138
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA - CMAF NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NA ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE DE PICO DELLA MIRANDOLA ELEANDRO FERNANDES DE AZEVEDO FORTALEZA 2013

Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Dissertação sobre a Natureza humana e a liberdade segundo Pico Della Mirandola

Citation preview

Page 1: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

1

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA - CMAF

NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NA ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE

DE PICO DELLA MIRANDOLA

ELEANDRO FERNANDES DE AZEVEDO

FORTALEZA

2013

Page 2: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

2

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE

ELEANDRO FERNANDES DE AZEVEDO

NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NA ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE

DE PICO DELLA MIRANDOLA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora do programa de Pós-

Graduação em Filosofia do Departamento

de Filosofia da Universidade Estadual do

Ceará, como exigência parcial para

obtenção do título de Mestre em Filosofia,

sob a orientação do Prof. Dr. José Expedito

Passos Lima.

Área de Concentração: Ética.

FORTALEZA

2013

Page 3: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Biblioteca Central CENTRO DE HUMANIDADES

Bibliotecário Responsável – Doris Day Eliano França – CRB-3/726

A994n Azevedo, Eleandro Fernandes de. Natureza humana e liberdade na Oratio de Hominis Dignitate de Pico Della Mirandola / Eleandro Fernandes de Azevedo. – 2013.

CD-ROM. 136 f. ; 4 ¾ pol.

“CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm)”.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Mestrado Acadêmico em Filosofia, Fortaleza, 2013.

Orientação: Profa. Dra. Antônia Dilamar Araújo. 1. Natureza humana. 2. Dignidade. 3. Arbítrio humano. 4.

Liberdade. I. Título.

CDD: 100

Page 4: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

4

Page 5: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

5

Page 6: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

6

A Deus, fonte de inspiração deste trabalho, a Quem dedico minha existência.

Page 7: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

7

Quem pois não admirará o homem? Que não por acaso nos

sagrados textos moisaicos e cristãos é chamado ora com o nome

de cada ser de carne, ora com o de cada criatura, precisamente

porque se forja, modela e transforma a si mesmo segundo o

aspecto de cada ser e a sua índole segundo a natureza de cada

criatura?

Pico della Mirandola. Discurso sobre a dignidade do homem

Page 8: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

8

AGRADECIMENTOS

À Universidade Estadual do Ceará - UECE, em especial ao CMAF, pela oportunidade

de realizar esta pesquisa.

À CAPES pela concessão de bolsa pelos últimos 12 meses e que foram indispensáveis

na aquisição da Bibliografia e dedicação necessárias na composição desta pesquisa.

A meu Orientador Dr. José Expedito Passos Lima, por sua total dedicação e

disponibilidade. Sem essa valiosa orientação jamais seria possível concretizar esta

pesquisa.

A Minha Mãe Franscisquinha Evangelista Alves, pelo amor e acompanhamento em

todas as etapas da minha vida.

Em especial a Renato Silva do Vale, que esteve me ajudando e incentivando durante

todas as etapas deste Mestrado.

A minha Vó Josefa Bento da Silva (In memoriam)

Aos Professores convidados: Profa. Dra. Maria Celeste de Souza e ao Prof. Dr. Luis

Carlos Silva de Sousa pela cordial generosidade em aceitar participar da banca de

defesa desta dissertação. Obrigado pela disposição em ler, avaliar e sugerir.

Ao Amigo Fran Alavina pela ajuda com as Obras, artigos e publicações repassados com

o intuito de ajudar a composição de minha pesquisa. Outrossim, aos Professores do

CMAF, em especial: Dr. Eduardo Triandopolis e Profa. Dra. Maria Teresa Callado, que

foram edificantes para os 2 anos no Mestrado.

Assim como Secretários do Mestrado: Rose Ramos, José Evandro da Costa, Igor

Timbó, que foram de grande ajuda nos momentos em que estive tratando de assuntos

referentes ao mestrado.

Como também o Grupo de Estudo: Metafísica e Estética (UECE), nas pessoas de: Pablo

Tahim pela ajuda nos ajustes finais do texto e Paula Tárcia que sempre esteve pronta

para ajudar no que lhes fosse possível.

Aos Amigos que estiveram comigo nesses dois anos: os mestrandos Andrea Dantas,

Gleyciane Lobo e Jakson Medeiros, assim como Kátia Gardênia e Liliane Severiano,

por terem estado comigo em todas as aulas do Mestrado, e dando os contributos

necessários aos quais me ajudavam a seguir adiante.

Ao Casal Regina e André Haguette, pelo bons conselhos em prol da minha caminhada

acadêmica.

Page 9: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

9

RESUMO

Esta dissertação objetiva explicitar a orientação metafísica e ética presente na filosofia

de Pico della Mirandola. Para tanto, adota-se como fonte de investigação a sua Oratio

de hominis dignitate (1486). Nesse empreendimento é preciso uma abordagem do

universo cultural do Humanismo e da filosofia renascentista a fim de uma compreensão

desse momento histórico e filosófico, no qual se inscreve o pensamento desse autor que

expressou a riqueza cultural e filosófica de tal período. Trata-se, antes de qualquer

coisa, de se pressupor a herança da enciclopédica dos saberes pertencentes ao

humanismo renascentista e, ao mesmo tempo, a presença de certo ideal de concórdia

entre doutrinas e culturas diversas na sua filosofia. Daí se adotar a seguinte hipótese

interpretativa para a orientação desta pesquisa: a Oratio realiza o ideal de Pico della

Mirandola pensado nas Conclusiones Nongentae, ou seja, de uma concórdia entre

orientações filosóficas, doutrinais e culturais diversas. Na efetivação desse ideal é

possível identificar não só a pretensão metafísica ou teorética de seu procedimento, mas

também o sentido de certa dimensão ética ou prática, pois a liberdade é pensada como

responsabilidade absoluta do homem. No domínio das várias doutrinas e culturas,

presentes na erudição e na filosofia de Pico della Mirandola, se apresentam aqui: a

qabbalah, a falsafa (escolástica árabe), a escolástica latina, a retórica, a magia, a

astrologia, o hermetismo, o platonismo e o aristotelismo. Ademais, no seu ideal de

concórdia se exprime também um diálogo entre as religiões abraâmicas, ou seja,

Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Por isso a Oratio reúne, em sua constituição, um

universo mais amplo, quer no domínio do saber quer naquele da dignitas homini: a

liberdade humana em Pico della Mirandola. Revela-se assim no procedimento e

formulações de tal filósofo a proposta da multiplicidade das vias: algo relevante no seu

projeto filosófico, pois não se pode descurar em uma investigação sobre o seu

pensamento.

Palavras Chave: Natureza Humana. Dignidade. Arbítrio Humano. Liberdade.

Page 10: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

10

ABSTRACT

This dissertation focuses the metaphysical and ethical approach of the philosophy of

Giovanni Pico della Mirandola. The source of this research therefore is his 1486 work:

Oratio De hominis dignitate. This study approaches the humanist culture, and the

philosophy of Renaissance in order to understand the historical and philosophical

moment, in which Pico della Mirandolla's thought is situated expressing the

philosophical and cultural riches of that period. Above all, this work presupposes the

heritage of the knowledge within the Encyclopedia of the humanist Renaissance, as well

as the existence of an ideal of harmony shared between different cultures and doctrines

in Mirandola philosophy. Therefore this research encompasses the following

hypothesis: that Oratio De hominis dignitate accomplishes Pico della Mirandola‟s ideal,

as expressed in Conclusiones Nongentae, and fulfills the harmony shared between

different philosophical approaches, doctrines and cultures. In fulfilling of this ideal of

his, it‟s is possible to identify not only the theoretical or metaphysical procedure, but

also a practical and ethical sense, in which freedom is conceived as an absolute

responsibility of man. Among the different doctrines and cultures in the erudition and

philosophy of Pico della Mirandola, the following are presented here: the qabbalah, the

falsafa (Arabic Scholasticism), the Latin Scholasticism, rhetoric, magic, astrology,

hermeticism, Platonism and Aristotelianism. Moreover, his ideal of harmony also

expresses a dialogue between the Abrahamic religions, namely Judaism, Christianism

and Islam. That is the reason why the Oratio gathers in its constitution, a wider

universe, both in the field of knowledge and in that of dignitas hominis: human freedom

according to Pico della Mirandola. Thus in the thought and procedure of the Mirandola

philosophy there is a proposal of a multiplicity of ways: something relevant in his

philosophical project that cannot be forgotten in an investigation into his thought.

Key-words: Human Nature. Dignity. Human Arbitrariness. Freedom.

Page 11: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................13

CAPÍTULO I: PICO DELLA MIRANDOLA E A CULTURA DE SEU TEMPO:

HUMANISMO E FILOSOFIA RENASCENTISTA:...............................................20

1.1 Studia humanitis, dignitas hominis e imago Dei no Humanismo renascentista:

pressupostos da Oratio de Pico della Mirandola.........................................................20

1.2 Platonismo, aritotelismo, escolástica no Renascemento e o propósito de Pico della

Mirandola na Oratio..................................................................................................33

1.3 Magia, Astrologia e Qabbalah na cultura renascentista: herança no pensamento de

Pico della Mirandola..................................................................................................41

1.4 Macrocosmos e Microcosmos no Renascimento italiano: herança em Pico della

Mirandola...................................................................................................................49

CAPITULO II: A ORIENTAÇÃO FILOSÓFICA DE PICO DELLA

MIRANDOLA: RELAÇÃO ENTRE ESCOLÁSTICOS E RETÓRICOS,

FILÓSOFOS BÁRBAROS E HUMANISTAS...........................................................57

2.1 Pico Della Mirandola e Bárbaro entre humanistas e escolásticos: estilo, erudição e

fontes do pensamento......................................................................................................57

2.2 Pico e a problemática das Calculationes.................................................................. 70

2.3 As origens da Oratio de Pico della Mirandola: a problemática da Disputatio..........73

2.4 Cultura humanista e Filologia: erudição e procedimento na Oratio.........................81

CAPÍTULO III: NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NAS FORMULAÇÕES

DA ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE...................................................................89

3.1 Magnum, o Asclepi, miraculum est homo: emblema e fórmula da teorética da

Oratio...............................................................................................................................89

3.2 Deus: architectus e artifex........................................................................................91

Page 12: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

12

3.3 Deus-liberilitas e homem-nostrum chamaeleonta: pensar a natureza do homem e sua

liberdade..........................................................................................................................93

3.4.Contempatio e vita cherubinae: os três estados ascéticos.........................................98

3.5 Liberdade como responsabilidade absoluta no homem: distinção no mundo da

criação............................................................................................................................101

3.6 A ascensão sapiencial e a paz universal: filosofia natural, dialética e

teológica.............................................................................................................107

3.7 Iniciação e mistérios sapienciais na Oratio: fontes da prisca theologia e a defesa da

Filosofia.........................................................................................................................112

3.8 Pico ante as objeções contra a disputa romana: tradição e conciliação entre doutrinas

na sua justificativa filosófica..................................................................................................117

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................128

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................134

Page 13: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

13

INTRODUÇÃO

A presente dissertação tem como tema a questão da natureza humana e a

liberdade, com base na reflexão sobre a Oratio de hominis dignitate, escrita entre o final

de 1486 e início de 1487, pelo filósofo Pico della Mirandola1. Conforme consideram os

estudiosos, a Oratio de Pico della Mirandola é entre os textos do Renascimento um dos

primeiros e mais relevantes: isso justifica por sua vez a notoriedade de seu autor no

Humanismo renascentista2. Por meio da Oratio, a qual fora escrita para servir de

discurso inaugural ao famoso Debate, que aconteceria em Roma em 1487, Pico della

Mirandola deveria submeter ao consenso dos doutos as suas 900 Teses, ou seja, as

Conclusiones nongentae. No entanto, a não realização do seu intento, em virtude da

oposição dos teólogos da Igreja e a intervenção de Inocêncio VIII, atingiu, igualmente, a

Oratio: em seguida utilizada a sua segunda parte no Prefácio à Apologia, composta em

1487, para defender as treze teses contestadas pela Comissão pontifícia.

Nas Novecentas Teses, ou Conclusiones Nongentaes, Pico sustenta, ao mesmo

tempo, à possibilidade de se integrar na erudição um conjunto de doutrinas e filosofias

diversas, e também opostas, por meio de um princípio metafísico fundamental: o da

presença da verdade em cada orientação filosófica e doutrina, não obstante a

especificidade de cada uma delas. Por conseguinte, o autor buscava nesse Congresso um

debate sobre distintas tradições sapienciais da humanidade, a fim de que se proclamasse

a concórdia entre elas, isto é, a unidade na verdade universal e única. Ademais, Pico

tencionava buscar a verdade para além das distintas escolas ou orientações filosóficas

ou teológicas: ultrapassar divergências superficiais e formais, mas defender ao mesmo

tempo a convergência das diversas fé ou religiões em uma verdade universal, a qual

encontrava no Cristianismo a sua expressão mais perfeita e realizada. Não se pode

deixar de destacar que tal projeto de Pico pretendia, ao ultrapassar os dissensos

superficiais, afirmar a pax philisophorum.

1 Giovanni Pico della Mirandola, Conte di Concórdia, nasceu em Mirandola em 1463, situada na Itália

setentrional e faleceu em Florença em 17 de Novembro de 1496. Representante da nobreza do Norte da

Itália, a sua formação de humanista não é toscana, mas desenvolveu-se nos grandes centros da região em

que nasceu: Bolonha, Pádua, Ferrara, Mântua, Pavia, só mais tarde se estendendo a Paris e Florença (cf.

MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem [1486]. Trad. br. Maria de

Lourdes Sirgado Ganho, Lisboa: Edições 70, 2008, pp. XI-XII). 2 Cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Giovanni Pico della.

Discurso sobre a dignidade do homem, p.VII.

Page 14: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

14

Na Oratio destaca-se a reflexão de Pico della Mirandola acerca da “natureza

humana”, ou seja, a liberdade, demonstrada e especificada como a dignitas homini,

mediante a cultura apreendida de certa herança erudita de seu tempo, a saber, aquela

renascentista, na qual se revelam os elementos importantes para se compreender as

categorias relevantes, que constituem o pensamento piquiano. Vários foram os

historiadores que expuseram as sínteses realizadas no período Renascentista, revelando

assim a complexidade desse momento da cultura e da Filosofia, contribuindo inclusive

para uma compreensão do pensamento desse filósofo. Entre esses estudiosos destacam-

se, nesta pesquisa, Paul Kristeller, Eugenio Garin, Pier Cesare Bori, Cesare Vasoli,

Giovanni di Napoli, Hèlene Védrime3 para se construir uma exposição sobre o período

Renascentista.

Vale aqui ressaltar a forma como foi desenvolvida esta investigação, a fim de se

apreender o labor filosófico realizado pelo pensamento, apresentado por Pico della

Mirandola, e a sua importância, pressupondo-se, ao mesmo tempo, o universo do

Humanismo e da filosofia renascentista. Tal período apresenta uma diversidade de

escritos retóricos, poéticos, literários, filológicos, historiográficos, místicos,

astrológicos, mas também filosóficos e teológicos possuidores de uma forma eloquente,

coerente e literária de ser. São escritos elaborados pelos humanistas e pensadores, que

descrevem a forma de se entender a eloquentia e a sapientia, presente na literatura

retórica e filosófica desse período, de profunda erudição e defesa de um saber

enciclopédico.

A busca pelo saber orientado pela via enciclopédica renascentista visava a um

ideal de concórdia4 em Pico, como apresentam as suas Conclusiones Nongantae. Trata-

se, portanto, do propósito de instauração da paz filosófica. Pico encontrou no

neoplatonismo a possibilidade de unir orientações e culturas tão diversas: Zoroastro,

Hermes Trimegisto, Aglaofemo, Pitágoras, Platão, Plotino, Jâmblico, Proclo e

medievais platonizantes. Daí a sua pretensão de uma síntese filosófica, valendo-se da

contribuição de certa orientação filosófica, ou seja, o neoplatonismo: algo destacado por

estudiosos dessa época como Paul Kristeller, Garin, entre outros. Para esta investigação

adotou-se a hipótese interpretativa de que a Oratio realiza o ideal de Pico pensado nas

3 VEDRINE, Hélene. As Filosofias do Renascimento. Lisboa: Europa –América, 1971, p. 14.

4Cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Giovanni Pico della.

Discurso sobre a dignidade do homem, p. XXVI.

Page 15: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

15

Conclusiones Nonguentae, ou seja, de uma concórdia entre orientações filosóficas

diversas, doutrinas sapienciais e culturas diferentes. Na efetivação desse ideal pode-se

identificar, quer a sua pretensão metafísica, ou fundamento teorético de seu

procedimento, quer o sentido prático, ou dimensão ética de seu empreendimento, uma

vez que a liberdade é pensada como responsabilidade absoluta do homem.

Para uma abordagem do presente tema dividiu-se este trabalho em três capítulos, a

fim de uma melhor exposição dos argumentos que articulam as questões fundamentais a

serem discutidas. Nesse sentido, o primeiro capítulo [Pico Della Mirandola e a cultura

de seu tempo: humanismo e filosofia renascentista] explicita os elementos que

influenciaram Pico della Mirandola no universo cultural de seu tempo, não descurando

do vinculo com o humanismo renascentista. Tal movimento cultural tinha como meta a

formação intelectual do cidadão, valendo-se dos studia humanitatis, ou enciclopédia de

disciplinas humanistas: gramática, retórica, história, poesia e filosofia moral. Daí não se

tratar de um sistema filosófico, mas de um programa cultural e pedagógico, o qual

destacava certo universo dos estudos. É relevante neste capítulo a compreensão dos

elementos principais da cultura desse período, para uma compreensão do ideal ético

fundamental, presente no projeto filosófico de Pico della Mirandola.

Para tanto se adentrou na dimensão da enciclopédia dos saberes renascentista e

destacou-se a influência desses saberes na formação do pensamento de tal filósofo e do

seu ideal de concórdia. Para a construção desse contexto se recorreu às obras de

estudiosos como Eugenio Garin e Paul Kristeller, considerados clássicos nos estudos

relativos a esse período da cultura e da Filosofia, mas também a outros estudos mais

recentes, realizados hoje na Europa. Considera-se, nesse contexto cultural, a

importância do neoplatonismo renascentista, e a sua influência no uso que faz Pico della

Mirandola em seu projeto filosófico. Em seguida se deteve em uma parte importante da

filosofia piquiana, a qual serviu de estudo e indagação para certos temas: Magia,

Astrologia, Qabbalah. Enfim se abordou as reflexões sobre o homem como expressão

da relação entre macrocosmo e microcosmo: formas de se compreender essa visão de

homem e de sua natureza.

O segundo [A orientação filosófica de Pico Della Mirandola: relação entre

escolásticos e retóricos, filósofos bárbaros e humanistas] abordou as fontes, quer da

Page 16: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

16

cultura judaica quer daquela árabe como herança renascentista: elementos constituidores

também da busca do conhecimento no projeto filosófico piquiano. Destacou-se, de

início, a epístola, dirigida por Pico a Ermolao Barbaro, em virtude da reflexão piquiana

sobre os Escolásticos e os Humanistas, ou seja, sobre a relação entre Filosofia e

Retórica, entre sapientia e eloquentia: duas grandes orientações da cultura e do pensar

desse período, a fim de se expor as formulações sobre tal controvérsia. Retornando ao

universo no qual se gestou a obra Oratio de hominis dignitate, de Pico, refletiu-se sobre

a relevância da Filologia e de seu procedimento, nesse período, buscando-se não só

compreender os estudos de Pico, para a elaboração das Conclusiones, mas, em especial,

para se explicitar as origens da Oratio, pois o objetivo de tal obra era a Disputatio.

Chega-se assim, de novo, ao solo da cultura humanista, visando a destacar a dignitas

hominis piquiana mediante um excurso na cultura humanista, ao qual se retornou ao

longo desta pesquisa, a fim de se pensar a seguinte questão: natureza humana e

liberdade na Oratio.

O terceiro capítulo [Natureza humana e liberdade nas formulações da Oratio de

hominis dignitate] aborda, em especial, a obra central desta pesquisa, ou seja, a Oratio,

após a exposição das fontes e dos elementos que auxiliam uma compreensão de sua

gênese. Nesse momento se privilegiaram aquelas categorias fundamentais e

constituidoras do discurso de Pico della Mirandola nessa sua obra. Trata-se aqui de uma

exposição sobre os pressupostos da sua concepção de natureza humana e liberdade, na

qual se identifica o ideal do projeto filosófico de Pico, quer em suas formulações

metafísicas quer éticas. Em tais formulações se revelam, antes de qualquer coisa, o

exímio exercício filológico desse pensador no exame das diversas fontes filosóficas e

doutrinais, articuladas com base na sua defesa e no ideal de certa compreensão da

Filosofia e de sua tradição. Daí a importância que assume o processo de ascese e

contemplação na busca do ideal de uma pax philosophica e de consenso entre doutrinas,

como reconhecimento igualmente da verdade do Cristianismo.

Certo de que não fora Pico della Mirandola precursor da reflexão sobre a dignitas

hominis, porém, foi aliada à cultura humanista e ao Renascimento na expressão da

Oratio. Encontra-se em Pico um universo amplo de tradições: filosóficas, doutrinárias e

religiosas. Isso justifica, sobretudo, a necessidade de, ao longo desta pesquisa, se

distribuir as fontes da filosofia piquiana, reenviando a elementos históricos, culturais,

Page 17: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

17

doutrinais, filosóficos e religiosos. Tais fontes e elementos históricos foram destacados,

no primeiro capitulo, quando se abordou o Humanismo renascentista, com a sua riqueza

e complexidade, a fim de que contribuísse com a compreensão da erudição de Pico na

Oratio5. Essa obra faz uso de fontes filosóficas e doutrinais muito diversas, na sua

investigação e preparação para o Debate romano, na busca de estabelecer certo

consenso entre diversos pensamentos.

Já a presença das fontes e elementos religiosos decorre da pretensão de Pico della

Mirandola de propor na Oratio um caminho no qual se apresentam diversas orientações

religiosas, ou seja, relativas à doutrina judaica, cristã e árabe, mas também elementos

oriundos de tradições pagãs, apresentados ao longo da própria Oratio de hominis

dignitate. Daí a relevância da relação entre homem e Deus, apresentada não só com base

na teologia católica, pois a filosofia de Pico della Mirandola é herdeira também da

prisca theologia, presente também no projeto filosófico de Marsílio Ficino. Em tal

empreendimento buscava-se elucidar, sob a influência do neoplatonismo, as origens

remotas de uma religiosidade natural humana, e justificar, ao mesmo tempo, a verdade

da doutrina cristã, um dos principais objetivos de Pico para o aperfeiçoamento e

formação do homem, mas também da compreensão de sua natureza e liberdade6.

Esta dissertação adota, por sua vez a seguinte hipótese interpretativa: a Oratio de

Pico della Mirandola propõe um ideal, já pensado nas Conclusiones Nongentae, de

realizar a concórdia entre orientações filosóficas, doutrinais e culturais diversas, a fim

de realizar a pax philosophica universal. Por conseguinte, proclamar solenemente no

Debate romano a concórdia entre filosofias e doutrinas, ou seja, pressupondo a ideia da

verdade universal e única entre as escolas distintas ou orientações filosóficas e

teológicas. Isso explica também a erudição presente nesse texto e a sua relação com as

orientações filosóficas que conviviam no pensamento dessa época, em particular, a

relação entre platonismo e aristotelismo. Na realização desse ideal pode-se identificar,

de um lado, a dimensão metafísica, ou seja, teorética de seu procedimento e, de outro, a

dimensão ética, isto é, prática, pois a natureza humana vem pensada com base na

liberdade, ou seja, como responsabilidade absoluta do homem.

5 Cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Giovanni Pico della.

Discurso sobre a dignidade do homem, p. XLIV. 6 Cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA. Giovanni Pico della.

Discurso sobre a dignidade do homem, p. XLIV.

Page 18: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

18

Deve-se destacar que a redação da Oratio, que terminou conhecida como De

hominis dignitate, conheceu várias fases na sua redação, identificadas por Eugenio

Garin. Esse estudioso da obra de Pico della Mirandola descobriu e publicou, por sua

vez, a versão manuscrita da primeira fase, ou seja, aquela redigida nos meses

precedentes de Pico em Perugia e Fratta. Tal texto se reduzia à conhecida primeira

parte, isto é, aquela relativa ao elogio do sujeito humano e à apresentação da concórdia

entre as diversas tradições sapienciais no caminho em direção a Deus. Nesse caminho

de ascese torna-se necessário passar pelas seguintes disciplinas e momentos: o da

dialética, da filosofia natural e da teologia.

Após a publicação das Conclusiones em Roma, datada em 7 de dezembro de

1846, Pico toma conhecimento das primeiras objeções contra o seu projeto, decidindo

assim, por prudência, eliminar algumas passagens da primeira redação: aquelas nas

quais defendia um papel decisivo à falsafa árabe e a necessidade de se ler textos nos

originais árabes, por causa da ausência ainda de traduções latinas ou do risco de

corrupção dos originais pelas traduções. Pico decide também ampliar a Oratio com uma

segunda parte, redigida sempre com base em um estilo humanista, antes que o Papa

Inocêncio VIII decidisse, em 20 de fevereiro de 1487, suspender a disputa, e determinar

uma comissão para identificar possíveis heresias e erros contra a fé presentes nas

Conclusiones. A segunda parte da Oratio apresenta uma defesa geral das Conclusiones

e, ao mesmo tempo, de doutrinas que a compõem, a saber: prisca theologia, magia e

Qabbalah.

A presente investigação se detém, em especial, na Oratio, embora na sua

exposição e desenvolvimento se reportou, de forma breve, a outros textos de Pico della

Mirandola, visando apenas à compreensão ou esclarecimento do seu pensamento,

acrescentando assim algumas questões necessárias, em virtude da complexidade e

erudição do nosso autor. Na pesquisa foi utilizada a tradução bilíngue (latim/português)

da Oratio, publicada pelas Edições 70, e se consultou, quando foi preciso, à tradução

bilíngue (latim/italiano), publicada pela Editora Ugo Guanda. Ademais se buscou

conservar, no texto desta Dissertação, os títulos de obras e alguns conceitos na língua

original, ou seja, no latim, a fim de se aproximar esta exposição ao discurso de Pico

della Mirandola, mas também por razões filológicas e filosóficas, pois no Humanismo e

nas filosofias desse período, o cuidado com o rigor filológico se apresentou como

Page 19: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

19

fundamental, sem descuidar também da natureza humana e da liberdade do homem:

categorias expressas na Oratio de Pico della Mirandola7 e tema fundamental desta

dissertação.

7 Na Oratio, dois temas se misturam: o da indeterminação da condição humana e o de sua liberdade.

Criado para servir de intermediário entre o criador e suas criaturas, o homem não pode ser reduzido a

nenhuma de suas qualidades particulares. Pico não pretende, no entanto, ter descoberto essa posição

privilegiada que, segundo ele, já era assinalada pelos persas (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia

e da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). MIRANDOLA, Pico Della: novos ensaios, Madras,

p.185). Mesmo se essa atribuição de paternidade da ideia seja em grande medida fictícia, o mais

importante é a descrição do homem como uma criatura especial, que ocupa um lugar único na criação.

Resta compreender o sentido dessa afirmação (cf. BIGNOTTO, Newton. Considerações sobre a

antropologia de Pico Della Mirandola, p. 141).

Page 20: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

20

CAPÍTULO I

PICO DELLA MIRANDOLA E A CULTURA DE SEU TEMPO: HUMANISMO

E FILOSOFIA RENASCENTISTA

Para se compreender a dimensão da enciclopédia dos saberes renascentistas, é

importante adentrar no conhecimento não só literário-cultural do período, mas também

naquele dos studia humanitatis, considerando assim contextos como o do Humanismo

renascentista8, a fim de se expor as influências da cultura clássica e medieval na

Renascença italiana9. Entre os séculos XIII a XV destacam-se a presença de vários

saberes em que o homem assume um lugar relevante, ou seja, como tema e interlocutor

desses saberes renascentistas, entrelaçados por ideias e doutrinas, que compõem a

literatura desse período. Tais saberes são necessários, portanto, à compreensão inicial

dos pressupostos, quer histórico e cultural quer filosófico e doutrinário da Oratio de

Pico della Mirandola. Daí este capítulo assumir uma dimensão de propedêutica

hermenêutica, a qual contribui para a compreensão da Oratio e exposição do ideal

teórico e prático de seu autor. Nesse sentido já se constitui aqui certa orientação de

leitura e interpretação da filosofia de Pico della Mirandola, ou seja, como uma

expressão, no pensamento, da complexidade cultural de uma época, isto é, aquela

renascentista.

1.1 Studia humanitis, dignitas hominis e imago dei no Humanismo renascentista:

pressupostos da Oratio de Pico della Mirandola

O Humanismo clássico do Renascimento italiano foi, sem dúvida, um fenômeno

significativo na história da cultura ocidental. No universo do pensamento filosófico, o

8 Etimologicamente, o termo vem do ciceroniano “humanista”, que significa “erudição” e “cultura”, mas

também comportamento correto e civil e ainda dignidade. Já os termos, tão usados até pouco tempo,

studia humanitatis ou humanae litterae significavam exatamente o estudo das obras dos Antigos, com a

finalidade de formar-se o estilo humanista de falar, escrever e também de viver. Historicamente, concebe-

se o Humanismo como um movimento cultural que, ao se voltar para os grandes autores da cultura

clássica, ou seja, grega e romana, visava-se, de um lado, a imitar as formas literárias e artísticas deles e,

de outro, tendia-se a descobrir e apropriar-se dos conteúdos e valores humanos transmitidos por esses

modelos (cf. NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia

Filosófica. Revista Ampliada, Petrópolis: Vozes, 1994, p. 56). 9Para Pedro Nogare: “Da Itália a Renascença se propagou se difundiu, embora um pouco tardiamente

também em outras nações da Europa. Na Alemanha, a primeira nação a respeitar os novos ideais, A

Renascença estende-se ao longo do século XV e XVI” (cf. NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e Anti

Humanistas. Introdução à Antropologia Filosófica. Revista Ampliada. Petrópolis: Vozes 1994, p.5).

Page 21: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

21

Humanismo10

não se distinguiu tanto pela originalidade das ideias, mas pelo fermento

que introduziu nos velhos esquemas de pensamento. Daí se pretender aqui uma

compreensão do papel assumido pelos estudos clássicos no Renascimento e na filosofia

de Pico della Mirandola como algo fundamental, mediante um excurso no movimento

humanista italiano. O termo humanista11

, elaborado no auge do período renascentista,

derivou de um termo mais antigo, a saber, studia humanitatis, ou disciplinas

humanistas. Esse étimo foi usado no sentido geral de instrução liberal ou literária por

pensadores como Marco Túlio Cícero e Auro Gélio, e apropriado pelos doutos italianos

do final do século XIV. Desse modo é importante se destacar que o Humanismo

renascentista esteve sempre vinculado a um domínio particular profissional, isto é, ao

dos studia humanitatis, 12

o qual influenciou as outras áreas da vida intelectual desse

período.

Na primeira metade do século XV, pode-se dizer que os studia humanitatis

principiaram a se constituir como um ciclo de disciplinas doutas: gramática, retórica,

história, poesia e filosofia moral. Nessa época, o estudo de cada uma dessas disciplinas

comportava a leitura e a interpretação dos antigos escritores latinos e, em menor

medida, os gregos. Ademais, há algo já de moderno no Humanismo renascentista13

, na

medida em que a expressão studia humanitatis destacava o homem e os seus valores.

Por isso a dignitas hominis era um tema predileto de alguns humanistas renascentistas,

10

De acordo com Jan Teger: “O apogeu da Idade Média, ou a Època das Universidades, todo o século

XIII com figuras expressivas como São Tomás, São Boaventura, Siger de Brabarita; é o período de

máxima influencia da Filosofia Árabe, exercida por meio de traduções de Aristóteles” (cf. REEGER. Jan.

Geegen Teger. Apostila Curso de História da Filosofia Antiga A Época Helenística e Patrística, p.14). 11

Para Kristeller, se quisermos compreender o papel desempenhado pelos estudos clássicos no

Renascimento, devemos começar pelo movimento humanístico. O termo “humanismo” esteve ligado,

durante mais de cem anos, ao Renascimento e aos seus estudos clássicos, mas em tempos recentes tal

fato tornou-se fonte de uma notável confusão filosófica e histórica. Na linguagem atual, quase todo aquele

que se relaciona com valores humanos é chamado “humanista” e, por conseguinte, grande variedade de

pensadores religiosos ou anti-religiosos, científicos ou anticientíficos apresenta pretensões por aquela que

se tornou uma etiqueta de mérito um tanto quanto evasivo (cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e

Pensamento do Renascimento [1954]. Trad. port. Arthur Morão, Lisboa: Edições 70, 1995, p. 15). 12

Deve-se aqui destacar que o termo bonae artes designava, para os humanistas do século XIV e XV,

todo o âmbito do saber, em cujo contexto era atribuía-se à atividade literária uma função determinante. O

Humanismo reconhecia, de fato, uma função de guia às artes do trivium, a saber, gramática, retórica e

dialética, ao passo que identificava naquelas do quadrivium, ou seja, aritmética, geometria, música e

astronomia, uma posição subalterna em relação às primeiras.

De acordo com Pedro Nogare: “Da Itália a Renascença se propagou, se difundiu – embora um pouco

tardiamente também em outras nações da Europa. Na Alemanha, a primeira nação a respirar os novos

ideais, a Renascença durou pouco. Floresceu nos últimos anos pela Reforma de Lutero. Na França, a

Renascença estende-se ao longo do século XV e XVI. Na Inglaterra e na Espanha, algumas décadas

depois, entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século seguinte” (cf. NOGARE,

Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia Filosófica, p.58).

Page 22: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

22

como Pico della Mirandola, mas não certamente de todos. No entanto, convém se

destacar, que o modo por meio do qual aqueles valores e ideais humanos podiam se

realizar era o dos estudos clássicos e literários, isto é, humanistas.

O Humanismo renascentista não constituiu um movimento de tendência

eminentemente filosófica ou um sistema filosófico, por se tratar, ao contrário, de

[...] um programa cultural e pedagógico que valorizava e desenvolvia

um importante, mas limitado, sector dos estudos. Este sector teve

como seu centro um grupo de matérias que não concerniam

essencialmente aos estudos clássicos ou à filosofia, mas ao que grosso

modo se pode designar como literatura 14

.

Contudo, depois dos meados do século XV, a influência do saber humanista

difundiu-se, ultrapassando os limites dos studia humanitatis, atingindo assim vários

domínios do saber renascentista, igualmente, à Filosofia, mas também diversas ciências.

Esse acontecimento deveu-se:

ao prestígio conseguido pelas disciplinas humanísticas, mas também

ao facto de que quase todo estudioso recebia uma formação

humanística nas escolas secundárias, antes de realizar uma instrução

profissional em qualquer outra disciplina universitária15

.

Além disso, alguns humanistas começaram a perceber que um estudo rigoroso e

aprofundado da Filosofia exigisse ser acrescentado aos studia humanitatis: algo que

explica igualmente certa particularidade do pensamento de Pico Della Mirandola, ou

seja, a da presença de noções filosóficas de origem diversa. Destaca-se, porém, que o

Humanismo renascentista constitui apenas um aspecto, embora muito importante, do

pensamento e da cultura do Renascimento. Do mesmo modo é preciso dizer que a

Retórica não significa o elemento chave, com base na qual permite explicar o

Humanismo e o pensamento renascentista.

Que ela tivesse uma grande importância é algo inegável, mas não se pode reduzir

o Humanismo renascentista e menos ainda o pensamento e a cultura renascentista à

Retórica. Esta última era apenas um dos cinco studia humanitatis, cultivados pelos

humanistas, cuja obra de gramáticos, de historiadores, de poetas e de moralistas não

pode ter se originado certamente da retórica deles, não obstante às vezes se apresentar

inseparável dela. Ademais, a história da Teologia, da Jurisprudência, das ciências e da

14

KRISTELLER, Paul. Tradição clássica e pensamento do Renascimento, p. 17. 15

Ibidem, p. 26.

Page 23: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

23

filosofia renascentista não se limita ao Humanismo, embora tenha sofrido a influência

de muitas orientações dessa cultura.

Os humanistas, portanto, começaram já no século XIV a identificar o campo de

estudos deles com o nome de “estudos humanos”, ou seja, studia humanitatis e studia

humaniora, como se afirmou anteriormente, com base em exemplos extraídos de certas

frases de Marco Túlio Cícero e Auro Gélio. Certamente, havia na retomada desse nome

uma nova pretensão e um novo programa, “mas correspondia a um conteúdo que há

muito existia e que, antes, fora indicado com nomes mais modestos de gramática,

retórica e poesia” 16

. Isto pode ser exemplificado com a definição do famoso cânon para

as bibliotecas, composto por Nicolau V, na sua juventude, para Cosimo de Medici.

Depois de ter indicado muitos livros de teologia, em seguida as obras

de Aristóteles in logicis, in physicis, in metaphysicis e in moralibus, os

comentadores árabes e gregos de Aristóteles, outras obras filosóficas

traduzidas do grego e obras de matemática, ele continua como segue:

„de studiis autem humanitatis quantum ad gramaticam, rhetoricam,

historicam et poeticam spetcat ac moralem [...]17

.

Pode-se ainda mencionar outras passagens nas quais se apresentam a dimensão e

constituição enciclopédica dos studia humanitatis presente em um texto jesuítico de

1591: “studia humanitatis, hoc est grammaticae, historiae, poeticae e rhetoricae” 18

.

Tais exemplos esclarecem uma questão relevante para a compreensão do Humanismo

renascentista, mas descurada pelos historiadores modernos:

[...] os humanistas, pelo menos na Itália e antes do século XVI, não

pretenderam substituir a enciclopédia medieval das ciências por uma

nova, mas, pelo contrário, estavam conscientes de que a sua matéria

de estudo ocupava um lugar bem definido e limitado, no interior do

sistema contemporâneo dos estudos19

.

Contudo, os humanistas tendiam a destacar os seus saberes em oposição a todas

outras ciências e a invadir o domínio destas, embora não negando a validade das demais

ciências. Aqui se revela a posição bem definida dos studia humanitatis, expressa no

novo termo “humanista”, que parece ter surgido, conforme os estudos sobre esse

movimento cultural, durante a segunda metade do século XV e difundindo-se durante o

século XVI. Para os estudiosos desse período, o étimo studia humanitatis foi cunhado

16

Ibidem, p. 116. 17

Ibidem, p. 117. 18

Ibidem. 19

Ibidem, p. 118.

Page 24: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

24

com base nos termos medievais legista, jurista, canonista e artista, indicando assim o

docente de studia humanitatis. Daí o termo humanista, no seu sentido restrito, ter sido

criado durante o Renascimento, e humanismus uma elaboração dos historiadores do

século XIX. Na acepção clássica desse étimo, os humanistas foram os professores e os

representantes de certo ramo de estudos, e o humanismo não representava, por sua vez,

a totalidade da ciência do Renascimento. Ainda no âmbito de uma compreensão desse

momento e da especificidade de sua cultura é importante destacar que o Humanismo

renascentista não surge como uma “nova filosofia” em oposição à “velha escolástica” 20

,

pois “a escolástica italiana surgiu cerca do final do século XIV, isto é, no mesmo

período em que emergiu igualmente o humanismo italiano, e as duas tradições

desenvolveram-se uma ao lado da outra, ao longo e depois do Renascimento” 21

. Essas

tradições tiveram campos distintos em conformidade com os dois ramos de ciências: “o

humanismo no campo da gramática, da retórica e da poesia e igualmente, até certo

ponto, no da filosofia moral; a escolástica, a lógica e a filosofia natural” 22

.

Não por acaso, dois dos grandes polos de difusão da cultura renascentista foram

cidades italianas. No Renascimento,23

a presença da enciclopédia humanista também

influenciou, ao se difundir para além dos domínios dos studia humanitatis, certa

orientação filosófica e, igualmente, várias ciências. Isto ocorreu não só em virtude do

prestígio conseguido por esse movimento cultural, mas também porque todo douto

recebia uma formação humanista, ou seja, a das humaniora: Literatura, Filosofia e

Retórica. Se os letrados do século XV, envolvidos nessa renovação, foram conhecidos

como “humanistas”, as suas referências estavam presentes no discurso e na escrita,

decorrentes, sobretudo, tanto dos estudos relativos aos textos latinos como dos textos

gregos.24

Ao contrário da escolástica Medieval de pensadores como São Tomás (1225-

20

Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição clássica e pensamento do Renascimento, p. 122. 21

Ibidem. 22

Ibidem. 23

Para Kristeller: “O Renascimento é um período muito complexo que apresentou, como a Idade Média

ou qualquer outro período, uma grande quantidade de diferenças cronológicas, regionais e sociais.

Embora as diferenças culturais entre a Itália e a Europa do Norte fossem acentuadas durante a alta Idade

Média, não menos do que no Renascimento, no século XV a Itália, juntamente com os Países Baixos,

conseguiu uma posição de hegemonia cultural na Europa ocidental, que jamais tivera na época

precedente” (cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.12). 24

Ainda de acordo com Kristeller, para valorizar os contributos dos humanistas renascentista ao estudo

dos clássicos devemos distinguir também dois campos: o do latino e do grego. No campo dos estudos

latinos existiu uma ligação muito mais estreita com os interesses retóricos e práticos, e também com as

tradições doutas da Idade Média, embora na Itália, berço do humanismo renascentistas, essas tradições

tenham sido menos cultivadas do que nos países nórdicos, que durante o período que precedeu

Page 25: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

25

1274), Duns Escoto (1265-1308) entre outros, o Humanismo25

tem como referência a

dignitas hominis, investigando a excelência de sua natureza: apresentada pelos filósofos

para compor os alicerces que tem como destaque o homem26

.

A dignitas hominis27

foi um tema filosófico que se aprimorou, com o passar dos

séculos28

, com filósofos que recorreram à leitura e ao estudo de textos clássicos

relativos a várias tradições, entre elas, hermetismo e neoplatonismo. A origem desse

termo remonta à tradição retórica, ou seja, um dos saberes pertencente aos studia

humanitatis, saberes orientados também para o estudo da eloquência a fim de uma

formação cultural. Trata-se de uma orientação em conformidade com a Retórica,

detentora da concepção do orador ou do direcionamento da vida prática. Portanto, a

expressão dignitas hominis tem a sua origem e expressão no universo da tradição

retórica e, em especial, no pensamento de Cícero, pois se inscreve em uma visão do

imediatamente o Renascimento foram declinando e igualmente a França (cf. KRISTELLER, Paul.

Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.20). 25

Segundo T. A. Lara: “O Humanismo foi, no começo, um movimento literário. Tornou-se, depois, um

movimento cultural global. Enfatizava ele o valor da razão humana. Os europeus que tinham vivido,

durante a Idade Média, com uma cultura muito baseada em princípios religiosos, fundados na Bíblia,

agora começavam a valorizar outro. Aquele tipo de cultura que se fundamenta na razão. Os medievais,

quando queriam justificar os valores fundamentais da civilização, recorriam às letras divinas (a Bíblia).

Agora, no fim do século XIV e inicio do século XV, o homem burguês, que tenta reelaborar os

fundamentos da vida sociopolítica, vai apelar para razão” (cf. LARA, T. A. A Filosofia Ocidental do

Renascimento aos nossos dias. Petrópolis: Vozes, p. 28). 26

No entender de Kristeller: “Na perspectiva histórica, a Renascença representa um despertar quase

improviso de uma sociedade – a sociedade italiana, para sentimentos, interesses e valores antes quase

desconhecidos. Embora o interesse pelas obras e autores da Antiguidade Clássica houvesse desaparecido

completamente, pelo menos nos mosteiros, onde monges dedicados e pacientes trabalhavam

ininterruptamente para transcrever, corrigir e guardar os antigos manuscritos. Os conventos se tornaram

os únicos depósitos seguros de livros, não havendo naquele tempo bibliotecas nem públicas nem

particulares” (cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, pp.58-59). 27

É certo, segundo Nogare, que já o Cristianismo e a filosofia medieval haviam descoberto e proclamando

claramente a dignidade e o valor do homem, porém, certas afirmações, no domínio da Filosofia,

permaneceram isoladas e abstratas. Na Renascença, a dignidade e o valor do homem se tornam relevantes

para a especulação filosófica e a literatura humanista. Na exaltação dos platônicos se destacam Marcílio

Ficino (1433-1499), e Pico della Mirandola (1463-1494) - os dois principais filósofos do século XV, que

se encontraram com os famosos humanistas: Poggio, Salutati, Manetti, Platina, Poliziano, Palmieri,

Alberti, Landino, etc. Todos celebram o homem como essência intermédia entre o mundo da matéria e o

mundo do espírito e como resumo e miniatura do universo: microcosmo. Ademais, o homem participa do

divino e só em Deus atinge a plenitude da perfeição e felicidade (cf. NOGARE, Pedro Dalle.

Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia Filosófica, p. 63). 28

De acordo com Garin, entre os séculos XIV e o XVI, houve uma mudança de equilibro, os

“humanistas”, e com eles os artistas, os artesãos, os homens de ação, substituíram as trilhas da

especulação medieval por novas exigências, diante das perguntas que até então haviam permanecido sem

respostas assim, abrindo novas e imprevisíveis possibilidades. De uma forma de entender a realidade,

forma inteiramente inédita e desconcertante, novas ideias e novas hipóteses floresceram: assim Magia e

ciência, poesia e filosofia misturavam-se e auxiliavam-se, numa sociedade atravessada por inquietações

religiosas e por exigências práticas de todo gênero (cf. GARIN, Eugenio. Ciência e Vida Civil no

Renascimento Italiano. (1993) Trad. Cecília Prada. São Paulo: Unesp, 1996, p.11).

Page 26: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

26

homem em ação e na vida civil. Por conseguinte, há um sentido de conveniência, o qual

não implica somente uma relação externa ou uma conformidade mais ou menos

acidental entre dois elementos, mas uma espécie de “necessidade” que torna essa

relação indispensável. Nesse sentido, àquele que possui dignitas se impõem certos

deveres em relação entre os homens 29

.

Na disposição da dignitas há um liame entre o mérito íntimo, interno e, ao

mesmo tempo, um reconhecimento externo e civil deste último: a dignitas não dá

prioridade a um em detrimento do outro, mas condensa o caráter inseparável de ambos

os momentos, a saber, interioridade e exterioridade. Por isso a dignitas, no universo do

discurso moral, mantém um estreito vínculo com o officium. Pode-se aqui elencar

alguns significados desse termo na tradição retórica, desde a conveniência do homem

político às funções que ocupa, ou deseja adotar, à posição ocupada pelo nobilis naquilo

que é conveniente à sua situação na vida civil, ao sistema de relações entre os homens,

ou seja, os deveres que se impõem a quem possui a fides em função das capacidades e

ocupações exercidas por eles. Portanto, a dignitas, no discurso político, reenvia a todas

as disposições civis do nobilis30

.

Deve-se aqui destacar, porém, a originalidade da abordagem de Cícero ao

articular dignitas e virtus, considerando-os como equivalentes, pois a dignitas se vincula

a honestum. A partir de Cícero o termo dignitas assume o valor filosófico oposto à

voluptas, conforme escreve em seu De officiis. Cícero situa a moral no universo humano

e não do cosmo, e o homem de ação substitui também o homem contemplativo, pois a

preocupação com o senso comum assume uma dimensão decisiva. Tal obra ciceroniana

é um tratado de moral prática, isto é, estuda a moral prática do vir bonus. Cícero

distingue, porém, duas formas de dignitas: dignitas sapientis e dignitas hominis. A

primeira se reporta à magnanimitas, de origem estoica grega, e aqui corresponde ao

desprezo das coisas exteriores, e permite estabelecer a diferença entre os homens e não

simplesmente entre homem e animal. Os aspectos exteriores desta remetem a uma

realidade interior, ou seja, a uma autêntica virtude do sábio. Ao lado desta, Cícero

29

Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dellùomo e Transformazioni della storia del Rinascimento. Per

uma intepretacione Del moderno, Milano: Unicopli, 2000, pp.55 -57. 30

Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e transformazioni della storia del Rinascimento,

p.58.

Page 27: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

27

menciona a dignitas hominis, pertencente a todos os homens, pois define a natureza

humana, mas de maneira diversa da superioridade permitida pela razão31

.

É com base nessa dignitas que se estabelece a quarta e última virtude

denominada decorum, ou seja, o que decet ao homem. O decoroso representa o que

conforme a preeminência do homem, naquilo por meio do qual a sua natureza difere do

resto dos seres vivos. Por isso os homens são por natureza de uma grande dignidade e

superioridade sobre o resto dos seres vivos. O decorum é o valor moral que caracteriza a

dignitas hominis. Se a dignitas sapiens cria uma hierarquia na vida civil, a dignitas

hominis assegura, ao contrário, a existência em uma comunidade humana, pois é algo

que se pode verificar em todos os homens, uma vez que pertence à natureza humana.

Tal dignitas possui vários valores, quer civil, ou seja, o de se comportar em relação aos

outros, quer moral prático, isto é, o de se comportar na vida civil em função da

constância, medida, temperança e respeito, para assegurar a possibilidade de uma

comunidade32

.

Porém, a nossa questão é a dignitas hominis no humanismo renascentista. Pode-

se sustentar, de início, certa filiação entre a Antiguidade, em particular, Cícero e o

Renascimento. Contudo, a excelência do homem, pensada no século XVI, não encontra

a sua fonte na dignitas hominis ciceroniana, mas na afirmação de que a razão é aquilo

que funda a dignidade e a superioridade do homem sobre os outros seres vivos. As

consequências dessa grandeza, em virtude da presença da ratio no homem contribuem

para fornecer um conjunto de elementos fundamentais e constitutivos para a acepção de

dignitas hominis no século XVI. Todavia há outro elemento justificador de tal acepção,

a saber, a liberdade do homem: algo mais adequado à compreensão da dignitas hominis

no Renascimento. Portanto, a razão, como capacidade de conhecer, é aquilo que é

emanado de Deus no homem. Por meio desses elementos, e combinado à liberdade,

tem-se assim a possibilidade de se compreender o sentido da dignitas renascentista e

preparar uma abordagem, mais adiante, da acepção de Pico della Mirandola33

.

31

Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e transformazioni della storia del Rinascimento,

p.59. 32

Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e transformazioni della storia del Rinascimento,

p.59. 33

Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e transformazioni della storia del Rinascimento, p.

69.

Page 28: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

28

Tal concepção de dignitas hominis, concebida pelo Renascimento, surgiu

apenas, conforme atestam alguns estudiosos, no curso do século XII, sem deixar aqui de

se destacar igualmente a presença dessa ideia na literatura patrística dos séculos

precedentes. Existem, portanto, três textos fundamentais, de acordo com os estudos, que

certificam a história dessa acepção de dignidade: o De anima de Hugues de Saint-

Victor, o In Cantica canticorum de Guillaume de Saint-Thierry e a carta 104 de São

Bernardo. Os três escritos explicam a dignitas hominis, por ter sido o homem criado à

imagem de Deus, ou seja, como narra o Genesis bíblico: “Deus criou o homem à sua

imagem, à imagem de Deus ele criou”34

. Aqui é importante se destacar, em consonância

com a temática deste trabalho, aquela acepção que ultrapassa, na tradição dessa ideia, ou

seja, a ideia apenas da ratio. Trata-se do princípio relativo ao livre arbítrio, o qual

prepara, durante o século XV, a noção de dignitas hominis em Pico della Mirandola:

acepção expressa pela primeira vez por São Bernardo e de origem estoica35

.

A dignidade humana por excelência é o livre arbítrio, porque eleva o homem

acima de todos os outros animais, conferindo-lhe o poder de dominá-los e submetê-los

às suas necessidades. Porém, o livre arbítrio é inseparável de outra qualidade, a saber, a

“ciência”. De nada serviria o livre arbítrio se o homem não pudesse por meio da razão

conhecê-lo e compreendê-lo. Isto permitiu a São Bernardo reafirmar a importância da

razão, a qual explica e justifica a diferença entre o homem e o animal. Ademais, essa

dignitas está acompanhada obrigatoriamente pelo conhecimento Deus, pois o desejo de

descobrir o Autor da dignidade do homem e de unir-se a Ele é a virtude. Nesse sentido,

os três atributos da natureza humana não podem assim ser separados: a dignitas

hominis, sinônimo de livre arbítrio, permanece inseparável da razão36

.

A ligação entre o que viria a ser o Humanismo renascentista e o “espírito cristão”

contrapôs o ideal do antropocentrismo do homem37

. O modelo teológico38

, destacado na

34

Ver aqui Gênesis, I, 26. 35

Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e trasformazioni della storia del Rinascimento, p.59. 36

Cf. OLIVIERI, Achille (org.). Immagini dell‟uomo e trasformazioni della storia del Rinascimento, pp.

69-70. 37

Segundo escreve Pedro Nogare: “o entusiasmo incontido pela Antiguidade, a criatividade privilegiada

da Renascença, não são movimentos gratuitos, pois têm uma orientação profunda, um impulso

fundamental que os estimula, ou seja, o interesse pelo homem. Enquanto na época precedente a atenção

total era voltada a Deus e o homem era visto unicamente em função de Deus, na Renascença o homem,

sem negar a Deus, se apercebe um lugar neste mundo: uma dignidade tarefa sua. O homem da

Renascimento não permaneceu, apenas constatando, mas buscou realizar concretamente a sua dignidade e

Page 29: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

29

Idade Média e vigente na transposição antropológica que pôs o homem em uma

dimensão mais ampla de sua natureza, possibilitou assim aos humanistas a se

destacarem na perspectiva da busca pelo conhecimento acerca de uma investigação e

compreensão da natureza humana, ligada pela especulação ontológica. A vida encarada

como ociosa e contemplativa, foi identificada, por muitos pensadores do humanismo,

como uma concepção da Antiguidade Medieval, pois a busca pelo autoconfinamento se

fazia necessário e justo a tal busca no Medievo. Tratava-se de um contributo para a

sapientia, evidenciados na Teologia Cristã39

.

Já na Antiguidade pode-se identificar a reflexão acerca da “natureza humana em

sua dignidade” 40

, ou seja, um marco sobre o homem no universo cultural da

Antiguidade pagã41

. Porém, a ontologia sofrera, na continuidade, abordagens mais

precisas e ainda mais elevadas com Francesco Petrarca (1304-1374), Marcílio Ficino

(1433-1499), grande mestre de Pico della Mirandola (1463-1463), e também com o

humanista Pietro Pomponazzi (1462-1525), além de uma vasta obra de literatura

astrológica e alquímica, com direcionamentos de origem platônica e hermética. É nesse

cenário humanista renascentista que se destaca Giovanni Pico della Mirandola, com

formação de humanista realizada em Bolonha, Pádua, Ferrara, Mântua, Pavia, mais

tarde se estendendo até Paris e Florença. Com conhecimento eclesial da Igreja Católica

Romana, estudou dois anos em Bolonha Direito Canônico.

capacidade. E quanto mais experimenta, tanto mais permanecia convencido” (cf. NOGARE, Pedro Dalle.

Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia Filosófica, pp. 61-62). 38

Lara argumenta que a cultura humanística, pelo contrário, partia de outra premissa: a de ser possível

urgente e proveitoso levar até as últimas consequências a força da racionalidade e da natureza humanas,

prescindindo da revelação e da graça divinas. Não se tratava, porém, de renunciar a Deus. Para maior

parte dos humanistas, tratava-se de pedir a Deus para esperar um pouco, na sala de visitas, até que a razão

acabasse o seu trabalho. Era um novo mundo a ensaiar (cf. LARA, T. A. A Filosofia Ocidental do

Renascimento aos nossos dias, p. 32). 39

Para Felipe Fernandes: “Os grandes escritores místicos dos séculos XIV e XV eram avidamente lidos

pelos religiosos enclausurados, mas a popularidade deles dependia de oferecerem caminhos espirituais

para Deus que não dependessem de guardar as horas canônicas e, certamente, que não dependessem de

nenhuma iniciação na teologia especulativa” (cf. FERNANDES, Felipe Armesto. O Cristianismo e o

Mundo 1500-2000, Rio de Janeiro: Record, 1996, p.37). 40

Cf. VALVERDE, Antonio José Romera. Ver. Filos, Aurora, Curitiba, V.21,n.29 p.457-480, jul/dez,

2009. 41

De acordo com Valverde: “Se prescindidas as páginas iniciais do Gênesis e outras passagens do Antigo

Testamento, encontra-se tanto no mito de Prometeu quanto no Coro da tragédia Antígone, de Sófocles. Se

a Filosofia grega clássica esteve centrada no homem, em Platão e em Aristóteles os temas centrais de suas

reflexões versaram, em última instância, sobre o homem e a alma, a excelência e a felicidade humana, não

prescindindo os problemas acerca da physis. No mesmo passo, os primeiros estoicos pensaram o universo

como comunidade de deuses e de homens” (cf. VALVERDE, A. J. R. “Aportes a Oratio de Hominis”

Dignitate de Pico Della Mirandola, p. 460).

Page 30: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

30

Em tal fase de sua vida, Pico della Mirandola decidiu abandonar os estudos de

jurisprudência42

e assim se dedicar à Filosofia: algo que ocorreu ainda muito cedo em

sua vida. Em 1479 foi a Ferrara estudar os clássicos do humanismo, sobretudo, sob a

orientação de Battista Guarino (1434-1513), grande humanista leitor de autores gregos e

latinos, aprofundando-se, igualmente, nos estudos dessas línguas clássicas43

. Entre 1480

e 1482, em Pádua, Pico della Mirandola realizou os seus estudos de Filosofia e

Teologia.

A escola de Pádua se mantinha ainda fiel ao pensamento aristotélico,

interpretado pela tradição averroísta,44

a qual defendeu o neoplatonismo e o

aristotelismo dos ataques de filósofos árabes, em uma leitura já não mais medieval,

porém, humanista. De 1485 e 1486, em Paris, Pico della Mirandola havia explorado

todo labor filosófico, expresso em suas obras como o Heptaplus (1480), De ente uno

(1480), Oratio de hominis dignitate (1484): anos de estudo e reflexão para escrever

sobre outros saberes, justificando-os assim como necessários. Parte da sua formação foi

realizada por meio da formação humanística, adquirida e posta, sobretudo, em suas

Conclusiones sive Theses DCCCC.

O encontro de Pico della Mirandola com o neoplatônico Marsilio Ficino45

, por

meio da orientação humanista, se fizera importante por haver Ficino buscado à união

42

Para Sirgado: Antes de ser atraído pela Filosofia, como saber universal, fundamentador e fundante, que

propicia a obtenção de um conhecimento mais aprofundado acerca da realidade humana e acerca das

coisas do mundo. Tal entusiasmo pela Filosofia leva-o a abandonar Bolonha – centro universitário

escolástico de grande tradição no domínio das leis- e a dirigir-se a outros centros que lhe permitissem

adquirir certa formação neste seu outro e novo interesse (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes.

“Apresentação” IN: MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do Homem, p.XII). 43

De acordo com Maria de Lourdes Sirgado: “Ferrara era, nessa altura, uma cidade prestigiada de Battista

Guarino, grande humanista, uma cidade prestigiada pelo seu labor endereçado para o estudo das

humanidades. Nela se veiculava o interesse por uma nova forma de cultura. Nas aulas de grego e de latim,

entre muitos outros autores antigos, liam-se os originais de Platão e Aristóteles” (cf. SIRGADO, Ganho

Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do

homem, p.XII). 44

Talyta Carvalho comenta: “Há, pelo menos, uma escola aristotélica que é proveniente da Idade Média,

para citar apenas a mais conhecida e que permaneceu forte também na Renascença, a dos chamados

“averroistas”. È evidente que havia outras, como a “alexandrista” (assim nomeada por seguir os

comentários do grego Alexandre de Afrodísia). Contudo, destacaremos apenas a escola averroísta por ser

ela a que mais notadamente se opõe ao platonismo característico do Renascimento” (cf. CARVALHO.

Talyta. Fé e Razão na Renascença. Uma Introdução ao Conceito de Deus na Obra Filosófica de Marsílio

Ficino. Filosofia Atual, São Paulo: 2012, pp. 43-44). 45

De acordo com Maria de Lourdes Sirgado: “A Academia, de que Marcilio Ficino é a alma, suscita a

sua reflexão sobre Platão e leva-o a intuir algo que será um dos tópicos centrais da sua meditação

filosófica, ou seja, o acordo, ao limite, entre Platão e Aristóteles, aspecto que é o vestíbulo de uma sua

tese central, a saber: a questão da concórdia” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação”

IN: MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. XIV).

Page 31: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

31

entre o pensamento de Platão e a Doutrina cristã, sem se descurar aqui também do tema

da dignitas hominis. Ficino aborda essa temática em sua obra Theologia platônica: algo

também significativo na reflexão de Pico Della Mirandola. Alguns comentadores

descrevem que na Academia platônica de Careggi46

, a do mestre Ficino, se reuniam não

apenas filósofos, mas também poetas e homens políticos: acadêmicos denominados

ainda de frates de Platão.

Ao integrar-se ao círculo platônico, Pico della Mirandola não abdica as próprias

posições, pois afirmava haver passado de Aristóteles à Academia platônica, não na

qualidade de desertor, mas de explorador. Durante essa estada em Florença, Pico

apresenta certos resultados em relação à sua formação intelectual, pois até então havia

se dedicado tanto aos studia humanitatis, ou seja, ao cultivo da Retórica e ao exercício

da poesia. A proximidade com Ficino, na Academia de Careggi, representava a escolha

definitiva da vida contemplativa, da Filosofia, a qual Ficino esteve sempre vinculado,47

chegando então até Pico della Mirandola como fonte de incessante investigação.

Pico della Mirandola buscou nos antigos, por meio da literatura filosófica,

teológica, os saberes necessários à sua formulação, como indicam as suas Teses, criando

uma síntese entre as doutrinas e saberes com base em um ideal de concórdia. Tratava-

se, como já aludido, de proclamar a convergência das diversas filosofias e religiões na

verdade universal, reconhecendo cada uma delas, como original, particular e mais ou

menos perfeita. Em virtude da imensidão da verdade, Pico della Mirandola reconhece

existir algo de insigne em cada escola que não é comum às outras. Portanto, a primeira

parte da sua Oratio apresenta o elogio da dignitas hominis e a concórdia das diversas

tradições sapienciais no caminho em direção a Deus, segundo os três momentos

46

O que Arthur Fied procura demonstrar em seu artigo “The Platonic Academy of Florence” é que Ficino,

de fato, possuía um círculo de estudos (ou uma escola), ao que tudo indica localizada em Florença, cujo

tema principal em discussão era o respeito aos ensinamentos platônicos. Ficino habitualmente se

reportava a esse círculo como sua academia ( cf. CARVALHO. Talyta. Fé e Razão na Renascença. Uma

Introdução ao Conceito de Deus na Obra Filosófica Marsílio Ficino, p. 67). 47

No entender de Josep-Ignasi Saranyana: “Marcílio Ficino nasceu em Figline, nas proximidades de

Florença, no seio de uma família modesta. Após estudar em Florença, Pisa e Bolonha, Cosme de Médici

tomou-se sob sua proteção. Além de traduzir todos os diálogos de Platão, também verteu as Enéadas de

Plotino, e algumas obras de Homero, Hesíodo, Orfeu, Pitágoras, Jâmblico, Porfírio, Proclo, Dionisio

Pseudo-Areopagita, etc. Sua obra prima intitula-se Teologia platônica ou a imortalidade das almas e a

felicidade eterna. Influenciado por Jerônimo Savonarola (1452-1498), ordenou-se sacerdote em 1473, e

chegou a ser cônego. Suas atividades centraram-se na Academia Platônica, da qual foi co-fundador.

Passaram por essa Academia alguns dos estudiosos mais célebres da época, como Pico della Mirandola e

outros” (cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia Medieval. Das Origens Patrísticas à Escolástica

Barroca. São Paulo: 2006, p.484).

Page 32: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

32

relativos à dialética, à filosofia natural e à Teologia. Ademais, o perfil do sujeito

humano, traçado nessa obra, revela, igualmente, a tentativa de realizar essa concórdia na

forma como Pico articula certa tradição filosófica-teológica e retórica.

O século XV fora marcado pelas transformações oriundas do século XIV, com o

percurso histórico do fim da Idade Média e surgimento do Renascimento, o impacto

fora muito forte com o saber dos humanistas. No limiar dos saberes Humanistas, ou

humaniora, Pico della Mirandola indagava a respeito dos saberes necessários do

pensamento humano, com base na ideia de recorrer aos saberes, doutrinas e às

formulações postas pelos pensadores que o antecederam, servindo de inspiração ao

estudo desses saberes que, coforme Pico, detinham uma verdade: Astrologia, Magia

natural, hermetismo, Qabbalah, todos assegurados na sua busca pelo ideal de

concórdia. Isso é parte integrante e fundamental do projeto filosófico de Pico della

Mirandola, no qual se destaca o acordo e limite entre demais pensadores e problema

filosófico, ao qual Giovanni Pico veio procurar se alinhar.

O projeto pensado por Giovanni Pico, de reunir todos os saberes necessários em

uma só conclusão, segundo se apresenta nas Conclusiones, defendia que deveria existir

uma fonte e um centro por onde partia ou chegava o conhecimento. Se para os demais

filósofos a discórdia continuava sendo o preço de divergências no pensar, no filósofo de

Mirandola isso se fazia diferente na tentativa da concórdia. Tratava-se dos doutos

saberes48

e, nesse sentido, a concórdia significava unir os saberes aos quais estavam

presentes no cerne do pensamento renascentista italiano, mas que provinham de

doutrinas, as quais pretendia o filósofo desvendar e fazer a distinção precisa delas. Para

tal feito era necessário recorrer à verdade, apreendida como universal e transcendente.

Pico della Mirandola tinha entre os seus objetivos a investigação das esferas

existentes do pensamento, e o Neoplatonismo era a base sobre a qual a tradição

filosófica o conduzia à investigação. Para Pico, as teses neoplatônicas e os filósofos de

48

Segundo Lourdes Sirgado: “Este acordo foi inicialmente intuído em relação à filosofia de Platão e

Aristóteles, mas embora indicado na Oratio, só mais tarde encontrará a sua plena tematização com a sua

obra De Ente et Uno, em 1490. Esta sua secreta convicção estendeu-se a todos os filósofos, a todas as

correntes, e a Disputa Romana seria precisamente o lugar privilegiado, no entender de Pico della

Mirandola, para demonstrar esta tese. Ele acalentava a ideia de um gigantesco esforço conciliador e

promotor da concórdia universal entre todos os filósofos. Tal concepção pode ser compreendida em várias

instâncias: a da prisca theologia, a da unidade das religiões judaica e islâmica e cristã, a da unidade do

pensamento humano e, por fim, a da unidade da verdade” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes.

“Apresentação” IN: MIRANDOLA, Pico Della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. XXVI).

Page 33: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

33

destaque que lhe antecederam, encontravam-se no pensamento filosófico de Marsílio

Ficino. O conhecimento dos neoplatônicos49

e dos demais pensadores levou-lhe a

conduzir melhor a sua pesquisa. É nessa esfera do pensar que o erudito de Mirandola

formulou a unidade doutrinal, a qual defendia como imprescindível para o pensar

humano, como viés do que ainda faltava. Para tanto ele se debruçou não só sobre outros

filósofos, mas adentrou também na raiz da prisca theologia, pesquisando a Qabbalah

hebraica que, segundo a sua interpretação e orientação, harmonizava-se com a essência

de verdade.

Para Giovanni Pico, o intuito de lidar com o tema da verdade, suscitava algo de

imutável e universal, verificando assim o uso da Filosofia e das tradições culturais como

aproximações da verdade. Quanto aos argumentos a serem abordados nesse seu projeto,

é importante explicitá-los aqui: dialética, moral, filosofia da natureza, metafísica,

teologia, magia, Qabbalah. Deve-se ainda considerar, em conformidade com o seu

propósito de unidade doutrinal, as seguintes tradições culturais: caldeia, hebraica, árabe,

grega e latina. O método de utilização das tradições filosóficas e culturais, adotado por

Pico della Mirandola, justificava bem o seu intento de universalidade de problemática e

temática.

Ademais, essas doutrinas não representavam no seu pensamento “palavra do

passado”, pois desaparecidos os autores permaneciam ainda, cada uma a seu modo e em

forma diversa, as tradições de ideias associadas a seus problemas. Essas doutrinas e

tradições se apresentavam na proposta de Pico, quer da disputa quer da orientação, na

forma de um concílio ecumênico, tanto em relação às ideias apresentadas em unidade

quanto em relação à suprema instituição do Medievo e do Renascimento. Tratava-se,

portanto, da possibilidade de conciliação entre diversos pensadores, destacada também

na busca de conciliação entre diversos pensamentos.

1.2 Platonismo, aristotelismo, escolástica no Renascimento e o propósito de Pico

Della Mirandola na Oratio.

49

De acordo com Maria de Lourdes Sirgado: “A orientação platônica tal como se apresentava na época de

Marsílio Ficino. Daí em certa cadeia relativa à tradição, teríamos um esquema apoiado nas teses

neoplatónicas: Zoroastro, Hermes Trimegistro, Aglaofemo, Pitágoras, Platão, Plotino, Jâmblico, Proclo e

todos os medievais platonizantes. Marsílio Ficino considerava-se o último anel dessa cadeia” (cf.

SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Pico Della. Discurso sobre a

dignidade do homem, p. XXVII).

Page 34: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

34

Sobre essas orientações filosóficas, pode-se aqui considerar, de início, ser lugar

comum e simplista o argumento recorrente que se associava nos textos, Aristóteles ao

Medievo e Platão ao Renascimento, pois os estudos modernos sobre o aristotelismo

renascentista demonstraram uma constante vitalidade e, ao mesmo tempo, um

desenvolvimento criativo da escola filosófica aristotélica até o século XVII. Também

entre os humanistas se verificou, não obstante serem identificados como admiradores de

Platão, um profundo interesse pelo aristotelismo, articulado a figuras como Leonardo

Bruni, Giorgio Trapezunzio, Giovanni Argiropulo entre outros. Além disso, não se pode

esquecer que os estudiosos do platonismo medieval contribuíram, igualmente, para uma

mudança da nossa visão do Medievo50

.

Portanto, não é correto se afirmar que o Renascimento seja a época de Platão,

mas isso não implica a afirmação de que o Renascimento e, sobretudo, o primeiro

Renascimento não represente um momento de grande importância na história da

tradição platônica. Por conseguinte, o contraste e a influência recíproca entre

platonismo e aristotelismo ocupou um lugar fundamental em alguns períodos do

pensamento ocidental, e aqui é preciso se destacar a presença dessas orientações no

Humanismo e na filosofia renascentista. Nesse sentido defende-se, com Kristeller, que

apesar da forte rebelião contra a autoridade de Aristóteles:

A tradição do aristotelismo continuou a ser muito forte durante todo o

período do Renascimento, e em certo sentido, em vez de declinar,

reforçou-se. Por outro lado, o platonismo teve as suas raízes e os seus

precedentes medievais e, não obstante a sua profundidade e o seu

indiscutível vigor, também durante o Renascimento o lugar e o

alcance exacto da sua influência esquiva-se de algum modo a uma

definição precisa51

.

Não obstante a influência de Aristóteles, no Renascimento estava claramente

ligada a uma tradição constituída na Idade Média tardia, ao passo que o platonismo foi

considerado pelos seus representantes e pelos seus contemporâneos como renascer.

Estas circunstâncias podem explicar a razão por que é relevante uma abordagem da

influência de Aristóteles antes de Platão. Principiando-se aqui com o platonismo, é

possível sustentar que aqueles que adotaram a orientação platônica destacaram e

desenvolveram doutrinas ou passagens diversas das obras de Platão. Por conseguinte,

segundo escreve Kristeller:

50

Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, pp.112-113. 51

KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.32.

Page 35: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

35

Nem uma só noção, de quantas costumamos referir a Platão, foi

sustentada por todos os platônicos, não a existência transcendente das

formas universais, não o conhecimento direto destas entidades

inteligíveis, não o amor nem a imortalidade da alma e muito menos o

seu esforço de república perfeita52

.

Daí pensadores, identificados como platônicos, poderem apresentar filosofias

muito diversas ou nem sequer uma única doutrina especifica. Uma orientação

renascentista da tradição platônica pressupõe uma história do platonismo e uma

complexidade das interpretações e tradições que dependem em parte do pensamento e

escritos de Platão.

Todavia, não é aqui o lugar de se explicitar todo o percurso da tradição platônica,

pois se trata do momento renascentista, não obstante os pressupostos históricos dessa

tradição influenciar também o Renascimento. Portanto, a influência da tradição

platônica pode ser encontrada desde pensadores estóicos como Panécio e Possidônio.

No começo da era cristã uma espécie de “platonismo popular” e eclético buscou vários

elementos em Aristóteles e, sobretudo, no estoicismo, suplantando o ceticismo na

Academia ateniense. Tal movimento denominado também de platonismo médio

formulou uma doutrina atribuída a Platão, mas não encontrada em seus diálogos, de que

as ideias transcendentes ou formas inteligíveis são conceitos de uma inteligência divina.

Esse platonismo apresentou muitos elementos comuns com o neopitagorismo,

pertencente aos primeiros séculos da era cristã, e falsificou, no entender de Kristeller,

[...] várias obras platonizantes sob o nome de Pitágoras e dos seus

primeiros discípulos, e com os Herméticos, um círculo de teólogos

que floresceu em Alexandria e compôs um corpus de escritos

atribuídos à divindade egípcia Hermes Trimegisto53

.

O platonismo popular forneceu também os elementos doutrinais para Fílon e,

depois dele, a Clemente e Orígenes, Padres da Igreja alexandrina, para fundir os

ensinamentos da religião bíblica com a filosofia grega. No século III d. C., o platonismo

foi retomado em Alexandria por Amónio Sacas e por seu discípulo Plotino. Com Proclo,

um dos últimos da Academia de Atenas, “o neoplatonismo atinge a sua perfeição mais

sistemática e também mais esquemática” 54

. Nesse período, portanto, o neoplatonismo

forneceu os termos e os conceitos filosóficos aos sucessivos teólogos da Igreja grega e,

52

KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p. 53. 53

KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p. 56. 54

Ibidem.

Page 36: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

36

em particular, aquele pensador a quem se atribui grande parte do misticismo cristão, a

saber, Dionísio Areopagita.

Quanto à Idade Média, a prevalência de Platão sobre Aristóteles, na patrística

grega, foi justificada justamente com a orientação neoplatônica e a tendência de

harmonizar Platão, mais do que Aristóteles, com a teologia cristã. Daí no século XI,

“Miguel Psellos reanimou o interesse pela filosofia platônica e estabeleceu um

precedente importante, ao combinar com ela os Oráculos caldeus atribuídos a

Zoroastro, e o Corpus Hermeticum”55

. Já entre os Árabes, a posição de Platão se

apresentou inferior a de Aristóteles e assim distinta da Antiguidade ou da Idade Média

bizantina. Entre os Árabes, “o corpus de Aristóteles foi quase inteiramente traduzido

para Árabe, só poucas obras de Platão, como a República, as Leis e o Timeu, foram

tornadas acessíveis juntamente com um certo número de outros escritos do

platonismo”56

.

Ademais é importante se considerar ainda que os Árabes buscaram muitas

concepções platonizantes, justamente entre os comentadores aristotélicos, e possuíam

dois apócrifos aristotélicos: Liber de causis e a Theologia Aristotelis baseada em Proclo

e Plotino. O renascer cultural italiano não ocorreu em contraste com a Idade Média em

geral ou com a francesa, pois, de acordo com Kristeller,

[...] muitos produtos típicos do Renascimento italiano podem

interpretar-se como o resultado de influências medievais retardadas,

recebidas da França, mas absorvidas e assimiladas por uma diversa

tradição indígena mais restrita, mas persistente. Isto vale não só para a

Comédia de Dante, mas também para as Representações Sacras da

Florença do século XV e para os poemas cavaleiresco de Ariosto e de

Tasso 57

.

Nesse sentido, o Renascimento italiano pode ser avaliado não só em contraste

com a Idade Média francesa, mas também com aquela italiana, uma vez que a Itália

renascentista e a sua civilização não se originaram diretamente das tradições mais

modestas da Itália medieval. Há, portanto, inúmeros precedentes medievais, quer na

literatura humanística quer na epistolografia e oratória desse período58

. Nesse período,

quer o pensamento árabe quer hebraico apresentaram elementos que serão retomados

por filósofos renascentistas como Marsilio Ficino, mas, em particular, por Pico della

55

Ibidem, p.57. 56

Ibidem, p.58. 57

Ibidem, p. 98. 58

Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e pensamento do Renascimento, pp. 99-108.

Page 37: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

37

Mirandola em seu propósito presente nas Conclusiones, mas também na Oratio. Na

Idade Média, alguns filósofos árabes escreveram paráfrases das obras platônicas. De

acordo com Kristeller, Alfarabi escrevera uma

[...] paráfrase das Leis de Platão, e o fiel comentador aristotélico

Averróis compôs igualmente uma paráfrase da República de Platão.

Sob a influência da tradição árabe, o pensamento medieval teve uma

forte corrente neoplatõnica. Avicena (Ibn Gabirol), cuja Fonte de Vida

exerceu, em versão latina, uma forte influência, em versão latina,

pertence também a esta tradição, e a peculiar forma do misticismo

hebraico medieval, conhecida como Cabala, contém muitas ideias

derivadas do neoplatonismo e de outras filosofias antigas59

.

O neoplatonismo60

obteve ainda êxitos61

e não deixou de se apresentar também

entre os Humanistas. Por exemplo, Francesco Petrarca não tinha familiaridade com as

obras platônicas, mas foi, conforme Kristeller comenta:

O primeiro douto ocidental a possuir um manuscrito grego de Platão,

ele foi enviado por um colega bizantino e no seu ataque a autoridade

de que gozava Aristóteles entre os filósofos do tempo, ele usou pelo

nome de Platão62

.

Quanto às questões específicas deste momento da exposição, pode-se argumentar

que “o platonismo renascentista, não obstante os seus estreitos laços com o Humanismo

clássico, não ser considerado simplesmente uma parte ou um rebento do movimento

humanístico” 63

. Isto porque, o platonismo se expressa como movimento filosófico e

não simplesmente erudito ou literário e, nesse sentido, Marsílio Ficino, pensador do

platonismo renascentista, articulou a herança filosófica e religiosa medieval aos

59

Ibidem, p.58. 60

No entender de Jan Reegen: “As origens do Neoplatonismo devemos buscar na misteriosa figura de

Amônio Sacas (ou Çakra, ou Sakkas), o carregador de sacos (?), ex-cristão, ou nascido de família cristã

(fim do século II). Durante a sua vida dedicou-se à Filosofia, ou seja, centrou a sua vida na prática e

exercício da inteligência em uma vida de ascese, pois queria ter Deus como mestre. “ Eis o homem que eu

procurava”, teria dito Plotino, através de Porfirio. Encontramos em Amônio Sacas alguns temas a respeito

da origem do mundo, a imortalidade da alma, temas esse de grande importância na evolução do

Neoplatonismo e que manifestam a tentativa de conciliar o Platonismo e Aristotelismo” (cf. REEGEN,

Jan G. J. Apostila Curso de História da Filosofia Antiga. A Época Helenística e Patrística, p. 24). 61

Para Jan Reegen: “O Neoplatonismo anuncia-se uma “fase preparatória” em que se renova a atenção às

teses de Pitágoras, como também acontece um renascimento dos pensamentos principais do Platonismo.

Agindo assim a redescoberta da ideia e realidade do incorpóreo, do imaterial na base da doutrina de

Monade, da Díade e dos Números. Ademais, há uma nova ênfase do homem como espírito, revestido de

imortalidade, cuja finalidade é a definitiva separação do mundo dos sentidos e a subsequente união com

o divino: daí a figura de Pitágoras recebe uma “superacentuação” como paradigma, como ideal dos

filósofos. Além disso, ocorre uma releitura dos escritos de Aristóteles, sobretudo aqueles esotéricos. O

misticismo que se encontrava nos escritos do Hermetismo, também influenciou o pensamento da época”

(cf. REEGEN, Jan.G.J. Apostila Curso de História da Filosofia Antiga. A Época Helenística e Patrística,

1993, p. 20). 62

Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.62. 63

Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, pp.62-63.

Page 38: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

38

ensinamentos do platonismo grego, ou seja, propôs a tentativa de uma nova síntese. Ele

ofereceu ao Ocidente a primeira versão completa em latim das obras de Platão e Plotino

além de alguns escritos de neoplatônicos.

É precisamente com Ficino que se apresenta no Renascimento a ideia da prisca

theologia64

, presente também em certas reflexões de Pico della Mirandola, oriunda da

concepção de Pléton, acerca de uma tradição teológica pagã anterior a Platão, e traduziu

ainda obras atribuídas a Pitágoras e a Hermes Trimegisto. A sua Academia platônica de

Careggi, com os seus cursos e discussões, “foi durante muitos decênios um centro

institucional cuja influência se difundiu por toda a Europa, graças às suas cartas e aos

seus outros escritos” 65

. Nesse contexto da Academia florentina, Pico della Mirandola,

em muitos aspectos do seu pensamento, expressava certa distinção em relação à

orientação filosófica de Marsilio Ficino, não obstante participar das reflexões

empreendidas nessa Academia. No pensamento de Pico, que não atingiu uma plena

maturidade em virtude de sua morte prematura, se apresentava, segundo escreve

Kristeller:

A tentativa de realizar uma síntese entre platonismo e aristotelismo. A

sua curiosidade estendia-se à língua e ao pensamento árabes e

hebraicos e, como primeiro estudioso ocidental que teve familiaridade

com a Cabala hebraica, realizou a importante tentativa de conciliar a

Cabala com a teologia cristã e de associar à tradição platônica66

.

Essa orientação e a presença desses elementos, no projeto filosófico de Pico della

Mirandola, se encontram bem expressos na Oratio, pois esclarecem igualmente a sua

intenção de defesa das teses presentes nas Conclusiones. Contudo, é inegável a relação,

de um lado, com o Cristianismo e, de outro, com as concepções pré-cristãs, relativas à

divindade e à natureza humana. Não há dúvida também de que Pico della Mirandola

estudara filosofia escolástica nas Universidades de Pádua e Paris.

Marsílio Ficino e Pico della Mirandola não tinham, porém, dúvida quanto à

ortodoxia da fé deles. Os Diálogos platônicos ajudaram para que esse platonismo se

solidificasse em Florença, como revela as atividades da Academia de Careggi. Enquanto

64

Cf. CARVALHO. Talyta. Fé e Razão na Renascença. Uma Introdução ao Conceito de Deus na Obra

Filosófica Marsílio Ficino, p.75. 65

Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p. 63. 66

Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p. 64.

Page 39: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

39

a cidade de Florença cultivava o platonismo, Pádua67

primava, no entanto, pelo

aristotelismo averroísta, pois a época de maior empenho acadêmico sobre o platonismo

se dissipou com a intensificação de um movimento de reacionarismo religioso

predominante da Itália, do qual Ficino e Pico foram fortes receptores desses preceptores.

Nesse sentido, podemos destacar a chegada do frade Girolamo Savonarola em Florença,

durante esse período, trazido inclusive por Pico della Mirandola e motivo, conforme se

defende entre os estudiosos, da sua morte por envenenamento pelo seu mordomo fiel à

orientação política dos Medici.

Pico della Mirandola junto com alguns humanistas (Cusano, Bessarion, Ficino)

esteve na versão de restaurar a metafísica platônica, mesmo não sendo um neoplatonista

e muito mais um aristotélico. Ainda na Oratio, porém, Pico defendia que a concórdia

exigia reconduzir o aristotelismo ao platonismo, mudança que ocorrera apenas com a

sua obra De ente et uno (1480). No entanto, ele aprofundou os seus estudos das obras

neoplatônicas no período de sua estada em Florença68

. Nos últimos anos, portanto, Pico,

que apreciava e apreciará cada vez mais a filosofia das escolas, considerava a filosofia

de Aristóteles não como a Filosofia, mas, ao contrário, um dos sistemas filosóficos

elaborado pelo homem para se descobrir a verdade, conforme indica a Oratio.

Por conseguinte, nesse período de preparação das Conclusiones, a influência

platonizante era ainda muito acentuada, mas também a busca de textos e autores

67

Na mesma época em que Florença contemplava o renascimento do platonismo, a Universidade de

Pádua assistia a uma séria tentativa de releitura aristotélica com base nas categorias de Averróis e de

Alexandre de Afrodísia. Era inevitável a rivalidade entre ambas as escolas, radicadas em cidades tão

próximas. Ademais, os esforços apologéticos dos acadêmicos florentinos contrastavam abertamente com

o caráter horizontalista das especulações em Pádua. Embora as argumentações dos paduanos tivessem

sempre um fundo crítico comum, nem por isso os seus mantenedores foram menos crentes que seus

colegas florentinos. Destaquemos Pietro Pomponazzi e o Cardeal Caetano, pois permaneceram em Pádua

durante vários anos como professores daquela Universidade (1492-1497), influenciando-se, igualmente, d

forma recíproca (cf. SARANYANA. Josep.Ignasi. A Filosofia Medieval. Das Origens Patrística à

Escolástica Barroca, Trad. br. Fernando Sales, Ramon Llull, São Paulo, 2006 p. 486). 68

De acordo com Scheila Rabin: “Quando ainda era pouco mais que um jovem, Pico della Mirandola se

aprofundou nas obras de Platão, Plotino, Proclo e outros neoplatonistas,, nos quase 15 meses que passou

em Florença, entre a primavera de 1484 e o verão de 1485, onde adquiriu uma compreensão

extraordinária da metodologia, dos postulados centrais e das distinções metafísicas dos platônicos. Essa

educação platônica foi sucedida por nove meses em Paris (de julho de 1485 até março de 1486) e

posteriormente associada a um plano enciclopédico, ambicioso e essencialmente aristotélico. Tal plano

reuniu um conjunto de proposições egípcias, caldeias, gregas, hebraicas (incluindo as cabalísticas),

patrísticas e escolásticas (incluindo as árabes), em vez de argumentos ou provas como tais: uma coleção

que por fim reuniu 900 conclusões, sendo 900 o símbolo numerológico do retorno extático da alma a si

mesma no estudo filosófico, para as defender em Roma” (cf. RABIN, Sheila J. Pico Acerca da Magia e

da Astrologia, IN: DOUGHERTY, M.V. (org.) Pico della Mirandola: novos ensaios [2008]. Trad. br.

Getulio Schanoski Jr. , São Paulo: Madras, 2011, p. 99).

Page 40: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

40

distantes e desconhecidos da tradição latina na reconstrução de uma visão mais ampla:

algo que motiva, quer Ficino quer Pico della Mirandola à formulação de uma síntese

mais elevada, na medida em que eles não rechaçaram nenhuma das precedentes e

significativas experiências culturais e religiosas. Disso resulta a relevante e atenta

valorização de ambos os autores de certas concepções presentes nessas doutrinas e

culturas: i) a magia natural concebida como uma visão do mundo em que cosmo se

apresenta ordenado e onde tudo tem uma correspondência; ii) a fé nos conhecimentos

astrológicos; iii) o significado atribuído à prisca theologia e iv) igualmente a

antiquissima sapientia dos poetas teólogos da Antiguidade, dos oráculos caldeus e dos

hinos órficos como dos dicta de Zoroastro e dos magi persianos. Tais elementos,

oriundos dessas doutrinas e culturas, estão também presentes na primeira redação da

Oratio. Nesse contexto cultural e filosófico renascentista não se pode deixar de

sustentar também que a grande corrente da literatura astrológica e alquimista, presente

no século XVI,

pressupõe igualmente noções como alma e mundo ou as faculdades e

afinidades interiores das coisas celestes, elementares e compostas,

noções que remontam a fontes árabes também largamente utilizadas

nestes ambientes, mas que foram buscar nova dignidade e novo vigor

aos escritores platônicos gregos e modernos e às obras herméticas a

eles dedicadas 69

Trata-se de algo intrigante para o período da Renascença, quando se considera as

fontes, ou seja, aristotélicas e platônicas, sob as quais se apoiam a reflexão nesse

período. Pode-se ainda sustentar que alguns filósofos aristotélicos renascentistas

recorreram aos argumentos do Fédon de Platão ou à Teologia Platônica de Ficino, para

defender a “imortalidade da alma”, como é possível se identificar no pensamento de

Nifo. Ademais, até os filósofos mais naturalistas e entre os aristotélicos renascentistas, a

saber, Pomponazzi e Cremonini, “se sentiram inclinados a aceitar as doutrinas

platônicas específicas” 70

. Daí ser possível argumentar que Pico della Mirandola e

Marsílio Ficino permaneceram no domínio filosófico da cultura europeia do século

XVI, e na busca deles da paz filosófica, na renovada Academia platônica de Careggi,

contribuíram para o renascimento das primeiras doutrinas sapienciais, todas

pertencentes ao gênero humano, desde Zoroastro à exegese dos mistérios bíblicos.

69

KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.66. 70

Ibidem.

Page 41: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

41

1.3 Magia, Astrologia e Qabbalah na cultura renascentista: herança no pensamento

de Pico della Mirandola

A Magia, a Astrologia e a Qabbalah se fizeram presentes no Renascimento,

como ciências ou doutrinas que assumiram certas funções práticas na vida cultural e

civil renascentistas. O Renascimento não seria o que foi sem a presença da Astrologia.

Nesse momento histórico não só da Filosofia, mas também da cultura, a magia natural

contribuiu com as investigações sobre o comportamento da natureza e para os estudos

de seus segredos e de sua relação com o homem, agrupando assim na práxis o

desenvolvimento integral das esferas internas espirituais e ocultas do homem.

Consideradas ciências ocultas, a Magia, a Astrologia eram disciplinas

importantes da filosofia natural. Se, de um lado, a Astrologia estudava os efeitos dos

movimentos de corpos celestes, de outro, a Magia buscava uma maneira de manipular a

natureza. É certo que Pico della Mirandola tivera contato também com essas disciplinas

em seus estudos humanistas: algo que revela também o seu conhecimento teórico de

ambas. Nesse sentido, o humanismo contribuíra para a investigação de tais saberes por

meio de traduções e estudos de textos antigos. Ademais, a Astrologia,71

e a Astronomia

eram ensinadas em três currículos de Universidades frequentadas por Pico della

Mirandola, naqueles da Matemática, Filosofia e Medicina72

. Conforme afirmam os

estudiosos, o Renascimento não seria completo sem a presença da Astrologia, pois além

de ensinada como disciplina, pertencia também ao horizonte cultural desse momento da

história humana. A tradução de Ficino dos textos herméticos contribuiu para a cultura

do Humanismo, de forma relevante, e para a aceitação inclusive da magia natural.

71

Segundo Scheila Rabin: “Diferentemente da Astrologia, a Magia como uma busca intelectual não fazia

parte do currículo das universidades. Era, porém, geralmente estudada em relação aos temas da Filosofia

e da Medicina. Alberto Magno e Tomás de Aquino escreveram a respeito da magia, e o pseudoaristotélico

Segredo dos Segredos era a parte aceitável do corpus aristotélico nas universidades” (cf. RABIN, Sheila

J. Pico acerca da Magia e da Astrologia IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos

ensaios, p.180). 72

Deve-se aqui destacar: “A leitura sobre a cultura desse período vem confirmar uma impressão

generalizada: a de que quando decresce o interesse pela Astronomia ganha terreno a Astrologia. Por isso

podemos afirmar que a história da doutrina das estrelas tende a transformar-se na história da astrologia,

dos seus defensores e dos seus detratores. O artigo começa por evocar o grande nome da astronomia

antiga, Ptolomeu de Alexandria (que viveu no séc. II d. C., no tempo dos Antoninos), remetendo ao

Tetrabiblos I, onde se afirma que a ciência dos corpos celestes se divide em duas partes: a das formas que

adquirem os movimentos dos astros (astronomia) e a da observação das mudanças que as suas

características naturais produzem nas coisas (astrologia)”.

Cf.http://espacoastrologico.org/2011/09/15/astrologia-e-astronomia-das-origens-ao- Renascimento.

Page 42: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

42

Além da Astrologia e da Magia destaca-se também no Renascimento o interesse

pela Qabbalah. Nas descobertas de textos relativos a saberes antigos, Pico della

Mirandola investigou73

não só a Astrologia e a Magia, mas, igualmente, a Qabbalah.

Inclinado a tudo que no mundo há de misterioso e oculto, ele dirigiu o seu olhar para

além da natureza fenomênica das coisas. Pico defende a Qabbalah junto com a Magia,

pois a sua tese era a de que ambas ajudam a confirmar a divindade de Cristo. Se a

Magia se apresenta, na sua reflexão, como uma simples ciência prática e natural, que

não interfere na revelação, a Qabbalah, por sua vez, é tida como uma disciplina e

também um segundo caminho de revelação divina. Já a Astrologia se apresentava como

natural e judicial74

, e muitos pensadores criticaram a ação da Astrologia, tanto que

semearam em seus escritos dúvidas75

quanto a sua credibilidade.

Pico della Mirandola considerava, porém, a fé cristã como o seu pressuposto, ao

buscar encontrar a verdade escondida nas diversas tradições sapienciais e religiosas. Por

isso, a sua abordagem dessas tradições pressupunha distintamente a orientação cristã.

Ele usou as letras hebraicas no nome de Jesus para confirmar inclusive uma ideia

cristã76

. No contexto das Teses cabalistas, pertencentea às Conclusines nongentae, Pico

della Mirandola apresentou com temas mágicos quatro teses que tratam da Astrologia77

.

73

De acordo com Scheila Rabin: “A tradução de Ficino dos textos herméticos foi à iniciativa mais famosa

dentre elas, Entretanto, apesar de importante, o humanismo não foi o único, nem necessariamente o mais

importante, facilitador da aceitação da magia” (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da

Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, p.181) 74

Par Scheila Rabin: “A Astrologia natural estudava os corpos celestes e fazia previsões principalmente

nas áreas do clima e da medicina. A astrologia judicial lidava com predições de ocorrências humanas, em

vez de ocorrências naturais, envolvendo tanto as sociedades quanto os indivíduos, baseados nas

configurações dos céus. Entretanto, não havia uma linha de demarcação fixa entre a astrologia natural e a

judicial” (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.).

Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 181). 75

Scheila Rabin: “O caso do pensador do século XIV Nicolau Oresme, uma voz importante contra a

astrologia e uma grande influencia sobre Pico, é bastante instrutivo. Em seu Livre de Divinacions (Livro

sobre as adivinhações), Oresme afirmava que o estudo dos movimentos das estrelas e dos planetas tinha

uma validade limitada para a realização de previsões a respeito de grandes acontecimentos,

procedimentos médicos e natividades, embora ao se tratar do clima, como nas queixas da atualidade

contra aqueles que fazem a previsão do tempo, Oresme afirmasse que a astrologia era inútil” (cf. RABIN,

Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola:

novos ensaios, p. 181). 76

Cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.).

MIRANDOLA, Pico della: novos ensaios, p.186 . 77

Segundo afirma Sheila, J: “Independentemente do que dizem outros cabalistas, eu digo que as esferas

correspondem às dez numerações (sefirot) dessa forma: de modo que, começando do edifício, Júpiter

corresponde à quarta, Marte à quinta (...). 11> 49. Qualquer pessoa que conheça a correspondência dos

Dez Mandamentos por meio da conjunção da verdade astrológica com a verdade teológica verá a partir do

fundamento que eu apresentei na conclusão anterior, independentemente do que dizem os outros

cabalistas, que o primeiro mandamento corresponde à primeira numeração (...). 11>50. Quando os

Page 43: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

43

Portanto, as Conclusiones apresentam a sua posição ante a demonstração do que os

cabalistas apresentaram sobre a versão da Astrologia em união mágico-cabalista78

. Em

seu Heptaplus (1480), ele apresentou Platão e Aristóteles entre os opositores da

Astrologia.

Dentre os Pais da Igreja, Pico identifica o apoio de Agostinho, Ambrósio,

Eusébio, Tertuliano e Orígenes, mas entre os oponentes modernos indica Alberto

Magno, Nicolau de Oresme, Angelo Poliziano e Marsílio Ficino. O autor rejeitou,

porém, Ptolomeu como autoridade, afirmando que quando este estava certo, isso

resultava do fato de seguir Aristóteles, mas a sua astrologia decorreu de ele ter se

desviado de Aristóteles. Deve-se ainda mencionar que nas Teses, Pico aborda também o

tema da oposição entre a Astrologia e a Religião. Ele condena dois importantes

filósofos medievais, a saber, Roger Bacon e Pierre d‟Ailly, nas tentativas deles de usar a

Astrologia para afirmar a fé cristã. Pico della Mirandola recorreu aos filósofos da

tradição como também aos citados em sua pesquisa bibliográfica, que parte desde os

pensadores da escolástica até os árabes, objetivando a compreensão do que eles

relataram sobre opiniões a respeito da Astrologia.

Na abordagem sobre a Astrologia diante da verdadeira religião, ou seja, o

Cristianismo, distinção já evidente nas Conclusiones79

, Pico, na tentativa de conciliar a

Qabbalah com a teologia cristã e associá-la à tradição platônica, um modo de destacar a

desconsideração na revelação, destaca o lugar onde existe a verdadeira religião, isto é, o

Cristianismo. A Astrologia não poderia entrar, faltando assim espaço para que esse

cabalistas dizem que os filhos devem ser buscados a partir do sétimo e do oitavo, essas petições na

merkabah inferior devem ser interpretadas dessa maneira: de modo que pedimos que um individuo as

conceda e que o outro não as proíba. E qual indivíduo concede e qual proíbe, qualquer pessoa com

conhecimentos da astrologia e da Cabala é capaz de compreender a partir das conclusões anteriores. 11>

51. Assim como a Lua cheia estava em Salomão, assim também o Sol estava no verdadeiro Messias, que

era Jesus. E com relação à correspondência diminuída em Zedequias qualquer um pode conjeturar, se for

um conhecedor profundo da Cabala” (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia IN:

DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, p.186). 78

Sustentado por Sheila J. Rabin. (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia IN:

DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 183). 79

Ver, nesse sentido, Caldaicas, Orphicas, Magicas et Cabalisticas, in quibus omnibus nihil assertinue vel

probabiliter pono, nisi quaetenus id verum vel probabile iudicat sacrosancta Romana eccesia, et caput eius

benedictus Summus Pontifex Innnocentius Octauus, cuius iudicio, qui mentis sue iudicium non summittit,

mentem non habet. (29) Conclusiones paradoxe numero XVII secundum propriam opinionem, dicta

primum Aristotelis et Platonis, deinde aliorum doctorum conciliates, qui maxime discordare videntur. 5.

A questão da coisa ser para causa de Cristo, ou que não são mais, eu digo Dun Scotos e Thomas

discordam. Conclusiones Magicas y Cabalisticas. Conclusiones Sive Teces DCCCC. 1486.

Page 44: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

44

saber não encontrasse meio para se instalar.80

As suas justificativas foram também

elaboradas sobre o que pensava acerca da mesma, visando afirmar que a sua visão

centrava-se na funcionalização dela81

.

Em seu contato com o conhecimento da Magia e da Astrologia, presentes na

cultura do Renascimento, que inquietou o erudito de Mirandola, Pico justificou o seu

interesse e investigação das questões a respeito desses saberes relevantes nesse universo

cultural e filosófico. Na continuidade de sua reflexão, e ainda não tão presente nas

Conclusiones, a sua proposta visava inserir as maiores autoridades da Religião e da

Filosofia a serem contrárias à Astrologia. A Astrologia como saber possuía visão de

ciência82

, tanto que na virada dos séculos XIII-XIV esteve presente no Renascimento

italiano, no qual se revelou, no domínio desse saber, uma nítida distinção entre dois

aspectos: aquele religioso supersticioso e aquele crítico-científico. A Astrologia havia se

tornado uma concepção geral da realidade e raiz de todo o saber humano. Por isso Pico

a perseguiu com certa orientação, principiando pelas questões gerais de Lógica e

Metafísica, em virtude de os astrólogos não terem considerado com rigor a realidade

física, ou seja, distinguido causa universal e causas particulares.

Nesse período nem toda e qualquer forma de Magia era aceitável83

, e no que

concerne ao efeito, pautado no efeito físico, ficava à mercê de uma opinião segura dos

80

Pico atacou a Astrologia por todos os ângulos concebidos. Na realidade, ele tentou reduzi-la a uma

prática absurda. No entanto, se a astrologia era tão absurda (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e

da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, p.198).

81

Nesse sentido: “A Alegação de Pico de que nenhum deles apoiava a astrologia e sua negação de que as

contribuições de Ptolomeu na filosofia natural eram originais dele tiveram a intenção de reforçar as

asserções de Pico com respeito à sua oposição à astrologia; ao mesmo tempo, ele podia afirmar que não

era contrário ao estudo da astronomia” (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia,

p.191). 82

Segundo Alain Libera: “Por muito tempo a Astrologia foi considerada como uma parte das

matemáticas; é o que lhe confere uma parcela não negligenciável de seu crédito retrospectivo. Também

por muito tempo ela foi tida como uma astronomia em estado nascente. Mas de que matemáticas se fala?

Na carta-dedicatória de sua obra maior (Opus Maius), o franciscano Roger Bacon explica detalhadamente

ao papa Clemente IV a necessidade teórica e a utilidade prática da Astrologia” (cf. LIBERA, Alain.

Pensar da Idade Média. Trad. br. Paulo Neves. Editora 34, São Paulo, 1999, p. 238). 83

Para Rabin: “Os escritores nem sempre viam os corpos celestes ou as radiações desses corpos – luz e

calor – como atividades físicas, sendo, portanto, possível aceitar efeitos não físicos desses corpos. Esse

ponto deve ser considerado quando analisarmos o desenvolvimento da atitude de Pico em relação à

astrologia. Do mesmo modo, nem toda forma de magia era aceitável. A boa magia era natural ou,

conforme a classificação de Walker, “magia espiritual” A magia natural tratava daquelas que eram

percebidas como qualidades ocultas no interior da natureza; a magia demoníaca invocava o auxilio de

demônios e feralmente buscava mudanças que não eram percebidas como naturais” (cf. RABIN, Sheila J.

Pico Acerca da Magia e da Astrologia IN: DOUGHETRTY, M. V (org). Pico della Mirandola: novos

ensaios, p.182).

Page 45: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

45

escritores da Magia. Sabemos que a Magia, nas Conclusiones84

de Pico, era vista como a

parte mais nobre proveniente da ciência natural e as vinte e seis conclusiones mágicas,

com figuração histórica, pitagórica, caldeia, hermética e cabalista, relatam o teor da

Magia pesquisada pelo filósofo mirandolano,85

. A observação sobre o uso não só da

Magia presente nas Teses, também suscita outras expectativas à filosofia natural. Por

conseguinte, a Magia se apresenta como a parte prática da scientia naturalis. Sem

dúvida se revela certa referência a um mecanismo de filosofia natural astrologizante, ou

seja, a relação integrada entre céus e a terra, portanto, entre entes superiores com

aqueles inferiores: algo comum em um contexto de filosofia natural e Magia.

Sobre a Qabbalah nas Conclusiones, Pico della Mirandola inicia com a distinção

de Qabbalah teórica e prática, mas também entre quatro tipos de Qabbalah teórica. A

Qabbalah teórica diz respeito às Sefirot, ou seja, as dez emanações da divindade

suprema. Ele considera ainda, no domínio dessa doutrina, a “rotação do alfabeto”, algo

muito conhecido por qualquer leitor de comentários da Idade Média tardia do Sefer

Yetzirah ou Livro da formação, pois infere a estrutura do mundo das letras do alfabeto

hebraico. Já a Qabbalah prática, Pico a define como a tentativa de tornar prático o todo

da metafísica formal e da teologia menor. Nesse sentido, se a metafísica das formas diz

respeito às Sefirot, a teologia menor extrai os atributos divinos da natureza.

Pode-se ainda argumentar que Pico della Mirandola estabelecia, já na Oratio, a

distinção entre a Torach escrita, ou seja, dada por Deus a Moises86

e a sua interpretação

84

De acordo com Sirgado: “Nas novecentas teses, também chamadas Conclusões, apresenta quer o seu

pensamento pessoal, quer o pensamento dos que antes dele deram um contributo para a filosofia. Nas

primeiras quatrocentas teses, que possuem um carácter histórico-crítico, refere-se à filosofia dos

pensadores que o precederam, como, por exemplo, Pitágoras, Platão, Aristóteles, Duns Escoto, São

Tomás de Aquino, Alexandre de Afrodísia, Averróis, Avicena, os Cabalistas, Mercúrio Trimegisto. As

outras quinhentas teses exprimem o seu pensamento” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. IN:

MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. XVII). 85

Para Maria de Lourdes Sirgado: “Entre as teses “segundo sua opinião particular”, a seção 9, que contém

26 teses, era dedicada à magia e a seção 10, com 31 teses, à magia órfica. No entanto, muitas outras teses,

especialmente dentre aquelas sobre O Livro das Causas, a matemática, Zoroastro e seus comentadores

caldeus, e a Cabala, também abordavam a magia” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. IN:

MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, pp. 182-183). 86

Dougherty comenta: “A palavra Qabbalah significa “aquilo que é recebido” ou “tradição”, sendo que

seus partidários acreditavam que ela fosse uma tradição oral revelada a Moisés junto com a lei escrita no

Monte Sinai. Parte da tradição é extremamente literária, concentrando-se nas palavras e nas letras da

Torach, sendo que essa característica a tornava, sobretudo, atrativa aos humanistas como Pico. As

principais obras da Qabbalah disponíveis para Pico eram o Sefe há-Bahir (Livro da Criação), escrito

entre os séculos III e VI; o Sefer há-Bahir (Livro da Iluminação), atribuído ao rabino midráshico

Nehunya ben há-Kanah, mas que, na verdade, trata-se de uma compilação do século XII; e o Zohar (Livro

do Esplendor), atribuído ao místico do século II Simeon bem Yohai, mas que, ao que tudo indica, foi

Page 46: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

46

secreta, expressa em livros de Teologia, Metafísica e filosofia natural. Ademais, a sua

concepção de Magia não era aquela demoníaca, tanto que Pico atestou que a magia

cabalística não se situava no universo pagão, pois já continha a origem divina da qual

fora criada. Com as teses cabalistas de Pico, associadas à intenção de apoiar a doutrina

cristã87

, ele é identificado como aquele pensador a abordar de forma rigorosa a

Qabbalah88

. Por isso as suas Conclusiones destacam a diferença entre Qabbalah e

magia demoníaca, uma vez que estranha ao Cristianismo.

escrito por Moisés de León no século XIII. Quando escreveu as Conclusiones, Pico também tinha acesso

às obras de comentadores judeus medievais como Abraão Abulafia, Azriel bem Menahen de Gerunda e

Menahen Recanati, assim como a diversas obras anônimas. A maior parte das obras foi traduzida para

Pico do hebraico por seu professor, Flávio Mitrídate, um judeu convertido e estudioso da Qabbbalah.

Mitrídate fez anotações laterais com a sua tradução para guiar seu pupilo e desenvolveu o argumento de

que a Qabbalah comprovava a verdade do Cristianismo. Em verdade, Pico afirmou que estava

apresentando teses cabalísticas “que sem dúvida confirmavam a religião cristã pelo uso de princípios dos

próprios sábios hebreus”. Sua nona tese sobre a magia, que o fez ter problemas com a Igreja Católica,

declarava: “Não existe nenhuma ciência que nos assegure mais da divindade de Cristo do que a magia e a

Cabala. Esse sentimento foi repetido no Discurso, na Apologia e no Heptaplus”(cf. DOUGHERTY, M.

V. (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, pp. 183-184). 87

Para Sheila: “As teses cabalísticas de Pico foram além de sua intenção de apoiar a doutrina cristã. Ele

de fato criou uma Cabala cristã quando mostrou como princípios da Cabala podiam ser aplicadas ao

dogma cristão. Por exemplo, a tese 14 diz: “Pela letra, isto é shim, que faz a mediação no nome de Jesus,

nos é indicado de forma cabalística que o mundo então descansou de modo perfeito, como se em sua

perfeição, quando Yod foi associada à Vav que aconteceu em Cristo, que era o verdadeiro Filho de Deus,

e do homem. O nome hebraico de Jesus, Yeshu, é formado por essas três consoantes hebraicas; a forte

letra do meio aparece em uma posição central ladeada por duas letras mais leves e semelhantes e, sendo

que ambas também podem ser usadas, às vezes de maneira intercambiável, como vogais. Aqui, Pico usou

as letras hebraicas no nome de Jesus para confirmar uma idéia cristã. Essa tese deu inicio a uma série de

declarações cabalísticas configuradas de modo similar” (cf. SHEILA, J. Rabin. Pico acerca da Magia e da

Astrologia. IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 186). 88

Embora a Cabala fosse concebida por todos os cabalistas judeus como entendimento esotérico do

judaísmo, que não deveria ser desvelado a um judeu comum e menos ainda a um gentio, desde o fim do

século XV tornou-se visível uma literatura cabalística cristã a expandir-se gradualmente. Ela começou em

Florença com as breves teses do jovem Conde Giovanni Pico della Mirandola, e depois se desenvolveu

nos escritos mais sistemáticos de Johann Reuchilin e Cornelius Agrippa de Nettesheim, os quais se

valeram de vários elementos dos textos cabalísticos, muitas vezes lidos em traduções latinas realizadas

por alguns conversos ao cristianismo. Característico da Cabala cristã é a integração de componentes

cabalísticos, na maior parte elementos de natureza teosófica, hermenêutica e mágica que foram separados

de seu backgrund ritualístico, em estruturas de pensamento encontradas em traduções do grego e em

material helenístico preparado e impresso durante a Renascença, especialmente por Marsílio Ficino. Em

geral, o ocultismo europeu, assim como diversas formas de teosofia e franco-maçonaria européias foram

substancialmente influenciadas pelo pensamento cabalístico, como parece ser o caso no mormonismo

inicial. O mais viável movimento de massa criado pela popularização da Cabala foi o tardio hassidismo

polonês. O fenômeno místico do leste-europeu continuou sendo desde então a mais duradoura forma de

penetração da Cabala e do hassidismo, conceitos como dibuk, golem ou qelipá tornaram-se parte das

crenças de largos segmentos da população judaica, a partir do fim do século XVIII. (cf. IDEL, Moshe.

Cabala, Cabalismo e Cabalistas, São Paulo: Perspectiva/CIEUCJ da Universidade Hebraica de

Jerusalém, 2008, pp.18-19).

Page 47: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

47

Portanto, Pico della Mirandola89

apresentou a Qabbalah como a tradição secreta

própria para a interpretação das Escrituras, de acordo com a Oratio: embora os hebreus

tivessem utilizado esse étimo em um significado muito amplo, mas secundário. Os

textos cabalísticos e a grande dificuldade que os seus representantes enfrentavam com

as suas amostras, como texto em conflito com a figura judaica advindos de

configurações do misticismo judaico, poderia criar cruéis depreciações de cunho forte

em que iria embater direto com expoentes do judaísmo fundamentalista. No percurso

em que Pico Della Mirandola analisa o contexto ainda da Astrologia, no que diz respeito

às teses cabalísticas demonstradas nas Conclusiones, a Astrologia se encontrava em

uma união mágico-cabalista, ou seja, interligadas nas Conclusiones.

Os cabalistas descreviam a Qabbalah como entendimento esotérico90

do

Judaísmo, e no final do século XV tornou-se uma esfera de uma literatura cabalística

cristã. Em Pico della Mirandola foi evidenciado na Qabbalah hebraica elementos

cristãos, e os agrupamentos de componentes cabalísticos, na maior parte, como

elementos pertencentes à natureza teosófica, hermenêutica e também mágica. Nesse

momento, não se pode descurar que o interesse de Pico por todos esses antigos saberes

pressupõe algo que ultrapassa o domínio do particular. Trata-se, portanto, da pretensão

de ele atingir a concórdia entre a tradição platônica e aquela aristotélica, mas ainda a

sua busca de uma verdade “única”, emergente de todas as fontes da sabedoria humana e

divina. Ademais se destaca também o seu constante aprofundamento de uma exegese

própria em relação aos textos sagrados, pois Pico della Mirandola pretendia realizar

igualmente uma conciliação conclusiva entre Filosofia e religião cristã.

89

Sheila menciona o seu estudo acerca da Magia e da Astrologia, em que descreve as atribuições

extraídas de Pico a partir das Conclusiones (cf. RABIN, Sheila J. Pico Acerca da Magia e da Astrologia

IN: DOUGHERTY, M. V. (org.) Pico della Mirandola: novos ensaios, p.185). 90

Para Mosche Idel: “A Cabala é, por definição, um corpo esotérico de especulação; seja em sua

explicação teosófica-teúrgica dos fundamentos lógicos dos mandamentos ou na tendência exática, que

trata de técnicas de utilização dos nomes divinos, o esoterismo está profundamente estabelecido neste

saber. De acordo com Isaac, o Cego, seus predecessores nunca registraram por escrito assuntos

cabalísticos e Abraão Abuláfia via o caminho dos nomes como um saber rmais elevados e, portanto, mais

secreto, que o caminho das sefirot. Não obstante, tanto R.Issac, Cego, quanto Abuláfia escreveram

tratados cabalísticos, este último até mesmo vangloriando-se que sua produtividade literária superava a

dos cabalistas anteriores” (cf. IDEL, Moshe. Cabala: Novas Perspectivas [1998]. Trad. br. Margarida

Goldsztajn, São Paulo: Perspectiva, 2000, pp. 368-369).

Page 48: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

48

É certo que no seu projeto filosófico estavam duas religiões, ligadas pela história,

porém, distintas em doutrina91

, usadas por Pico della Mirandola em suas Teses. A

Qabbalah serve, porém, para eliminar todas as “controvérsias” entre “os judeus e nós”,

ou seja, os cristãos. Aos que estivessem interessados no estudo da Qabbalah no século

XV se fazia através de manuscritos, pois não havia uma orientação de um mentor: algo

que mudou entre os cabalistas italianos a ausência da tradição oral. O Zohar, um dos

importantes livros da Qabbalah, lançou forte controvérsia entre autoridades do

Judaísmo.92

No tocante ao que se descrevia no Zohar, a busca pela publicação do

mesmo, ocorria em parte pelo interesse messiânico de disseminar segredos como

preparação para o que se traduzia como “a vinda do messias”. A Qabbalah era

demonstrada através de diversas formas, e apresentadas pelos cabalistas que se

opunham a um saber esotérico que se tornasse público,93

pois se tratava do

conhecimento dos mistérios divinos, citados pelas doutrinas, quer da Qabbalah quer da

Teologia.

A relação entre homem e Deus, homem e divino, exposta no universo

renascentista como todo saber, por meio da Filosofia, ultrapassou o espaço quanto ao

estudo das esferas espiritual e daquela civil, separação que obteve os seus primeiros

passos a serem efetivados com os respectivos mestres do humanismo. Para melhor se

compreender este espaço é preciso não esquecer as vias que deram vida a esse composto

na esfera do agir humanos e que foi tema de investigação de Giovanni Pico Della

Mirandola quando reenviou desde a magia esotérica, à Qabbalah, à Astrologia,

elementos doutrinários do Renascimento presentes nas suas Teses. Tais elementos

compõem ainda a erudição da Oratio, na qual se apresenta a ideia fundamental do

projeto filosófico de seu autor, como expressão metafísica e ética, exposta em um estilo

humanístico e, ao mesmo tempo, articulando o exercício filológico e filosófico na

defesa da multiplicidade das vias de um saber enciclopédico.

91

Segundo Mosche Idel: “A Cabala era concebida por figuras judaicas e cristãs da Renascença como uma

teologia antiga, semelhante aos desenvolvimentos filosóficos mais tardios como o platonismo, o

aristotelismo, o pitagorismo e o atomismo, enquanto para os judeus, era a fonte desses desenvolvimentos.

O interesse pela Cabala durante o período da Renascença foi compartilhado por Judeus e cristãos; ainda

que servisse de ponte entre as duas religiões, ela era explorada para atividades missionárias cristãs, fato

reconhecido abertamente por Pico della Mirandola. O fato da Cabala ter sido interpretada em ambos os

campos, de acordo com concepções filosóficas significa não só sua adaptação a especulações

neoplatônicas-herméticas prevalecentes durante aquele período, mas também a redução de sua natureza

esotérica (cf. IDEL, Moshe. Cabala: Novas Perspectivas, p. 372). 92

Cf. IDEL, Moshe. Cabala: Novas Perspectivas, p.373. 93

Cf. IDEL, Moshe. Cabala: Novas Perspectivas, pp. 373-374.

Page 49: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

49

1.4 Macrocosmos e Microcosmos no Renascimento italiano: herança em Pico della

Mirandola

Já na Idade clássica não é difícil identificar a ideia de que o universo, no qual o

homem vive, é dirigido por leis de proporção e consonância. Portanto, o universo é

ordem, ou seja, é necessidade, não acaso, é lei e justiça, não algo cego e absurdo ou

amontoado de acontecimentos, é unidade, não fragmentação dispersa, é espírito

transparente, não matéria opaca. Se, porém, deformações aparentes, não motivadas, se

produzem no cosmo e são produzidas no mecanismo cósmico, se a realidade natural

parece aos homens, às vezes, movida por forças obscuras, tanto destrutivas como cruéis,

isso ocorre, no entanto, por causa de um caráter não uniforme, nem pacífico, mas

movido e dinâmico de certa harmonia que contém também, em si mesma, a presença de

termos opostos, de transitórias desarmonias e, ao mesmo tempo, de dissonâncias

efêmeras94

.

Nesse sentido, a teoria, quer heraclítica quer empedocleia, das ditas forças

antitéticas, se realiza em doutrinas da concordia discors, recorrentes, como é possível

identificar em vários autores antigos, ou seja, de Horácio a Plutarco, mas em seguida em

Santo Agostinho, em Boécio e em vários autores medievais, até chegar por várias vias

aos autores do Renascimento. A analogia harmoniosa entre homem e mundo possui algo

de mecânico e materialista, pois o homem é um Microcosmo, porque se assemelha, em

razão de sua física estruturação, ao Macrocosmo, isto é, ao mundo. Em oposição a essa

orientação, alguns Padres da Igreja apresentaram críticas à pura visão mecânica, a de

um materialismo grosseiro, afirmando: se há uma semelhança puramente física o

homem não teria razão para tanto orgulho, pois até uma mosca poderia se inserir em tal

analogia, na medida em que se apresentaria como uma pequena síntese dos elementos

fundamentais.

Como alternativa a essa orientação, puramente mecanicista, se desenvolveu uma

concepção mais rica do Microcosmo, pois foram acrescentadas associações mais

espirituais, a saber, aquela em que se identifica no homem a realização de uma síntese,

ou seja, como nodum et ligamentum, copula mundi: ser no qual os vários níveis da

94

Para uma compreensão sobre tal relação no Renascimento, ver aqui também: BERTOZZI, Marco

(org.). Nello specchio del cielo. Giovanni Pico della Mirandola e le Disputationes contro l‟ astrologia

divinatória, Atti del Convegno di studi, Mirandola, 16 aprile 2004 ; Ferrara, 17 aprile 2004, Firenze: Leo

S. Olschki, 2008.

Page 50: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

50

hierarquia do mundo se encontram e em que realidade material e espiritual se unem e se

fundem. Ademais se apresenta ainda, nessa outra acepção, o sentido de um ser

“dúplice”, um ser de fronteira, o qual concilia os contrários, isto é, uma criatura cuja

medietas é, de fato, vértice e absoluta centralidade. Trata-se, portanto, de certa visão

também mística, tão presente, quer em Nicolau de Cusa quer em Pico Della Mirandola,

decorrente igualmente dos textos herméticos.

A abordagem da concepção de Macrocosmo e Microcosmo na visão do

Renascimento95

italiano revela um estudo aprofundado, o qual gerou muitos

comentários de estudiosos sobre pontos fundamentais da época renascentista, presentes

nas concepções e ideias da natureza e do homem como Macrocosmo e Microcosmo.

Portanto, a filosofia renascentista apresenta o homem como ser Microcosmo, ou seja, o

homem ligado à natureza e, portanto, a sua interação com o universo. Na passagem da

Idade Média para o Renascimento, essa concepção recebeu força não só de pensadores

como Marsílio Ficino, que contribuiu com algumas ideias divergentes em Nicolau de

Cusa96

(1401-1464), mas também de Pico della Mirandola, pois havia escrito no seu

Heptaplus como o mundo e o homem correspondem reciprocamente, e introduzindo

inclusive a noção bíblica de foedus bonum, ou seja, entre os homens e o mundo.

Conforme essa ideia, Deus quer que seja estabelecido e respeitado um pacto, fundado,

por sua vez, com base em uma íntima parentela: Deus criou o mundo por um ato de

amor.

Nicolau de Cusa e Pico della Mirandola concebem o homem com base no seu

confronto com a totalidade do real, das criaturas ao Criador. Nesse sentido, o homem se

apresenta como centro de tudo o que é criado, uma vez que se tudo merece ser amado,

deve ser o homem a equilibrar, com um amor ordenado os diversos graus da realidade.

95

Segundo Osvaldo: “O naturalismo renascentista era influenciado pelo hermetismo, uma tradição semi-

religiosa e mágica vinda da Antiguidade, e atribuída a Hermes Trimegisto, do Egito, que teria previsto a

ascensão do Cristianismo. A divulgação de manuscritos herméticos na Toscana, por volta de 1460,

despertou muito interesse. Ensinava que o homem é capaz de descobrir elementos divinos dentro de si,

defendendo uma afinidade mística entre o mundo e a humanidade, entre o macrocosmo e o microcosmo.

Em meio a seu misticismo, estimulava a observação cientifica e a matemática, dentro de uma concepção

pitagórica de descrição da natureza por meio de números. No entanto, em 1614, o protestante Isaac

Casaubon provou que os escritos herméticos (devido ao seu estilo e suas citações) eram posteriores ao

advento do Cristianismo, sendo escritos dentro da tradição neopltatônica. Isso contribuiu para a

decadência do naturalismo renascentista” (cf. Osvaldo Junior. Teoria do conhecimento e filosofia da

Ciência I. Tradições Rivais no Renascimento, 2010, p. 62). 96

Cf. CASSIRER. Ernest. Individuo e Cosmo na Filosofia do Renascimento [1926]. Trad. São Paulo:

Martins Fontes, 2001, p. 101.

Page 51: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

51

É precisamente na Oratio que Pico define o velho motivo grego do microcosmo, como

algo já comum, mas não abandonando tal tema. Ele busca, porém, aprofundá-lo, a fim

de atribuir-lhe, em parte, um significado não totalmente novo, no entanto, mais

adequado. Por conseguinte, Pico articula o elemento clássico do microcosmo com

aquele bíblico da imagem de Deus, abordando-os com base em uma orientação bem

específica: o homem reúne em si todas as coisas. Trata-se de tópicos provenientes do

pensamento medieval,ou seja, do homo, imago Dei da relação do homem com o

universo. No Medievo, o homem visto como imagem de Deus e Microcosmo detinha

essa evidencia97

.

O Macrocosmo mantém a sua harmonia, já o Microcosmo, o humano, também a

mantém, para que haja um equilíbrio de si próprio com o todo, pois ninguém é uma

peça solta nessa sintonia. “Tudo está ligado em si, e todo está no tudo”, máxima do

Microcosmo e o Macrocosmo, abordados por Cassirer como esse universo de

pensamento, que retrata a ideia de homem com base no que aqui fora apresentado. Do

pensamento teológico, a evidência homem-microcosmo, ou seja, a visão de seu lugar no

universo, Pico a retoma no seu pensamento como evidencia as suas Conclusiones:

conceitos que os filósofos dos studia humanitatis retratavam retoricamente98

no estudo

97

Para João André: “Santinello [...] tende a destacar a diferença entre ser “imago Dei”, que é, sobretudo,

uma prerrogativa do Filho, e ser criado „ad imaginem Dei‟, prerrogativa do homem que carece da

mediação do filho para a efectivação da sua semelhança, ter-lhe-á chegado através de Gregório de Nisa

com a formulação que mais fecunda será no seu discurso pela dinamização que desde logo proporcionará

ao motivo do microcosmo: o homem não é apenas uma imagem de Deus, mas, como já deixavam antever,

de certo modo, os termos da Carta aos Colossenses, uma viva imagem de Deus, pois só desse modo se

pode continuamente renovar e aperfeiçoar no seu ser imagem, o que faz, antes de mais, pela via do

conhecimento. Compreende-se assim que o tema da „imago Dei‟ sofra uma ligeira inflexão intelectualista

que leva a encontrar esse lugar da imagem viva, sobretudo, na mente humana, idéia que, explorada, entre

outros textos, no Idiota de mente, aparece cruzada com o par de conceitos “complicatio/expicatio” numa

acentuação da sua excelência como imagem da unidade: „ Portanto, retenho que mente é a mais simples

imagem da mente divina, entre todas as imagens da complicação divina, que complica todas as imagens

na sua simplicidade e na sua virtude de complicação. Assim como Deus é a complicações, assim a mente,

que é a imagem de Deus, é a imagem da complicação das complicações‟” (cf. MARIA, João André. O

Homem como Microcosmo. Da Concepção Dinâmica do Homem em Nicolau de Cusa, À Inflexão

Espiritualista da Antropologia de Ficino. Lisboa: Philosophica, 1999, pp. 9-10). 98

De acordo com Cassirer: “O próprio tratado De dignitate et excellentia hominis, escrito por Gionozzo

Manetti por volta do ano de 1452, já havia sido estruturado segundo o mesmo esquema formal e

intelectual que Pico segue segue para construir seu discurso. Ele opõe ao mundo natural, entendido como

o mundo do que meramente é, o mundo intelectual do vir-a-ser, o mundo da cultura. Somente no interior

deste ultimo é o que o espírito do homem encontra sua morada; nele o homem dá provas de sua dignidade

e liberdade: “Tudo o que discernirmos é nosso, ou seja, é humano, por ser produzido pelos homens: todas

as casas, todas as vilas, enfim, todos os edifícios da terra. Nossas são as pinturas, as esculturas , as artes,

as ciências, as (...) sabedoria. Nossas são (...) todas as invenções, todas as diversas línguas e os diversos

literários e, quanto mais e mais pensarmos sobre seus usos, tanto mais fortemente somos levados a

admirar e ficar estupefatos”. Se estas palavras de Manetti, em sua essência, remontam ao ideário estóico

Page 52: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

52

de outros eruditos como Nicolau de Cusa, Manetti que descreveram sobre Microcosmo

(homem) Macrocosmo (sua estrutura cósmica)99

, algo fundante da orientação da

antropologia piquiana100

.

Se os tratados sobre a miseria hominis, que Manetti pretendia refutar, incluem

também o trabalho, como punição de Deus segundo a Bíblia, ele identifica, porém, no

trabalho, uma premissa indispensável para a edificação do regnum hominis, ou seja,

atuação da dignitas hominis. Na antropologia piquiana, mesmo em continuidade com a

tradição humanista da exaltação do indivíduo, transcende elevando-se ao Metafísico. O

homem apresentado na reflexão piquiana não se expressa como homo faber, que cria

com as suas obras o regnum hominis, porque em nenhum lugar de sua obra se fala de

corpo, mas se reflete apenas sobre o seu intelecto, agente em plena liberdade. Daí na sua

meta suprema o homem se isola da sociedade e se concentra sobre si mesmo a fim de

ascender às esferas superiores: algo que diverge da orientação humanista buscando nas

artes liberais, na Filosofia e na Teologia a sua instrução fundamental.

A distinção existente entre o ser e o agir, contrapõe-se à determinação em que se

encontra o ser e o que determina a sua ação, pois em si está o sujeito e a ação, a vontade

e o cessar, pois traçam a linha da capacidade humana que se encontra não somente em

da Antiguidade, o discurso de Pico, por outro lado, vem acrescentar um elemento novo. Com efeito, todo

o seu ponto de vista está marcado por aquela transformação característica do motivo do microcosmo, que

havia se processado em Nicolau de Cusa e, depois dele, em Ficino” (cf. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e

Cosmos na Filosofia do Renascimento, p. 140). 99

Segundo Cassirer: “Pois este problema está na inversão da relação que costumamos estabelecer entre o

ser e o agir. No mundo das coisas, pode ser que seja válida a velha máxima escolástica segundo a qual

operari sequitur esse; a natureza e a peculiaridade do mundo do homem, porém, decorrem do fato de que,

nele, vale o principio contrário: não é o ser que prescreve de uma vez por todas uma direção determinada

definitiva para o tipo de criação, mas é a direção original da criação que determina e fixa o ser. O ser do

homem decorre do seu agir: e este agir: e este agir não se manifesta unicamente na energia da vontade,

mas compreende a totalidade de suas forças criadoras. Com efeito, cada ação genuinamente criadora

engloba em si mais do que um mero agir sobre o mundo; ela pressupõe que o agente da ação seja

diferente do seu objeto e a ele se oponha de forma consciente. Tal oposição, por sua vez, não é um

processo único que se encerra com um resultado determinado, mas algo que tem de ser empreendido sem

cessar. O ser do homem, assim como seu valor, dependem desse processo de constante retomada; por

conseguinte, não podem ser definidos e determinados como algo estático, mas como algo dinâmico. E

bem verdade que podemos ascender até ao ponto mais alto possível na escala hierárquica dos seres, que

podemos alçar às inteligências celestiais, e mesmo à origem divina de todo o ser; mas enquanto nos

detivermos em qualquer um dos degraus desta escala, não encontraremos nele o valor especifico da

liberdade” (cf. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento, pp. 141-142). 100

Conforme escreve Bignotto: “O nome de Pico della Mirandola ocupa um lugar especial no

desenvolvimento da antropologia do Renascimento. Nele se cruzaram as principais correntes de

pensamento do período e encontraram guarida os grandes temas do humanismo. Por essa razão, é muito

comum que estudiosos da antropologia da época se refiram aos seus escritos como a uma síntese da

quinada produzida na Renascença com relação à antropologia medieval” (cf. BIGNOTTO, Newton.

Considerações sobre a Antropologia de Pico della Mirandola, p. 140).

Page 53: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

53

Pico, com o seu penhor da dignitas hominis101

, mas também em Giannozzo Manetti

(1396-1459), pois se reportou ao homem para compor a sua síntese do individuo e o

cosmo. O estudo de Pico102

, com a sua investigação filosófica a respeito da natureza

humanas,103

considera a visão de Microcosmo, pois o homem se torna o centro do

universo e na sua antropologia faz-se mister a ideia de diferir o homem dos demais

seres. Mesmo que Marsílio Ficino não houvesse escrito um tratado sobre a dignitas

hominis, mas se ocupou do problema e abordou esse tema em sua Theologia platonica,

retomando ainda em suas outras obras.

Macrocosmo e Microcosmo estavam presentes no Renascimento como legado de

uma tradição com base na qual se estabelecia a compreensão do Cosmo. Pico della

Mirandola traçou o perfil dessa relação não só por fazer parte de certa orientação do

Renascimento italiano, e de querer compreender a base pela qual o homem se faz como

101

De acordo com Wolfgang: “Na formulação deste pensamento por mais que a doutrina de Pico seja

determinada em sua totalidade pela tradição aristotélico-escolástica, de um lado, e pela tradição

neoplatônica, de outro se processa uma nova ruptura. Com efeito, fica claro agora que nem a categoria da

criação nem a da emancipação são suficientes para definir a relação que existe entre Deus e o homem e

entre o homem e o mundo. A criação, no sentido que habitualmente atribuímos a ela, não pode ser

entendida de outra forma senão como algo que não apenas confere à criatura um ser determinado e

limitado, mas que também lhe prescreve uma esfera, também determinada, no interior da qual se

manifesta a sua vontade e seu poder de realização. O homem, contudo, rompe as limitações de tal

natureza; seu agir não lhe é pura e simplesmente ditado pela realidade em que vive, mas encerra em si

possibilidades sempre novas que, em principio, transcendem todo e qualquer círculo finito. Este segredo

da natureza; um segredo que lhe é invejado não apenas pelo mundo inferior, mas também pelo mundo das

inteligências, já que somente nele, homem, cessam de existir as regras da criação que, de resto, governam

tudo o que o que é criado; somente para ele, homem, não vale a regra do “tipo” fixo e determinado” (cf.

WOLGANG, Neuser. A Formação e o Conceito de Indivíduo na Renascença. (Revista) Educação, Porto

Alegre, V.34, n.1, p.25-32, jan./abr.2011, p. 142). 102

No entender de Cassirer: “Ao final da criação assim descreve o mito com o qual se inicia o discurso de

Pico, o Demiurgo sentiu-se impelido a criar um ser que fosse capaz de reconhecer a razão de sua obra e

de adorá-la por sua beleza. “Mas entre os eternos arquétipos das coisas não mais havia um modelo para

um novo rebento, nem o criador possuía entre seus tesouros um dom que pudesse conferir como dote ao

seu novo filho e tampouco era possível encontrar no mundo inteiro um lugar que o observador do

universo pudesse ocupar. Pois o universo estava repleto, e em cada esfera, tanto na mais elevada quanto

na mais inferior e na central, tinham sido distribuídos seres que correspondiam à ordem da esfera em que

tinham sido colocados” (cf. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento,

pp.142-143). 103

Para Neuser Wolfgang: “Lançado desse modo uma das mais firmes bases da pedagogia humanista da

renascença, Pico afirma uma concepção filosófico-antropológico, de acordo com o qual o homem é o ser

cuja tarefa e qualidade consiste em se determinar. A natureza do ser humano é a de um ser sem

determinações. Assim, é tarefa de cada indivíduo determinar a si mesmo e moldar seu próprio

desenvolvimento, enquanto o gênero humano, como tipo, permanente marcado pela indeterminação.

Nesse sentido, as pessoas podem perceber que são seres sem determinação e é somente por isso que todos

podem escolher uma certa determinação ou uma combinação de determinações. Em razão disso, elas são

autônomas. Em Pico, como a água que molha, o homem é um ser sem determinação, que pode realizar a

si mesmo. Ao homem é dada, portanto, uma tarefa a também uma chance. Por isso, a responsabilidade

pela formação não cabe ao preceptor ou ao pedagogo. E, nesse sentido, Pico não tem como ambição

formar os jovens” (cf. WOLGANG, Neuser. A Formação e o Conceito de Indivíduo na Renascença.

(Revista) Educação, Porto Alegre, V.34, n.1, p. 25-32, jan./abr.2011, pp. 29-30).

Page 54: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

54

criação e existência104

. O cisma platônico tanto no que compete à transcendência vista

por Ficino105

como por Pico della Mirandola se volta para a exaltação do homem como

Microcosmo, ou seja, como síntese do universo com valor intrínseco e particular para a

Renascença humanista: valor de manifestação humana que fora também evidenciado

por Ficino.

A influência que se tornara o neoplatonismo, presente nas obras de ambos os

pensadores, quando se reportam à questão da natureza do ser, a investigação passa

assim a se objetivar na busca pela transcendência, misticismo e visão holística: ambas

evidenciadas na compreensão do microcosmo/macrocosmo:106

forma com que os textos

foram apresentados, de forma poética literária, em via de visão teológico-filosófica, e

por onde estava sendo elaborada a relação entre o homem-natureza no presente domínio

do pensamento filosófico renascentista. Elevando-se acima da realização de si mesmo

no regnum hominis, o homem assume assim o seu papel metafísico em virtude de sua

posição no cosmo.

104

Neuser Wolfgang afirma ainda: “Burckhardt classificou o discurso de Pico como um dos mais nobres

legados da cultura do Renascimento. De fato, nele se resume com grandiosa simplicidade e concisão a

totalidade do querer e do conceito de conhecimento de toda uma época. Nele são claramente confrontados

os dois pólos sobre cuja oposição repousa a tensão moral e intelectual que é peculiar ao espírito do

Renascimento. O que se exige a um só tempo da vontade do homem e de seu conhecimento é um total

voltar-se para o mundo e um total separar-se dele. Vontade e conhecimento podem, ou melhor. Devem

consagrar-se a cada uma das partes do universo, pois somente ao percorrer por completo a esfera do todo

é que o homem pode medir a extensão de sua própria esfera de determinação. De outra parte, porém, tal

abertura completa em relação ao mundo em hipótese alguma pode significar uma dissolução de si mesmo

no mundo, um perder-se no sentido místico-panteísta. Pois a vontade do homem só entra em posse de si

mesma ao tomar consciência de que nenhum fim determinado poderá algum dia satisfazê-la; e o saber do

homem só entra em posse de si mesmo ao saber que em momento algum poderá satisfazer-se com um

conteúdo determinado, qualquer que seja ele. Desta forma, o ato de voltar-se para o todo do cosmos

sempre encerra em si, ao mesmo tempo, a possibilidade de não se estar ligado a nenhuma de suas partes.

À força do entregar-se totalmente corresponde a força do subtrair-se totalmente. A dualidade entre o

homem e mundo, entre “espírito”e “natureza” é rigorosamente mantida e, não obstante, tal dualidade não

é desenvolvida a ponto de se transformar num dualismo absoluto com a marca da Escolástica Medieval”

(cf. WOLGANG, Neuser. A Formação e o Conceito de Indivíduo na Renascença. (Revista) Educação,

Porto Alegre, V.34,n.1,p.25-32,jan./abr.2011, pp.144-145). 105

Cf. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. Trad. do Alemão João

Azenha Jr: Martins Fontes, 2000, p.75. 106

De acordo com João André: “Segundo esta opinião, pode conceder-se que há três mundos: o pequeno

mundo que é o homem, o Maximo.” Começa, entretanto, a perceber-se que a alcance desta nova reflexão

é profundamente ético, quando a sua configuração holística conduz à percepção de que a parte do todo, no

caso do homem-microcosmo, não deixa de ser ela também um todo à sua maneira: “Certamente o homem

é um pequeno mundo que é também parte do grande. Em todas as partes resplandece o todo, porque a

parte é parte do grande” (cf. MARIA. João, André. O Homem como Microcosmo. Da Concepção

Dinâmica do Homem em Nicolau de Cusa, À Inflexão Espiritualista da Antropologia de Ficino.

Philosophica, Lisboa, 1999, p. 20).

Page 55: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

55

A noção de homem em Pico, com relação direta ao Microcosmo se realiza pela

distinção. O Criador e a ligação do homem como Microcosmo com o ser criador, pois

ao homem não havendo mais dons, uma vez que às criaturas desse mundo o Criador

distribuiu todos seus dons específicos e no homem infundiu todas as possibilidades, se

revela como uma máxima expressão do contexto piquiano relativo ao pensamento

filosófico-teológico humanista. A especificidade atribuída por Pico della Mirandola ao

Microcosmo se justifica pela missão que o mesmo tem para superar as formas inferiores

de se constituir. Nessa atribuição natural do homem como Microcosmo deve se dispor a

possibilidade de ser elevar a Deus. Trata-se de um destaque necessário dado ao homem

que deve se voltar107

à divindade é uma das características centrais do olhar que Pico

della Mirandola propõe em relação à essência e natureza humanas.

O ser criado deve se voltar ao ser criador Deus, um olhar em que o homem deve

realizar ao observar a sua atribuição natural na Terra ante a atribuição divina: algo que a

Filosofia assume para explicar parte do sentido natural que transparece através da

ligação do Microcosmo para com o Macrocosmo. Pico della Mirandola não deixa de

articular sua lógica para explicar a ação ontológica do homem na relação com a

transcendência. O homem em Pico é visto como perfeita síntese de todas as partes que

compõe a Terra, o criador de sua vida, oriundo da uma ordem divina, ordem celeste e

ordem terrena, onde formam o corpo a alma e o espírito humanos.

Destaca-se assim a maneira em que fora visto o homem no Renascimento italiano

e, em especial, em Pico della Mirandola, com base nos saberes indicados pelos estudos

que foram aqui expostos, e no enfoque oriundo não só do cerne do neoplatonismo,

presente no Renascimento no século XV, mas de outras doutrinas que estiveram na base

da formação e reflexão de Pico, ou seja, nas suas fontes filosóficas relativas à Magia, à

Astrologia e à Qabbalah. Trata-se de fontes que confirmam o percurso no qual se alia

107

Em conformidade com Maria de Lourdes Sirgado: “Este poder de escolha sobre a forma e o valor que

a vida de cada um adquirirá mediante a sua reflexão e as suas ações implica, necessariamente, que se faça

sempre a melhor escolha possível. Uma escolha que permita ao homem elevar-se da sua condição terrena

à realidade celeste, em comunhão com os anjos, conhecedor das coisas divinas e fundindo-se pelo amor,

no Pai. Neste contexto, a filosofia assume uma importância determinante para o bom sucesso de tal

empresa pois o seu estudo auxilia esta ascensão ontológica. De outro modo, há uma hierarquia ordenada

de possibilidades pelas quais o homem se pode realizar mas nem todas correspondem à dignidade

humana que resulta desta sua natureza, neste sentido, a liberdade implica, não a possibilidade de uma

escolha qualquer, mas uma escolha moral e intelectual responsável que cumpra o dever de nos elevarmos

até Deus” (cf. SIRGADO, Ganho, Maria de Lourdes. Apresentação IN: MIRANDOLA Giovanni Pico

della. Discurso sobre a dignidade do homem, pp. XLIV-XLV).

Page 56: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

56

tal filósofo, na ligação entre o homem e o universo, ou seja, Macrocosmo e

Microcosmo, e no modo em que Pico apresenta a busca por descrever a natureza

humana que recebeu um enfoque importante na ligação do homem (Microcosmo) com

Deus (Criador), revelando a assim a importância do homem em sua natureza de criado e

com especificidades ontológicas distintas dos demais seres na existência.

Page 57: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

57

CAPITULO II

A ORIENTAÇÃO FILOSÓFICA DE PICO DELLA MIRANDOLA: RELAÇÃO

ENTRE ESCOLÁSTICOS E RETÓRICOS, FILÓSOFOS BÁRBAROS E

HUMANISTAS

Para se pensar a abordagem de Pico della Mirandola concernente à relação entre

orientação escolástica e humanista na elaboração de sua filosofia - após as formulações

do capítulo anterior sobre a cultura humanista e a inserção do projeto filosófico de tal

pensador nesse universo cultural -, é preciso se reenviar, antes de qualquer coisa, à sua

correspondência com Ermolao Bárbaro (1453-1493), professor da Universidade de

Pádua, a quem Pico dirige as sua criticas por ele atribuir valor unicamente à Filologia e

à Retórica descuidando da Filosofia como busca da verdade. Os escritos de Ermolao

Barbaro expressavam interesse também pela estilística literária, pelas formas de

escritura e pela sua expressão no domínio retórico humanista. Como estudioso de

Aristóteles e crítico dos escritos de autores medievais, Barbaro os considerava filósofos

“bárbaros” e “incultos”, uma vez que estes não revelavam interesse ou cuidado com a

escrita, ou seja, uma atenção e obediência aos cânones orientadores da retórica clássica,

na elaboração e tratamento dos textos filosóficos. Ademais, Barbaro critica também a

esses pensadores pelo uso deles de um latim não adequado à forma assumida pelos

humanistas.

2.1 Pico Della Mirandola e Bárbaro entre humanistas e escolásticos: estilo,

erudição e fontes do pensamento

Nas discussões de Pico sobre temas relativos ao seu projeto filosófico e à

orientação humanista, podem-se considerar as cartas enviadas, quer a Ermolao

Barbaro108

quer a Lourenço de Médici. Ermolao Barbaro prosseguia na tradição do

pensamento de Petrarca, pretor do advento do Humanismo renascentista, da linguagem

utilizada com um fim em si mesma. Em 15 de abril de 1485, escrevendo a Pico della

Mirandola, Barbaro dirigiu-se duramente contra os filósofos medievais, definindo-os

108

Trata-se aqui de duas cartas dirigidas, quer a Lourenço de Médici quer a Ermolao Bárbaro, e reunidas

sob um titulo significativo, ou seja, Filosofia ou eloquência?:” Sobre o falar em filosofia e seus modos. A

pessoas que recebe o Beroaldo bolonhês, noites alegres nas universidades, também estimado por Erasmo

de Roterdã (Erasmus Roterdamus – 1466-1536) e Poliziano ( Angelo Ambrogini – 1454-1494) ambos

humanista; eles seriam certamente apreciadores, uma vez que foi seu mestre nesse estilo que Pico

levantou por escrito a Lorenzo e a Bárbaro (cf. BROCCHIERI, Maria Teresa Fumagalli Beonio. Pico

della Mirandola, Asti: Piemm, 1999, p.2).

Page 58: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

58

“sórdidos, rudes, incultos, bárbaros” 109

e convidando, de forma calorosa, Pico della

Mirandola a não dedicar tanto tempo ao estudo das obras desses pensadores. Ainda na

mesma Carta, Barbaro escreve terem sido esses filósofos excelentes com relação ao

engenho e à doutrina, mas o mesmo não ocorrera quanto ao estilo, uma vez que

necessário à imortalidade e à glória dos autores.

O ataque de Barbaro aos fiósofos “bárbaros”, conforme os denomina, compunha

o seus argumentos na Carta, na qual elogiava, igualmente, o jovem Pico, em virtude de

seu aprimoramento nos estudos literários e humanísticos, em especial, no que concerne

ao grego, e também pela elegância ao compor obras no domínio da poesia e da prosa.

Por conseguinte, tratava-se de uma exortação para que o jovem pensador continuasse se

dedicando aos estudos humanísticos. É certo que Pico respondeu, em junho do mesmo

ano, a Ermola Barbaro, como expressa a sua epístola-tratado, intitulada De genere

dicendi philosoforum.110

Tal epístola compreende três partes: i) após elogiar a cultura e

a eloquência de Barbaro, Pico se lamenta, acatando os argumentos do humanista, de

haver dispensado muito tempo aos estudos desses filósofos111

; ii) com maior demora na

sua exposição, Pico cede a palavra a um filósofo “bárbaro”, imaginário, o qual busca se

defender, por meio de um estilo refinado, e semelhante aquele dos humanistas, das

acusações que lhe foram dirigidas por Barbaro112

; iii) Pico conclui o seu discurso

discordando do filósofo imaginário, e defendendo haver pronunciado um ataque à

Eloquência apenas para incitar Barbaro a realizar uma defesa a favor dela113

.

Não obstante as várias polêmicas desenvolvidas sobre o tema dessa epístola114

, é

preciso aqui sustentar que Pico em nenhum momento recusa a herança humanista a

favor desses filósofos, pois é relevante ainda certa articulação entre eloquentia e

sapientia, em um projeto filosófico que dialoga com orientações filosóficas e doutrinas

diversas, não se tratando apenas de uma resposta em relação à preponderância da

“forma” ou do “conteúdo”. Portanto, sem se retomar aqui os argumentos da primeira

parte da Carta, pode-se sustentar, de acordo com a segunda parte, que a defesa

109

BARBARO Ermolao, MIRANDOLA Della Pico. Filosofia o Eloquenza? Trad. it. Francesco Bausi,

Napoli: Liguori, 1998, p.39. 110

Ver nota 111 dete capítulo. 111

Cf. BARBARO Ermolao, MIRANDOLA Della Pico. Filosofia o Eloquenza?, pp. 37-39. 112

Cf. BARBAO Ermolao, MIRANDOLA Della Pico, Filosofia o Eloquenza?, pp.39-59. 113

Cf. BARBARO Ermolao, MIRANDOLA Della Pico, Filosofia o Eloquenza?, pp.59-65. 114

Ver, nesse sentido, BAUSI, Francesco. Nec rhetor neque philosophus. Fonti, língua e stile nelle prime

opere di Giovanni Pico Della Mirandola (1484-87), Cittá di Castello: Leo S. Olschki, 1996, pp. 13-92.

Page 59: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

59

imaginária do filósofo medieval é muito mais a expressão da Retórica e de seu triunfo

na epístola, que propriamente a recusa em relação a esse saber por parte de Pico. Isto se

revela no estilo douto e elaborado, adotado na epístola para os argumentos do filósofo

medieval, como escreveria um humanista. No final da epístola, Pico nega de concordar

com tal filósofo, afirmando, igualmente, haver se comportado como Glauco no escrito

platônico, a República, ao falar contra a justiça a fim de incitar Sócrates a realizar a

defesa dela115

.

Ademais, sabe-se que Pico sempre praticou tal alternância de estilo, se compara

aquele utilizado nas epístolas e na Oratio, e aquele apresentado nas Conclusiones

nongentae, ou seja, recorrendo ao estilo parisiense para as obras filosóficas e

humanístico para os seus escritos literários ou para as epístolas. Contudo, esses

argumentos não esgotam por completo a questão, mesmo reconhecendo a sua habilidade

estilística, oriunda de seus estudos humanísticos e de sua erudição, isto é, expressões e

construções poéticas advindas de seu conhecimento de Gélio, Apuleio, Plínio. Portanto,

não obstante a defesa dos filósofos medievais, aquilo que se destaca ainda é a relevância

da Retórica, mesmo para aqueles que buscam refutá-la em seus escritos: algo que se

revelou na sua defesa do filósofo “bárbaro” 116

.

Ademais, voltar-se aos Escolásticos na busca por ideias e tradições, ligadas ao

Cristianismo, expressa uma verdadeira harmonia entre os estilos retórico e filológico, ou

seja, da retórica de alguns filósofos como Quintiliano (30 a.C. 95 d.C.), Sêneca e

Cícero. Pico já havia escrito uma epístola, como se indicou antes, para Ermolao

Barbaro, um ano antes, na esperança de discutir sobre Platão e Aristóteles, e provar a

intenção discursiva para a defesa de tais filósofos. Em retribuição a Pico, Ermolao

observou em sua carta escrita em resposta ao erudito de Mirandola117

, desde a sua

estada no centro paduano, à existência de filósofos grosseiros no que concerne ao que

escreviam, em virtude da precariedade no estilo, ou seja, nem elegante e tampouco

claro.

115

Cf. BARBARO, Ermolao. Filosofia o Eloquenza?, p. 63. 116

Cf. BARBARO, Ermolao. Filosofia o Eloquenza?, pp. 39-59. 117

Bárbaro era um homem nobre, espirituoso e famoso por seus estudos sobre Aristóteles. Ele reuniu

muitas cartas em que se destaca a sua personalidade e doutrina (cf. BROCCHIERI, Mariateresa Fumagalli

Beonio. Pico della Mirandola, pp.76-77).

Page 60: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

60

A recomendação de Pico para Bárbaro era, sobretudo, para que ele retomasse

seus estudos literários a língua grega, uma observação importante para a sua

composição filosófica. Olhar para os poetas de verdade, ou para aqueles da

Antiguidade, era uma tarefa indispensável, conforme apresenta a Carta escrita por Pico

a Barbaro em que se destacam a forma e seu discurso118

. Se Pico dependia dos escritos

filosóficos medievais, observando o valor e solidez dos pensamentos sobre a verdade

dos seus conteúdos, e não por causa das belas palavras ou do estilo rebuscado, Barbaro

defendia, ao contrário, a necessidade de se preservar os cânones da retórica clássica,

opondo-se assim ao estilo dos clássicos medievais119

.

Escrevendo a Ermolao Barbaro, Pico queria conciliar linguagem e pensamento,

propondo assim expressar a verdade em palavras, destacando o modelo usado por

Cícero, em máxima do linguajar escolástico120

, pois ele se lastima de ter observado que

os filósofos separaram a sabedoria da eloquência. No entanto, Barbaro não defendia um

estilo sem substância que merecesse “laudem et sempiternam memoriam” e que fosse

além de sua doutrina. A posição de Barbaro em relação a Pico, diz respeito à capacidade

de se destacar uma tripla atuação, na poesia, na oratória e na Filosofia121

, todas

118

Cf. BROCCHIERI, Maria Teresa Fumagalli Beonio. Pico della Mirandola, p. 77. 119

Para Valverde: “Na correspondência trocada, Barbaro defendia a necessidade de se preservar os

cânones da retórica clássica na redação de textos filosóficos contra a ausência de elegância estilística e de

erudição clássica dos medievais. Pico, em carta laudatória e eloqüente, replicou que os escritos filosóficos

medievais têm valor pela solidez dos pensamentos e pela verdade dos conteúdos, e não por belas palavras

ou estilo rebuscado. O traço divisório entre humanismo e escolástica delineia-se, para o caso, na fronteira

entre retórica e Filosofia. Pico, mesmo imbuído de conhecimento do pensamento humanista e

manifestando-se em latim escorreito, fato reconhecido por Barbaro, tendeu a uma síntese filosófica entre

ambas as tendências: medieval e humanista renascentista” (cf. VALVERDE, Antonio José Romera, Filos,

Aurora, Curitiba, V.21, n.29, p.457-480,jul/dez. 2009, p.469).

120 Assim como traduz Richard: “Ele relata o lugar comum de que é preferível ler “estórias sagradas,

escritas de modo rústico àquelas com elegância”, que são certamente melhores do que “todos aqueles

discursos bem elaborados”. No entanto, logo o argumento fica confuso: sim, admite o defensor do

escolasticismo, esse estilo parece ser “tolo, rude, inculto”, mas somente pelo fato de ser escrito para os

iniciados, da mesma forma usada pelos antigos para ocultar seus mistérios em fábulas no intuito de

manter afastados ou não iniciados, que iriam “poluí-los com composições ainda mais repulsivas de

palavras (amariori paulum córtice verborum). Por fim, depois de uma brincadeira com os nomes

“arbitrários” que, por caso, emprega aqueles das escolas escolásticas (romanas, franceses, britânicos,

espanhóis, “ou até mesmo aquilo que os vulgares estão acostumados a chamar de parisienses” (cf.

RICHARD, Paul Blum. Pico, a Teologia e a Igreja, IN: Pico della Mirandola: Novos Ensaios.

M.V.Dougherty (org) Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011 (Pico, a Teologia e a igreja.

RICHARD, Paul Blum, p.64). 121

Pico não tinha, porém, tanta certeza disso. Alguns anos antes, ele escrevera a Poliziano afirmando de

não merecer os elogios recebidos por suas poesias. Ele estava certo em suspeitar de não poder ser

comparado com os elevados padrões de seu amigo, não quando se tratava da latinidade. Conforme

escreve Kraye, “Poliziano geralmente fazia correções com relação ao estilo. Ao prometer tentar „um dia

ser o tipo de pessoa que você já declara que sou‟, Pico diz que por enquanto, irá imitar a estratégia de

Page 61: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

61

vivenciadas, de forma vigente, no Renascimento italiano e propagadas, sobretudo, pelos

doutos dos studia humanitatis.

A posição dos escolásticos se opunha aquela apresentada pelos studia

humanitatis em que a Filosofia deveria se articular à Retórica, ou seja, a da união entre

sapientia e eloquentia. Em oposição à ideia de que a Eloquência e a Retórica sejam

adequadas apenas a tribunais de justiça, não cabendo a instituições acadêmicas, Pico

evoca, quanto aos escolásticos, mais necessidade da eloquência. O escolástico

encontrava mais dificuldades com o uso do discurso, pois associava a Retórica ao ato de

persuadir a multidão mais facilmente, e a Filosofia com o ato de convencer os

indivíduos de forma mais perspicazes com o seu discurso122

. O filósofo imaginário da

epístola se vangloria de haver estudado não nas escolas dos gramáticos, mas nos

círculos dos filósofos, ou seja, exprime certo desprezo em relação à erudição123

.

Pico descreve na epístola a Barbaro124

, destacando a sua exposição eloquente,

como se deve observar o discurso, ou seja, a forma como se usa para se elaborar uma

exposição, demonstrando, igualmente, uma defesa aberta dos grandes mestres árabes e

latinos, pertencentes à Idade Média: algo que revela também o seu empenho no estudo

que havia desenvolvido de filósofos como São Tomás de Aquino, Duns Escoto e

Averróis. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma oposição a toda preocupação superficial,

apresentada por alguns representantes dos studia humanitatis ante a Retórica, e de um

Poliziano, „desculpando-se por seu grego dizendo que é latino, assim como se desculpa por seu latim

porque está tentando ser grego‟. Da mesma forma, Pico irá se fazer aceitável para os poetas e oradores ao

afirmar que é um filósofo e para os filósofos ao se apresentar como um orador e venerador das musas”

(cf. KRAYE, Jill. Pico acerca da Relação da retórica e da Filosofia. IN: Pico della Mirandola: Novos

Ensaios, p. 30). 122

Segundo comenta Kraye: ”Os filósofos não querem os aplausos dos teatros; em vez disso, eles

preferem o silêncio respeitoso daqueles poucos que conseguem enxergar as coisas de modo mais

profundo. Mas então, ele diz a Bárbaro, qual o problema de as pessoas comuns nos considerarem

sórdidos, rudes e incultos, como você afirma: não é para elas que escrevemos, mas para vocês e para as

pessoas como vocês. Embora essa atitude da parte do escolástico possa refletir o desdém aristotélico do

conde de Mirandola e Concórdia pelas massas do povo, o que mostramos aqui não é um elitismo social

mais intelectual, muito parecido com o do amigo de Pico, Poliziano, cuja origem é relativamente

humilde” (cf. KRAYE, Jill. Pico acerca da Relação da retórica e da Filosofia. IN: Pico della Mirandola:

Novos Ensaios, p. 36). 123

Cf. BARBARO, Ermolao, MIRANDOLA Della Pico. Filosofia o Eloquenza?, pp. 39-41. 124

Kreye comenta: “Na carta de Pico a Barbaro, o escolástico usa outra imagem para ilustrar a

disparidade entre a aparência externa e a realidade interna: as estátuas de Sileno, horrendas por fora, mas

repletas de pedras preciosas por dentro, que Alcebíades no Banquete de Platão, uma fonte não disponível

para os filósofos medievais, compara a Sócrates, cuja aparência repulsiva oculta a beleza interna de seus

pensamentos sob o exterior feio de um estilo grosseiro é impedir que o público tenha acesso às ideais que

não são adequadas a sua compreensão limitada” (cf. KRAYE, Jill. Pico acerca da Relação da retórica e da

Filosofia. IN: Pico della Mirandola:Novos Ensaios, p. 39).

Page 62: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

62

estudo árduo, completo e especulativo, pois estavam presentes em seu cenário

humanista a falsafa árabe e ainda outras culturas e doutrinas investigadas, conforme já

se expôs neste estudo, desde a Astrologia à Qabbalah.

Isto revela a sua capacidade de investigar as várias esferas do pensamento

humano, pressuposto de um projeto filosófico aberto à recepção de sistemas e

orientações filosóficas distintas, pois confirma a dimensão do interesse de Pico em

relação aos saberes. É certo que tanto a filosofia escolástica quanto a filosofia árabe, ao

beber da fonte grega, fora instrumento da compreensão e formação do pensamento

filosófico125

de Pico della Mirandola126

. Ademais, não se pode descuidar de que entre as

fontes de seu pensamento e, em especial, da sua epístola a Ermolao, ou seja, quanto à

ideia do filósofo imaginário bárbaro, encontra-se o De oratore de Cícero, além do que o

diálogo ciceroniano defende ainda a questão da relação entre Eloquência e Filosofia.

Com base nessa relação, Cícero defendeu a superioridade do orador em relação

ao filósofo, pois o orador é necessariamente filósofo, ao passo que o filósofo não é

necessariamente orador. Trata-se do desprezo do filósofo à Eloquência. As observações

de Pico, dirigidas a Ermolao, destacavam também o fato de este último valorizar muito

mais a Filologia127

do que a Filosofia. Isto porque Ermolao estaria mais voltado para a

estilística literária e não para a verdade: tarefa fundamental do projeto de Pico della

125

De acordo com Cassirer: “Assim como as artes plásticas buscam fórmulas plásticas de conciliação,

também a filosofia busca fórmulas conceituais de conciliação “entre a confiança medieval em Deus e a

confiança do homem do Renascimento em si mesmo”. Tal esforço manifesta-se de forma não menos

evidente na literatura propriamente “filosofia” da época, nos tratados meio-filosóficos, meio-retóricos,

que constituem o traço literário característico da nova era humanista” (cf. CASSIRER, Ernst. Individuo e

Cosmos na Filosofia do Renascimento, pp.127-128).

126

Richard escreve: “Considerando que essa carta foi escrita antes de Pico confrontar-se com os prelados

romanos e até mesmo antes de ter estado em Paris, ela mostra com clareza uma pauta persistente do

filósofo, isto é, a tentativa de avaliar a sabedoria nos textos escritos que não são insípidos nem todos.

Obviamente, a melhor maneira de avaliar a autoridade da teologia doutrinal é voltando a sua origem, o

que, no caso de Pico, pode indicar a necessidade de uma leitura cuidadosa da Bíblia ou, ainda melhor, a

obtenção do acesso a seu modo adequado e divino de falar, que se manifestou no livro. Para o primeiro,

Pico produziu seu próprio comentário a respeito da Criação no Gênesis; para o segundo, ele descobriu a

Cabala” (cf. PICO DELLA MIRANDOLA: Novos Ensaios/editado por. (cf. RICHARD, Paul, Blum.

Pico, a Teologia e a Igreja. DOUGHERTY. M.V (org), p.65). 127

Para Kraye: “Barbaro [...] estava preocupado em demonstrar que era possível escrever a respeito da

filosofia natural sem violar a „propriedade e a transparencia da língua romana‟. Pico, ao escrever para seu

amigo humanista Poliziano, implorava para que ele „se esforçasse bastante‟ e „recuperasse a literatura de

sua decadência, para que, assim, o esplendor da língua romana não perca totalmente seu brilho por meio

dos efeitos nocivos do tempo‟. Quando expôs suas 900 Teses para o debate planejado em Roma, porém,

ele anunciou no prefácio que “não imitara o esplendor da língua romana, mas, em vez disso, o estilo

usado pelos mais célebres debatedores parisienses para falar, já que ele é usado por quase todos os

filósofos de nossa época” (cf. KRAYE, Jill. Pico acerca da Relação da Retórica e da Filosofia.

DOUGHERTY. M.V. (org). Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 41).

Page 63: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

63

Mirandola na busca de identificar, nas várias doutrinas, a presença dessa verdade, pois

não ausente também nos escritos escolásticos.

A erudição proveniente dos estudos realizados pelos séculos antecedentes ao

Renascimento contribuiu também para o crescimento filosófico, pois introduziu

Aristóteles e Averróis128

nos currículos universitários: questões como o propósito de

Santo Tomás de Aquino129

em provar pela razão os dogmas cristãos e, em seguida,

Duns Escoto,130

demonstrando de que maioria em tais doutrinas estava além da razão.

Portanto, Pico se ateve em buscar esse conhecimento, ou seja, ler e estudar os

filósofos,131

tanto gregos como os árabes e escolásticos, na sua busca por todo esse

universo de pensamentos, os quais jaziam em doutrinas e orientações diversas do

pensar. Isto explica, igualmente, a presença na epístola a Ermolao de várias fontes e

citações no discurso do filósofo: referências gregas e latinas.

Há, portanto, um penhor em não romper com as ideias já antes propostas pelos

filósofos, questão importante no seu empreendimento, ler e citar os antecessores do seu

pensamento, expressando também com relevância retórica pautada no conhecimento das

128

De acordo com Saranyana: “Ibn Roshd nasceu em Córdoba. Seu pai e seu avô foram qâdies (juízes) de

Cargo que ele próprio chegou a ocupar em sua maturidade. Apresentado à corte almóada de Fez por Ibn

Tufayl, foi também médico do sultão. Embora gozasse sempre do favor dos sultões almóadas, sofreu uma

curta perseguição e desterro quase no final da sua vida. Foi reabilitado poucos meses antes de sua morte,

ocorrida no dia 10 de dezembro de 1198, na corte de Marrocos” (cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A

Filosofia Medieval. Das Origens patrísticas à Escolástica Barroca. São Paulo: Instituto Brasileiro de

Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2006, p. 235). 129

Sobre Tomás de Aquino, o Doctor Angelicus, diz Saranyana: “nasceu em 1224/5, em Roccasecca,

próximo a Aquino, na parte setentrional do Reino de Nápoles. Seu pai, Landolfo de Aquino, era um nobre

gibelino, ou seja, partidário do imperador Frederico II, coroado em 1220. Sua mãe, Teodora de Teata, era

de origem normanda. Foi o caçula de sete irmãos” (cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia

Medieval. Das Origens patrísticas à Escolástica Barroca, pp. 304-305). 130

Conforme Saranyana: “Nasceu em Duns, pequena localidade escocesa, no seio de uma família de ricos

proprietários, benfeitores dos Frades Menores. Em 1278, aos trezes anos de idade, ingressou no convento

de Dumfries para se iniciar na vida franciscana. A Edição clássica de suas Opera Omnia foi preparada por

Lucas Waddingo, publicada em 1639, em doze volumes, e reeditada por Vivès (París, 1891-1895), em

vinte e seis volumes. Esta edição contém vinte e quatro obras atribuídas a scoto, das quais somente treze

são seguramente autênticas. A edição crítica foi iniciada em 1950 pela Comissio Scotistica, ligada ao

Pontificium Athenaeum Antonianum e do Collegio San Bonaventurra (Roma e Grottaferrata,

respectivamente), e até agora editou onze externos volumes: sete correpondem à Ordinatio (antes

denominada Opus oxoniense), um personalíssimo comentário as Sentenças de Pedro Lombardo, que ficou

inacabado (os dois primeiros livros dessa Summa já estavam redigidos quando morreu, e os dois restantes

foram completados por seus discípulos); e os outros quatro correspondem à Lectura prima: o curso,

descoberto recentemente, que Scoto lecionou em Oxford entre 1300 e 1301” (cf. SARANYANA, Josep-

Ignasi. A Filosofia Medieval. Das Origens patrísticas à Escolástica Barroca., pp. 382-383). 131

Sobre o universo cultural e filosófico desse período, pode-se sustentar: “tradições antigas das mais

variadas fontes, desde a escolástica medieval ao averroísmo, do pitagorismo à tradição hermética de

Zoroastro, do Islão à Antiguidade clássica e à Cabala judaica, e até à magia e as ciências ocultas” (cf.

Neoplatonismo Renascentista – Pico Della Mirandola e o Discurso Sobre a Dignidade do Homem, PUC-

Rio, p. 14).

Page 64: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

64

fontes clássicas. Além disso, no berço do pensar e nos círculos dos doutos, ou seja, dos

assim denominados estudos em Filosofia, encontrava-se a separação entre a filosofia

platônica e aquela aristotélica, cabendo também a Pico della Mirandola buscar

justamente aliar, ou melhor, harmonizar ambas as filosofias.

Para que tanto a filosofia de Platão quanto a de Aristóteles pudessem ter um

estudo e aceitação melhor para as Academias já existentes, como o exemplo de

Florença, Pádua e Bolonha, cada centro de estudos filosóficos destacava apenas um

desses filósofos, a saber, Platão ou Aristóteles. Pico, também, na busca de conhecer

outras filosofias, assim como o conhecimento e a verdade que cada uma delas

transmitia, tinha como tarefa especifica a conciliação entre as duas orientações

filosóficas, tão necessárias ao seu intento em relação à Filosofia: algo que se expressa,

igualmente, em sua reflexão presente na Oratio. O Humanismo florentino,132

com a

admiração professada pela Antiguidade clássica grego-latina, revelava, porém, a

presença de uma diversidade de orientações, oriundas da tradição, e investigada na sua

separação. Daí a tentativa de Pico em buscar uma compreensão, lançando as suas teses

com base nesse conhecimento presente nesse universo cultural: ideal de concórdia

esboçado nas Conclusiones.

Se, por um lado, estava o conhecimento grego, por outro, o conhecimento dos

árabes, e até mesmo da doutrina filosófico-teológico dos judeus, da qual Pico teve como

mestres judeus, Elias Del Medigo e Mitríates, pois o levaram a mergulhar no estudo da

Qabbalah, alçando voos mais altos, com a leitura dos exegetas orientais, mas ainda a

sua aproximação ao hermetismo. Isso se justificava pela intenção que Pico expressava

de conciliar a fé cristã e a vasta filosofia em seu sistema filosófico, o qual pretendia

expor para os doutos da época, assim como apresentar aqueles pensadores

desconhecidos dos eruditos. Daí ter sido conhecido pelos seus contemporâneos, como

príncipe da Concórdia e idealizador da Paz Filosófica: objetivos buscados por esse

filósofo como revelam as Conclusiones e a Oratio.

Na Oratio se expressa o empenho de Pico della Mirandola de destacar a nova

concepção que havia buscado do Cristianismo, ou seja, a forma que o homem tem da

132

Cf. VELAZQUEZ, Jorge Delgado. Barjo el Signo de Circe: ensayo sobre el humanismo cívico del

renascimento italiano e imaginário político de Nicolás Maquiavelo. La Ed Buenos Aires: Del Signo,

2006.

Page 65: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

65

natureza espiritualista, destacando a valorização do homem que se faz presente pelo seu

livre arbítrio133

. Erasmo de Rotterdã difundiu a forma piquiana de falar do homem e de

sua dignidade, valendo-se das partes que compõem a sua natureza, pois o estilo literário

italiano e parisiense, usados por Pico, assim como a sua grande preocupação não só de

ler as fontes primárias (na língua grega e latina), como também resgatar a sabedoria dos

antigos. É certo que a Europa encontrava-se, após o fim da Idade Média e início do

Renascimento, no forte anseio de reformas religiosas pela purificação e renovatio da fé

cristã, e Pico, orientado não somente por seu mestre Ficino, mas por diversos filósofos,

seguiu em busca de novas fontes de conhecimento. Por conseguinte, isso revela o

conteúdo ético, moral e religioso da ação de liberdade no mundo, expresso na reflexão

de Pico.

Não obstante a escolástica separar Filosofia e Teologia, Pico busca conciliar,

com base no contexto filosófico-teológico, linguagem e pensamento, pondo essa ação

linguística, com base no modelo proposto por Cícero, conforme expressam os seus

argumentos na epístola a Ermolao134

. Tal intenção de Pico fora criticada pelos sábios da

época e a sua atitude filosófica contestada. A sua Oratio reforça, porém, o principio que

determina o homem, ou seja, a natureza humana, revelando certa moral filosófica e

pressupondo as interpretações que destacam Petrarca, na busca em Platão e em

133

De acordo com Still: “Assim em grande parte das ideias de Pico, seu tratamento do conhecimento foi

marcado por divergências de interpretações que parecem dividi-lo contra ele mesmo. Por um lado, existe

uma explicação minimizadora de Pico acerca do conhecimento: como foi moldado pelo escolásticismo

medieval, Pico é fundamentalmente um realista para quem não há problemas críticos que exigem uma

“teoria do conhecimento” distinta para serem solucionados. De fato, as doutrinas epistemológicas não são

essenciais para o pensamento de Pico e, em vez disso, representam um papel secundário quando

comparadas com questões relacionadas ao livre-arbítrio e ao amor” (cf. STILL. Carl. N. IN: A Busca de

Pico por Todo o Conhecimento. DOUGHERTY. M.V. (org). Pico della Mirandola: novos ensaios, p.

211). 134

Para Richard: “Ele relata o lugar comum de que é preferível ler “estórias sagradas, escritas de modo

rústico àquelas com elegância, que são certamente melhores do que “todos aqueles discursos bem

elaborados”. No entanto, logo o argumento fica confuso: sim, admite o defensor do escolasticismo, esse

estilo parece ser “tolo, rude, inculto”, mas somente pelo fato de ser escrito para os iniciados, da mesma

forma usada pelos antigos para ocultar seus mistérios em fábulas no intuito de manter afastados os não

iniciados, que iriam “possuí-los com composições ainda mais repulsivas de palavras amariori paulum

córtice verborum”. Por fim, depois de uma brincadeira com nomes “arbitrários” que, por acaso,

empregada aqueles das escolas escolásticas (romanos, franceses, britânicos, espanhóis, “ou até mesmo

aquilo que os vulgares estão acostumados a chamar de parisienses”, ele lastima que filósofos “tenham

separado a sabedoria da eloqüência” de modo que “Escoto filosofa melhor do que aquele outro homem

que fala com mais elegância”. Entretanto, é agora que vemos a moral da história: “Um deles tem uma

boca insípida (os insipidum), já o outro, uma cabeça tola (mens insipiens)”. Em favor de nosso

argumento, é essencial que o córtex verborum esteja totalmente do lado dos rudes” (cf. RICHARD. Paul

Blum. IN: Pico, a Teologia e a Igreja, DOUGHERTY. M.V. (org), Pico della Mirandola: novos ensaios,

pp. 64-65).

Page 66: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

66

Cícero135

a essência de uma doutrina que retrata a dimensão de uma filosofia voltada

para a Moral. Quanto à divindade de Cristo, tanto a Magia natural como a Qabbalah

foram defendidas por Pico, em sua Apologia, sustentando que ambas serviam para

ajudar a defender essa divindade: a magia como ciência prática e natural que não

interfere na revelação divina, a Qabbalah que não se apresenta apenas como uma

disciplina, porém, como um dos caminhos importantes para a revelação136

.

Portanto, a compreensão da proposta filosófica de Pico, apresentada nas

Conclusiones e na Oratio, exige, ao mesmo tempo, um conhecimento de sua erudição e

justificativa de seu projeto filosófico, mas também do universo filosófico italiano

pertencente àquele período do Humanismo renascentista. Se Ficino137

teve um papel

135

De acordo com Dougherty: “O conceito ciceroniano de Sapientia é central na idéia do homem de

Petrarca. Ele implica, no pensamento do primeiro dos grandes mestres humanistas, o reconhecimento da

suprema nobreza do homem como criação divina, a ser realizado mediante o cultivo das humanae literae

pelo qual p homem atinge sua perfeição em vida. Para Petrarca, assim como para os primeiros

humanistas, era fundamental a conciliação entre fé e a tradição humanista no resgate da cultura dos

Antigos, na continuidade entre literatura, filosofia e moral cristã. Tal perfeição moral do homem se

traduzia em sua forma mais perfeita, para a maior parte dos humanistas italianos do século XV, no ideal

da vida cívica, tal como Salutati e Leonardo Bruni, o que concebiam essa mais alta realização do homem

na plenitude da liberdade replubicana de Florença, tida como herdeira da Roma republicana. Em nome na

manutenção da liberdade cívica florentina, Salutati e Bruni louvavam a filosofia como mãe de todas as

artes e ciências” (cf. DOUGHERTY. M.V (org). “Três percursores do debate romano de Pico della

Mirandola e a questão da Natureza humana na Oratio”. IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.17). 136

Segundo Richard: “Ao condescender com os censores, ele explica “no estilo parisiense” que, além da

lei escrita revelada a Moisés no Monte Sinai, Deus também lhe concedeu “a verdadeira interpretação da

lei, incluindo todos os mistérios e segredos, que estão escondidos sob a casca (sub córtice) e a fase nua

das palavras”. Isto é, Moisés recebeu uma lei “literal e espiritual”. Como Deus havia proibido a colocação

da lei espiritual por escrito, ela foi transmitida exclusivamente de forma oral. Pico, em nota de precaução,

diz que essa sabedoria hebraica não tem nada a ver com as atividades judaicas anticristãs, exatamente

pelo fato de ter sua origem antes dos tempos de Cristo” (cf. RICRARD. Paul. Blum. IN: Pico, a Teologia

e a Igreja. DOUGHERTY. M.V. (org). Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 66). 137

No entender de Reale: “Como filósofo, Ficino se expressou sobretudo nas obras Sobre a religião cristã

e Teologia platônica, além de vários comentários a Platão e a Plotino. O seu pensamento é uma forma de

neoplatonismo cristianizado, rico em observações interessantes, dentre as quais emergem como peculiares

as seguintes: a) o novo conceito de filosofia como “revelação”; b) o conceito de alma como “copula

mundi”; c) um repensamento do “amor platônico” em sentido cristão. A) A filosofia nasce como

“iluminação” da mente, como dizia Hermes Trismegisto. O ato de dispor e dobrar a alma, de modo a que

se torne intelecto e acolha a luz da divina revelação em que consiste a atividade filosófica, coincide com a

própria religião. Filosofia e religião são inspiração e iniciação aos sacros mistérios do verdadeiro. Hermes

Trismegisto, Orfeu e Zoroastro foram igualmente “iluminados” por essa luz, sendo, portanto profetas.

Assim, sua obra é uma mensagem sacerdotal, voltada para a divulgação do verdadeiro. (...) b) No que se

refere à estrutura metafísica da realidade, Ficino a concebe, segundo o esquema platônico, como uma

sucessão de graus decrescentes de perfeição, que ele, porém, de modo original (em relação aos

neoplatônicos pagãos), identifica nos cinco graus seguintes: Deus, anjo, alma, qualidade (forma) e

matéria. Ora, os primeiros dois graus e os últimos dois são claramente distintos entre si, como mundo

inteligível e mundo físico, ao passo que a alma representa o “elemento de conjunção”, que tem as

características do mundo superior) mas, ao mesmo tempo, é capaz de vivificar o mundo inferior. Numa

ótica neoplatônica, Ficino admite uma alma do mundo, almas do mundo, almas das esferas celestes e

almas dos seres vivos, mas é sobretudo para a alma racional do homem que ele dirige o seu interesse. O

lugar medial da alma é o terceiro, tanto percorrendo os cinco graus da hierarquia do real de baixo para

Page 67: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

67

relevante na formação desse contexto cultural e doutrinário, igualmente, as doutrinas

como a magia e o hermetismo foram relevantes nessa formação. Pico apresentou, no

universo filosófico e douto, a Qabbalah e o aristotelismo, visto e estudado em Pádua,

pois já havia sido apresentado com a acentuada presença da escolástica filológica em

alguns humanistas. Ademais, a Qabbalah judaica, de origem Medieval, e as influências

helenísticas, apresentavam, em algumas partes, conteúdos herméticos, como também os

Oráculos Caldeus e o orfismo. Para os cabalistas, o alfabeto hebraico possui “nome ou

nomes de Deus”, refletindo assim a natureza espiritual ou a maneira especifica natural

da linguagem do Criador, nas letras que compõem esse alfabeto. Apresenta-se aqui a

forma com que os cabalistas unem-se à Teologia, forma transcendente, simplificada por

meio do nome de Deus, criador das criaturas humanas.

Trata-se, portanto, de uma técnica proveniente da Espanha do século XIII, ligada

às do alfabeto hebraico, em cuja forma estão implícitas as diversas combinações e

variações possíveis138

. Na sua especulação sobre a Qabbalah, Pico declarara que tal

doutrina remontava à antiga tradição, justamente pela forma com a qual fora transmitida

a Moisés, ou seja, a forma esotérica. O livro das dez Sefirot139

está contido no Livro da

cima como de cima para baixo, como mostra como: 1= Deus, 2=Anjo, 3=Alma, 4= Qualidade, 5=

Matéria. Desse modo, escreve Ficino: “Semelhante natureza parece extremamente necessária na ordem do

mundo, de modo que, depois de Deus e do anjo, que não são divisíveis nem segundo o tempo nem

segundo a dimensão, e acima do corpo e da qualidade, que se dissipam no tempo e no espaço, cumpra o

papel de meio termo adequado: um termo que seja de certo modo dividido pelo espaço. C) Em Ficino,

está estreitamente ligado a essa temática da alma o tema do “amor platônico” (ou “amor socrático”), pelo

qual o Eros platônico (entendido por Platão como força que, a visão da beleza, eleva o homem ao

Absoluto, dando à alma as asas de que necessita para retornar à sua pátria celeste; cf. Vol. I, pp.152s) se

conjuga com o amor cristão. Para Ficino, em sua mais alta manifestação, o amor coincide com a

reintegração do homem empírico à sua Idéia metempírica em Deus, o que se torna possível através de

uma progressiva ascensão na escala da Coleção Filosofia)” (cf. REALE. Giovanni. História da Filosofia:

Do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990, pp.70-74). 138

De acordo com Reale: “Embora a Cabala seja essencialmente uma doutrina mística, um método para

tentar conhecer a Deus, encontra-se a ela vinculada também uma atividade mágica, que pode ser exercida

mística ou subjetivamente sobre nós mesmos: é uma espécie de auto-hipnose para facilitar a

contemplação. G. Scholem pensa que Abu´L-Afiya a praticasse precisamente nesse sentido. Ela também

pode se desenvolver em uma forma de magia operativa, que se vale do poder da língua hebraica ou dos

poderes dos anjos invocados para realizar operações de magia. (È obvio que falo pondo-me na posição de

algém que acredita misticamente na magia, como Pico de Mirândola.). Os Cabalistas elaboraram muitos

nomes desconhecidos das Escrituras( que mencionam apenas Gabriel, Rafael e Miguel), acrescentando à

raiz, pela qual é definida a função especifica de determinado anjo, um sufixo como “El” ou “iah”, que

representa o nome de Deus. A esses nomes de anjos invocados ou inscritos em talismãs, era atribuída uma

grande eficácia” (cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia. Do Humanismo a Kant, p. 79). 139

As Sefirot são “os dez nomes mais comuns de Deus e, em seu conjunto, formam o seu único grande

nome: nomes criativos que Deus chamou ao mundo e o universo criado é o desenvolvimento externo

dessas forças vivas em Deus. Esse aspecto criador das sefirot se insere em um contexto cosmológico.

Existe,com efeito, uma relação entre eles e as dez esferas do cosmos, composto das esferas dos sete

planetas, da esfera das estrelas fixas e das esferas dos sete planetas, da esfera das estrelas fixas e das

Page 68: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

68

formação ou criação, isto é, no Sefer Yesirah, e em outros ensinamentos doutrinários

como o Livro da Iluminação ou Zohar.

Entre as doutrinas que Pico buscava conhecer e descrever pode-se aqui destacar:

as diversas orientações orientais da tradição hermética; Judaísmo versus Cristianismo; o

zoroastrismo; a espiritualidade medieval e as correntes teológicas. Pode-se também

destacar nesse universo de questões, sobretudo, em Nicolau de Cusa e Marsílio Ficino,

o valor da natureza do homem com as direções por ele seguidas, pois expressava a

relevância do conhecimento da virtude teológica do homem. Tais influências se

traduzem nos humanistas, na demonstração do conteúdo metafísico e religioso presente

nas premissas do ideal humanista. Trata-se aqui de uma integração que ocorre não sem

dificuldades, pois o ideal filosófico da Idade Média, voltados para a imagem-visão da

concepção aristotélico-escolástica e para a reta doutrina da Igreja Católica, transcorria

em seu modelo de pensar conforme havia sido concebida na sua gênese de

pensamento140

. Era preciso conhecer não só a doutrina ortodoxa do Cristianismo, mas

também do Judaísmo, como seu antecessor do pensamento. Na Oratio se desvenda

parte do que fora expressa na forma de Teses presente nas Conclusiones, sobre essas

orientações: algo que permite conhecer, direcionando aos clérigos Igreja e aos sábios, o

penhor do Pico havia identificado e que pretendia defender no debate romano.

Há ainda as correntes de pensamento que se fizeram fortes, sobretudo, nesse

período do humanismo renascentista, ou seja, aquele relativo ao século XV-XVI,

esferas superiores, situadas além dessas. Ademais, o Cabalismo é constituído pela importância atribuída

aos anjos ou espíritos como intermediários esparsos por esse sistema e dispostos em hierarquias

correspondentes às outras hierarquias. (cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia. Do Humanismo a

Kant, p.78). 140

De acordo com Cassirer ”mesmo essa integração não ocorre sem dificuldades e obstáculos, que se

tornam compreensíveis quando se tem presentes as transformações internas pelas quais passou o espírito

do „Renascimento‟, de meados do século XV até o final. Somente uma geração separa as obras filosóficas

capitais de Nicolau de Cusa das de Ficino ou Pico; e, não obstante, o confronto entre elas deixa clara a

transformação que se processou não apenas na problemática abstrata, mas também em todo o ambiente

intelectual, em toda a atitude diante dos problemas do espírito. Este ângulo de observação evidencia

também o quanto é enganosa a crença de que o processo de libertação do Renascimento das amarras da

“Idade Média” foi do tipo retilíneo, uniforme e progressivo. Em nenhum sentido trata-se aqui de um

desenvolvimento tranqüilo e uniforme, de um crescimento simples e espontâneo. No embate de forças

que aqui se realiza, chega-se sempre a um equilíbrio temporário, totalmente instável. O sistema de

Nicolau de Cusa representou, também ele, um tal equilíbrio frágil na grande disputa que se travou entre o

conceito de verdade religioso e filosófico, entre fé e conhecimento, entre religião e cultura do mundo.

Mas o otimismo religioso de Nicolau de Cusa, que ousou abarcar a totalidade do mundo, que atraía para

si e tentava reconciliar o homem e o cosmos, a natureza e a história, subestimou o poder das forças

contrárias que tinham de ser dominadas e controladas” (cf. CASSIRER, Ernest. Indivíduo e Cosmos na

Filosofia do Renascimento, p.101).

Page 69: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

69

destacando-se o platonismo e o aristotelismo, mas também o epicurismo e o estoicismo,

pois constituíam parte da orientação de alguns autores pertencentes a essa época, e

vivenciadas por meio da cultura desses séculos. Não se pode deixar de considerar ainda

a influência de Sexto Empírico141

, sobre aqueles que tendiam a escrever acerca dos

céticos na questão relativa à felicidade, com ênfase na renúncia do conhecimento da

verdade. Quanto à concepção de religião no âmbito teológico-religioso, pode-se aqui

indicar aquela construção de uma docta religio pensada por Ficino e Pico. Sem deixar

de considerar o fato da ira do Papa Inocêncio VIII contra Pico della Mirandola, em

virtude de suas Conclusiones e em matéria religiosa e teológica: algo que contribuiu

para a Filosofia e a erudição do período renascentista142

.

Um dos principais objetivos de Pico em seu estudo da Qabbalah, no conjunto

das suas 72 teses cabalísticas, era demonstrar as verdades apresentadas por essa

doutrina como evidentes verdades do Cristianismo143

. As obras de tradição exegética,

141

De acordo com a reflexão de Reale: “O primeiro a utilizar Sexto Empírico de modo sistemático foi

João Franscisco Pico de Mirandola (1469-1533), neto do grande Pico, em sua obra Exame das Fatuidades

das teorias dos pagãos e da verdade da doutrina cristã (1520), na qual ele utiliza elementos céticos para

demonstrar a insuficiência das teorias filosóficas e, portanto, da razão pura concluindo que, para alcançar

a verdade, é preciso a fé. A João Francisco Pico liga-se Heinrich Cornelius (que se fazia chamar Agrippa

de nettesheim, 1486-1535, conhecido sobretudo como mago), na obra Incerteza e Fatuidade das Ciências

e das Artes (escrita em 1526 e publicado em 1530),na qual sustenta que não são as ciências e as artes

humanas (que são refutadas com argumentos extraídos de Sexto Empírico) que salvam o homem, mas

somente a fé. Na França, foram publicadas sucessivamente nove versões latinas de Sexto Empírico. Em

1562, Stephanus (Henri Estienne, 1522-1598) traduziu os Esboços Pirronianos e, em 1569, Gentiam

Hervet (1499-1484) publicou todas as obras de Sexto Empírico em versão latina” (cf. REALE. Giovanni.

História da Filosofia: Do Humanismo a Kant, p.93). 142

Richard escreve: “Giovanni Pico e seus talentos literários, sua proficiência e ortodoxa na teologia, sua

lealdade aos Médici e a política religiosa de Roma, tudo isso estava em jogo. Para começarmos pela

política religiosa de Roma, tudo isso estava em jogo. Para começarmos pela política religiosa: quando

Giovanni Pico convocou um grande conselho em Roma para discutir as 900 Teses no final de 1486, ele

foi recebido com suspeitas e inimizade. Depois de Inocêncio VIII se tornar papa em 1484, um de seus

primeiros atos fora enviar uma carta de apoio entusiasta para a Universidade de Paris, onde Pico em

pouco tempo começaria a estudar e de onde ele trouxe o projeto e as idéias de seu debate romano. O que

Paris significava para a filosofia e para a teologia passaria a se tornar um dos temas do debate. Enquanto

Pico ainda se preparava para o grande evento, vozes críticas surgiram infelizmente não sabemos quem

eram esses críticos. De acordo com a Vita de Giovanni escrita por Gian Franscesco, eles foram instigados

pela inveja, uma conclusão que ele pode ter tirado das declarações de Giovanni em sua Oratio, que devia

abrir o debate e que, evidentemente, já respondia às críticas. Algumas pessoas, Giovanni diz, “não

aprovam a totalidade desse método de debate e essa instituição de debater publicamente a respeito do

aprendizado (mais precisamente, sobre as letras);outras “de modo algum o aprovam em mim porque eu,

nascido, admito, há apenas 24 anos, tenha ousado, na minha idade, propor uma discussão relacionada aos

sublimes mistérios da teologia cristã (...) em uma cidade tão famosa”; e outras ainda”deturpam (o debate)

como sendo um trabalho totalmente desnecessário e faustoso” (cf. RICHARD. Paul. Blum. IN: Pico, a

Teologia e a Igreja. DOUGHERTY. M.V. (org). Pico della Mirandola: novos ensaios, pp. 52-53).

143

Richard sustenta:” Em seguida, Pico afirma que as letras precisam ser separadas e reorganizadas para

que possam revelar os mistérios mais maravilhosos e sábios. Sua amostra é a primeira palavra da Bíblia,

beresit (no principio). Depois de descrever uma série de operações e recomposições de suas letras, Pico

revela o significado que estava implícito nessa única palavra: „o pai, no Filho e pelo filho, o início e o fim

Page 70: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

70

filosófica e mística que Pico della Mirandola se pôs a traduzir, foram aconselhadas em

grande parte pelos colaboradores hebreus convertidos. Desse modo, a metodologia

utilizada e o curriculum seguido pelos humanistas foram indicados por personalidades

como Flavio Mitridate, Yohanan Alemano e, talvez, Avram Farissol.

2.2 Pico e a problemática das Calculationes

Sabe-se que em Oxford, no filão do occamismo, surgira a Escola ou orientação

filosófica dos terministi, ou seja, lógicos que haviam apresentado as primeiras

tentativas, ainda muito rudimentares, de quantificação da Física: uma tentativa indireta

de exprimir não as qualidades qua tale. Entre esses lógicos destacara-se Richard

Swineshead, latinizado em Suiseth, pois se tornara o mais conhecido por haver escrito o

Liber Calculationorum, várias vezes editado com o nome de Calculator. Depois, o foco

desse movimento se transportou do Merton College para Viena e Heidelberg e, em

seguida, para Paris, com Buridano e Nicolas d‟Oresme.

Na Itália, tal movimento foi acolhido, de início, por Padova, mas logo suplantada

por Pavia com a colaboração de Giovanni Marliano. Portanto, Pavia tornara-se assim o

foco das „calculationes suiseticae‟, ou seja, desse novo modo de calcular atribuído a

Suiseth. Quanto a Pico della Mirandola, já se conhece o seu princípio de que todo

pensamento ou doutrina expresse uma verdade, e a necessidade de investigá-las em

vista de uma metafísica da conciliação, capaz de realizar uma síntese, igualmente, entre

platonismo e aristotelismo ou entre outras doutrinas associadas a essas orientações

filosóficas. Pode-se identificar na Oratio de hominis dignitate esse intento de Pico de

investigar todas as doutrinas e pensadores. Na segunda parte da Oratio, ele escreve:

Eu, pelo contrário, propus interessar-me seriamente por todos os

mestres da filosofia, examinar todas as posições, conhecer todas as

escolas, mas não jurar sobre a palavra de ninguém. Por isso,

encontrando-me na necessidade de falar de todos os filósofos, para

não parecer sustentar uma tese determinada sem tomar em

consideração as outras, as questões propostas não podiam deixar de

ser muitas no seu conjunto, ainda que sejam poucas as atinentes a cada

um. [...] Por todos os antigos, de fato, foi observada esta regra, que,

ou resto, criou a cabeça, o fogo e o fundamento do grande homem com um bom pacto‟” (Cf. RICHARD.

Paul. Blum. IN: Pico, a Teologia e a Igreja. DOUGHERTY. M.V (org). Pico della Mirandola: novos

ensaios, p.73).

Page 71: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

71

examinando cada autor, não deixasse de ler, tanto quanto possível,

nenhum escrito144

.

Interessava a Pico della Mirandola explorar também os segredos da natureza,

conforme indica a sua relação com a magia natural, e os seus estudos em Pavia,

(realizados em 1483-1484) testemunham o seu conhecimento desse novo modo como se

abordava a Física, ou seja, a filosofia da natureza com método matemático. Há na

literatura sobre Pico della Mirandola relatos sobre a sua posição ante esse novo

procedimento. Segundo testemunha o seu sobrinho, Gianfrancesco Pico, a primeira

reação de Pico della Mirandola tinha sido negativa:

nada lhe permaneceu encoberto sobre as futilidades a Suiseth („suiseticas

quisquilias‟), que se chamam calculações. São reflexões matemáticas

aplicadas as mais sutis ou se diria melhor, as mais pedantes especulações a

propósito da natureza. Embora fosse muito versado nessas matérias e

tivesse lido desses escritos mais que outro italiano [...] parece, todavia,

que os odiasse e detestasse 145

.

Gian Franco não expõe, todavia, as razões da recusa de Pico em relação aos

calculatores, porém a justificativa filosófica em relação ao desprezo piquiano desse

procedimento possa ser encontrada na seção das Conclusiones dirigida à Matemática, a

saber, a quinta Conclusio de mathematica secundum opinionem propriam. Pico

sustenta:

Como diz Aristóteles, afirmando que os Antigos erraram no estudo da

natureza porque eles trataram matematicamente as realidades naturais, seria

verdadeiro que estes tivessem tomado as matemáticas materialmente, e não

formalmente – assim é muito certo que os Modernos, os quais discutem, de

forma matemática, sobre as realidades naturais, destroem os fundamentos da

filosofia da natureza146

.

Dessa quinta Conclusio de mathematica, pode-se assim inferir duas formulações:

de um lado ele critica os matemáticos modernos, isto é, os Calculatores, que buscam

discutir, de forma matemática, as realidades naturais, ou seja, quantificando a Física e,

de outro, critica igualmente Aristóteles, por não ter compreendido os Antigos, isto é, os

seus antecessores. Os seus argumentos pressupõem a distinção entre materialiter

acceptae e formaliter acceptae, isto é, sobre a distinção relativa à verdadeira natureza

144 MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade humana, pp. 91-93. 145

PICO, Gianfrancesco. Vita, apud VALCKE, Louis. Giovanni Pico Della Mirandola, IN:

GARFAGNINI, Carlo Gian (org.). Giovanni Pico della Mirandola. Convegno internazionale di studi nel

cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994), Città di Castello: Centro Internazionale di cultura

“Giovanni Pico Della Mirandola, Studi Pichiani, Leo S. Olschi, 1997, p.328. 146

MIRANDOLA, della Pico. Conclusiones nongentae [Le novecento tesi dell‟anno 1486]. Trad. it.

Alberto Biondi, Città di Castello: Leo S. Olschki, 1995, p. 107.

Page 72: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

72

dos números. Quando se pensa que os números fossem apenas meros resultados das

nossas medidas, serão tomados no sentido material, mas quando se pensa que os

números originais fossem princípios ontológicos pré-existentes às coisas materiais, com

base nos quais tais coisas teriam a dimensão numérica delas, ter-se-ia então o número

formal. Ainda nas Conclusiones e, em particular, naquelas paradoxae, Pico havia

sustentado: “segundo Pitágoras, o número é o princípio de toda coisa” 147

. O

pressuposto da crítica de Pico della Mirandola ao procedimento dos Calculatores, e à

posição de Aristóteles, seja a teoria platônica das Ideias. De acordo com Louis Valcke:

[...] sabe-se que nesse período – o período, isto é, da Oratio, das

Conclusiones, da Apologia – Pico aderia, quase sem reticências, ou

aparentemente sem reticências, ao „platonismo‟, isto é, ao ambiente

exaltado da Academia florentina, ao mais extremo neoplatonismo que,

ele mesmo, de início, sob a orientação de Ficino, havia descoberto nas

suas formas mais autênticas, na leitura das Enneades148

.

É com base nesse pressuposto que se esboça e se pode compreender a dupla

crítica, presente nas Conclusiones sobre a Matemática. É certo que ante os “modernos”,

Pico siga a Aristóteles, segundo a sua concepção de que as determinações da natureza

fossem essencialmente qualitativas, mas quantificar a natureza é justamente o que os

Calculatores realizam: daí Pico refutar esse erro metodológico149

.

De acordo com o testemunho de Gianfrancesco Pico, o seu sobrinho, Pico havia

se interessado pela linguagem e procedimento dos Calculatores e havia compreendido,

pois mesmo que eles tivessem conseguido realizar essa transcrição da natureza ao

quantitativo, teria sido ainda algo parcial e limitado. Aristóteles havia, igualmente,

sustentado ser legítimo, até certo ponto, de se poder assimilar o raio luminoso a uma

reta geométrica e poder estudá-lo como tal. Porém, esse estudo, ou seja, da ótica

geométrica, não poderá jamais revelar a natureza específica da luz como tal. Em

verdade, a crítica de Pico aos Calculatores ultrapassa a questão limitada ao

procedimento, pois as formulações piquianas são as de um filósofo, ou seja, de um

pensador que busca, de forma aprofundada, o fundamento, de um filósofo metafísico. O

novo método dos Calculatores minaria assim as bases da Física, compreendidas,

147

Ibidem, p.81. 148

VALCKE, Louis. “Giovanni Pico Della Mirandola e il ritorno a Aristotele”. IN:GARFAGNINI, Gian

Carlo (org.). Giovanni Pico della Mirandola, pp. 329-330. 149

Cf. VALCKE, Louis. Giovanni Pico della Mirandola e il ritorno a Aristotele. IN: GARFAGNINI,

Gian Carlo (org.). Giovanni Pico della Mirandola, p.330.

Page 73: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

73

naquele momento, como bases metafísicas, além do que o intento de Pico, sempre

destacado nas Lettere na Oratio, no Heptaplus era o estabelecimento da concórdia

entre Platão e Aristóteles150

.

Sabe-se que, em 1486, Pico della Mirandola, preparando-se para elaborar as

Conclusiones, estava convencido ou quase convencido que “o platonismo fosse o

autêntico depositário da verdade filosófica e de toda sabedoria humana – e justamente o

platonismo da tradição neoplatônica que [...] é considerada fiel e autêntica” 151

.

Portanto, o platonismo se torna a norma, com base na qual pode se estabelece a

concórdia entre Platão e Aristóteles, pois se

[...] pressupõe que seja o aristotelismo a ser adequado ao platonismo,

que seja Aristóteles a ser reconduzido a Platão. É preciso, portanto,

esclarecer que o verdadeiro Aristóteles, isto é, um Aristóteles

corrigido também dos seus próprios erros de leitura, que tal

Aristóteles pensaria como Platão e estaria de acordo com a tradição

platônica „mesmo se em uma primeira leitura [...] parecessem

discordar, como afirma Pico na sua primeira Conclusio concilians152

.

Isto explica, igualmente, as formulações da quinta Conclusio sobre a Matemática em

relação também a Aristóteles.

2.3 As origens da Oratio de Pico della Mirandola: a problemática da Disputatio

Para uma compreensão das origens, ou seja, daquilo que motivou à elaboração

da Oratio é preciso, antes de qualquer coisa, uma abordagem da questão concernente à

proposta de Pico, em 1847, do Debate a ser realizado em Roma. A ideia de propor um

debate público e solene em Roma sobre os problemas do pensamento mais diversos

pode ter a sua origem e influência, não só nos debates da Sorbonne, naquela época, mas

também nos “círculos” de estudos de Padova e de outros lugares frequentados por Pico

della Mirandola. Também essa ideia poderia ter se originado dos debates organizados

pelas Ordens religiosas ou das reuniões na Academia platônica de Careggi, organizadas

por Ficino, ou ainda daquelas ocorridas nas reuniões em sua própria casa.

Certamente que a ideia de Debate expressa a forma como seriam enfrentados

esses vários problemas de pensamento, mas também se justificava por Pico ver no

150

Cf. VALCKE, Louis. Giovanni Pico della Mirandola e il ritorno a Aristotele. IN: GARFAGNINI,

Gian Carlo (org.). Giovanni Pico della Mirandola, p. 334. 151

VALCKE, Louis. Giovanni Pico della Mirandola e il ritorno ad Aristotele. IN: GARGAGNI, Gian

Carlo (org.). Pico della Mirandola, p. 334. 152

Ibidem, pp. 334-335.

Page 74: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

74

debate o único meio fundamental de concórdia das ideias. Além desses elementos pode-

se ainda indicar aqueles elementos que Pico acrescentava de ordem organizacional:

Roma como lugar e presença do Papa, de cardeais e também de uma vastidão e

diversidade de temas e problemas. O chamado actus sorbonicus era a disputa de

doutorado, e pertencia igualmente à práxis de todo Estado. Ademais, não podemos

deixar de sustentar que os debates, naquela época, fossem a ocasião, naqueles ambientes

de estudo, de explosões decorrentes de um terreno completamente em ebulição. Dirigir-

se aos doutos de qualquer estância e também eclesiásticos, era um grande desejo de

Pico. Daí o conhecimento que até então era do seu interesse serviu para a constituição

da matéria do Debate153

.

Para Pico della Mirandola não se tratava de um debate de doutorado, algo que

não correspondia a sua realidade, pois devia refutar a ideia de um título acadêmico na

medida em que este representava um instrumento de carreira e provento. Ao contrário, o

debate pensado por Pico devia significar uma vasta assembleia de doutos e de ideias, a

fim de conseguir aquela concórdia que, segundo ele, existia no interior das diversas

doutrinas e orientações filosóficas. É certo também que ele não ignorasse que os doutos,

em vez de destacarem as convergências, preferiam destacar e aprofundar as

divergências. Pico expressa tal argumento na sua Oratio:

É indubitável, ó Padres, que múltiplas são as discórdias entre nós,

temos lutas intestinas graves e piores do que guerras civis, que só a

filosofia moral poderá acalmar, se lhes quisermos fugir e se quisermos

153

Como escreve Maria de Lourdes Sirgado, as novecentas teses “foram escritas com a intenção de

promover, em Roma, em 1487, uma discussão filosófica pública, tão alargada quanto possível, que devia

reunir os filósofos de todas as tendências, unidos num esforço comum de aproximação à verdade e de

promoção da concórida entre todas as doutrinas. Pico propunha-se discutir acerca de tudo, isto é, de omni

scibili. Tal propósito suscitou imediatamente opositores, que viam num projeto como este um gesto

extravagante, ou um sinal de orgulho desmedido, por parte de alguém que era ainda muito jovem para

poder sustentar uma disputa destas. Porém, as críticas mais contundentes e que determinaram a sorte da

disputa que nunca se chegou a realizar, foram as que apontaram como estando eivadas de heresia algumas

das suas teses. De fato, algum sabor heterodoxo estava contido em concepções como aquelas em que

fazia referencia à defesa de Orígenes ou à negação da eternidade das penas do Inferno. Desagrado

suscitou também a sua defesa da magia e da Cabala. Ermolao Barbaro, nesta oposição á disputa romana,

assume um papel de contraditor moderado, considerando-o um sofista e comparando-o a Górgias,

pronunciando-se contra este estilo de discussões públicas, inúteis e vãs, porque não conduzem a uma

obtenção da verdade e apenas visam a obtenção de prestigio e de honras. A Oratio, como se pode

verificar, foi concebida, não como uma obra autônoma, mas como a introdução necessária á abertura da

disputa romana e tendo já presente algumas das críticas apontadas às conclusões” (cf. SIRGADO, Ganho

Maria de Lourdes. “Apresentação”. IN: Pico Della Mirandola. Giovanni Discurso sobre a dignidade do

homem, p. XVIII).

Page 75: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

75

obter a paz que nos conduza ao alto, de modo a colocar-nos entre os

eleitos do Senhor 154

.

O Debate era, no íntimo, uma espécie de discórdia, mas podia ser também o

único meio de aproximar homens e ideias, em conformidade com aquela dignitas

hominis que era autêntica responsabilidade ante o destino do homem. Daí a disputa

podia ser a possibilidade de se esclarecer ideias, de forma respeitosa e em conformidade

com as próprias Escrituras. Pico chegou ainda a afirmar, sob a pressão das

circunstâncias adversas, que o Debate pretendia ser como tantos outros um exercício

scholastico, embora não fosse, na verdade, o seu propósito, como estava previsto no

início de seu projeto. Por conseguinte, a disputa seria para ele um “concílio”, não de

padres, embora assistido por padres, mas de uma assembleia entre doutos, acerca da

verdade, algo que ele sustenta na abertura da Apologia: “digno de Roma, reconhecido

pelos príncipes cristãos, útil a mim e aos outros estudiosos” 155

.

Portanto, a sua proposta revela uma seriedade e orientação com base em três

elementos: i) a meta da concórdia; ii) debatida por doutos de toda a Europa; e iii) sobre

problemas fundamentais de doutrina em Roma. Quanto à escolha da cidade, ou seja,

Roma, não se tratava de uma cidade célebre em sentido teológico ou filosófico, pois não

era ainda o caso de Roma, mas por ser o centro da Cristandade ocidental e, ao mesmo

tempo, o lugar de confluência das culturas e das civilizações. Além disso, a escolha de

Roma pressupunha o reconhecimento da presença da Corte pontifícia, ou seja, a

presença do Papa, dos cardeais e de outros dignitários ligados à Igreja, além das

representações diplomáticas.

Quanto ao Debate, pode-se ainda sustentar que Pico pretendia realizar dois

objetivos: de um lado, ter a presença do Pontificado romano para a problemática

doutrinal da época e, de outro, a presença dos doutos provenientes de qualquer parte

geográfica e ideal à função unificante daquele Pontificado. Porém, esses dois objetivos

podem estar unificados em um apenas, a saber: poder celebrar e realizar a “unidade

doutrinal” justamente na Sede daquela instituição, e juntos corroborarem para a unidade

da mente e do espírito. A presença do Papa representava, portanto, a benção da

iniciativa proposta, em que se buscariam conciliar as diversas doutrinas como uma

154

MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 69. 155

MIRANDOLA, Pico della. Apologia, apud. NAPOLI, di Giovanni, Giovanni Pico della Mirandola e

la problematica del suo tempo, Roma: Pontifici, p. 83.

Page 76: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

76

espécie de Concílio ecumênico, ou seja, conciliação entre ideias e orientações

doutrinárias com o espírito ecumênico da grande instituição do Medievo e do

Renascimento, ou seja, da Igreja.

Cabe agora se expor a ordem dos argumentos constituidores do Debate. Tal

ordem devia ser a seguinte: Dialética, Moral, Filosofia da natureza, Metafísica,

Teologia, Magia, Qabbalah, as tradições culturais, a saber, as doutrinas dos Caldeus,

Árabes, Gregos e Latinos156

. Ademais, deve-se aqui sustentar que tais doutrinas não

eram consideradas por Pico como algo do passado, pois permaneciam ainda, não

obstante o desaparecimento dos seus autores, as tradições em formas e modos diversos,

associadas aos problemas, por exemplo, Magia e Qabbalah estavam ainda vivas como

as sectae, familiae e schedae. Além dessas doutrinas, pode-se ainda identificar, nesse

universo de problemas, o platonismo que Ficino havia atribuído uma sistematicidade

para além dos Estudos, pois já presente no Medievo, firmando-se cada vez mais pela

atividade dos humanistas157

. Contudo, nos Estudos estavam presentes outras orientações

filosóficas além do platonismo, considerado, igualmente, pelos catedráticos como algo

do passado.

Deve-se ainda expor acerca do Debate a presença dos doutos. Se Pico defendia a

proveniência deles de qualquer parte geográfica, quanto à orientação filosófica

poderiam ser tomistas, ocamistas ou escotistas, cristãos, hebreus ou árabes, mas também

estudiosos da Magia, da Astrologia e da Qabbalah. Portanto, todos deveriam estar

presentes em Roma para esse Debate ecumênico de ideias. Em 1486, ao voltar de Paris,

Pico se instala em Fratta, pois a sua atividade entre Florença, Perugia e Fratta é intensa,

uma vez que busca reunir todos os conhecimentos que até então havia adquirido, ao

modo escolástico parisiense, com o objetivo de justificar o seu labor filosófico, e no

contexto do Renascimento a preocupação em veicular um conhecimento enciclopédico:

daí a elaboração das Conclusiones. Além das suas formulações, com base na tradição,

constavam também aquelas que expressavam as suas posições individuais ao lado dos

pensamentos daqueles que antes dele contribuíram com a Filosofia. Quatrocentas teses

tinham o caráter histórico e critico, uma vez que se reportavam à filosofia dos

pensadores os quais havia lido.

156

Cf. NAPOLI, di Giovanni. Giovanni Pico della Mirandola e la problemática del suo tempo, p. 83. 157

Cf. NAPOLI, di Giovanni. Giovanni Pico della Mirandola e la problemática del suo tempo, pp. 83-84.

Page 77: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

77

A disputa devia ser aberta por um discurso solene como preâmbulo: daí a

Oratio, redigida entre Perugia e Fratta. Com base na dignitas hominis, compreendida

como liberdade, ou seja, como plena responsabilidade do homem ante o seu próprio

destino, tal discurso se concluía com a bondade do saber e a fecundidade da disputa.

Pico enviou cópia dessa oração ao poeta e amigo Girolamo Benevieni, destacando,

igualmente, o fato de um escrito visar à paz. Portanto, a Oratio se dirigia ao auditório e

também àqueles que a haviam lido. No entanto, essa oração se dirigia, em especial, às

autoridades eclesiásticas, uma vez que Pico, na mesma oração, as chamava de “Padres

colendissimi”, destacando assim aquela participação que teriam essas autoridades no

Debate.

Se na Oratio encontram-se dois pontos fundamentais, a saber, a dignidade do

homem e a temática da concórdia, são ambos retratados de maneira peculiar, traçando

assim claramente a relevância na qual ambos foram buscados por Pico, e valendo-se do

conhecimento que havia adquirido. Tal debate se realizaria com a suma presença do

Papa e do colégio de Cardeais, e de eruditos trazidos às suas custas e oriundos dos

grandes centros de Estudos, algo considerado sui generes por sua intenção ambiciosa de

propor esse debate inclusive em Roma158

. Com benevolência e confiança, Pico o

propôs, valendo-se de seu conhecimento adquirido com a leitura dos autores e

doutrinas: leituras realizadas em Latim, em Grego e Árabe.

A Oratio é reconhecida como um texto do Renascimento e publicada de maneira

a apresentar a Disputatio, como uma incontestável filosofia do período renascentista

italiano, e identificada como um dos textos mais bem expressos e complexos no que

158

M. V. Doughrty comenta: “De acordo com alguns relatos, Pico não é nada menos que um prodígio

renascentista sui generis sem precedentes, que acreditava que seu debate romano seria capaz de anunciar

de maneira única a Segunda Vinda. Um comentador faz referencia a essas interpretações ao perguntar:

„Será que Pico acreditava que seu debate no vaticano terminaria com os Quatro Cavaleiros do Apocalipse

voando de maneira ruidosa pelos céus de Roma(...)? È impossível saber com certeza‟ . Contudo, ainda é

possível encontrarmos a proposta ambiciosa de Pico em três tradições que tornam o evento mais

convencional do que poderíamos inicialmente esperar. Sem negar que alguns elementos de inovação

permeavam a proposta romana de Pico, eu gostaria de sugerir que o acontecimento tinha a intenção de

imitar três momentos acadêmicos bem estabelecidos: a tradição das quaestiones disputatae da

universidade medieval, a tradição de colecionar e comentar sententiae, e a prática da interpretação

dialética em estilo aristotélico. Depois de mostrar que a proposta de Pico deveria ser vista como uma

continuação renascentista especial desses três exercícios acadêmicos, devo afirmar que a falha em

reconhecer essas tradições nos leva, às vezes, a uma visão exagerada do projeto de Pico e, de forma ainda

mais séria, a algumas interpretações incomuns de suas posições filosóficas, em especial de suas ideias

acerca da natureza humana” (cf. DOUGHRTY. M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della

Mirandola e a Questão da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.138).

Page 78: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

78

tange à antropologia filosófica, por tratar a questão da liberdade e natureza humanas.

Quanto aos termos usados por Pico, em relação ao seu Debate, destacam-se: disputatio,

congressus e bellum. Todos esses termos exprimem o que iria ocorrer em Roma:

pretensão questionada por doutos da época, pois o modelo do debate já era usado em

Paris e adotado por Pico para realizar o seu empreendimento.

Apesar da conotação antagônica de pelo menos alguns dos termos,

temos evidências de que Pico via seu debate como um exercício

tradicional e não sem precedentes entre os sábios. De início, a

intenção de Pico era informar aos seus oponentes reunidos que as

reputações deles haviam sido construídas com base em debates como

aquele, sendo que, no breve prefácio das 900 Teses, ele declarou que

ao apresentar suas teses ele imitara o modo bastante utilizado dos mais

ilustres debatedores parisienses, uma alegação que ele repetiu mais

tarde na Apologia. Mais adiante na Oratio, Pico lamentou uma atitude

contemporânea de oposição ao debate em geral público em particular

e previu com razão, como variamos que aqueles sentimentos

perniciosos fariam com que algumas pessoas se opusessem aos seus

planos romanos em principio.Essas confissões da Oratio ao menos

indicam que Pico via seu debate proposto como estando alinhado aos

debates acadêmicos padronizados de sua época159

.

Ainda em relação ao Debate e à terminologia usada por Pico della Mirandola, o

seu sobrinho Gianfrancesco Pico observou que a forma em que seu tio havia deixado

precisava ser apresentada de maneira menos pretensiosa,160

não só na sua expressão

literária. O termo quaestiones fora usado por Pico reportando-se também as suas Teses.

Pico expõe um modelo utilizado, no inicio do século XII, pela Universidade de Paris

que, após ganhar notoriedade na França, se espalhou pelos principais Centros europeus,

como Oxford e Roma. Ele escrevera na forma de um ressurgimento tardio do gênero

Antigo e Medieval, e no que concerne ao estilo fazia uso de uma florilegia, conforme a

159

Cf. DOUGHERTY. M.V. IN: Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a

Questão da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, pp. 140-141. 160

De acordo com M. V. Dougherty: “È tentador considerarmos Pico envolvido em uma forma tardia de

um debate acadêmico medieval padronizado, já que Gianfrancesco parece levar a sério a afirmação de seu

tio de ter planejado o projeto romano como “um exercício escolástico de temas das escolas”

(scolasticamque exercitationem more academiarum). Provavelmente seguindo a avaliação tradicional de

Gianfrancesco do debate romano planejado, diversos comentadores afirmam que o evento deveria ser

visto como uma continuação do costume do debate medieval das quaestiones quodlibetales (questões

quodlibetais).os debates quodlibetais, que se tornaram proeminentes ao menos no inicio do século XIII na

Universidade de Paris e mais tarde ganharam popularidade em outros centros europeus de aprendizado,

incluindo Oxford e Roma, eram debates públicos improvisados em que tópicos para discussão

relacionados a qualquer coisa “de quolibet) podiam ser propostos por qualquer indivíduo (a quolibet)

presente” (cf. DOUGHRTY, M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a

Questão da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 142).

Page 79: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

79

disposição dos tópicos161

. Em Pico esse estilo fora organizado de acordo com os autores

e a tradições seguida das teses que correspondem às Conclusiones.

O sobrinho de Pico observou também que seu debate estava escrito tanto no

modelo do quodlibetal medieval quanto em outro modelo como a quaestio disputata, ou

seja, modelos de escrita e debate162

utilizados em escritos medieval. Tanto na Oratio

quanto na Apologia foram usados a forma cuidadosa piquiana, em que houvesse susto,

não do que estava escrito nas teses “certis et determinatis”, mas relação ao número de

teses a ser expostas, ou seja, 900 teses. Ademais, aquilo que preocupava ao filósofo de

Mirandola era o modo como esses escritos seriam vistos, já que a retórica também faria

parte da parte do discurso de abertura das Teses.

Em Roma, Pico della Mirandola continua a estudar frequentando, igualmente, a

Biblioteca Vaticana e preparando-se para o solene “Debate”. Contudo, nem todos

participavam do mesmo entusiasmo, e muitas eram as críticas em relação à prática

dessas disputas por serem associadas à ostentação, mas ainda se tratava da ousadia de

um jovem laico, de 24 anos, ou seja, ousar propor uma disputa sobre problemas muito

difíceis em uma cidade como Roma e em uma assembleia de homens muito doutos e de

grande doutrina, isto é, diante do Senado da Igreja. Outros condenavam, no entanto, o

número excessivo das Teses. Não se falava ainda de erros e heresia, mas tais críticas já

revelavam e manifestavam a hostilidade ao projeto de Pico.

Já fora de Roma outras são as manifestações, pois Ficino é solidário com o jovem

e o segue com admiração, sem dispensar certa ironia em relação ao número excessivo

de Teses. Roberto Salviati conforta o amigo e informa a Ermolao Barbaro sobre o

161

Nesse sentido, Dougherty escreve: “A vasta disposição de fontes que Pico compilou em sua coleção é

incrível: seu domínio incomum de línguas, aliado a suas tendências bibliofílicas, sem dúvida fez com que

ele produzisse uma coleção de sentenças padronizadas. Sua educação em Bolonha, Ferrara, Pádua e París,

aliada aos contatos eruditos em Florença, certamente o preparou para seu compêndio de teses de grande

alcance. No prefácio das 900 Teses, Pico não economiza na descrição das fontes de suas teses, e sua longa

descrição pode servir como uma taxonomia dos assuntos e das fontes de seu livro”(cf. DOUGHRT, M. V.

IN:Pico della Mirandola: novos ensaios, p.144). 162

De acordo com Dougherty: “Pico pode ter tido em mente aqui explicitamente os debatedores das

questões quodlibetais quando se separou daqueles de sua época que, à maneira do antigo retórico Górgias,

estava disposto a propor a discussões “relacionadas a todas as artes” (de omnibus etiam omnium artium),

em vez de qualquer número finito de preposições. Em suma, o fato de Pico ter anunciado e distribuído

suas teses antes do debate planejado e ter destacado o tema principal limitado de sua proposta elimina a

inclusão de seu debate romano na tradição das quaestiones quodlibetales” (Cf. DOUGHRTY. M.V. Três

Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a Questão da Natureza Humana na Oratio, IN:

Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 143).

Page 80: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

80

projeto de Pico, mas ainda sobre as dificuldades encontradas em Roma. Barbaro

exprime admiração pelo seu saber, mas reconhece que uma disputa pública não tem

valor, nem filosófico nem dialético, pois é considerada apenas um meio para se obter

fama. Em Roma, porém, os adversários, não obstante as respostas de Pico às críticas,

não se desarmam e terminam pondo em alarme o Papa Inocêncio VIII que, no decorrer

dos acontecimentos, o condena. Em resposta à Comissão, Pico della Mirandola

responde a três objeções contra o debate no texto da Oratio: i) inoportunidade da

disputa; ii) a pouca idade de Pico; e iii) o número excessivo das Teses163

.

É preciso aqui destacar em relação à Oratio de hominis dignitate que a sua

primeira parte conserva todo o seu valor, pois a segunda assume um valor apenas

contingente de defesa contra os ataques dos adversários romanos, ou justifica a tese

relativa à prisca theologia164

, à magia e à Qabbalah. A Oratio não é um tratado e nem

mesmo um ensaio de elaboração conceitual, como são as outras obras de Pico como o

De ente et uno,165

mas um preâmbulo para uma disputa pública dirigida aos padres e

doutos que participariam do encontro. Redigida em alto estilo retórico, mas

ultrapassando os limites da Retórica, exalta a liberdade-responsabilidade do homem e,

ao mesmo tempo, reúne todas as disposições culturais e morais com a finalidade da pax

philosophica. Contudo é inegável que a Oratio expresse também a concepção filosófica

de Pico della Mirandola, e de seu projeto de saber nesse período. É inegável ainda a

presença de certo procedimento em que se revela a defesa de uma multiplicidade das

vias e da busca de concórdia entre doutrinas sapienciais e filosóficas 166

.

Pico não só enaltece o ser criado por Deus, o homem, mas na Oratio se

apresenta a sua ética do existir, demonstrando assim o próprio sentido natural do ser

humano, ou seja, de agir de acordo com as atitudes orientadas para isso. A Oratio se

apresenta como um chamado para que os Padres pudessem observar com benevolência

163

Cf. NAPOLI, di Giovanni. Pico della Mirandola e la problemática del suo tempo, pp. 83-84. 164

Essa ideia é pensada por Ficino e Pico, como tradição sapiencial, ao mesmo tempo teológico-religiosa

e filosófica, na qual a Antiguidade, desde o Egito de Hermes Trimegisto, a Pérsia de Zoroastro até a

Grécia de Platão e Plotino, coincidiriam em harmonia doutrinal e concórdia com o Cristianismo. 165

Trata-se de uma obra de Pico della Mirandola composta entre os últimos meses de1490 e a primavera

de 1491. Em tal obra, ele examinou a controvérsia ocorrida entre os seguidores de Platão e Aristóteles,

defendendo assim certa comunhão de ideias entre esses pensadores. 166

Para Sirgado: “Ser ontologicamente de natureza indeterminada, distingue-se, por tal fato, tanto do

mundo natural como do mundo angélico, de que é o mediador, distingue-se ainda devido a ser o artífice

de si mesmo, de tal modo que o problema da sua natureza não se pode pôr a priori, mas tão-só a

posteriori” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Giovanni Pico

della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.XXII).

Page 81: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

81

o texto. Em sua constituição, a Oratio reporta-se ao homem, em sua peculiaridade, logo

no início de sua exposição. Daí se considerar aqui a seguinte disposição dos argumentos

a fim de uma apresentação ainda muito ampla de seus temas e procedimento. Nesse

sentido pode-se sustentar que:

Embora em sua primeira edição Gianfrancesco Pico tenha publicado a

obra como um todo contínuo (sendo que a maior parte das edições

preserva esse costume), parece natural dividirmos a Oratio em seções

ou divisões principais de acordo com os principais assuntos abordados

por ela. Em meu julgamento, a obra pode ser perfeitamente dividida

nas cinco seções a seguir: 1. A discussão da natureza humana (2-16).

2. Três elementos de um currículo filosófico (16-38). 3 Uma apologia

da Filosofia (38-42). 4. Três objeções ao debate romano (42-52). 5. Os

temas das teses (52-81)167

.

Tais temas e argumentos estão articulados com base, de um lado, em uma erudição que revela a

origem e diversidade das fontes e, de outro, com uma orientação, quer retórica quer filosófica do

procedimento.

2.4 Cultura humanista e Filologia: erudição e procedimento na Oratio

Uma reflexão acerca da Oratio não pode prescindir de algumas considerações

sobre o classicismo humanista, ou seja, o novo posicionamento dos humanistas em

relação à obra dos chamados auctores, em que buscaram se aproximar diretamente dos

textos, refutando assim, de forma enérgica, toda mediação de interpretações exegéticas e

retóricas, em que a arte e a língua muito perfeita dos grandes autores latinos fossem, de

forma arbitrária e monstruosa, deformadas. A primeira reação dos humanistas, ante as

deformações ocorridas durante o Medievo, é identificada com a posição assumida por

Francesco Petrarca ante aos moldes artificiosos do latim falso e barroco das artes

dictandi que impôs artificialidade e vulgaridade na abordagem da língua dos

clássicos168

.

Há aqui o repúdio à elocutio artificialis e uma busca de recuperação do

“verdadeiro” latim, livre das deformações de uma tradição degenerante. Ocorre,

portanto, uma reação contra a noção anti-histórica que o latim assumiu nos gramáticos

167

Cf. DOUGHERTY. M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a Questão

da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, pp. 157-158. 168

Ver aqui VISCARDI, Antonio. Storia della letteratura italiana dalle origini al Rinascimento, Milano:

Nuova Accademia, 1960, pp. 465-476.

Page 82: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

82

medievais: aquela noção que Dante aludiu em seu escrito De vulgari eloquentia. Por

conseguinte,

[...] a noção do latim como „gramática‟, como língua artificial e

convencional, criada, definida e regulada pelos doutos para tornar

possível a comunicação e o intercâmbio entre os homens de tempos

diversos e de países diversos, falantes de línguas „naturais‟ diversas;

língua [...] secundária em relação às línguas „naturais, „construída‟ por

homens de países diferentes e de diferentes línguas „naturais‟169

.

Propõe-se então um retorno à língua de Roma e não à gramática „abstrata‟.

Trata-se de um conhecimento reconquistado e da consciência concernente à realidade

histórica do latim, ou seja, do seu desenvolvimento histórico, portanto, o

reconhecimento da contribuição que cada grande escritor e orador deram à formação e

definição da língua latina. Por conseguinte, não é a concepção da atividade humanista

com recuperação de grandes obras mantidas nos ergástulos das bibliotecas monásticas,

ou seja, obras que se encontravam no esquecimento e no silêncio secular, aquilo que

explica propriamente esse movimento.

Tampouco a noção de perfeição e exemplaridade da civilização clássica pode

ser considerada uma nova conquista dos humanistas, pois já se encontrava entre os

mestres da escola classicista medieval170

. Aquilo que representa uma nova conquista e

que se expressa no convite de Petrarca de “retorno aos antigos” é, portanto, o

reconhecimento do mundo antigo na sua “verdadeira” realidade, pois

[...] os homens medievais, mesmo os mais doutos, também aqueles

que parecem realmente mais partícipes da tradição classicista, nunca

perceberam pertencer a um mundo espiritual diferente daquele

clássico; porque nunca advertiram aquela „fratura‟ que os separa

daquele mundo que as escolas evocam motivos ideais e formas 171

.

O Medievo impôs uma interpretação ou transfiguração do mundo antigo,

completamente assimilado pelo mundo presente, por conseguinte “dois mundos

diversos, antigo e moderno, tinham sido confundido e unificados, e a Antiguidade

reduzida a um mundo totalmente medieval” 172

. É, portanto, da consciência conquistada

do fim da civilização antiga que nasce o classicismo humanista, ou seja, do

reconhecimento da decadência daquela civilização que finda, mas também o

169

Ibidem, p.480. 170

Cf. VISCARDI, Antonio. Storia della letteratura italiana dalle origini al Rinascimento, p.481. 171

Ibidem, p. 477. 172

Ibidem, pp. 477-478.

Page 83: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

83

reconhecimento de um período áureo do processo de civilização. O resultado

fundamental da nova postura do humanismo com relação aos autores clássicos decorre

assim do afirmar-se de uma consciência histórica, a qual se reflete no desenvolvimento

de novos métodos de estudo e procedimentos científicos. Por conseguinte, a busca dos

humanistas,

de restabelecer a verdade a respeito do mundo clássico determina o

nascimento de uma nova ciência, a ciência da Antiguidade [...] e, em

especial, o advento daquela ciência que nós chamamos Filologia: isto

é, a investigação dos textos literários, com método rigorosamente

histórico e crítico 173

.

Nesse sentido, ocorre na atividade dos humanistas uma oposição ao procedimento

puramente retórico dos estudiosos medievais em relação aos textos clássicos, pois se

insurge aquele filológico, sem, porém, destruir a sensibilidade artística e, ao contrário,

contribuindo com o seu aperfeiçoamento. A busca humanística de restabelecer a

verdade com relação ao mundo clássico se manifesta de forma concreta, de início na

exigência de restituir na sua autenticidade o texto dos grandes autores latinos contra

toda incrustação ou corrupção da tradição174

. Portanto, as descobertas dos humanistas

[...] não consistem tanto na descoberta de obras perdidas e

negligenciadas pelo Medievo, quanto na pesquisa dos vários textos

conservados de uma determinada obra e das recíprocas relações; com

a finalidade de reconhecer, através do confronto dos vários

testemunhos, a forma original da própria obra como saiu da pena do

autor 175

.

Tal exame da tradição exige, portanto, um conhecimento seguro de ordem linguístico,

daí as críticas em relação ao latim escolástico, mas também um conhecimento histórico,

antiquário, e uma sensibilidade aprimorada, sem esquecer os conhecimentos de modos

estilísticos de cada autor176

. A atividade filológica não pertence, porém, aos primeiros

humanistas, pois as primeiras manifestações permaneceram apenas como entusiasmo e

admiração. Porém, filólogos, indagadores dos monumentos literários clássicos, e

“instauradores de um método crítico rigoroso, são os humanistas da segunda geração:

173

Ibidem, p. 482. 174

Ibidem. 175

Ibidem. 176

Ibidem.

Page 84: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

84

maior de todos Lorenzo Valla (1407-1457), que é realmente o fundador da Filologia

moderna” 177

.

Por conseguinte, o advento do método filológico dos humanistas assume um

grande significado, contribuindo, igualmente, para uma atitude crítica e anteposta ao

dogmatismo, esta última uma característica da forma anterior do pensar. Daí ocorrer a

crítica dos textos e discussões sobre a tradição, sem descurar do exame concernente ao

valor dos testemunhos. Tal posicionamento crítico se afirma também como repúdio de

toda autoridade, ou seja, livre exame da tradição e de toda sistematização definitiva

doutrinal178

.

Nesse contexto cultural renascentista, a atividade filosófica de Pico della

Mirandola não exclui certa dimensão filológica. Certamente o seu projeto exigia um

conhecimento de inúmeras obras clássicas e lista de livros e, nesse sentido, a

necessidade de aprender o grego, o hebraico, o árabe e o aramaico para as suas leituras.

Conforme escreve Sebastiano Gentile, ao se considerar as Conclusiones, aquilo que se

apresenta na sua redação final não há uma disposição sistemática e fiel dos textos como

realizaria um filólogo, mas um estudo que é fruto de

[...] uma mente extraordinariamente perspicaz que, porém, compila e

distorce, com frequência, as suas fontes de modo bem pouco

„filológico‟, tornando bastante árduo, aliás, para o leitor moderno,

destacar a origem precisa dos textos que ele pretendia propor para a

avaliação daquele concílio de doutos que afinal [...] não teve como se

reunir 179

.

Na primeira redação da Oratio, que devia servir, como se sabe, de abertura ao

debate e descoberta por Eugenio Garin no MS Palatino lat. 885, pode-se encontrar,

segundo afirma Sebastiano Gentile, uma afirmação metodológica de Pico della

Mirandola, aproximando-o assim ao espírito e intenções mais sólidas da tradição

humanista. Nessa redação da Oratio, Sebastiano Gentile escreve:

Após haver explicado as razões que o haviam induzido ao estudo da

Filosofia, Pico declara ter sempre considerado essencial, para alcançar

o seu escopo, duas condições: a abertura, sem qualquer impedimento

ou preconceito, a todas as escolas filosóficas; e o conhecimento das

línguas antigas: além do latim e do grego; era necessário também o

177

Ibidem, p. 483. 178

Cf. VISCARDI, Antonio. Storia della letteratura italiana dalle origini al Rinascimento, p. 484. 179

GENTILE, Sebastiano. “Pico filólogo”. IN: GARFAGNINI, Gian Carlo (org.). Giovanni Pico della

Mirandola, p. 466.

Page 85: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

85

hebraico e o aramaico, mas também o árabe [...]. Porque ele sabia bem

que „omnis sapientia‟ havia passado dos bárbaros aos gregos e, em

seguida, dos gregos aos latinos; e que os filósofos ocidentais tinham

há muito desistido de alcançar àquelas tradições distantes, de que

também tinha origem todo o saber deles180

.

Para Pico della Mirandola era preciso a leitura das escrituras sagradas dos

hebreus e dos caldeus, a fim de se conhecer melhor a grande enciclopédia do saber ao

lado da grega e árabe: algo que caracterizava a orientação do projeto cultural e

filosófico humanista e renascentista. Para tanto era preciso, igualmente, a leitura desses

textos na língua originária, pois parte deles não era traduzida e outros até destruídos

pelos tradutores. Trata-se de uma necessidade de se conhecer esses textos, pois

desconhecidos ou incompreensíveis para o Ocidente. O seu conhecimento do hebraico

constituiu, no entender de Sebastiano Gentile, “o autout filológico de Pico, desde a

época da redação das Conclusiones. Os amigos se dirigiam a ele para superar aqueles

problemas de interpretação da Sagrada Escritura, que ele só podia dissolver

eventualmente remontando ao texto hebraico” 181

.

Portanto, Pico teve um papel relevante na retomada dos estudos filológicos e se

encontrava inserido nesse universo, quer por razões de estudo quer de amizade com

doutos como Angelo Poliziano e Lorenzo de Medici em projetos que envolvia a

organização de acervo bibliotecário e aquisição de obras raras e conhecimento de listas

de obras. Isso se revela, igualmente, na sua interpretação de uma tradição filosófica, até

aquele momento conhecida por poucos doutos ou assimilada com base em traduções

que comprometia, sem dúvida, o texto. Uma leitura atenta da Oratio pode revelar não só

a ideia de seu propósito, não só retórico e poético, mas também filológico e filosófico,

não obstante a ausência ainda de uma justificativa mais rigorosa e aprofundada dessa

articulação. Contudo a presença de certo exercício filológico é inegável na sua atividade

de filósofo e o insere em um universo mais amplo de saber, ou seja, aquele da

enciclopédia dos saberes: característica da filosofia renascentista.

No cenário da cultura humanista, Pico della Mirandola se apresenta com a sua

tentativa de conciliar as escolas do pensamento oriental com o ocidental, empenhando-

se em um trabalho para confirmar o homem como um ser digno, e tal expressão nas

180

GENTILE, Sebastiano. “Pico filólogo”. IN: GARFAGNINI, Gian Carlo (org.). Giovanni Pico della

Mirandola, p. 467. 181

Ibidem, pp. 468-469.

Page 86: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

86

diferentes culturas em que a Oratio destacou. Esse texto já principia com o

reconhecimento da dignidade, pertencente à criatura humana, revelando a erudição de

um filósofo e seu exercício também filológico das fontes em sua complexidade e

diversidade. Trata-se da realização de uma grande síntese, articuladas com base em uma

compreensão mais ampla da verdade. Certo que o humanismo renascentista influenciou

o retorno à Antiguidade Clássica, construindo não só a base filosófica do Renascimento

artístico e cientifico na Europa, mas possibilitou, ao mesmo tempo, sínteses

proeminentes para o pensamento e ideias durante esse período. A Oratio182

tornou-se

símbolo do limiar humanístico, elaborado na nova interpretação filosófica do semear

antropocêntrico da liberdade do homem, que se faz na escolha de seu próprio destino.

Para a compreensão de sua Oratio, não é suficiente destacar apenas os aspectos

apologéticos, como demonstra a sua Segunda parte, mas defender, conforme a primeira

redação, certa coerência no sentido de um procedimento a ser adotado. Por conseguinte,

Pico expôs, de forma ampla, as razões que fundamentam, nas diversas tradições, a

relevância dessa tarefa filosófica, com base na ideia de dignitas hominis e como

itinerário a ser seguido. Daí indicar duas condições:

Por esses motivos me senti encorajado, mas até investido do dever de

me dedicar ao estudo da Filosofia. Para consegui-la plenamente, eu

que a perseguia com paixão, pensei sempre que devesse dar o máximo

destaque a duas coisas183

.

A parte final da Oratio apresenta, nessa primeira redação, as duas condições: i)

as fontes e o seu conhecimento integral; ii) a disponibilidade à discussão. Conforme

Pico escreve: “[...] não jurar sobre a palavra de ninguém e me estender, igualmente,

sobre todos os mestres da Filosofia, examinar cada página, conhecer todas as escolas”

182

De acordo com Maria de Lourdes Sirgado: “O problema da dignidade do homem é perspectivado em

função do lugar central que este ocupa no universo, ponto de referência de toda a realidade. Daí podermos

falar em antropocentrismo. Esta preocupação por uma valorização do homem na sua condição terrestre, se

bem que encontre no nosso autor a sua máxima expressão, não é nova na época, pois já tinha encontrado

alg.umas formas de expressão em autores humanistas, especialmente a tematização de Gianozzo Manetti,

discípulo de Ambrogio Traversari, que celebrou o homem e a sua dignidade, ao acentuar o valor da

actividade humana, mas só na medida em que esta lhe é conferida pelo Criador. Gianozzo não entrevê, no

entanto, o alcance ontológico, metafísico e ético desta tese. Tal intuição está reservada a Giovanni Pico

della Mirandola” (cf.GANHO SIRGADO, Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA,

Giovanni Pico della. O discurso sobre a dignidade do homem, p. XXI). 183

MIRANDOLA, della Pico. De dignitatis hominis, apud. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle

origini del Discorso sulla dignità umana di Pico della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000, p. 65.

Page 87: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

87

184. Isto ele havia realizado na Primeira parte da Oratio, quando argumentou, de forma

pluralista, sobre a dignitas hominis e sobre a relevância da atividade filosófica.

Para tanto é preciso certa capacidade de aceder diretamente às fontes por meio do

conhecimento das línguas. A busca de conhecimento amplo das fontes decorre da

compreensão de que os homens não podem esgotar a verdade. Pico condena, portanto, a

limitação daqueles que permanecem a comentar o texto de outros:

[...] quem estuda todo gênero de escritor não deixe de ler todas as

obras que pode, [...] observado por todos os antigos e, sobretudo, por

Aristóteles, que por essa razão foi chamado por Platão anagnóstes, ou

seja, leitor, e é realmente sinal de fechamento mental se confinar no

interior de uma única escola, seja o Pórtico ou a Academia. E não se

pode escolher a própria Escola entre tantas outras sem errar, quem não

as tenha antes conhecido todas de perto. Não existiu nunca ninguém,

antes ou depois de nós, que a verdade tenha se revelado totalmente

para ser compreendida. Ela é maior que a capacidade humana. Além

disso, em cada Escola há algo de específico, que não é comum às

outras 185

.

Pico della Mirandola apresenta ainda outros argumentos que não ultrapassam a

questão da diversidade das fontes, a saber, aquele relativo aos aspectos estilísticos

originais e singulares. Na sua abordagem, ele elenca alguns autores e destaca as suas

respectivas especificidades estilísticas. De acordo com o autor:

[...] em Escoto encontramos uma vigorosa dialética, em Tomás um

sólido equilíbrio, em Egídio uma nítida precisão, em Francisco [de

Meyronnes] uma penetrante perspicácia, em Alberto uma amplitude

majestosa e antiga, em Henrique, naquilo que me pareceu, uma

constante e venerável elevação. Entre os árabes, em Averróis

encontramos uma firmeza inabalável, em Avampace e em Al-Farabi

uma ponderada reflexão, em Avicena uma divina sublimidade

platônica. Entre os gregos a Filosofia é límpida, em geral, e casta, em

particular; é coerente e douta em Alexandre [de Afrodisia], profunda e

elaborada em Teofrasto, fluente e embelezada em Amónio. Se nos

reportamos em seguida aos platônicos, para deles apenas recordar

alguns, em Porfírio agradará a abundância dos argumentos e a

complexa religiosidade, em Jâmblico se veneram os mistérios dos

bárbaros e a filosofia mais secreta, em Plotino não há coisa alguma

que se admire, em particular, porque se faz admirar por completo,

compreendido apenas e com esforço pelos platônicos por falar de

modo divino das coisas divinas e com linguagem sabiamente alusiva

de modo muito superior ao humano das coisas humanas. Não me

ocupo dos mais recentes: Proclo, com o luxuriar da sua exuberância

asiática, e todos aqueles lhe seguiram. Hermia, Damascio,

184

Ibidem. 185

Ibidem, p. 68.

Page 88: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

88

Olimpiodoro e muitos outros, nos quais brilha sempre aquele tò thêon,

ou seja, aquele que de divino que é característica peculiar dos

platônicos186

.

Esse argumento, de inspiração ciceroniana, retornou na última redação da Oratio.

A exposição reforça ainda a exigência de se conhecer, de forma integral, as fontes e

insiste, igualmente, acerca do valor de um confronto com as fontes heréticas a fim de

um reforço e aproximação da verdade. De acordo com Pico:

Acrescente-se, em seguida, que há uma heresia que combate os

princípios mais verdadeiros e que zomba caluniosamente as boas

razões do engenho, ela não enfraquece, mas reforça a verdade e nem

mesmo a apaga, mas a reanima como uma chama sacudida pelo

movimento. É um privilégio da verdade ser invencível e que os dardos

lançados contra ela retorne sobre quem os lançou 187

.

Para concluir, Pico reforça a utilidade da disputa e o valor do antagonismo na

busca da verdade recorrendo, igualmente, às fontes hebraicas e caldeias. Isto justifica,

quer o seu esforço não só filosófico, mas também filológico na elaboração de seu

projeto de saber, o qual apresenta uma dimensão enciclopédica.

186

Ibidem, pp. 68-69. 187

Ibidem, p. 70.

Page 89: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

89

CAPÍTULO III

NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NAS FORMULAÇÕES DA

ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE

Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo

o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal, a

fim de que tu, arbítro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e

te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido188

.

Após as considerações acerca de alguns pressupostos necessários à

compreensão, quer histórica quer filosófica acerca da obra e do tema deste estudo, pode-

se aqui sustentar, de início, que a Oratio é um louvor ao exercício da Filosofia189

, com o

objetivo de ser um prefácio metodológico e justificativo do projeto sistemático de Pico

della Mirandola. Nesse escrito, o autor apresenta uma síntese de diversas orientações

culturais, sapienciais e doutrinais, destacando igualmente aspectos religiosos e

filosóficos pertencentes à tradição e à civilização. Apesar de escrita em 1486, a Oratio é

interpretada por comentadores190

como uma celebração dos valores humanistas,

destacando, em especial, a liberdade humana. A exposição sobre o universo cultural e

filosófico renascentista, realizada nos capítulos anteriores, foi relevante para esta

abordagem específica da Oratio, a fim de destacar os principais elementos culturais,

sapienciais e também categoriais, que se articulam na reflexão sobre a natureza humana

e a liberdade: tema central desta dissertação.

3.1 Magnum, o Asclepi, miraculum est homo: emblema e fórmula da teorética da

Oratio

Em seu exórdio à exposição da Oratio, Pico recorre aos árabes para argumentar

sobre o homem191

e com o famoso dito de Hermes Trimegisto, emblema e fórmula

188

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 57. 189

Assim relata Maria de Lourdes Sirgado: “Para concluir, e retomando uma afirmação feita no inicio

deste estudo, relativamente ao fato de a Oratio ser um elegante elogio da filosofia, gostaríamos de aduzir,

a partir do próprio texto, alguns argumentos a favor desta tese” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes.

“Apresentação” IN: MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.XXX). 190

Cf. DOUTHERTY, M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola IN: Pico della

Mirandola: novos ensaios, p. 137. 191

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53.

Page 90: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

90

compreensiva da sua teorética: pensar o homem e a sua natureza192

. Trata-se, portanto,

de considerar o Homem como tema central da teorética filosófica, pois resume e

consolida no seu escrito aquele intento humanístico da dignitas hominis. Por

conseguinte, ele principia a Oratio com o reconhecimento da dignidade da criatura

humana, pois com base nas fontes árabes, “interrogado Abdala Sarraceno sobre qual

fosse a seus olhos o espectáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo, tinha

respondido que nada via de mais admirável do que o homem” 193

. Também as fontes

herméticas o confirmam: “Com esta sentença concorda aquela famosa de Hermes (*):

„Grande milagre, ó Asclépio, é o homem‟” 194

.

Enquanto meditava acerca do significado dessas afirmações, Pico diz não estar

de todo satisfeito com as diversas razões que eram habitualmente aduzidas, com

frequência, em relação à “grandeza da natureza humana” [multa de humanae

naturae]195

. Daí expor alguns lugares comuns nos quais se indicam o sentido da

digninitas hominis:

[...] ser o homem vínculo das criaturas, familiar com os superiores,

soberano das inferiores; pela agudeza dos sentidos, pelo poder

indagador da razão e pela luz do intelecto, ser intérprete da natureza

da natureza; intermédio entre o tempo e a eternidade e, como dizem os

Persas, cópula, portanto, himeneu do mundo e, segundo atestou David,

em pouco inferior aos anjos196

.

Será que a dignitas hominis se fundamenta nesses antigos lugares comuns, o de

ser humano-microcosmo e a sua centralidade no Universo, como indicam quer a Bíblia

quer os Caldeus. Com a exortação das palavras de exaltação do homem que o árabe

Abdala havia pronunciado, com as quais concorda o dito acima indicado de Hermes

Trimegistro, expressão de um universalismo cultural presente na sua orientação

filosófica, e refletindo sobre o significado preciso da grandeza do homem, conforme

essa resenha de todas as justificações fornecidas pela tradição humanista, Pico della

Mirandola permanecia ainda insatisfeito. Sobre essa resenha temática justificadora da

dignitas hominis, a tradição humanista teria se debruçado no seu confronto retórico com

o averroísmo com base nas fontes clássicas e cristãs. Tais justificativas sobre a dignitas

192

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53. 193

Ibidem. 194

Ibidem. 195

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 53. 196

Ibidem.

Page 91: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

91

hominis não eram ainda suficientes no sentido de alcançar o fundamento da grandeza do

homem: era preciso ir ao fundamento dessa grandeza a fim de uma compreensão da

diferença humana, quer em relação aos astros quer em relação aos anjos, pois superiores

ao homem, mas já presos à sequela do bem.

Certamente Pico reconhece a relevância das várias atribuições relativas ao

homem, mas não a ponto de consentir o privilégio de uma “admiração ilimitada” 197

.

Daí indagar: “Por que, de facto, não deveremos admirar os anjos e os beatíssimos

corpos celestes?” 198

. Pareceu-lhe então, conforme escreve na Oratio, ter compreendido

[...] por que razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados

e digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição que

lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só pelas bestas,

mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos. Coisa

inacreditável e maravilhosa. E como não? Já que precisamente por

isso o homem é dito e considerado justamente um grande milagre e

um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado199

.

3.2 Deus: architectus e artifex

Após esses argumentos, Pico busca explicitar a condição de grandeza do homem.

Por isso oferece, de início, a sua versão da narrativa bíblica da criação divina. Era

preciso uma justificativa:

Já o Sumo Pai arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana

sabedoria este lugar no mundo como nós o vemos, augustíssimo

templo da divindade. Tinha embelezado a zona superceleste com

inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoado

com uma multidão de animais de toda espécie as partes vis e

fermentantes do mundo inferior. Mas, consumada a obra, o Artífice

desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma

obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a sua grandeza. Por

isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e Timeu atestam, pensou

por último criar o homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara

nenhum sobre o qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha

algum para oferecer em herança ao novo filho, nem dos lugares de

todo o mundo restara algum no qual se sentasse este contemplador do

universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído nos

sumos, nos médios e nos ínfimos graus. Mas não teria sido digno da

paterna potência não se superar, como se fosse inábil, na sua última

obra, não era próprio da sua sapiência permanecer incerta numa obra

necessária, por falta de decisão, nem seria digno do seu benéfico amor

197

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 53. 198

Ibidem. 199

Ibidem, p. 54.

Page 92: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

92

que quem estava destinado a louvar nos outros a liberalidade divina,

fosse constrangida a lamentá-la em si mesmo200

.

Conforme Pico, Deus havia realizado a sua obra, sem lacunas e sem

insuficiências, mas faltava ainda àquela que, contemplando, pudesse reviver em si a

maravilha do mundo e possuísse nas próprias mãos o destino da própria vida, quase

como se não houvesse mais ulteriores exemplares para criar outros seres: por isso criou

um que constituísse uma espécie de exemplar abrangente. Faltava ainda uma

justificativa para a dignitas hominis201

. Nesse sentido, Pico apresenta, em seguida, uma

versão da narrativa sobre a criação divina ante os poucos arquétipos disponíveis, com as

célebres palavras do Criador dirigidas a Sua criatura:

Estabeleceu, portanto, o òptimo artífice que, àquele a quem nada de

especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido

dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra de

natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo:

„Ó Adão, não te demos nem um determinado, nem um aspecto que te seja

próprio, nem tarefa alguma especifica, a fim de que obtenhas e possuas

aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo

segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros

seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não

constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu

arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que

daí possas olhar mellhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste

nem terreno, nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti

mesmo, te plasmasses e te informasse, na forma que tivesses seguramente

escolhido. Poderás degenerar até às realidades superiores que são divinas, por

decisão do teu ânimo‟202

.

Para a elaboração desse momento da Oratio, Pico se utiliza, em especial, de três

fontes: o Gênesis bíblico, o Simpósio e Diogênes Aeropagita. Tal cena originária é

construída com base em três imagens: o jardim do Edem, o jardim de Zeus e o paraíso

dos Anjos. A narrativa bíblica é, portanto, fundamental na Oratio, não obstante as

inúmeras alterações realizadas por ele na elaboração de seu texto. Também é bíblica a

sequência dos atos da criação que põem Adão no centro da criação já realizada, mesmo

se o desenrolar do ato criativo seja diverso daquele da narrativa bíblica, pois em seis

dias. Ademais, conforme Pico apresenta a sua interpretação, a criação acontece do alto

200

Ibidem. 201

De acordo com Giovanni di Napoli, a justificação da dignitas hominis se desenvolvera em toda a

tradição humanista como batalha contra o averroismo e reportando-se assim às fontes clássicas e cristãs.

Para Pico, aquelas justificações da dignitas hominis eram insuficientes ou de pouco valor, pois não atingia

o fundamento do problema. Ver aqui: NAPOLI, Giovanni di. Giovanni Pico della Mirandola e la

problemática del suo tempo, Pontefici: Roma, 1965, p.376. 202

Ibidem, p. 57.

Page 93: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

93

para o baixo, ou seja, da zona supraceleste, dos astros animados, aos animais na Terra e

ao ser humano203

.

Podem-se indicar ainda outros elementos que compõem a interpretação da

Oratio em relação à narrativa da criação e do Criador. É bíblica também a ideia do

discurso do Criador à nova criatura, embora os conteúdos sejam os mais diversos: não a

proibição de ascender à árvore do conhecimento, mas o convite para orientar o desejo, o

conhecimento e o ser completo na realização da meta mais alta. Não se apresenta aqui a

obediência como a vocação humana mais elevada. Porém é também bíblica a ideia da

soberania sobre a criação com a atribuição dos nomes às outras criaturas. De acordo

com Pier Cesare Bori:

Em Pico, a ideia do domínio existe, no sentido que a criatura humana

com o seu olhar domina as coisas e, aliás, pode se tornar aquilo que

desejar, como microcosmo que contém em si os princípios, as razões

seminais de todo o ser. Mas a sua finalidade não é principalmente isto:

a sua finalidade é transcender todo príncipio (vegetal,animal, racional,

intelectual) para a união mística com a divindade, que se ele encontra

no centro do seu cosmo interior, através do espírito [...]”204

.

3.3 Deus-liberilitas e homem-nostrum chamaeleonta: pensar a natureza do homem e

sua liberdade

Na máxima de Pico se sensualia, obrutescet “se sensível, será besta” 205

, o

homem é possuidor de natureza indefinida, pois compreendido como criatura (figura

teológica). Se racional, o homem pode ser animal celeste ou intelectual206

, que assim

será anjo e filho de Deus207

. A dignidade do homem não consiste, portanto, na

centralidade do homem ou no domínio sobre a criação e tampouco na liberdade como

tal208

. Embora consista na liberdade, mas deve ser realizada em direção a uma finalidade

não de criatura. Para imprimir a sua criatura essa tensão, não presente na versão bíblica,

Pico altera a imagem do paraíso e se apoia na fonte platônica: disso resulta a relevância

do Simpósio e da narrativa segundo a qual Eros foi concebido por Póros e Pénia no dia

203

Ver, nesse sentido, BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità

umana di Pico della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000, p.36. 204

Ibidem, p.37. 205

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57. 206

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59. 207

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.5. 208

A abordagem da questão da liberdade será desenvolvida nos tópicos posteriores de forma aprofundada.

Page 94: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

94

do nascimento de Afrodite, no jardim de Zeus. Daí a natureza carente de Eros,

intermediária entre ignorância e sabedoria: constante busca dela209

. Ademais é relevante

a influência de Orígenes e a sua leitura do Simpósio platônico, autor lembrado,

igualmente, nas suas Conclusiones, mas também a presença de Plotino, quer direta quer

mediada por Ficino210

. Em seguida, Pico aborda, a fim de completar a sua exposição

sobre a criação, a ideia da “liberalidade divina”. Nesse sentido, ele escreve:

Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do

homem! ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer.

As bestas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre

materno, como diz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos

superiores ou desde o principio, ou pouco depois, foram o que serão

eternamente. Ao homem nascente o Pai conferiu sementes de toda a

espécie e germes de toda a vida, e segundo a maneira de cada um os

cultivar assim estes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais

tornar-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais, elevar-se-á a

animal celeste. Se intelectuais, será anjo e filho de Deus, e se, não

contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro da sua

unidade, tornado espírito uno com Deus na solitária caligem [...] do

Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas estará sobre todas as

coisas211

.

Aqui se apresenta a liberilitas de Deus diante do mundo e do homem, portanto,

a relação criadora como algo radical e total dos entes que recebem o ser deles de Deus

que é o Ipisum Esse. Contudo essa “liberalidade” em Deus, segundo apresenta Pico, não

precisa da contingência, em Deus não existe o não ser, por conseguinte não tem lugar a

contingência. Nesse sentido, como é necessária a sua essência, uma vez que não pode

não ser assim é preciso a sua ação que forma um todo com a sua essência. Por

conseguinte, essa necessidade diz respeito à íntima essência da ação divina e não

elimina a liberdade de Deus em relação ao finito: por mais misteriosa que possa ser e

parecer à síntese entre necessidade e liberdade em Deus. Portanto, Deus é realmente na

liberdade e na liberalidade da sua ação o princípio de todas as coisas e por isso contém

omnium Principium.

Pico define, no inicio da Oratio, o homem “como um ser camaleão” 212

. Para

tanto ele cita Proteu, hebreus e Pitagóricos, assim como a teologia hebraica. Ele cita

209

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57. 210

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 57. 211

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, pp. 57-59. 212

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 59.

Page 95: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

95

também Enoch, e os exemplos teológicos de Maomé, e faz a comparação do que vem a

ser a natureza celeste e a natureza intelectual humana. Conforme ele escreve:

Quem não admirará este nosso camaleão? [...]. Não sem razão

Asclépio, ateniense, devido ao aspecto mutável e devido a uma

natureza que em si mesma se transforma, disse que nos mistérios era

simbolizado por Proteu. Daqui as metamorfoses celebradas pelos

Hebreus e pelos Pitagóricos. Até mesmo a mais secreta teologia

hebraica, de fato, transforma ora Enoch santo no anjo da divindade,

ora noutros espíritos divinos. E os Pitagóricos transformam os

celerados em bestas e, a acreditar em Empéndocles, até mesmo em

plantas. Imitando isto, Maomé repetia muitas vezes e com razão:

quem não se afasta da lei divina torna-se uma besta. De fato, não é a

casca que faz a planta, mas a sua natureza entorpecida e insensível;

não é o couro que faz a jumenta, mas a alma bruta e sensual; nem a

forma circular que faz o céu, mas a reta razão; nem é a separação do

corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual 213

.

Pico segue em seus argumentos214

sobre a natureza humana, natureza espiritual e

inteligente, como magnum miraculum. Daí sustentar:

[...] Por isso, se virmos alguém dedicado ao ventre rastejar por terra

como serpente, não é homem o que vê, mas planta; se alguém cego,

como Calipso, por vãs miragens da fantasia, seduzido por sensuais

engodos, escravo dos sentidos, é uma besta o que vemos, não é um

homem” 215

. Mais adiante, ele destaca a concepção do homem como

imago dei, pois, se “é um filósofo que discerne com recta razão todas

as coisas, venerá-lo-emos, é animal celeste, não terreno. Se é puro

contemplante, ignaro do corpo, todo embrenhado no âmago da mente,

este não é animal terreno, nem mesmo celeste: é um espírito mais

elevado, revestido de carne humana. Quem, pois, não admirará o

homem?216

.

Tanto na Oratio como no Simpósio platônico, pode-se identificar o elogio a Eros

e, respectivamente, à criatura humana, não pela sua atual dignidade, presentes nos textos

da tradição, como lugares comuns, mas pela capacidade de alcançar as metas mais

elevadas, no caso do homem, que se encontra na posição intermediária, “nem mortal,

nem imortal, nem terreno, nem celeste”217

, conforme a Oratio, ou posto no meio

(médium; metaxy), de acordo com o Simpósio, e capaz de atingir, através do amor à

sabedoria, as realidades supremas218

. Portanto, nas duas obras revela-se o dinamismo do

213

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p59. 214

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59. 215

Ibidem, p. 59. 216

Ibidem. 217

Ibidem. 218

Ver, nesse sentido, CESARE, Bori Pier. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità

umana di Pico della Mirandola, pp. 35-81.

Page 96: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

96

desejo, ou seja, a substância última do ser humano: de acordo com a Oratio, ser aquilo

que quer ou, segundo o Simpósio, paixão pela verdade219

.

Pico se reporta ao conhecimento obtido nas doutrinas dos acima citados para

firmar o homem como imago Dei, pois o filósofo é, no seu entender, o ser racional

celeste220

. Pico continua o seu discurso indagando quem não admirará o homem, este

ser camaleão, sustentando a sua tese com base nos ensinamentos dos textos sagrados

mosaicos e cristãos. Nesse sentido, ele afirma:

Que não por acaso nos sagrados textos mosaicos e cristãos é chamado

ora como o nome de cada criatura de carne, ora com o de cada

criatura, precisamente porque se forja, modela e transforma a si

mesmo segundo o aspecto de cada ser e a sua índole segundo a

natureza de cada criatura? O persa Evantes, por isso, onde expõe a

teoria caldaica, escreve que o homem não possui uma sua específica e

nativa imagem, mas muitas estranhas e adventícias. Daí o dito

caldaico de que o homem é animal de natureza vária, multiforme e

mutável 221

.

Sem dúvida, Pico é fiel ao espírito originário do Simpósio platônico. Pico indaga,

em seguida, sobre as razões de se recordar o testemunho de todos esses escritos, onde

destaca ser o homem cópula do Criador do mundo. O autor quer, de acordo com a

Oratio, que compreendamos:

[...] a partir do momento que nascemos na condição de sermos o que

quisermos, que o nosso dever [...] é preocuparmo-nos, sobretudo, com

isto: que não se diga de nós que estando em tal honra não nos demos

conta de nos termos tornado semelhantes às bestas e aos estúpidos

jumentos de cargas. Sois deuses e todos filhos do Altíssimo. De tal

modo que, abusando da indulgentíssima liberalidade do Pai, não

tornemos nociva, em vez de salutar, a livre escolha que ele nos

concedeu. Que a nossa alma seja invalidada por uma sagrada ambição

de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos

às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas

energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível222

.

Certamente, o homem possui sua natureza específica, se considera aqui a

natureza como a essência realizadora de um ente e Pico fala na Oratio de natureza

intelectual e racional para o homem: algo que significa dizer a presença de certa

natureza na estrutura humana. Por conseguinte, uma natureza a qual constitui o homem

219

Cf.BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di Pico della

Mirandola, pp. 40-41. 220

Cf. MIRANDOLA, Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59. 221

Ibidem, p.61. 222

Ibidem.

Page 97: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

97

naquilo que o compõe e nas suas funções. Portanto, pensar o homem sem pensá-lo sem

uma determinada natureza é impossível. Por conseguinte, assim como se pode pensar

uma natureza de Deus e uma dos anjos, como se apresenta com frequência em Pico,

pode-se falar de uma natureza do homem. Daí se falar da natureza em todos os entes:

natureza de anjo, de homem e de animal223

.

Todavia, o fato de se pensar uma determinada natureza, a qual não significa nas

formulações de Pico a natureza humana como conjunto e complexo de coisas inferiores

ao homem ou oposta ao espírito, não equivale, portanto, no homem, ter uma natureza

determinada como modo determinado de agir. O homem possui uma determinada

natureza que é aquela de homem, mas não tem como as demais realidades inferiores,

uma natureza determinada ou um modo determinista de operar, pois a sua característica

ou prerrogativa é a indeterminação como autodeterminação. Daí Pico conceber no

operar do homem a presença da escolha, que faz do homem um ser responsável pelo seu

destino. Nesse sentido, o homem quando opera, não possui uma propria facie como

tendência determinista do apetite natural e sensitivo, pois escolhe por meio da

inteligência essa face e as suas prerrogativas: age por arbítrio no sentido clássico da

escolha224

.

Portanto, no âmbito do operar humano, o homem não é, de forma determinista,

nem celeste, nem terreno, nem mortal nem imortal, mas se torna com base na escolha

com a qual se plasma. A sua natureza é dotada de escolha, pois determina as próprias

determinações de seu operar. Nesse sentido, a liberdade de que fala Pico della

Mirandola na Oratio exclui a necessidade das leis físicas ou biológicas, pois a natureza

humana não se identifica com aquela dos demais seres em relação à natureza definida e

suas leis prescritas por Deus. Aquelas prescritas para o homem faz que opere

racionalmente e livremente sem submeter a sua dignidade e liberdade à ordem

cosmológica. Por conseguinte, aquilo que é racional e livre não pode sofrer imposição

do “céu”, ou do fato estelar. Ao criar o homem livre, Deus não pode permitir, sem aqui

se pensar em contradição, que o determinismo cosmológico afete aquela liberdade225

.

223

Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 36-37. 224

Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 42-45. 225

Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 46-48.

Page 98: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

98

Se, de um lado, a liberdade humana exclui a necessidade determinista dos seres

inferiores, não exclui, de outro, em relação à necessidade finalista, ou seja, o dever

moral ante a norma: a liberdade é responsabilidade diante da norma, pois transcende a

escolha como o seu ideal. Portanto, a Oratio fala que Deus-Pai criou o homem com

sabedoria, com liberdade, com liberalidade: aquilo que o homem é em sua grandeza e

dignidade provém da liberilitas de Deus. Nesse sentido, a Oratio reforça essa dimensão

de criatura no homem, conforme a narrativa sobre a liberilitas de Deus, que revelam o

sentido da criatura humana e a sua dimensão da escolha. Daí Pico recordar o arbitrium

que faz do homem um magnum miraculum. A liberdade é assim libera optio, a qual

pode ser tanto salutar quanto nociva, ou seja, na medida em que acolha ou rejeite a

norma, diante da qual o homem é responsável.

É certo que o homem é ser natural, mas se o ser aquilo que quer é escolha, esta

última pressupõe e exige, segundo a Oratio, a norma. A tarefa do homem é a elevação

ao inteligível, ou seja, em direção a Deus como indicam as Escrituras com a escada de

Jacob226

. Pico não exclui o pecado, mas não afunda o homem neste, algo que pode

conduzir a certo pensamento otimista humanista da Oratio. Contudo a reflexão da

Oratio exprime o sentido fundamental da dignitas concernente à escolha e do dever que

implica tal escolha. Por conseguinte, a dignitas hominis é na sua estrutura de vinculum

et nodus em relação aos mundos, em que o homem é senhor do que foi criado como

empírico. Por isso, está na escolha e na tarefa de realizar com a escolha o dever da

regeneração, a qual se revela como paz do homem consigo mesmo, e condição ao

mesmo tempo da paz entre o homem e os mundos. A afirmação de Pico della Mirandola

da liberdade humana é, antes de qualquer coisa, o apelo para a responsabilidade

absoluta do homem. Tal responsabilidade deve ter como paradigma o mundo angélico,

ou seja, próximo ao plano divino, pois a contemplatio pertence aos Querubins227

.

3.4 Contemplatio e vitae cherubinae: os três estados ascéticos

Chegado a esse momento da argumentação e narrativa do autor da Oratio, a fonte

platônica não é mais suficiente para representar o desenvolvimento do homem, ou seja,

o seu desenvolvimento vertical. Daí Pico mudar o lugar de sua narrativa: não mais o

Edem, mas agora o paraíso dos anjos. Nessa nova representação, Pico se reporta à

226

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 67. 227

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63.

Page 99: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

99

concepção de Diógenes Aeropagita de ascensão mística dos três estados: purificação,

iluminação e perfeição, escrevendo:

Desdenhemos das coisas da terra, desprezemos as astrais e,

abandonando tudo o que é terreno, voemos para a sede supramundana,

próximo da sumidade da divindade. Ali, como narram os sagrados

mistérios, Serafins, Querubins e Tronos ocupam os primeiros lugares;

deles também nós emulemos a dignidade e a glória, incapazes agora

de recuar e não suportando o segundo lugar. E se quisermos, não

seremos em nada inferiores a eles228

.

Aqui se apresenta o lugar próprio da dignitas, pois consiste em emular a

dignidade da vida angélica. Em conformidade com o modelo da ascensão mística, Pico

diz na Oratio:

Arde o Serafim no fogo do amor, refulge o Querubim no esplendor da

inteligência, está o Trono na solidez do juízo. Portanto, ainda que

dedicados à vida activa, se assumirmos tratar as coisas inferiores com

recto discernimento, afirmar-nos-emos com a firmeza dos Tronos. Se

libertos das acções, meditando na criação o artífice e no artífice a

criação, estaremos imersos na paz da contemplação [...],

resplandeceremos rodeados de querubínica luz. Se ardemos só por

amor do artífice daquele fogo que consome todas as coisas, inflamar-

nos-emos logo com aspecto seráfico229

.

Nesse sentido, pode-se sustentar que os Tronos, mais distantes de Deus,

representam a vida ativa disciplinada; já os Querubins a contemplação, ou seja, a vida

intelectual que se derrama nas várias disciplinas filosóficas; e os Serafins, os mais

próximos a Deus, representam a união mística no amor. Como Pico expõe: “Sobre o

Trono, isto é, acima do justo juiz, está Deus juiz dos séculos. Acima do Querubim, ou

seja, sobre o contemplante, voa e quase gerando-o por incubação aquece-o. [...] O

Serafim, isto é, o amante, está em Deus e Deus está nele, e Deus e ele são um só”230

.

Como apresentado por Pico, o homem deve voltar-se às coisas celestes, ou seja, a

Deus, através de sua dignidade e diligência: “anelarmos as coisas mais altas”231

que é

voltar a alma para Deus. A defesa de que o homem deve abandonar as coisas medíocres

desse mundo é, portanto, clara na Oratio232

, pois Deus se apresenta no texto como

figura ímpar na existência humana, já que o criador é mestre sobre a sua criatura: valor

228

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61. 229

Ibidem, 63. 230

Ibidem. 231

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61. 232

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61.

Page 100: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

100

inestimável posto por Pico na Oratio de Deus como sumo criador e juiz da existência

humana. Conforme Pico argumenta nesse escrito: “De fato, o espírito do Senhor move-

se sobre as águas, aquelas que estão por acima dos céus e que, como está escrito no

livro de Job, louvam o Senhor com os hinos antelucanos” 233

. Mais adiante, ele

completa: “Grande é o poder dos Tronos e atingimo-lo com o juízo: suma é a

sublimidade dos Serafins e atingi-la-emos com amor” 234

. Pico, porém, indaga sobre

amor do que não se conhece. Em seguida se reporta ao exemplo de Moisés235

, que

[...] amou o Deus que viu, e promulgou ao povo, como juiz, aquilo

que antes tinha visto na montanha como contemplador. Eis por que no

meio o Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seráfica e

nos ilumina juntamente com o juízo dos Tronos.” 236

.

Por conseguinte, aqui se apresenta aquilo que Pico designa como o “nó das

primeiras mentes, a ordem sapiencial que preside à filosofia contemplativa”, pois se

deve, primeiro que tudo, “emular, investigar e compreender, de modo a sermos

arrebatados até aos fastígios do amor e descer em seguida instruídos e preparados para

as tarefas da acção” 237

. Portanto, trata-se de responder à luz da filosofia contemplativa

e que deve ser investigada e compreendida.

Se a vida do homem deve ser modelada com base na vida querubínica, é preciso

então saber, de acordo com Pico, ou seja, ter claro, “em que consiste tal vida, quais as

ações e quais as obras deles, este o preço de tal realização” 238

. Por causa da dificuldade

do homem de atingi-la, uma vez que é “carne” e tem “o gosto das coisas terrenas”, Pico

aconselha uma aproximação aos antigos Padres. Para se obter, portanto, uma orientação

sobre o modelo da vida angelical, é preciso consultar o apóstolo Paulo239

considerado,

segundo interpreta Diógenes Aeropagita, “vaso de eleição, que faziam os exércitos dos

Querubins quando foi arrebatado ao terceiro céu. Responder-nos-á, [...] purificava-se,

eram iluminados e tornavam-se, por fim, perfeitos”240

. Paulo havia falado desse

arrebatamento em um trecho das Cartas a Corintos241

.

233

Ibidem, p.63. 234

Ibidem, pp. 63-64. 235

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.62. 236

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63. 237

Ibidem, pp.63-65. 238

Ibidem, p. 65. 239

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63. 240

Ibidem, p.65. 241

Ver aqui: 2 Coritos, 12, 2-4.

Page 101: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

101

3.5 Liberdade como responsabilidade absoluta no homem: distinção no mundo da

criação

Na Oratio, a natureza humana postulada por Pico se expressa na distinção entre

os demais seres que habitam o mundo e nas suas peculiaridades. O homem é detentor de

uma natureza única, pois, como possuidor de uma natureza diferente, é exaltado de

acordo com as suas escolhas e decisões. Na Oratio, os argumentos sobre a natureza

humana se apresenta no inicio do escrito como preparação para se chegar às demais

formulações. A principal explicação dada por Pico sobre a natureza humana está na

descrição dada ao homem que toma como exemplo o Gênesis bíblico, alternando assim

uma história que situa o ser humano como obra indeterminada (indiscretae opus

imaginis) que precisa se moldar com a essência que é a forma e através da escolha feita

por cada ser242

.

Enquanto Pico explicita a natureza que o homem traz consigo243

, defende

também que este ser criado é obra do Criador. De acordo com a metafísica

tradicional244

, Deus inicia a ordem do universo, mas em Pico, a ausência de um

principio metafísico que determine a superioridade humana da ordem da criação (ou

principio determinante) exclui os seres humanos da hierarquia medieval. Daí o valor

dado aos seres humanos difere dos demais seres, pois o homem não está submetido à

ordem da natureza por se tratar de um milagre245

. O modo apresentado por Pico da

natureza humana tem o foco central no homem ser de natureza indeterminada, ao passo

que a liberdade humana está ligada ao homem como ser livre246

. Tal liberdade está

242

De acordo com estudiosos como M. V. DOUGHERTY: “A natureza demonstrada por Pico della

Mirandola está evidente no seu conceito de natureza humana (humanitas nature) está na natureza que o

próprio ser humano já trás consigo que é a natureza indeterminada, enquanto os demais seres trazem

consigo uma natureza determinada, ao contrário dos seres humanos” (cf. DOUGHERTY. M.V. Três

Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e Questão da Natureza na Oratio IN: Pico della

Mirandola: novos ensaios, p.159). 243

Cf. MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57. 244

Cf. DOUGHERTY. M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a Questões

da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.163. 245

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53. 246

No entender de Bruno Amaro: “ O homem, assim, é um ser livre, “arbítrio e soberano de si mesmo”.

Isso implica que sua natureza indefinida não deve permanecer indefinida. Ela deve ser definida,

determinada, como a natureza dos outros seres criados por Deus, como os anjos e as bestas. Ocorre que

quem determinará a natureza humana é o próprio homem, ou melhor, cada homem considerado

individualmente. A liberdade, para Pico, não é meramente um “dom dado por Deus ao homem, mas a

capacidade de escolher dentre diversas possibilidades. Cada homem, ao decidir seu destino, decidirá

também o que é. Poderá degenerar e se tornar semelhante aos animais ou regenerar-se e torna-se como os

anjos. Afastar-se ou aproximar-se da perfeição, eis as possibilidades que estão diante do ser humano” (cf.

Page 102: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

102

ligada a consequências que o homem colherá de acordo com a decisão que tomará: os

homens são livres para escolher suas opções, porém ao escolhê-los encontrará a sua

essência247

.

Reconhecendo a existência de diversas opções que possibilitam à decisão, o

homem com a sua natureza indefinida, existem para permitir as decisões que o homem

irá tomar. A ontologia moral ligada à decisão que esse ser tomará para si, pois a

composição humana está ligada à vida vegetativa e das feras terrestres, porém a decisão

mais conveniente, como argumenta Pico, está no direcionamento final e maior em

direção a Deus. Certo que a felicidade do homem é evidenciada por Pico em sua

ontologia, na qual o homem pode “em ser aquilo que quer”. Como os animais trazem

consigo tudo aquilo que serão já determinados em sua natureza, ou seja, em sua

atribuição de ser aquele animal, segundo a sua natureza, desde o momento que são

concebidos trazem consigo certa determinação. Ao contrário das bestas, os anjos são

espíritos superiores, que desde a sua criação fazem parte de uma única forma de ser. Ao

homem, ao contrário, foi dada essa natureza indefinida, porém a sua busca pela

divindade deve ser buscada e a qual deve se voltar248

.

Há no homem possibilidades que podem ou não se realizar. Pico revela249

que a

mais elevada de todas é a contemplativa, pois torna o homem uno com Deus e ao ser

imagem de Deus no universo ele se apresenta como microcosmo: intermediação entre o

mundo e Deus. Naquilo que concerne à alma250

, a posição seguida por Pico é a dos

AMARO, Bruno Lacerda. A Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola. Revista Legis

Augustus (Revista Jurídica) Vol.3, n.1, p.16-23, setembro 2010 ISSN: 1516-9367. p.20). 247

Para Bruno Amaro: “ È como se Deus houvesse condenado o homem à escolha, dado a ele a

capacidade de por seu atos livres, torna-se o que deve ser. Percebe-se então, que o homem está acima dos

animais não simplesmente por ser racional, mas porque a razão o impele em direção a algo que nenhum

animal pode conseguir: a determinação do seu próprio ser. È interessante relacionar essa constatação com

outro aspecto da filosofia de Pico o apreço pela magia, vista não como poder sobrenatural, mas como

capacidade de conhecer a natureza, de descobrir seus segredos e transformá-la. O homem não está apenas

“no mundo”; ele também atua “sobre o mundo”, coloca-o a seu serviço” (cf. AMARO, Bruno Lacerda. A

Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola. Revista Legis Augustus (Revista Jurídica) Vol.3,

n.1, p.16-23, setembro 2010 ISSN: 1516-9367. p.21). 248

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.56. 249

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem , p.57. 250

De acordo com Carl Still: “Fiel às suas raízes escolásticas, a explicação de Pico da alma e de seus

poderes compõe a base de sua explicação das funções cognitivas. Além do corpo, o ser humano possui

uma alma que consiste em quatro “partes” a vegetativa, a sensitiva, a racional e a intelectiva. Enquanto a

parte vegetativa possui funções puramente vitais de nutrição e sustento do corpo, os outros três poderes

representam uma ordem ascendente de poder intelectual” (cf. STILL. Carl. N. A Busca de Pico por Todo

o Conhecimento, p.214).

Page 103: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

103

platonistas que defendem a existência de uma “parte intelectual e angelical251

” na alma

humana e acima da alma racional. O propósito de Pico é unir as defesas de Platão252

e as

de Aristóteles253

sobre a alma. Ele diferencia assim os aspectos bestiais (ligados aos

sentidos) e aqueles do homem (ligados à razão), destacando o que é angélico e o que é

intelecto. Para que a razão esteja em comum com o intelecto é preciso que o homem aja

com a capacidade intelectual.

Para Pico della Mirandola, o homem é entre os demais seres do Universo o mais

precioso e se encontra no centro do mundo, ou seja, medium mundis, lugar que Deus

pós o homem como destaca a Oratio254

. Um dos elementos relevante dessa concepção

de Pico, concernente ao homem, se encontra na grandeza que este poderá assumir, em

suas opções, decisões, as quais irão contornar a sua vida, em virtude do fato de ter essa

liberdade de decidir já o torna digno de atenção, devendo assim com a moral e a

dialética, ser possível reconhecer a sua importância in mundi, por ser artífice de si

mesmo.

Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal, a fim de que tu,

arbítrio e soberano artífice de ti mesmo, te plasmaste e te informasses,

na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até

aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até as realidades

superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo255

.

Conforme Pico, Deus precisou que houvesse no mundo um ser capaz de

compreender, entre tantas coisas, o sentido de ser criado, ou seja, compreender qual

251

Cf. STILL. Carl. N. A Busca de Pico por Todo o Conhecimento, p.215. 252

Para Giovanni Reale e Antisieri: “No entanto, é dualista (em certos diálogos, em sentido total e radical)

a concepção platônica das relações entre alma e corpo, porquanto Platão introduz, além da participação da

perspectiva metafísico antropológica, a participação do elemento religioso derivado do Orfismo, que

transforma a distinção entre alma= supra-sensível e corpo = sensível, em oposição. Por essa razão, o

corpo é visto não tanto como receptáculo da alma, à qual deve a vida juntamente com suas capacidades de

operação (e, portanto, como instrumento a serviço da alma, segundo o modo de entender de Sócrates), e

sim, ao contrário, como “tumba” e “cárcere” da alma, isto é, como lugar de expiação da alma” (cf.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga v.1, São Paulo: Paulus,

2003, p.152). 253

Aristóteles afirma: “Retomamos, por este modo e conforme afirmamos, a tese que concebe a alma

como uma espécie de corpo subtil, 409 b 1. Por outro lado, e por outro, seguindo Demócrito, para quem é

o movimento causado pela alma, resvalamos em dificuldades especificas. Admitindo que, com efeito, a

alma reside na totalidade de um corpo dotado de sensibilidade, o mesmo lugar incluírá necessariamente

dois corpos, na instância de se assumir que a alma constitui uma 409 b 5. Espécie de corpo. Quanto

àquelas que sustentam ser a alma um número, deverão eles admitir que num único ponto pode realmente

existir uma pluralidade de pontos ou, então, que a totalidade do corpo possui uma alma, a menos que em

nós não apareça um número diferente, isto é: um número distinto da soma dos pontos existentes no

corpo” (cf. ARISTOTELES. De Anima. Trad. port. Carlos Humberto Gomes. Lísboa: Edições 70, 2001,

pp.42-43). 254

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57. 255

Ibidem.

Page 104: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

104

seria a posição do homem no Cosmo: daí essa especificidade do homem de ser

microcosmo, criado com natureza indefinida e posto no meio do mundo. A natureza

humana carece de uma definição, pois é indeterminação, ou seja, para se determinar o

homem foi posto no meio do mundo, e nessa posição buscar o mais sensato para que

assim haja a definição de sua essência. Para o animal racional, o celeste, se é intelectual

será anjo, ou seja, filho de Deus, se vegetal será planta, unicamente planta, se sensível

será besta sensível ou animal, ao racional será elevado a animal celeste, ao intelectual e

será filho de Deus.

Ao longo da Oratio se destaca a elucidação atribuída por Pico à grandeza da

existência humana, a passagem antropocêntrica256

piquiana em que põe o homem como

centro do mundo, dirigido por Deus Criador e a Criatura. A Oratio, De Hominis

Dignitate contém conhecimento filosófico-teológico, e se serve de demais fontes de

saber a fim de uma compreensão da ação e do destino humano. Para Pico, o

conhecimento do homem de sua natureza é buscar o degrau mais alto que possa atingir

completando a grandeza humana. Ademais, as conquistas humanas têm valor, ou seja,

valor ético e as consequências das suas decisões podem gerar tristeza e infelicidade,

pois para Pico tanto a Ética quanto os valores morais elevam o homem. Para demonstrar

que natureza humana tem seu valor e existência inestimável alcança um degrau

privilegiado in mundi, pois na demonstração dos demais seres existentes no mundo o

homem é o mais valioso, sendo assim medium mundis.

Para o seu empreendimento, Pico buscou conhecimento tanto em Aristóteles

quanto em Platão257

, com a preocupação de apresentar “um só conhecimento”, pois

ambos os filósofos gregos estavam certos, Porticum at Academiam, (seja Pórtico ou a

256

De acordo com Bruno Amaro: “Nesta passagem decisiva, aparece com força o antropocentrismo do

autor. O homem está no “meio do mundo” não em um sentido físico ou topográfico, mas em um sentido

ontológico: ao homem são abertas possibilidades diversas para sua própria realização. Quem está “no

meio”, afinal, tem mais facilidade para tomar qualquer direção. A existência humana não foi limitada por

Deus a um destino único ou a uma só vontade. O homem está no meio para que ele possa escolher a sua

direção, o seu caminho próprio, para que ele se torne o que quiser ser. Note-se que a palavra

“antropocentrismo”, aplicada ao pensamento de Pico della Mirandola, não significa que o homem esteja

livre de Deus. Tampouco que Deus não exista, ou ainda que não se interesse pelo que é o humano. O

homem é, e será sempre, criatura de Deus, e é pelo seu desejo que ocupa o lugar central no mundo. O

“antropocentrismo”, aplicada ao pensamento de Pico não exclui Deus, pelo contrário: como foi Deus

quem deu ao homem o seu lugar central, a realização humana de seu próprio destino é fruto da graça

divina. O homem não é um ser que Deus abandonou à própria sorte, mas uma criatura que Ele

emancipou” (cf. AMARO, Bruno Lacerda. A Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola,

p.20). 257

Cf. MIRANDOLA, Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.92.

Page 105: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

105

Academia) 258

examinando a fundo todas essas doutrinas259

, não obstante as diferenças

entre as escolas. A defesa de Pico na Oratio se apresenta como forma de observação

dos saberes e do que representam essas fontes de pensamento. Pico também se reportou

ao pensamento árabe e as suas peculiaridades260

, citando Averróis, Avenpace,

Alfarabi261

entre outros e demonstrando o que há cada um de verdadeiro. Elou observa a

identificação certa relação dos textos da falsafa262

com aqueles herméticos, platônicos e,

igualmente aqueles que constituem a prisca sabedoria, indicando, igualmente, o seu

vínculo tanto no hermetismo quanto na qabbalah judaica.

Em fontes como a Qabbalah a falsafa263

, mas também grega, latina e islâmica, o

Alcorão264

, Pico não só pensou as Conclusiones, mas ainda o tema fundamental da

Oratio. Daí a presença de inúmeras alusões a pensadores de várias orientações e

culturas diversas fazia importantes na busca de demonstrar o conhecimento presente nos

258

Segundo Maria de Maria de Lourdes Sirgado: Pode-se aqui sustentar que o Pórtico e a Academia

correspondem, respectivamente, à escola fundada por Platão. Ambos os nomes derivam da localização

das escolas: nos estóicos, sob o pórtico ornado com as pinturas de Polignoto; em Platão, no ginásio dos

jardins do herói Academos (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN:

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93). 259

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93. 260

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93. 261

De acordo com Jamil Ibrahim: “Com AL-Fãrãbi, o pensamento peripatético já neoplatonizado

recebido no mundo islâmico foi bastante ampliado e melhor sistematizado; o próprio neoplatonismo

islâmico foi fundado por este filósofo. Como poderá ser constatado nos textos aqui traduzidos, a filosofia

de al-Fãrãbî tem como objetivo principal a política” (cf. ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Compreender al-

Fãrãbî e Avicena. Petropólis, RJ: Vozes, 2011, p.18). 262

Para Miguel Attie: “Entre os séculos VIII e XIId.C /II e VI H., a filosofia começou a falar em árabe.

Nas terras dominadas pelo Islãm, a falsafa foi a continuadora da filosofia antiga. Por esta razão, em

sentido estrito, é somente com o termo falsafa que se pode referir à ocorrência da filosofia entre os

árabes” (cf. ATTIE Filho, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida São Paulo:

Palas Athena, 2002, p.45). 263

De acordo com Miguel Attie:“A Falsafa foi responsável não só pela imersão do pensamento da

filosofia grega entre os árabes mas também pela transmissão da filosofia grega ao Ocidente. Na medida

em que o paradigma grego foi um dos responsáveis pela construção filosófica do Ocidente, não é difícil

imaginar que a falsafa ocupe um lugar histórico muito peculiar. Sobre o meridiano da filosofia oriental e

ocidental, a meio caminho da contemplação de dois ou mais caminhos, a falsafa contribuiu sobremaneira

para inúmeras transformações da filosofia do Oriente e do Ocidente” (cf. ATTIE Filho, Miguel. Falsafa:

a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida São Paulo: Palas Athena, 2002, p.33). 264

Tudo isso faz do Alcorão um Livro, cuja semelhança, mortal algum pode produzir, e tudo que a

história do islã e das crenças nos transmitiram atesta isso. O próprio Profeta expunha o Alcorão aos

árabes e lhes pedia para que apresentassem algo semelhante, nem que fosse à menor surata dele. E a

História do Islã ou das crenças não nos transmitiram informação alguma sobre alguém que conseguisse tal

efeito. Dentre os que escreveram ao Alcorão durante os séculos IV e V da Hégira, podemos citar:

Albaclani, com seu livro “O Milagre do Alcorão”, o Imame Abdel Cábdel Cáher Ajjarani, com seu livro

“As provas do Milagre (do Alcorão”), e também o Imame Azzâmkhcheri. Devemos presumir, então, que

isso é uma evidente prova de que o Alcorão não foi uma invenção humana, mas é uma revelação de Deus,

Altíssimo, transmitida por intermédio do anjo Gabriel a Maomé, pois este era iletrado e não podia por

conseguinte produzir um livro que abrangesse verdades históricas e cientificas, que criasse uma base e

uma lei religiosa, um esquema a uma vida política e social, e que, possuísse uma eloqüência ímpar (cf.

ALCORÃO. Alcorão Sagrado, Trad. br. Samir el Hayek. São Paulo: Tangará, 1975, p.XV).

Page 106: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

106

estudos realizados das fontes, a fim de um esclarecimento e o conhecimento do destino

humano. Conforme Pico escreve:

Para falar de poucos, com Porfírio deleitar-nos-emos com abundancia

de temas e com a religião complexa, em Jâmblico veneremos a

filosofia oculta e os mistérios bárbaros, em Plotino não há nada que

não se possa admirar, porque em tudo ele se mostra admirável, porque

fala divinamente das coisas divinas, porque quando fala das coisas

humanas coloca-se muito acima do humano com a sapiente subtileza

do discurso, de tal modo que, com algum trabalho, só o entendam os

próprios Platônicos265

.

Tais fontes constituem também na Oratio um pressuposto relevante da sua

reflexão sobre o homem e a sua natureza. Daí a ideia piquiana de liberdade corresponde

à máxima dos seres humanos não terem um principio determinante: algo distinto em

relação aos demais seres266

. Por isso, o homem não possuí um principio determinante,

para então escolher entre as naturezas que existem na criação. A liberdade postulada por

Pico é, porém, uma liberdade com a responsabilidade, pois o homem será o grande

responsável por aquilo que ele mesmo escolher. Trata-se de um dom que o homem

recebeu de Deus, pois a sua dignidade consiste em se servir dessa liberdade. Por

conseguinte, o homem poderá desejar vidas como vegetativas, sensíveis, racionais,

angelicais ou mesmo divinas.

No que concerne à dignidade do homem, esta é a unidade do homem que é imago

Dei, que é microcosmo, refletido em escala menor: algo que torna a reflexão de Pico

della Mirandola diferente dos demais renascentistas, pois a visão da dignidade humana é

possível com a presença da autodeterminação, a razão e a inteligência humana, pois

possuem alcance ético e poiético. Ademais, ele celebrava na Oratio a liberdade-

responsabilidade humana para justificar, igualmente, a sua retratação em relação à

disputa. Portanto, apenas interpretando a dignitas hominis da Oratio como

autocriatividade absoluta poder-se-ia falar de palinódia no pensamento piquiano. Não se

pode descurar também que na Oratio está presente um convite à purificação do espírito

com as disciplinas morais.

A liberdade está no ser humano não possuir uma determinação em sua natureza,

pois oriunda de sua criação, mas também nas decisões tomadas pelo homem em sua

265

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95. 266

Cf. DOUGHERTY. Três Precursores do debate romano de Pico della Mirandola e a questão da

Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.161.

Page 107: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

107

vida: algo que se confirma com a responsabilidade de um valor tanto ético quanto moral

observado pelo homem. As outras criaturas ou naturezas estão na própria origem

determinadas ad unum nas suas disposições, mas a natureza do homem não tem um

princípio determinado, pois se exclui a todo determinismo das leis naturais, ou seja,

físicas. Pico demonstrou essa responsabilidade valendo-se de fontes de conhecimento

sobre a criação do homem, pois vários foram os exemplos extraídos da tradição: gregos

e árabes, mas também aqueles pertencentes à doutrina hebraica e ao conhecimento da

teologia escolástica para sustentar o que cada uma dessas postulou a respeito da criação.

Em algumas passagens da Oratio, é apresentado por Pico essas demonstrações de

fontes que elevam o homem na criação divina, como também defende essa criação vista

aos olhos de quem tiver dúvida em relação a sua posição. Ao conceber a natureza

humana como possuidora de natureza indeterminada, ele defende a responsabilidade no

homem de ter vindo ao mundo, não para permanecer em um estado espiritual menos

elevado, pois deve aspirar às coisas mais elevadas. Para tanto o caminho será sempre o

bem, o justo e o ético, ao qual o homem deverá se voltar. Isto justifica igualmente a

necessidade de se iniciar, quer no conhecimento dos mistérios presentes nas doutrinas

sapienciais quer em seguir certo itinerário de ascensão, a fim de se purificar a alma e se

elevar com o dom da inteligência ao universo das coisas divinas.

3.6 A ascensão sapiencial e a paz universal: filosofia natural, dialética e teologia

Para Pico della Mirandola, a ciência constitui, conforme expõe na Oratio, o

atributo fundamental dos Querubins. Em vez de adotar uma correspondência estática

entre elementos terrenos e elementos celestes, Pico insiste no aspecto dinâmico, ou seja,

no processo de purificação, iluminação e perfeição. Tal modelo é celeste, mas é de

forma análoga reproduzido na vida terrena, ao se tratar de operações imanentes a todo

nível da atividade espiritual. Nesse sentido esses três estados correspondem a três

momentos de certo curriculum ideal de iniciação. Conforme Pico escreve:

Também nós, portanto, emulando na terra a vida querubínica,

refreando o ímpeto das paixões com a ciência moral, dissipando a

treva da razão com a dialética, purifiquemos a alma limpando-a das

sujeiras da ignorância e do vício para que os afetos não se

desencadeiem cegamente nem a razão imprudente alguma vezes

delire. Na alma, portanto, assim recomposta e purificada, difundamos

Page 108: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

108

a luz da filosofia natural, levando-a em seguida à perfeição final

mediante o conhecimento das coisas divinas267

.

Por conseguinte, segundo a exposição da Oratio, a purificação corresponde, quer

à ciência moral quer à ciência dialética, já a iluminação corresponde à filosofia natural e

a perfeição ao conhecimento das coisas divinas, ou seja, à Teologia. Por ser uma parte

muito importante no discurso da Oratio, a alma humana, segundo apresenta o autor, a

sua orientação é a purificação dela: algo relevante para a perfeição final que se dá com

base no conhecimento das coisas divinas. Pico afirma na Oratio: “Na alma, portanto,

assim recomposta e purificada, difundamos a luz da filosofia natural, levando-a em

seguida à perfeição final mediante o conhecimento das coisas divinas” 268

. Nesse

processo de iniciação, Pico defende o seu intento filosófico, explicitando a dignitas

desse empreendimento intelectual e sua dimensão ética. Daí não se contentar apenas

com Paulo e Diógenes e se reportar a outras fontes e autoridades, indicando, igualmente,

aquelas do antigo pacto:

E para não nos restringirmos aos nossos Padres, consultemos o

patriarca Jacob, cuja figura resplandece esculpida em sede de glória. O

sapientíssimo patriarca ensinar-nos-á que, se dormia no mundo

terreno, velava no reino dos céus. Mas ensinar-nos-á mediante um

símbolo (tudo assim se lhes apresentava) que existem escadas da terra

até ao cume dos céus, distintas numa longa série de degraus, no alto

dos quais está sentado o Senhor, enquanto os anjos contemplantes por

elas sobem e descem, a mesma coisa, imitando a vida dos anjos,

pergunto, quem ousará tocar as escadas do Senhor ou com pé impuro

ou com mãos por lavar? Ao impuro, o segundo os mistérios, é-lhe

vedado tocar aquilo que é puro269

.

A abordagem que Pico aqui desenvolve, o leva desde as Escrituras hebraicas aos

“mistérios gregos” e, igualmente, aos “monumentos dos caldeus”. Daí destacar que a

alma terá de limpar-se das coisas ruins que traz consigo, como a ignorância, como os

momentos também em que estejam os homens sob o delírio. A alma deve se purificar

das sujidades, pois deve estar recomposta e purificada270

para alcançar o conhecimento

das coisas divinas. Ao indicar o Patriarca Jacob271

, sintetiza o processo em que a alma

humana terá que trilhar para se purificar. Nesse sentido, ele escreve:

267

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.65. 268

Ibidem, pp. 65-67. 269

Ibidem, p. 65. 270

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.65. 271

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.65.

Page 109: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

109

Mas que pés? Que mãos? Sem dúvida, pé da alma é a parte vilíssima

com a qual se apoia à matéria e ao solo; o poder que alimenta, fonte de

lascívia, mestra de sensual brandura. E a mão da alma porque não

chamar à irascível que, serva dos apetites, por eles se bate e se lança

como um predador sob o pó e o sol, que os devora sofregamente

repousando à sombra? Estas mãos, estes pés, isto é, toda a parte

sensível onde estão sediadas as seduções corpóreas que, como se diz,

têm subjugada a alma, lavemo-los com a filosofia moral, como um

vivo rio, para não sermos expulsos daquelas escadas como profanos e

imundos272

.

Trata-se do famoso sonho do Patriarca, cujo nome está associado à visão de

Deus, já presente em Filon e Origenes, e sem descurar também a associação da subida

platônica da alma no Fedro e a scala amoris no Simpósio. Daí o itinerário de iniciação

ser concebido como uma “escada” com os seus degraus e o primeiro degrau a

purificação das mãos e dos pés com a filosofia moral.

Para Pico, a alma humana retrata essa esfera importante da qual o homem deve

voltar-se, observando que, através dela, “se apoia a matéria e ao solo, o poder que

alimenta, fonte de lascívia mestra de sensual brandura” 273

e a filosofia moral274

é a

desbravadora desse composto ao qual deve voltar-se o homem. Contudo, como ele

completa, a alma deve ser lavada com a filosofia moral.

Mas nem isto será suficiente, se queremos ser companheiros dos anjos

que percorrem a escada de Jacob, se primeiro não tivermos sido bem

habilitados e instruídos a mover-nos com ordem em degrau, sem

nunca sairmos da rampa da escada, sem estorvar a um ou a outro o

caminho. Quando tivermos conseguido isto com a parte discursiva ou

raciocinante, animados então por um espírito querubínico filosofando

ao longo dos degraus da escada, isto é, da natureza, e tudo

perscrutando do centro e para o centro, ora desceremos dilacerando

coma força titânica o um nos muitos, como Osíris, ora, recolhendo

com a força apolínea os muitos no um, como os membros de Osíris,

elevar-nos-emos até que por fim no meio do seio do Pai, que está no

vértice da escada, repousaremos na felicidade teológica275

.

Pico introduz a figura do anjo, ao se reportar à ligação do “justo Job” com

Deus276

e a ideia de uma felicidade superior,

272

Ibidem, p. 67. 273

Cf. MIRANDOLA, Pico. della Discurso sobre a dignidade do homem, p.67. 274

A filosofia moral tem a capacidade de nos libertar de apegos e desejos terrenos. A dialética faz com

que não sejamos dominados por raciocínios falaciosos (cf. SUDDUTH. Michael. A Filosofia da Religião

de Pico della Mirandola. IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.80). 275

MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.67. 276

Cf. MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.69.

Page 110: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

110

[...] pois antes de ter sido gerado para a vida fez um pacto com o Deus

da vida, que é sumo Deus, deseja sobretudo, daqueles milhões de

anjos que estão na sua presença; ele responderá, certamente: a paz,

conforme nele se lê, „Aquele que faz a paz nos céus‟. E porque a

ordem mediana é, para a inferior, interprete dos preceitos da ordem

superior, que as palavras do teólogo Job sejam para nós ilustrados pelo

filósofo Empédocles. Este, como atestam os seus poemas, simboliza

com ódio e com o amor, isto é, com a guerra e com a paz, as duas

naturezas da nossa alma, a partir das quais somos levados ao céu ou

precipitado nos infernos. E ele, naquela luta e discórdia, transtornando

como se fosse um louco, lamenta-se por ter sido arrastado para o

abismo, para longe dos deuses277

.

A referência a Job assegura que Deus, da legião infinita dos anjos, não deseja

outra coisa que a paz, por isso se afirma que Ele mantém a paz nas alturas. Sobre a

Terra não há paz, mas guerra, pois reina a discórdia uma vez que pertence à natureza

das coisas, conforme Heráclito, Homero, Empédocles. Ademais, a existência de

múltiplas discórdias, por causa da presença, como atesta Pico, de

lutas intestinas graves e piores do que guerras civis, que só a filosofia

moral poderá acalmar, se lhes quisermos fugir e se quisermos obter a

paz que nos conduza ao alto, de modo a colocar-nos entre os eleitos do

Senhor 278

.

Em seguida, Pico introduz a questão de se pensar uma perpetuae pax e, ao mesmo

tempo, como poder consegui-la. Se antes o homem, que há em cada um, pedir trégua

aos seus inimigos ocorrerá de travar

[...] os descompostos tumultos do animal multiforme e o ímpeto, o

furor e o assalto do leão. Depois, mais solícitos relativamente ao nosso

bem, se [se desejar] a segurança de uma paz perpétua, esta virá e

coroará abundantemente os nossos votos, e morto um e outro animal,

como vítimas imoladas, instituir-se-á um pacto de santíssima paz entre

a carne e o espírito279

.

Para esse empreendimento, Pico reconhece a relevância da dialética a fim de

sanar as várias discórdias: exigência primordial diante de certos infortúnios da razão.

Daí Pico apresentar o segundo degrau, ou seja, aquele correspondente à dialética:

A dialética acalmará a razão tumultuosamente mortificada entre os

contrastes das palavras e dos silogismos capciosos. A filosofia natural

acalmará os conflitos da opinião e os dissídios que atormentam,

dividem e dilaceram de modos diversos a alma inquieta. Mas acalma-

lo-á de modo a recordar-nos que a natureza, como disse Heráclito, é

277

Ibidem. 278

Ibidem. 279

Ibidem.

Page 111: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

111

gerada pela guerra, e por isso, chamada por Homero luta. Nesta, no

entanto, não podemos encontrar uma verdadeira calma e paz estável,

dom privilégio da sua senhora, isto é, a santíssima teologia. Esta

mostrará o caminho e servir-nos-á de guia; esta, vendo-nos

apressados, de longe gritará: Vinde a mim, vós que viveis

laboriosamente, vinde e eu vos reconfortarei, vinde e dar-nos-ei a paz

que o mundo e a natureza não vos podem dar280

.

Sobre o alcance dessa paz e seu convite benigno, Pico acrescenta, em seguida,

após a persuasão da dialética:

[...] com pés alados como Mercúrios, [gozar-se-á] a paz desejada, a

santíssima paz, a indissolúvel união a amizade concorde pela qual

todas as almas não só se acordam numa única Mente que está acima

de cada mente, mas também de uma maneira inefável se fundem num

só. Esta é a amizade que os Pitagóricos dizem ser o fim de toda a

filosofia, esta é a paz que Deus põe em acto nos seus céus, que os

anjos descendo à terra anunciaram aos homens de boa vontade, a fim

de que mediante esta também os homens, subindo ao céu, se

tornassem anjos281

.

Conforme Pico, é esta paz que é desejada aos amigos e para o seu tempo. Daí

buscar invocá-la em cada casa e para cada alma a fim de que se tornasse “morada de

Deus”. Para tanto é preciso esse itinerário e galgar os degraus, após rejeitadas

as impurezas com a moral e a dialética, se adorne da mais vasta

filosofia como se fosse um ornamento real, que coroe o frontão das

portas com a grinalda da teologia, de tal modo que desça sobre ela o

Rei da glória e, vindo com o Pai, estabeleça nela a sua morada282

.

Trata-se, portanto, do último degrau, ou seja, aquele concernente à paz teológica,

pois evoca ainda a ideia de uma felicidade superior. Ao se reportar à Teologia, Pico se

dirige a outra autoridade, ainda no sentido de itinerário a ser seguido e simbolização de

iniciação. Ele se reporta ao Templo hebraico, isto é, à tradição sacerdotal, após haver

adotado um testemunho profético, a visão de Jacob, e um testemunho sapiencial, a

meditação de Job. É preciso ouvir o que ensina Moisés, o “venerando juiz” que dita às

leis àqueles que vivem na “deserta solidão do corpo”. Conforme Pico sustenta:

[...] os que ainda impuros, têm necessidade moral, fiquem com o

vulgo fora do tabernáculo, sob o céu descoberto, como os sacerdotes

da Tessália, até estarem purificados. Os que já atingiram uma vida

recta, acolhidos no santuário, não se aproximem ainda das coisas

sacras, mas prestem-lhes primeiro serviço com um noviciado

280

Ibidem, pp.69-71. 281

Ibidem, p.71. 282

Ibidem.

Page 112: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

112

dialéctico, como zelosos levitas da filosofia. Por fim [...] contemplem

agora, no sacerdócio da filosofia, ora a multicolor, quer dizer, o

sidério ornamento do palácio de Deus, ora o candelabro das sete

chamas, ora os elementos de pele, até que, acolhidos finalmente no

tabernáculo do templo, por mérito da sublimidade teológica,

usufruam, retirado totalmente o véu da imagem, da glória de Deus.

Isto, sem dúvida, [...] aconselha Moisés e ordenando aconselha [...],

incita [...], exorta [...] a preparar [se], enquanto [se puder], a via para a

futura glória dos céus, por meio da filosofia 283

.

3.7 Iniciação e mistérios sapienciais na Oratio: fontes da prisca theologia e a defesa

da Filosofia

Pico dá continuidade à sua reflexão sobre a iniciação em certos mistérios das

coisas divinas. Daí acrescentar ainda, ao lado dos “mistérios” cristãos e moisaicos, Pico

os arcana grecorum e os “mistérios” helênicos. Ele principia com os “mistérios

eleusinos”, os quais culminam na visão das coisas divinas. Ademais, está aqui em

questão certa concepção, elaborada por Ficino em seu trabalho, igualmente, de tradução

e valorização dos antigos mistérios e da primitiva teologia, que Pico expõe na Oratio

com base em um excurso nas várias fontes, orientações sapienciais e mistérios os mais

diversos, ou seja, a prisca theologia. Segundo Pico escreve:

[...] não só os mistérios moisaicos ou os cristãos, mas também a

teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais

[...], que estou a discutir. Que outra coisa, de facto, querem significar

nos mistérios gregos os graus habituais dos iniciados, admitidos no

mistério através de uma purificação obtida com a moral e com a

dialéctica, artes que já dissemos serem quase purificatórias? E aquela

iniciação que outra coisa pode ser senão a interpretação da mais oculta

natureza mediante a filosofia? Finalmente, quando estavam

preparados, sobrevinha aquela isto é, a visão das coisas

divinas através da luz da teologia284

.

Para os peregrinos na terra que desejassem ser iniciado em tais mistérios, Pico

sabe o quanto desprezariam todos os bens terrenos, os da fortuna, e esqueceriam,

igualmente, o corpo, a fim de alcançar “o dom da eternidade” 285

. Daí Pico indagar:

“Quem não quererá ser inspirado pelo furor socrático, exaltado por Platão no Fedro,

arrebatado em célere voo para Jerusalém Celeste, fugindo rapidamente com bater de

283

Ibidem, p.73. 284

Ibidem. 285

CF. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 75.

Page 113: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

113

asas daqui, isto é, do mundo, reino do demônio?” 286

. Ser arrebatado pelos furores

socráticos e trazido para fora da mente, a tal ponto de se pôr a mente em Deus. Para

tanto é preciso que antes seja realizado tudo quanto está no homem:

Se, de facto, com a moral forem refreados, dentro dos justos limites,

os ímpetos das paixões [...], de tal modo que se harmonizem

reciprocamente com estável acordo, se a razão proceder

ordenadamente mediante a dialéctica, [inebriará], invocados pelas

Musas, com a harmonia celeste287

.

Portanto, Pico conhece a genealogia da sabedoria, pois já Ficino havia

estabelecido a genealogia da teologia antiga, falando, igualmente, da eterna sabedoria

que estabeleceu os mistérios divinos. O itinerário de Pico é também filosófico-religioso

com as suas fases e efetivações. Nesse sentido, os termos “teologia” e “mistérios” são

adotados de forma ampla para designar tradições religiosas, quer bíblica quer pré ou

extrabíblica. Desse modo contribuem para destacar as analogias entre as fases e as

metas, relativas às diversas tradições, pois os mistérios apresentados não são apenas

pagãos e a teologia não é apenas cristã.

Se a Teologia indica, de um lado, o momento final ou ainda o patrimônio mais

alto de conhecimento nas várias tradições sapienciais, nos mistérios e doutrinas, ela

sugere, de outro, a ideia de um itinerário relativo à iniciação, quer na sua complexidade

quer na sua dinâmica. Na exposição que segue, Pico se reporta à imagem de Sócrates, e

a do furor, ou manía, conforme o Fedro, conduzindo, por meio da reconstrução moral,

ou seja, a harmonia, as Musas, ao conhecimento da natureza, aqui a referência a

Dionísio, mas também à Carta aos romanos, isto é, conhecer o visível através do

invisível, os segredos de Deus, podendo-se assim inebriar-se com “a abundância da casa

divina” 288

. Contudo só será possível com a fidelidade de Moisés, em que a santíssima

teologia poderá animar com um duplo furor. Daí, após certa sublimação no

Excelso observatório, referindo à medida do eterno as coisas que são,

que serão e que foram, observando nelas a beleza original, seremos,

com vates apolíneos, os amadores alados até que num inefável amor,

como invadidos por um estro, postos fora de nós e cheios de Deus

como Serafins ardentes, já não seremos mais nós próprios, mas

Aquele mesmo que nos fez289

.

286

Ibidem. 287

Ibidem. 288

Ibidem. 289

Ibidem.

Page 114: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

114

Pico continua a sua exposição evocando Apolo, filósofo e profeta, sugerindo

assim certa recordação do oráculo de Delfos. Desse modo, ele sugere ainda o ritmo

ternário do processo de iniciação, o qual designa de “tríplice filosofia” 290

, algo que

revela, igualmente, a sua preocupação moral. Ele escreve na Oratio:

Os sagrados nomes de Apolo, se alguém perscrutar a fundo o

significado e os mistérios encobertos, demonstram suficientemente ser

aquele Deus não menos filósofo do que vates. Mas tendo já Amónio

ilustrado isto copiosamente, não há motivo para que eu trate disso de

uma outra maneira. Recordemo-nos todavia, ó Padres, dos três

preceitos délficos, indispensáveis aos que estão para entrar no

sacrossanto e augustíssimo templo, não do falso mas do verdadeiro

Apolo, que ilumina toda a alma que vem a este mundo; vereis que

nada mais reclamar de nós senão que abracemos com todas as forças a

tríplice filosofia acerca da qual agora se disputa. De facto, o

αα, isto é, nada em excesso, prescreve rectamente a norma e

a regra de cada virtude segundo o critério do justo meio, de que trata a

moral. E o famoso υτ, isto é, conhece-te a ti mesmo, incita

e exorta ao conhecimento da natureza na sua totalidade, de que o

homem é vínculo e quase síntese. Quem, de facto, se conhece a si

mesmo tudo em si conhece, como escreveram primeiro Zoroastro e

depois Platão no Alcibíades. Finalmente, iluminados por tal

conhecimento mediante a filosofia natural, próximos agora de Deus e

pronunciando El, isto é, tu és, teológica saudação, chamaremos o

verdadeiro Apolo co alegre familiaridade291

.

Ainda nessa mesma sequência de autoridades pertencentes à tradição grega, Pico

se reporta a Pitágoras, tendo como preocupação certa tríade: purificação moral (cortar as

unhas durante o sacrifício); contemplação natural (olhar o sol); conhecimento divino

(alimentar o galo) 292

. Além dessas autoridades, Pico se reporta, em seguida, aos

testemunhos dos Caldeus. Tais testemunhos revelam

[...] as mesmas artes que abrem aos mortais o caminho para a

felicidade. Escrevem os intérpretes caldaicos que Zoroastro havia dito

ser a alma alada e que, quando lhe caem as asas, se precipita no corpo

e volta a voar para o céu quando lhe tornam a crescer. Tendo-lhe os

discípulos perguntado de que modo poderiam tornar a alma alada apta

para o voo com asas bem plumadas, „regai as asas, disse, com água da

vida‟. E perguntando-lhe ainda estes como poderiam obter tais águas,

respondeu-lhes, segundo o seu costume, com uma parábola: „O

paraíso de Deus é banhado e irrigado por quatro rios: a partir daí

podereis atingir as águas salutares. O nome daquele que corre de

sententrião é Pischon, que significa justiça; o que vem do acaso

290

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.77. 291

Ibidem. 292

A imagem do “galo” recorda para Pico que Job o associa à inteligência, sem deixar de se considerar

aqui outras associações, a saber: ao evento do apóstolo Pedro, o galo de que fala Sócrates (Esculápio) e

outras imagens da ordem cotidiana.

Page 115: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

115

chama-se Dichon, isto é, expiação; o que vem do oriente é Chiddekel

e significa luz; por fim, aquele que corre do sul chama-se Perath e

podemos interpretar como fé‟293

.

Para Pico della Mirandola, esses dogmas de Zoroastro nada mais significam que

se dever “purificar a viscosidade dos olhos com a ciência moral”; dirigir-se

“atentamente o olhar com a dialéctica”; “habituar a suportar na contemplação da

natureza a ainda fraca luz da verdade”; e, finalmente, “com a meditação teológica e o

santíssimo culto de Deus” poder-se aguentar, de forma vigorosa, “o fulgurante sol do

meio-dia” 294

. Em seguida, Pico argumenta, tendo como base a sua tentativa de

conciliação das doutrinas e orientações filosóficas diversas, sustentando que talvez

sejam:

[...] esses conhecimentos matutinos, meridianos e vespertinos,

cantados por David e em seguida explicados amplamente por

Agostinho. Esta é a luz resplandecente que inflama os Serafins e do

mesmo modo ilumina os Querubins. Esta é a região para a qual tendia

sempre o antigo pai Abraão. É este o lugar onde, segundo o ensino dos

Cabalistas e dos Árabes, não há lugar para os espíritos impuros295

.

Ainda sobre esses “secretos mistérios” sob o véu do enigma, em virtude da

vertigem da mente do homem após a sua queda, Pico escreve:

[...] segundo as palavras de Jeremias, de facto, foram abertas as

janelas à morte, a qual atingiu o coração e o fígado, invoquemos

Rafael, médico celeste, para que nos liberte com a moral e a

dialéctica, fármacos salutares. Habitará então em nós, já outra vez de

boa saúde, Gabriel, força de Deus, levando-nos através das maravilhas

da natureza e mostrando-nos por todo o lado a virtude e o poder de

Deus, apresentar-nos-á finalmente a Miguel sumo sacerdote, o qual,

após termos prestado serviço nas milícias da filosofia, nos coroará,

como se tratasse de uma coroa de pedras preciosas, com o sacerdócio

da Teologia 296

.

Na sua exposição, Pico revela o teor, quer contemplativo quer perscrutador de

sua filosofia, mas, igualmente, certa oposição ao modo como alguns filósofos do seu

tempo concebiam a prática filosófica. Ademais, foi à busca de conhecimento desses

mistérios supremos que lhe impeliram, conforme a Oratio, ao estudo da Filosofia.

Trata-se, também, de uma resposta aos que têm o hábito de condenar o estudo da

Filosofia, em particular, naqueles que gozam em geral de uma posição privilegiada:

293

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.79. 294

Ibidem, p. 81. 295

Ibidem. 296

Ibidem.

Page 116: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

116

condenação que provoca mais desprezo e vitupério que honra e glória. Pico rechaça tal

convicção em virtude de ela limitar a pouquíssimos, a disposição do filosofar: “como se

o investigar as causas das coisas, os processos da natureza, a razão do universo, os

conselhos de Deus, os mistérios do céu e da terra não valesse de nada, a menos que daí

se consiga retirar algo de útil ou de lucrativo”297

. Revela-se assim o seu

descontentamento ante o presente, pois se considerava sábio

[...] senão os que transformam o estudo da sabedoria em fonte de

lucro, de tal modo que se pode ver a casta Palas, enviada para o meio

dos homens por dom divino, expulsa, ridicularizada e vilipendiada.

Não há quem a ame, quem a siga, senão com condição de se prostituir

e de tirar lucro da sua violada virgindade e, recebido o dinheiro, deitar

esse mal obtido dinheiro no cofre do amante298

.

Pico é contundente na sua resposta aos filósofos de seu tempo, que tornam a

sabedoria fonte de lucro. Ele revela a sua indignação contra tais filósofos,

[...] os quais acreditam e dizem que não se deve filosofar porque não

se estabeleceram prêmios e recompensas para os filósofos; como se

não mostrassem precisamente com esta afirmação não serem filósofos.

Toda a vida destes, efectivamente, ao assentar no lucro ou na ambição,

mostra que eles não abraçam por si mesmo o conhecimento da

verdade 299

.

Pico sustenta ter sempre filosofado “pelo amor da pura filosofia” 300

, e nunca ter

esperado ou procurado com os seus estudos e suas meditações a não ser a formação de

sua alma e o conhecimento da verdade: algo sempre ansiado por ele acima de qualquer

coisa. Portanto, como amante do saber, Pico della Mirandola abandonara toda e

qualquer preocupação com negócios privados e públicos, dedicando-se apenas “à paz da

meditação” 301

. Nesse sentido, a Filosofia lhe ensinara “a depender mais das [sua]

297

Ibidem, p.83. 298

Ibidem. 299

Pico diz, sem qualquer falsa reseva, ter sempre filosofado por amor da pura filosofia, não esperando

nunca obter “alguma mercê ou algum fruto a não ser a formação da [sua] alma e o conhecimento da

verdade, por [ele] ansiada acima de qualquer outra coisa. Da qual [foi] sempre um amante tão apaixonado

que, abandonada toda e qualquer preocupação relativamente aos negócios privados e públicos, [se

dedicou] completamente à paz da meditação; disto calúnias de invejosos nem a maldade dos inimigos do

saber [lhe] puderam até aqui desviar e nunca o [poderão]. Foi a filosofia que [lhe] ensinou a depender

mais da [sua] consciência do que dos juízos dos outros; a estar sempre atento, não ao mal que [dele] se

diz, mas a não dizer ou fazer [ele] próprio o mal” (cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a

dignidade do homem, pp. 83-85). 300

Ibidem, p. 83. 301

Ibidem, p.85.

Page 117: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

117

consciência do que dos juízos dos outros; e estar sempre atento, não ao mal que dele se

diz, mas a não dizer ou a não fazer [ele] próprio o mal” 302

.

3.8 Pico ante as objeções contra a disputa romana: tradição e conciliação entre

doutrinas na sua justificativa filosófica

Com a ida a Roma, e a publicação das suas Conclusiones Pico sofreu um

período de muitas críticas que afetavam não apenas a sua vocação filosófica e

contemplativa, mas, sobretudo, o seu ceder à sabedoria mundana em virtude do gosto

pela disputa. Isto explica as várias divergências em relação ao empreendimento romano

de Pico della Mirandola, pois muitos condenaram a iniciativa. Daí ele sustentar:

“Alguns há que desaprovam este gênero de discussão e esta [sua] iniciativa de debater

em público questões doutrinais, afirmando que tudo isto tem mais como intenção

mostrar engenho e erudição do que obter um melhor conhecimento” 303

. “Já outros

mesmo aprovando esse tipo de estudo, desaprovavam no caso específico de Pico della

Mirandola, em virtude de sua pouca idade, como atesta Pico, apenas vinte e quatro

anos” e, ao mesmo tempo, a ousadia de propor “uma discussão acerca dos mistérios

mais altos da religião cristã, acerca das questões mais profundas da filosofia, acerca de

doutrinas desconhecidas, numa cidade famosíssima, numa vastíssima assembleia de

homens doutíssimos frente ao senado Apostólico” 304

.

Ademais, muitos, mesmo admitindo a disputa, recusavam, porém, o fato das

novecentas teses, identificando a sua elaboração como soberba ou ambição, ou seja,

como algo acima da capacidade de seu autor. Pico recusa a opinião de que a sua

iniciativa fosse apenas a de altercar e polemizar, distanciando assim qualquer intenção

de provocação ou litígio: afinal não era o seu propósito. Ele se confronta ainda com

aqueles que criticam a discussão em público: tarefa de grande louvor e glória. Daí

justificá-la se reportando a Platão, Aristóteles e a todos os filósofos de todos os tempos,

pois

[...] nada lhes era mais favorável para a obtenção da verdade que

procuravam do que o exercício contínuo e frequente da discussão. De

facto, do mesmo modo que as forças do corpo se robustecem com a

302

Ibidem. 303

Ibidem, p.85. 304

Ibidem.

Page 118: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

118

ginástica, assim também, sem dúvida, nesta espécie de palestra do

espírito, a energia da alma se torna mais forte e firme305

.

Com o propósito de justificar o seu argumento acerca da relevância desse gênero

de lutas para se obter a sapiência, Pico della Mirandola se reporta aos poetas, com “as

famosas armas de Palas”, aos Hebreus e o ferro símbolo como “símbolo dos sapientes”,

necessária igualmente para se defender306

. Ele destaca ainda os Caldeus, pois talvez

desejassem a discussão para o nascimento daquele que devesse se tornar filósofo:

“Marte olhe triangularmente para Mercúrio, de tal modo que, uma vez retiradas estas

conjunções e estes contrastes, toda a filosofia resultasse soporífica e sonolenta” 307

.

Pico se preocupou em defender a sua proposta com argumentos nutridos de

erudição e conhecimento de fontes antigas, as mais diversas, revelando assim a sua

orientação filosófica ante aos que se opuseram à disputa. Daí justificá-la com um

levantamento da sua erudição, a qual havia chegado com seu conhecimento de várias

doutrinas sapienciais e saberes. O seu intuito não de demonstrar na Oratio polêmica,

porém, expor as doutrinas que havia adquirido com base em fontes de ensinamentos

doutrinários, filosóficos e teológicos expressas também nas Conclusiones, defendendo-

se também dos que não lhe consideravam à altura de tal iniciativa, da acusação de

imodesto e presunçoso, mas também de imprudente e temerário308

.

Pico esclarece a sua pretensão de argumentar sobre o porquê de suas formulações

nas Teses e mesmo no próprio texto da Oratio, mas também a sua pouca idade e

coragem deixando claro que seu objetivo não era buscar reconhecimento e ser assim

considerado um douto:

Vede, pois, em que caí, em que posição me encontro, já que não posso

deixar de prometer sem reprovação o que não posso deixar de

prometer sem reprovação o que em seguida não posso sem reprovação

dar. Talvez possa citar de Job que o espírito está em todos, e ouvir

com Timóteo: ninguém despreze a tua juventude. Mas, de um modo

mais sincero e segundo a minha consciência, poderei dizer que em

mim nada há de grande e de singular; ainda que admitindo ser

estudioso e desejoso de saber, contudo não me arrogo nem pretendo o

nome de douto309

.

305

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.87. 306

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.87. 307

Ibidem. 308

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade humana, p.89. 309

Ibidem.

Page 119: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

119

Ele reconhece, portanto, os riscos que acarretam o seu empreendimento, mesmo

porque reconhece a sua fraqueza ante uma tarefa tão pesada, mas sabe da prerrogativa

presente nessa espécie de batalha doutrinária, ou seja, “ser vencido é um ganho” 310

.

Contudo, diz não ter receio de enfrentar combatentes mais fortes e corajosos.

Para refutar ainda a objeção do número exagerado de teses na proposta das

Conclusiones, Pico della Mirandola se serve de outros argumentos, demonstrando

também de estar consciente da responsabilidade de defender tais posições. Para tanto,

ele defende a sua posição se reportando também a Cícero: ser “verdadeiramente

inconveniente querer pôr limite às obras dos outros e [...] querer exigir a mediocridade

ao que é tanto melhor quanto maior é” 311

, e expõe a importância do conteúdo de seu

projeto. Na Oratio, ele demonstra também como se devem dispor os argumentos em

forma de exposição, já expostos nas Conclusiones, reconhecendo que outros, anterior a

ele, já haviam proposto questões acerca de conhecimento associadas à Filosofia,

Teologia e às demais ciências que se faziam presentes no interesse e investigação. De

modo que Pico argumenta:

Se, nos nossos tempos, muitos, Górgias de Leontino, propuseram

disputas, não sem louvor, não só sobre novecentas teses, mas mesmo

sobre todos os assuntos de todas as artes, porque não poderei eu, sem

ser reprovado, discutir sobre muitas, sim, mas bem precisas e

determinadas? Mas replicam que isso é supérfluo e ambicioso. Eu,

pelo contrário, contraponho que não só é supérfluo, mas que para mim

é necessário fazê-lo, e se aqueles considerassem as razões do meu

filosofar seriam constrangidos a reconhecer tal absoluta

necessidade312

.

Pico fez menção aos que seguem uma escola filosófica313

, quer de São Tomás

quer de Escoto, congregando os maiores consensos, pois cimentam a sua doutrina na

discussão de poucas questões, assim pautada em um determinado filósofo ou

pensamento. Conforme apresenta Pico na Oratio, a sua defesa de expor pensamentos,

como aqueles encontrados nas Conclusiones, revela um exemplo oposto ao dos seus

críticos, destacando a necessidade de todos os filósofos314

. Nesse sentido, ele sustenta:

310

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.89. 311

Ibidem, p. 90. 312

Ibidem. 313

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.91. 314

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 91.

Page 120: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

120

Eu, pelo contrário, propus interessar-me seriamente por todos os

mestres da filosofia, examinar todas as posições, conhecer todas as

posições, conhecer todas as escolas, mas não jurar sobre a palavra de

ninguém. Por isso, encontrando-me na necessidade de falar de todos

os filósofos, para não parecer sustentar uma tese determinada sem

tomar em consideração as outras, as questões propostas não podiam

deixar de ser muitas no seu conjunto, ainda que sejam poucas as

atinentes a cada um315

.

Pico segue então essa regra, investigando todos os antigos e examinando cada

pensador, não deixando de ler nenhum escrito o quanto possível: daí haver investigado

tanto a escola do Pórtico quanto a Academia. Recusava-se, portanto, adotar o

procedimento daqueles de mente estreita, que se restringem a uma única escola

filosófica, pois em cada escola há algo de específico e de não comum em relação às

demais. Nesse sentido, ele argumenta:

há em João [Duns] Escoto qualquer coisa de vigoroso e de subtil, em

Tomás [de Aquino] de sólido e de equilibrado, em Egídio [Romano]

de terso e de exacto, em Francisco [de Mayronnes] de penetrante e de

agudo, em Henrique [de Gand], parece-me, qualquer coisa sempre

sublime e veneranda316

.

No pensamento árabe destaca o que há de seguro e inconcusso, de grave e

meditado e de divino e platônico: Averróis, Avanpace, Alfarabi e Avicena317

. Entre os

Gregos reconhece haver, acima de tudo, uma filosofia clara e pura; mas também rica e

ampla; constante e douta; profundamente elaborada; ágil e graciosa, reportando-se a

Simplício, Alexandre de Afrodísia, Teofrasto e Amónio318

. Pico indica também alguns

platônicos, a saber, Porfírio, Jâmblico, Plotino, em razão de temas como a religião,

filosofia oculta, mistérios bárbaros, ou seja, naquilo que se revela de admirável em

relação às coisas divinas e divinamente no que concerne o humano319

. Ele deixa, porém,

os mais recentes, ou seja, Proclo, Hérmias, Damásio e Olimpiodoro e, conforme afirma,

muitos outros, “nos quais reluz sempre aquele τ , isto é, o divino, símbolo

característico dos Platônicos”320

. No caso da existência de escolas que combatem as

afirmações mais verdadeiras, e caluniam os juízos válidos da razão, Pico defende que

tais escolas terminam reforçando e não enfraquecendo a verdade321

. Pico pretendeu,

315

Ibidem, pp. 91-93. 316

Ibidem, p.93. 317

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre s dignidade do homem, p.93. 318

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95. 319

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95. 320

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95. 321

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95.

Page 121: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

121

portanto, apresentar conclusões de várias doutrinas: algo que ter agradado a muitos. Daí

indagar:

Que valor teria tratar só da filosofia dos latinos, isto é, de Alberto, de

Tomás, de Escoto, de Egídio, de Francisco, de Henrique, esquecendo

a filosofia dos Gregos e dos Árabes, quando todo o conhecimento

passou dos Bárbaros aos Gregos e dos Gregos a nós? Por isso, os

nossos sempre retiveram suficiente, no campo filosófico, aterem-se às

descobertas dos outros e aperfeiçoar o pensamento alheio322

.

Ele teria também usado temas do mundo natural e divino: questões físicas com

os Peripatéticos e divinas com a Academia dos Platônicos, que tem sido considerada, de

acordo com Agostinho uma doutrina santíssima entre todas as filosofias até então. Pico

indaga ainda:

De que teria valido ter discutido as opiniões dos outros, se,

convidados para o banquete como quem não leva nada consigo, não

tivéssemos trazido nada de nosso, nada produzido e elaborado pelo

nosso engenho? È verdadeiramente pouco nobre, como afirma Séneca,

saber apenas de comentário, como se as descobertas dos maiores

tivessem fechado o caminho para a nossa investigação, como se a

força da natureza, como que esgotada, não pudesse gerar algo que,

ainda que não mostrando completamente a verdade, a faça pelo menos

entrever de longe. Do mesmo modo que o camponês odeia a

infertilidade do campo e o marido a esterilidade na mulher, assim

também a mente divina odiará ainda mais uma alma infecunda ligada

a cingida a si, quanto mais nobre é a prole que dela se deseja323

.

Em seguida, Pico della Mirandola enumera, na sua exposição, outros temas das

Conclusiones e destaca a relevância em abordá-los. Além das doutrinas comuns, ele

tratara temas relativos à teologia dos antigos, ou seja, aqueles autores pertencentes à

chamada prisca theologia, desde Hermes Trimegisto, Caldeus e Pitágoras, mas também

os mistérios ocultos dos Hebreus, em suma, temas pertencentes, quer ao mundo natural

quer ao divino324. Pico propôs o acordo entre Aristóteles e Platão, antes tentado por

outros filósofos, mas por ninguém provado. Entre os Latinos, Pico se reporta a

Boécio325

, pois prometera realizar tal acordo, mas não conseguira tal objetivo326

. Outros

322

Ibidem, pp.95-97. 323

Ibidem, p. 97. 324

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.97. 325

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 97. 326

Para Josep-Ignasi Saranyana: “Boécio idealizou o projeto de verter para o latim os escritos de Platão e

de Aristóteles, e de demonstrar, ao mesmo tempo, que ambos os filósofos concordavam no essencial.

Porem possuímos dele apenas uma tradução comentada das Categorias (tratado denominado De

interpretatione, dedicado ao juízo). Também traduziu o Isagogé, ou Introdução às Categorias (de

Aristóteles), obra do neoplatônico Porfirio (233-305), em que é analisada a doutrina sobre os predicáveis;

Page 122: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

122

ainda haviam tentado realizar esse acordo, desde Simplício e até Agostinho nas Cartas

aos Acadêmicos escreve que “muitos foram os que tentaram provar nas suas disputas

que a filosofia de Platão e de Aristóteles é uma mesma filosofia” 327

. Contudo, apenas

João Gramático deixou para os vindouros essa demonstração. Ademais busca em suas

Conclusiones opor-se a sentenças consideradas como contrastantes em Escoto e Tomás,

em Averróis e Avicena, defendendo a concordância entre as mesmas328

.

Pico propusera ainda, nas suas Conclusiones, de acordo com a defesa da Oratio,

outro procedimento filosófico com base nos números e seguido pelos primeiros

teólogos, argumentando igualmente como, através dos tempos, uma doutrina pode vir a

se apagar em virtude da incúria dos vindouros. Tal procedimento filosófico

[...] com base nos números, [fora] seguido pelos primeiros Teólogos,

especialmente por Pitágoras, por Aglaofemo, por Filolau, por Platão e

pelos antigos platônicos, doutrina que, como outras doutrinas ilustres,

se apagou de tal modo, devido à incúria dos vindouros, que delas

dificilmente se encontra actualmente um ou outro traço329

.

Em suas formulações, Pico destaca na Oratio a relevância dos teoremas

mágicos, e o sentido duplo que tem a Magia330

, pois, conforme atesta Pico, ela está

dividida em duas partes: uma que se encontra na autoridade dos demônios331

e a outra

na filosofia natural. A primeira parte é considerada de modo crítico e sem credibilidade,

pois algo execrável e monstruosa, mas a segunda, se investigada atentamente, é a

suprema realização da filosofia natural. Segundo ele escreve:

Os gregos, tendo presente uma e outra, indicam a primeira, não a

dignificando de modo algum com o nome de Magia com o vocábulo

τ, e chamam o próprio e peculiar nome α à quase

perfeita e suprema sapiência. Como disse Porfírio, de facto, na língua

e escreveu outro comentário ao Isagogé, traduzido por Mário Victórino. As outras obras de caráter

aristotélico a ele atribuídas, e que constam na edição da Patrologia Latina (comentários aos Primeiros e

Segundos Analíticos, aos Tópicos e aos Elencos sofísticos), São de Giacomo de Veneza, de

aproximadamente 1128. Redigiu, além disso, quatro opúsculos lógicos (um deles, comentando os Tópicos

de Cícero), e alguns tratados de caráter teológico, como De Trinitate, De hebdomadibus, Liber de persona

et dualibus naturis e Brevis fidei chistinianae complexio” (cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia

Medieval. – das origens patrísticas à escolástica, p.110). 327

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade humana, p.99. 328

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.99. 329

Ibidem. 330

Para Pico existem dois tipos de magia. Por um lado a magia negra da bruxaria e da feitiçaria, obra do

demônio, a qual ele critica e recusa, por outro, aquela que se identifica com a filosofia natural, ou seja,

uma “boa magia”, pois diz respeito ao estudo e interpretação das coisas celestes e divinas. Corresponde

também ao poder do homem manipular a natureza. Há quem se reporte, por isso, a Pico como se

anunciasse a tecnologia (cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobe a dignidade do homem, p.101). 331

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.101.

Page 123: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

123

persa, mago tem o mesmo significado que tem para nós intérprete e

cultor das coisas divinas332

.

A crítica contra a magia demoníaca nas Conclusiones, de acordo com a Oratio,

revela a disparidade entre as duas artes: a primeira detestada não somente pela religião

cristã, mas também por todas as leis e por qualquer Estado bem organizado, já a outra é

aprovada e abraçada por todos os sábios e povos amantes, quer das coisas celestes, quer

divinas 333

. Para justificar os seus argumentos, Pico della Mirandola se reporta, em

seguida, às fontes de sua erudição, opondo a vergonha de quem praticou a primeira à

celebridade e glória nas Letras, a qual confere à segunda. Da primeira nunca existira

entre filósofo ou homem desejoso de buscar aprender as boas artes, ao passo que

Pitágoras, Empédocles, Demócrito e Platão correram os mares e

quando voltaram ensinaram-na como suprema arte nos seus mistérios.

Aquela, porque não é sustentada por nenhum autor; esta, quase

tornada nobre por ilustres pais, tem sobretudo dois cultores334

.

Em Zalmóxides, Ábaris e Zoroastro, Platão diz no Alcibíades “que a magia

outra coisa não era senão o conhecimento das coisas divinas” 335

. Segundo a Oratio, os

reis persas a magia ensinavam aos filhos para que aprendessem a governar as

Repúblicas e Zalmóxides a considerava como animi medicinam [medicina da alma]336

.

Na esteira destes, Pico destaca ainda Carondas, Damigeron, Apolónio, Hostanes,

Dárdano. Ele diz que Homero escondera nas viagens de Ulisses esta arte como as outras

ciências, mas destacaram-se também Eudoxo e Hermipo337

. Entre os modernos que

praticaram a magia, Pico destaca o árabe Alkindi, Rogerio Bacon e Guilherme de Paris

[de Alvérnia]338

. Ademais, Plotino dissera que o mago é ministro da natureza e não

artífice, aprovando, de um lado, este tipo de magia e refutando, de outro, aquele tipo de

magia demoníaca. Ele observa igualmente a disparidade de cada parte da magia:

enquanto uma prende o homem, como escravo das forças do mal339

, a outra pode

reivindicar o nome de arte ou de ciência, pois se encontra repleta de mistérios que

permitem a contemplação das coisas mais elevadas e secretas, possibilitando também o

conhecimento das coisas da natureza. Pico expõe ainda a relevância de se considerar

332

Ibidem, p.100. 333

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 103. 334

Ibidem, p.103. 335

Ibidem. 336

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.103. 337

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.105. 338

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.105. 339

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.105.

Page 124: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

124

essa divisão da Magia. Daí se reportar aos Gregos340

para completar os seus

argumentos. De acordo com a Oratio:

Daqui se infere que, enquanto a primeira magia aparece como

monstruosa e nociva, segunda mostra-se divina e salutar. Sobretudo

por isto, enquanto uma, colocando o homem à mercê dos inimigos de

Deus, o afasta de Deus, a outra exalta-o para tal admiração das obras

de Deus, de onde seguramente derivam a caridade, a fé, e a esperança.

De facto, nada conduz melhor à religião, ao culto de Deus, como a

constante contemplação das maravilhas de Deus, e quando as tivermos

examinado bem mediante esta magia natural de que agora tratamos,

mais ardentemente animados pelo culto e por grande amor pelo

artífice, seremos levados a cantar: „Cheios estão os céus, cheia está a

Terra da Tua majestade e glória‟341

.

Encerrando os argumentos sobre a Magia, Pico se dirige aos antigos mistérios

dos Hebreus, a fim da confirmação da fé católica e cristã. Ele defende a relevância

desses mistérios e sustenta não se tratar tais coisas, como parece àqueles que as

ignoram, de “vaidades, patetices ou fábulas de charlatães” 342

. Daí se reportar a autores

ilustres que confirmam a divindade e a importância delas para a defesa do Cristianismo

contra as calúnias dos Hebreus. De acordo com Pico della Mirandola, pode-se encontrar

entre célebres doutores hebreus e entre:

[...] os nossos, também Esdras, Hilário e Orígenes, que Moisés

recebeu no monte não só a lei que depois deixou aos descendentes em

cinco livros, mas também uma secreta e verdadeira interpretação dela.

A Moisés Deus ordenou que divulgasse a lei, mas que não escrevesse

a interpretação da lei nem a divulgasse, mas a revelasse só a Jesus

Nave e este, por sua vez, aos seguintes sumos sacerdotes, sob o

sagrado sigilo do absoluto silêncio343

.

Portanto, era suficiente apenas conhecer, por meio de simples relatos, quer a

potência de Deus quer a sua ira contra os malvados, mas também a justiça para com

todos, a fim de uma vida boa, feliz e para o culto de uma religião verdadeira344

. Daí Pico

acrescentar:

Porém, revelar abertamente à plebe os mistérios mais secretos

escondidos sob a casca da lei, expor os sublimes mistérios de Deus,

340

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.105. 341

Ibidem, pp.105-107. 342

Cf. MIRANDOLA Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.107. 343

Ibidem, p.107. 344

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.108.

Page 125: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

125

ocultos sob a rude veste das palavras, que outra coisa teria sido senão

dar as coisas santas aos cães e lançar pérolas a porcos?345

.

Era preciso manter oculto tudo isto ao vulgo e comunicar apenas aos perfeitos.

Pico della Mirandola se reporta a Paulo como um dos perfeitos, por ter pronunciado

palavras de sapientae, a qual não está ligada à humana prudência, porém a ação divina:

costume observado pelos filósofos antigos346

. Em seguida, Pico faz alusão a alguns

filósofos antigos que observaram tal costume: Pitágoras e os escritos confiados à filha

Damo, advertindo que os ensinamentos míticos deviam ser guardados mediante o

enigma, invioláveis para a multidão profana347

; Platão que defendia ser preciso

expressar-se mediante enigmas a fim de se proteger dos outros o escrito348

; Aristóteles

que afirmava serem inéditos os livros da Metafísica que tratavam de coisas divinas349

;

Orígenes ter afirmado que Jesus Cristo revelara aos discípulos coisas que eles não

quiseram escrever para não se vulgarizarem350

; Dionísio Areopagita que defendera

terem sido os mistérios mais secretos transmitidos pela religião cristã, ou seja, de mente

a mente, sem escritos mediante o Verbo351

. Ainda nesse sentido, Pico afirma:

Tendo deste modo sido considerada, por mandamento de Deus

verdadeira interpretação da lei dada a Moisés por Deus, deu-lhe o

nome de Cabala, que para os Hebreus, tem o mesmo significado que

para nós receptio (recepção). E isto porque tal doutrina era recebida,

não mediante momentos literários, mas por meio de sucessivas

revelações que um recebia do outro, como por direito hereditário 352

.

Reportando-se à história do povo hebreu, Pico della Mirandola busca expor a

origem dos livros da Qabbalah, destacando desde a libertação desse povo da escravidão

babilônica, por Ciro, à construção do templo sob Zorobabel com o empenho de restaurar

a lei. Com Esdras, chefe da Igreja, após se emendar os livros de Moisés, reuniu os

sábios, pois sabia dos riscos de se conservar por muito tempo a tradição dos

antepassados, para que cada um manifestasse o que havia guardado da memória dos

mistérios divinos. Tais mistérios foram escritos em setenta volumes em conformidade

com o número dos sábios do Sinédrio353

. Pico afirma serem estes os livros da

345

Ibidem, p.109. 346

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 347

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 348

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 349

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 350

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 351

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 352

Ibidem, pp.109-111. 353

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.111.

Page 126: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

126

Qabbalah: “fonte de sapiência, isto é, a exacta metafísica das formas inteligíveis e

angélicas; e o rio de ciência, isto é, a solidíssima filosofia das coisas da natureza” 354

.

Ele diz ter o Papa Sisto IV, predecessor imediato de Inocêncio VIII, mandado traduzir

para o latim para serem úteis à fé cristã. Em seguida, Pico narra:

Estes livros procurei-os com não pequeno dispêndio de dinheiro, li-os

com suma diligência e incansável estudo e vi neles Deus é disso

testemunha não tanto a religião Mosaica quanto a Cristã. Aqui os

mistérios da Trindade, aqui a encarnação do Verbo, aqui a divindade

do Messias; aqui quanto diz respeito ao pecado original, à expiação

deste por meio de Cristo, quanto concerne à Jerusalém Celeste, à

queda dos demônios, aos coros angélicos, às penas do purgatório e do

inferno; li as mesmas coisas que todos os dias lemos em Paulo e

Dionisio, em Jerónimo e em Agostinho. No tocante à filosofia, parece-

nos ouvir Pitágoras e Platão, cujos princípios são tão afins à fé cristã

que o nosso Agostinho dá imensas graças a Deus por lhe terem

chegado às mãos os livros dos platônicos355

.

Daí Pico concluir não haver nenhum tema controverso entre nós e os Hebreus356

,

pois poderão ser combatidos e convencidos com os próprios escritos cabalísticos: algo

que foi demonstrado por outro erudito, a saber, António Crónico, o qual ouvira em sua

casa Dáctilo Hebreu afirmar às mesmas conclusões dos cristãos acerca da Trindade. Ele

reconhece ter buscado apresentar na disputa romana as suas interpretações dos Carmes

de Orfeu e de Zoroastro, ambos considerados pais e autores da antiga sabedoria. Outros

autores são ainda indicados nessa sua argumentação acerca das fontes e da orientação de

seus propósitos filosóficos: Jâmblico de Calcídia que sustentava ter Pitágoras

considerado a teologia órfica aquele modelo com base no qual plasmou e formou a sua

filosofia357

.

Para concluir a sua exposição na Oratio, Pico se revela consciente de não ter

reduzido a discussão ao menor número possível de temas e argumentos, algo habitual

outros fazerem e reconhece igualmente a necessidade de um número maior de teses em

relação àquelas apresentadas nas Conclusiones. Justificando essa necessidade, ele cita o

exemplo da tese que aborda a conciliação entre a filosofia de Aristóteles e de Platão,

pois tal tese exigiria um número maior de pontos a ser abordados, sem com isso incorrer

em suspeitas de prolixidade, em virtude da necessidade de enumerar os lugares em que

354

Ibidem, p.113. 355

Ibidem. 356

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.113. 357

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 115.

Page 127: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

127

alguns consideram que os dois contrastam, mas que pensa os dois estarem de acordo?358

Trata-se de uma questão fundamental do projeto filosófico de Pico della Mirandola que

será retomada em sua obra De ente et uno359

.

Mas certamente - e di-lo-ei, embora não seja modesto da minha parte

e seja contra a minha índole – di-lo-ei, contudo, porque a isso me

obrigam os invejosos e me forçam os detratores: quis nesta assembleia

mostrar não tanto que sei muitas coisas, mas que sei coisas que os

outros ignoram360

.

358

Cf. MIRANDOLA, Pico della. Disurso sobre a dignidade do homem, p.117. 359

MIRANDOLA, Pico della. Dell‟ ente e de uno [1496]. Milano: Bompiani, 2010. 360

MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre s dignidade do homem, p.117.

Page 128: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

128

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, pode-se aqui sustentar que a abordagem desenvolvida por

Pico della Mirandola no seu escrito Oratio de hominis dignitate, obra central desta

dissertação, ao considerar a questão da natureza humana e a liberdade, apresentou certo

projeto de saber e concepção filosófica, mas também um procedimento filosófico

adequado às exigências da erudição. Daí ser preciso algumas considerações sobre os

pressupostos do encaminhamento de Pico della Mirandola. Para tanto é preciso destacar

o levantamento das fontes de sua reflexão: algo que caracteriza, igualmente, a influência

da cultura de seu tempo, ou seja, aquela do projeto cultural humanista e, ao mesmo

tempo, da herança de tal projeto na reflexão de alguns filósofos da época, em particular,

de Pico della Mirandola. Tais pressupostos foram necessários à elaboração de seu

pensamento: preocupação também desta pesquisa, ao abordar a questão do presente

tema.

Sabendo que para Pico della Mirandola chegar à formulação das ideias da sua

Oratio foi preciso resgatar manuscritos e escritos raros pertencentes a saberes muito

antigos e culturas tão longínquas, transitar por algumas questões doutrinais, sapienciais,

filosóficas e teológicas de culturas também bastante diferentes, revela o sentido amplo e

de síntese, implícito em seu projeto filosófico. É certo que ele expressou, de forma

intensa, o seu conhecimento do que havia investigado em seu trajeto inclusive em vários

Centros de estudos e em cidades as mais diversas do seu país, como em Paris. Isso se

revela na elaboração de seu pensamento, em que se articulam orientações filosóficas as

mais diversas e, em especial, na sua reflexão metafísica e ética se expressa, conforme

indica a Oratio. Contudo, pode-se sustentar que isso não exclui as influências históricas,

culturais e filosóficos na elaboração dessa obra, pois na escrita está presente a cultura do

seu tempo. Por conseguinte, destacam-se aqui o Humanismo e o Renascimento que

marcam uma filosofia que revela a sua orientação enciclopédica: algo que caracteriza a

orientação do saber nesse momento da cultura.

Embora se reconheça que a temática apresentada Pico não fosse original, ou

seja, a questão da dignitas hominis, no entanto, ele apresentou, na Oratio, uma

concepção mais rica e profunda em sua abordagem, conforme o segundo capítulo desta

Page 129: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

129

dissertação. A dignitas hominis, em vez da acepção apenas antropológica, assume na

abordagem de Pico uma orientação em que se articulam elementos, quer metafísicos

quer éticos: daí o seu interesse em retomar valores provenientes das sabedorias

filosóficas e teológicas. Tal herança se revela ainda na relação entre microcosmo e

macrocosmo, com a presença da concepção de imago Dei, presente também no universo

do pensamento medieval e retomado no Renascimento filosófico italiano.

A reflexão sobre o platonismo como também sobre o aristotelismo foi parte

integrante da busca de Pico della Mirandola de uma síntese e do seu ideal de concórdia.

Isto revela também a sua intenção de unir as doutrinas e culturas diversas ante a

separação existente entre ambos os pensadores na tradição, não só no domínio das

orientações filosóficas, mas na divisão entre os centros italianos, a saber, Pádua e

Florença no estudo desses filósofos. A escolástica assume também importância e

penhor, expressas nas teses das Conclusione nongentaes, e na Oratio está presente

como referência de conhecimento para fundamentar e esclarecer a sua defesa da

doutrina cristã. Não se pode esquecer umas das inquietações de Pico della Mirandola,

também relevante em seu projeto, ou seja, a sua visão em expor a Magia,

compreendendo desde a sua divisão em duas partes, e a possibilidade de explicar certos

mistérios relativos ao conhecimento dos fundamentos do Cristianismo, não esquecendo

ainda da Astrologia, que será depois refutada na continuidade de seu pensamento,

conforme testemunha o seu escrito Disputationes adversus astrologiam divinatricem.

Para além desses componentes da cultura renascentista, a Qabbalah, em sua divisão de

teórica e prática, contribuiu na abordagem filosófica de Pico, mas também como

doutrina, para a compreensão igualmente da doutrina cristã e para os fundamentos da

sua metafísica.

Ademais, a orientação filosófica de Pico della Mirandola e a relação entre

escolásticos e retóricos e entre filósofos bárbaros e humanistas, integraram a sua

formação e o seu projeto filosófico. Destacar a importância da escrita eloquente e, ao

mesmo tempo, a sua dimensão defensora da verdade no pensamento, traduz o sentido

integral dessa filosofia buscada por Pico della Mirandola. As suas epístolas dirigidas a

Ermolao Barbaro, que considerava os filósofos medievais como bárbaros e incultos,

pois não interessados por uma escrita orientada pelos cânones da retórica clássica, não

excluia, de modo algum, o seu interesse pela verdade no domínio desse pensamento. A

Page 130: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

130

Oratio se revela, nesse sentido, como um documento fundamental desse diálogo

integrante, não obstante o fracasso do projeto da disputa em Roma na forma das Teses.

Apresentar a posição de pensadores, escolas, doutrinas, conhecimento filosóficos e

teológicos os mais diversos, se revela na Oratio na forma breve de uma ideia e síntese

que contribui para esclarecer a grandiosidade filosófica de seu projeto. A defesa na

Oratio da verdade inerente à construção do pensamento humano ao longo dos tempos e

a necessidade de busca e reconhecimento de uma verdade mais universal, por meio de

um entendimento amplo entre as doutrinas mais diversas, não obstante as diferenças

fundamentais, revela também aquilo que hoje se pensa, igualmente, como necessidade

ecumênica entre doutrinas religiosas, pois pretendida por Pico na sua busca de uma pax

philosophica.

Para chegar à formulação de sua concepção de natureza humana e de liberdade

na Oratio, Pico adota em seu procedimento uma multiplicidade de vias que fazem parte

da construção dessa oração. Nessa obra o homem aparece como magnum miraculum, ou

seja, um grande milagre. Portanto, deve-se aqui se reconhecer o grande débito de Pico

em relação ao passado e destacar ainda o seu grande vínculo, mais do que qualquer

outro humanista, com a cultura escolástica medieval. Como se sabe, Pico se considerava

um anagnóstes, ou seja, um leitor dos antigos, ou mesmo uma espécie de hermeneuta de

fontes e doutrinas muito antigas. Isso justifica, igualmente, a configuração de sua

filosofia, quer em sentido estilístico quer em relação aos conceitos e categorias. Ele

sabia de contribuir com o seu projeto filosófico, e a sua abordagem das fontes, para uma

renovatio cultural e filosófica, não se tratando apenas de reprodução das ideias de

outros. Há, portanto, uma parte de seu engenho na leitura realizada dos antigos textos e

de ideias, não tão distante de seu universo cultural.

O grande projeto de Pico é, em verdade, o da disputa romana, ou seja, o das

Conclusiones nonguentae, embora houvesse permanecido algo não realizado no seu

todo em virtude da não realização da disputa: permanecia ainda a necessidade de

argumentação em relação às Teses. É certo que Pico revelara a sua capacidade dialética

em seu tratado De ente et uno, contudo permaneceram ainda grandes limites, quer na

intenção de “paz” quer de “concórdia” nas Conclusiones e na Oratio. Tal tentativa de

conversão com base em um princípio único exigia ainda um aprimoramento, pois

permaneciam no texto lacunas históricas e filológicas e diferenças eliminadas de forma

Page 131: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

131

muito apressada, sem um aprofundamento e abordagem mais demorada dessas

diferenças. A ideia de tolerância era algo que emergia naquela época, em partícula, na

reflexão de Marsilio Ficino e em sua obra De religione christiana, publicada em 1568.

Não obstante esses limites teoréticos, pode-se argumentar que a Oratio não se

reduzia a uma simples apologética, mas apresentava também uma orientação e raflexão

metodológica, já exposta nesta dissertação. Daí a sua formulação sobre a dignitas

hominis seguir certo itinerário que se justifica, na sua abordagem das diversas tradições,

as razões fundamentais de tal formulação. Nesse universo de questão se apresentou não

apenas elementos da pretensão metafísica de Pico della Mirandola, mas também

elementos fundamentais de sua compreensão ética: aquilo que reenvia à questão da

natureza humana e à problemática da liberdade humana. Sem dúvida, a hierarquia dos

graus de conhecimento, apresentada por Pico na Oratio, se revela como um movimento

dinâmico da completude humana, pois o convite para a elevação intelectual se põe

também como finalidade fundamental humana e de sua liberdade. Nesse sentido,

liberdade e finalidade estão essencialmente unidas para constituir uma imagem fiel da

realidade humana.

A liberdade, o dever e o amor constituem assim certo dinamismo integral do

homem que o conduz a seu destino. Isto exprime o nexo inseparável, na teorética de

Pico della Mirandola sobre o homem, entre liberdade, dever e destino. A liberalitas de

Deus-Pai deu ao homem e celebrou a nobreza da sua escolha. É certo que Pico não

rechaça as demais justificações relativas à dignitas hominis, isto é, que faz do homem

um magnum miraculum, mas a prerrogativa que se apresenta como fundamental e que

constitui a dignitas é, em verdade, a liberdade, conforme a narrativa apresentada de

Deus a Adão após ter sido criado. Por conseguinte, todos aqueles termos presentes na

Oratio, e oriundos da prisca theologia, da mitologia, da Qabbalah, da Bíblia, visam a

contribuir para postular aquela indeterminação do homem: camaleão, Proteu,

metamorfose, transformação de Enoch em anjo da divindade, metempsicose pitagórica,

as considerações de Maomé, ominis creatura da Bíblia e outros termos presentes na

Oratio.

A Oratio traduz na Cadeia piquiana do Ser, a distinção no mundo da criação,

quer da natureza do homem quer a dos animais, os quais possuem uma natureza

Page 132: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

132

determinada. O homem, diferente dos demais seres, algo que expressa a sua natureza,

poderá vir a ser o que quiser, porém, com a responsabilidade moral e a dialética chegará

ao inteligível, pertencente somente aos anjos, e assim semelhante aos anjos, recomenda

Pico, o homem deverá aspirar graus de elevação mais altos. Ele descreve em forma de

escada, que são os degraus, tal processo e itinerário de elevação do homem de subir ao

mais sublime que é Deus. Para demonstrar isso, pode-se considerar a indicação piquiana

das diferenças, atribuídas a cada criatura desde o momento da criação, a saber, aquelas

criaturas que vegetam, aquelas que não passam de bestas, e aquelas que pertencem,

semelhantes aos inteligíveis, aos graus mais elevados. Daí Pico defender que a liberdade

é um dom e a natureza é dádiva, ambas dadas por Deus. Portanto, aquelas alusões às

forças ideais, acima indicadas, tornam-se possíveis para o autor, quer nas aproximações

retóricas realizadas por Pico quer no domínio metodológico de sua hermenêutica: algo

que se realiza em vista da elaboração de sua concepção de liberdade.

Sabe-se também que Pico considera na Oratio o homem, como estrutura,

medium mundi. Por conseguinte, o homem é um mundo complexo e vinculado. Em tal

complexo a parte principal é certamente a natureza racional como intelectualidade

discursiva, a qual participa da intelectualidade intuitiva do intelectus purus que é o anjo.

Para Pico, o conhecimento da verdade é algo indispensável ao homem, ou seja, o uso

que o homem faz em sua vida. Enquanto as outras naturezas estão determinadas, a

natureza do homem não possui uma determinação, pois escapa ao determinismo das leis

físicas. Por conseguinte, o homem como todo ente possui uma natureza e a sua natureza

é intelectual como natureza racional. Por isso pode-se falar de uma natureza específica,

não obstante a indeterminação no sentido de algo que não limita a ideia de livre arbítrio

e liberdade. Por isso não se pode sustentar que o fato de uma natureza específica, algo

que Pico identifica em Deus, no anjo, não significa, porém, ter uma natureza

determinada como modo determinado de agir, pois o homem é dotado de escolha e

responsável pelo seu destino.

Destaca-se na liberdade a responsabilidade que o homem tem com a sua vida.

Nesse sentido, como existe a liberdade na Oratio, também a responsabilidade faz parte

para assim completar o homem, não obstante a escolha que será tomada por este ser.

Portanto, o bem é sempre o alvo exato, e a Teologia cristã católica é apresentada por

Pico como a mais sublime. Com a ascensão sapiencial e a paz universal, a presença da

Page 133: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

133

dialética, da filosofia natural e a teologia, no itinerário do homem quanto à escolha,

participam das ciências que estão na vida humana. A busca realizada por Pico na

filosofia árabe e cristã expõe o sentido mediação também do ecumenismo desse seu

projeto filosófico e de certo ideal ético: o homem é criatura e dele depende fazer bom

uso de sua existência no mundo. Essa temática defendida por Pico é também de

compreensão teológico, quando põe em Deus a grandiosidade de ter criado o homem

com uma natureza na qual a dimensão intelectual permite-lhe ascender e ultrapassar os

limites em que se encontram os outros entes. Ao ser dotado de livre arbítrio e liberdade

caberá ao homem assumir melhores direções e construir o próprio destino.

Em suma, o homem é na sua constituição ontológica e antropológica capaz de

escolha. Não se trata de uma escolha criadora de uma natureza, da sua natureza, mas de

uma natureza dotada de escolha. Portanto, a natureza de que fala Pico della Mirandola

exclui a necessidade das leis físicas ou biológicas: daí não se assemelhar com a natureza

dos outros seres, pois em sua dimensão racional e livre, não submete a sua dignidade e

liberdade a algo cosmológico. Deus, ao criar o homem livre, não pode permitir, sem

constituir uma contradição, que o determinismo cósmico possa afetar a liberdade do

homem. Contudo, a exclusão da necessidade determinista não significa, porém, a

necessidade de certa finalidade, pois é preciso dever e responsabilidade ante a norma, a

qual transcende e orienta a escolha como um ideal.

Page 134: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

134

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. OBRAS DE PICO DELLA MIRANDOLA

MIRANDOLA, G. P. D. Discorso sulla Dignità dell`uomo [1487]. Trad. It. de

Francesco Bausi. Parma: Fondazione Pietro Bembo, Ugo Guanda, 2007.

______. Conclusiones Magicas y Cabalisticas. Conclusiones Sive Teces DCCCC. 1486.

_______. Conclusiones nongentae [Le novecento tesi dell‟anno 1486]. Trad. it. Alberto

Biondi, Città di Castello: Leo S. Olschki, 1995.

_______. Dell‟ ente e de uno [1496]. Milano: Bompiani, 2010.

______. Discurso sobre a dignidade do Homem [1487]. Trad. Maria de Lourdes

Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2008.

______. Heptaplus. La Settemplo Interpretazione dei sei giorni della genesi [1489].

Grugliaseo: Arktos, 1996.

2. SOBRE PICO DELLA MIRANDOLA

ALLEN, M. J. B. O Dia do Nascimento de Vênus: Pico como Exegeta Platônico no

Commento e no Heptaplus IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della Mirandola.

Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.

BARBARO, E.; MIRANDOLA, P. D. Filosofia o Eloquenza? Trad. it. Francesco

Bausi, Napoli: Liguori, 1998.

BAUSI, F. Nec rhetor neque philosophus. Fonti, língua e stile nelle prime opere di

Giovanni Pico Della Mirandola (1484-87), Cittá di Castello: Leo S. Olschki, 1996.

BERTOZZI, M. (org.). Nello specchio del cielo. Giovanni Pico della Mirandola e le

Disputationes contro l‟ astrologia divinatória, Atti del Convegno di studi, Mirandola,

Firenze: Leo S. Olschki, 2008.

BIGNOTTO, N. Considerações sobre a antropologia de Pico Della Mirandola.

BLUM, P. R. Pico, a Teologia e a Igreja IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della

Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.

BORGHESI, F. Uma vida de Obras IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della

Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.

Page 135: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

135

BORI, P. C. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di Pico

della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000.

BROCCHIERI, M. T. F. B. Pico della Mirandola. Asti: Piemm, 1999.

DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio

Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.

_________. Três Precursores do debate Romano de Pico della Mirandola e a Questão

da Natureza Humana na Oratio IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della Mirandola.

Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.

GUIDO, M.C. El Humanismo Italiano. Um Capítulo de La Cultura Europea entre

Petrarca e Valla. Alianza, Madri, 2007.

KRAYE, J. Pico acerca da Relação da retórica e da Filosofia IN DOUGHERTY, M.

V. (Ed.). Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo:

Madras, 2011.

KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. Trad. port.

Arthur Morão, Lisboa: Edições 70, 1954.

______. Idade Média e Renascimento. Trad. Isabel Teresa Santos e Hossein

Seddighzadeh Shooja. Lisboa. Editorial Estampa: 1994.

______. Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano. Trad. Cecília Prada. São Paulo:

Unesp, 1994.

LACERDA, B. A. A Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola. Revista

Legis Augustus (Revista Jurídica) Vol.3, n.1, p.16-23, setembro 2010.

MICHEL, A. Cultura hominis: Giovanni Pico, Marsilio Ficino and the Idea of Man. IN

MIRANDOLA, P. D. Convegno internazionale di studi nel cinquecentesimo

anniversario della morte (1494-1994). Firenze: Leo S. Olschki, 1997.

PICO, G. Vita, apud VALCKE, L. Giovanni Pico Della Mirandola, IN: GARFAGNINI,

C. G. (org.). Giovanni Pico della Mirandola. Convegno internazionale di studi nel

cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994), Città di Castello: Centro

Internazionale di cultura “Giovanni Pico Della Mirandola, Studi Pichiani, Leo S. Olschi,

1997.

RABIN, S. J. Pico acerca da Magia e da Astrologia IN IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.).

Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras,

2011.

Page 136: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

136

STILL, C. N. A Busca de Pico por Todo o Conhecimento IN IN DOUGHERTY, M. V.

(Ed.). Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo:

Madras, 2011.

SUDDUTH, M. A Filosofia da Religião de Pico della Mirandola IN DOUGHERTY,

M. V. (Ed.). Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São

Paulo: Madras, 2011.

VELAZQUEZ, D. J. Barjo el Signo de Circe: ensayo sobre el humanismo cívico del

renascimento italiano e imaginário político de Nicolás Maquiavelo. Buenos Aires: Del

Signo, 2006.

3. OUTROS AUTORES

ADRIANA, A. Diversidad y Reconocimiento: Para Una Revisíon del Humanismo.

Cuadernos del Pensamiento Latinoamericano. Historia de las Ideas, Nº 17.

ARISTOTELES. De Anima. Trad. Port. Carlos Humberto Gomes. Lísboa: Edições 70,

2000

AMARO, B. L. A Dignidade Humana em Giovanni Pico Della Mirandola. Legis

Augustus (Revista Juridica) V. 3, n.1, pp.16-23.

BERTI, E; VALDITARA, L. M. Etica, Politica, Retorica: Studi su Aristotele e la sua

Presenza Nell'Eta' Moderna. Roma: L. U. Japadre, 1989.

CÍCERO. Orações. Trad. António Joaquim. V.II. Clássicos Jackson. Rio de Janeiro,

2006.

CICERONE, M. T. Dell‟Oratore. Trad. it. Mario Martina, Marina Ogrin, Ilaria Torzi e

Giovanna Cettuzzi. Testo latino a fronte. Milano: BUR, 2006.

FICINO, M. De Amore. Comentario a [El Banquete] de Platón. Trad. esp. Rocío de La

Villa Ardura. Madrid: Tecnos, 2001.

KAISER, W. Tatti Studies: Essays in the Renaissance. Italy: Villa I Tatti, 1999.

LARA, T. A. A Filosofia Ocidental do Renascimento aos Nossos Dias. Petrópolis, RJ:

Vozes, 1999.

_________. A Filosofia Ocidental do Renascimento aos nossos dias. 7 ed. Petrópolis:

Vozes, 2001.

MARIA, J. A. O Homem como Microcosmo. Da Concepção Dinâmica do Homem em

Nicolau de Cusa, à Inflexão Espiritualista da Antropologia de Ficino. Lisboa:

Philosophica, 1999.

Page 137: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

137

NAPOLI, G. Giovanni Pico della Mirandola e la problemática del suo tempo. Roma:

Pontefici, 1965.

NOGARE, P. D. Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia

Filosófica. Vozes: Petrópolis, 1994.

PANIZZA, L. Pico Della Mirandola e Il De Generedi Cendi Philosophorum Del 1485

L'encomio paradossaled ei "barbari" e la loro parodia. Firenze: L.S. Olschki, 1999.

REEGEN, J. G. J. T. A Época Helenística e Patrística. Fortaleza: UECE, 1993.

(Apostila Curso de História da Filosofia Antiga -Época Medieval).

______. O Livro das Causas. Trad. br. Jan Gerard Joseph Ter Reegen. Porto Alegre:

Edipucrs, 2000.

VALVERDE, A. J. R. Ver. Filos, Aurora, Curitiba, V.21, n.29, p.457-480, jul/dez.

2009.

VEDRINE, H. As Filosofias do Renascimento. Europa-América: Lisboa, 1971.

WOLGANG, N.. A Formação e o Conceito de Indivíduo na Renascença. Revista de

Educação, Porto Alegre, V.34, n.1, p. 25-32, jan./abr.201.

4. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

ALCORÃO. Alcorão Sagrado: Versão Portuguesa. Trad. Samir el Hayek. São Paulo:

Tangará, 1975.

ATTIE, F. M. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo:

Palas Athena, 2002.

BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di

Pico della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000. CARVALHO, T. Fé e Razão na Renascença. Uma Introdução ao Conceito de Deus na

Obra Filosófica de Marsílio Ficino. São Paulo: Atual, 2012.

CASSIRER, E. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. São Paulo: Martins

Fontes, 2001. (Coleção tópicos).

FERNANDES, F. A. O Cristianismo e o Mundo 1500-2000, Rio de Janeiro: Record,

1996.

FILHO, M. A. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo:

Palas Athena, 2002.

Page 138: Dissertacoes Natureza Humana Liberdade Oratio Homini Dignitate Pico Della Mirandola

138

GARIN, E. Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano. (1993) Trad. Cecília Prada.

São Paulo: Unesp, 1996.

HELENA. R. de S. P. Busca do Conhecimento: Ensaios de Filosofia Medieval no Islã.

São Paulo: Paulus, 2007.

IDEL, M. Cabala, Cabalismo e Cabalistas. São Paulo: Pespectiva, 2008.

ISKANDAR, J. I. Compreender al-Farabî e Avicena. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

JUNIOR, O. Teoria do conhecimento e filosofia da Ciência I. Tradições Rivais no

Renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

LIBERA, A. de. Pensar na Idade Média. Trad. Paulo Neves. São Paulo. Ed. 34, 1999.

NICOLA, U. Antologia ilustrada de Filosofia. Das origens à Idade Moderna. São

Paulo: Globo, 2005.

OLIVIERI, A. (org). Immagini dell‟uomo e Transformazioni della storia del

Rinascimento. Milano: Unicopli, 2000.

REALE, G.. Renascimento do Platonismo e do Pitagorismo. História da Filosofia

Grega e Romana. Trad. Henrique Cláudio Vaz / Marcelo Perine. Ed Loyola, 2008.

REALE, G; ANTISERI, D. História da Filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo:

Paulus, 2003.

REALE. Giovanni. História da Filosofia: Do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus,

1990.

SARANYANA, J. I. A Filosofia Medieval. Trad. Fernando Salles. São Paulo: Instituto

Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúcio” (Ramon Llull), 2006.

__________. A Filosofia Medieval. Das Origens Patrística à Escolástica Barroca,

Trad. br. Fernando Sales, Ramon Llull, São Paulo, 2006.

VISCARDI, A. Storia della letteratura italiana dalle origini al Rinascimento. Milano:

Nuova Accademia, 1960 .

5. SÍTIO

1.http://espacoastrologico.org/2011/09/15/astrologia-e-astronomia-das-origens-ao-

Renascimento.