfermi-dade é comum e que até agora não se lhe tem achadoremédio.

Parece que se neste estado se incitasse a paixão daira injuriando ou afrontando aqueles em que se ob-servassem os sintomas, assim que poderia determinaraqueles espíritos tórpidos para circularem.

Do mesmo modo parece que seria útil usar destapaixão naqueles fátuos e mentecaptos que caíramnaquela consumição do sensório comum depois doamor insano, das manias. Vi mulheres depois doparto virem fátuas por se haverem evacuado dema-siadamente por sangrias e purgas, e remédios refres-cantes como o hetro.

Sentirei por extremo que não pudesse enunciar-mecom tanta clareza e graça quanta requer a matéria quevenho de tratar. [As]seguro a VM que é o trabalho emeditação de muitos anos e que não li A. até agoratratasse esta matéria tão plenamente como tratei; nãodigo doutamente nem com a ordem e elegância quemerecem as paixões. Mas se VM puder do referidotirar alguma utilidade para o bem público dou porbem empregado todo o tempo que nele trabalhei emeditei.

Viu VM a origem das paixões da alma, o seu as-serto e os efeitos vários que produzem no corpo hu-mano; viu também como uma paixão pode servir deremédio a outra e como podem muitas, ordenadas e

Page 20: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 19

incitadas com prudência e arte, curar muitas enfer-midades. Tratei daquele princípio sensiente e mo-vente de todo o corpo e quão grande eficácia tem paraalterá-lo até o fazer perecer. Como, pelo contrário,quanto pode a alegria e a esperança para prolongar avida.

Falta-me agora tratar daquelas disposições corpo-rais ou hereditárias ou adquiridas que induzem a ge-rar as paixões da alma. Se até agora foi incompreen-sível como a alma racional sendo espiritual pode mo-ver um corpo, agora tocaremos outra dificuldade nãomenos insuperável. É esta[:] que as disposições docorpo possam afectar a mesma alma. Confessando aminha ignorância deixo esta matéria a quem não temnecessidade de pensar no útil que vou escrever.

Já vimos acima que a mãe pode comunicar à suaprole as impressões das paixões da alma que pade-ceu no tempo da prenhez. Felipe Salmuth (obs.38,pag.75) refere que uma mulher prenhe caíra em talpaixão de furtar sem necessidadc que se não podiaconter dela. Era pessoa de bons costumes e foradaquele estado nunca fora perseguida daquele estí-mulo[;] pare uma filha tão inclinada a furtar que foipreciso fechá-la.

Em Marccllo Donato (Lib.6, Cap. 1) [lê-se] que afilha de um antropófago escocês depois da idade deum ano [foi] criada entre os escoceses civis. Comochegasse à idade de onze anos matou uma criançapara comer-lhe a carne com[o] os seus pais se ali-mentaram.

É tão desregrada e tão insolente a imaginaçãodas mulheres prenhes que muitas chegaram a matarseus maridos para satisfazerem o danado apetite decarne humana. Quem quiser ver a história destas leiaSchenkius,Obs.Méd. Lib.6, pag.566.

Além das particulares disposições do cérebro comque nascem muitos, é certo que a cada temperamentoinclina as faculdades da alma a amarem ou aborre-cerem certos objectos com maior eficácia. O climaonde nascemos, os ventos que reinam neles e a expo-sição ao Norte ou ao Meio Dia faz efeitos tão remar-cáveis nos ânimos daqueles habitantes, o que se podever em Hipócrates naquele livro onde trata do ar, daságuas e das situações de cada terra.

Também a dieta e familiaridade daqueles com quevivemos podem mudar tanto o nosso temperamento,e por consequência as nossas inclinações, que pelodiscurso do tempo vimos diferentes de nós mesmos.Galeno se atrevia pela dieta apropriada a cada tempe-ramento, pela mudança de clima, mudar totalmenteas inclinações mudando primeiro o corpo. Diz ele,[em] quod animi mores corporis temperamento se-quartur (Cap.9):

Illi ergo qui admitere gravuntur, alimen-

tis effici posse aliquos temperatiores,aliquos magis dissolutos, aliquos in-continentiores, aliquos modestiores,alios audaces, quosdam meticulososmaxiccetos et comes, contentionum,ac rixarum amantes, nunc soltem re-sipiscant at que ad me veniant, utque ipsos comedere, quæque portareconveniat, discant et moralem enimPhilosophiam sic maxime juvabun-tur et præterea secundum rationalesanimi facultates ad capecendam irrtu-tem profierint prospinatiores memo-ria tenaciores descendi avidiores itemque prudentiores redditi. Prœter ciboset potas et æris temperaturas insuper-que regiones quales de ligere, qualesvitare et ascesit ipsos docebo.”

Este modo de curar e de fazer de maus naturais,bons e prudentes, e de estúpidos, espertos e inteli-gentes, se perdeu totalmente. Toda a cura são açou-tes e pancadas e o medo é o que serve a reprimir-lhes aqueles maus ímpetos mas jamais a mudar-lhesa natureza. Já notei no princípio desta dissertaçãoa causa porque os médicos largaram este método decurar. Seria utilíssimo à Religião e à República quehouvessem médicos que soubessem curar tão bem asenfermidades do ânimo e terem uma Farmacopeia apropósito para mudarem as constituições como a têmpara curar as enfermidades.

Ninguém poderá negar que as nossas inclinações,juÍzo, modo de obrar e tratar na sociedade civil sealtera e perverte pelos alimentos e bebidas, e modode usar deles. Depois de um jantar abundante nossojuÍzo é totalmente diferente daquele estado quandoestamos em jejum. O mais prudente e o mais si-sudo homem se beber uma porção de vinho sem ser[a]costumado a bebê-lo, sentirá todas as potências daalma mudadas. O ópio e a semente da datura perver-tem o juízo, representa a fantasia mil ideias agradá-veis, ficam os sentidos exteriores atados, estúpidos,e todo o efeito destes venenos faz os seus efeitos naimaginação.

A fome e a sede nos incita à cólera e em jejum nosagastamos facilmente, recusamos favorecer e con-descender à vontade alheia[;] por esta causa os ma-gistrados e aqueles que têm ofícios públicos não de-vem entrar em exercício do seu cargo no estado deinacção, devem comer tanto que não sintam a mo-léstia por não haver comido. Os pretendentes sabembem que solicitar o seu negócio depois de jantar é otempo mais oportuno para consegui-lo que pela ma-nhã.

Page 21: Dissertação sobre as Paixões da Alma

20 António Ribeiro Sanches

Mas se a comida, bebida, [o] ar alteram o tem-peramento e aquele modo de pensar, é certo que asenfermidades dispõem mais potentemente o ânimo acertas paixões alterando novamente o corpo.

Todos observaram aqueles desordenados apetitesdas donzelas naquele tempo que precede a evacua-ção dos mênstruos. Todo o corpo se muda por aquelaabundância de sangue que a natureza intenta evacuar.Todos os sentidos se incitam e pervertem, e com elesa imaginação. Apetecem carvões, gesso, sal e às ve-zes imundícies tão fora do que pode nutrir e conser-var o corpo que é necessário assentar que deliram na-quele tempo, porque nem o castigo nem a ideia domal em que poderão cair as faz desistir de comeremo que se lhes de defende.

A cada enfermidade e a cada doença é própria umapaixão da alma, e o homem enfermo e o homem emperfeita saúde parece que são dous homens diferen-tes. Somente Aretæus Capadox notou o estado daalma nas doenças. Copiarei aqui parte das observa-ções que fez nelas. As paixões inseparáveis da do-ença de escarrar sangue (hemoptises) são a tristeza, adesconfiança e o cuidado, que é cousa notável nesteestado, [por ]que jamais desesperam curar-se aindaque estejam perto da morte (de caus. et signis acutorLib.2, cap.2). Na febre ardente como que o ânimoé intrépido e constante, com o juízo desembaraçado,perspicaz e que adivinham os futuros que prognosti-cam aos circunstantes, quando hão-de morrer e de-claram muitas coisas do futuro.

Refere Bartholin (Acta Hoffniensia, vol.5,pag.162) que caíra em uma febre ardente um rapaztão estúpido, tão preguiçoso que não aprenderaa mínima cousa na escola, sem embargo de serensinado pelo mesmo mestre que seus irmãos comfeliz sucesso. No terceiro dia da febre começou adelirar e a discorrer com tal acerto da vaidade doMundo e da miséria humana, com tal eloquênciae capacidade, que se admiraria o mesmo Sócrates.Continuou neste estado até [a]o nono dia no qualmorreu.

O mesmo Aretæo,de Caus. et Signis diuturno-rum, Lib.1, Cap.2na cefaleia ou enxaqueca (VM lheporá o nome em português), diz ele, aborrecem avida e desejam morrer. No mesmolib. cap.5, tra-tando da melancolia diz: facilmente se agastam, tudolhes é contrário, tudo os atemoriza, arrependem-selogo depois do natural que mostraram, são mudá-veis, pouco curiosos da limpeza, solícitos às vezesde cousas de pouca consequência. São avaros maslogo depois liberais e às vezes pródigos, distribuindosem razão nem ordem, não por força da reflexão maspela natureza do humor de que estão enfermos [o]que os reduz a estas variedades. Aborrecem os ho-

mens, ausentam-se da sua companhia e, amaldiço-ando a vida, desejam morrer.

No mesmoLib. Cap.6, tratando da mania diz:têm todos os sentidos espertos, são suspeitosos, fa-cilmente se agastam furiosamente sem causa algumae do mesmo modo se entristecem. Outras vezes sãoalegres... se o mal aumenta são luxuriosos por ex-tremo... Acham-se alguns destes furiosos que despe-daçam e ferem o seu corpo no piedoso pensamentoque por aquelas feridas serão agradáveis aos Deuses.Nos mais ofícios da vida são modestos e comedidos.

O mesmo A. noLib.2, Diuturnorum, Cap.1, tra-tando da hidropisia, pinta assim as paixões que seobservaram nesta enfermidade. Grande cuidado temainda das coisas de pouca consequência. Um grandedesejo e incrível de viver, uma tolerância em sofreralém do que se pode imaginar nâo provêm, na ver-dade, nem da esperança nem da alegria de ânimo,como naqueles que felizmente vivem, mas provêmda natureza do mesmo mal[;] do que mais devemosadmirar-nos do que inquirir da causa deste maravi-lhoso efeito o que é na verdade remarcável.

Este é o único autor da antiguidade e pode ser[dito] que depois dele ninguém tratou das paixõesda alma próprias a cada enfermidade, que tratou estanova sintomatologia. Daqui vemos que os diferen-tes estados do nosso corpo fazem nascer inclinaçõesou aversões diferentes daquelas quando gozamos deperfeita saúde.

Dissemos acima que o sentimento universal resi-dia namedula oblongatae que era o termo e o as-sento de todas as sensações ou elas procedessem dossentidos ordinários ou do sentido da fome, sede, dor,ânsia e inquietação. Dissemos também que há ner-vos dedicados a uma certa sensação como os ópticos[pois] são dedicados somente para levar ao sensóriocomum as sensações da vista e não do ouvir, e assimdos mais. Dissemos também que os nervos dedica-dos às vísceras como o coração, diafragma, boca doestômago e todo ele, o pâncreas, o fígado, o baço eo mesentério não levam ao sensório comum a sen-sação da dor. Levam só a sensação grata ou ingrataque chamamos gosto, contentamento, ou ânsia, ansi-edade e inquietação.

Dissemos também que os nervos não sentiam ouexercitavam o seu ofício enquanto levam consigo apia e dura madre como bainhas de que vêm forradosdo cérebro, e que logo que chegam à parte aonde aca-bam e se terminam que aquelas bainhas se espalmampelas ditas partes ou vísceras formando-se em túni-cas, e que o nervo se estende e espalma pelas mes-mas partes e que daquele modo sente e exercita o seuofício comunicando a sensação impressa ao sensóriocomum.

Page 22: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 21

Considere VM quantas variedades de sensaçõesgratas ou ingratas se poderão causar pela imensa di-versidade de humores que se geram no corpo pelasenfermidades, principalmente naqueles nervos quese distribuem nas vísceras como dissemos acima.

Além disso que variedade imensa não se acha noscadáveres tanto na organização das partes como nonúmero delas, sua situação, e com outras mais dife-rentes qualidades.

Refere Filipe Salmuth (Cent. 1, obs.23) que dis-secara dous cadáveres[;] no primeiro que achara trêsveias seminais do lado direito, que todas saíam dotronco da veia cava as quais se terminavam no tes-tículo. No segundo, que os rins eram monstruosa-mente grandes de tal modo que pareciam na grandezasemelhantes ao estômago. Estes, enquanto viveram,passaram a vida infamemente nos desordenados ape-tites da luxúria. Bellini (tract. de renibus) refere umcaso com pouca diferença do primeiro.

NasTransações Philosophicas, no.492, [lê-se que]se achou no cadáver de uma mulher a veia espermá-tica esquerda extremamente dilatada com a veia cavanaquele lugar entre as ilícias mui estreita. Não se re-fere o autor da observação se esta mulher fora na vidatão luxuriosa como mostrava esta conformação.

Acusamos temerariamente de viciosos aquelesque não podem corrigir-se da frequência dos actosluxuriosos, da bebedice, de jogar as cartas e furtar.São estes vícios enfermidades, na verdade, do ânimoe que têm a sua origem na conformação e nos humo-res do corpo. Nestes casos pertence ao teólogo de-cretar a consciência e instruir como se pode alcançara graça divina para curar aquele ânimo e aos legis-ladores retê-lo pelo medo, e pelo terror dos castigospúblicos, mas ao médico pertence ou curar o corpoou induzir outra enfermidade que produza paixõesdiferentes.

É notável a história certa que refere aquele dou-tíssimo médico e polishistor(’7), Nauday, no seu tra-tado,Coups d’État, que um médico, apercebendo-seque sua mulher lhe era infiel e que o seu natural vi-cioso era causa da amizade ilícita em que vivia, queestando na cama de noute com ela de propósito se le-vanta assustado, gritando que havia ladrões em casa,pega na espada, dispara uma pistola, mete tudo emconfusão e toda a casa em ruído. Sossegado que es-tava tudo, vai tomar o pulso à mulher, diz-lhe quetem uma grande febre, que o susto que tivera lhe se-ria mortal se não se sangrasse. Logo mesmo de noutea faz sangrar. No dia seguinte repete a evacuação edeste modo continuando e fingindo a doença, a pôsem tal estado, fraca e pálida, que a pobre já não tinhaforça para pensar aos seus amores. Deste modo estemédico capaz soube curar a enfermidade de ânimo

alterando o corpo e fazendo-o cair em um estado tãocontrário ao amor.

Nas observações de Savoyard, em francês, se achaa história da dissecação de um cadáver no qual seacharam todas as vísceras mudadas de sítio[:] o ven-trículo esquerdo do coração estava inclinado para odireito, o fígado estava no lado esquerdo e o baço nolado direito, o fundo do estômago e o piloro estavaminclinados, e postos no lado esquerdo, o intestino co-ecum estava em cima do rim esquerdo. Outra ob-servação semelhante me lembro haver lido e notadomas não me lembro agora aonde, mas este estado dasvísceras situadas ao revés não é raríssimo. Não melembro que os Autores destas dissecações notaram asinclinações e os vícios do ânimo daqueles enquantoviviam. Acusamos um menino canhoto de má edu-cação mas falsamente. Eu vi trazer o braço esquerdocosido no vestido para se acostumar o direito mastudo foi inútil para se acostumar o menino e depoisrapaz que conheci. Sempre ficou usando do braçoesquerdo[;] poderá ser que nestes as vísceras estejamao revés.

Acusamos de cobardes e de estúpidos e pre-guiçosos não considerando que a organização é acausa destes defeitos. Refere Nicolau Túlpio (Lib.l,Cap.27) que um homem medroso por extremo e es-túpido, enquanto vivera, viera a morrer[;] abre-se ocadáver, acham-se os ventrículos anteriores do cére-bro cheios de água e no coração esquerdo um grandepólipo que tapava a metade da capacidade da aorta.

Um homem extremamente melancólico, temendodia e noute as almas dos defuntos que o atormen-tavam, vive continuamente entre religiosos de vidaexemplar. Morre por último. Acha-se-lhe todo ofígado negro, duro, e o bote do mesmo tão molecomo se fosse edematoso. Veja-se Boneto,sepulch-ret. anatomia, Lib. 1, obs.32..

Um homem fátuo por toda a vida [morre.] Abre-seo crânio, acha-se a duramadre toda óssea,História daAcademia de Ciências de Paris, antes do ano 1699,(tom.2, pag.251).

Um menino muito engenhoso, com juízo extrema-mente agudo e temporão, começa a sentir acidentesepilépticos [e] morre de idade de 27 anos. Acha-sena fouce da duramadre grande quantidade de peque-nos ossos.

Um homem nobre de vida a mais irregular e crimi-nosa, sempre com furores melancólicos, vem a mor-rer por último[;] acha-se nas túnicas do mesentérioum abcesso.

Milhares de experiências confirmam que quandoo baço se cortou a um cão que vêm extremamentesolazes. Aqueles melancólicos que chegam ao baçocirroso são incontinentes com excesso.

Page 23: Dissertação sobre as Paixões da Alma

22 António Ribeiro Sanches

Uma mulher colérica com extremo, enquanto vi-via [era] melancólica. Morre, faltava-lhe o baço, acor da pele de todo o corpo era quase negra.

Se até agora os Autores que deram a história dasdissecações dos cadáveres notassem as paixões davida de cada um e ao mesmo tempo notassem as irre-gularidades da conformação e do que acharam de ex-traordinário neles, é certo pudera nesta ocasião pro-var mais distintamente que todos aqueles vícios do-minantes que temos que não dependem só da má cri-ação nem do costume. Dependem, na verdade, daboa ou má conformação do corpo e do estado dosnossos humores.

Eu cuidei há muitos anos que a maior parte davirtude de Sócrates que dependia da sua excelenteconstituição. Eu vi e tratei com os tártaros de Baxkir.São de religião maometana, vivem sempre no campo,comem leite e carne e jamais pão. São pacatos, fa-lam pouco, sempre sem mostrar nem ódio nem amor,com juízo claro e uma sagacidade admirélvel para oque lhes convém. Estes corpos assim formados nãoconhecem aquelas brilhantes paixões. Estas vêm dafraqueza dos nervos e da sua muita elasticidade.

Esta consideração me fez muitas vezes admiraraquelas palavras de Salomão:Puer eram ingeniosuset sortitus animam bonam. O bem que fazemos vemde quem nos deu as disposições do corpo tão perfei-tas que todas as suas acções são feitas à sua medida.

Assim grosseiramente meu Amo. e Snr. quis mos-trar quão erradamente julgamos daqueles génios ex-travagantes, cesbéticos, desordenados, acusando so-mente os vícios do ânimo sem reparar que no seucorpo alterado, enfermo e mal conformado têm a ori-gem. Assim ponho os médicos na necessidade decurarem estes vícios ou pela dieta e diferente modode viver ou fazendo mudar de clima, como nós fa-zemos mandando os moços de vida dissoluta para aÍndia e mais Colónias, o que aconselha Galeno nolugar citado[;] ou introduzindo diferentes enfermida-des as quais tenham a propriedade de incitar o ânimoa certas paixões contrárias àquelas que são crimino-sas, não deixando, como fazemos, tudo entre as mãosdos teólogos e dos jurisconsultos ou dos pais poucoavisados que todos os vícios dos filhos querem curare emendar a pancadas. Esta parte da Medicina eranecessário ressuscitá-la e fazer renascer a doutrina fi-losófica da Grécia com a de Asclepíades, de AretæoCapadox e Galeno.

Mas agora entrarei a tratar daqueles efeitos queproduzem os humores e várias conformações na-quele fim dos nervos e diafragma para que se vejaaquele admirável círculo do corpo humano, tanto nosistema nervoso como no sistema das artérias e dasveias.

Aqueles miseráveis epilépticos raras vezes caemnaqueles medonhos insultos sem serem advertidos deum vapor que se lheslevanta(como eles dizem) deum pé e de uma perna ou de um braço, tanto quesentem aquela aura fria. Como estão ainda com oseu juízo clamam por ajuda, apertam com a mãoaquele lugar. Vai subindo aquela sensação ingrata e,logo que chega ao diafragma, no mesmo instante per-dem o conhecimento, caem, convelecem, cuja pin-tura dessa miséria humana se poderá ler em AretæusCapadox,cap. De Epilepsia, em desafio ao homemmais intrépido que lendo-a com atenção não sejaobrigado a comover-se.

Tanto Galeno como os autores da História Médicaobservaram o referido. Mandaram continuamentetrazer uma cord(e)a forte com uma fivela naquelaparte aonde se levanta o vapor. Logo que começa asentir-se de[ve] apertar a corda tanto quanto for pos-sível até causar uma violentíssima dor o que serve àsvezes de remédio.

A mais remarcável história que acho nos observa-dores é nos Actos da Sociedade de Edimbourg (Vol.4,pag.416, Edit. Edimb.). Aqui a traduzirei do inglêspara nela se ver o estado do ânimo e das paixões, oque não achou necessário de citar M. Vanswiten nocomentário dos aforismos de Boerhaave.

Uma mulher de idade de trinta anos tinha sido epi-léptica pelo espaço de doze. Os acidentes, no prin-cípio, vinham cada mês, e nos últimos anos vinhamquatro e cinco vezes por dia [e] duravam ordinaria-mente uma hora e, às vezes, hora e meia. Tão extra-vagante e tão ridículo veio o seu juízo que não eracapaz nem ainda de governar a sua pobre economia,inconstância, pouca consideração, nenhum decoro.Vários foram os remédios que tomou como evacuan-tes e remédios antiepilépticos, mas tudo debalde por-que a enfermidade cada dia se tornava mais terrível emais rebelde. O insulto sempre começava por baixoda barriga da perna e em um instante acometia a ca-beça, caía por terra, começavam as convulsões e a es-puma na boca, com distorções do pescoço e dos maismembros. Uma vez, diz Mr. Short que é o autor, queeu estava falando com ela, caiu no insulto, examino aperna [mas] não achei nem tumor nem vermelhidãoe [estava] em tão bom estado como a outra. Conside-rando que ali residia causa do mal, tomo de um pos-temeiro e cortando naquele lugar, na profundidade dedous dedos, encontrei (com) um corpo duro que se-parei dos músculos e cortei com uma tesoura[;] exa-minando vi que era um gânglio tão grande como umagrande ervilha. Estava pegado a um nervo ao qualcortei pelo meio. Logo que cortei o nervo e tirei otumor se terminou o acidente [e] grita a mulher que

Page 24: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 23

estava sã. Em pouco tempo adquiriu as suas forçastanto do corpo como de juízo.

Aqui tem VM que existem fora do cérebro, nofim dos nervos, as enfermidades do cérebro depoisda vertigem até à apoplexia e depois da tristeza ouescandecência até [a]o terror e ao furor. Destruídoaquele fim de nervo ou mudado, fica curado o corpoe o ânimo.

Já em outro lugar disse o que observou Hipócratesnos males das donzelas antes dos primeiros mêns-truos (de virginium morbis)[;] quando se tem geradotanta quantidade de sangue que é supérfluo à nutri-ção, a natureza se esforça para expulsá-lo pelas arté-rias do útero[;] estas resistem, então o sangue recuae acomete o diafragma e logo imediatamente à ca-beça, ou com delírio às vezes amoroso ou fatuidade.“Tunc sanguis non habens affluxum, prœ multitudine,resilit ad cor et ad septum transversum. Cum igiturhœc repleta fuerit, cor factuum fit e fatuitate torpedo,postea ex torpedine delirium”. Já vimos os efeitosque faz o amor intenso nos ovários. Vimos tambémquando as partes genitais estão túrgidas, com muitosangue, como agitam todo o sensório comum. Quan-tas queixas histéricas acompanhadas de tão várias eextravagantes paixões da alma, dependem do estadosão ou enfermo dos ovários, do útero e das tubas falo-pianas. Todas estas partes estão tão tecidas de nervosque nelas se terminam que é cousa admirável aquelesumo consenso entre o útero e o sensório comum ouorigem dos nervos. Os sintomas se mostram no dia-fragma em todo o seu domínio que são as vísceras[;]ali se observam angústias, dificuldade de respiração,náuseas, vómitos, flatos, borborigmos, cólicas, flu-xos de urinas brancas como água, todos estes efeitosprocedem daquela sensibilidade dos nervos. Os re-borantes, dieta, a proprieda[de] de jornadas e vidaalegre, são os remédios destas queixas.

Antes dos insultos da gota e das hemorróidassente-se um peso desagradável na boca do estômago,incha-se, sentem-se flatos, borborigmos, o sono in-terrompido[;] aparece a gota em um pé ou a evacu-ação das hemorróidas, todos estes sintomas desapa-recem. Aquele humor gotoso que se tinha nas vísce-ras, posto em movimento, altera e pica os nervos domesentério que são os que se comunicam com os dodiafragma e causam aqueles sintomas como o sanguedas hemorróidas antes de sair.

Não sabemos a infinidade dos modos como osnossos humores degenerados podem ofender o cére-bro e obrigar-nos a pensar mais vividamente umasideias do q[ue] outras. É certo, pelo que temos refe-rido, que se geram em nós tais disposições, ou noshumores ou pela organização que ofendem o fim dos

nervos, que estes comunicam com o diafragma e quelogo o cérebro sofre os males que este lhe comunica.

De dous modos se curam as desordens do sensó-rio comum e aquelas representações vividíssimas quedominam a consciência totalmente[:] a primeira, quefaz o seu efeito imediatamente no ânimo, excitandoa dor ou dores intensas que façam subverter ou mu-dar aquela vivíssima ideia ou excitando tal afliçãomortal no ânimo que se dissipa a mesma vivíssimaideia na qual delirava. O segundo modo é mudandoo corpo de tal maneira pela dieta e pelos remédiosque, produzindo-se novo estado do corpo, se produ-zam também novas ideias. Explicarei todos estes mé-todos e acabarei esta dissertação mais longa do queme propus no princípio.

Ouvi contar a Boerhaave que um doutíssimo ho-mem melancólico caíra no delírio que tinha as pernasde vidro pelo que sempre estava assentado por temerque caminhando se quebrassem. Um dia, por acaso,a criada varrendo, por mau jeito, deu tal pancada naperna do pobre melancólico que o feriu. Com a forçada dor mudou-se aquela ideia que tinha e ficou cu-rado dela, estando já persuadido que as suas pernaseram de carne e osso.

Costumam nos hospitais dos doudos, tratar os ma-níacos ou furiosos como bestas feras à força de açou-tes, e de castigos. As dores que existam nas partesaçoutadas é verdade que mudam aquelas ideias dou-das como lhe chama Helmontis. Vêm a si e tanto quevêem vir o seu algoz, logo falam razoáveis.

Este modo de curar é mudando directamente aideia douda por uma sensação violenta na[s]cida nofim dos nervos[;] fica curado o pensamento por al-guns dias mas ficando os mesmos humores ou melan-cólicos, ou atrabiliários, ou venenosos, logo tornama cair na mesma doudice.

Naqueles dous A.A., Aretæus e Tralianus, quandotratam da melancolia, se podem ver toda a sorte dedelírios estravagantes[;] parece que a causa daquelessintomas e desordem de ânimo não procedem mais[do] que do humor melancólico que reside nas arté-rias e veias que estão debaixo do diafragma até àsveias e artérias ilíacas. Enquanto estas não estiveremlimpas do que lhes é nocivo sempre desordenarão aspotências da alma.

Sem saberem o que fazem os mestres dos meni-nos, castigam a palmatoadas e açoutes aqueles quesão rudes e difíceis a aprender. São necessáriosos castigos nos meninos [e]stúpidos de constituiçãogrosseira natural, violento crusteio , que se não movenem pelo louvor nem pela vergonha. Aquela dor ex-cita aquele sensório comum duro e estúpido de nas-cimento e o faz mais delgado (deixe-me VM assimdizer lhe peço) e mais elástico para receber outras

Page 25: Dissertação sobre as Paixões da Alma

24 António Ribeiro Sanches

ideias mais facilmente. As dores repetidas serão tan-tos golpes para descascar aquele tronco tão cheio deespinhos e de casca.

Mas se usarem os que têm a seu cargo ensinara mocidade do mesmo método para doutrinarem osseus discípulos de um génio brando e ameno, que seenvergonham da menor repreensão, que com louvorse animam e mostram alegria, que o rosto e os olhosmostram serem regados de sangue subtil, rutilante ecom muita vivacidade, então o castigo será mais no-civo. O medo, o terror, e a vergonha acanhará aqueledelicado e elástico sensório comum.

Também pela ansiedade mortal ou perto da mortese destroi aquela ideia douda que domina todas as po-tências da alma. Assim são os maníacos, os amantesdoudos, os entusiastas ou supersticiosos, os doudospelos venenos de cães danados.

Helmontis, nas obras que citámos acima, dele e deseu filho Mercurius Helmontius,observat. civico ho-mines sejusque morbos, 12. Amsterdam, pag.33, ob-servaram que muitos destes enfermos foram curadosmergulhando-os na água e nela ficarem por algunssegundos de tempo. Não que o remédio fosse a água,mas aquela agonia mortal que nasce do medo de mor-rer. Com aquela ânsia, aquela ideia insensata (não afátua ou tonta) e delirante se destroi e se muda de talmodo o sensório comum que já adverte os objectoscom as circunstâncias do passado e do presente. Masa causa daquela ideia douda fica no corpo; é necessá-rio curar este depois, mudando-o, como dissemos, àsvezes por alguns anos, pela dieta e pelos remédios.

Estes são os dous modos de curar que obram di-rectamente no ânimo mas vemos claramente que ne-nhum deles é bastante para prevenir a recaída des-tes enfermos. É necessário curar aquele vício cor-poral que foi a causa ou a origem daquela doudice.Se aquelas desordens de cérebro foram só precedidaspelos humores ainda que degenerados, facilmente ospodíamos curar. Mas desgraçadamente na mania, namelancolia antiga e outras paixões da alma invetera-das, acham-se as partes fel[;] acham-se cirro[s] nocerebelo, no pâncreas, intestino duodeno, no fígado,e nas glândulas do mesentério acham-se esteatomas,ateromas, abcessos dentro do cérebro, na pia e duramadre, no fígado, no intestino duodeno, cólon e me-sentério. Mesmo dentro da veia porta se acharam pe-dras, como se viu no cadáver de S. Inácio de Loyola,como refere o Presidente de Thou na sua história, eno coração aneuri[s]mático de S. Filipe Nery.

De tal modo que o médico não pode dar mais re-médio que os universais que mudam e enervam todosos (seus) humores. A dieta vegetal, comendo só ervase raízes. Leite, frutos maduros, mel, com água pura epão, comidos por muito tempo, fazem cair em um[a]

diarreia[;] os enfermos purgam todos os humores an-tigos e se reparam por outros feitos com esta novadieta.

Mudam os homens por remédios universais pur-gativos. Os antigos preparando o corpo e fazendo-o fluido pela dieta vegetal e banhos davam [depois]o heléboro [;] este purgando violentissimamente porvómitos e cursos mudava todos os humores.

Nós hoje usamos de salivação nos casos aonde énecessário mudar todos os humores, não só na curado gálico, mas ainda nas queixas acima referidas. EmHambourg, haverá trinta anos, brincava uma senhoracom um cãozinho, este a morde em um beiço, salta,morde outro cão, espuma, conhece-se já que estavadanado. Chama sua dona [um] médico, o qual semhesitar em prepará-la nem outro qualquer remédio,faz untar com unguento mercurial esta senhora comose fosse galicada. Salivou por trinta dias e ficou cu-rada do veneno do cão danado. Este método de dar asalivação por unturas e de untar e esfregar a morde-dura de cão danado com unguento mercurial publi-cou Pierre Desau[l]t no seu tratadoMaladies Vene-rien[n]es.

Creio que muitos maníacos e muitas queixas cró-nicas, aonde a razão estiver sezã com delírio ou comfuror, este método poderá ser útil no caso que de an-tes se prepare o enfermo tão apropriadamente quepossam prevenir todos os danos que pode causar umasalivação.

Muitas e muitas coisas tinha ainda que ajuntaraqui, mas como escrevo em língua vulgar e que es-tas cartas poderão cair em outras mãos do que as deVM, quero conter-me para que não ofenda a quemnão está inteirado dos verdadeiros princípios da Fí-sica e da Metafísica como VM.

Contentar-me-ei que redunde alguma utilidadedeste trabalho à minha Pátria no caso que mostrassea necessidade que tem a sociedade que os males eenfermidades do ânimo ou paixões da alma venhama cair na consideração dos médicos. Contentar-me-eise VM ficar persuadido daquele círculo que o ânimopode fazer no corpo enfermo, e que este corpo tam-bém pode afectar, e alienar o ânimo e que no caso queVM achar que poderá este escrito dar alguma maté-ria e murmúrio ou de escândalo aos ignorantes daVerdadeira e Santa Religião ou dos princípios políti-cos como se deve regrar a Sociedade Cristã, que VMuse somente dele e que lhe seja útil na sua prática.Se VM o aprovar bastante consolação me ficará parasossegar a fadiga do pensamento com que me atrevi[a] escrever uma matéria que meditei depois de vintee quatro anos, e que não poupei tempo nem despesapara ler o que a antiguidade e os modernos pensaramnela. Se VM me acusar de que citei muitos autores,

Page 26: Dissertação sobre as Paixões da Alma

Dissertação sobre as Paixões da Alma 25

não se admire porque não citei a terça parte daque-les que li e de que fiz extractos que conservo paraindagar esta matéria. Não obstante tudo isto não sepersuada VM que fico satisfeito ainda destes borrõesque lhe mando. A saúde me impediu muitas vezes[de] meditar, e ordenar esta matéria de outro modo[;]observará VM nela muitas repetições, muitos pen-samentos fora do seu lugar, muitos erros de línguae sobretudo de escritura por distracção. Perdoe VMtanta omissão porque desejo servi-lo com tanto gostoquanto tenho quando recebo cartas de VM que Deusg.de.

14 de Dezembro de 1753.