177
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História da Arte Área de especialização em História da Arte da Antiguidade, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Filomena Limão.Versão corrigida e melhorada após a sua defesa pública.

Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos …§ão... · 2015-10-03 · Capítulo II: A(s) divindade(s) venerada(s) ... bem como dos achados de parte de uma basílica

  • Upload
    others

  • View
    4

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre em História da Arte – Área de especialização em História da Arte da

Antiguidade, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Filomena

Limão.Versão corrigida e melhorada após a sua defesa pública.

2

À memória de Maria Garcia Pereira Maia

3

AGRADECIMENTOS

Gostaria de expressar o meu agradecimento ao Senhor Doutor Manuel Maia, arqueólogo

e director do Museu da Lucerna em Castro Verde, por todo o apoio, tempo e

explicações que me dedicou durante as minhas visitas ao Museu das lucernas votivas de

Santa Bárbara de Padrões.

4

O Santuário de Santa Bárbara de Padrões – uma Perspectiva Religiosa

e Artística na Lusitânia dos Séculos I a III d. C.

Jaime da Encarnação Calado

Resumo:

O presente trabalho de investigação teve como principal objectivo desvendar os

mistérios do santuário de Santa Bárbara de Padrões (séculos I-III d. C.) em termos da(s)

divindade(s) aí venerada(s), da origem e significado primeiro da luz votiva que resultou

num depósito repleto de lucernas nas proximidades do santuário, da funcionalidade dos

tanques presentes no local de culto, e dos aspectos arquitectónicos e decorativos que

apresentaria o complexo religioso.

Após uma análise de vários tipos de indícios – arqueológicos, etnográficos,

topográficos, toponímicos, geográficos –, incluindo-se o paralelismo entre os

Aranditani de Santa Bárbara de Padrões e os Vocontii do Sudeste da Gália, e das

diferentes possibilidades relativamente à natureza da divindade, concluiu-se que o local

de culto foi consagrado aos grandes deuses alexandrinos, havendo uma relação segura

entre a toponímia do sítio – “Santa Bárbara” – e os antigos locais de culto dedicados a

Ísis e Serápis.

Neste contexto egipcizante, a presença de tanques no santuário estaria

provavelmente ligada a uma representação artificial da enchente do Nilo, fazendo frente

a um templo de estilo romano com pronaos desenvolvido sobre pódio elevado, o

conjunto inserido numa área descoberta e porticado. Vários elementos arquitectónicos e

decorativos com iconografia nilótica estariam presentes no santuário, para criar um

ambiente que rememorava um Egipto miniaturizado.

Além do principal edifício de culto, teríamos igualmente muitas outras

possibilidades de construções, como capelas abrigando outras divindades; salas de

mistérios, de banquete e de reunião relacionadas com os télétai; cozinhas; residências

para os sacerdotes e dormitórios para os devotos; via sagrada e espaços para reunião de

procissões ou celebração dos dramas sagrados; entre outros.

O depósito votivo, por sua vez, localizado a 100 m dos tanques para Sul, estaria

fora do recinto sagrado, mas provavelmente junto a uma porta de entrada para o

temenos. Aí eram arrecadadas lucernas votivas após sua dedicação e alumiação perante

a(s) divindade(s) do Nilo. A origem desta prática remontaria provavelmente até ao

antigo Egipto, mais precisamente, a um eventual ritual mágico realizado diante da cella

da divindade nos templos egípcios de época faraónica.

Palavras-chave:

Santa Bárbara de Padrões;

Deuses alexandrinos;

Serapeu;

Iseu;

Tanques nilóticos;

Lucerna votiva;

Espelho votivo.

5

Santa Bárbara of Padrões’ Sanctuary – a Religious and Artistic

Perspective in Lusitania of I-III A. D.

Jaime da Encarnação Calado

Abstract:

This dissertation’s main scope is to unveil Santa Bárbara of Padrões sanctuary’s

mysteries (I-III A. D.), in terms of the divinity worshiped there, of the origin and main

meaning of the votive light coming from a depository filled with lamps in the

proximities of the sanctuary, of the purpose of the tanks present at the place where the

cult took place, and of the architectonic and decorative features that the sanctuary would

present.

After an analysis of the several indications present at the site – archeological,

ethnographic, topographic, toponymic and geographic –, including the parallelism

between the Santa Bárbara of Padrões’ Aranditani and the Southeast of Gália’s Vocontii

and of the different possibilities into what the nature of the divinity is concerned, it was

concluded that the place where the cult took place was consecrated to the great

alexandrine gods; there exists a clear relation between the toponymic of the site –

“Santa Bárbara” – and of the ancient places of cult dedicated to Isis and Serapis.

Considering this Egyptian context, the presence of tanks at the sanctuary was

probably linked to an artificial representation of the flooding of the Nile, located in front

of a roman style temple with a pronaos developed on an elevated podium, all inserted in

an open area and with a portico. Several architectonic and decorative elements with a

nilotic iconography would be present at the sanctuary, in order to create an environment

that reminded a miniaturized Egypt.

In addition to the main building where the cult took place, we would have as

well many other possibilities of constructions, including chapels sheltering other

divinities; rooms of mysteries, of banquet and of meetings linked to the télétai;

kitchens; houses for the clergymen and dormitories for the devotee; sacred passage and

meeting places for processions and celebrations of the holy representations; and so one.

The votive depository, located at 100 m of the tanks heading south, would be

outside the sacred place, but probably close to an entrance door leading to the temenos.

Here, votive lamps were kept after their consecration and illumination facing the Nile

divinities. The origin of this practice probably goes back to ancient Egypt, more

precisely, to a possible magic ritual performed before the cella of the divinity in the

Egyptian temples during the pharaoh era.

Keywords:

Santa Bárbara of Padrões;

Alexandrine gods;

Sarapis’ temple;

Isis’ temple;

Nilotic tanks;

Votive lamps;

Votive mirrors.

6

ÍNDICE

Introdução ........................................................................................................... 9

Capítulo I: A antiga cidade romana de Arandis / Arannis ............................... 11

I) 1) A localização do santuário ............................................................. 11

I) 2) Os Aranditani .................................................................................. 13

I) 2) a) Origem e evolução .............................................................. 13

I) 2) b) Os Aranditani e os Vocontii................................................ 17

I) 3) Os vestígios arqueológicos………………………………………………………… 20

I) 3) a) A cidade………………………………………………………………………… 20

I) 3) b) O depósito votivo e os tanques……………………………………….. 25

Capítulo II: A(s) divindade(s) venerada(s) no santuário de Santa Bárbara de

Padrões – os indícios .................................................................... 32

II) 1) Táranis / Júpiter ............................................................................. 32

II) 1) a) Os Celtas do Sudeste da Gália e o santuário de Chastellard

de Lardiers…………………………………………………………………… 32

II) 1) b) O topónimo “Santa Bárbara”………………………………………… 35

II) 1) c) O menir………………………………………………………………………… 36

II) 1) d) Sob a dominação romana…………………............................... 38

II) 1) e) Impacto de um raio............................................................ 40

II) 2) As influências orientais………………………….................................... 41

II) 3) O depósito de lucernas votivas…………………………………………………. 44

II) 3) a) A “religião votiva”…………………………….............................. 44

II) 3) b) A iconografia das lucernas votivas…………………………........ 47

II) 3) c) A origem votiva das lucernas…………................................. 51

7

II) 4) Mitra……………………………………………………………………………………….. 54

II) 5) Divindades alexandrinas………………………………………………………….. 57

II) 5) a) As lucernas e os santuários dos deuses egípcios…………….. 57

II) 5) b) Os contactos greco-egípcios………………………………………….. 59

II) 5) c) O caso dos Vocontii………………………………………………………. 60

II) 5) c) i) A transmissão da luz votiva………………………………… 60

II) 5) c) ii) Os espelhos votivos…………………………….…….......... 64

II) 5) d) A toponímia de “Santa Bárbara”…………………………………… 68

II) 5) e) Os tanques……………………………………………………………………. 75

II) 5) f) O significado da luz votiva em contexto egípcio…………….. 81

Capítulo III: Os santuários e os cultos dos deuses alexandrinos ..................... 88

III) 1) Instalação dos cultos nilóticos na Hispânia ................................ 88

III) 2) Serápis. ......................................................................................... 89

III) 3) Os cultos de mistérios .................................................................. 92

III) 4) Os santuários romanos e egípcios – aspectos arquitectónicos e

decorativos .................................................................................... 94

III) 4) a) Os santuários romanos…………………………………………………. 94

III) 4) a) i) O templo romano segundo Vitrúvio…………........... 94

III) 4) a) ii) Vestígios de templos romanos na antiga

Lusitânia………………………………………………………….. 98

III) 4) a) iii) Os santuários greco-romanos – complexo

religioso………………………………………………………….100

III) 4) a) iv) O santuário de Chastellard de Lardiers…………… 101

III) 4) b) Os santuários egípcios……………………………………………..... 104

8

III) 4) b) i) Aspectos arquitectónicos e decorativos………………. 104

III) 4) b) ii) O Serapeu de Óstia…………………………………………… 108

III) 4) b) iii) O “Serapeu de Cânopo” da Villa de Adriano

(Tivoli)……………………………………………………………. 110

III) 4) b) iv) O Iseu de Baelo Claudia (Bolonia, Cádis)………… 115

III) 4) b) v) O Iseu de Italica (Santiponce, Sevilha), o templo dos

deuses alexandrinos de Emporiae (Ampúrias,

Gerona) e o pé serapeico de Conimbriga

(Condeixa-a-Velha)………………………………………….. 117

III) 5) Vivência religiosa num santuário egípcio. ................................. 121

III) 6) As oferendas votivas de Santa Bárbara de Padrões .................. 127

Conclusão ........................................................................................................ 132

Bibliografia .................................................................................................... 136

Lista de Figuras .............................................................................................. 148

9

Introdução

Em Santa Bárbara de Padrões, freguesia do concelho de Castro Verde, distrito de

Beja, foram exumadas no topo de uma colina onde se situa uma igreja e um cemitério,

as ruínas de uma basílica paleocristã (séculos IV-VI d. C.), junto a tanques de formigão

de época anterior, bem como um depósito de lucernas romanas, datadas entre os séculos

I e III d. C.. Esses vestígios arqueológicos foram descobertos aquando das obras de

ampliação do cemitério, em 1984 e 1994, mais exactamente, nas proximidades

imediatas das paredes Norte e Sul do recinto1.

Os arqueólogos M. G. P. Maia e M. Maia2 acreditam que a dita “vala das

lucernas” representa um depósito votivo secundário de um santuário localizado nas suas

proximidades, mais concretamente, no local onde hoje se situa uma igreja de traça

gótica. A presença deste edifício de culto cristão, bem como dos achados de parte de

uma basílica paleocristã (detrás da igreja) e de um menir encontrado deitado no adro,

testemunham a permanência do culto neste determinado local.

Várias centenas ou mesmo milhares de lucernas foram portanto arrecadadas no

depósito de Santa Bárbara, depois de retiradas do local de culto onde inicialmente foram

colocadas, em acto votivo, e dedicadas a uma divindade ali venerada, cujo nome ainda

se desconhece3.

Apesar de não se ter encontrado nenhuma peça epigrafada que nos pudesse

revelar a identidade da divindade aí consagrada4, muitos outros indícios podem no

entanto elucidar-nos sobre esta problemática: etnia da civitas; topografia do terreno;

toponímia do lugar; área geográfica de implantação e influências exteriores; vestígios

arqueológicos dos tanques e do depósito votivo com as suas lucernas, não esquecendo o

menir; e paralelos com outros santuários apresentando características semelhantes.

Após a devida localização do santuário numa determinada civitas, com a

consequente análise da sua etnia e dos paralelos que pode apresentar com outros povos

do Império Romano, várias propostas de divindades serão apresentadas ao longo deste

1 Maia, 2006, p. 41 e Maia e Maia, 1997, pp. 11-12, 13, 15.

2 Maia e Maia, 1997, p. 19.

3 Maia e Maia, 1997, p. 11 do prefácio de T. J. Gamito.

4 Não se encontrou nenhuma epígrafe romana em Santa Bárbara de Padrões, num raio de mais de 10 km

(Maia, 2006, p. 41), e a consulta à epigrafia do concelho de Ferreira do Alentejo, nomeadamente às

inscrições de Peroguarda, e à epigrafia latina do concelho de Castro Verde, muito pobre e proveniente de

áreas afastadas de Santa Bárbara, não deu resultado (Maia e Maia, 1997, p. 22).

10

estudo, desde Táranis/Júpiter a Mitra. Do cruzamento dos indícios, e sobretudo pelo

conteúdo invulgar da favissa de Santa Bárbara (raros são os santuários com depósitos

contendo uma grande quantidade de lucernas votivas) e da localização geográfica de

depósitos semelhantes, bem como da informação valiosa da toponímia do sítio, resultará

uma hipótese final que tende para a existência no nosso santuário de um culto egípcio.

De facto, tudo indica que o local de culto de Santa Bárbara de Padrões foi consagrado

aos grandes deuses alexandrinos Ísis e Serápis.

Tendo-se conhecimento da natureza do local de culto, o estudo irá em seguida

centrar-se nos aspectos arquitectónicos e decorativos que apresentaria o santuário de

Santa Bárbara de Padrões, bem como nos seus aspectos religiosos relativamente à

vivência dos sacerdotes e aos cultos aí praticados, tentando ao longo do caminho

desvendar o significado da luz votiva em contexto egípcio.

11

I) A antiga cidade romana de Arandis/Arannis

I) 1) A localização do santuário

Segundo o arqueólogo M. Maia5, a aldeia de Santa Bárbara de Padrões pode ser

identificada com a antiga cidade romana de Arandis ou Arannis6 no Sul da Lusitânia,

uma afirmação demonstrada pelo estudo da famosa via XXI do Itinerário de Antonino7.

Como uma das provas da sua hipótese, temos um bom troço de calçada romana ainda

visível desta via8 na actual povoação de Santa Catarina da Fonte do Bispo

9 (freguesia do

concelho de Tavira, Faro), na margem da ribeira dos Montes e Lagares, troço que

seguiria depois para Norte por Porto Carvalhoso. Este pedaço de estrada seria aquele

que ligaria a cidade de Arannis a Ossonoba (via XXI).

De facto, numa observação in situ (ver figs. 1 e 2), podemos encontrar vestígios

de summum dorsum10

no dito lugar11

(antes de chegarmos aos vestígios da via romana,

5 Maia, 2006, pp. 39-45.

6 Esta cidade romana é referida no Itinerário de Antonino (426, 3: «Arannis»), pelo anónimo de Ravena

(306, 13: «Aranis»), por Ptolemeu (II, 5, 5: «Arandis») e por Plínio-o-Velho (IV, 118: «Aranditani»).

Para a explicação das diferentes grafias, J. P. Bernardes propõe a hipótese de uma evolução do fonema,

com a queda do “d”, do Alto para o Baixo-Império (Bernardes, 2006, p. 155). É preciso notar que,

enquanto J. P. Bernardes escreve o nome da cidade sem “s”, resultando Aranni ou Arani, A. Guerra

escreve pelo contrário com “s”, resultando Arannis ou Aranis (ver Guerra, 1995, p. 105).

7 Via XXI [Ba]Esuri[s]-Pax Iulia do Itinerário de Antonino (Carneiro, 2009, pp. 83-85), que ligava

Ossonoba a Pax Iulia, passando por Arandis/Arannis, situado, segundo M. Maia, no local de S. Bárbara

de Padrões.

8 De [Ba]Esuri[s] a Pax Iulia por Arannis e Salatia não existe somente uma via mas antes um conjunto de

pelo menos quatro estradas ou troços de estrada que forma este Iter (Maia, 2006, p. 42).

9 Maia, 2006, pp. 42-44.

10 Em termos dos elementos constitutivos de uma calçada romana, temos a descrição de S. Rodrigues:

«Após a delimitação do traçado da estrada no terreno, abria-se uma trincheira ou fossa (sulcus) da largura

que a calçada teria, procedendo-se à extracção das terras até à rocha ou solo firme, onde assentaria o

lastro ou cama do empedrado. Esse lastro constituía-se por uma camada base de terra argilosa e pedras de

vários tamanhos bem compactadas (statumen). A fim de regularizar a superfície, antes de se estabelecer o

pavimento, adicionava-se uma camada composta por saibro, pedras de pequenas e médias dimensões e

cal, tudo bem compactado. Este nucleus ou camada intermédia designava-se por rudus ou ruderatio. A

um nível mais elevado dispunham-se as margines que flanqueavam a calçada, limitando-a e servindo de

contrafortes que impediam o seu esboroamento. Finalmente, pavimentava-se o nível superior (summum dorsum ou summa crusta) que era um pouco abaulado ao centro, permitindo o escoamento das águas das

chuvas para as bermas, sendo o tamanho das lajes do pavimento variado» (Rodrigues, 2004, p. 19). M.

Maia acrescenta que «as calçadas tinham que ser tapadas com terra a fim de permitirem o trânsito. (…)

Lembremo-nos de que as calçadas eram apenas cobertas com terra que, após um período de chuva

intensa, por muito calcada que fosse, teria tendência para ser arrastada pela água deixando as lajes à

vista» (Maia, 2006, p. 40).

11 Relativamente ao caminho para se aceder ao dito troço, referem-se aqui os seguintes passos a serem

seguidos:

12

podemos, desde logo, observar algumas lajes da calçada tombadas no fundo da ribeira).

O troço prolonga-se por vários metros até chegar a uma pequena ponte em cimento que

atravessa a ribeira (cuja base foi feita com lajes romanas reutilizadas para este efeito).

Após passar a ponte, à direita da ribeira, só algumas lajes aparecem muito esparsas para,

em seguida, reaparecer um pequeno troço desta via antes de desaparecer numa densa

vegetação (em que se pode, arrancando o musgo e as ervas, observar a continuação

deste troço até ao talude de uma estrada municipal que lhe passa por cima).

A. Carneiro, segundo a sua análise das vias romanas do Alentejo, baseada numa

releitura da obra de M. Saa sobre o Itinerário de Antonino Pio, refere-se também à

possibilidade de uma identificação de Santa Bárbara de Padrões com Arannis12

, nas vias

XIII e XXI13

.

Para a via XIII – Salacia-Ossonoba (Alcácer do Sal-Faro)14

, o trajecto passaria

talvez por Peroguarda (outro sítio importante para o nosso estudo sobre o santuário de

Santa Bárbara de Padrões) antes de chegar aos arredores da cidade de Pax Iulia. Em

seguida, a partir de Beja, tendo por destino final Ossonoba, a via tomava rumo para Sul

e, antes de entrar na serra algarvia, passava por Santa Bárbara de Padrões (Arannis).

Em relação à via XXI – [Ba]Esuri[s]-Pax Iulia (Castro Marim-Beja), A.

Carneiro nota que Arannis tem oscilado nesta via entre Garvão e Santa Bárbara de

Padrões e que Serapia (cidade incluída na via XXI, logo após Arandis15

), a ter existido,

pode corresponder a Santa Margarida do Sado ou a Peroguarda.

quando se chega a S. Catarina da Fonte do Bispo, vindo de Tavira ou Olhão, toma-se a direcção

de S. Brás de Alportel na primeira rotunda que se apresenta;

em seguida, toma-se a direcção Porto Carvalhoso (a direita) para logo voltar na primeira a

esquerda;

atravessa-se depois uma pequena ponte (a segunda, do lado esquerdo) que vai dar a uma oficina

para carros;

a cerca de 200 metros desta oficina, na margem esquerda da ribeira, aparece o nosso troço

romano (percurso a pé).

12 O autor cita para esta identificação o artigo de J. P. Bernardes (Bernardes, 2006).

13 Carneiro, 2009, pp. 77-85.

14 Possivelmente, segundo este autor, uma mera derivação, ou ramal da via XII (Olisipo-Emerita), a partir

de Salacia (Carneiro, 2009, p. 77).

15 Itinerário da via XXI de Antonino segundo a enumeração de A. Carneiro (2009, p. 83): Esuri, Balsa,

Ossonoba, Arannis, Serapia, Eboram, Serpa, Fines, Arucci, Pax Iulia.

13

Finalmente, J. P. Bernardes demonstra e confirma igualmente a identificação de

Santa Bárbara de Padrões com Arannis16

, salientando a importância que tinha ainda a

via XXI na Idade Média17

, o posicionamento geográfico de Santa Bárbara de Padrões18

e os vestígios arqueológicos desta última cidade, como argumentos fortes para aqui se

situar o locus de Arandis19

.

I) 2) Os Aranditani

I) 2) a) Origem e evolução

Para o conhecimento da origem dos Aranditani, começamos pelas informações

de certos autores da Antiguidade como Plínio-o-Velho, Ptolemeu ou Estrabão,

comunicadas e interpretadas por A. Guerra na sua obra Plínio-o-Velho e a Lusitânia20

.

A cidade de Arandis faria parte, segundo Plínio, dos ópidos estipendiários21

da

Lusitânia, e os seus habitantes, para Ptolemeu, incluíam-se entre os Célticos22

.

A afirmação de Ptolemeu é deveras interessante, sobretudo quando A. Tovar

reconhece no topónimo o sufixo -nt- característico das línguas indo-europeias e o

aproxima linguisticamente dos nomes que ocorrem nas legendas monetárias celtibéricas

A-r-a-ti-s e A-r-a-ti-co-s. Esta observação de A. Tovar é relacionada por A. Guerra com

um passo pliniano que afirma que os Célticos do convento Hispalense da Bética são

16

Bernardes, 2006, pp. 157-161.

17 Os percursos medievais concordam com o traçado viário que se faria pelas imediações de

Almodôvar/Santa Bárbara de Padrões, e esta antiga via romana de ligação Norte-Sul constituiria ainda na

Idade Média uma das principais ligações ao Algarve para pessoas e mercadorias (Bernardes, 2006, pp.

157-158).

18 Santa Bárbara de Padrões distancia-se de Faro por 60 milhas, e de Beja por 35 milhas (Bernardes, 2006,

p. 159).

19 Segundo uma hipótese do autor, o erro do Itinerário de Antonino, relativamente à via XXI, não está na

distância (a problemática das 35 milhas entre Arandis e Salacia) mas na localidade que se segue a

Arannis, isto é, em vez de Salacia, teríamos na realidade Pax Iulia (Bernardes, 2006, pp. 158-159).

20 Guerra, 1995, pp. 29, 34-35, 60, 105-106.

21 Estipendiário: imposto a que estavam sujeitas as províncias do senado ou do povo, enquanto que, para

as do imperador, o imposto era o tributo.

22 Ptolemeu enumera (na sua Geografia) as cidades da Lusitânia que pertenciam aos Célticos:

Lancobriga, Caepiana, Braetolaeum, Mirobriga, Arcobriga, Meribriga, Katraleukos, Arandis (Guerra,

1995, p. 60).

14

descendentes dos Celtiberos e que, pela religião, pela língua e pelos nomes das cidades

– que na Bética se distinguem pelos cognomes – vieram da Lusitânia.

A presença dos Celtas no Alentejo é confirmada também por Estrabão, referindo

que os Célticos, vizinhos dos Lusitanos e dos Turdetanos, dominavam boa parte da

região entre o Tejo e o Guadiana23

.

Ou seja, além da presença dos Conii e dos Turduli no Alentejo, tínhamos

portanto os Celtici24

, de que fariam parte os Aranditani, chegando nesta região nos

finais do século VI ou nos inícios do V a. C., com uma segunda vaga céltica, talvez no

século III a. C. Os Celtas viviam em aglomerados urbanos que, segundo Estrabão, se

reuniam em confederações25

.

Depois, no período romano, e segundo os estudos de J. Alarcão26

, vamos assistir

à ocupação do Alentejo pelos Romanos, provavelmente entre 202 a. C. e 139 a. C., a

que se seguiu uma reorganização administrativa do território no tempo de Augusto. Esta

reorganização incluiu a criação da província da Lusitânia (com a consequente definição

e reajustamento de fronteiras), a fundação de novos centros urbanos (provavelmente

com alguma imigração de cidadãos para permitir a romanização dos indígenas), a

urbanização de oppida preexistentes e, por fim, a delimitação dos territoria das

diferentes civitates (cada uma com sua capital).

É preciso relembrar que os Romanos criaram civitates mais ou menos

coincidentes com os limites das unidades étnicas anteriores e que uma civitas podia ser

criado ex nihilo, quando não havia, numa determinada área, unidade étnica ou política

(relevante) aquando da conquista.

Relativamente ao Sul da Lusitânia (actuais Alentejo e Algarve), a existência de

cidades de longa tradição, e certamente com dimensões consideráveis, tornava inútil a

criação de novos centros (o caso de Pax Iulia é ainda discutível); os existentes foram

renovados, por César ou por Augusto, embora mais provavelmente por este último.

Após o principado de Augusto, também houve novas criações de civitates e

23

Segundo Estrabão (ver Guerra, 1995, p. 60), os Celtas tinham como principal cidade Konistorgis e Pax

Iulia pertencia-lhes (Ptolomeu diverge aí de Estrabão, integrando Pax Iulia no grupo das cidades

turdetanas).

24 A toponímia confirma a existência deste grupo étnico, como no exemplo de Mirobriga ou de Ebora

(Alarcão, 1988, p. 13).

25 Alarcão, 1988, pp. 13-14, 65, 155.

26 Alarcão, 1988, pp. 14-15, 35-37, 40, 52, 67, 74-75, 165.

15

considerável renovação de algumas cidades (no tempo de Calígula, Cláudio ou Nero),

salientando-se, no entanto, o período dos Flávios. De facto, a atribuição do direito latino

às cidades peninsulares (promoção jurídico-administrativa) por Vespasiano terá tido

como consequência a municipalização27

daquelas que ainda não o tinham (promoção de

muitas das cidades romanas da Lusitânia), com a consequente renovação dos edifícios

públicos (como aconteceu com Conimbriga) ou construção de novos monumentos.

Após um período de muita construção ou reconstrução, desde Augusto até aos

inícios do século II d. C., o ritmo da edificação urbana monumental decaiu para, nos

finais do século III d. C. ou nos inícios do IV, entrarmos numa nova fase na história das

cidades romanas da Lusitânia, a do momento da edificação das muralhas (a partir daí,

ultrapassamos a cronologia do nosso santuário).

Quanto ao grau de romanização do território actualmente português, a área do

Algarve, Alentejo e zona litoral entre Tejo e Vouga apresenta-se como

consideravelmente romanizada em relação ao resto do território, composta por gentes de

outra origem (ao contrário do predomínio de uma população indo-europeia pré-céltica

no interior e a Norte) e tendo sofrido influência, nalguns casos intensa, das colonizações

fenícia, grega e cartaginesa.

Segundo J. P. Bernardes28

, a região em que está inserida Santa Bárbara de

Padrões, isto é, a área dos actuais concelhos de Castro Verde, Ourique e Almodôvar,

tem uma ampla tradição de ocupação pré-romana na Idade do Ferro, onde abundavam

locais de culto e povoados importantes. Na época romana, ao contrário de Santa Bárbara

que assume um lugar central dentro dos santuários da região, as manifestações cultuais

dos outros locais de culto tendem a decair. A razão deste fenómeno explica-se pela

passagem da via Ossonoba – Pax Iulia por Arandis onde, até ao momento, não se

conhecem vestígios da Idade do Ferro. A reorganização político-administrativa romana

desta região, com a consequente definição ou reafirmação de centralidades e eixos de

circulação, fez com que espaços antigos tenham perdido a sua primazia a favor de

núcleos antes secundarizados ou mesmo inexistentes. No caso de Arannis, a passagem

de uma via importante, que ligava o Alentejo ao Algarve, teria catalisado as tendências

27

O estatuto de municipium, com assembleia e duúnviros eleitos. Enquanto que nas cidades sem estatuto

municipal tínhamos os magistri ou assembleias locais, nos municípios existiam os duúnviros e ordines

decurionum (Alarcão, 1988, pp. 56, 168).

28 Bernardes, 2006, pp. 156, 162-163.

16

de culto dos locais próximos, como Montel, posicionado sobre a ribeira de Cobres e

sede de culto durante o período do Bronze Final e período Romano Republicano, ou S.

Pedro das Cabeças, um santuário de altura, onde foram recolhidos dezenas de ex-votos

de barro da II Idade do Ferro. Ou seja, para J. P. Bernardes, Arandis aliou a função de

estação viária a uma dimensão de local de culto de acordo com uma tendência algo

frequente no mundo romano.

Por sua vez, para M. Maia29

, Arannis era uma cidade-santuário, cuja componente

religiosa permitia a própria existência da cidade.

Em termos do estatuto da cidade, J. Alarcão propõe a hipótese de Arandis ter

sido uma capital de civitas (e não apenas um simples vicus ou mansio), cujo território se

estenderia pelos actuais concelhos de Ourique, Castro Verde e Odemira. Mas, devido à

ausência de provas arqueológicas (como a epigrafia30

ou elementos arquitectónicos

significativos) que suportem a existência de uma capital de civitas na área daqueles

concelhos31

, a cidade de Arannis resultaria portanto, segundo o mesmo autor, de uma

experiência urbana e administrativa falhada32

.

Pelo contrário, para J. P. Bernardes33

, Arannis não teria sido um centro de

civitas, considerando mais que plausível que nem todos os territórios étnicos se teriam

convertido em civitates com a reforma administrativa de Augusto

Mesmo que se queira admitir que tal tivesse acontecido no plano ou intenção

política, parece que, na prática, tal como pensava J. Alarcão, não teria chegado a

efectivar-se.

J. P. Bernardes propõe que Arannis nunca teria passado de um aglomerado

secundário, afirmando-se principalmente como mansio, isto é, como estação viária

importante na ligação de Ossonoba a Pax Iulia (tornando-se um lugar de refresco e

dormida para os viajantes), e como lugar de culto, devido ao seu santuário visitado por

29

Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.

30 Em termos da epigrafia que nos podia dar preciosas informações sobre Arandis e o nosso santuário, o

arqueólogo M. Maia não encontrou nenhuma epígrafe romana em Santa Bárbara, num raio de mais de 10

km (Maia, 2006, p. 41).

31 Ausência de padrões de magnificência urbana que se impunha aos centros de poder regionais

(Bernardes, 2006, p. 156).

32 Bernardes, 2006, p. 156.

33 Bernardes, 2006, pp. 156-157, 160-161.

17

muitos peregrinos (como o demonstra a grande quantidade de lucernas votivas

encontradas) 34

. A cidade estaria integrada muito provavelmente nos territoria, ou de

Myrtilis, ou de Pax Iulia, inclinando-se J. P. Bernardes pela primeira civitas, pela

simples razão de Arandis se encontrar muito mais próximo de Mértola do que de Beja.

Esta pertença administrativa de Arannis na época romana explicar-se-ia pela

perda de importância da região em que esta estava inserida (concelhos de Castro Verde,

Ourique e Almodôvar), em favor da emergência de grandes núcleos político-

administrativos de forte vocação centralizadora como eram Mértola e Beja. Para além

disso, face à estratégia romanizadora, não justificaria transformar Arandis numa capital

de civitas com tudo o que isso implicaria em termos de meios e recursos. No máximo,

Arannis poderia desempenhar algumas funções de gestão político-administrativa

delegadas pela cidade-capital de que dependia.

I) 2) b) Os Aranditani e os Vocontii

O caso dos Aranditani, cujo santuário se situa a 51 km em linha recta de outro

local de culto com depósito de lucernas votivas (tudo indica ter sido mais pequeno do

que o de Arannis), no sítio da Horta das Faias em Peroguarda (concelho de Ferreira do

Alentejo)35

, lembra muito os “Voconces”36

da Gália do Sudeste, que possuíam dois

santuários também com uma favissa contendo milhares de lucernas, desta vez entre

outros ex-votos. Encontravam-se respectivamente em Lachau37

(o mais pequeno) na

Drôme, frequentado de La Tène III ao século IV d. C. (com um nível de destruição no

século III d. C.)38

, e em Chastellard de Lardiers39

(o maior e a 1000 m de altitude) nos

34

Essas duas funcionalidades (estação viária e local de culto) encontram-se frequentemente associadas,

como no exemplo de certos aglomerados do Sudoeste da Gália (Bernardes, 2006, pp. 160-161).

35 O local de culto da Horta das Faias possui um depósito votivo de lucernas em tudo semelhante ao

santuário de Arandis, com estratigrafia absolutamente paralela. Só a situação topográfica diverge, estando

o santuário de Peroguarda no leito de inundação de uma ribeira, enquanto que o de Santa Bárbara se situa

no alto de uma colina (Viana e Ribeiro, 1957, pp. 17-20; Ribeiro, 1960, pp. 4-5; Maia e Maia, 1997, p.

21). M. G. P. Maia e M. Maia referem-se também a um outro depósito de lucernas (na altura ainda

inédito) nas imediações de Ferreira do Alentejo, ou seja, muito perto do de Peroguarda (Maia e Maia,

1997, p. 21).

36 Ver Carré, 1978, pp. 119, 122-123, 125-128 e nota 109, p. 133.

37 Ver Leglay, 1971, p. 430; Leglay, 1973, pp. 534-535; Lancel, 1975, p. 535; Boucher, 1977, p. 476;

Boucher, 1980, p. 509.

38 Carré, 1978, p. 122.

18

Hautes-Alpes, datando dos inícios do século I até finais do século IV d. C.40

, separados

pela montanha do Lure e por uma distância de 20 km em linha recta. Como já notaram

M. G. P. Maia e M. Maia41

, temos igualmente uma coincidência temporal entre as

lucernas votivas de Santa Bárbara e as de Lachau42

– desde o século I ao III d. C.43

.

Além desta prática da luz votiva, os Vocontii (palavra de origem celta,

significando “os vinte clãs”) eram igualmente de etnia celta e dominavam um vasto

território na Gália do Sudeste, cobrindo parcialmente os departamentos actuais da

Drôme, do Vaucluse, dos Hautes-Alpes e dos Alpes de Haute-Provence.

A religião jogava na vida deste povo um papel muito importante, sobretudo

marcada pela presença no território desta comunidade dos dois grandes templos acima

referidos. No caso de Lachau, o deus do céu era abundantemente honrado no seu

templo, mas nenhuma inscrição o menciona enquanto tal44

. As armas votivas,

encontradas no depósito, remeteriam por sua vez à noção de defesa do território, mesmo

se esta defesa seria mítica45

. Os outros ex-votos, como os utensílios agrícolas,46

e a

fabricação “no local” das lâmpadas votivas (insistindo portanto no lado técnico),

tornavam bem patente as estruturas de trabalho. No caso do santuário de Chastellard de

Lardiers, um deus solar está aí claramente atestado.

39

Ver Rolland, 1962, pp. 655-656; Rolland, 1964, pp. 545-550; Salviat, 1967, pp. 387-393; Salviat, 1970,

p. 448.

40 Salviat, 1967, p. 389.

41 Maia e Maia, 1997, p. 20.

42 Leglay, 1973, p. 535.

43 De notar no entanto que foi encontrado pedaços de lâmpadas tardias que sugerem uma recrudescência

de actividade a partir do início do século IV d. C., após um período de destruição durante a invasão dos

Alamanos (Lancel, 1975, p. 535).

44Entre as interpretações possíveis, poderíamos ter um Júpiter, um deus da roda, ou um deus tópico que

exerceria localmente a função de soberania. É preciso notar que os habitantes do território “voconce” que

se dirigiam a Júpiter Capitolino tinham ligações pouco marcadas com a tradição céltica, ou seja, este deus

parece ter poucos vínculos com o meio indígena (Carré, 1978, pp. 125-126 e nota 47, p. 130).

45 É preciso notar que em numerosas localidades nos “Voconces”, as divindades locais preenchiam no

primeiro século a função de organização do céu, enquanto que no terceiro, elas são geralmente associadas

à função guerreira, com uma nova importância cultual de Marte (assim como a multiplicação dos

teónimos indígenas ao lado do nome latino). Este facto explica-se pela grande instabilidade do século III,

assinalada por numerosas camadas de incêndio, implorando de novo o deus guerreiro na qualidade de

protector do grupo (Carré, 1978, pp. 125 e 127).

46 Os utensílios em miniatura achados no mesmo lugar poderiam ser ex-votos consagrados a um deus que

protege a agricultura do seu poderio militar, ideia expressa pela diferença de tamanho entre os utensílios

agrícolas e as armas: tamanho natural para estas, miniaturas para aqueles (Carré, 1978, p. 122).

19

A religião nos Vocontii aparece, portanto, segundo R. Carré, como um lugar de

reprodução da sua sociedade (os utensílios e as armas encontrados nos santuários fazem

referência a esta comunidade no seu funcionamento, mesmo se isto é um mito) e tem

como finalidade, entre outras, de soldar a comunidade, de tornar bem patente a vida, o

passado, o futuro do grupo.

De facto, os grandes santuários encontram-se na localidade de antigos lugares de

ocupação, indiciando o apego da comunidade à sua história. Para além disso, os altares

votivos e as estátuas divinas são quase todos em pedra do país, sendo o mármore

utilizado apenas para as estátuas decorativas e não para fins religiosos. Numerosos

objectos votivos são em bronze, material que relembra um período anterior de

desenvolvimento.

Por fim, no quadro comunitário dos “Voconces”, certas formas particulares da

vida religiosa, bem como a importância dos grandes santuários, podem ser vistas como

um fenómeno de resistência a Roma. Mas, ao mesmo tempo, e sobretudo no quadro da

comunidade, a religião aparece como um meio eficaz de fazer participar as massas na

romanização.

Como já vimos, J. P. Bernardes inclui a cidade de Arannis numa região com

forte presença de ocupação na Idade do Ferro, nos concelhos de Castro Verde, Ourique

e Almodôvar, e J. Alarcão afirma que o território dos Aranditani se estenderia pelos

actuais concelhos de Ourique, Castro Verde e Odemira. Baseando-se no caso dos

Vocontii, podemos acrescentar também a hipótese do concelho de Ferreira do Alentejo,

ou parte dele, onde se situa o local de culto da Horta das Faias, estar também incluído

no mesmo território que os Aranditani, que talvez formassem uma grande comunidade

tal como os “Voconces”. Muito provavelmente, os dois santuários de Peroguarda e

Arannis estariam ligados por uma mesma via romana, que poderia ser a chamada via

XIII (Salacia-Ossonoba), ou a via XXI ([Ba]Esuri[s]-Pax Iulia). A sede administrativa

seria, como já notou J. P. Bernardes, o grande núcleo urbano de Pax Iulia ou de

Myrtilis. Neste caso, tendemos mais para Pax Iulia, devido à sua posição geográfica

entre essas duas estações (estando muito perto de Peroguarda) e, sobretudo, das

divindades que apresenta esta capital de conventus, quando comparadas com as de

Myrtilis, como veremos mais adiante; lembremos ainda a afirmação de Estrabão, em

20

que a Pax Iulia pertenceria aos Celtici47

.

Claro que a prática da oferta de lucernas votivas não era exclusiva deste grupo

étnico no Sul de Portugal, havendo na Horta do Pinto, em Faro48

, outro depósito com as

mesmas características. Uma situação em tudo semelhante ao Sudeste da Gália onde,

além dos “Voconces”, nos seus santuários de Lachau e Lardiers, temos Alba Helvorum,

capital dos “Helviens”, pequeno povo de origem lígure, onde foi encontrado num

santuário, como um dos seus depósitos votivos, uma cova com um lote importante de

lucernas (depósito este que se formou durante o terceiro quarto do século I. d. C.)49

.

I) 3) Os vestígios arqueológicos

I) 3) a) A cidade

Em 1897, durante uma excursão pelo Baixo Alentejo, J. L. Vasconcelos visitou a

aldeia de Santa Bárbara de Padrões (ver figs. 3-5), comunicando-nos suas notas na

famosa revista do Arqueólogo Português de 193350

.

Pela povoação, o arqueólogo observou, em grande abundância, grandes pedaços

de opus Signinum, na rua e dentro de casas, bem como um grande número de

fragmentos de tijolo, de tégula (tegulae) e de vasilhame, espalhados nos campos que

avizinham a igreja actual de Santa Bárbara, como em cima e à volta dela (salientando os

tijolos grossos, avulsos, encontrados por toda a parte).

Além de sepulturas romanas feitas de tijolo (num quintal), ele observou no sítio

dito do “Comarão” (a Sudoeste da povoação) um lanço de muralha romana construída

em opus incertum (com cerca de 2,91 metros de largura, 1,06 metros de altura e

estendendo-se por 50 metros). Ao pé dela descobriu-se um cano de chumbo (fistula) de

uns 9 metros de comprimento e um palmo de diâmetro.

Perto da igreja encontrou também parte do alicerce de outro muro que, segundo

ele, seria a continuação da muralha do “Comarão” (igual a ele, de pedra rebocada),

fazendo com que a povoação romana fosse cercada por esta muralha que ia do alto para

47

Ao contrário de Ptolemeu que afirma ser turdetana (Guerra, 1995, p. 60).

48 Maia e Maia, 1997, p. 21.

49 Ayala, 1990, pp. 153, 157, 161-162.

50 Vasconcellos, 1933, pp. 231-232.

21

a zona baixa.

Na base do monte em que assenta a igreja de Santa Bárbara, do lado da

povoação actual, observou ainda alicerces de paredes duras, muitos cacos, e uma coluna

antiga que lhe parece romana (tem pregada na base, diz o autor, uma cruz de ferro).

Na povoação, J. L. Vasconcelos não encontrou nenhuma moeda romana (apesar

de ter ouvido relatos que afirmavam a sua existência), nem observou nenhum peso de

barro (que, diz ele, são tão frequentes nas nossas estações romanas), nem inscrições.

Por fim, da sua “carteira”, acrescenta que na parede do adro havia uma base de

coluna romana, de mármore, igual à da cruz, e que ao pé da igreja se via a parte superior

e circular de um poço de opus Signinum, de mais de 1 metro de diâmetro51

.

Actualmente, certos vestígios romanos referidos por J. L. Vasconcelos podem

ser ainda observados na povoação de Santa Bárbara de Padrões, mas outros

desapareceram por completo.

Relativamente aos «grandes pedaços de opus Signinum», achados «em tal

abundância, que o povo já lhes chama “betume”»52

, além dos encontrados nos tanques,

M. Maia confirma esta forte presença nos muros das hortas da aldeia, reaproveitados

como material de construção53

.

Por sua vez, em termos dos fragmentos em barro, J. P. Bernardes54

afirma que,

pelas vertentes da colina onde está assente a igreja gótica, sobretudo de nascente para

poente, podemos encontrar numerosos fragmentos de cerâmica de construção, muitos

dos quais integrados nos muros divisórios de propriedades e de quintais da povoação.

De facto, numa observação in situ (ver figs. 6-9), podemos confirmar esta

observação de J. P. Bernardes. Para além disso, na zona que fica a Noroeste da igreja

(do topo da colina até à estrada do lado Norte), temos também uma área denominada de

“Telheiro”, apresentando várias dezenas de cacos de cerâmica (infelizmente, uma

grande parte desta zona já foi completamente remexida e recoberta por terra devido às

51 J. L. Vasconcelos precisa no entanto a sua dúvida sobre esta sua última nota, tendo dúvidas de qual

igreja se trata, a de Santa Bárbara ou outra (Vasconcellos, 1933, p. 232).

52 Vasconcellos, 1933, p. 231.

53 Maia, 2006, p. 41.

54 Bernardes, 2006, p. 160.

22

obras de uma rotunda). Segundo M. Maia55

, esses fragmentos grossos de cerâmica

representam pedaços de telhas romanas, sendo também nesta zona (do “Telheiro”) a

provável localização de fornos de produção de telhas cerâmica para a cidade de Arandis.

Para a «base de coluna, de mármore, romana, igual à da cruz»56

na parede do

adro, tanto M. Maia57

como J. P. Bernardes58

confirmam a existência desta peça

romana. Numa observação in situ (ver fig. 10), podemos de facto ver esta peça

marmórea assente sobre o muro do adro, face ao portal de entrada da igreja, e servindo

actualmente de base a um cruzeiro (a cruz actual que fica por cima não é composta da

mesma pedra). Mede 64,5 cm de largura e 93 cm de comprimento (estando quebrada, ou

mais precisamente cortada para reutilização, o que não permite conhecer a verdadeira

altura da peça), feita com mármore dito “fétido” de cor acinzentada clara e veios

cinzentos, da zona de S. Trigaches ou S. Brissos, e com uma molduração ainda existente

na parte superior. Tanto pode ser considerada como uma base de um altar, ou a base de

um monumento honorífico, como tratar-se na realidade de um elemento arquitectónico,

mais precisamente, de uma base de coluna de um imponente edifício.

Além desta peça marmórea, J. P. Bernardes acrescenta ainda que «o empedrado

do adro da igreja é constituído por muitas pedras reaproveitadas algumas das quais,

apresentando acentuado desgaste, desempenharam diversas funções em vãos de

edifícios»59

(ver figs. 11-14) e que o grande monólito do adro (ver figs. 15-18), que M.

G. P. Maia e M. Maia interpretaram como sendo um menir60

, podia representar na

realidade um «elemento de um entablamento ou lintel de qualquer grande edifício, até

pelo entalhe que apresenta num dos lados à maneira de encaixe ou de superfície de

apoio sobre outro elemento»61

(tendemos nós para a primeira hipótese, o do menir). Por

seu lado, M. Maia confirma a inexistência de qualquer espécie de vestígios romanos no

55

Informações dadas por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.

56 Vasconcellos, 1933, pp. 231-232.

57As informações sobre a localização, morfologia e identificação desta peça marmórea foram-me

igualmente comunicadas por M. Maia no Museu da Lucerna em Castro Verde.

58 Bernardes, 2006, p. 161.

59 Bernardes, 2006, p. 160.

60 Maia e Maia, 1997, p. 19.

61 Bernardes, 2006, p. 161.

23

interior da igreja62

. No exterior, estando as paredes do templo cristão inteiramente

rebocadas a cal branco, nenhuma análise pode ser feita em relação aos tipos de pedras

utilizadas para a construção do edifício religioso.

Em relação «a parte superior e circular de um poço de opus Signinum»63

ao pé

da igreja, J. P. Bernardes64

pensa que se trata talvez de um poço antiquíssimo, situado

quase na base da vertente (Oeste) da colina da igreja, infelizmente desvirtuado

recentemente por restauros que lhe retiraram o bocal de pedra «com sulcos profundos

provocados pelo constante passar das cordas dos baldes mergulhados no seu interior» e

lhe refizeram a sua plataforma que apresentava anteriormente vestígios de opus

Signinum «que rodeavam pias escavadas na rocha para dar de beber aos animais» (ver

fig. 19).

Ao observar in situ (ver figs. 20 e 21) as partes do bocal deixadas no chão (só

dois pedaços, um pequeno e outro maior, restaram desta estrutura), e virando a pedra (a

mais pequena) do outro lado (de maneira a poder ver a parte de baixo), podemos

observar a zona em que o bocal foi removido do poço, apresentando uma superfície

ainda não desgastada pelo tempo. As características da pedra que se apresentam são em

tudo semelhantes às da base do cruzeiro, isto é, do mármore dito “fétido”. Ou seja, pelos

vestígios (hoje desaparecidos) de opus Signinum e pelo antigo bocal em mármore da

região de S. Brissos ou S. Trigaches, tudo indica que o poço pode ter uma origem

efectivamente romana.

Finalmente, «as sepulturas feitas de tijolo, ao parecer, romanas» que J. L.

Vasconcelos65

observou num quintal parecem ter desaparecido. O mesmo destino

sofreram os alicerces de paredes duras, bem como a coluna romana (aquela que tem

pregada na base uma cruz de ferro), que estavam situados na base do monte da igreja,

para o lado da povoação actual. Em termos do troço de grossa muralha do “Comarão”,

que M. Maia afirma estar hoje totalmente destruído66

, J. P. Bernardes67

pensa que a dita

62

Afirmação dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.

63 Vasconcellos, 1933, pp. 231-232.

64 Bernardes, 2006, p. 161.

65 Vasconcellos, 1933, pp. 231-232.

66 Maia, 2006, p. 41.

67 Bernardes, 2006, p. 159.

24

muralha corresponderia na realidade à parede de contenção de uma antiga barragem

(referida igualmente por M. G. P. Maia e M. Maia68

), mencionada na tradição local, e

que actualmente estará oculta sob a estrada municipal que conduz às minas de Neves-

Corvo.

Dos vestígios arqueológicos encontrados em Santa Bárbara de Padrões, deduziu-

se que no alto da colina, sob a actual igreja gótica, se encontraria o santuário69

, mais

precisamente, o templo principal da divindade. Este último estaria orientado na direcção

Este-Oeste (como é comum nos templos romanos)70

. No entanto, nos casos de espaços

sagrados comportando depósitos secundários de lucernas, M. G. P. Maia e M. Maia71

colocam a hipótese da existência nesses sítios de um simples temenos, provavelmente

desprovido de cobertura (santuário ao ar livre), devido à coincidência de não se terem

identificado (segundo as informações obtidas na altura) edifícios de culto perto de

qualquer dos depósitos conhecidos: os depósitos votivos da Horta das Faias e Horta do

Pinto, respectivamente em Peroguarda e Faro; os de Chastellard de Lardiers e Lachau,

no Sudeste da Gália; e os de Israel e do monte Ida em Creta72

. As componentes

estruturais do santuário que sobreviveram às vicissitudes do tempo são representadas

principalmente pela favissa, localizada a Sul do cemitério, e pelos três tanques, situados

desta vez a Norte do cemitério, ou seja, na vertente oposta à do depósito votivo de

lucernas e distando dele cerca de 100 metros73

. Encostado aos tanques, existia

igualmente um grande e longo edifício74

, datado dos séculos IV a VI d. C., interpretado

68

Maia e Maia, 1997, p. 13.

69 Maia e Maia, 1997, pp. 19 e 22 e Bernardes, 2006, p. 160.

70 Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde (ver

igualmente o Tratado de Arquitectura de Vitrúvio em Maciel, 2009, pp. 152-153).

71 Maia e Maia, 1997, p. 22.

72 Maia e Maia, 1997, pp. 20-21.

73 Maia e Maia, 1997, p. 22.

74 Edifício «com vasta abside semi-circular e pequenos anexos quadrangulares» (Maia e Maia, 1997, p.

22). Numa observação in situ, podemos observar que a escavação de M. G. P. Maia e M. Maia pôs a

descoberto uma parte da nave da dita basílica (a entrada far-se-ia para Norte), bem como o topo deste

edifício composto por uma abside oblonga (voltada para Sul), ladeada por 4 compartimentos que,

segundo uma hipótese de M. Maia, seriam talvez utilizados como martyrium, mas não foi encontrado em

nenhum deles restos de ossos. O edifício, na parte que foi escavada, foi construído em aparelho muito

irregular, diferenciando-se do opus incertum dos tanques.

25

como sendo muito provavelmente uma basílica paleocristã75

, orientada no sentido

Norte-Sul.

Relativamente à povoação romana propriamente dita, tanto J. P. Bernardes76

como M. Maia77

acreditam que ela se desenvolveria pelas vertentes da dita colina. Mas,

enquanto o primeiro autor afirma um desenvolvimento para poente até à linha de água a

partir de onde começam as casas da povoação de Santa Bárbara (sentido Este-Oeste,

ficando o santuário no topo da colina)78

, o segundo acredita que a povoação se

estenderia mais no sentido Nordeste-Sudoeste, ficando o santuário mais ou menos no

centro do aglomerado. Transposta a linha de água (para poente) e continuando com a

interpretação de J. P. Bernardes, situar-se-ia a necrópole (baseando-se o autor nas

observações de J. L. Vasconcelos sobre sepulturas romanas feitas de tijolo num quintal)

e, a Sudoeste da povoação, ficaria uma grande barragem construída em alvenaria (opus

incertum), permitindo «o armazenamento de grandes quantidades de água necessária à

irrigação dos campos, ao abastecimento das populações e termas de que não se

conhecem vestígios»79

.

I) 3) b) O depósito votivo e os tanques

Baseando-nos no exemplo do santuário de Lardiers, em que a favissa das

lucernas se encontrava fora do recinto sagrado, mas junto a uma entrada para o temenos,

do lado Sul, e encostada a um muro pré-romano que o separava e o delimitava da zona

de passagem para a via sacra80

, podemos colocar a hipótese do nosso depósito votivo,

igualmente situado do lado Sul do santuário (na zona meridional do cemitério de Santa

Bárbara), se encontrar também fora do temenos e eventualmente junto a uma entrada.

75

Maia e Maia, 1997, p. 22.

76 Bernardes, 2006, p. 161.

77 Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.

78 A área arqueológica estende-se sobretudo na direcção nascente-poente pelas vertentes da colina, numa

extensão de 6 a 7 hectares (Bernardes, 2006, p. 160).

79 Bernardes, 2006, p. 161.

80 Ver capítulo III) 4) a) iv).

26

Segundo a descrição de M. G. P. Maia e M. Maia81

, a favissa apresenta-se como

«um recinto, em parte natural, em parte construído, com 15 m de comprimento e cerca

de 2 m de largura, e com o fundo em forma de V muito irregular. O seu eixo maior

orienta-se no sentido Norte-Sul, aproximadamente» (ver figs 22-24).

A cobertura romana desta “vala das lucernas” era composta simplesmente por

pedras pequenas e fragmentos de cerâmica grosseira, com cal, tornando-se esta

superfície muito mais densa quando se distanciava da parede Este da favissa82

.

O limite Oeste deste recinto é constituído por uma rocha natural que forma uma

falha, mais ou menos abrupta, no xisto friável da região, resultando num acentuado e

extenso declive. Por sua vez, os limites Este, Norte e Sul são compostos por muros «de

aparelho irregular e de alvenaria grosseira, onde foram utilizadas pedras não trabalhadas

e de várias dimensões e formatos, juntamente com telhas e tijolos, tudo aglutinado com

barro»83

. De notar que a parede do limite Este (medindo cerca de 60 cm de largura)

apresentou pequenos canais na base, interpretados como orifícios de escoamento de

águas pluviais.

Esta estrutura estreita, em corredor, foi fundada em meados do século I d. C.,

tendo havido no século III um acrescento de paredes no seu topo Sul, constituindo outro

recinto84

, com 15-20 cm de profundidade e estratigrafia própria.

Por fim, o depósito em questão apresenta «a variedade habitual das lucernas85

desta época: com ou sem volutas no bico, com ou sem asa ou ansa, com ou sem aletas

laterais, com decoração predominantemente figurativa, por vezes com motivos vegetais,

81

Maia e Maia, 1997, pp. 16-19.

82 A estratigrafia da 3ª camada ao longo da parede Este do recinto, não excedendo uma distância, no

sentido lateral para Oeste, de 80-100 cm, era «constituída por elementos líticos de pequenas dimensões,

bem como por fragmentos de ânforas, dolia, tegulae e lateres. Estes elementos não formavam uma

camada compacta, mas estavam suficientemente próximos para constituírem como que uma ténue

cobertura. Nódulos de cal dispersos confirmam esta impressão» (Maia e Maia, 1997, p. 16). A 3ª camada

que se prolongava mais para Oeste e a 1, 30 m da parede Este, era também semelhante à observada

anteriormente, mas era muito mais densa, tomando «o aspecto de uma calçada compacta, formada por

pequenas pedras e fragmentos rolados de lateres, ânforas e cerâmica comum» (Maia e Maia, 1997, p. 19).

83 Maia e Maia, 1997, p. 16.

84 Neste acrescento rectangular para Sul da “vala das lucernas”, a parede Este do anterior recinto foi

prolongada por mais 2,80 m e a parede Sul, embora não tivesse sido demolida, deixou de ser utilizada e

foi substituída por outra, apenas com 40 cm de comprimento. Devido à cota muito mais elevada da rocha

natural, as deposições eram aí muito mais superficiais (Maia e Maia, 1997, p. 19).

85 A palavra latina lucerna corresponde à grega lychnus e significa qualquer utensílio iluminante com

combustível líquido, geralmente o azeite (Maia e Maia, 1997, p. 24).

27

que se localiza no disco ou tampa do reservatório»86

. Os armazenamentos cessaram nos

finais do século III d. C.87

Relativamente agora à estratigrafia-tipo88

, ao longo da parede Este da favissa

(deposições literalmente coladas à parede), é na 4ª camada, constituída por terra escura,

húmida e branda, e datada dos inícios, até finais do século III d. C., que começamos a

encontrar uma grande quantidade de lucernas, de reduzidas dimensões, sendo a 3ª

camada a cobertura do depósito.

Apesar do achado de bastantes exemplares inteiros nesta 4ª camada89

, a

particularidade nas deposições do século III (feitas directamente sobre as do século II)

reside no facto de quase todas as lucernas desta época terem sido, ao que parece,

quebradas propositadamente, talvez fazendo parte de um ritual90

.

Na 5ª camada, pelo contrário, constituída por terra negra, com muitos carvões,

cinzas e esquírolas ósseas91

(envolvendo as lâmpadas), encontramos desta vez lucernas

que foram lá colocadas inteiras e que não foram fragmentadas de antigo92

, depositadas

continuada e ininterruptamente desde meados do século I, até finais do século II d. C.

As deposições de lucernas nesta camada «assumiam uma forma grosso modo

circular e havia casos em que se justapunham e outros em que guardavam entre si uma

distância de 20-30 cm. (…) As lucernas foram colocadas de forma a poupar espaço,

disco contra disco e com cada asa (quando existiam) a acompanhar a curvatura do

reservatório do par. Estes pares formavam círculos com diâmetros de 80 a 100 cm,

aproximadamente e continham um número variável de lucernas, mas que muitas vezes

86

Maia e Maia, 1997, p. 11 do prefácio de T. J. Gamito.

87 Maia e Maia, 1997, p. 22.

88 Maia e Maia, 1997, pp. 16-19.

89 «Geralmente, os exemplares de lucernas encontrados intactos estavam protegidos por semi-círculos

irregulares de pedras ou pedras e fragmentos de tijolos, em dois casos, de quadrante» (Maia e Maia, 1997,

p. 16).

90 Maia e Maia, 1997, p. 80.

91 M. Maia, nas conversas que tivemos sobre este assunto no Museu da Lucerna, pensa que os fragmentos

ósseos de animais podiam pertencer a aves ou ruminantes como carneiros, conotando-se talvez com

rituais de sacrifícios.

92 «Foi esta 5ª camada que forneceu a maior parte dos exemplares inteiros ou apenas fragmentados mas

com todos os pedaços in situ, sinal evidente que lá foram colocados inteiros» (Maia e Maia, 1997, p. 18).

28

ia além das 200»93

. Foram registados 13 conjuntos “circulares” deste tipo.

Também encontramos nesta camada alguns fragmentos de vidro, quase todos de

pequenos unguentários, e algumas moedas da dinastia Antonina.

Por fim, a 6ª camada, muito dura, chegando a atingir os 20 cm de espessura, e

constituída por pedras e fragmentos rolados de cerâmica romana grosseira, tudo

conglomerado com terra negra e húmida, representaria o pavimento (pouco cuidado)

sobre o qual se faziam as deposições.

Podemos acrescentar também que, enquanto as deposições dos séculos I e II

seguiam ao longo da parede Este do recinto, não excedendo uma distância, no sentido

lateral para Oeste de 80-100 cm, as deposições do século III prolongavam-se mais para

poente, aproveitando a rocha que tinha aí uma cota muito mais elevada. Aí a 4ª camada,

além de estar completamente preenchida por fragmentos de pequenas lucernas, continha

também muitos fragmentos de vidro e as únicas agulhas de osso da jazida.

Por sua vez, na área situada a 10 m da parede Sul da zona nova do cemitério, em

vez das deposições se adossarem à parede Este do recinto, estendem-se numa área de

cerca de 8 m2, aproveitando uma profunda cavidade natural. Esta depressão na rocha foi

completamente preenchida, na 5ª camada (sempre caracterizada por terra negra, com

muita cinza e carvões, juntamente com fragmentos ósseos de animais), por uma massa

ininterrupta de lucernas dos finais do século I e de todo o século II d. C., não tendo

havido aqui deposições autónomas. Só raros fragmentos de cerâmica comum e alguns

outros de Sigillata hispânica se intercalavam entre candeias que se sucediam, quer no

sentido lateral, quer no vertical. Blocos de pedra foram colocados na 6ª camada com o

intuito de nivelar um pouco a vala. De notar por fim que na 4ª camada, tegulae em

fragmentos grandes, juntamente com imbrices quase inteiros e grandes pedaços de

ânforas e dolia serviram de base a deposições do século III.

Por fim, no recinto tardio do século III, «a 3ª camada simplesmente não existia e

era substituída por um espaço de deposição de lucernas inteiras, pequenas e

iconograficamente pobres, esparsamente colocadas. Por baixo e nos intervalos, havia

milhares de fragmentos que cremos resultantes de quebras intencionais. Trata-se do

nível do século III que identificamos e descrevemos, na estratigrafia-tipo como 4ª

camada»94

.

93

Maia e Maia, 1997, p. 18.

94 Maia e Maia, 1997, p. 19.

29

Em termos das lucernas propriamente ditas e segundo as análises de M. G. P.

Maia e M. Maia95

, um número significativo apresentou-se com volutas e discus,

possuindo muitas delas uma decoração figurativa em baixos-relevos no tampo, em

peças com características tecnológicas de outras províncias do Império Romano (ver fig.

25).

Umas eram oriundas do Norte de África ou da Península Itálica e outras, de

produção regional, oriundas do Sudoeste peninsular.

Para além dessas candeias de exportação, algumas peças de execução muito

pobre podem indiciar também uma fabricação local, indígena96

(ou serem simplesmente

de manufactura regional), que atestariam um certo carácter popular da peregrinação97

.

Ou seja, segundo os tipos tecnológicos, pastas e marcas de fabrico das candeias

de Santa Bárbara, podemos afirmar que não havia uma olaria perto do santuário

dedicada à fabricação e venda de lucernas ex-votos, como no caso do santuário do

“Luminaire” em Lachau98

. As lucernas regionais ou de outras províncias do Império

Romano eram certamente adquiridas em pequenas lojas ou pelas feiras e mercados99

,

talvez podendo existir uma loja (ou várias) nas proximidades do santuário para a venda

especializada de candeias votivas.

Tanto o santuário de Santa Bárbara, como o de Peroguarda e de Faro, foram

abastecidos em lucernas pela mesma rota comercial100

– os produtos chegavam do

Mediterrâneo por via marítima até Balsa ou Ossonoba, seguindo depois por via

95

Ver Maia e Maia, 1997, pp. 26-30.

96 Ao lado dos tipos de formas constantes, bem definidos e bem acabados, das grandes fábricas, podia-se

encontrar também lâmpadas de aspecto pouco cuidado ou de formas incorrectas, com ornatos grosseiros.

Trata-se de peças de fabrico popular, indígena, imitando os tipos clássicos ou combinando-os de um

modo diferente (Almeida, 1952, nota 111-A p. 80).

97 Na favissa do Chastellard de Lardiers, ao lado das lucernas de qualidade, encontram-se igualmente uma

quantidade de outras, rudimentares e pobres, que, para H. Rolland, atestam o carácter popular da

peregrinação (Rolland, 1962, p. 655).

98 Existiam efectivamente oficinas orientadas para o “mercado” religioso. Tomamos como exemplo

aquelas dedicadas às grinaldas e coroas: as pinturas da Domus Vettiorum mostrando Putti entrançando

coroas e grinaldas tendem a provar que existia em Pompeia uma actividade artesanal orientada para este

tipo de mercado; Ovídio (Fast. VI, 792) evoca também uma oficina destinada ao entrançamento de

grinaldas e coroas perto do santuário dos Lares em Roma (Laforge, 2009, nota 212 p. 125).

99 Almeida, 1952, p. 61.

100 Maia e Maia, 1997, p. 21.

30

terrestre101

.

Para além do depósito votivo, para Norte do cemitério e encostados ao muro

Oeste, de aparelho muito irregular, da dita basílica paleocristã (na zona da abside e parte

da nave), podemos também observar in situ (ver figs. 26-29) a presença de três tanques,

cujas paredes medem aproximadamente de 52,5 a 60 cm de largura, revestidas na sua

parte interior por uma camada de opus Signinum. Todos tinham a parede Este como

limite comum, apresentando-se a parte Oeste dos tanques, particularmente para dois

daqueles mais meridionais, muito danificada e ainda por escavar.

Colados uns aos outros e orientados para Norte, os tanques apresentam

dimensões e até plantas diferentes: o tanque mais a Sul é estreito e oblongo, medindo

cerca de 2,1 m Sul-Norte, para 6 m Este-Oeste até à parede do cemitério que parece ter

interrompido o seu percurso, ou mais provavelmente ter sido construído por cima do seu

limite Oeste (ver figs. 30 e 31); o tanque intermédio mede por sua vez cerca de 4,23 m

Sul-Norte e muito provavelmente condizia na sua largura com o tanque mais

meridional, medindo então cerca de 6 m Este-Oeste (ver fig. 32); por fim, o tanque mais

a Norte, medindo cerca de 5,44 m Sul-Norte, apresenta alicerces de um muro a 4,90 m

para Oeste (ver fig. 33), fazendo com que a sua largura não condiga com os tanques

mais meridionais. Para além disso, podemos observar ainda neste último tanque a

existência de uma entrada no seu lado poente, na extremidade Norte do muro Oeste (ver

fig. 34), e os alicerces de uma grande base em opus incertum no seu ângulo Sudoeste,

medindo cerca de 1,36 m Sul-Norte para 2,30 m Este-Oeste (ver figs. 35 e 36).

Podemos-nos perguntar então se este tanque, ou construção parcialmente destinado a

receber água, não terá sido construído posteriormente aos dois primeiros tanques mais

meridionais que parecem formar um conjunto homogéneo. O tanque intermédio possui

igualmente uma base em opus incertum, mas muito mais pequena (0,68 m Sul-Norte; o

lado Oeste está muito danificado, não permitindo a sua medição exacta no sentido Este-

Oeste), encostada à parede Sul, muito provavelmente pelo meio (ver figs. 37 e 38). Para

além da base, este tanque apresenta também, do lado poente, várias secções de cerâmica

em cunha semi-enterradas no chão (com espessura medindo cerca de 6 cm), podendo

indiciar a presença nas proximidades imediatas de uma estrutura com colunas em opus

testaceum, isto é, colunas de tijolos cozidos cujo núcleo cilíndrico é formado pela união

101

Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.

31

de peças de cerâmica em quarto de círculo102

(ver figs. 39 e 40). Será que a base do

tanque mais a Norte suportava esta dita estrutura? Também alguns fragmentos do que

parecem ser telhas de barro planas (tegulae) podem ser encontrados no sítio103

(ver fig.

41).

Relativamente aos vestígios abundantes de opus Signinum, enquanto os dois

tanques mais a Norte apresentam este revestimento colocado verticalmente à parede

numa camada que podia variar de espessura (de 3,3 até cerca de 10 cm), o tanque mais a

Sul, cujo nível do solo é aí mais alto do que os outros tanques, apresenta uma colocação

diferente: do lado da parede Norte, podemos observar que a camada de formigão grosso

começa do topo do muro para formar depois um declive suave até ao chão, lembrando a

extremidade em bico das bacias superiores de fontes monumentais (ver figs. 42-44).

Para além disso, este último tanque está ligado no seu lado Este por uma conduta (a

abertura deste canal mede aproximativamente de 27 a 28 cm de largura) com sentido

Este-Oeste, acabando por ficar, aquando da construção da basílica paleocristã, debaixo

das lajes da zona do topo da abside, bem como dos dois compartimentos superiores que

ladeiam esta última (ver figs. 45 e 46). Certamente que existiria no conjunto desses

tanques outra conduta para a evacuação da água. Tudo leva a crer, por conseguinte, que

o tanque mais meridional se destinava a receber a água de uma fonte qualquer, como se

fosse um reservatório, para logo em seguida, subindo a água rapidamente ao longo do

declive em opus Signinum, verter a água no tanque principal que lhe estava anexo (o

tanque intermédio), que por sua vez alimentava o tanque mais a Norte.

Para a problemática do abastecimento de água, M. G. P. Maia e M. Maia

propõem a «existência de uma nascente, talvez sulfurosa, perto dali e que, entretanto,

tenha secado»104

.

Mais tarde, sob o domínio da nova religião cristã, esses tanques, escapando à

destruição de que certamente foi vítima o templo pagão, teriam sido provavelmente

reutilizados como baptistério da presente basílica que lhe está anexo.

102

Ver Ginouvès e Martin, 1985, pp. 53, 100 e estampa 25 nº 3.

103 Ver Ginouvès, 1992, estampa 82 nº 1, para as formas comuns de tegulae (telha de barro plana com

rebordo) e imbrex (telha curva).

104 Maia e Maia, 1997, p. 22.

32

II) A(s) divindade(s) venerada(s) no santuário de Santa Bárbara

de Padrões – os indícios

Em termos da(s) divindade(s) venerada(s) no santuário de Santa Bárbara, M. G.

P. Maia e M. Maia105

propõem como hipótese uma qualquer relação com o culto das

águas, culto este bem documentado na Península Ibérica. Esta proposta baseia-se na

existência dos tanques e possível nascente sulfurosa no temenos de Santa Bárbara, bem

como pelo facto do santuário da Horta das Faias, em Peroguarda, se situar a não mais de

35 m de um curso de água.

Também estes autores se referem à importância da luz nos rituais egípcios, quer

de Ísis, quer de Serápis, e no culto de Cíbele, notando ainda que o Sul de Portugal

deixou vestígios de culto a essas divindades orientais, sobressaindo a cidade de Beja

com vestígios de Cíbele, Ísis, Serápis e Mitra106

.

Igualmente importante para esta problemática, numa primeira abordagem, é a

pertença dos Aranditani ao grupo étnico dos Celtici e as suas semelhanças com os

Vocontii da Narbonense. Ou seja, dois povos de origem celta, instalados na zona de

influência da bacia mediterrânica, e possuindo cada um (se aceitamos a hipótese de

Peroguarda pertencer efectivamente ao mesmo território ou comunidade que os

Aranditani) dois santuários de relevo onde foram recolhidas numa favissa uma enorme

quantidade de lucernas votivas.

II) 1) Táranis/Júpiter

II) 1) a) Os Celtas do Sudeste da Gália e o santuário

de Chastellard de Lardiers

Relativamente aos Celtas, e tomando como exemplo os povos alpinos (em que

estão incluìdos os “Voconces”), é preciso relembrar que a natureza divinizada (numina

das pedras, águas, montanhas, entre outras), as divindades tópicas protectoras e as

deusas mães ocupavam um lugar importante nas suas devoções, constituindo as

105

Maia e Maia, 1997, p. 22.

106 Maia e Maia, 1997, pp. 22-23.

33

divindades locais o essencial do seu fundo religioso107

. Sabemos igualmente que, para

os Celtas, como para os seus antepassados, os deuses comunicavam com os homens

através de manifestações naturais, singularidades das paisagens ou fenómenos

perturbadores. As áreas de culto achavam lugar no essencial no território, em lugares

maiores para os homens (limites de povos, estradas ou vau…) ou supostamente

marcados pelo cunho de uma divindade (jorro das águas, impacto do raio, curiosidade

geológica…). Muitas vezes, a par da epigrafia romana e da onomástica, é a descoberta

de um santuário romano que permite inferir a existência de um lugar devocional

anterior, somente caracterizado, como no caso do Chastellard de Lardiers, pela presença

de mobiliários do século II ou I a. C. As edificações perenes não constituem a norma no

processo de gestão dos lugares de culto célticos e das oferendas feitas aos deuses. É o

meio ambiente contextual que compõe o receptáculo fundamental dos depósitos, sem

necessidade de protecção particular108

. É dizer que a noção de “templo”, enquanto

espaço construído e fechado, não acha lugar na concepção religiosa tradicional dos

Celtas (o fanum na Gália é uma evolução tardia do recinto delimitado e do seu altar em

cova)109

.

No Sudeste da Gália, os lugares de culto celtas erigidos sobre eminências em

zonas montanhosas parecem numerosos, respondendo este facto à uma necessidade “de

elevação” em direcção às divindades celestes. O fenómeno é recorrente igualmente nas

zonas mais baixas dos sectores costeiros ou deltaicos, onde modestas alturas, colinas,

escamas rochosas ou rebordos de planuras, podem ser utilizadas para a implantação de

lugares de culto110

. Ora, o nosso santuário situa-se igualmente no topo de uma colina,

indiciando uma possível devoção a uma divindade celeste ou solar, como Belenos, o

deus gaulês do Sol111

, ou Táranis112

e Sucellus113

, deuses celtas do céu tonante (não há

107

Tournie, 2001, pp. 178-179.

108 Reconhecido de todos, o lugar podia ser eventualmente delimitado simbolicamente por pequenos

bétilos ou vigotas em madeira, cordinhas, fios de lã…No entanto, o melhor garante era a sacralização do

lugar no território para a divindade ela mesma. Quem a infringir terá como pena uma morte das mais

terríveis (Arcelin et al., 2003, pp. 178-179).

109 Arcelin et al., 2003, pp. 173, 177, 179.

110 Arcelin et al., 2003, p. 179.

111 Gricourt e Hollard, 1990, p. 313.

112 O nome de Táranis deriva do nome do trovão em céltico: irl. tarann; gal. taran. A dispersão geográfica

deste deus no domínio celta é notável – França, antiga Jugoslávia, Alemanha e talvez Inglaterra – e vai ao

34

no sítio em questão outro elemento natural que se poderia destacar a não ser a colina).

No caso do santuário em altura de Chastellard de Lardiers114

e segundo R.

Carré115

, os numerosos objectos votivos recolhidos na favissa e na via sagrada, em que

os mais representativos são uns cinquenta milhares de lucernas, milhares de argolas

diversas e representações figuradas de serpentes116

(não esquecendo os 50 discos solares

fragmentados117

), indicam um contexto de culto solar. Em termos epigráficos, só temos

o nome da divindade Bel[ado]118

inscrito num altar que lhe foi dedicado e que se

encontrava num dos nichos da via sagrada, datável do segundo século da nossa era.

Mas, para R. Carrée, os objectos depositados pelos devotos neste santuário remeter-nos-

iam antes ao deus da roda, isto é, Táranis119

. A roda, principal emblema deste deus,

podia evocar para os Celtas, ou o Sol, ou o trovão, ou o raio120

.

Para além disso, I. Tournie121

acrescenta que as oferendas em lucernas

encontro da ideia de ver em Táranis uma divindade secundária local (Gricourt e Hollard, 1990, pp. 291-

292).

113 Ainda que tenha algumas ligações de parentesco o aproximando de Táranis-Júpiter, o deus ao (fr.)

“maillet” (um maço de pau com duas cabeças) apresentava-se como uma entidade distinta com o nome de

Sucellus (Gricourt e Hollard, 1990, p. 294).

114 Chastellard de Lardiers era um antigo oppidum (de três recintos e habitado desde o fim da Idade do

Bronze) situado no limite dos “Albiques” e dos “Voconces” e a cerca de 1000 m de altitude. No inìcio do

primeiro século da nossa era, a aldeia de altura é abandonada por seus ocupantes que se instalam nos dois

vales, a Este e a Oeste do oppidum. Por ocasião desta deslocação, um grande santuário instala-se no local

do habitat indígena que será frequentado até os últimos anos do quarto século. O número de sinais votivos

atesta que este lugar foi visitado por um grande número de dedicantes (Carré, 1978, pp. 121-122 e

Rolland, 1962, p. 655).

115 Carré, 1978, pp. 122, 126.

116 Um dos emblemas de Táranis, o deus celta do raio, é a serpente (Carré, 1978, p. 125), e sabemos que

na religião helenística e greco-romana, o ofídio é muitas vezes solidário do fogo solar ou subterrâneo, de

essência ígnea (Turcan, 2004, pp. 262-263). Os Egípcios, por sua vez, tinham uma cobra apelidada

Uraeus, uma serpente que cospe fogo e protege de todo o mal, coroando o cimo dos templos ou a cabeça

dos faraós (simbolizando a natureza ígnea das coroas reais do Egipto). A serpente de fogo concentra nela

as propriedades do Sol (na época de Amenofis II, o uraeus é representado como o suporte do disco solar)

e representa também o olho flamejante de Ré, o deus-sol. Também Ré encontra na serpente Méhen

(“aquele que forma argolas”) um acompanhante útil durante a sua travessia do reino da noite. Méhen

desenha numerosas sinuosidades à volta da cabina do deus-sol (Chevalier e Gheerbrant, 1982, pp. 872,

986 e Manfred, 1994, pp. 201, 225-226).

117 Rolland, 1964, p. 547.

118 A radical “Bel-“ significa em lìngua céltica “brilhante” (Gricourt e Hollard, 1990, p. 308).

119 Ver Olivares Pedreño, 2000, p. 69.

120 Gricourt e Hollard, 1990, p. 287.

121 Tournie, 2001, p. 182.

35

(juntando-se às placas furadas e às argolas) do santuário de Chastellard de Lardiers

pertencem ao âmbito das tradições indígenas herdadas do fundo céltico e que

perduraram ao longo de toda a época galo-romana.

Ou seja, no caso do nosso santuário, poderíamos ter igualmente uma divindade

celeste de origem celta, cujas lucernas votivas lhe foram consagradas.

II) 1) b) O topónimo “Santa Bárbara”

Tanto M. G. P. Maia e M. Maia122

como J. P. Bernardes123

observaram a

permanência de culto em Santa Bárbara de Padrões na era Cristã, como que a perpetuar

o local sagrado pagão que ali existiu, com a construção de uma basílica paleocristã na

mesma colina do antigo templo dos gentios, substituído depois pela igreja gótica actual.

Sabemos que, nos lugares de implantação de santuários antigos (romanos ou

célticos, sendo estes últimos reconstruídos em alvenaria na época romana), muitas

igrejas cristãs foram construídas em seguida nesses mesmos locais já marcados pela

religião124

.

Nas palavras de J. Encarnação125

, «se a um determinado culto, perpetuado em

tempo romano, os Cristãos fizeram seguir um outro, retirado do seu flos sanctorum,

seria legítimo garantir que identidades havia». Este autor dá como exemplo o caso mais

eloquente de Endovélico, cujo local do seu antigo santuário viu erguer uma capela a São

Miguel, observando ainda que «o carácter “infernal”, de deus que zela pelo Além, que

luta contra as forças do Mal, ficou plenamente justificado» neste lugar.

Ora, a actual igreja de Santa Bárbara de Padrões, erguida no antigo local de culto

pagão (no topo da colina), foi consagrada à virgem e mártir de Nicomedia, Santa

Bárbara (martirizada na época do imperador Maximiano). Entre os seus vários atributos

que se podem relacionar com este sítio em altura, temos o da protecção contra as

trovoadas126

que vem ao de cima (ver fig. 47).

122

Maia e Maia, 1997, p. 19.

123 Bernardes, 2006, pp. 160, 163.

124 Duval, 1989, p. 59.

125 Encarnação, 2002, p. 12.

126 Lello Universal, vol. I, p. 296.

36

Da pena infligida ao seu pai (Dioscoro), fulminado por um raio por a ter

degolado com sua espada127

, fará dela uma santa toda poderosa contra o fogo do céu,

contra as trovoadas, contra as tempestades e, por extensão, contra os incêndios, sendo

apelidada a santa do fogo e implorada pelos fiéis com o intuito de se protegerem dos

golpes do raio128

.

Reencontramos este tema do raio, considerado pelos Celtas como o fogo do

céu129

, nas divindades de Táranis e Sucellus.

Para além deste atributo, tínhamos igualmente um acto religioso que ligava

Santa Bárbara ao ritual da luz. De facto, dizia-se que «qui la dira devant son image un

cierge bénit ou chandelle allumée à la main, il ne mourra point sans confession»130

.

Podemos notar, neste interessante trecho de C. Lapparent, sobre a mártir de Nicomedia,

o poder que tinha uma vela acesa segurada pelo fiel perante a imagem da santa,

permitindo a confissão dos seus pecados antes da morte o levar. Esta prática, em

apresentar a luz de uma vela (ou de um círio) diante da efígie de uma entidade

santificada, relembra em muito o ritual das lucernas votivas do nosso santuário.

II) 1) c) O menir

Em relação agora ao dito menir do adro da igreja, ele apresenta-se para M. G. P.

Maia e M. Maia131

como um dos testemunhos da probabilidade da localização do

santuário neste ponto da colina onde se localiza a igreja. Apesar de estar obviamente

fora do seu contexto original que não seria no entanto muito longínquo, a presença do

menir tornava este lugar um sítio marcado pelo sagrado que não passaria despercebido

tanto pelos Celtas como pelos Romanos.

Segundo A. Varagnac132

, em termos do exame das mitologias clássicas enquanto

herdeiras possíveis do megalitismo, uma investigação neste domínio nos levará depressa

127

Dioscoro sofreu a cólera de Deus pelo fogo, raio, tempestade e diabrura até não restar nada de seu

corpo (Lapparent, 1926, pp. 10-11).

128 Lapparent, 1926, pp. 16-17, 23.

129 Gricourt e Hollard, 1990, p. 287 e Chassaing, 1978, p. 287.

130 Lapparent, 1926, p. 17.

131 Maia e Maia, 1997, p. 19.

132 Varagnac, 1962, pp. 338-339.

37

a certos cultos do pilar erguido. É preciso relembrar a equivalência entre o menir, o

poste de madeira, a coluna e o obelisco133

.

Temos portanto, segundo o mesmo autor, numerosas associações de Zeus e da

estela erguida, com o menir. Começamos primeiro por Dioniso, o filho de Zeus, muitas

vezes representado sob a forma de pilar apenas antropomorfizado, e associado ao trovão

(o seu nascimento foi atribuído à morte da sua mãe fulminada)134

. A associação do raio

e do pilar reaparece aliás em mitos menores como o de Oinomaos, cuja casa fulminada

deixou subsistir apenas um grosso pilar de madeira, monumento sagrado que viu

Pausânias junto de um santuário de Zeus Keraunios. Mas a mitologia que se adequa

perfeitamente ao nosso caso é a da infância do deus do céu tonante. Reia, dando à luz ao

pequeno Zeus numa gruta do monte Ida em Creta, substituiu-o por uma pedra quando o

seu marido, Cronos, o quis devorar, dando-lhe em seguida à ninfa Amalteia que o

alimentou e o criou em segredo no cimo deste mesmo monte (a cabra Aíx, descendente

do deus-sol Hélios, é que amamentou a criança)135

. Mais tarde, Zeus irá tornar-se o

soberano celeste do panteão greco-romano, o mestre do raio, considerado pelos Antigos

como o fogo do céu136

. Ora, é exactamente no mesmo lugar, no monte Ida, que foi

encontrado outro depósito votivo de lucernas137

.

Continuando com a simbologia do menir, sabemos que muitos megálitos

ocidentais trazem gravuras figurando incontestavelmente machados polidos. Ora,

sabemos que o machado de pedra era um símbolo do fogo celeste138

(relembramos para

este âmbito as “pedras de trovão” dos campos bretões, as ceráunias), bem conhecido em

todo o mundo pré-helénico contemporâneo da expansão final do megalitismo ocidental.

Por fim, A. Varagnac observa ainda que alguns atributos de estátuas-menires

masculinas do Sul da França representavam unicamente elementos de “isqueiros de

arco”, o que pode corresponder à acção de acender fogos sagrados.

133

O símbolo cultual do deus Ré, divindade solar de Heliópolis, era o obelisco (Morenz, 1977, pp. 335-

336).

134 É preciso relembrar também que a especulação alegórica sempre identificou Dioniso com o Sol

(Burkert, 2003, p. 78).

135 Grimal, 2009, pp. 23, 107, 241.

136 Turcan, 2004, p. 260.

137 Maia e Maia, 1997, p. 21.

138 Os gauleses representavam o trovão sob a forma do martelo (Gricourt e Hollard, 1990, p. 293).

38

II) 1) d) Sob a dominação romana

Em primeiro lugar, é preciso relembrar que os contactos culturais na época

romana subentendem no domínio religioso mecanismos complexos: interpretatio

romana, sincretismo139

, coabitação ou coexistência dos deuses e isto numa dialéctica

entre aculturação e resistência140

.

Para além disso, a interpretatio romana dos cultos indígenas foi um fenómeno

que se manifestou diferentemente segundo o grau de romanização141

. No caso da

Hispânia, temos a preponderância dos cultos indígenas a Norte do Douro e seu

desaparecimento quase total nas regiões onde a dominação romana foi mais profunda (o

que é o nosso caso na área do Baixo Alentejo)142

.

Desta breve nota, podemos portanto observar que, do ponto de vista da

organização urbana dos templos romanos, reencontramos no caso do nosso santuário a

possibilidade de uma divindade celeste ser aí consagrada. De facto, segundo Vitrúvio143

,

os lugares mais elevados deviam estar reservados aos templos sagrados dos deuses de

mais alta tutela para a cidade, isto é, Júpiter, Juno e Minerva, de onde se podia observar

a maior extensão do recinto fortificado. Voltamos então a encontrar, nos preceitos de

Vitrúvio, um deus do céu tonante que era Júpiter, divindade da luz divina que foi

assimilada ao Zeus grego144

. A pensar numa divindade celta que se assemelhava em

muito com o deus romano da trovoada, reencontramos Táranis145

, o “Júpiter

indìgena”146

. É neste aspecto principal de grande deus celta do céu tonante, que Taranis

era próximo do seu paralelo romano Júpiter, o deus celeste supremo que é o raio

139

As divindades sincréticas são o resultado de uma aproximação, mais precisamente de uma assimilação

entre deuses romanos e deuses do panteão indígena tais Júpiter/Táranis (Tournie, 2001, p. 175).

140 Tournie, 2001, p. 174

141 Por exemplo, enquanto que em meio romanizado o epíteto indígena de um deus desaparece, esse

epíteto é pelo contrário muito difundido nas camadas de populações célticas (Lavagne, 1979, p. 164).

142 Lavagne, 1979, pp. 164, 194.

143 Maciel, 2009, p. 54.

144 Grimal, 2009, p. 262.

145 Le Glay, 1995, p. 59.

146 Olivares Pedreño, 2000, p. 69.

39

(Fulgur) ou o lança (Fulgurator), e com quem é precisamente assimilado nas inscrições

latinas147

.

Para além das normas de Vitrúvio, J. C. Olivares Pedreño148

acrescenta que na

Hispânia temos uma grande preponderância do culto a Júpiter nas regiões ocidentais da

Península Ibérica em relação ao resto das divindades romanas, mais precisamente em

uici e castella lusitano-galaicos, em que todas as inscrições votivas efectuadas pelo

conjunto dos habitantes de um uicus ou castellum se dedicaram, em exclusivo, a esta

divindade149

. Por detrás de muitas das dedicações feitas a Júpiter, sem epítetos, ou

Iuppiter Optimus Maximus (I. O. M.), pode-se vislumbrar também uma divindade

indígena (um deus soberano dos povos do Ocidente hispano) que teria sido assimilada

pelo deus supremo dos romanos (neste aspecto, J. Alarcão150

acha difícil decidir entre a

hipótese do sincretismo151

ou a hipótese de substituição152

).

Temos muitas semelhanças nos casos das Gálias e Germânia Superior, em que a

divindade honrada por seis das dez comunidades que aparecem como dedicantes contem

elementos do deus céltico assimilado a Júpiter, isto é, Táranis, o “deus da roda”

(sobrevivências do seu culto em Júpiter romano).

Para além disso, os registos epigráficos que mostram uma relação entre

comunidades rurais e Júpiter acharam-se em lugares aparentemente despovoados ou,

nos casos em que podiam relacionar-se com um núcleo de povoação, estas não se

encontravam no interior do mesmo. É muito possível que estes testemunhos isolados se

tenham efectuado em lugares sagrados dedicados a esta divindade, sem implicar,

147

Gricourt e Hollard, 1990, p. 292. Para o caso da Hispânia, é preciso notar que não foram encontrados

nenhuma inscrição ou qualquer outro testemunho arqueológico indicando a existência de um Taranis.

Outra divindade do raio, de nome diferente mas com as mesmas características que o deus Táranis, podia

ter existido entre os Celtici do Sul da Lusitânia.

148 Olivares Pedreño, 2000, pp. 63-75.

149 J. Alarcão confirma esta afirmação, acrescentando que temos também exemplos do culto a I. O. M. em

capitais de civitates, como Bracara Augusta, Aquae Flaviae, Civitas Baniensium, Lancobriga, Civitas

Igaeditanorum, Olisipo, Ammaia. Nalguns casos os praticantes são particulares, noutros parece ser a

própria cidade que dedica a ara. Mas o número de inscrições a Júpiter é maior fora dos centros urbanos

principais (Alarcão, 1988, p. 167).

150 Alarcão, 1988, p. 168.

151 Adopção de uma divindade romana sem abandono do culto de uma divindade indígena anterior,

associando ou acrescentando os novos rituais e o novo deus aos cultos locais (Alarcão, 1988, p. 168).

152 Substituição de uma divindade pré-romana por uma divindade clássica, assimiladas ou identificadas

uma à outra por interpretatio (Alarcão, 1988, p. 168).

40

necessariamente, a existência de um edifício de culto.

Todos esses indícios fazem lembrar a nossa Arandis, simples aglomerado

secundário, de origem celta, com a possibilidade de, segundo M. G. P. Maia e M. Maia,

o santuário ser composto simplesmente de um temenos sem templo.

No entanto, é preciso notar que as oferendas votivas feitas a Júpiter por parte dos

uici, pagi ou castella se centram na sua quase totalidade na região Noroeste da

Hispânia, ou seja, coincidindo com o âmbito de maior densidade de teónimos indígenas

e, além disso, de localidades algo distantes dos principais municípios ou capitais de

ciuitates e, portanto, com menor nível de romanização.

J. Alarcão153

, por sua vez, propõe a hipótese de o culto de I. O. M. se ter

difundido fundamentalmente nas civitates onde não existia culto imperial154

. O culto de

Júpiter terá constituído portanto uma alternativa ao culto do imperador.

Onde o culto municipal não estava instituído, a devoção ao imperador poderia

formalizar-se no templo de I. O. M.

As homenagens ao imperador celebrar-se-iam mesmo em pequenos vici que não

disporiam de templo. Neste caso, os vicani consagrariam um campo que, não sendo

lavrado nem servindo de pasto, seria o palco das cerimónias religiosas em honra de

Júpiter e do imperador.

II) 1) e) Impacto de um raio

Podemos ainda colocar a possibilidade de um fenómeno natural que teria

provocado a consagração desta colina a uma divindade do céu tonante.

Como já vimos para os Celtas, cuja área de culto podia ser marcada pelo cunho

de uma divindade, particularmente o impacto de um raio, sabemos igualmente que para

os Romanos, quando um lugar era fulminado por um raio, se tornava doravante

religiosus, porque a divindade parecia o ter dedicado para ela mesma155

. Era necessário

então enterrar, ao som de palavras sagradas, todos os sinais de lume por ele deixados

(fulgur condere, isto é, “enterrar o raio”). Os destroços consumidos pelo raio eram então

153

Alarcão, 1988, pp. 168, 178, 180.

154 No entanto, podemos encontrar aras dedicadas a I. O. M. em algumas capitais de civitates com culto

imperial, como em Olisipo ou Braga.

155 Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 61.

41

apanhados, enterrados e recobertos dum pequeno outeiro lajeado ou arrelvado rodeado

por um bocal (chamado puteal ou bidental). Esta acção acompanhava-se do sacrifício de

uma ovelha de dois anos (bidens) para apaziguar a divindade e tornar este lugar sagrado.

No puteal gravava-se uma inscrição atinente à cerimónia. Eram os harúspices156

que

praticavam o enterro do raio, na sua qualidade de fulguratores. Quando era uma árvore

a ser atingida por um raio, a intervenção de um strufertarius157

era neste caso requerida

para efectuar o sacrifício158

.

Ou seja, a nossa colina poderia ter sido também atingida por um raio e

consagrada então a um Júpiter Tonante ou Iuppiter Elicius159

, cujo templo seria

frequentado por indígenas de etnia celta, continuando com a sua tradição em oferecer a

luz votiva, e em que o menir se adequava perfeitamente à mitologia de Zeus.

II) 2) As influências orientais

Sabemos que a Península Ibérica ficou incluída nas rotas comerciais dos

Fenícios, Gregos (com a sua principal colónia em Ampúrias) e Cartagineses, cujos

contactos trouxeram novas ideias e crenças aos indígenas160

.

No caso do Alentejo, temos de facto, directa ou indirectamente, uma forte

influência da colonização desses povos vindos do Oriente, caracterizando a Idade do

Ferro I desta região, não esquecendo igualmente a fixação de Turduli no Sul de

Portugal, coexistindo aí com os Celtici161

.

Segundo J. Alarcão162

, além do grau muito superior de romanização do Alentejo,

156

Nos primeiros tempos esta função estava a cargo dos pontífices, passando depois para os harúspices

(Vasconcellos, 1913, p. 486).

157 Strufertarius da palavra fertum: bolo feito de farinha, de mel e de vinho, que se oferecia nos

sacrifícios, neste caso diante da árvore atingida pelo raio (Laforge, 2009, nota 685 p. 181).

158 Vasconcellos, 1913, pp. 481, 486-487 e Laforge, 2009, pp. 180-181.

159 Grimal, 2009, pp. 261-262.

160 Brázia, 2011, pp. 17-18.

161 Alarcão, 1988, pp. 64-65, 153.

162 Alarcão, 1988, pp. 154-155.

42

fazendo desta região uma zona quase sem cultos indígenas163

, o processo de

desaparecimento dos mesmos nesta parte da Lusitânia poderá ter começado já na época

pré-romana, por influência de contactos com Fenícios, Gregos e Cartagineses. É

possível que algumas divindades do panteão clássico romano e alguns deuses orientais

adorados em plena época romana tenham sido, de facto, introduzidos na época das

colonizações ou radiquem numa interpretatio de deuses fenícios, gregos ou

cartagineses.

Para além das influências orientais vindas do exterior, temos igualmente as

oriundas de uma grande cidade. De facto, sabemos que as classes populares, residentes

nos vici e castella, não teriam outros meios normais de acesso aos cultos clássicos que

não fossem as suas visitas à cidade mais próxima, capital do território, quando aí se

deslocavam para assistir a cerimónias religiosas ou a espectáculos, ou para vender e

adquirir certos produtos. Nessas cidades maiores, entre as múltiplas escolhas que se

apresentavam aos rurais, certas divindades, pela dimensão dos seus templos urbanos e

pelo brilho das cerimónias religiosas que em sua honra se celebravam, pela

especificidade das suas funções (Júpiter seria mais passível de aceitação, por exemplo,

que Febo), eram mais “sedutoras” do que outras164

.

Deste ponto de vista, a cidade de Myrtilis Iulia ou de Pax Iulia, as duas

prováveis capitais administrativas dos Aranditani, teria neste aspecto uma forte

influência na escolha da(s) divindade(s) para o santuário de Arannis, simples estação

viária romana.

Podemos notar que essas cidades apresentam testemunhos de divindades

claramente orientais165

.

Em Mértola, porto fluvial do Guadiana, foram encontradas uma cabeça de

Tyche-Cybele e outra de Dioniso.

163

A Sul do Tejo, conhecem-se somente 8 divindades indígenas: Ataegina; Carneus Calanticensis; Dea

Sancta Burrulobrigensis; Endovellicus (o deus indígena com maior número de inscrições votivas);

Ocrimira; Quanceius Tanngus; Runesius Cesius; Toga Alma. No Algarve, por sua vez, não temos

testemunhos alguns de deuses indígenas (Alarcão, 1988, pp. 154, 218).

164 Alarcão, 1988, pp. 165-166.

165 Para essas cidades e seus testemunhos de cultos orientais, ver Alarcão, 1988, pp. 40, 51, 172-174, 178,

197.

43

Por sua vez, a cidade de Beja, sendo uma colónia166

e sede de conventus

iuridicus167

, um pólo convergente e agregador das estradas romanas do Baixo

Alentejo168

, um centro comercial que atraía imigrantes, e um local de habitação de

numerosos colonos (libertos e peregrini) além de indígenas169

, apresentava-se como um

meio sócio-cultural propício à adopção de cultos orientais. De facto, além de provas

epigráficas da existência de um culto imperial (o culto municipal data da época de

Tibério), temos nesta cidade testemunhos de Cíbele, Ísis170

, Serápis171

e, talvez ainda, de

Mitra172

. No caso dos deuses alexandrinos que tinham seguramente um santuário173

,

sabemos que as duas divindades viveram lado a lado, tendo sofrido um sincretismo que

lhes deu um carácter de deus total, omnímodo (Serápis apresenta-se efectivamente como

um deus universal, devido ao epíteto pantheus174

que acompanha o nome da

divindade)175

.

Para além disso, foram encontradas nesta mesma cidade cabeças marmóreas de

touros, que J. L. Vasconcelos176

considera como romanas e relacionadas com o “boi

166

Uma referência de Estrabão sugere que a Pax Iulia foi fundada por César e elevada à categoria de

colónia por Augusto (Alarcão, 1988, p. 67).

167 Novo tipo de circunscrição administrativa criado por Vespasiano, integrando um determinado número

de civitates. No caso de Beja, a cidade era sede do conventus pacensis (Alarcão, 1988, p. 58).

168 Carneiro, 2009, p. 89.

169 Cada grupo com suas leis e sua assembleia, reunidos numa curiosa forma de sinecismo (Alarcão, 1988,

p. 40).

170 Uma inscrição a Ísis, em mármore de Trigaches, foi encontrada num monte de entulho, no local onde

ficaria uma das portas da muralha romana. J. Alvar acrescenta também a descoberta de uma estátua de

Ísis mumificada, talvez de factura faraónica, documentada num manuscrito de Fr. Manuel do Cenáculo,

de finais do século XVIII ou começos do XIX, que diz ter sido achada na freguesia de Peroguarda, a três

léguas da cidade de Beja (Alarcão, 1988, p. 173 e Alvar, 2012, pp. 43-44).

171 A inscrição a Serapis Pantheus encontrava-se gravada num grande altar, feito em mármore de

Trigaches (cinzento muito claro), que foi posteriormente aproveitado na época visigótica ou árabe, para a

construção de um arco; achado em 1794 na parte exterior da porta de Avis. J. Alvar nota que Pantheus é

um epíteto invulgar, um caso único em Hispânia, ainda que se documenta uma Ísis Panthea em Epora

(Montilla, Córdova) (Alarcão, 1988, p. 173 e Alvar, 2012, pp. 42-43).

172 A lápide de inscrição, que testemunha a existência de um edifício (studium) e de um grupo de

bracarenses organizados numa associação (sodalicium bracarorum), põe um problema de identificação:

terá sido consagrada mesmo a Mitra ou ao Sol? (Alarcão, 1988, p. 173)

173 Alvar, 2002, p. 206.

174 Inscrição a Serápis Pantheo feita por Stelina Prisca, em honra do seu filho Gaius Marius Priscianus,

datada da primeira metade do século II d. C. (Alvar, 2002, pp. 205-206).

175 Maia e Maia, 1997, pp. 22-23.

176 Vasconcellos, 1913, pp. 515, 518-519.

44

Ápis”177

, conotando-se portanto com o culto egípcio de Pax Iulia.

Voltamos também a encontrar um santuário dos deuses nilóticos em Emerita

Augusta (Mérida), capital da Lusitânia. Esta afirmação baseia-se sobretudo na

descoberta de uma grande cabeça de Serápis de mármore branco, apresentando a

divindade cabelo e barba abundantes com caracóis desordenados, bem como um corte

horizontal na parte superior da cabeça para colocar o seu modium que desapareceu (a

peça escultórica data de meados do século II d. C.). O tamanho que teria a estátua

permite considerá-la como o ícone cultual de um templo dedicado aos deuses

alexandrinos178

.

Por fim, segundo M. Maia179

, a cidade de Castro Verde, a poucos quilómetros de

Santa Bárbara de Padrões (cerca de 10,8 km em linha recta), teria sido na origem um

acampamento militar romano, baseando-se a sua hipótese na toponímia da povoação,

bem como no traçado das suas ruas formando uma planta ortogonal. Interessa-nos

portanto o trecho de P. Brázia dizendo que «na província da Hispânia, os cultos

orientais conseguiram ultrapassar as zonas portuárias e os aquartelamentos militares,

introduzindo-se no seu interior»180

.

Ou seja, estando o nosso santuário muito próximo desta cidade, e considerando a

proposta de M. Maia, podemos também colocar a hipótese de uma outra fonte de

influência em termos de cultos orientais, transmitidas desta vez pelos soldados romanos

de um acampamento nas circunvizinhanças de Arannis.

II) 3) O depósito de lucernas votivas

II) 3) a) A “religião votiva”

Em relação às lucernas de barro de Santa Bárbara de Padrões, foram todas

recolhidas, como já vimos, num depósito votivo, o que demonstra que essas lâmpadas

não foram utilizadas para a simples iluminação de um templo181

(no mobiliário vulgar

177

J. L. Vasconcelos afirma que foram encontradas 6 cabeças nesta cidade.

178 Alvar, 2012, pp. 46-47.

179 Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.

180 Brázia, 2011, p. 52.

181 Maia e Maia, 1997, p. 24.

45

dos templos estão sempre compreendidos lychnuchi, candelabra e grande número de

lucernas182

), mas antes como ex-votos (ex voto donatorum) ou resultante de actos de

piedade183

, oferecidos pelos peregrinos que iam visitar o santuário.

É preciso relembrar que, na Antiguidade, e segundo a análise de W. Burkert184

, a

forma de religião pessoal de um indivíduo era representada pela prática dos votos, a

chamada “religião votiva”, uma forma particular de culto no seio da religião pagã, em

que os actos permanecem na categoria dos “suplementos úteis”, e não entram na dos

“substitutos”, que implicam uma rejeição consciente do que existia antes. A religião

votiva consistia em promessas feitas pelos fiéis aos deuses, em troca do seu auxílio

contra toda a espécie de infelicidades nesta vida terrestre, como as doenças, as

incertezas na vida profissional, os perigos de uma viagem ou os riscos de um parto, a

protecção de entes queridos, as ameaças e destruições da guerra (para a classe

dirigente), ou o agradecimento de lucros ou sucessos obtidos e a manutenção deste statu

quo no futuro185

. As promessas eram cumpridas geralmente com oferendas de dons de

mais ou menos grande valor, agradecendo assim a divindade pela sua intervenção

benéfica. Ou seja, os objectos votivos, tão modestos à primeira vista186

, são documentos

de uma fé pessoal num deus bem definido, que, em troca, dá uma forma de salvação,

sôtèria, salus, saluatio. O fiel podia sem problema mudar de divindade até encontrar

aquela que lhe parecia a mais adequada ou a mais “interventiva” relativamente aos seus

pedidos, possuindo a religião votiva um carácter verdadeiramente experimental187

.

Tomando como exemplo os santuários galo-romanos, podemos encontrar vários

tipos de objectos depositados em oferenda ou em ex-voto, muitas vezes reunidos na

mesma favissa e geralmente de pequena dimensão188

: espelhos; taças, lucernas,

182

Almeida, 1952, p. 90.

183 Ruiz de Arbulo, 1996, p. 118.

184 Burkert, 2003, pp. 15-18.

185 Quando ele oferece seu dom votivo, o devoto reza para obter o mesmo auxílio no futuro (da ut dem)

(Burkert, 2003, p. 16).

186 Excepto as doações da classe dirigente, como alguns dos mais célebres monumentos artísticos dos

santuários gregos, ou quase todos os templos de Roma (Burkert, 2003, p. 16).

187 Os deuses pagãos não são ciumentos uns dos outros, formam, por assim dizer, uma sociedade aberta

(Burkert, 2003, p. 54).

188 A miniaturização votiva representa o recurso habitual para substituir simbolicamente as oferendas

(Ruiz de Arbulo, 1996, p. 117).

46

estatuetas, figurinhas de animais, trombetas em terracota; baixela, estatuetas, sinetas,

instrumentos de cirurgia, rodinhas, argolas, placas furadas em bronze; ferramentas

agrícolas ou artesanais e armas miniaturizadas, quase sempre em ferro; jóias (braceletes,

fíbulas, anéis, entre outras); laminazinhas de metal insculpidas; moedas; ferramentas

pré-históricas, fósseis e todas as espécies de amuletos. Tratam-se geralmente de

objectos produzidos em série para as necessidades dos peregrinos, mas em certos casos

adivinha-se objectos pessoais originais189

.

De notar que não temos aí um dos donaria mais frequentes nos santuários de

época romana, isto é, o pequeno altar (as arulae), oferecido a uma divindade como acto

de piedade ou em cumprimento de uma promessa190

, fazendo com que os depósitos

votivos pudessem divergir no seu conteúdo191

consoante a divindade principal venerada

no local192

, a evolução das funções principais desta última ao longo do tempo, a

localização geográfica do santuário (influências orientais mais marcadas na zona da

bacia mediterrânica por exemplo), as sobrevivências tradicionais pré-romanas dos

indígenas, entre outros.

J. Scheid193

acrescenta ainda, a propósito da religião pessoal, que a prática

privada do culto, que não era fundada em arquivos públicos, levava por conseguinte ao

depósito diante do santuário, sob pórticos ou em tesouros, de monumentos relembrando

o rito executado como altares, pinakes com pinturas, ex-votos preciosos ou não,

representando a divindade referida ou uma outra divindade, o celebrante, a vítima

oferecida, entre outros. Daí que, os sinais da actividade ritual (sendo os vestígios das

oferendas os documentos directos) concernem mais a frequência privada dos santuários

189

Barruol, 1985, p. 371.

190 Ruiz de Arbulo, 1996, p. 118.

191 Por exemplo, os ex-votos do santuário de Lachau são muito diferentes dos de Lardiers, apresentando o

primeiro como aspecto mais original do jazigo ex-votos metálicos de duas espécies: os mais numerosos

representam em miniatura instrumentos agrícolas (podadeira, foice, enxada, arado); os outros são

incontestavelmente armas (venábulo, dardo curto, pontas de setas ou de lanças) em tamanho natural

(Carré, 1978, p. 122 e Lancel, 1975, p. 535).

192 Por exemplo, segundo se dirigiam a Selene ou a Afrodite, os devotos, através da utilização de certos

tipos de espelhos, pediam às deusas o favorecimento na fecundidade e nos seus amores, a preservação de

certas doenças, o desvio do mal, o conhecimento do tempo, a protecção dos seus entes queridos, dos seus

campos e das suas colheitas (a organização do trabalho no campo no quadro do ciclo lunar é fortemente

recomendado por Virgílio, por Plínio e por Plutarco), entre outros (Barruol, 1985, p. 373).

193 Scheid, 1997, pp. 56-57.

47

que o culto principal que era aí celebrado194

. Este último podia tomar vários aspectos,

sendo os ritos da veneração dos deuses numerosos: podia tratar-se de sacrifícios sobre

um altar, numa cova, nas águas; podia tratar-se de lustrações com procissão simbólica à

volta da entidade a constituir, de purificações, de colheita e de oferenda de primícias, de

consultas divinatórias, de jogos, sem falar de todos os ritos que se complementavam aos

actos centrais do culto (ritos de iniciação, ritos de investidura, suplicações, em alguns

casos, mistérios…).

Esta prática pagã da chamada “religião votiva” sobreviveu muito para além do

mundo antigo – até aos nossos dias, mesmo no Cristianismo195

.

II) 3) b) A iconografia das lucernas votivas

Relativamente à iconografia das lucernas, e segundo J. Almeida196

, sabemos que,

em regra, os assuntos escolhidos nos tampos não tinham importância ou significado

especial, valendo somente pelo seu “decorativismo”. Só em casos raros, a decoração

correspondia ao uso a que se destinava, como em lucernas votivas e de boas-festas,

ornadas no caso das primeiras de imagens dos deuses a que eram dedicadas. O autor

acrescenta ainda a existência de inscrições referentes a nomes de divindades que se

podem encontrar em lucernas votivas197

.

No entanto, para além de não se ter encontrado nas lâmpadas de Santa Bárbara

de Padrões nenhuma inscrição a revelar o nome da divindade aí consagrada, sabemos

igualmente que num local de culto típico, o templo podia abrigar não só a estátua de

culto do deus venerado no santuário, mas também estátuas de outros deuses assistindo a

divindade tutelar do culto198

, e que, para além disso, esta última podia receber a

oferenda de uma estatueta representando uma outra divindade199

. Ou seja, mesmo se a

194

As regras regendo os actos de culto privados não eram forçosamente as mesmas que aquelas do culto

público (Scheid, 1997, p. 57).

195 Burkert, 2003, p. 15.

196 Almeida, 1952, pp. 75, 92-93.

197 Almeida, 1952, p. 82.

198 Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62.

199 Scheid, 1997, p. 57.

48

representação de uma entidade divina numa determinada lucerna votiva se possa

relacionar com a devoção de um certo devoto, ainda não se pode confirmar a verdadeira

identidade do deus a que o santuário foi consagrado.

No caso do repertório iconográfico das lucernas votivas de Santa Bárbara de

Padrões, M. G. P. Maia e M. Maia200

notaram uma possível existência, por parte dos

oferentes, de uma certa selecção entre os motivos disponíveis no comércio vulgar.

De facto, e segundo estes autores, no século I d. C. registou-se uma apetência

por temas mitológicos e astrais, em detrimento de outros, contudo igualmente

frequentes no mesmo período, como jogos de anfiteatro ou espectáculos circences.

Sobre as lucernas de volutas (especialmente Dressel 9, Dr. 11 B e Dr. 15), nota-

se uma presença significativa de Júpiter201

, seus atributos (águia) e mitos (rapto de

Europa), mas sobretudo Vitória202

(54 exemplares), representada quer pela figura da

própria deusa, quer sob a forma de atributos com ela relacionados, como as coroas de

louros e as palmas.

As coroas de folhagem (carvalho, louros, videira, etc.) são abundantes em Santa

Bárbara, sobretudo nas lucernas “de disco”.

As palmas estão também muito representadas, bem como a sua conjugação com

as coroas.

A predilecção parece dirigir-se também para Diana/Ártemis203

e para a sua

congénere Selene/Luna204

. Estes temas estão quase exclusivamente tratados em lucernas

200

Maia e Maia, 1997, p. 44.

201 Soberano da luz e do raio, do trovão, da chuva, garante da ordem do mundo, da justiça, das

hierarquias, Júpiter era o protector de Roma e centro da tríade capitolina, cultuada em todas as cidades do

Império. Recolheram-se em Santa Bárbara 8 exemplares de Júpiter com a águia (Maia e Maia, 1997, pp.

58-59).

202 Uma das principais divindades tutelares de Roma e dos seus imperadores (Maia e Maia, 1997, p. 44).

203 A deusa Ártemis era filha de Latona e de Zeus e irmã de Apolo. Foi, desde cedo, assimilada à deusa

romana Diana e a Luna. Deusa da caça e igualmente da pureza (era virgem) protegia as mulheres e os

partos e exigia dos seus fiéis abluções em água corrente. Em Santa Bárbara recolheram-se 9 exemplares

com a figuração de Diana (Maia e Maia, 1997, pp. 46-48).

204 Selene, personificação da Lua, era considerada às vezes pela mitologia grega como filha de Hélios, o

Sol. Para os romanos, a Lua era a deusa Luna, assimilada a Diana, a Ártemis grega que estava quase

totalmente identificada com Selene. Os seus atributos são o crescente lunar à cabeça – Selene, Diana,

Ártemis, Luna, são classificações atribuídas a bustos femininos com o crescente lunar à cabeça –, e, por

vezes, o chicote (não se pode esquecer também o motivo da estrela, muito recorrente na figuração da

deusa lunar). A Lua personificada ou não pode ainda surgir associada ao fruto do cipreste, símbolo da

vida de além-túmulo. Em Santa Bárbara foram recolhidas 20 lucernas que apresentam decorações

relacionadas com este tema (Maia e Maia, 1997, pp. 65-68).

49

de tipo Dr. 15, sem asa, com volutas simples. É um tipo de transição, entre os períodos

Flávio e de Trajano e que parece relativamente raro, noutros sítios arqueológicos.

As lucernas “de disco” apresentam portanto uma grande variedade de temas,

mas mantem-se a preferência pelos de índole religioso-mitológica, sendo, no entanto, o

busto de Hélios de longe o mais frequente (58 exemplares).

De facto, Hélios205

foi a divindade mais representada na iconografia de Santa

Bárbara206

, reproduzido por numerosas oficinas, indiciando a sua popularidade entre os

Aranditani. Pode-se distinguir diversas punções utilizadas para a figuração desta

divindade solar: busto de Hélios com 10 raios, sobre crescente lunar com estrelas nas

pontas (4 exemplares); busto de Hélios com 7 raios, cabeleira caída sobre os ombros,

com representação de braços e vestes drapeadas e cruzadas ao centro do peito, formando

um decote em V, e fíbulas circulares sobre os dois ombros (45 exemplares); busto de

Hélios com 7 raios (os raios inferiores são quase horizontais), cabelo curto, rodeando

apenas a face e a testa, com uma espécie de franja encaracolada sobre a testa (ou

diadema?), e representação esquemática do busto, triangular e terminando num círculo,

interpretado como um nó nas vestes (8 exemplares); Hélios com 5 raios, com drapeado

solto entre os dois ombros (1 exemplar).

Podemos observar que de entre as várias representações de Hélios, o segundo

motivo (o Hélios com 7 raios dos 45 exemplares), relativamente raro fora do depósito

de Santa Bárbara, gozou de grande popularidade entre os fiéis de Arandis207

, os quais

adquiriram e ofereceram desde exemplares muito perfeitos e certamente moldagens

originais, até remoldagens de muito má qualidade, sendo este motivo usado igualmente

nos fabricos locais (lembrando o caso de Lachau) ou regionais.

Por fim, devemos notar igualmente que, para além dos deuses Manes e Lares

estarem também significativamente representados (8 e 22 exemplares respectivamente),

205

Hélios, que na Grécia era uma divindade menor relativamente a Apolo, outra divinização do Sol,

torna-se o deus Sol por excelência em Roma. Havia uma Festa anual em sua honra, no dia 25 de

Dezembro (Maia e Maia, 1997, p. 51).

206 Maia e Maia, 1997, pp. 51-55.

207 M. G. P. Maia e M. Maia pensam que a oficina com a marca IVNIALEXI teria estabelecido uma

sucursal no Sudoeste Peninsular a partir da qual satisfaria uma procura específica por este tema (Maia e

Maia, 1997, p. 54).

50

temos a presença em Santa Bárbara da deusa egípcia Ísis208

, representada talvez 8

vezes209

: 3 exemplares com Ísis acompanhada de Anúbis e de seu filho Harpócrates; 4

bustos de Ísis (ou África?), com toucado complexo encimando sua cabeça e um sistro

(ou látego?) na mão esquerda; 1 busto de Ísis (ou Selene?), com crescente lunar (ou

cornos) na cabeça e flor de loto (ou plumas, ou trigo, ou estrela), tendo igualmente à

volta da cabeça uma larga auréola circular, na mão direita um chicote e na esquerda,

uma tocha acesa210

. Até temos uma lucerna com Júpiter-Ámon211

– representação da

cabeça de Júpiter com cornos enrolados de carneiro212

.

Por sua vez, no santuário da Horta das Faias (Peroguarda), de entre as centenas

de lucernas analisadas por A. Viana e F. N. Ribeiro213

, reencontramos Hélios radiado (4

exemplares), uma divindade lunar (2 exemplares com crescente lunar), a deusa Ísis (4

exemplares, em que numa aparece também Anúbis e Harpócrates) e talvez o seu par

divino Serápis (1 exemplar).

As pequenas lucernas votivas de fabricação local do santuário de Lachau (só um

quarto aproximadamente são das importações214

, de um tipo corrente e iconografia

maioritariamente animalesca215

), datando todo o conjunto entre os séculos I e III d. C.,

apresentam quase sempre, como ornamento, um motivo radiante à volta do buraco de

208

Símbolo da fertilidade, deusa mãe de todas as coisas, vencedora da morte (possui um carácter

psicopompo) e divindade salutífera, representa ainda a fidelidade conjugal e o amor maternal (Maia e

Maia, 1997, pp. 55-56).

209 Maia e Maia, 1997, pp. 55-58.

210 Apuleio descreve, para Ísis, um penteado idêntico e menciona um disco que irradiava uma luz branca,

onde se reconhece a Lua e serpentes (o uraeus). Espigas de trigo dominavam este conjunto. No caso do

motivo de Santa Bárbara, dada a assimilação que se registou em Roma entre Ísis e Luna-Selene, é difícil

decidir, com precisão, de qual das divindades se trata (Maia e Maia, 1997, p. 56).

211 Maia e Maia, 1997, p. 60. Enquanto deus de Tebas, Ámon foi elevado à categoria de divindade do

reino egípcio durante o Império Novo; ele enriquece-se então, sob o nome de Ámon-Ré, das

características do deus-sol (Lurker, 1994, p. 43). No sincretismo greco-egípcio, Zeus foi assimilado a

Ámon (Husson e Valbelle, 1992, p. 292).

212 Para um melhor conhecimento sobre a iconografia (e tipologia) das lucernas votivas de Santa Bárbara

de Padrões, ver a obra completa de M. G. P. Maia e M. Maia (1997).

213 Viana e Ribeiro, 1957, pp. 20-30 e Ribeiro, 1960, pp. 4-24.

214 Lancel, 1975, p. 535.

215 Nas lucernas vindas de Itália, os motivos mais frequentes são o galo, as máscaras de comédia, a

galinha e seus pintainhos, os ramos de folhagem, a cabeça de veado, o escorpião, a águia, o leão, os

cavalos, as palmas, Mercúrio (Leglay, 1973, p. 534).

51

enchimento (símbolos solares, perlas e pequenas cruzes as decoram)216

, coincidindo

portanto, como já observaram M. G. P. Maia e M. Maia, com a iconografia dominante

de Hélios em Santa Bárbara (ver figs. 48 e 49). Para além das lâmpadas, é importante

observar que foram também encontrados neste mesmo santuário do “Luminaire” sete

discos de coiro recobertos de estanho representando a Lua ou o Sol217

(além de

numerosos fragmentos em bronze de disco achados no contacto mesmo da rocha218

).

Ou seja, tudo parece indicar a importância do deus-sol Hélios ou qualquer outra

divindade solar em santuários com grandes depósitos de lucernas votivas.

II) 3) c) A origem votiva das lucernas

Como já vimos, I. Tournie219

pensa que as oferendas em lucernas dos santuários

galo-romanos do Sudeste da Gália tomavam a sua origem numa prática tradicional

indígena, mais precisamente celta. No entanto, quando comparamos esta afirmação com

os estudos de outros autores, não voltamos a encontrar esta prática como sendo de

tradição celta, mas como uma das características rituais de outros povos do

Mediterrâneo. M. G. P. Maia e M. Maia220

acrescentam ainda que dois grandes

depósitos votivos de lucernas foram achados respectivamente em Israel e no monte

Ida221

em Creta. Ora, nunca foi detectada a presença de Celtas nesta parte do

Mediterrâneo222

.

Vários outros povos utilizavam efectivamente lucernas para fins religiosos,

como, por exemplo, os Romanos. Num decreto do imperador Teodósio (código

Teodosiano XVI, 10, 12), que nos informa sobre alguns dos principais actos religiosos

consagrados às divindades domésticas, temos a proibição de honrar um deus Lar pelo

fogo, um Génio pelo vinho, os Penates por perfume, nem acender lâmpadas, depositar

216

Leglay, 1973, p. 534.

217 Boucher, 1980, p. 509.

218 Boucher, 1977, p. 476.

219 Tournie, 2001, p. 182.

220 Maia e Maia, 1997, p. 21.

221 Existência na obra de M. G. P. Maia e M. Maia (1997, p. 21) de uma gralha, havendo «Monte Ita» em

vez de Monte Ida.

222Ver Rachet, 1994, pp. 202-203, 254-255, 722-723.

52

incenso ou suspender grinaldas de flores223

. Segundo M.-O. Laforge224

, as lâmpadas,

colocadas nos santuários ou nos larários domésticos dos Romanos, tinham antes de tudo

um papel religioso, ritual, e pode-se considerar que o facto de acender uma lucerna

constitui uma oferenda ao mesmo título que o incenso lançado sobre o lar225

. O costume

de colocar ou de suspender lâmpadas acesas junto das divindades explica o número por

vezes considerável de lucernas descobertas em escavações. Estas podiam ser igualmente

votivas.

Também J. Almeida226

confirma o emprego das lucernas pelos Romanos para

fins votivos e para cerimónias religiosas. Ele acrescenta também que para consultar

certos oráculos, queimava-se incenso perante a estátua do deus e acendiam-se lucernas

em sua honra, e as árvores sagradas, durante festas rústicas, eram decoradas com fitas e

nos ramos penduravam-se lâmpadas acesas.

Para J. Ruiz de Arbulo227

, para além dos Romanos, as religiões vindas do Egipto

e da Frígia conotavam-se igualmente com a luz votiva. Para além da presença de

lâmpadas se conotar com cerimónias nocturnas228

e ritos funerários229

, nos cultos

orientais a luz tomaria parte nos rituais sagrados que implicavam actos de ressurreição.

Como no caso de Ísis (exemplo das festas em Sais), os cultos de Cíbele e Átis adquiriam

um marcado carácter fúnebre implicando a procissão funerária de canóforos e

dendóforos e a vigília de Átis, nas quais a presença da luz por meio de archotes230

ou

223

Laforge, 2009, p. 120.

224 Laforge, 2009, p. 123.

225 A prática quotidiana no culto doméstico dos Romanos consistia em gestos rituais: rezar e cantar,

acender lâmpadas, queimar incensos, pendurar grinaldas, coroas e trazer oferendas, sem esquecer a

obrigação de pureza para comparecer diante dos deuses (Laforge, 2009, p. 119).

226 Almeida, 1952, p. 90.

227 Ruiz de Arbulo, 1996, pp. 120, 123.

228 Exemplo de certos ritos agrários em honra da divindade Deméter celebrados de noite com archotes

(Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120).

229 A iluminação do cortejo fúnebre nos Romanos (archotes e círios assinalavam o passo do cortejo até o

túmulo) recordava o costume ancestral de os celebrar de noite para evitar que magistrados ou sacerdotes

se cruzassem com o cortejo. Para além disso, as luzes situavam o defunto no ambiente nocturno próprio

da morte e de seus espíritos. O contraste vida/morte, assimilado com o de luz/obscuridade, contava com

as luzes como elemento simbólico de pertença a uma realidade distinta, mas também como um útil

apotropaico que acompanhava o morto no Além. Ou seja, as lâmpadas de azeite jogavam um papel

fundamental nos ritos funerários do quotidiano romano (Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120).

230 Os archotes eram igualmente muito usados nas cerimónias isíacas, onde desempenhavam um papel

importante (Maia e Maia, 1997, p. 56).

53

lucernas231

era imprescindível. O autor acrescenta ainda que a luz e a cremação de

essências eram elementos igualmente indispensáveis nos rituais egípcios, quer de Ísis,

quer de Serápis – já os Gregos antigos tinham notado esta importância simbólica da luz

nos cultos do Delta, com os relatos de Heródoto sobre a festividade das lâmpadas

(lychnokaie) em Sais232

.

Também J. Almeida233

confirma igualmente a importância da lâmpada acesa nas

cerimónias religiosas dos Egípcios, dando como exemplo as procissões isíacas em que

era levada à frente uma lâmpada de ouro em forma de barca, com as figuras de Ísis,

Serápis, Ptah, a cabeça de Hélios, entre outras.

M. G. P. Maia e M. Maia234

, por sua vez, informam sobre um fragmento da lei

que regulava o funcionamento do santuário de Ísis e Serápis em Priene235

, onde era

comunicado a obrigação de o sacerdote fornecer uma quantidade fixa de azeite e duas

lucernas para a celebração da lampadeia, em honra de Ísis.

Por fim, resta o mitraísmo, utilizando igualmente nos seus templos (Mithraea)

lucernas com fins religiosos, colocando-as em círculo à volta da imagem de Mitra236

.

Apesar de incluídos no Império Romano, podemos notar que todos os depósitos

votivos de lucernas que observamos até agora se situam na zona de influência da orla

mediterrânica, e não foi achado nenhum depósito contendo uma grande quantidade de

lucernas ex-votos nas regiões mais interiores do Império, como por exemplo, no caso

das terras interiores da Gália, fora da antiga província da Narbonense. Todos estão

localizados em áreas que sofreram fortes influências de Fenícios, Cartagineses e

Gregos, o que permite reforçar a hipótese de uma origem oriental deste ritual da luz

votiva, como afirmar igualmente uma possível transmissão feita, senão pelos Fenícios

ou Cartagineses, muito provavelmente pelos Gregos.

231

Nilsson relacionava as lucernas com usos orientais e egípcios frente ao carácter helénico dos archotes

(Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120).

232 Almeida, 1952, p. 19.

233 Almeida, 1952, pp. 19, 90.

234 Maia e Maia, 1997, p. 22.

235 Existência na obra de M. G. P. Maia e M. Maia (1997, p. 22) de uma gralha, havendo «Pirene» em vez

de Priene.

236 Maia e Maia, 1997, p. 23.

54

Tomando-se como exemplo o caso dos santuários de Lachau e de Lardiers,

sabemos que nos Alpes Maritimes, pela sua situação geográfica, na charneira entre a

Europa céltica e um mundo mediterrâneo portador das influências etruscas, fenícias,

gregas e romanas, esta região se tornou uma terra de passagens e de encontros culturais

mas igualmente, por causa do seu relevo, um lar preservado para a religião indígena.

Situados na parte meridional do maciço, este território, através de uma abertura para o

litoral, estava aberto às influências exteriores, fazendo com que ao lado dos antigos

cultos indígenas, coabitassem novas devoções e especialmente cultos gregos, adoptados

ao contacto das feitorias gregas de Nice e de Antibes237

. As primeiras manifestações

discerníveis de uma integração de áreas cultuais específicas em habitats agrupados do

Sudeste da Gália, parecem ligadas à presença de elementos mediterrânicos, em relação

com as implantações coloniais gregas de Marselha (como um dos factores)238

. A

diversidade e a complexidade das correntes culturais regionais desta época tiveram

inevitáveis consequências nas modalidades das práticas religiosas. Este encontro entre a

religião alpina e as religiões grega e romana produziu fenómenos diversos que dão

conta da dinâmica interna da aculturação. De facto, segundo a sua sensibilidade, suas

tradições, e a variedade e precocidade dos contactos exteriores, os povos alpinos

responderam diferentemente às proposições culturais gregas e romanas239

. No caso dos

Vocontii, resultou portanto num acto votivo muito específico – a oferta em grande

quantidade de lucernas votivas para uma determinada divindade.

II) 4) Mitra

P. Brázia240

observa que desde cedo se manifestou na Península Ibérica, durante

a época romana e em parte associada aos cultos dos Iberos, uma certa tendência para a

valorização cultual de um elemento astral: o Sol ou a Lua. Por via de uma interpretatio,

temos em seguida uma associação do astro rei ao culto de Apolo, deus condutor do

237

Se a cultura greco-romana se difundiu rapidamente, é igualmente por causa da extraordinária

capacidade de adaptação dos Gauleses, reconhecida aliás por Júlio César (Tournie, 2001, p. 184).

238 O outro factor é o fenómeno de “proto-romanização” precoce que intervém próximo do litoral e no

baixo vale do Reno desde a segunda guerra púnica (Arcelin et al., 2003, p. 174).

239 Tournie, 2001, pp. 171, 176-177, 184-185, 188 e Arcelin et al., 2003, pp. 174, 191.

240 Brázia, 2011, p. 65.

55

carro solar, mas igualmente a Mitra.

De facto, o deus persa Mitra, deus do bem e criador da luz, responsável pelo

destino e pela ordem celeste, e divindade que ilumina e que guia os homens na luta

contra as trevas, era frequentemente associado ao Sol, a Hélios. Para além disso, o seu

culto comportava a dialéctica dos pares celestiais Sol-Lua/Hélios-Selene, o princípio

feminino e nocturno que se contrapunha ao do masculino e diurno.241

Ora, no santuário de Santa Bárbara de Padrões, vários indícios se conotam com

esta antiga divindade iraniana.

Em primeiro lugar, temos as influências dos principais deuses venerados nas

grandes cidades de Emerita Augusta, Pax Iulia ou Myrtilis, importantes pelo seu

estatuto administrativo ou proximidade em relação à pequena estação viária de Arandis.

Ora, sabemos da existência do culto ao Invictus Deus tanto na capital da Lusitânia,

Mérida, como sobretudo na capital do conuentus pacensis (e possível sede

administrativa dos Aranditani), Beja. Nesta última cidade foi encontrada uma lápide que

testemunha a existência de um edifício, studium, e de uma confraria bracarense

(sodalicium bracarorum). No entanto, a inscrição não é clara e coloca-se a dúvida se

não se referirá ao Sol (Hélios) ou a alguma outra divindade solar.242

Em segundo lugar, P. Brázia243

destaca a representação da figura de Hélios em

58 exemplares244

de lucernas do depósito votivo de Santa Bárbara, a divindade mais

representada e interpretada neste caso como uma alusão ao deus persa Mitra.

Em terceiro lugar, sabemos da dupla importância da água e do fogo245

no culto

do Invictus Deus. No caso do primeiro desses elementos, havia a consagração da água

nas cerimónias ou o ritual do lauacrum que lavava o misto das suas culpas. A

implantação dos santuários fazia-se nas proximidades de um rio ou em ligação com um

dispositivo de alimentação artificial nas termas públicas. No caso de não haver nenhuma

ribeira vizinha que pudesse facilitar as operações de culto, tínhamos a presença de

241

Brázia, 2011, pp. 44, 47-48, 65.

242 Brázia, 2011, pp. 64, 168, 171.

243 Brázia, 2011, p. 64 (P. Brázia cita a obra de J. Encarnação, «Aspectos da Religiosidade Vernácula na

Hispania Romana» in Hispaniae – Las províncias hispanas en el mundo romano, 2009, p. 470).

244 Na obra de P. Brázia (2011, p. 64), temos uma gralha no número das lucernas com a figura de Hélios,

aparecendo um total de 48 em vez de 58 (ver Maia e Maia, 1997, pp. 44, 51-55).

245 O fogo revestia um carácter sagrado nos antigos Iranianos, construindo em alturas maciços altares de

fogo. Conhece-se igualmente alguns templos do fogo (Rachet, 1994, p. 911).

56

tanques ou recipientes diversos246

. Ora, o nosso santuário possui efectivamente tanques

e o de Peroguarda situa-se nas proximidades imediatas de uma ribeira.

Relativamente à luz votiva, sabemos que se colocavam, nos Mitreus, lucernas

em círculo à volta da imagem de Mitra247

.

No entanto, outros indícios vêm contradizer esta ligação com Mithra.

Sabemos desde logo que os Mithraea eram muitas vezes um edifício semi-

subterrâneo248

, sendo uma religião de mistérios muito restrita (somente para os

homens), fazendo do local de culto um lugar estritamente reservado aos iniciados de

Mitra e escondido dos olhares dos passantes e curiosos. Para além disso, as oferendas

privadas não eram solicitadas e recebidas sem restrições249

.

O vestígio mais remoto da devoção ao deus persa na Hispânia data somente de

155 d. C. (uma inscrição de Emerita Augusta), e tudo indica que a penetração deste

culto tenha sido um processo de difusão contemporâneo e quase em simultâneo por todo

o Ocidente, em meados do século II d. C., no qual se tenham privilegiado os núcleos

urbanos mais importantes, colónias e sedes de conuentus250

. Ora, o santuário de Santa

Bárbara de Padrões já existia há muito tempo, datando de meados do século I até finais

do século III d. C.251

, e não de «meados do século II ou mesmo do século III» como

indicado na obra de P. Brázia252

. Para além disso, as lucernas votivas de Santa Bárbara

com a representação da divindade solar têm uma cronologia que se inicia muito antes do

período que abrange a segunda metade do século II e do século III: segundo M. T.

Amaré Tafalla253

, o grande número de paralelos de Hélios abarca todo o século I d. C. e

a primeira metade do século II, com sobrevivências posteriores, sendo mais frequente

entre os anos 90 e 140; no caso de Santa Bárbara, é no século I d. C. que registamos

246

Turcan, 2004, p. 259.

247 Maia e Maia, 1997, p. 23.

248 Silva e Calado, 2005, p. 241.

249 Burkert, 2003, p. 13.

250 Brázia, 2011, p. 54

251 Maia e Maia, 1997, pp. 16, 18, 22.

252 Brázia, 2011, p. 64.

253 Citação de M. G. P. Maia e M. Maia da obra de M. T. Amaré Tafalla, Lucernas Romanas de la Rioja,

Logroño, 1987 (Maia e Maia, 1997, p. 51).

57

uma apetência da iconografia das lucernas votivas por temas mitológicos e astrais254

.

Por fim, M. G. P. Maia e M. Maia255

interpretam a iconografia das 58

representações da divindade solar, não como uma alusão a Mitra, mas simplesmente

como o próprio deus Hélios. Esses mesmos autores salientam somente uma observação

de H. B. Walters256

de que Hélios e Selene eram temas favoritos talvez como referência

ao poder iluminante das lucernas, o que conferiria a estas representações um simples

papel de alusão, retirando-lhes quase todo o significado religioso.

II) 5) Divindades alexandrinas

II) 5) a) As lucernas e os santuários dos deuses

egípcios

P. Bruneau257

, analisando um fragmento de disco representando uma Ísis

Pelagia, achado no Serapeu C de Delos, relembra o papel cultual e votivo das lâmpadas

nos santuários dos deuses egípcios. Para reforçar a sua afirmação, ele acrescenta que

este facto se encontra atestado nas cidades da Grécia e Magna Grécia de Erétria (na ilha

de Eubeia do mar Egeu)258

, Filipos259

, Pompeia260

e no santuário de Delos261

(J. Ruiz de

254

Maia e Maia, 1997, p. 44.

255 Maia e Maia, 1997, pp. 51-55.

256 Citação da obra de H. B. Walters, Catalogue of the greek and roman lamps in the British Museum,

London, 1914, p. XXIX (Maia e Maia, 1997, p. 54).

257 Bruneau, 1961, pp. 435-446.

258 A cidade estava situada na costa ocidental da ilha, a uma vintena de quilómetros a Sudeste de Cálcis.

Mencionada por Homero, Erétria atinge o seu apogeu nos séculos IV e III a. C., dominando uma grande

parte da ilha e conhecendo uma grande actividade monumental. Saqueada pelos Romanos em 198 a. C., é

reedificada mas perde sua importância (Rachet, 1994, pp. 332-333).

259 A cidade de Filipos está situada na grande via romana Egnatia que ligava Dyrrachium (Durazzo) na

Albânia a Bizâncio, na fértil planície de Datos, a aproximadamente 15 quilómetros de Kavalla na Trácia

(Grécia). Fundada cerca de 360 a. C. por colonos vindos de Tasos, foi conquistada por Filipe II de

Macedónia em 356 a. C., substituindo o seu antigo nome “Krenides” pelo seu. Depois, os Romanos

fizeram passar nela a via Egnatia e estabeleceram nela veteranos, dando-lhe o estatuto de colónia sob o

nome de Colonia Augusta Julia Philippensis. A cidade desenvolveu-se sob a égide romana até o século

VI d. C. No flanco da colina onde a cidade foi edificada (no topo encontrava-se a acrópole), encontrou-se

um templo consagrado às divindades egípcias (Rachet, 1994, pp. 753-754).

260 Pompeia era uma cidade com origem grega (no sítio de aldeias oscas). De facto, sabemos que os

Helenos estabeleceram uma colónia em Cumes (a Norte de Nápoles, a pouca distância do mar), no século

VIII a. C. Cumes, fundada por colonos vindos da ilha de Eubeia, e em particular das cidades eubeias de

Cálcis, Erétria, e de uma povoação chamada Kymé que deu seu nome grego à nova cidade (Cumae em

58

Arbulo acrescenta também nesta lista a cidade portuária de Óstia262

). Em Delos, para

além das mais de três mil e quinhentas lucernas antigas guardadas no museu do sítio

arqueológico (poucas são de época romana, mas sobre algumas daquelas figuram temas

raros como uma Ísis Pelagia), sabemos dos achados de lucernas no Serapeu C deste

mesmo santuário. Voltamos a encontrar portanto locais de culto que utilizavam lucernas

com fins votivos mas também cultuais, consagrados neste caso aos deuses egípcios e

instalados na antiga área de influência, ou até no próprio território dos Gregos.

Para além da observação de P. Bruneau, J. Ruiz de Arbulo263

acrescenta ainda

que fora do âmbito fechado dos santuários egípcios, são diversas as referências de festas

específicas nos rituais de Ísis e Serápis que giram em torno das lâmpadas de azeite. A

componente trágica do mito de Ísis – o assassinato de seu esposo Osíris por Set e sua

busca posterior – foi rememorado numa festa egípcia nocturna (Lychnokaie) cuja

importância e popularidade foi transmitida por Heródoto (II, 62) na cidade de Sais264

.

Ritual que sabemos mantido até a Antiguidade Tardia. Esta festa tem sido considerada

como uma “noite dos mortos” em que as famìlias buscavam na luz das lâmpadas a

protecção contra as forças hostis (espíritos e demónios) das trevas. Rituais semelhantes

deviam repetir-se em festas de nomes sempre explícitos, como as lychnapsia celebradas

em Agosto ou o nyktelion de Ísis. Ou seja, para além de um papel cultual e votivo, as

lucernas eram ainda utilizadas em grande abundância em festas nocturnas, dedicadas

aos mesmos deuses alexandrinos.

latim), tornou-se numa feitoria que exerceu nos dois séculos seguintes uma verdadeira hegemonia numa

parte da Campânia, acabando por ter uma grande influência no mundo itálico (Rachet, 1994, pp. 258,

768). Relativamente ao Iseu de Pompeia, R. Mar refere-se a uma despensa na sala dita “do Larário” que

continha, para além de 36 vasos para abluções, 60 lucernas (Mar, 2001, texto da fig. 62 p. 319).

261 Delos apresenta os mais importantes vestígios do culto egípcio no mundo grego: na “plataforma dos

deuses estrangeiros”, a meio da encosta do Cinto, eleva-se o grande conjunto dos santuários egípcios,

Serapeum C, Iseum, Anubieion, que se juntaram desde o século III a. C., sem os destronar completamente,

às duas pequenas capelas primitivas, o Serapeu A e o Serapeu B (Lévêque, 1987, p. 151).

262 Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120.

263 Ruiz de Arbulo, 1996, pp. 120-121.

264 A conotação fúnebre de Osìris estava bem representada na sua “paixão” que tinha lugar em Sais, no

santuário de Atena-Neith onde havia, diz Heródoto (II, 171), «um lago ao pé do qual mima-se à noite a

paixão deste deus que os Egípcios chamam mistérios» (Préaux, 1978, p. 656).

59

II) 5) b) Os contactos greco-egípcios

Segundo S. Morenz265

e sobretudo P. Lévêque266

, sabemos que as relações entre

o Egipto e a Grécia se tornaram particularmente intensas uma vez que o Egipto, sob a

dinastia dos Ptolemeus, foi governado pela Macedónia. A política e a economia fizeram

então vir multidões de Gregos e uma classe bilíngue formou-se a partir de elementos de

uma e outra nacionalidade. Trocas intelectuais de toda a natureza começaram

inevitavelmente. Mas temos de admitir a possibilidade de relações mútuas entre as

religiões egípcia e grega logo antes do início do helenismo.

Desde Heródoto, se não for desde Homero, que os Gregos sabem que o Egipto é

uma terra de maravilhas, berço de toda a sabedoria, pátria dos deuses mais antigos. Os

reis macedónicos irão ali perpetuar a tradição do culto oficial, tornando-se autênticos

sucessores dos Faraós. Tentaram igualmente criar um deus de império que seria

aceitável mesmo para os Egípcios – criação do culto de Serápis, para reunir Gregos e o

povo do Nilo267

. Para além disso, houve um esforço para operar sínteses entre deuses

egípcios, gregos e orientais; os hinos gregos de Isidoro, no santuário faiúnico de

Madinet Madi, fazem de Ísis uma deusa universal, que todos os povos da terra adoram

sob nomes diferentes. No entanto, as primeiras manifestações do culto egípcio no

mundo grego parecem ser muito modestas: no Pireu, em Delos, na Erétria, pequenas

comunidades egípcias trouxeram, no fim do século IV ou no princípio do III a. C., o

culto da sua deusa, Ísis, culto este que, nos primórdios, se limitava provavelmente a

círculos restritos e a capelas bastante medíocres. Mas, nos séculos II e I a. C. – e da

época imperial – assistimos a uma notável florescência dos cultos egípcios nos meios

gregos, revestindo-se de um carácter oficial: Atenas, a Eubeia, a Beócia, Delos e Tera, a

Tessália e a Macedónia, assim como um certo número de cidades da Ásia Menor –

Esmirna, Éfeso, Magnésia do Meandro, Priene –, possuem no século II a. C., e por

vezes mesmo mais cedo, um culto oficial dos deuses egípcios. Estes últimos estão

representados por Ísis, Serápis (a quem os santuários e as festas do culto egípcio na

Grécia vão buscar muitas vezes o nome) e Anúbis (identificado com Hermes),

constituindo uma tríade análoga às famílias divinas dos templos egípcios. Harpócrates,

265

Morenz, 1977, pp. 312, 314-317.

266 Lévêque, 1987, pp. 151-152.

267 Papel de deus do império que tinham outrora ocupado entre um povo homogéneo Hórus, Ré ou Ámon

(Morenz, 1977, p. 315).

60

o deus-menino, aparece igualmente nas dedicatórias gregas, por vezes, aliás, sob o

aspecto adulto de Hórus, tal como Osíris, cuja identidade essencial com Serápis é

provavelmente desconhecida268

.

O mecanismo da difusão e do desabrochar do culto egípcio na Grécia a partir do

século II a. C. suscitou interpretações diversas: intervenção directa dos soberanos

Lágidas, favorecendo a introdução da sua religião egípcia no mundo egeu para aí

aumentar a sua influência; ardor propagandista do clero egípcio; apelo vindo dos

Gregos, seduzidos pelos rituais estranhos de um culto novo, o qual, mesmo ao

helenizar-se, conserva incontestavelmente, em solo grego, uma parte da sua

originalidade. A força de glória que parece possuir nesta época a religião de Ísis e de

Serápis, largamente adoptada pelos Gregos do Egipto, o intenso fervor testemunhado

pelos seus fiéis, explicam talvez em grande parte a sua expansão e o seu sucesso no

mundo grego269

.

II) 5) c) O caso dos Vocontii

II) 5) c) i) A transmissão da luz votiva

Quais eram portanto as oferendas votivas de tradição celta, e as de origem

oriental, para as potências celestes no Sudeste da Gália?

Tomamos como exemplo dois antigos lugares votivos de altura, pré-romanos,

que foram descobertos no departamento do Var270

.

O primeiro lugar, dito “La Peiro de l’Autar” (Cuers), apresenta-se como um

local sagrado que utilizava o espaço à volta de um imponente bloco rochoso, em forma

de mesa. A pequena eminência de instalação está a pouca distância de um habitat

fortificado que parece contemporâneo, datando do século II ou I a. C. Recolheu-se um

lote de várias dezenas de peças metálicas, 14 argolas, 18 pequenas placas, 3 rodelas e

pedaços de chapa em bronze recortados. A maior parte são voluntariamente perfuradas.

268

As divindades do ciclo de Osìris, sua esposa Ísis, seu filho Harpócrates (o “Hórus criança”) e seu fiel

servo Anúbis acabaram por ser as únicas divindades egípcias adoptadas pelas populações helénicas

(Cumont, 1906, p. 95).

269 Entre os numerosos deuses egípcios, os Gregos, desde a época arcaica, tinham dado uma importância

especial ao casal Ísis e Osíris (Burkert, 2003, p. 9).

270 Ver Arcelin et al., 2003, pp. 178-179.

61

Esses elementos de forma, como o modo de furo271

, são característicos dos depósitos de

vários lugares votivos de altura no Sudeste gaulês.

O segundo local de culto do Var é o dos Cannebières (Correns), situado num

maciço, isolado por valezinhos encaixotados das alturas das circunvizinhanças, onde

vários habitats da Idade do Ferro foram inventariados. Os objectos recolhidos

compõem-se de 58 moedas (com uma repartição cronológica que vai do século V a. C.

ao século IV da nossa era), 72 tentos em chumbo, ornados de cruz ou de estrela, 2 em

prata, 78 pregos em ferro, 1 ponta de seta em bronze e 140 recipientes em cerâmica de

dimensões reduzidas (essencialmente de época romana). O símbolo recorrente gravado

nos tentos, a estrela ou os raios da roda do “carro solar”, sugere uma área de depósitos

consagrada a Táranis/Júpiter.

Ou seja, tal como os colonos Gregos ensinaram aos Iberos da Hispânia os

ritos272

com que se venerava na metrópole a Ártemis Efésia273

, os Helenos, instalados

em feitorias ou colónias em Nice, Antibes e Marselha, poderiam ter igualmente

transmitido o acto votivo de oferecer lucernas a certos tribos Celtas da Gália do Sudeste,

como os Vocontii, que muito provavelmente viram em Serápis uma divindade solar ou

celeste, imitando este ritual para o seu deus indígena que tinha características

semelhantes ao deus alexandrino.

De facto, e como já observou P. Brázia274

, já no processo de fusão de Ápis com

Osíris, o grande deus alexandrino acabou por absorver as peculiaridades solares do deus

de Mênfis275

. E durante o período romano, tal como Mitra, ele foi assimilado ao Sol276

,

271

O furo, modo de neutralização da peça ou traço de uma antiga fixação sobre madeira para exposição,

torna-se uma marca ritual ligada ao gesto de oferenda de objectos metálicos ou de pedaços recortados e

reutilizados. Esses modestos presentes deviam ser simplesmente postos à vista ou suspendidos no lugar

sacralizado (Arcelin et al., 2003, p. 178).

272 Provavelmente o ritual das danças, muitas delas de carácter obsceno, que existiam em todos os

santuários das deusas da fecundidade: Esparta, Elis, Corfú, Éfeso, Magna Grécia, Sicília, etc. (Blázquez,

1975, p. 38).

273 Blázquez, 1975, p. 38.

274 Brázia, 2011, pp. 163-164.

275 O touro Ápis (Hapi), a “alma magnìfica de Ptah”, era reconhecido desde os tempos mais remotos

como um princípio procriador relacionado com o deus solar. Quando um touro Ápis morria, outro era

imediatamente engendrado por um raio do Sol (López, 1993, p. 40). No Império Novo do Egipto, Ápis

chegou a ser equiparado à grande divindade solar de Heliópolis, Áton, passando também a ser

representado com o disco solar (Brázia, 2011, pp. 163-164). Também o duplo carácter de Osíris,

simultaneamente deus da fecundidade e dono do mundo infernal, o identificava igualmente com o Sol

62

adquirindo o título de Kosmocrator277

. É sob Nero (imperador romano de 54 a 68 d. C.)

que surgem as primeiras moedas que associam Hélios com Serápis278

, e no “Serapeu de

Cânopo” da Villa de Adriano (Tivoli), Serápis foi representado como uma divindade

solar despertando do lódão primordial279

. Podemos acrescentar por fim as lucernas

hispanienses de Emerita Augusta (Mérida), Los Santos de Maimona (Badajoz), Tocina

(Sevilha), Hispalis (Sevilha) e Vrso (Osuna, Sevilha)280

, representando no disco um

busto de Serápis-Hélios (com 6 raios), representação figurativa aliás muito frequente em

África281

.

Além de Hélios, Serápis havia sido igualmente identificado com Júpiter. J. L.

Vasconcelos282

vem confirmar esta afirmação referindo-se ao autor latino Tácito

(Histor., IV, 84) que, ao falar das tradições em voga no Egipto a respeito de Serápis,

declara que uns o presumem Esculápio, outros Osíris, outros Júpiter, outros, finalmente,

Plutão. O arqueólogo português acrescenta ainda que o epìteto “altìssimo” de Serápis

numa inscrição, em grego e latim, situada numa das fragas do santuário de Panóias

(Vila-Real, Trás-os-Montes), aparece igualmente nas inscrições aplicado principalmente

a Zeus, e, por fim, o deus alexandrino usurpa também outros epítetos que são habituais

de Júpiter como o(ptimus) m(aximus). C. Préaux283

e M. Lurker284

confirmam

igualmente esta assimilação, fazendo de Serápis o “dono do universo” tal como Zeus.

Todas as principais características de Serápis285

serão reunidas pelo imperador

que, durante sua corrida diurna fertilizava a terra e que, à noite, percorria os espaços subterrâneos

(Cumont, 1906, p. 109).

276 Le Glay, 1995, p. 64.

277 Brázia, 2011, p. 43.

278 Brázia, 2011, p. 44.

279 Grenier, 1989, pp. 938-943.

280 Na lucerna de Vrso, ao lado de Serápis-Hélios (o autor J. Alvar que estudou essas lucernas não refere

desta vez o número de raios), temos também um busto de Ísis (Alvar, 2012, p. 78).

281 Alvar, 2012, pp. 54, 55, 58, 59, 76, 78.

282 Vasconcellos, 1913, pp. 345-346.

283 Préaux, 1978, p. 652.

284 Lurker, 1994, p. 199.

285 F. Cumont diz que ao deus alexandrino são atribuídas de preferência as funções de Zeus, de Plutão ou

de Hélios (Cumont, 1906, p. 109).

63

Juliano (reinou entre 361 e 363 d. C.), descrevendo o deus alexandrino como a fusão

entre Zeus, Hades e Hélios286

. Devemos salientar também a inscrição de Dessau

(Inscriptiones Latinae selectae, nº 4396) referido por J. L. Vasconcelos287

, consagrada a

J(uppiter)-O(ptimus)-M(aximus)-Sol-Sarapis, lavrada numa pedra em cujo lado direito

se esculpiu um touro preparado para o sacrifício.

Por sua vez, Ísis tinha sobretudo uma conotação com a Lua288

e, tal como

Serápis ou Anúbis289

possuía um carácter fúnebre290

.

Mas, perguntamo-nos agora o porquê desta tradição aparecer somente na época

romana imperial, não havendo qualquer espécie de lâmpadas nos santuários indígenas

anteriores à criação da Narbonense.

Sendo as lucernas romanas produtos comerciais de grande mercado291

,

acessíveis a todas as bolsas292

, e estando num período de paz (a pax romana, sobretudo

a partir do imperialismo de Augusto), permitindo o desenvolvimento do comércio

marítimo e da comunicação por via terrestre através da ampliação da rede viária (com o

consequente desenvolvimento das trocas comerciais), esses factores permitiriam sem

dúvida aos indígenas adquirir em grande quantidade e a baixo preço lâmpadas

romanas293

, bem como as fabricar eles próprios294

, para os seus fins religiosos.

286

Brázia, 2011, p. 158.

287 Vasconcellos, 1913, p. 519.

288 A deusa do Nilo foi identificada com Luna-Selene, Afrodite e Deméter (Maia e Maia, 1997, p. 56 e

Lévêque, 1987, pp. 154-155).

289 Deus com cabeça de chacal, patrão no antigo Egipto dos mumificadores (López, 1993, p. 99).

290 A identificação de Ísis com a Lua e com Perséfone – e também com Deméter – fê-la brilhar e reinar

sobre os infernos (Burkert, 2003, p. 30).

291 As lucernas eram de uso corrente, produto de uma indústria comum, triviais e baratas, de curta

existência pela sua fragilidade (Almeida, 1952, p. 8).

292 Maia e Maia, 1997, pp. 24 e 44.

293 Com a fundação de grandes fábricas, a produção em larga escala reduziu o preço por unidade.

Tomando como exemplo a África romana, sabemos da existência de grandes firmas de cerâmica que

negociavam por grosso e exportavam enormes cargas de lucernas. Deste comércio por grosso, existiam

igualmente intermediários na colocação de certos artigos num determinado mercado. Certas olarias

forneciam especialmente algumas áreas determinadas, enquanto outras vendiam para todo o lado. Foi no

reinado de Trajano (imperador romano de 98 a 117 d. C.) que se deram profundas alterações na

distribuição dos centros industriais do Império. Surgem em todas as províncias novas indústrias ou

desenvolvem-se as locais, e de tal modo que os seus produtos vão competir com os de origem italiana

(Almeida, 1952, pp. 45, 48, 50, 62).

64

Mas, podemos igualmente colocar a hipótese de uma transmissão não por

colonos gregos durante a época pré-romana, mas através do contacto com templos

egípcios instalados em algumas cidades da Narbonense a partir do principado de

Augusto. De facto, temos conhecimento que muitos emigrantes orientais vinham

procurar fortuna nesta nova província da Gália. As relações de Arles com Alexandria

eram frequentes, e sabemos igualmente que uma colónia de Gregos egípcios,

estabelecida em Nîmes por Augusto, trouxe aí os deuses da sua pátria295

. Os indígenas

da zona podiam ter assistido às cerimónias espectaculares dos cultos egípcios296

e terem

sido influenciados pela propaganda dos seus sacerdotes, ou até eventualmente observar

o comportamento religioso de certos colonos de Gregos egípcios, oferecendo perante os

seus olhos, em vez de moedas ou estatuetas, lucernas votivas.

II) 5) c) ii) Os espelhos votivos

Continuando com os Vocontii, é interessante observar também que junto à

prática oriental de oferecer lucernas, neste caso, a uma divindade solar, havia

igualmente a dos espelhos votivos que, por sua vez, conotavam-se com uma divindade

lunar297

.

Nos santuários de Lachau e de Lardiers298

, foram efectivamente encontrados

dezenas de espelhos circulares metálicos de pequena dimensão299

(para além disso,

294

A abundância da matéria facilitava a multiplicação das oficinas, e uma fábrica de lucernas não

necessitava de instalações grandiosas nem de numeroso pessoal. Os modelos copiavam-se com facilidade

dos tipos romanos, quer evidencie traços originais, quer seja cópia servil (Almeida, 1952, p. 50).

295 Cumont, 1906, p. 102.

296 Os espectáculos processionais (com danças, cantos, música), os cortejos de iniciados e de sacerdotes

vestidos de linho branco, os ritos de purificação, os preceitos cultuais de abstinência e de castidade

impressionaram sem dúvida os passantes (Le Glay, 1995, pp. 44, 62).

297 Ver Barruol, 1985, pp. 343-373 e Barruol, 1987, pp. 415-418.

298 Podemos incluir também o santuário de Alba-la-Romaine (Ardèche), do lado Oeste da zona dita “Cité

des Basaltes”, por apresentar ao lado de uma cova com lucernas votivas, outro depósito votivo

compreendendo, não espelhos, mas vasos em cerâmica, contendo cada um algumas estrelas em metal

(Ayala, 1990, pp. 161- 162). Ora, as estrelas representam um motivo muito recorrente nas figurações de

Selene/Luna, como se pode ver no repertório iconográfico das lucernas de Santa Bárbara, o que nos leva à

hipótese das estrelas do depósito votivo de Alba Helvorum se conotarem efectivamente com uma

divindade lunar, sobretudo quando estão incluídas no mesmo espaço sagrado que as lucernas votivas.

299 Espelhos circulares clássicos, em metal prateado ou estanhado, ou ainda de bronze brunido, de fraco

diâmetro e sem a menor decoração nem inscrição, de um tipo assinalado em outros santuários da Gália

(Barruol, 1985, p. 371).

65

temos igualmente uma centena de pequenos fragmentos de espelhos procedentes de

Lardiers300

), incluindo quatro armações de espelhos em chumbo (tipo evoluído e raro;

pequena placa quadrada, furada de um esvaziamento circular para a colocação de um

disco de vidro) comportando inscrições em grego301

, colocados sob a invocação de

Selene, divindade grega da Lua302

.

A Lua303

era muitas vezes figurada em inscrições sob a forma de um disco ou de

um crescente lunar, e o espelho apresentava-se como um emblema que lhe pertencia304

.

Irmã do Sol (Hélios)305

, representada sob os traços de uma jovem e bela mulher, ela era

no mundo clássico, tal como o seu irmão, objecto de devoções essencialmente pessoais

– invocada em particular pelos amantes – e sobretudo venerada nos meios populares e

rurais. Astro das noites, a Lua evoca também a luz nas trevas (lucifera306

), mas uma luz

que é somente o reflexo daquela do Sol.

P. Brázia307

salienta a dialéctica que temos entre pares celestiais Sol-Lua, em

que o princípio feminino e nocturno (Lua) se contrapõe ao princípio masculino e diurno

(Sol). M. G. P. Maia e M. Maia308

, por sua vez, recordam a associação de Selene com

bustos de Hélios309

.

300

Rolland, 1962, p. 656.

301 Esses espelhos datam do século II ou III d. C., fabricados na officina de Quintos Licinios Touteinos,

plumbarius e specularius, situada em Arles (Barruol, 1985, pp. 363-364).

302 Os espelhos de Quintos Licinios Touteinos foram colocados sob a invocação e a protecção de

divindades especificamente gregas: Afrodite e Selene (Barruol, 1985, p. 372).

303 A deusa romana da Lua era Luna, cedo assimilada a Diana. Onde quer que o seu nome apareça, em

especial nos poetas, traduz simplesmente Selene (Grimal, 2009, p. 286).

304 O espelho (speculum), na origem, era utilizado para o estudo dos astros e, por conseguinte, utilizado

em adivinhação. Segundo uma lenda, Pitágoras teria possuído um speculum mágico que apresentava à

face da Lua para ver nele o futuro (Barruol, 1985, p. 371). No mundo hitita, o espelho é próprio das

deusas do destino que lêem o futuro num espelho de água (Rachet, 1994, p. 628).

305 Selene podia ser considerada também como filha do deus-sol Hélios, percorrendo o céu num carro de

prata puxado por dois cavalos (Grimal, 2009, p. 414).

306 Lucifera é o nome latino de Fósforo que é o nome com que por vezes se designa a Estrela da Manhã,

astro que anuncia a Aurora e traz a luz do dia, geralmente chamada Heósforo (Grimal, 2009, pp. 178, 203,

286).

307 Brázia, 2011, p. 65.

308 Maia e Maia, 1997, pp. 65-66.

309 Em termos epigráficos, podemos tomar como exemplo as duas lápides com inscrição referidas por J.

L. Vasconcelos (Corpus, II, 258 e 259), encontradas próximo de Colares, consagradas, uma ao Sol e à

Lua (Soli et Lunae), e a outra ao Sol eterno e à Lua (Soli aeterno Lunae) (Vasconcellos, 1913, pp. 239-

240, 364).

66

Para G. Barruol310

, os tais espelhos consagrados (a Selene) sublinham e

confirmam a contribuição orientalizante e o sincretismo religioso da época romana desta

área da Narbonense311

.

Concordando com a afirmação deste autor sobre uma origem orientalizante dos

espelhos votivos, relembramos que a deusa egípcia Ísis312

, durante a época helenística e

segundo a interpretatio graeca, foi assimilada a Selene313

. Para além disso, através dos

estudos de M. Lurker314

, sabemos também que, no Egipto, desde ao menos o Império

Médio, o disco solar serviu de modelo ao suporte do espelho e que no decurso de certos

ritos egípcios, algumas deusas, como Hátor e Mut, recebiam dois espelhos em oferenda.

Ora, a deusa Mut, esposa de Ámon, tornou-se o “olho de Ré” aquando da elevação do

seu esposo ao nível do deus-sol, um atributo que também irá ser atribuído a Ísis315

. Por

seu lado, a deusa do céu Hátor, também conhecida por “Olho do Sol”316

, foi considerada

nos tempos antigos como mãe do deus solar Hórus (o Sol e a Lua eram os seus dois

olhos), até que Ísis a substitui neste papel (Hórus tomou então a forma de Harpócrates, o

“Hórus menino”), acabando esta última por estar estreitamente ligada a Hátor sob o

Império Novo, tomando até emprestado os seus ornamentos e atributos característicos,

como o toucado composto dos cornos de vaca com disco solar, ou o sistro, instrumento

de música de percussão317

. Ou seja, o espelho votivo acaba por não ser alheio a deusa

310

Barruol, 1985, p. 373.

311 É interessante notar a proposta de G. Ayala sobre a loja nº 5 do centro político e religioso da cidade de

Alba, no Sudeste da Gália, interpretando esta última como sendo na realidade uma pequena capela,

baseando-se, entre outros indícios, na descoberta de uma armação de espelho em chumbo juntamente com

numerosas pequenas lucernas, com um repertório iconográfico composto de divindades lunares ou da

figura de Cupido (Ayala, 1990, pp. 158-159, 189).

312 Plutarco via em Ísis uma divindade lunar. É interessante notar também que Osíris, na sua qualidade de

senhor do mundo inferior, representava o Sol nocturno; queria-se mesmo o reconhecer na Lua, as fases

deste astro sendo interpretadas como a correspondência cósmica da morte e da ressurreição (Lurker,

1994, pp. 125, 167 e López, 1993, p. 97).

313 Lurker, 1994, pp. 137-138 e Barruol, 1985, p. 373.

314 Lurker, 1994, pp. 111-112, 118-119, 125, 144, 146.

315 Para o povo egípcio, Ámon-Ré, esposo de Mut, era comparado ao Bom Pastor que cuida do seu

rebanho, era antes de tudo “o deus que atende às súplicas”. Todos acudiam a Ámon buscando protecção.

(López, 1993, pp. 153-154). Mais tarde, Serápis, esposo de Ísis, irá substituir o deus soberano Ámon

(Morenz, 1977, p. 315). Os Gregos remeterão nele suas esperanças de salvação sob todas as formas

(Préaux, 1978, p. 651).

316 López, 1993, p. 31.

317 No nomo II do Alto Egipto, Hátor acabou por ser a esposa de Hórus, viajando cada ano desde Dendera

até Edfu para se reunir com o seu esposo (“Festa da boa reunião”) – carregava-se a estátua da deusa numa

67

Ísis.

Devemos acrescentar também que Hátor, no período helenístico, foi igualmente

identificada com a deusa do amor Afrodite318

. Ora, sabemos que esta deusa grega

recebeu no período romano espelhos como ex-votos319

, que era honrada no grande porto

de Marselha320

e que se podia conotar com a Lua321

, até ser identificada com uma deusa

lunar como era Caelestis. De facto, a deusa Celeste (Caelestis), sucessora da Astarte

semítica, isto é, a deusa Tanit322

, era uma divindade da Lua que foi assimilada a outras

deusas clássicas, tais como Diana, Vénus, Urânia, Fortuna, Cíbele, pelo que se tornou

panthea e uma «verdadeira emula feminina de Serápis»323

. Entre os seus atributos

simbólicos figurava o disco de Vénus e a meia-lua324

.

Para além dessas deusas, outras divindades orientais se podiam conotar com os

espelhos, como a deusa frígia Cíbele. De facto, sabemos que nos Hititas o espelho era

um atributo da deusa Kubaba, divindade de origem certamente suméria, que se tornou a

Cìbele (fr. “Kybèle”) do mundo greco-romano325

, referida igualmente como uma das

identificações de Caelestis.

Ou seja, várias possibilidades podem ser apresentadas em termos da origem

oriental dos espelhos como ex-votos, mas, sendo a lucerna votiva de fundo muito

provavelmente egípcio transmitido aos indìgenas “Voconces”, tendemos mais para uma

mesma origem no caso da oferta votiva de espelhos, remontando talvez esta tradição,

consoante as provas arqueológicas de espelhos consagrados, à antiga deusa egípcia

barca que remontava o rio até Edfu (López, 1993, p. 28). Esta cerimónia utilizando uma barca lembra a de

navigium Isidis dedicada a Ísis protectora dos marinheiros, exibindo-se lucernas em forma de pequenos

barcos (Maia e Maia, 1997, p. 56) e fazendo deslizar nas águas do mar um navio consagrado a deusa

nilótica (Cumont, 1906, p. 118).

318 López, 1993, p. 32.

319 Ver Barruol, 1985, pp. 343-373 e Barruol, 1987, pp. 415-418.

320 Barruol, 1985, p. 370.

321 Afrodite era apelidada de Lucifera como a Lua, e como Luna partilhava a mesma virtude fecundante,

estimulando a reprodução de todos os seres animados (Barruol, 1985, p. 370).

322 Na época romana, Tanit (deusa da Lua dos Cartagineses) foi substituída em Cartago primeiramente por

Iuno, e Iuno Caelestis, e depois por Caelestis (Vasconcellos, 1913, p. 356).

323 Vasconcellos, 1913, p. 357.

324 Vasconcellos, 1913, pp. 356-357.

325 Rachet, 1994, p. 628.

68

Hátor, cujo ritual votivo se transmitiu depois para as deusas gregas Selene e Afrodite,

três divindades que foram assimiladas pela grande deusa nilótica Ísis326

. Para além

disso, relembramos as relações frequentes que existiam entre a cidade de Arles, berço

da oficina que fabricava os espelhos votivos consagrados a Selene, e a cidade de

Alexandria.

Teríamos portanto nos santuários indígenas de Lachau e de Lardiers a presença

de um casal divino celeste composto por uma divindade solar (a principal) e outra lunar,

recebendo cada uma delas um certo tipo de ex-voto de inspiração oriental e consoante

os atributos característicos da divindade consagrada: a luz votiva para o Sol; o speculum

para a Lua.

II) 5) d) A toponímia de “Santa Bárbara”

A toponímia de “Santa Bárbara” vem confirmar a presença clara dos deuses

alexandrinos no nosso santuário. De facto, os atributos e características da mártir de

Nicomedia, enumerados por C. Lapparent327

, adequam-se perfeitamente aos dos deuses

egípcios Serápis e Ísis.

Em primeiro lugar, devemos relembrar que Ísis surge invariavelmente associada

a Osíris, e que este último foi substituído no período greco-romano por Serápis que lhe

tomou as suas características328

. De facto, Ísis é a deusa que os Ptolemeus escolheram

para constituir com Serápis o casal divino protector da nova dinastia329

. Muitas vezes o

culto da grande deusa do Egipto surge associado ao de Serápis330

, fazendo com que as

duas divindades apareçam conjuntas em representações figurativas ou na epigrafia. No

Museu do Louvre por exemplo, J. L. Vasconcelos331

afirma existir duas lucernas em que

326

Ísis era igualmente identificada com Vénus, como Harpócrates o era com Eros (Cumont, 1906, pp.

110-111). De notar a existência, no repertório iconográfico das lucernas votivas de Santa Bárbara, de 28

peças com a figuração de Eros/Cupido (Maia e Maia, 1997, pp. 48-50).

327 Lapparent, 1926, pp. 5-61.

328 Brázia, 2011, p. 37.

329 Leclant, 1981, p. 44.

330 Maia e Maia, 1997, p. 22.

331 Vasconcellos, 1913, p. 349.

69

os bustos das duas divindades andam juntos332

, existindo igualmente outros

monumentos com o par divino no Museu de Alexandria. Por outro lado o mesmo autor

acrescenta também a existência de inscrições em que Serápis coexiste com Ísis: Serapi

conservatori et Isidi ceterisq(ue) dis deabus(que) immortalibus333

. O mesmo fenómeno

pode-se aplicar para a Hispânia, onde os testemunhos mais antigos de época romana

põem em evidência que a chegada de Ísis nesta província é igualmente acompanhada do

seu paredro Serápis334

. Podemos de facto observar a presença deste par divino no

templo M de Emporiae335

(Ampúrias, Gerona) ou na cidade de Pax Iulia, onde as duas

divindades viveram lado a lado336

.

Vejamos agora as equivalências entre os atributos de Santa Bárbara e os dos

deuses alexandrinos.

Começamos primeiro com a conotação da mártir de Nicomedia com o raio,

tornando-se a protectora contra as trovoadas, sendo igualmente apelidada a santa do

fogo. Já vimos que esta ligação com o fogo do céu podia-se reportar ao deus celta

Táranis (ou qualquer outra divindade indígena do raio) que, através de uma interpretatio

romana, se torna Júpiter (Zeus). Ora, sabemos que Serápis foi igualmente assimilado a

Zeus, bem como a Hélios, o deus Sol337

.

Por se ter refugiado num rochedo aquando da sua perseguição pelo seu pai, a

santa tornou-se a padroeira dos mineiros e dos trabalhadores numa pedreira. Este

padroado é particularmente comum nos países detentores de várias minas, onde alguns

poços são baptizados com o nome de Santa Bárbara. Na entrada, ou no fundo da cova,

podemos encontrar às vezes um altar, muitas vezes uma imagem, que protege contra o

grisu e contra os desabamentos338

. Ora, sabemos que Osíris, deus egípcio do mundo

332

Relativamente às lucernas, podemos referir ainda as de Padrão (Portalegre), Badajoz, Emerita Augusta

(Mérida), Santa Amalia (Badajoz), La Bienvenida (Ciudad Real), Vrso (Osuna, Sevilha), Malaca

(Málaga), Cacabelos (Leão), e talvez de Tróia (Grândola) e Vila do Bispo (Algarve), representando no

disco a tríade Ísis, Serápis e Harpócrates (Alvar, 2012, pp. 40, 41, 45, 52, 55, 59, 78, 92, 135).

333 Dessau, Inscript. selectae, II, nº 4383.

334 Alvar, 2012, p. 20.

335 Alvar, 2012, pp. 95-100.

336 Maia e Maia, 1997, pp. 22-23.

337 Préaux, 1978, p. 652 e Cumont, 1906, p. 109.

338 Lapparent, 1926, pp. 8-9, 27-28.

70

inferior, foi substituído por Serápis no período greco-romano, apoderando-se este

último das suas características infernais339

, sendo depois identificado por Tácito

(Histor., IV, 84) com Plutão340

. Este atributo de deus infernal torna portanto Serápis

dono do mundo inferior e das riquezas do subsolo, tal como o era Plutão o “Possuidor

de riquezas” – o epíteto fazia alusão à riqueza inesgotável da terra, tanto da terra

cultivada como das minas que encerra341

. Ísis acabou igualmente por se tornar uma

divindade infernal (identificada com Perséfone)342

. A benevolência das divindades

alexandrinas incluía portanto a riqueza e os negócios de dinheiro. Aelius Aristide (XLV,

18) proclamava que «mesmo a aquisição da riqueza é um dom de Serápis», e inscrições

votivas chamam Serápis o “Salvador que dá riquezas” (Sôtèr Ploutodotès). Pode-se até

lhe ser grato por uma redução de impostos343

. Importante é notar igualmente que na

aldeia de Santa Bárbara de Padrões não existe nenhuma mina, e que só a 6,6 km em

linha recta temos a presença das minas de Neves Corvo.

O costume de meter na água, a 4 de Dezembro, grãos de trigo ou ramos de

cerejeira, que devem germinar ou florir no dia de Natal em presságio de uma boa

colheita, atesta também a influência atribuída a Santa Bárbara sobre os bens da terra344

.

Voltamos a encontrar aí os atributos do deus alexandrino, símbolo da fertilidade

agrícola345

, em que a sua função de “doador de trigo” foi exprimida pelos Gregos

através do kalathos que lhe orna a cabeça346

. De facto, Serápis foi assimilado como

sabemos a Osíris, o deus da fecundidade dos campos347

, em que o seu aspecto vegetal

era simbolizado pelo grão348

, identificado portanto directamente com os cereais, que são

339

Préaux, 1978, p. 652 e Brázia, 2011, p. 37.

340 Vasconcellos, 1913, pp. 345-346.

341 Grimal, 2009, pp. 189-190, 380.

342 Burkert, 2003, p. 30.

343 Burkert, 2003, p. 19.

344 Lapparent, 1926, p. 30.

345 Brázia, 2011, p. 42.

346 Préaux, 1978, p. 652.

347 Préaux, 1978, p. 652.

348 Segundo M. Lurker (1994, p. 166), o grão conotava-se com a penetração na terra (enterramento), o

descanso nas trevas (mundo inferior) e a germinação da nova semente (ressurreição).

71

espalhados, depois reencontrados349

. Também Ísis, assimilada a Deméter, foi

considerada uma deusa agrária, símbolo da fecundidade da terra e garante das

colheitas350

.

C. Lapparent refere-se em seguida a um quadro muito interessante da escola

florentina (infelizmente não diz a data nem o nome do pintor da obra em questão),

apelidado de “Túmulo de Santa Bárbara”. Na pintura, podemos observar, segundo a

descrição do autor, o cenotáfio da santa com lâmpadas a brilhar por cima dele e, em

toda a volta, podem-se ver coxos, cegos, que vinham implorar a sua cura351

. Este quadro

revela-nos portanto o poder que tinham as relíquias da santa em curar os enfermos. Este

poder reencontra-se tanto em Serápis352

como Ísis353

, os dois identificados com

Asclépio (o Esculápio dos Latinos), o deus da Medicina354

. De facto, os deuses

alexandrinos eram especializados na cura, com um sucesso considerável – os iatreia,

“retribuições para cura”, devem ter sido uma fonte assaz importante de rendimentos

para os santuários355

. Para além disso, reencontramos no quadro da santa a presença de

lâmpadas, objectos de luz imprescindíveis nos cultos egípcios.

Sendo padroeira dos moribundos e preservando do golpe da morte repentina, os

devotos de Santa Bárbara, para não acabarem na impenitência e privados dos

sacramentos, não faltavam em colocar sob sua protecção a expressão de seus últimos

votos356

. Ora, Ísis tinha igualmente autoridade para prevenir uma morte iminente e

outorgar uma vida nova, novae salutis curricula (mas desta vez tratava-se da vida no

nosso mundo; durante a Antiguidade pagã, a maneira de pensar a vida, a felicidade e a

349

Burkert, 2003, p. 78.

350 Grenier, 1989, p. 959.

351 Lapparent, 1926, pp. 45-46.

352 Segundo C. Préaux, Serápis era sobretudo um deus “curandeiro” cujos milagres explicam o seu imenso

sucesso no mundo helenístico (Préaux, 1978, p. 652).

353 Ísis ela mesma, entre outras identidades, é Hygieia, a Saúde divinizada. A incubação era praticada nos

santuários de Ísis tanto como os de Asclépio (Burkert, 2003, p. 19).

354 Para Ísis: Burkert, 2003, p. 19; para Serápis: Brázia, 2011, p. 42, Lévêque, 1987, p. 153, Préaux, 1978,

p. 652 e Lello, Vol. II, p. 882.

355 Burkert, 2003, p. 19.

356 Lapparent, 1926, p. 15.

72

morte, era diferente da do Cristianismo357

), graças ao seu poder sobre o destino358

, o

fatum359

.

A mártir de Nicomedia é também patrona dos marinheiros360

, que pensam nela

quando vêem o fogo-de-santelmo361

na ponta dos mastros362

(na Antiguidade, o fogo-

de-santelmo era identificado com as entidades divinas dos Dióscoros363

). O caso da

aldeia de “Sainte-Barbe” em França, ao pé de Dieppedalle, nas cercanias de Ruão, deve

verosimilmente seu nome à devoção dos antigos pilotos364

. Ísis era igualmente, como já

observou P. Brázia365

, a protectora da navegação e dos marinheiros que a ela apelavam

aquando das intempéries366

, e Serápis foi também considerado como um deus da

navegação367

.

357

Os deuses orientais e seus mistérios não trazem uma reorientação da religião para preocupações do

Além. Nos olhos de um pagão, o Cristianismo era uma religião de túmulos, demasiado preocupado pela

morte e desvalorização moral (fr. “déchéance”). Nenhum dos mistérios pagãos jamais ensinou em

“morrer ao mundo”; nenhum processo era feito à laetitia vivendi. Nos mistérios, não havia fé dogmática

num triunfo sobre a morte como não havia desvalorização da vida (Burkert, 2003, pp. 32-33).

358 O destino, que no pensamento grego era absolutamente fora do poder dos deuses e tinha ameaçado

aqueles até na sua existência, é subordinado à direcção de Ísis (Morenz, 1977, p. 318). A salvação que ela

garante, aos navegadores, aos homens inquietos, aos mortos, deve-se ao seu poder de fazer triunfar a

ordem. E é sem dúvida também por essa razão que os Gregos a tomam por superior ao destino (Préaux,

1978, p. 659).

359 Burkert, 2003, p. 21.

360 Ver Lapparent, 1926, p. 22 e estampa p. 53.

361 Segundo uma descrição do século XIX, o fogo-de-santelmo tinha a forma de «línguas de fogo azuis e

brancas» que se erguia de objectos verticais (Compère, 1997, p. 72). É portanto um pequeno penacho

luminoso que por vezes se vê na extremidade dos mastros e vergas dos navios e que é devido à

electricidade atmosférica (Lello Universal, vol. I, p. 1027).

362 Lapparent, 1926, p. 24.

363 Os Dióscoros, protectores daqueles que vão sobre o mar, eram deuses luminosos que se acreditava por

vezes aptos em aparecer sobre a ponta dos mastros (Marcadé, 1952, p. 71). Chamava-se portanto

“Dióscoros” aos fogos-de-santelmo de duas pontas, que os marinheiros consideravam um presságio

favorável (Grimal, 2009, p. 123 e Garcia, 2000, nota 23 p. 65).

364 Lapparent, 1926, pp. 25-26.

365 Brázia, 2011, p. 38.

366 A soberania da grande deusa do Egipto sobre as cheias do Nilo é um dos antecedentes egípcios à

figura helénica da Ísis Pelagia (ou Pharia ou Euploia). Celebrava-se em sua honra as Ploiaphésia, festa

da retomada da navegação, e as aretologias dizem-na dona das águas e do mar (hino de Kymé) e

inventora da navegação (hinos de Kymé e de Ios). O hino de Andros precisa que se trata da invenção da

vela. A Ísis Pelagia venerada em Delos e em numerosos portos do mundo grego foi a divindade a quem

os marinheiros salvos do naufrágio ofereciam ex-votos. São aí traços estritamente gregos (Bruneau, 1961,

pp. 443-444 e Bruneau, 1963, pp. 305-306).

367 Montero, 2002, p. 129.

73

Virgem estudiosa que se iniciou muito rapidamente às verdades da fé cristã e

que teve a intuição do mistério da Trindade, nenhum outro, entre os eleitos, fez prova de

maior vivacidade na instrução das verdades sublimes da doutrina evangélica que a nossa

Santa Bárbara. É esta sede em conhecer os grandes mistérios da fé que valeu à mártir de

Nicomedia o título de protectora dos livreiros e também dos escolares368

. Ora, sabemos

que tanto uma parte do culto de Ísis como de Serápis369

era considerada igualmente

como um culto de mistério, em que a iniciação permitia um aprofundamento ou

extensão de uma piedade preexistente, por uma nova intimidade com o divino

(revelação ao iniciado dos “segredos” relativamente à divindade e sua mitologia), em

formas ao mesmo tempo conhecidas e novas370

. A propaganda isíaca adoptou a

perspectiva grega, como o prova o que chamamos as aretologias de Ísis, nas quais esta

deusa371

, entre outras actividades civilizadores, é proclamada fundadora, em todo o

mundo, dos mistérios. Os santuários de Ísis começaram a oferecer iniciações pessoais,

no modelo das de Elêusis e de Dioniso, num estilo perfeitamente adaptado às formas

egípcias de ritual e de mitologia372

. Para além do culto de mistério, não esquecemos

também a vertente erudita dos sacerdotes egípcios e o caso do Serapeu de Alexandria,

célebre pela sua biblioteca.

A virgem de Nicomedia, «belle comme la pleine lune»373

, santa esposa

(espiritual) do Cristo crucificado e ressuscitado, tornou-se muito rapidamente numa das

santas mais honradas, mais invocadas e mais populares. Por toda a parte, foram-lhe

dedicados santuários. Esta sua reputação universal encadeou uma produção literária

considerável, tornando-se num tema de um grande número de “Paixões gregas” ou

sírias, de Acta, de Vitae, de Sermones. A liturgia latina consagrou-lhe mais de duzentas

e cinquenta peças. Os dramaturgos religiosos extraíram da sua vida e martírio

368

Lapparent, 1926, pp. 28-29, 60.

369 Diz-se nas Metamorfoses do Asno de Ouro de Apuleio que Lúcio (Lucius Apuleius), o protagonista do

romance, depois de ser iniciado nos mistérios de Ísis, fora pela deusa avisado de que deveria iniciar-se

também nos de Osíris ou Serápis, deuses que Apuleio confunde (Vasconcellos, 1913, p. 351). Na obra da

Chave dos sonhos de Artemidore de Daldis (II, 39), é mencionado os “mistérios” de Serápis, Ísis, Anúbis

e Harpócrates, entre outros (Burkert, 2003, p. 90 e nota 15 pp. 148-149).

370 Burkert, 2003, p. 56.

371 A assimilação de Ísis a Deméter fazia dela uma deusa dos mistérios ctonianos (Leclant, 1981, p. 44).

372 Burkert, 2003, p. 46.

373 Lapparent, 1926, p. 14.

74

numerosos Mistérios374

. Por sua vez, Ísis, identificada como já vimos com a Lua que era

representada sob os traços de uma jovem e bela mulher, esposa (mas num sentido mais

mundano) de um deus que foi assassinado e ressuscitado depois, tornou-se também a

deusa mais popular na Antiguidade, e seus mistérios penetraram na totalidade do mundo

antigo375

. A sua grandeza deu lugar à composição de aretologias376

e as peripécias da

paixão e da ressurreição de seu esposo Osíris377

foram reproduzidas (cerimónias

miméticas) em muitas cidades do Egipto, sobretudo Abido378

(representações sagradas

análogas aos mistérios da Idade Média)379

, e até, quase nas mesmas formas, em

Roma380

, com uma maior intervenção de Ísis381

.

Por fim, desta crença em Santa Bárbara, nasceu em Faouët, na antiga diocese de

Cornouailles (França), uma das mais célebres peregrinações à mártir de Nicomedia. Na

noite de 3 a 4 de Dezembro, as circunvizinhanças de Faouët animam-se de uma maneira

extraordinária: «dans les châtaigneraies, les feuilles mortes froufroutent sous les pas;

des galoches ferrées résonnent sur le sol gelé. Comme des feux follets, des lumières

voltigent çà et là par les chemins creux. Des ombres, de toutes parts, surgissent et se

rassemblent sur le plateau, comme pour quelque nouvelle chouannerie. Bientôt, les

vitraux s’illuminent: les cierges de l’autel se sont allumés. La clochette tinte, le

374

Lapparent, 1926, pp. 13-15, 30-36, 61.

375 Lurker, 1994, p. 30.

376 Bruneau, 1961, p. 443.

377 Conservou-se o ritual: o deus saindo do templo tombava sob os golpes de Set; em seguida, simulava-se

à volta de seu corpo as lamentações fúnebres e inumava-se segundo os ritos; por fim, Set era vencido por

Hórus, e Osíris, a quem a vida foi devolvida, regressava ao seu templo após ter triunfado da morte

(Cumont, 1906, p. 119).

378 Desde o início a cidade de Abido tornou-se o principal centro funerário do antigo Egipto. Os reis das

duas primeiras dinastias (tinitas) tinham sua capital em This (Tinis) e recebiam sepultura em Abido, que

era o cemitério da capital. Os túmulos destes reis achavam-se em Um el Gaab, ao pé da escarpa desértica,

donde se supunha ser o local do sepulcro de Osíris. Abido converteu-se no mais importante santuário do

deus no Egipto e o principal centro de peregrinação, eclipsando Busiris, a pátria de Osíris no Delta. Todos

desejavam ser enterrados em Abido ou colocar pelo menos um cenotáfio (López, 1993, pp. 98-99).

379 Em Sais houve também representações da “paixão” de Osìris, no santuário de Atena-Neith onde havia,

diz Heródoto (II, 171), «um lago ao pé do qual mima-se à noite a paixão deste deus que os Egípcios

chamam mistérios» (Préaux, 1978, p. 656).

380 Ísis, cheio de dor, procurava no meio das lamentações desoladas dos sacerdotes e dos fiéis o corpo

divino de Osíris, cujos membros tinham sido dispersados por Typhon. Em seguida, o corpo encontrado,

reconstituído, reanimado, era uma extensa explosão de alegria, uma jubilação exuberante que ressoava

dos templos e das ruas (Cumont, 1906, pp. 119-120).

381 Cumont, 1906, pp. 119-120.

75

sanctuaire s’emplit. Sur le parvis, les pèlerins s’agenouillent. Les prêtres reçoivent

l’aveu des fautes. A la messe de nuit en succède une autre, puis une autre encore.

Jusqu’au jour, la foule se presse à la sainte Table. Une dernière messe a lieu vers dix

heures. Mais, déjà, les coiffes blanches, les vestes de toile bise se sont égaillées dans la

campagne en murmurant l’invocation qui assure la bonne mort, qui preserve du

naufrage, de l’incendie et de la foudre: “Intron santez Barbon, pedit evi damp –

Madame sainte Barbe, priez pour nous!”»382

. Podemos notar nesta descrição de C.

Lapparent que a célebre peregrinação e missas dedicadas à santa de Nicomedia se fazem

exclusivamente durante a noite (até de manhã, com uma última missa às dez horas),

trazendo os numerosos peregrinos lâmpadas que lhes iluminam os passos até a igreja,

iluminada por sua vez à luz das velas do altar. Dentro do edifício de culto, os padres

recebem dos peregrinos a confissão das faltas e os devotos murmuram a invocação que

assegura a boa morte e livra do naufrágio, do incêndio e do raio. Esta peregrinação de

noite relembra em muito as festas nocturnas consagradas aos deuses alexandrinos

(particularmente Ísis), como a celebração da Lychnokaie, das Lychnapsia ou do

Nyktelion383

.

II) 5) e) Os tanques

Sabemos que nos santuários romanos existiam, defronte ao recinto do local de

culto ou no interior, poços ou ninfeus, que forneciam a água necessária para as abluções

rituais384

e para o culto385

.

Segundo M. Maia, os tanques de Santa Bárbara podiam ser na realidade parte de

uma estrutura balnear romana386

, relacionando-se com o culto das águas que aqui se

382

Lapparent, 1926, pp. 17-18, 22.

383 Ruiz de Arbulo, 1996, pp. 120-121.

384 Qualquer fiel devia observar um certo asseio ritual para “abordar” a divindade. Cìcero (Leg. II, 10, 24-

25) relembra que «a lei manda que se adora os deuses com pureza» (Laforge, 2009, nota 96 p. 112). Para

Macróbio (Sat. 3, 1, 6), antes de sacrificar aos deuses de cima há-de se purificar por uma ablução de todo

o corpo (corporis ablutione purgari), mas para sacrificar aos deuses infernais basta uma aspersão (Boëls-

Janssen, 2004, nota 19 p. 204).

385 Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62.

386 Maia, 2006, p. 41.

76

praticaria387

. Sabemos de facto que os Ninfeus388

eram geralmente anexos às termas389

,

nos jardins390

.

Relativamente aos santuários egípcios, W. Burkert391

relembra que a autêntica

tradição egípcia ligava Osíris e o Nilo, a água doadora de vida que seca pouco a pouco e

contudo regressa com a enchente do Verão. Nas cerimónias do culto de Ísis e de Osíris,

mostrava-se um vaso contendo a água do rio sagrado do Egipto, levado em procissão, e

uma espécie de enchente artificial do Nilo podia ser posto em cena nos locais de

culto392

. Por sua vez, J.-C. Grenier393

afirma que os santuários das divindades egípcias

implantados fora do Egipto possuíam acomodamentos hidráulicos que constituíam um

elemento essencial e indispensável. Canais interiores, tanques alimentados por cisternas

e aquedutos substituíam-se ao Nilo cuja água era indispensável para o exercício do culto

e o cumprimento dos ritos. Podemos tomar como exemplo o caso dos tanques cheios de

água dos Iseus de Baelo Claudia394

e Italica395

, ou, de grande cenografia, o complexo

acomodamento hidráulico do “Serapeu de Cânopo” da Villa de Adriano em Tivoli396

,

387

Maia e Maia, 1997, p. 22. M. Maia comunicou-me igualmente, durante as nossas conversas no Museu

da Lucerna, que nesta zona do Alentejo se podem encontrar muitas fontes de águas sulfurosas.

388 Um Ninfeu era um lugar consagrado às ninfas, divindades das águas e mais especialmente dos rios. Ao

longo do tempo, os templos que lhes eram dedicados tomaram a forma de um edifício de planta

geralmente circular, semicircular ou elíptica. Por vezes eram ornados de estátuas e de pinturas e tinham

no centro uma fonte (Silva e Calado, 2005, pp. 256-257).

389 As termas romanas podiam possuir múltiplos compartimentos: caldarium (banho quente), tepidarium

(banho tépido), frigidarium (banho frio), laconicum (banho quentíssimo), vaporarium (banho de vapor),

heliocaminus (banho de sol), apodyterium (vestiário), palestra (local de palestra e preparação), piscinas

para nadar (natationes), espaço de bebidas, etc. As mais completas tinham bibliotecas, salas de reunião,

lojas (Silva e Calado, 2005, p. 352).

390 Silva e Calado, 2005, p. 257.

391 Para esta afirmação, W. Burkert baseou-se na obra de R. A. Wild, Water in the Cultic Worship of Isis

and Sarapis, EPRO 87, Brill Academic Pub, Leyde, 1981 (Burkert, 2003, pp. 78, 100).

392 Na medida do possível, buscava-se reproduzir a imagem das simbólicas inundações periódicas do

Nilo, o que requeria uma instalação arquitectónica mais sofisticada (Mar, 2001, p. 325).

393 Grenier, 1989, pp. 960-961.

394 Ver Pelletier et al., 1987, pp. 65-105 e Pelletier et al., 1988, pp. 19-51.

395 Ver Alvar, 2012, pp. 60-61.

396 Ver Grenier, 1989, pp. 925-1019.

77

representando todos uma figuração do Nilo em enchente. Por fim, N. Genaille397

acrescenta a existência de outros tipos de tanques, como os de aspersão de rito grego,

localizados na entrada dos templos para a purificação dos fiéis antes do contacto com a

divindade (exemplo do santuário de Ísis em Pérgamo), e os de ablução, reservados aos

sacerdotes devido à sua localização junto do edifício sagrado, à direita da cella ou da

estátua (é bem conhecida a “pureza” dos ministros egípcios398

). O seu canal de

escoamento seria característico. O autor dá como exemplos plausíveis os templos

egípcios em Gortina399

(mas o meio de escoamento não é conhecido) e em Sábrata400

(dois extensos tanques alimentados por poços, com os seus orifícios de drenagem).

Pompeia seria de um outro tipo, com um largo recipiente de metal (hoje desaparecido).

Temos também o Serapeu de Alexandria, onde são discerníveis seis construções

destinadas às abluções. Por fim, em Coríntia, um compartimento onde se acumulava a

água dos telhados vizinhos foi interpretado da mesma maneira.

De salientar por fim algumas notas de Tertuliano (Bapt., 5, 1) a propósito de um

banho (lavacrum) nos cultos de Ísis e de Mitra401

.

Sendo Arandis muito provavelmente uma cidade-santuário e estação viária de

passagem obrigatória entre Pax Iulia e Ossonoba, o santuário dos Aranditani devia

397

Observações que resultam de uma recensão crítica do autor sobre a obra de R. A. Wild, Water in the

Cultic Worship of Isis and Sarapis, EPRO 87, Brill Academic Pub, Leyde, 1981 (Genaille, 1983, pp. 306-

307).

398 O ritual egípcio sempre atribuiu uma importância considerável à pureza ou ao asseio. Antes de

qualquer cerimónia, o oficiante devia submeter-se a abluções, por vezes a fumigações ou unções, impor-

se a abstinência de certas iguarias e a continência durante um certo tempo (Cumont, 1906, p. 111).

399 Cidade da antiga Creta, ela foi construída nas margens da ribeira Lethaios, ao pé de uma acrópole, nas

faldas do monte Ida (planície de Mesara). Segundo tradições divergentes, foi fundada por Minos, o que

lhe dá uma origem minoana, por Laconianos, ou ainda por Tegeatas. Iniciando seu reinado sobretudo no

século III a. C., tornou-se rival de Cnossos, acabando por ser promovida, aquando da dominação romana,

como capital da ilha. O monumento mais importante é o templo de Apolo Pythios, situado no coração da

cidade. Na vizinhança, encontrava-se também um templo dedicado a Ísis e Serápis e um ninfeu do II/IV

século d. C. (Lello, vol. I, p. 1147 e Rachet, 1994, pp. 384-385).

400 Cidade romana da Tripolitânia (Líbia), a 64 km a Oeste de Trípolis, teria sido fundada, segundo a

tradição, por Fenícios de Cartago. O núcleo púnico da cidade, datando do século II a. C., foi substituído

em seguida por uma praça de mercado e, no século I d. C., por um verdadeiro forum. Em toda a volta

deste último erguem-se ainda alguns edifícios como o templo de Liber Pater, o templo de Serápis e uma

basílica. Nos séculos II e III, as obras de ampliação e melhoramento do foro e de seus edifícios incluíram

a reconstrução do templo de Serápis. No bairro Este, dois outros edifícios de culto foram também

edificados, um deles dedicado a Ísis (Rachet, 1994, pp. 802-803).

401 Burkert, 2003, p. 100.

78

representar um centro religioso de certa importância para esta zona do Baixo Alentejo,

confirmado pela enorme quantidade de lucernas votivas que foram encontradas na sua

favissa, indiciando a visita de numerosos peregrinos. A organização do complexo

sagrado e sobretudo o espaço ao seu dispor tenderia para um santuário semelhante ao de

Chastellard de Lardiers, e não num tipo de local de culto inserido numa grande

urbanização como foi o caso do Serapeu de Óstia ou do Iseu de Pompeia. O temenos

devia antes abranger seguramente toda a área do topo da colina (dos tanques para Norte

ao depósito votivo para Sul) e até partes das vertentes da mesma, sobretudo de nascente

para poente onde se encontrou maior número de fragmentos de cerâmica de construção.

Em termos dos tanques propriamente ditos e a sua eventual relação com uma

estrutura balnear, sabemos que o recinto sagrado do Serapeu de Óstia incluía um

edifício termal típico do século II d. C., conhecido por termas da “Trinacria”402

(ver fig.

50), e caracterizado, numa primeira fase, por uma distribuição tripartida: um caldarium,

sala quase quadrada com três aluei (banheiras) inseridas em nichos rectangulares e

acessíveis por dois largos degraus; um tepidarium, sala rectangular, sem piscina mas

dotado de hipocaustum (por detrás desta sala existia um pequeno pátio de serviço que

permitia alimentar os praefurnia); por fim, uma grande sala tripartida com pilares,

originariamente fria, provavelmente o frigidarium (acabou por ser transformada numa

sala temperada). Em planta, estas três salas estavam organizadas seguindo um simples

esquema linear com a única precaução de ter as portas não alinhadas para evitar as

correntes de ar, e a fachada do edifìcio estava voltada para a “via del Serapide”. Para

Sul do caldarium situava-se a zona de serviços com a parte técnica da instalação403

,

conservando-se a base circular da caldeira de água quente e o acesso à galeria de

alimentação dos praefurnia.

Ora, os nossos tanques, pelas características que apresentam404

e pela

inexistência de vestígio de hipocausto, não parecem representar piscinas ou aluei de um

provável edifício balnear, mas pertenceriam antes ao complexo do principal edifício de

culto. Apoiando-se na hipótese de um santuário de culto egípcio e do exemplo do ninfeu

em exedra do “Serapeu de Cânopo” da Villa de Adriano em Tivoli (ver fig. 51), os

402

Mar, 2001, pp. 71-75.

403 Este estabelecimento termal possuía uma complexa maquinaria para a extracção de água desde o

subsolo, baseada num sistema de noras de tracção humana (Mar, 2001, p. 328).

404 Ver descrição no capítulo I) 3) b).

79

indícios parecem apontar para uma representação artificial da enchente do Nilo na

forma, não de um simples tanque como o do Iseu de Belo, mas, muito mais elaborado,

que se aproxima dos ninfeus com frons scaenae405

, em que a cena teatral seria neste

caso o templo406

que se apresentaria do lado Sul, fazendo frente aos tanques e alinhado

com eles. Um ninfeu de frons scaenae comportava de facto um tanque superior (no

nosso caso seria o tanque mais a Sul), que interpreta um pouco o mesmo papel que o

reservatório, mas que é visível, dominando o (ou os) tanque(s) de (fr.) “puisage” que ele

contribui em alimentar. Para além disso, este tipo de ninfeu dividia-se em múltiplas

variantes.

A orientação Sul-Norte dos tanques vem reforçar esta hipótese de uma

representação artificial do Nilo. De facto, sabemos que ao contrário dos templos

romanos que estavam voltados para poente (sentido Este-Oeste), segundo os preceitos

de Vitrúvio407

, os templos construídos no Egipto ficavam por sua vez de frente às

margens do rio Nilo408

. Ora, tendo o grande rio do Egipto um sentido Sul-Norte, e

conotando-se o deus Osíris (mais tarde Serápis409

), bem como a deusa Ísis, à nascente

de onde jorrava as águas do rio Nilo410

, o templo egípcio representaria como que a

405

Ver Ginouvès, 1998, p. 98.

406 O templo egípcio era concebido como um cenário a partir do qual um oficiante podia dirigir-se a uma

comunidade de devotos reunidos na area sacra (Mar, 2001, p. 318).

407 Para Vitrúvio, se nenhuma razão o impedir e se houver total desobstrução, o templo e a estátua da

cella devem estar voltados para a vespertina região do céu, de forma que os que se aproximam da ara para

imolar ou fazer sacrifícios olhem para a parte do céu nascente e para a imagem que estiver no templo

(Maciel, 2009, pp. 152-153). Por seu lado, R. Ginouvès, no seu estudo sobre os templos greco-romanos,

afirma que o templo se abria normalmente para Este, para permitir aos primeiros raios do Sol nascente

despertar a estátua da divindade. Ele nota no entanto que outras orientações são possíveis, ligadas às

exigências religiosas, ou simplesmente por razões práticas (Ginouvès, 1998, p. 35 e nota 27).

408 Maciel, 2009, p. 153.

409 Serápis, assimilando alguns traços de Osíris, torna-se ele mesmo o senhor do Nilo e esposo de Ísis

(Lurker, 1994, p. 199).

410 Antes de chegar à primeira catarata, o Nilo abria caminho entre as ilhas de Bigeh, Konosso e Filas

(onde Ísis era soberana); a meio dos rápidos aparece a ilha de Sehel e logo depois a ilha de Elefantina

onde a corrente se apazigua (López, 1993, p. 25). Para J.-C. Grenier, a caverna-nascente de onde, segundo

a tradição indígena, saía a enchente do Nilo, situava-se na ilha de Bigeh, lugar do túmulo local de Osíris –

o Abaton (Grenier, 1989, p. 961). O Nilo era aliás chamado a “efusão de Osìris” (Lurker, 1994, p. 166).

Para J. López, os remoinhos do Nilo, “a água pura de Bigeh”, surgiam na dita ilha de uma das duas fontes

da inundação (López, 1993, pp. 110-111). Os outros autores referem-se à ilha principal da nascente como

sendo a de Elefantina (Boussac, 1914, pp. 29-30). De facto, nos antigos cultos que se celebravam nesta

ilha, o deus principal era Khnum “o senhor da catarata”, guardião das fontes do Nilo (López, 1993, p. 27).

Ísis, por sua vez, era a própria terra do Egipto que a enchente, imagem de seu esposo Osíris, vinha

fecundar. No entanto, algumas tradições atribuíam a Ísis o papel de provocar as cheias. De facto, existia

uma Ísis-Sothis, a estrela cuja aparição anunciava a chegada das águas (Grenier, 1989, pp. 963-964),

exercendo esta deusa sua soberania nas inundações do Nilo (Bruneau, 1963, p. 306).

80

origem mesma da enchente do rio sagrado, situando-se portanto por detrás do tanque

nilótico e com uma orientação igualmente Sul-Norte. Reencontramos esta orientação no

Serapeu de Adriano representando um autêntico “Egipto” sob a enchente do Nilo. O

Serapeum C e Iseum de Delos411

, bem como o Iseu de Belos412

, tinham igualmente esta

mesma orientação413

, mas nesses templos temos de ter em conta, para o primeiro caso, a

topografia do terreno onde foi instalado o santuário de Delos, no segundo caso, a

disposição do forum de Baelo Claudia. Por sua vez, o Iseu de Pompeia414

e o Serapeu

de Óstia apresentavam uma orientação completamente diferente, o primeiro com um

sentido Sudoeste-Nordeste, o segundo abrindo para Este. Esses últimos casos podem ser

explicados devido à sua inserção numa grande urbanização. De facto, segundo a obra de

R. Mar para o caso de Óstia415

, o marco jurídico que rodeava qualquer actividade urbana

(complexo sistema de normas e regulações) afectou o processo de construção do

Serapeum. Desde a obtenção do solo para construir todo o conjunto, até a organização

da obra ou a manutenção dos edifícios uma vez inaugurados, tiveram que respeitar as

condições previstas pela lei para este tipo de edifícios. Muito provavelmente as normas

da urbanização, conjugadas com o espaço que foi possível adquirir para o santuário (a

forma da parcela e suas dimensões), influenciaram a orientação do edifício de culto.

Baseando-se no exemplo da gruta-fonte do “Serapeu de Cânopo” da Villa de

Adriano, representando a imagem figurada da caverna-nascente da primeira Catarata do

Egipto, de onde saía as cheias do Nilo416

, o nosso tanque mais a Sul podia igualmente

simbolizar esta dita Catarata, criando também, através de uma altura ligeiramente

superior, uma pequena cascata de forte caudal, vertendo-se a água no tanque intermédio

para terminar o seu percurso no tanque mais a Norte417

. Eventualmente as bases em

411

Mar, 2001, fig. 61 p. 317.

412 Pelletier et al., 1988, fig. 2 p. 24.

413 Mais precisamente, um sentido Sul-Norte para o Iseum de Delos, e um sentido Norte-Sul para o

Serapeum C de Delos e o Iseu de Belos.

414 Mar, 2001, fig. 62 p. 319.

415 Mar, 2001, p. 76.

416 Grenier, 1989, p. 963.

417 É interessante observar a este respeito o conjunto de elementos religiosos (contexto isíaco e devoção a

Diana) da Casa di Loreio Tiburtino ou Casi di D. Octavio Quartio em Pompeia (II, ii, 2), comportando

uma capela, atribuída a Ísis por um certo número de autores, um euripo evocando o Nilo, e um pequeno

templo dedicado a Diana. Este último está colocado logo por cima do grande canal (ergue-se mais

81

opus incertum dos tanques intermédio e setentrional representariam respectivamente os

suportes de uma estátua, erguida no meio da cascata, e de um templete com colunas de

ladrilho, construído mais abaixo.

Claro que essas propostas para a interpretação dos tanques de Santa Bárbara são

meramente hipóteses, e não podemos descartar também por completo a suposição de M.

Maia sobre uma provável estrutura balnear ou de um Ninfeu, até se encontrarem provas

arqueológicas ou epigráficas indubitáveis sobre a verdadeira função deste

acomodamento hidráulico. Mesmo assim, a possibilidade de serem tanques nilóticos

num contexto egipcizante apresenta-se como um facto seguro, fazendo com que, e como

veremos mais adiante para os outros templos egípcios, o principal edifício de culto do

nosso santuário estaria localizado, não debaixo da igreja gótica como se pensava418

, mas

em frente aos ditos tanques, para Sul, na zona do cemitério419

.

Por fim, para além dos tanques, é preciso relembrar também que em toda a

aldeia de Santa Bárbara de Padrões se descobriu uma grande quantidade de pedaços de

opus Signinum que foi reutilizado como material de construção. Temos aqui mais

testemunhos arqueológicos da forte presença da água nesta estação romana, sobretudo

quando sabemos da probabilidade de ter existido na mesma altura uma barragem420

que

permitiria o fácil abastecimento de água.

II) 5) f) O significado da luz votiva em contexto

egípcio

Podemos concluir que os indícios apresentados por Santa Bárbara de Padrões

tendem para um santuário dedicado aos deuses alexandrinos, tal como foi o caso na

cidade de Emporiae (Ampúrias, Gerona). Não podemos descartar no entanto a

possibilidade da prevalência de um sobre o outro, isto é, de termos na realidade um

Iseu, ou um Serapeu. De facto, podemos notar que, por um lado, os atributos de Santa

exactamente no cruzamento dos dois braços do euripo), cujo nìvel inferior imita uma espécie de “gruta”

sagrada (Laforge, 2009, pp. 41-42 e nota 117).

418 Ver Bernardes, 2006, p. 160.

419 É interessante observar que o nível do cemitério fica pelo menos a dois metros acima do nível normal

da área onde se situam as ruínas da basílica paleocristã e os tanques de época romana.

420 Bernardes, 2006, p. 159 e Maia e Maia, 1997, p. 13.

82

Bárbara, bem como o seu género, tendem mais para a deusa Ísis (neste caso, a mártir de

Nicomedia acabaria por assimilar igualmente atributos de Serápis, por ser o paredro

divino de Ísis); mas, por outro lado, na iconografia das lucernas do depósito votivo,

sobressai a figura de Hélios que se pode conotar desta vez com o deus Serápis. Para esta

última divindade, não podemos esquecer também o caso de Chastellard de Lardiers

(bem como de Lachau) com lucernas ex-votos dedicadas muito provavelmente a uma

divindade solar – o Sol e a luz de uma lucerna facilmente se relacionam um ao outro.

Tentamos agora compreender melhor o significado da lucerna como ex-voto e

sua exclusividade perante divindades alexandrinas, pois que, o papel cultual e votivo da

lâmpada nos santuários egípcios e as festas nocturnas que eram aí celebradas, e que

seguramente deviam ter impressionado os passantes, não permitem uma explicação

cabal do significado da luz votiva num contexto religioso e egipcizante421

. Vejamos

então as referências epigráficas ou outros indícios que se conotam com ex-votos ou com

a presença de lucernas em santuários egípcios.

Relativamente a Serápis, para além dos achados de lucernas no Serapeu C do

santuário de Delos, temos uma interessante inscrição grega descoberta por A. E.

Mariette num Serapeu (certamente o de Mênfis422

), datando dos tempos ptolemaicos ou

remontando até ao reinado de Alexandre. Esta inscrição, guardada no Museu do Louvre,

foi analisada numa segunda leitura por um certo E. Egger423

que nos comunicou a

seguinte tradução424

: «[Moi] Aristyllus, j’ai dédié ce lychnaption, pensant que j’était

malade par la volonté du Dieu, puisque, tout en me servant des remèdes indiqués par les

songes [qu’il envoie] près du temple, je ne pouvais obtenir de lui la santé»425

. Para E.

Egger, lychnaption (“acendedor de lâmpada”; fr. “allumoir de lampe”), seria, ou a haste

de um acendedor, ou um candelabro sagrado de vários bicos (a segunda interpretação,

bem que menos conforme ao sentido próprio da palavra, lhe parece a mais provável).

421

Digno de nota é a figura 43, página 189, da obra de J. López (1993), onde podemos ver uma estela de

Hórus que calca e captura animais nocivos, tendo à sua frente um pequeno tanque onde os fiéis ofereciam

água para o deus. Aqui temos, portanto, a oferta de um elemento natural para uma divindade egípcia.

422 Ver artigo de Picard, 1951, pp. 71-81.

423 Egger, 1857, pp. 68-69.

424 O começo e o fim das linhas da dita inscrição faltavam, propondo E. Egger sua restituição.

425 Tradução em português: [Eu] Aristyllus, dediquei este lychnaption, pensando que estava doente pela

vontade do Deus, pois que, servindo-me dos remédios indicados pelos sonhos [que ele envia] perto do

templo, não podia obter dele a saúde.

83

Podemos acrescentar também, do Serapeu de Mênfis, a inscrição dedicatória (hoje no

Museu do Louvre) da confraria dos Lychnaptai de Serápis, consagrando um pequeno

templo helénico ao deus Dioniso426

.

Relativamente agora a Ísis, sabemos que numa solenidade em sua honra

(navigium Isidis – 5 de Março) se exibiam lucernas, mas essas últimas, por uma

descrição que nos foi transmitida por Apuleio (Metamorfoses, XI, 9-16), eram de ouro e

em forma de pequenos barcos, em nada semelhantes às lucernas comuns (como no caso

das lâmpadas de Santa Bárbara)427

. Pensa-se que o fragmento de disco representando

uma Ísis Pelagia, encontrado em Delos, foi muito provavelmente dedicado a esta última

deusa e tinha efectivamente a forma de navio. Semelhante forma apresenta igualmente a

lucerna nº 390 do Museu Britânico, vendo-se nas extremidades o busto de Serápis e o de

Harpócrates e, no centro, Ísis de pé428

.

Também relevante é o fragmento da Lei Sacra que regulava o funcionamento do

santuário de Ísis e Serápis em Priene, onde se pode ler a obrigação do sacerdote em

fornecer uma quantidade fixa de azeite e duas lâmpadas para a celebração da lampadeia

(ou lychnapsia) em honra de Ísis429

. Neste caso, estamos perante os preparativos de uma

cerimónia nocturna e a presença das lucernas visa, em parte, um uso prático –

iluminação. Segundo R. Mar e J. Ruiz de Arbulo430

, essas lucernas estavam

provavelmente destinadas a celebrar o nascimento da grande deusa alexandrina, não se

relacionando, portanto, com lucernas votivas de uma favissa.

Em termos dos ex-votos propriamente ditos, sabemos por intermédio do poeta

latino Tibulo431

(I, 3, 27-28) que Ísis recebia nos seus templos quadros votivos

(pequenas tábuas pintadas) oferecidos pelos fiéis que curava432

. Por outro lado, as

oferendas de vestidos e jóias preciosas eram um dos recursos votivos mais frequentes

426

Picard, 1951, p. 72 e nota 1.

427 Maia e Maia, 1997, p. 56.

428 Bruneau, 1963, nota 4 p. 306.

429 Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120.

430 Mar, 2001, p. 325.

431 Por estar doente, Tibulo esperava que Ísis o ajudasse, por intercessão da sua bem-amada Délia, uma

devota zelosa da deusa do Nilo; ele menciona os numerosos quadros votivos no templo de Ísis, que

testemunham o poder de cura da deusa (Burkert, 2003, p. 19).

432 Bruneau, 1961, p. 446.

84

para as ricas iniciadas433

.

Entre outros tipos de oferendas votivas, podemos referir o caso de uma estátua

de mármore branco do Museu de Córdova, datada do fim do século I ou do início do

século II d. C., representando Ísis em divindade fluvial e parecendo ser a oferenda de

uma associação de fabricantes de lâmpadas434

. Voltamos a encontrar aqui uma

conotação com a luz, mas a oferta para a deusa nilótica não se resume desta vez a uma

lucerna em forma de barco, mas a uma efígie da divindade em pedra. Por sua vez, em

Aquae Flauiae (Outeiro Jusão, Chaves), foi encontrado um altar de granito com foculus

circular, dedicado à deusa alexandrina por Cornelia Saturnina em cumprimento de uma

promessa435

.

Por fim, no Iseu de Italica (Santiponce, Sevilha), apareceu um depósito votivo

diante da entrada do templo, composto por quatro placas de mármore com plantae

pedum (pegadas de pés descalços ou com sandálias) e inscrições, formando lápides

pavimentais. J. Alvar propõe ser uma doação do próprio templo, cuja construção teria

sido um mandato divino, custeado pelos dedicantes dessas lápides. Quatro outros ex-

votos do mesmo tipo foram encontrados na área e uma outra fora do Iseu. Também no

Iseum de Baelo Claudia (Bolonia, Cádis), duas plantae pedis com inscrição se situavam

sob o primeiro degrau de acesso ao templo (interpretadas como prováveis lápides

inaugurais)436

.

Em termos gerais e segundo a análise de J. Alvar437

, têm-se interpretado muitas

vezes essas placas votivas como alusões pro itu et redditu a uma viagem real ou

iniciática, porém, esta explicação não satisfaz a variedade de pegadas existentes. A. M.

Canto438

propõe uma hipótese que sugere a atribuição das pegadas nemesíacas de Itálica

aos magistrados eleitos, para entrar e sair com bom pé do cargo. S. A. Takács439

, por sua

433

Mar, 2001, p. 324.

434 Bruneau, 1963, pp. 304-305.

435 Alvar, 2012, pp. 136-137.

436 Alvar, 2012, pp. 62-65, 69, 81-83.

437 Alvar, 2012, p. 65.

438 Canto, A. M., «Les plaques votives avec plantae pedum d’Italica: Un essai d’interprétation» in ZPE,

54, 1984, pp. 183-194.

439 Takács, S. A., «Divine and Human Feet: Record of Pilgrim Honouring Isis» in J. Elsner – I.

Rutherford (eds.), Pilgrimage in Graeco-Roman & Early Christian Antiquity. Seeing the Gods, Oxford,

2005, p. 369.

85

vez, propõe que as pegadas revelam a acção do oferente, um peregrino que acede ao

santuário descalço ou com sandálias, manifestando a sua devoção deixando as marcas

dos seus pés como expressão da sua peregrinação. Por fim, L. Puccio440

sugere que

quando as pegadas estão voltadas para o exterior correspondem à deusa, enquanto que

quando estão voltadas para o interior, representam o fiel.

Continuando com as marcas de pegadas, mas desta vez relacionadas com um

culto mistérico dedicado a Serápis, sabemos que no santuário originalmente indígena de

Panóias (Vila-Real), após a criação de um novo complexo serapeico pelo senador Gaius

C. Calpurnius Rufinus em finais do século II ou começos do III d. C., apareceram na

“fraga L” relevos de três plantas de pés (ver fig. 52). Das várias interpretações feitas,

essas marcas seriam, ou os testemunhos da existência de estátuas de bronze, ou ex-votos

como as placas isíacas de Itálica e de Belo (a ausência de epígrafes impede sua correcta

interpretação). Segundo J. Alvar (como uma das interpretações possíveis), a posição de

duas delas (viradas para o exterior) diante uma pequena cavidade na rocha e colocadas

de cada lado de um pequeno canal que levava o fluido depositado na pequena cavidade

até a base da rocha, simbolizaria o deus sobre um Nilo alegórico, expressão da

fertilidade provocada pela divindade. Por sua vez, a pegada solitária de um pé direito,

perpendicular diante do outro pé direito do par acima referido, poderia interpretar-se

como expressão do sacerdote ou do fiel que presencia o acto divino com o joelho

esquerdo apoiado no chão, daí não aparecer a sua pegada, ao estar prostrado diante da

presença divina, com a cabeça curvada para o líquido que corria no canal (a carga

simbólica desta cena relacionar-se-ia com a fertilidade agrícola propiciada pela

divindade). Ou, pelo contrário, o ritual da “fraga L” poderia simplesmente incluir-se no

contexto do sacrifício aos deuses infernais como uma lauatio com água bendita

purificada entre os pés do deus441

.

Sabendo que os depósitos votivos podiam divergir entre eles relativamente ao

conteúdo, podemos notar que, de entre os vários exemplos que apresentamos, temos as

referências da oferta de um lychnaption para Serápis ou lucernas em forma de barca

para Ísis. Podemos acrescentar igualmente oferendas de um outro tipo, mas vindas da

440

Puccio, L., «Pieds et empreintes de pieds dans les cultes isiaques. Pour une meilleure compréhension

des documents hispaniques» in MCV, 40.2, 2010, pp. 137-155.

441 Alvar, 2012, pp. 138-139, 145-146.

86

parte de uma confraria de Lychnaptai de Serápis ou de uma associação de fabricantes de

lâmpadas. Ou seja, de entre vários tipos de oferendas para os deuses alexandrinos

(perfeitamente normal no Império Romano), encontramos mesmo assim bastantes

referências de ex-votos com uma ligação directa ou indirecta com a luz, mas ainda

continuamos sem perceber o significado original. Para podermos elucidar mais esta

problemática, recuamos agora no tempo para uma análise mais aprofundada da religião

do antigo Egipto.

Segundo J. López442

, sabemos que a magia era parte essencial do fenómeno

religioso no Egipto dos faraós. Religião e magia eram inseparáveis e complementares.

Os deuses corriam perigos de toda a espécie, tanto no céu como no mundo inferior,

necessitando proteger-se através da magia (exemplo de Ré e seus inimigos): o fogo, por

exemplo, permitia expulsar as forças setianas e destruir o mal; os deuses, trazendo o

signo “fogo” sobre a cabeça ou sobre um toucado, devoravam os inimigos do deus-sol,

que possuía ele mesmo a serpente uraeus (aquele que cospe fogo) como um dos seus

olhos443

. Os malefícios tinham lugar frequentemente nos templos de modo oficial e com

motivos perfeitamente revelados, já que se tratava de utilizar a força da magia para

defender a obra do demiurgo solar, cada um dos elementos da criação e, num modo

particular, o faraó. A acção da magia exercia-se em todos os pormenores da vida

ordinária, da religião ou dos costumes funerários. Existiam também rigorosas medidas

de protecção com que se rodeavam as estátuas divinas, como encerrá-las em capelas tão

herméticas como a caixa forte de um banco444

, ou a execução de abluções e fumigações

para quem se acercava do santuário para não pôr em perigo o deus que residia no seu

ídolo de madeira e que estava exposto, por conseguinte, às bruxarias.

Ora, encontramos junto ao naos, aquando do encerramento do santuário, uma

simples lamparina de azeite iluminando debilmente o espaço em volta da cella e que

não foi apagada durante a retirada do sacerdote, continuando acesa durante a noite até a

luz se extinguir por si mesma, voltando o oficiante a acender a lamparina no dia

seguinte. Estando o lugar do santuário encerrado e vazio (e mesmo se havia alguém, a

442

López, 1993, pp. 90-92, 134-138, 183-184, 191-193.

443 Lurker, 1994, pp. 101-102.

444 Cobria-se o rosto da estátua, encerrava-se o naos, corria-se o ferrolho e impunha-se o selo de greda

que garantia que a cella permaneceria fechada até o dia seguinte. Por fim, fechavam-se os batentes da

porta do santuário, permanecendo o lugar totalmente tranquilo e debilmente iluminado pela luz de uma

lamparina colocada junto à bandeja de alimentos e ao naos (López, 1993, pp. 137-138).

87

iluminação de uma só lamparina não chegava para uma boa claridade), a presença desta

luz teria muito provavelmente uma função igualmente mágica, protegendo a divindade

durante o seu sono445

. De facto, sabemos que nos antigos ritos egípcios destinados em

expulsar as trevas e a manter assim à distância as forças tifonianas446

, a luz, de essência

divina, era considerada como o símbolo da pureza e do bem, possuindo um poder

apotropaico447

. Reencontramos esta protecção da luz na festa da Lychnokaie; também

nas narrativas funerárias, temos uma referência no “Livro dos Mortos” que fala do olho

irradiante de Hórus que destrói o triplo poder de Set448

.

Ou seja, e segundo as crenças dos antigos Egípcios, podemos colocar a hipótese

da lucerna votiva, ao contrário de uma oferenda usual representando um acto sacrificial

do ofertante ou relembrando um rito executado, representar na realidade uma prenda

que seria útil para a divindade, mais especificamente, que seria benéfica para a

divindade, reforçando a sua protecção contra as forças tifonianas através do poder

mágico e apotropaico da luz. Seguramente que os Gregos observaram ou tiveram

conhecimento deste acto específico de acender uma lâmpada (Plutarco refere-se até a

uma lâmpada perpétua449

) e de a colocar diante da cella, acabando a lucerna por se

transformar igualmente num ex-voto especialmente dirigida para divindades egípcias,

isto é, tanto para Ísis como para Serápis, não esquecendo as divindades secundárias –

Anúbis e Harpócrates (o “Hórus menino”).

445

Relembramos a presença também da bandeja de alimentos que, por sua vez, permitia fortalecer a

energia da divindade (López, 1993, pp. 137-138 e Grenier, 1989, p. 947)

446 A expressão “ forças tifonianas”, utilizada por M. Lurker, requer uma explicação: Set, que o triunfo do

culto de Osíris converteu num deus muito impopular, tornando-se o príncipe das trevas, foi identificado

pelos Gregos com Tífon (López, 1993, pp. 31, 97).

447 Lurker, 1994, p. 136.

448 Lurker, 1994, p. 137.

449 Lurker, 1994, p. 136.

88

III) Os santuários e os cultos dos deuses alexandrinos

III) 1) Instalação dos cultos nilóticos na Hispânia

Segundo J. Alvar450

, é a romanização451

a causa primeira que permitiu a

introdução em territórios iberos dos cultos egípcios, difundidos no novo movimento

comercial e demográfico que conheceu de ora em diante a Península Ibérica452

.

Os cultos alexandrinos453

chegaram a Hispânia por intermédio de comerciantes

orientais ou relacionados com os mercados do Mediterrâneo oriental, associando-se

muito cedo aos interesses dos grupos privilegiados e ocupando espaços simbolicamente

muito prestigiados nas principais cidades454

.

A inserção das divindades nilóticas entre suas homólogas romanas foi o motor

da expansão dos cultos egípcios na Península Ibérica. Em tais condições, o culto de Ísis,

por exemplo, acabou por se converter num elemento mais de difusão da romanidade

entre os indígenas, disfarçada neste caso sob um manto exótico que o fazia

especialmente atractivo para aqueles provinciais que não se sentiam amparados sob a

cobertura da religião tradicional romana455

.

Actualmente conhecem-se três santuários dedicados às divindades nilóticas que

450

Alvar, 2012, pp. 19, 23, 28-29, 32, 34.

451 A partir do reinado de Calígula (37-41 d. C.), gerou-se um ambiente propenso à difusão dos deuses

egípcios na capital do Império, e as autoridades locais fomentaram-no outorgando espaços públicos ou

autorizando outros para a construção dos santuários ou de estátuas. Foi a protecção dos Flávios que

favoreceu a implantação de Ísis e Serápis em diversas localidades ocidentais (Alvar, 2012, p. 31, Alvar,

2002, p. 205 e Burkert, 2003, p. 44).

452 Segundo J. Alvar, é improvável que tenha havido uma veneração dos deuses faraónicos na Ibéria pré-

romana (Alvar, 2012, p. 20).

453 Os deuses que eram venerados não eram as milenares divindades do Egipto faraónico, mas a

modalidade recriada em Alexandria sob os Lágidas. A famosa inscrição bilíngue de Ampúrias põe

claramente de manifesto que o culto chega directamente de Alexandria, graças à actividade de um

alexandrino provavelmente implicado no comércio (Alvar, 2012, pp. 19, 21).

454 Exemplo do Iseu de Belo, erigido na parte Este da esplanada dos templos do Capitólio do município

romano, de onde se domina o foro e a cidade (Alvar, 2012, pp. 79-80).

455 A religião cívica tradicional não dispunha de mecanismos para a integração ideológica dos provinciais,

pelo que o Império Romano teve de procurar novos instrumentos, entre os quais se destacavam as teorias

relacionadas com o sincretismo solar, o culto imperial e os mistérios orientais. No caso dos cultos

egípcios, após a submissão a um processo de condicionamento (helenização ou romanização),

converteram-se portanto em instrumentos adicionais de integração no sistema romano de gentes que, por

não possuírem o direito de cidadania ou pela sua extracção servil, ou ainda pelas próprias características

do lugar em que viviam, não tinham uma participação activa ou relevante nas expressões religiosas

próprias da romanidade, podendo com dificuldade demonstrar a sua adesão ao sistema ou experimentar

um sentimento positivo de lhe pertencerem (Alvar, 2002, p. 205).

89

foram reconhecidos como tais. O mais antigo é o de Emporiae (Ampúrias, Gerona),

segue o de Baelo Claudia (Bolonia, Cádis), e o último é o de Italica (Santiponce,

Sevilha). A eles podemos acrescentar o santuário rupestre de Panóias (Vila-Real), que

originalmente estaria dedicado aos deuses infernais e aos deuses protectores da

povoação local, mas que no século III d. C. seria remodelado para se converter num

recinto destinado às iniciações mistéricas de Serápis – nada, praticamente, se conserva

dos alicerces arquitectónicos deste santuário.

Se a abundância da documentação sugere que foi no século II d. C. quando mais

difundida esteve a devoção às divindades egípcias, a escassez do século III e seu total

desaparecimento no século IV levam a supor que o culto declinou e deixou de se

praticar naqueles últimos períodos. Neste aspecto a Hispânia não coincide com o resto

do Império, pois no século IV d. C. ainda continuava a actividade construtiva.

III) 2) Serápis

Ao contrário da deusa Ísis que já pertencia ao panteão tradicional egípcio456

,

Serápis apresenta-se como uma divindade cuja origem é ainda hoje sujeita a várias

interpretações.

Em primeiro lugar, muitos autores, como P. Lévêque457

, S. Morenz458

ou M.

Lurker459

, afirmam que o deus Serápis foi uma invenção da dinastia Ptolemaica, mais

especificamente por Ptolemeu Sôtèr I (diádoco de 323-306 a. C.; rei do Egipto de 306-

285 a. C.) em Mênfis, com a finalidade de criar um deus de império que poderia ser

adorado tanto pelos súbditos Gregos como Egípcios460

. Serápis seria portanto herdeiro

simultaneamente de Osíris-Ápis, deus funerário egípcio de Mênfis461

a quem deve o seu

456

Apesar de pertencer ao panteão tradicional egípcio, Ísis já tinha sofrido uma longa evolução desde

antes da chegada dos Gregos ao Egipto. Depois, no período helenístico, acabou por absorver as funções

da maior parte das deusas gregas e egípcias (Préaux, 1978, p. 655).

457 Lévêque, 1987, p. 153.

458 Morenz, 1977, pp. 314-315.

459 Lurker, 1994, p. 199.

460 O autor clássico Plutarco também atribuiu a aparição de Serápis com Ptolemeu Sôtèr I (Brázia, 2011,

p. 41).

461 Segundo a lenda, quando Ísis e Neftis retiraram da água o cadáver de Osíris, sepultaram-no em Mênfis.

Os menfitas confundiram depois o túmulo de Osíris com o de Ptah-Sokaris (López, 1993, p. 98).

90

nome462

, e de divindades gregas, filantrópicas como Zeus ou Asclépio, e místico como

Dioniso463

(combinação com os mistérios da Grécia464

), que já Heródoto identificava

com Osíris465

. Para fixar a imagem do deus, Sôtèr manda transportar para Alexandria,

por volta de 285 a. C., uma estátua que o escultor Briaxis tinha executado na segunda

metade do século IV a. C. para o templo de Hades em Sinope. A reprodução desta

estátua passaria a ser a imagem canónica desta divindade466

– representação de Serápis

sob os traços de um homem de idade madura, com cabeleira e barba abundantes, a

cabeça coroada por um toucado cilíndrico cingido de espigas (modius ou kalathos,

semelhante a um açafate) e vestido de um khiton, sentado num trono, segurando um

ceptro na mão esquerda e tendo num dos lados a presença do cão dos infernos,

Cérbero467

. De Mênfis, o culto estender-se-ia a Alexandria onde Ptolemeu III edificou

um vasto santuário.

Por sua vez, J.-C. Grenier468

, a partir do seu estudo sobre a estatuária do Serapeu

da Villa de Adriano, propõe como hipótese que o deus Serápis seria na realidade uma

entidade resultante da fusão de Osíris de Cânopo com o Ápis de Mênfis, transtornando

algum tanto a interpretação tradicional segundo a qual a sequência Osíris-Ápis

designaria o Ápis morto.

462

Após a sua morte, o touro Ápis é como “absorvido” por Osìris; daì fala-se de Osíris-Ápis, tornando-se

em grego Serápis (Lurker, 1994, p. 51). O nome do deus alexandrino representa portanto uma deformação

de “Osìris-Ápis”, designando um touro sagrado que era adorado em Mênfis e que, após a sua morte, era

enterrado junto dos seus congéneres numa cova gigantesca (Morenz, 1977, pp. 314-315), tornando-se

num novo Osíris (Husson e Valbelle, 1992, p. 222).

463 No Serapeu de Mênfis de Ptolemeu I, assistimos à primeira fusão sincrética entre Dioniso e Serápis

(Osíris-Ápis). Sabemos através de Tácito e Plutarco (Tácito, Hist., 4, 80-84; Plutarco, De Iside et Osiride,

28) que é o próprio Dioniso que tinha, no tão instrutivo “Sonho de Ptolemeu I”, determinado a instalação

no Egipto do sincretismo Dioniso-Serápis, prescrito pelo deus grego através uma epifania nocturna

(Picard, 1951, pp. 77-80).

464 Cumont, 1906, p. 93.

465 Considerado como o soberano das necrópoles e do mundo inferior (López, 1993, p. 96), o culto de

Osíris estava estreitamente ligado ao culto dos mortos no Egipto (Burkert, 2003, p. 29). No Império

Médio, a capacidade de se tornar num Osíris após a morte, até aqui reservada aos reis, propagou-se pouco

a pouco, em todo o Egipto, a todos aqueles em que o corpo tinha sido mumificado segundo os ritos

(Préaux, 1978, pp. 655-656). É preciso relembrar que durante muito tempo se reservou a religião

funerária solar aos reis e aos membros de suas famílias, enquanto que o osirianismo se propagou entre os

camponeses e as gentes modestas até o dia em que obteve a adesão fervorosa de toda a população (López,

1993, p. 90).

466 Brázia, 2011, pp. 41-42.

467 Brázia, 2011, p. 160, Lévêque, 1987, p. 153, Morenz, 1977, p. 315 e Lurker, 1994, p. 199.

468 Grenier, 1989, p. 956.

91

Cânopo, situada num ramo do Nilo, a uma vintena de quilómetros de

Alexandria, era uma cidade célebre pelo seu templo de Serápis, onde os oráculos eram

expedidos por incubação469

e os enfermos aguardavam curas milagrosas470

. Antes do

Serapeu, e segundo a análise de J.-C. Grenier471

, já existia um culto dedicado a um

Osíris local, figurado como um vaso pançudo contendo a água do Nilo e cuja tampa era

uma imagem da cabeça do deus. Da tríade divina da mesma cidade, encontramos

também Harpócrates, representado como um Hórus “triunfante” trespassando de sua

lança o inimigo deitado no chão (assimilação de Harpócrates/Hórus com Héracles). Ísis

estava igualmente presente, figurada como uma deusa “triunfante”472

, calcando sob os

pés um crocodilo, brandindo na sua mão direita uma serpente473

e segurando uma sítula

na esquerda. A sítula representaria a água do Nilo, seguramente uma alusão ao seu culto

que se celebrava em Cânopo e que tinha dado sua imagem ao Osíris local. Por seu lado,

o crocodilo e a serpente dominados pela deusa seriam o triunfo de Ísis sobre as forças

hostis, conotando-se com uma função curadora da deusa474

que seria conforme ao seu

papel “de esposa” do Serápis curandeiro de Cânopo.

Vamos reencontrar de facto esta representação de uma jarra contendo a água

sagrada (e relembrando o Osíris de Cânopo) nos rituais isíacos de época romana.

Podemos dar como exemplo a cena de uma cerimónia sagrada de tipo egípcio

representada num fresco de Herculano475

(ver fig. 53), em que no alto do templo, num

pronaos limitado por esfinges, um sumo-sacerdote surge da cella levando consigo um

469

Rachet, 1994, p. 189.

470 Grenier, 1989, p. 954.

471 Grenier, 1989, pp. 952-955.

472 Esta Ísis “triunfante” é conhecida por algumas decorações de discos de lucernas, algumas figurinhas

em terracota e sobretudo por uma estátua encontrada em Ras el-Soda, lugar situado entre Alexandria e

Cânopo, datável de meados do século II d. C. e actualmente no Museu de Alexandria (Grenier, 1989, p.

952).

473 O gesto desta Ísis domando de sua mão uma serpente lembra a lenda grega da esposa de Menelau,

Helena, esmagando de sua mão a víbora que, na localidade de Cânopo, acabava de morder seu piloto

Canopus o qual em morrendo deu o seu nome à cidade (Grenier, 1989, p. 953).

474 Esta Ísis poderia ser a famosa Ísis Ménouthis na qual certas tradições vêem a associação da deusa

egípcia e de Ménouthis, a esposa de Canopus, e em quem se acreditava ser uma deusa curadora (Grenier,

1989, nota 52 p. 954).

475 Ver Burkert, 2003, fig. 8 e Mar, 2001, estampa XXXIX p. 167 (actualmente o fresco encontra-se no

Museu Arqueológico Nacional de Nápoles). Na obra de W. Burkert (2003, “Table des Illustrations”, fig.

8) temos uma gralha, referindo-se ao fresco da cerimónia da água sagrada como pertencente à cidade de

Pompeia em vez da cidade de Herculano.

92

vaso (de ouro segundo R. Mar) contendo a água do Nilo (o Osíris segundo W. Burkert).

Interessante é igualmente outro fresco pompeiano procedente do templo de Ísis476

(ver

fig. 54), representando o Nilo transportando a jovem Io que toca com a sua mão direita a

da deusa Ísis, relatando por este gesto simbólico o mito da origem da deusa nilótica

venerada na cidade477

. Ora, a Ísis representada neste fresco também segura, na sua mão

esquerda, uma serpente, tal como a Ísis “triunfante” de Cânopo.

Por fim, temos a interpretação de C. Préaux478

que, ao contrário dos outros

autores, não considera o deus Serápis como uma criação dos Lágidas, afirmando que

nada autoriza a emprestar aos Ptolemeus a intenção de unir no culto deste deus seus

súbditos Gregos e Egípcios. Para este autor, foi uma consequência do interesse que

tiveram desde cedo os reis gregos pelo dito Serapeu egípcio de Mênfis479

. A novidade

na época helenística foi a expansão de Serápis no mundo grego, o antropomorfismo

dado às suas representações e a sua adaptação à mentalidade grega. As virtudes que lhe

eram atribuídas derivavam portanto de sua origem osiriana e eram assimiladas às de

outros deuses helénicos, como Asclépio ou Zeus, e os Gregos depositaram nele as suas

esperanças de salvação sob todas as formas.

III) 3) Os cultos de mistérios

Segundo os recentes estudos de W. Burkert480

, os mistérios eram ritos de

iniciação (myèsis ou télétè) que permitiam ao neófito (mystès) uma ligação mais estreita

476

Ver imagem do fresco em Alvar, 2012, p. 72 (actualmente o fresco encontra-se no Museu

Arqueológico Nacional de Nápoles; inv. nº 9558).

477 Io era uma jovem de Argos, sacerdotisa de Hera Argiva e que Zeus amou. Para a salvar dos ciúmes da

sua mulher, Zeus transformou Io numa vitela maravilhosamente branca, acabando por ser oferecida a

Hera. Após muitas tribulações e viagens, retomou a sua primitiva forma e instalou-se no Egipto onde

reinou sob o nome de Ísis (Grimal, 2009, p. 251).

478 Préaux, 1978, pp. 649-652.

479 O Serapeu de Mênfis era uma necrópole situada entre Abusir e Sacara (Rachet, 1994, p. 836), onde os

sacerdotes enterravam os touros Ápis mumificados com grandes solenidades, substituindo imediatamente

o touro defunto por um outro. A conjugação pelos teólogos de Ápis e de Osíris resultou no nome

Oserapis, tornando a necrópole num Serapeu visitado por uma multidão atraída especialmente pela

virtude mágica dos túmulos (Préaux, 1978, p. 649 e López, 1993, p. 40). O touro associa à necrópole e à

tumba a perpetuação da vida, baseada no seu poder fecundante (Brázia, 2011, p. 162). No entanto é

preciso salientar que, segundo G. Rachet (1994, p. 836), não se pode confundir os santuários dedicados

ao deus Serápis com o Serapeu da necrópole de Mênfis.

480 Burkert, 2003, pp. 10-15, 18-19, 23, 27, 46-47, 57, 86.

93

com a divindade, através de uma experiência do sagrado (o rito tende a fazer entrar o

candidato em comunhão com a divindade por actos extremamente pessoais481

). Esta

intimidade com o divino482

visava a obtenção de uma forma de salvação (sôtèria, salus),

mas uma salvação inteiramente prática, logo neste mundo, mesmo nas promessas de

uma outra vida483

. Por outro lado, em termos psicológicos, os mistérios bem sucedidos

permitiam também uma mudança de consciência e um estado de bem-estar do mystès

(télétai terapêuticos)484

. A admissão e a participação dependiam portanto de um ritual

próprio485

, a cumprir sobre o candidato que tinha os meios para a sua concretização. O

segredo486

e, na maior parte dos casos, uma encenação nocturna, acompanhavam este

exclusivismo487

.

Largamente paralelos às práticas votivas (a religião votiva constitui o pano de

fundo da prática dos mistérios), os télétai acabavam por ser uma nova forma religiosa

mais pessoal para pessoas abastadas, integrados na teia muito mais complexa dos cultos

dos deuses egípcios e correspondendo às necessidades diversas dos que estavam em

481

Morenz, 1977, p. 320.

482 Ísis tinha nomes infinitamente numerosos por todo o mundo. Ela é myrionymos. Mas quem se volta

para Ísis, quem conhece seu nome e as formas especiais do ritual egípcio, tem o acesso mais directo ao

divino (Burkert, 2003, p. 55).

483 O receio da morte é uma realidade da vida e muita gente, segundo uma descrição de Plutarco (Non

posse, 27, 1105 b), pensava que certas espécies de iniciações e de purificações iriam ao seu auxílio,

permitindo, uma vez purificados, continuar a jogar e dançar no Hades, em lugares cheios de esplendor, de

ar puro e de luz (Burkert, 2003, p. 27). Por seu lado, F. Cumont pensa que o indivíduo, se serve

piedosamente Osíris-Serápis, será assimilado a ele e partilhará a sua eternidade no reino subterrâneo,

onde assenta o juiz dos defuntos. Ele viverá não como uma sombra ténue ou como um espírito subtil, mas

em plena possessão de seu corpo como da sua alma. Tal foi a doutrina egípcia e tal foi certamente,

segundo o autor, também a dos mistérios praticados no mundo greco-romano. Pela iniciação, o misto

renascia para uma vida sobre-humana e tornava-se igual aos imortais. No seu êxtase, ele pensava transpor

o limiar da morte e contemplar face a face os deuses do inferno e os do céu. Após o seu falecimento, se

tinha cumprido exactamente as prescrições que, pela boca de seus sacerdotes, foram impostas por Ísis e

Serápis, a sua vida seria então prolongada para além da duração que lhe estabeleceram os destinos

(Cumont, 1906, pp. 121-122).

484 Segundo W. Burkert (2003, p. 85), a iniciação devia ser um evento inesquecível para o neófito,

iluminando todo o resto da sua vida, criando uma experiência que transforma a existência. Vários textos

antigos afirmam claramente que a participação nos mistérios foi uma forma particular de experiência, que

provoca um pathos na alma (psychè) do iniciado. Aristóteles dizia já que, em definitivo, nos mistérios não

era questão de “aprender” (mathein) mas de “sentir”/”sofrer” (pathein), e de estar colocado numa certa

disposição de espírito (diatéthènai).

485 Para os mistérios de Ísis era uma iniciação gradual: três vezes o herói de Apuleio deve submeter-se a

esta prova para obter a revelação integral (Cumont, 1906, p. 120).

486 A protecção do segredo dava maior valor ao prestígio dos cultos mais sagrados (Burkert, 2003, p. 12).

487 Os mistérios antigos, ou ao menos partes do seu ritual, podiam ser repetidos (Burkert, 2003, p. 11).

94

busca de salvação e de êxito. Os mistérios não constituíam portanto a raiz e o centro do

culto egípcio, havia outras formas de culto “normal” para a devoção do não-iniciado,

com festas anuais de data fixa, e as oferendas privadas eram solicitadas e recebidas sem

restrições.

As relações entre iniciações privadas e festas oficiais nos cultos que possuíam

mistérios eram complexas e longe de ser uniformes. Em Elêusis, por exemplo, a

iniciação marcava o ponto culminante da festa de Outono, justamente chamada

Mystèria; a iniciação de Lúcio-Apuleio, por outro lado, não era ligada a uma festa de

data fixa, mas determinada pelo mandamento divino, por meio de sonhos488

; contudo, os

initiati participavam colectivamente à procissão anual dos Ploiaphésia em Coríntia

(Apuleio, Met., XI, 17).

Para além dessas cerimónias (privadas ou oficiais), nos santuários dedicados a

Ísis, por exemplo, o clero residente servia quotidianamente os deuses egípcios, de

manhã à noite. Ou seja, vê-se que os mistérios eram uma forma especial de culto

cumprida no quadro mais largo da prática religiosa reconhecida.

III) 4) Os santuários romanos e egípcios – aspectos

arquitectónicos e decorativos

III) 4) a) Os santuários romanos

III) 4) a) i) O templo romano segundo Vitrúvio

Segundo a obra De Architectura de Vitrúvio, baseando-se na tradução do latim

em português de M. J. Maciel489

, a arquitectura romana devia constar de ordenação

(Ordinatio), disposição (Dispositio), euritmia (Eurytmia), comensurabilidade

(Symmetria), decoro (Decor) e distribuição (Distributio), realizadas de modo a que se

tenham presentes os princípios da solidez (Firmitas), da funcionalidade (Utilitas) e da

beleza (Venustas).

O decoro tem de se adequar ao tipo de divindade consagrada no templo, como

por exemplo os edifícios sem telhado e hipetros (templo hypaethros ou a céu aberto)

488

Sabemos por exemplo que Serápis era famoso pelos seus oráculos (chresmoí), e costumava aparecer e

falar aos fiéis através dos sonhos (Préaux, 1978, pp. 651-652 e Montero, 2002, pp. 129, 131).

489 Maciel, 2009, pp. 37-41, 109-124, 141-159.

95

dedicados a Júpiter Relâmpago, ao Céu, ao Sol e à Lua. Teríamos portanto templos

dóricos, despojados de ornamentos, para divindades caracterizadas pela força como

Marte; templos coríntios, mais gráceis e ornados de folhas e de volutas, para a

delicadeza de certas deusas como Vénus; templos jónicos, dispostos entre o severo

costume dos dóricos e a delicadeza dos coríntios, para divindades de posição intermédia

como Líbero.

As principais ordens clássicas adequavam-se igualmente ao género da divindade:

a ordem dórica relacionava-se com o corpo masculino (a coluna dórica, sem ornamento

e de aparência simples, demonstra «a proporção, a solidez e a elegância de um corpo

viril»490

); a ordem jónica relacionava-se com o corpo feminino (a coluna jónica contem

«a subtileza, o ornato e a boa proporção femininas»491

); a ordem coríntia relacionava-se

com a gracilidade da donzela (a coluna coríntia apresenta-se «com a delicadeza virginal,

porque as donzelas, mercê da sua tenra idade, possuem uma configuração de membros

mais grácil e conseguem no adorno os mais belos efeitos»492

).

Consoante a divindade consagrada e respectivos ritos493

, bem como o lugar

escolhido para a sua devoção (cidade, campo, topografia do terreno, entre outros),

vários aspectos deviam ser tomados em conta na construção de um templo. Em termos

decorativo, o arquitecto devia escolher o estilo mais adequado entre muitos, como as

principais ordens clássicas e respectivas decorações (como por exemplo as molduras de

tríglifos, métopas e mútulos do estilo dórico, ou os dentículos do estilo jónico), o estilo

ático (para bases de colunas e portas), as outras tipologias de capitéis (designadas por

nomes variados provindos da alteração dos modos coríntios, pulvinados e dóricos, cujos

sistemas proporcionais de medidas são copiados para aceitação das esculturas novas) e a

“ordem” dos templos toscanos. Para além disso, havia várias categorias de templos de

acordo com o seu alçado (aspecto das suas formas exteriores) – in antis494

, prostilo495

,

490

Maciel, 2009, p. 143.

491 Maciel, 2009, p. 143.

492 Maciel, 2009, p. 144.

493 Para Vitrúvio, não se devem dedicar templos a todos os deuses aplicando as mesmas normas, pois cada

um deles está conforme ao culto que lhes é prestado, de acordo com a variedade dos ritos sagrados

(Maciel, 2009, p. 159).

494 O templo in antis tem no frontispício as pilastras das paredes que circundam a cela (compartimento

interior do templo clássico, para abrigo da estátua ou simulacrum da divindade) e entre elas, no meio,

duas colunas, tendo em cima um fastígio colocado de acordo com a comensurabilidade (Maciel, 2009, p.

112).

96

anfiprostilo496

, períptero497

, pseudodíptero498

, díptero499

e hipetro500

– e de acordo com o

espaço entre as colunas (intercolúnio) – picnostilo501

, sistilo502

, eustilo503

(o mais

louvável para Vitrúvio), diastilo504

e areostilo505

. Podemos encontrar ainda outros tipos

de templos: templos de planta circular, sendo, uns, monópteros506

e, outros, ditos

perípteros507

; templos ordenados segundo as mesmas comensurabilidades mas

495

O templo prostilo tem tudo como o de in antis, mas com duas colunas face às pilastras angulares e

sobre elas epistílios semelhantes aos dos templos in antis, travando à direita e à esquerda cada um dos

ângulos das paredes (Maciel, 2009, p. 112).

496 O templo anfiprostilo apresenta-se com tudo o que tem o prostilo, além de que possui, do mesmo

modo, colunas e fastígio na parte de trás (Maciel, 2009, p. 112).

497 O templo períptero é aquele que tiver, seja no frontispício, seja na parte posterior, seis colunas e, nos

lados, com as angulares, onze. Estas colunas estão colocadas de tal modo que em volta, entre as paredes e

as filas das colunas que ficam do lado de fora, haja um espaço livre igual à largura do intercolúnio, assim

se obtendo uma zona de circulação em volta da cela do templo. O sistema do pteroma, disposição das

colunas em volta do templo, foi estabelecido a fim de que o aspecto do edifício, devido ao realce dos

intercolúnios, se revestisse de dignidade, permitindo igualmente abrigar os fiéis em caso de mau tempo

(Maciel, 2009, pp. 113, 116).

498 O templo pseudodíptero possui oito colunas no frontispício e na parte de trás, sendo quinze nos lados,

incluindo as angulares, situando-se a cela face às quatro colunas do meio, seja no frontispício, seja no

lado de trás. Em volta, entre as paredes e as filas das colunas que ficam do lado de fora, resulta um espaço

livre igual a dois intercolúnios e a um diâmetro inferior de coluna (Maciel, 2009, p. 113).

499 O templo díptero é octostilo tanto no pronau como na fachada posterior, mas tem em volta do templo

filas duplas de colunas (Maciel, 2009, p. 113).

500 Um templo hipetro é decastilo no pronau e no lado posterior. No restante, tem as mesmas

características que o díptero, mas na parte interior dispõe de duas colunas repetidas em altura, afastadas

das paredes, formando um perímetro como um pórtico de peristilo. A zona média, ao ar livre, fica sem

tecto. A entrada tanto se faz pela parte da frente como pela parte de trás, por portas de dois batentes

(Maciel, 2009, p. 113).

501 O intercolúnio apresenta um espaço de um

diâmetro e meio de coluna, resultando colunas cerradas

(Maciel, 2009, p. 114).

502 O intercolúnio apresenta um espaço de dois diâmetros de coluna, tendo os plintos das espiras as

dimensões da distância que houver entre dois plintos, resultando colunas um pouco bastas (Maciel, 2009,

p. 114).

503 O intercolúnio apresenta um espaço de dois

diâmetros de coluna e um quarto, com três diâmetros para

o intercolúnio do meio, seja no frontispício, seja na parte de trás (Maciel, 2009, pp. 114-115).

504 O intercolúnio apresenta um espaço de três diâmetros de coluna, resultando colunas mais amplamente

abertas (Maciel, 2009, p. 114).

505 As colunas dos templos areostilos acabam por estar mais distanciadas entre si do que convém,

obrigando ao uso de traves de madeira inteiriças em vez de epistílios de pedra ou de mármore (Maciel,

2009, pp. 114-115).

506 Templo circular de colunata e sem cela, com pódio e escadaria (Maciel, 2009, p. 157).

507 Templo circular com dois degraus e o estilóbata, dispondo-se por cima a cela e as colunas em volta

dela (Maciel, 2009, p. 158).

97

apresentando disposições de outro género (como por exemplo acrescentar colunas, à

direita e à esquerda, nos flancos do pronau); templos tomando dos géneros da “ordem”

toscana508

; templos pseudoperípteros509

de tipologia genuinamente romana,

respondendo aos condicionalismos urbanos e ao espírito prático dos romanos. Por fim,

em termos proporcionais, existia uma justa aplicação de módulos consoante os estilos e

categorias de templos, feita de inúmeras regras e sistemas de medidas para as diferentes

partes do aedis: as fundações; o estereóbata; o estilóbata; os degraus; o pódio; a cela e o

pronau; as portas (três géneros: dórico, jónico ou ático); a base de coluna (estilos: ático,

jónico ou toscano) com a espira (incluindo o toro e a escócia) e respectivo plinto; o

fuste; o capitel; a arquitrave/epistílio; o friso; a cornija; o tímpano do frontão e

acrotérios; as gárgulas leoninas; o madeiramento e telhado.

Os altares510

, por seu lado, deviam estar colocados sempre numa cota inferior ao

das estátuas que estiverem no templo, a fim de que, levantando os olhos para a

divindade511

, os que suplicam e sacrificam se possam dispor em diferentes níveis, cada

um respeitando o que convém ao seu deus (esta área, palco dos principais ritos, era

frequentemente flanqueada ou rodeada de pórticos512

). As alturas eram igualmente

planeadas conforme a divindade consagrada, dos mais elevados possíveis para

divindades celestes (altares de mesa ou altares de tabuleiro que permitiam erguer o

sacrifício por cima do nível do solo; lat. altaria513

) aos mais baixos para Vesta, Terra e

508

Templos que, tomando dos géneros toscanos as disposições das colunas, transferem-nas para as

ordenações das obras coríntias e jónicas e, dispondo colunas aos pares nas direcções das paredes da cela

naqueles espaços onde, no pronau, avançam as pilastras, seguem uma metodologia comum às obras

toscanas e gregas (Maciel, 2009, p. 158).

509 Templos com as paredes da cela colocadas nos intercolúnios, desaparecendo os espaços do pteroma

mas permitindo um amplo desafogo para a cella. Conservam no restante as mesmas proporções e sistemas

de medida. Temos portanto a fusão das paredes da cela com as colunas, sendo estas muitas vezes apenas

sugeridas e em materiais mais baratos e menos nobres do que o mármore (Maciel, 2009, p. 159 e nota

110).

510 Dispositivo destinado a permitir o rito do sacrifício a uma divindade (Ginouvès, 1998, p. 48).

511 A estátua do deus encontrava-se encostada à parede da cella, devendo ser contemplada pelos fiéis

através das portas abertas. Os sacrifícios eram realizados em frente do templo (Maciel, 2009, nota 49 p.

114).

512 Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62.

513 Ginouvès, 1998, p. 49 e nota 189 p. 48.

98

Mar (altares ctonianos para as divindades da terra, denominados também de altares-cova

ou bothros; lat. ara, ara sepulcri514

).

III) 4) a) ii) Vestígios de templos romanos na

antiga Lusitânia

Para o caso da Península Ibérica e segundo os estudos de T. Hauschild515

,

existia, entre os vários templos de distintos tamanhos e épocas, um grupo tipológico de

templos perípteros assentes sobre pódios, salientando-se os casos, para a Lusitânia, dos

templos de Mérida (de “Diana”) e de Évora. No entanto, Pax Iulia, cidade importante

relativamente a Arandis, apresentava por sua vez um templo prostilo.

No que se refere somente à província da Lusitânia, os templos romanos que nos

são conhecidos datam já da época imperial, e a sua tipologia, bem como as suas formas

decorativas, seguem quase sempre padrões evolucionados na pátria itálica a partir da

época imperial. Temos por exemplo o caso paradigmático do templo de Conímbriga

(época dos Flávios) que seguiu as ideias arquitectónicas dos grandes monumentos

estabelecidos em Roma: o conjunto arquitectural era composto de um recinto sagrado,

orientado segundo uma linha axial, e de uma praça estendida (um forum sem lojas

comerciais), a um nível mais baixo, diante da aera sacra; o aedis era integrado num

temenos, uma praça, cercado por um pórtico sobre criptopórtico, a galeria elevando-se

até um nível idêntico ao do pavimento do templo, criando assim um pano-de-fundo

teatral para o edifício religioso. Como particularidade, na entrada do recinto do dito

forum (na parte meridional), além da porta monumental existiam também possíveis

templetes, colocados entre as paredes das galerias e de tipo com pódio, talvez prostilo.

Sabemos igualmente, para a Lusitânia, que o templo hexastilo foi escolhido

nesta província para a zona do forum, preferencialmente apenas para as cidades de certo

nível (exemplos em Pax Iulia e até em Ebora). Outros municipia de menor categoria

apresentaram exemplares de menores dimensões, tetrastilos. Como especificidade

construtiva destaca-se a utilização da pedra granítica (material muito sólido que abunda

na região Centro e Norte) cuja dureza e difícil elaboração das formas decorativas

514

Tanto para as divindades celestes como ctonianas, podia-se igualmente utilizar um altar-lar ou

eschara, onde se queimavam as oferendas à divindade numa instalação do tipo do lar doméstico, ao nível

do solo (Ginouvès, 1998, p. 49 e nota 189 p. 48).

515 Hauschild, 2002, pp. 215-220.

99

levaram os arquitectos romanos a projectarem uma ornamentação com formas simples,

especialmente quanto aos capitéis: os capitéis corìntios do “Templo de Diana” em

Mérida foram trabalhados em granito, mas só de forma esboçada, para logo serem

cobertos com estuque em relevo; o pequeno templo áptero junto da ponte de Alcântara

(Cáceres) tem capitel de tipo toscano. Além do granito, podemos encontrar também

mármore para a decoração dos grandes edifícios, tornando-se um símbolo de uma

subida de estatuto da civitas, um equivalente visível do êxito alcançado pela cidade – as

colunas do templo de Évora tinham bases e capitéis em mármore branco de Estremoz,

enquanto os fustes eram de granito estriados e estucados. Por fim, T. Hauschild observa

ainda que o trabalho em granito (com cobertura de estuque), a utilização de duas

escadas laterais (como nos templos de Évora e de Conímbriga, subindo para a

plataforma do templo) e a prática dos criptopórticos que envolvem alguns dos templos

da província da Lusitânia (além de Conimbriga, reencontramos esta disposição em

Ebora)516

, acusam um modus faciendi idêntico que denuncia uma hipotética adaptação

dos modelos presentes na capital da província Augusta Emerita (sobretudo o “Templo

de Diana” de Mérida).

Relativamente à estatuária, J. Alarcão517

observa que a maior parte da escultura

do período romano encontrada em Portugal parece utilizar o mármore da região de

Estremoz e Vila Viçosa, pressupondo uma execução na Lusitânia, ou por artistas locais

ou, nalguns casos, por artistas itálicos imigrantes ou itinerantes.

516

Devemos notar que tanto para o templo flaviano de Conímbriga, como possivelmente para os

chamados “Templo de Diana” de Mérida e de Évora, o edifìcio de culto estava dedicado ao culto imperial

cuja disposição arquitectural parece continuar a tradição do caesareum. Este último possuía igualmente

um recinto sagrado rodeado de pórticos (era na realidade um forum), aberto por um propileu monumental

e comportanto um templo do antepassado mítico da gens Iulia. O conjunto arquitectural do caesareum

tornou-se efectivamente o ponto de partida da série dos fóruns imperiais e ao mesmo tempo na origem da

arquitectura do culto imperial (ver Ginouvès, 1998, p. 187).

517 Alarcão, 1988, p. 196.

100

III) 4) a) iii) Os santuários greco-romanos –

complexo religioso

Segundo os estudos de R. Ginouvès518

, na medida em que é delimitado, o

santuário constitui um temenos, isto é, um recinto sagrado dedicado a uma divindade,

podendo o santuário transborda-lo. O temenos era materialmente circunscrito, ou por

uma leve vedação em barreira, ou por balizas de cippus, ou por um muro (períbolo).

Esta parede (outras construções podiam substituí-la, como pórticos, ou a bordar) é

normalmente trespassada pelo menos por uma porta, por vezes guarnecida de um

propylon para proteger a espera dos visitantes.

A partir da entrada no santuário, o fiel circulava numa “via sagrada”519

(via

sacra) ou “via de procissões” que ligava as diversas instalações do temenos. O seu

traçado podia ser mais ou menos complexo, eventualmente uma espécie de grande Z.

Esta via podia alargar-se para formar uma “esplanada”, espécie de grande praça,

eventualmente lajeada, onde podiam reunir-se as procissões (spatium apertum), ou para

formar uma praça mais ou menos arredondada, onde podiam desenrolar-se danças ou

celebrar-se um drama sagrado (area).

Num grande santuário, além do altar e do templo, podiam existir outras

construções, eventualmente sobre terraços suportados por muros de sustentação, como

tesouros520

, oferendas monumentais, fontes521

, pórticos, dormitórios, cozinhas522

, salas

de banquete523

(symposion; stibadeion para os banquetes de confrarias), salas de

518

Ginouvès, 1998, pp. 34-36, 41-44, 48-53, 185-187.

519 Este termo é também muitas vezes utilizado para a via que conduz ao santuário (Ginouvès, 1998, p.

186).

520 Por oposição ao templo, o “tesouro” não continha estátua de culto, mas simples oferendas; o

vocabulário arqueológico emprega também a palavra oikos para designar uma construção religiosa que

não é um templo, onde se armazenavam oferendas e materiais diversos, e que neste aspecto constitui uma

espécie de tesouro, podendo também servir a reuniões ou a banquetes cultuais. Entre os edifícios

abrigando oferendas particulares, salienta-se o do hoplothèque (it. “deposito d’armi”), que em Delos

continha a panóplia de armas somente consagrada a Atena; na Acrópole de Atenas era uma chalcothèque

(it. “calcoteca”) que recebia as armas (Ginouvès, 1998, pp. 35, 187).

521 Em frente ao recinto sagrado do local de culto ou no interior, poços ou ninfeus forneciam a água

necessária para as abluções rituais e para o culto (Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62).

522 Um número assaz importante de inscrições assinala a existência de cozinhas, por vezes também de

refeitórios, nos lugares santos (Scheid, 1985, p. 197).

523 Existência do banquete sacrificial no rito privado e no rito público (Scheid, 1985, p. 194). As salas de

banquete jogavam então um papel importante em relação com o altar, elemento religioso maior

(Ginouvès, 1998, nota 112 p. 186).

101

reunião, “edifìcios de oikoi” (tipo arquitectural que alinha várias salas, de dimensões

comparáveis, muitas vezes precedidas de um pórtico)524

, edifícios administrativos,

edifícios para o desporto e para os espectáculos525

, exedras, edifícios de habitação, entre

outros. Podia até existir uma oficina, como o de Fídias em Olímpia. Para o nosso caso,

para além da possibilidade de construções com nomes especiais para os cultos

estrangeiros, é interessante salientar igualmente os edifícios do abaton (pórtico onde os

fiéis passavam a noite com o fim de serem “visitados” pelo deus, nos santuários de

divindades curandeiras), do megaron (edifício abrigando um bothros526

e reservado a

cultos de mistérios) e do telesterion (sala de mistérios para cerimónias de iniciação; é

organizado à maneira de uma sala de reunião, de planta próxima do quadrado ou

rectangular, com assentos para os fiéis poderem seguir facilmente as cerimónias).

III) 4) a) iv) O santuário de Chastellard de

Lardiers

Ao contrário de Lachau onde as fundações do santuário não foram ainda

encontradas527

(tal como para Peroguarda528

), mas que segundo M. Leglay529

ele estaria

situado a uns 50 metros da favissa530

, construído, segundo uma outra hipótese referida

por J.-P. Boucher531

, em madeira, o santuário de Chastellard de Lardiers532

apresentou

diversos vestígios arqueológicos (ver figs. 55 e 56).

524

A palavra oikos pode igualmente aplicar-se a um pequeno templo, feito de um só compartimento

(Ginouvès, 1998, nota 28 p. 35).

525 Os grandes locais de culto possuíam teatros (Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62).

526 O bothros é um tipo de lar, espécie de altar-cova em alvenaria que serve a queimar as vítimas

(Ginouvès, 1998, pp. 36, 49).

527 Carré, 1978, p. 122.

528 Viana e Ribeiro, 1957, p. 19.

529 Leglay, 1973, p. 535.

530 Num lugar onde foram achados fragmentos de telhas, uma estátua e duas urnas em chumbo (Leglay,

1973, p. 535). Para S. Lancel, as centenas de fragmentos de tegulae atestam a existência de edifícios

(Lancel, 1975, p. 535).

531 Boucher, 1980, p. 509.

532 Ver Rolland, 1962, p. 655; Rolland, 1964, pp. 545-550; Salviat, 1967, pp. 387-393; Salviat, 1970, p.

448.

102

Antigo oppidum pré-romano transformado na época imperial em local de

culto533

, o santuário de Lardiers estava delimitado por um grande temenos comportando

várias construções, cuja entrada (ou uma delas) foi localizada a Sul. A parede do recinto

sagrado, em pequeno aparelho regular e medindo de 60 a 85 cm de largura, nas

circunvizinhanças da entrada, não tomou conta da velha muralha pré-romana em pedras

secas, medindo de 3 a 4 m de largura. A favissa das lucernas votivas foi localizada fora

do temenos, encostada ao muro pré-romano (do lado Sul, isto é, no exterior da muralha

pré-romana), ao pé da dita entrada ao santuário. Após a entrada no recinto sagrado, os

fiéis deviam seguir uma via sacra que subia a encosta até ao topo do antigo oppidum

onde se localizava o templo. Esta via, de uma largura de 2,80 m e nivelada por uma

fraca camada de argamassa ou areia compactada nas irregularidades da rocha, estava

bordada de muros construídos em pequeno aparelho regular, medindo ainda perto de

1,50 m de altura, e de quatro nichos cultuais. O segundo nicho, larga de 2 m sobre 1,70

m e com um chão sobreerguido (0,60 m) possivelmente decorado em opus tessellatum

(mosaico), apresentou nas suas paredes restos de pintura (verde, amarela e vermelha) e

foi encontrado in situ um altar votivo anepígrafo (também o quarto nicho, escavado em

parte na rocha, conservava no local um altar anepígrafo; outra ara erigida por um devoto

e consagrada desta vez à divindade local Belado foi também achada numa dessas

construções). Nos dois últimos nichos, encontraram-se destroços de molduras em pedra

dura provindo de sua decoração.

Outro troço da via sacra, longo de 10 m, foi escavado (o autor não indica em

que zona do santuário), achando-se nas circunvizinhanças, a 25 m para Nordeste da

escavação, um edifício (4 x 4,75 m) de função indeterminada, aberto para Sul e coberto

de tegulae e, para Este e para Oeste, indícios de outras prováveis edículas do mesmo

tipo que foram nesta zona construídas em série, nas margens da via sagrada.

O templo, orientado para Este, compunha-se de uma cella com pronaos situada

no centro de um pátio e rodeada por uma galeria coberta, o conjunto estabelecido sobre

uma plataforma. A galeria, completamente fechada para o exterior (formando como um

períbolo de 24,80 m de lado), excepto na sua fachada oriental com uma larga abertura

533

Num primeiro período, que vai ao menos do século V a. C. aos primeiros anos da era cristã, uma aldeia

indígena ocupava este cimo fortificado por dois, e em certos lugares três, poderosas muralhas de pedras

secas. Por volta do início da nossa era, a aldeia de altura é abandonada por seus ocupantes que se instalam

nos domínios rurais estabelecidos nos dois vales que enquadram o oppidum a Este e a Oeste. Mas um

grande santuário instala-se no lugar do habitat indígena, frequentado até aos últimos anos do século IV d.

C. (Salviat, 1967, p. 391).

103

(4,60 m) para a porta principal do templo, apresentava para o interior uma colunata

(atestada ao menos no Norte e no Sul). O naos, de planta quadrada e em aparelho

regular, contendo um podium de 1,35 m de largura para a estátua de culto, estava

recoberto no interior de uma argamassa de cal com pinturas geométricas de painéis

vermelho vivo e largas faixas brancas, e no exterior por um reboco branco sobre o qual

estavam desenhadas falsas pedras de cantaria de bossagens circunscritas por chanfros

(este cimento fino e duro era ele mesmo recoberto de um esmalte branco). Por sua vez, a

parede da galeria estava decorada internamente de um reboco vermelho no qual eram

desenhadas faixas brancas, amarelas, verdes e azuis.

Por detrás do templo, entre a sua fachada ocidental e o primeiro recinto pré-

romano, existia uma grande via de circulação (fr. “boulevard de circulation”), enquanto

que na parte da frente, distanciado de 10 m para Sudeste, erguia-se um pórtico.

O pórtico de 30,80 m de comprimento sobre 3,69 m de largura, estendendo-se

em direcção Norte-Sul, abria-se para Oeste por uma colunata. Numerosas escórias de

bronze derretido, encontradas na parte Norte do pórtico permitem julgar do destino que

foi reservado aos objectos metálicos que continha ou deviam ornar o edifício. Dispostos

paralelamente, esses dois últimos edifícios (templo e pórtico) constituíam um conjunto

arquitectural homogéneo, estabelecido aquando do acomodamento cultual do oppidum

na primeira metade do século I d. C.

Flanqueando o pórtico para Este estavam encostados seis pequenos

compartimentos em pequeno aparelho regular, de junturas consertados a ferro. Em

direcção ao Sul, numerosos destroços de placas de mármore branco provinham

verosimilmente de um revestimento, e um telhado em madeiramento está atestado pelo

achado de fragmentos de telhas e pregos. Construídos posteriormente ao pórtico (cerca

de meados do século II), esses compartimentos representavam talvez lojas ou simples

hangares dando sobre uma das vias de acesso ao templo.

Rodeando o pórtico, nos lados Oeste e Norte, existiam mais três edículas de

planta rectangular e abrindo para Oeste (em direcção ao templo), representando, tais

como os nichos da via sacra, oferendas de colectividades ou de ricos devotos.

Outras construções situavam-se a Norte do templo: para Nordeste, temos

vestígios que tudo indicam pertencer a pequenos “oratórios” rectangulares, situados

num pátio ou sobre uma qualquer via de acesso ao templo (em termos decorativos, além

das telhas, encontraram-se elementos de calcário moldurados, estuques pintados,

placagens de mármore); para Noroeste, encontrou-se um pequeno edifício em forma de

104

trapézio irregular; entre essas construções, descobriu-se também um amontoamento de

mármores de placagens, alguns tendo formas geométricas e duas placas ornadas de

folhagens em relevo, indiciando nas proximidades um outro edifício relativamente

luxuoso.

III) 4) b) Os santuários egípcios

III) 4) b) i) Aspectos arquitectónicos e

decorativos

Em relação aos santuários de culto egípcio nas províncias de Roma, para além

dos tanques nilóticos e de ablução, sabemos que na época imperial se combinavam

monumentos de estilo grego ou romano com monumentos de estilo egípcio, com o

objectivo de dar aos templos dedicados aos deuses do Nilo um ar mais indígena,

relembrando os locais de culto do Egipto. Foi para este propósito que, para além de

prováveis razões cultuais534

, foi criada uma aleia de esfinges535

(dromo536

) no início do

século I a. C. em frente ao templo do Iseum de Delos 537

(ver fig. 57).

Para além das esfinges, podemos tomar como outro exemplo os telamones538

que

J.-C. Grenier pensa serem bastante frequentes nos santuários egipcizantes da época

romana (mais exactamente para santuários de grandes dimensões539

), sem dúvida

inspirados dos colossos osiríacos da arquitectura egípcia. Temos o caso dos dois

Osirantínoo telamones colossais em granito vermelho do “Serapeu de Cânopo” da Villa

534

Seja para que as cerimónias que se desenrolavam fossem daí em diante dissimuladas dos olhares, seja

para que os oficiantes dispusessem de um espaço especial inacessível à massa dos fiéis. É preciso notar

que o dromo estava limitado por dois longos muretes com poucos acessos laterais (Bruneau, 1980, pp.

163, 186).

535 Sob o Império Antigo, a esfinge foi representada na entrada dos templos, simbolizando o poder real (a

comparação muito antiga do rei com o leão está na origem da esfinge), acabando mais tarde por ser

rebaixada à categoria de simples guardiã de templo e de túmulo. No decurso do Império Novo, a esfinge

foi associada mais particularmente à divindade Ámon-Ré, rei dos deuses, a cabeça humana sendo então

substituída por uma cabeça de carneiro (Lurker, 1994, p. 211).

536 Avenida marginada de esfinges que conduzia à entrada dos templos egípcios (Silva e Calado, 2005, p.

131).

537 Bruneau, 1980, pp. 184-188.

538 Um télamon é uma estátua antropomórfica usada em arquitectura para sustentar entablamento, cornija,

etc. (Silva e Calado, 2005, p. 349).

539 Ver Mar, 2001, p. 314.

105

de Adriano, muito provavelmente colocados nos ângulos interiores dos pavilhões que

ladeavam a gruta-fonte540

, ou os do Serapeum de Pérgamo541

.

Sabemos igualmente que os recintos consagrados a uma divindade egípcia

englobavam templos ou capelas de outras divindades542

. Em Delos, por exemplo, Ísis

estava abrigada num dos Serapeus543

. Por sua vez, o Serapeu de Adriano em Tivoli, na

qualidade de monumento egípcio, retomou uma das regras fundamentais da arquitectura

indígena para uma tríade divina544

, estando a capela consagrada ao “deus pai”

flanqueada por um lado pela da “deusa mãe”545

, do outro pela do “deus filho”546

. No

caso do Iseu de Pompeia (exemplo excepcional por sua rápida reconstrução após o

terramoto do ano 62 e incluída numa ínsula), o pronaos comportava dois nichos laterais

provavelmente dedicados a Harpócrates e Anúbis, cujos altares respectivos se situavam

de cada lado da escada de acesso ao aedis, e na parede traseira do templo existia outro

nicho ocupado desta vez por Dioniso / Osíris547

(ver fig. 58).

Havia também, no recinto sagrado, hospedarias e casas que Serápis “alugava”

especialmente para devotos que queriam viver perto dele (os katochoi)548

; locais

especiais (oikoi) no templo, com leitos (klinai) dispostos de maneira particular, para as

tradicionais refeições (deipna) cerimoniosas549

; um pórtico (edifício dito do abaton)

para acolher devotos em busca de uma cura (tanto para Ísis como para Serápis, os

procedimentos eram os mesmos que para o deus Asclépio: os oráculos eram expedidos

540

Grenier, 1989, pp. 973-974 e nota 87.

541 Mar, 2001, p. 314.

542 Préaux, 1978, p. 653 e Vasconcellos, 1913, p. 350.

543 Préaux, 1978, p. 653. No Serapeu C, junto ao templo de Ísis existiam igualmente um pequeno templo

dedicado à tríade alexandrina e uma provável capela consagrada a Anúbis (Mar, 2001, fig. 61 e texto p.

317).

544 No santuário egípcio de Karnak dedicado a Ámon, encontra-se no centro a câmara que contem a cella

de granito que protegia a imagem divina. Em ambos lados desta câmara acham-se outras edificações que

alojavam as estátuas dos deuses parentes, geralmente a esposa (Mut) e o filho (Khonsu), e as dos deuses

exteriores acolhidos no templo (López, 1993, pp. 30, 127, 129-130).

545 Quando a deusa mãe, nos templos do Egipto, ia dar à luz ao pequeno deus, o parto realizava-se sempre

no mamisi (Rachet, 1994, p. 578).

546 Grenier, 1989, pp. 971-972.

547 Mar, 2001, fig. 62 e texto p. 319.

548 Préaux, 1978, p. 654.

549 Burkert, 2003, p. 108.

106

por incubação; aparição da divindade em sonhos, cura no acordar)550

; e eventualmente

uma biblioteca (exemplo célebre do Serapeu de Alexandria) 551

.

Segundo R. Mar e J. Ruiz de Arbulo552

, podemos observar, entre os diferentes

Serapeus (bem como nos Iseus), uma tradição arquitectónica comum que remontava às

origens do próprio culto, conservando traços específicos alexandrinos em função das

cerimónias pensadas para a participação de uma ampla comunidade de culto: pronaos

sobre pódio elevado, precedido de uma área descoberta, o conjunto integrado num pátio

porticado553

. A plataforma do pronaos constituía sempre um autêntico palco

relativamente a area sacra que precedia o templo. Esta organização do espaço interior

do santuário sugeria portanto que o culto tinha como ponto focal o pronaos do aedis –

graças a um pódio elevado e frequentemente desenvolvido como uma tribuna, a imagem

divina podia ser vista por todos, e os sumo-sacerdotes, situados no pronaos frente à

entrada da cella, podiam dirigir-se à comunidade dos devotos reunidos na área

descoberta, com os coros, iniciados e outros oficiantes em torno dos altares.

No helenismo tardio, vamos assistir a uma regularização da forma geral dos

edifícios serapeicos, conservando os aspectos necessários para o funcionamento do

culto (o pódio, a capela, a plataforma com o pronaos e o pátio fechado) e traduzindo-se

na forma de naiskoi, ou pequenas capelas, edificadas sobre um amplo pódio, construídas

no centro de pátios fechados. Reencontramos efectivamente estas características em

dois santuários ocidentais dedicados a Ísis no século I d. C.: Pompeia na Campânia e

Baelo Claudia na Bética.

Por fim, para ornar a casa dos deuses alexandrinos, havia a necessidade do

desenvolvimento de toda uma iconografia nilótica que recordava a paisagem original do

Egipto e seus símbolos característicos em fauna e flora sacralizadas. No Iseum de

Pompeia, por exemplo, o quadripórtico estava pintado com painéis do terceiro estilo

550

Ver Préaux, 1978, p. 652, Burkert, 2003, p. 19 e Rachet, 1994, p. 189.

551 Nos templos, não se discutia somente sobre a natureza dos deuses e do homem; estudavam-se as

matemáticas, a astronomia, a medicina, a filologia e a história. Os clérigos eram verdadeiros sábios,

aproveitando-se das conquistas do pensamento para uma melhor compreensão do destino do homem e do

mundo, das relações do céu e da terra (Cumont, 1906, pp. 39-40).

552 Mar, 2001, pp. 314- 320, 323 e figs. 59-63.

553 Só o Iseum de Erétria estava inserido num simples períbolo, ao contrário de muitos outros templos,

com pátios parcialmente ou completamente fechados por pórticos. Relembramos que o grande Serapeu de

Alexandria tinha a forma de uma imensa praça porticada em que se abria o templo propriamente dito,

junto aos de Ísis, Harpócrates, Anúbis e os theoi adelphou. Formas semelhantes tinham também o grande

Serapeu de Mênfis e o templo de Ísis em Philae (ver Mar, 2001, p. 314 e figs 59-63).

107

pompeiano, mostrando diferentes quadros e distintos sacerdotes protagonistas da pompa

isíaca; as paredes em redor da cisterna subterrânea estavam por sua vez ricamente

estucadas com figuras em relevo; o ecclesiasterion ou sala de reunião para os iniciados

possuía, além de um mosaico, grandes quadros de paisagens sagradas isíacas e cenas da

vida de Io decorando as paredes; por fim, a sala adjacente ao ecclesiasterion continha

um larário pintado e a cena do navigium Isidis.

Para o caso da Hispânia e segundo os estudos de J. Alvar554

, nenhum dos

santuários egípcios conhecidos proporcionou informação sobre uma decoração

especialmente egipcizante. Sabemos que os templos eram construídos num estilo

nitidamente romano, com excepção do singular caso de Panóias, mas não se sabe se as

suas paredes estavam cobertas com cenas rituais e paisagens nilóticas (para simular um

Egipto miniaturizado), como ocorre em Herculano. Só podemos notar certos elementos

egipcizantes em alguns restos de estatuária.

A maior parte das esculturas vinculadas aos cultos egípcios em Hispânia

representam os deuses nilóticos sob sua fisionomia romanizada (versão helenístico-

romana). Também é necessário chamar a atenção sobre algumas peças que parecem

sustentar que alguns elementos decorativos pretendiam dirigir a imaginação até ao

longínquo Egipto.

Esculturas de época faraónica apareceram também em estratos arqueológicos de

época romana. É legítimo, segundo o autor, a tentação de as considerar relíquias

ancestrais conservadas nos modernos templos romanos aos que, sem dúvida,

proporcionariam prestígio e veneração – testemunhas da veracidade dos rituais ali

efectuados, garantia da antiguidade e autenticidade do culto.

Por fim, J. Alvar acrescenta que o culto praticado em Hispânia devia desenrolar-

se de forma similar ao dos santuários mediterrânicos conhecidos.

554

Alvar, 2012, pp. 29, 31.

108

III) 4) b) ii) O Serapeu de Óstia

Segundo a obra de R. Mar555

, o Serapeu da cidade portuária de Óstia (ver figs.

59 e 60), dedicado a Júpiter Serápis e construído entre os anos 123-127 d. C. (primeiro

projecto; várias etapas construtivas seguiram-se depois ao longo dos séculos II, III e IV

d. C.), apresentava-se como um grande complexo religioso dentro de um recinto único

de planta “triangular” inserido na urbanização, comportando casas de aluguer (o edifício

residencial “Caseggiato di Bacco e Arianna”), armazéns (os pequenos horrea), termas

(da “Trinacria”) e uma área de culto: templo, area sacra e salas de reunião.

Pela sua tipologia, este conjunto recorda a forma de alguns templos colegiais

ostienses, e no caso deste Serapeu, o templo constituiu o elemento central que

organizava a composição de toda a zona de culto.

O recinto estava atravessado por um eixo de circulação, denominado “via del

Serapide”, que começava com o arco construìdo no centro da fachada do “Caseggiato di

Bacco e Arianna”, do lado Norte. Esta via constituía um distribuidor interno do Serapeu

que dividia as distintas dependências do santuário em duas partes. A parte Oeste foi

dedicada aos edifícios de culto (série de pátios e pórticos), enquanto a zona Este foi

reservada para a construção de uns balnea. No fundo deste distribuidor, do lado Sul,

situava-se um conjunto de armazéns integrados funcionalmente no sistema do santuário.

Era no pátio central da zona Oeste que se localizava o templo propriamente dito,

servindo os outros pátios de acesso a salões triclinares. Um corredor de serviço que

corria por detrás dos edifícios e um sistema de portas permitiam unificar funcionalmente

esta série de pátios.

A morada da divindade era constituída por uma pequena capela aberta para Este,

um templo prostilo e tetrastilo de planta rectangular praticamente isenta, edificado sobre

um elevado pódio e com um pronaos muito desenvolvido, cujo acesso se realizava

através do intercolúnio central graças a uma escada axial. Em correspondência com as

quatro colunas da entrada, uma tripla porta dava acesso a cella desde o pronaos. O

conjunto foi construído no fundo de um pequeno pátio decorado com pórticos. A area

descoberta que precedia o templo apresentava no seu centro um altar quadrado e estava

pavimentada com um mosaico de tema nilótico (sobre um fundo branco distribuíam-se

as habituais representações de pigmeus, hipopótamos, íbis, crocodilos e serpentes), cuja

555

Mar, 2001, pp. 39-44, 88-89, 100, 325-328.

109

representação esquemática e empobrecida das que foram as elaboradas paisagens

nilóticas helenísticas indiciava a modéstia de recursos dos fundadores do Serapeu

ostiense. O acesso ao recinto realizava-se através de um pequeno protiro porticado.

Podemos notar, segundo R. Mar, o carácter limitado dos elementos egipcizantes

deste Serapeu, não apresentando criptas subterrâneas relacionando-se com os rituais de

iniciação556

, nem instalações hidráulicas ligadas ao ritual da inundação do Nilo557

e às

quotidianas práticas de ablução purificadora das imagens de culto, dos sacerdotes e dos

iniciados558

. Pelo contrário, o carácter convivial dos ritos egípcios aparece claramente

definido na importância particular que desde um primeiro momento receberam os

quatro grandes oeci triclinares em ambos lados da area sacra, destinados aos banquetes

sagrados (o ritual da “kliné do senhor Serápis”). Os edifícios, ou uma parte dos mesmos,

onde se situavam essas salas, representariam eventualmente os pastophoria, as

residências de sacerdotes e hóspedes. Um número tão amplo de salões triclinares

originaria necessariamente uma importante actividade de cozinhas e preparações de

serviços. Crê-se portanto que o edifício de pilares situado junto ao quarto pátio,

directamente acessível desde o corredor geral de serviço situado por detrás do templo e

do resto dos edifícios de culto, permitia a instalação das cozinhas necessárias para a

celebração destes ágapes sagrados.

A ausência relativa de elementos arquitectónicos egipcizantes contrapõe-se com

o emprego de uma linguagem arquitectónica especificamente “romana” nas formas e

também por uma articulação directa com o sistema urbano da cidade. O Serapeu mostra-

se totalmente inserto, relativamente a delineamentos compositivos e a formas

decorativas, na arquitectura ostiense do século II d. C. Poderíamos citar ademais a

presença das termas ou a escassez da epigrafia grega em contraste com o que ocorre em

outros santuários egípcios. No fundo, trata-se de aspectos culturais do Serapeu ostiense

que refletem o processo de integração desta devoção na religiosidade romana. O próprio

nome da divindade venerada, Júpiter Serápis, o demonstra claramente: não há

sincretismo, senão assimilação.

556

A cripta era o lugar ideal para formar votos de uma maneira “pura” – euchesthai hagnôs – (Burkert,

2003, p. 20).

557 Somente nas reformas de época severiana a cenografia nilótica se desenvolveu a partir de uma edícula

adossada ao pátio de Baco e Ariadne contendo uma fonte e uma estátua do rio Nilo (Mar, 2001, p. 325).

558 Com o complexo e quotidiano ritual das abluções, tão só podemos relacionar a dedicatória da

reparação de um labrum, e as fontes e exedras próprias das reformas de época avançada (Mar, 2001, p.

325).

110

O importante volume de armazenagem evidenciado pelos pequenos horrea

indicia que de alguma forma o Serapeu participava também em negócios de comércio

através do porto da cidade559

. Esta actividade económica de tipo comercial

complementar-se-ia com a exploração imobiliária evidenciada pelo regímen de aluguer

das tabernae e dos cenacula ou apartamentos superiores do “Caseggiato di Bacco e

Arianna”.

Por fim, além dos aspectos rituais ou económicos no funcionamento quotidiano

do santuário, tínhamos as actividades de manutenção e negócios. O pessoal de origem

servil, ligado às cozinhas, termas, e muitos outros serviços, representava seguramente

uma parcela importante entre a comunidade do Serapeu ostiense.

III) 4) b) iii) O “Serapeu de Cânopo” da Villa

de Adriano (Tivoli)

O complexo, construído entre 123 e 128 d. C., representava na origem um

“Egipto jardim” com um cenário original, mas em suma convencional, não fazendo

senão perpetuar a tradição romana da ars topiaria (jardins romanos). Era composto

sobretudo de um Canopus, longo tanque evocando o canal canópico do Nilo, terminado

por uma gruta-triclinium (consagrada primeiro a espectáculos ou mesmo a festividades

tais como se praticavam nas margens do Canopus) formando um ninfeu de dimensões

colossais, com uma sala de banquete traçada em hemiciclo e coberta por uma semi-

cúpula (ver figs. 51 e 61). Por sua vez, a ornamentação do parque foi concebida na

origem para abrigar algum superficial reflexo dos prazeres exóticos de Cânopo.

Posteriormente, todo o conjunto foi transformado num templo de carácter serapeico por

Adriano, onde se devia comemorar a ressurreição ritual de Antínoo, favorito do

imperador que morreu afogado nas águas do Nilo. Esta transformação foi certamente

concluída para o regresso a Roma do imperador em 134 d. C. (foi na sua viagem ao

Egipto em 130/131 que se deu a morte do seu favorito), uma transformação que

abrangeu, senão a estrutura do edifício, seguramente sua decoração560

.

559

Para R. Mar e J. Ruiz de Arbulo, «los santuários de cultos egípcios sin llegar a relaciones de

dependência orgânica, se hallaban interrelacionados no solo por motivos de devoción común, sino

también por evidentes intereses económicos. En esse contexto las conexiones, en términos de patronazgo,

establecidas a través de la comunidade de culto, aportan un trasfondo social que explica perfectamente la

presencia de un horreum de estas dimensiones» (Mar, 2001, p. 327).

560 Lavagne, 2002, p. 82 e Grenier, 1989, pp. 929, 976, 978.

111

J.-Cl. Grenier561

, após uma análise completa da sua decoração estatuária

(segunda decoração do “Serapeu de Cânopo” aquando da sua transformação, muito

provavelmente realizada com o auxílio de um sacerdote egípcio erudito, como era

comum na época, para a concepção geral bem como em todos os detalhes562

), acrescenta

a hipótese de o antigo “Egipto de jardim” ter sido substituído na realidade por um

“Egipto de viagem”, ilustrando o essencial do que tinha marcado Adriano durante a sua

estadia no país do Nilo em 130/131, bem como as evocações sucessivas, no dito

Canopus, da odisseia de Ulisses e do imperador percorrendo o Império. A estrutura

arquitectural do Serapeu, segundo uma lógica “geográfica”, representaria portanto, não

uma réplica do Serapeum da cidade de Canopus – ao que parece, este santuário egípcio

era um templo clássico de ordem dórica, e não uma construção em hemiciclo –, mas

uma carta monumental do Egipto563

evocando com realismo o país inundado sob a

enchente do Nilo, sendo o grande tanque, não uma evocação do canal canópico, mas o

mare nostrum, isto é, um troço do Mediterrâneo.

A estrutura arquitectural do monumento, com uma orientação Sul-Norte,

apresentava portanto em primeiro lugar uma vasta exedra coberta de uma semi-cúpula

(a abóbada era na origem recoberta de mosaicos de pasta de vidro564

) e decorado de

quatro Antínoo Osíris de pedra vermelha (cor do Baixo Egipto), colocados em nichos

abobadados, em alternância com nichos-fontes (rectangulares com decoração de

embrechados565

). Esta construção em hemiciclo reproduzia na realidade o aspecto do

Delta, percorrida por dois canais semi-circulares, cujas quatro extremidades

representavam as quatro grandes bocas do Nilo (Canópica, Bolbítica, Sebenítica e

Pelusíaca), encerrando um pequeno tanque central que evocava as vastas zonas litorais

pantanosas do Delta e talvez até, mais precisamente, a do lago Borollos; estreitas

561

Grenier, 1989, pp. 925-1019.

562 O aspecto invulgar e profundamente “indìgena” deste Serápis regressando à categoria de Osìris-Ápis, a

cerimónia do seu despertar solar e do rito que o acompanhavam, a assembleia das divindades reunidas em

redor do deus, são outros tantos elementos plenamente estrangeiros às formas isíacas ou alexandrinas dos

cultos egípcios praticados fora do Egipto (Grenier, 1989, p. 978).

563 Este “Egipto” encontra-se em plena concordância com a passagem bem conhecida da «Vida de

Adriano» na História Augusta, indicando províncias e sítios famosos que tinham dado seu nome a

monumentos da Villa (Grenier, 1989, pp. 927, 975).

564 Lavagne, 2002, p. 82.

565 Lavagne, 2002, p. 82.

112

banquetas emergidas (leitos de triclinium566

) separavam esses canais e tanque semi-

circulares entre si.

A exedra era em seguida prolongada no seu eixo por um longo e estreito

corredor a céu aberto, evocando por sua vez o longo e estreito vale do Nilo, que possuía

uma “ponte” inteiramente coberta por uma abóbada que lhe era particular. O tabuleiro

da “ponte” apresentava uma “encenação” de uma cerimónia ritual representando o

despertar pelos oficiantes (sacerdotisa stolistes, sacerdotisa “música” e “portador de

oferendas”) do deus-sol Osíris-Ápis (bifrons humano e taurino emergindo de sua flor de

lotus567

), despertar testemunhado por outros deuses colocados por sua vez em nichos

acomodados de cada lado do corredor. Esses últimos estavam representados por duas

estátuas de Osirantínoo nos nichos centrais, estando nas extremidades as efígies de Ptah

e Nefertoum de Mênfis dum lado (par divino ligado a Ápis e formando assim uma tríade

menfita), Ísis e Hórus de Cânopo do outro (par divino ligado a Osíris e formando assim

uma tríade canópica), explicitando assim a dupla natureza e origem de Serápis. Acima e

a jusante da “ponte”, situavam-se outros nichos decorados de quatro Antínoo Osíris de

pedra branca (cor do Alto Egipto), terminando-se o corredor com uma parede que o

separava de uma cisterna. Aqui encontrava-se um nicho-fonte revestido de embrechados

(pietra pomice), decorado de um busto colossal de Ísis-Sothis-Deméter, e evocando a

gruta-nascente da primeira Catarata do Egipto donde saía a enchente do Nilo568

(uma

verdadeira cascata de forte caudal e alta de mais de quatro metros devia verter-se no

corredor569

).

Este conjunto exedra-corredor abria para um pórtico a quatro colunas flanqueado

de dois pavilhões avançados e simétricos, enquadrando na perfeição o corpo central do

566

Lavagne, 2002, p. 82.

567 Tema iconográfico do “deus sobre a flor” muitas vezes atestado na religião egìpcia para evocar o

nascimento, o despertar do Sol no Loto primordial. A religião alexandrina retomou-o mostrando o busto

de Serápis (entre outros) emergindo de um cálice de acanto. Esta iconografia solar ilustrava o poder do

renascimento do deus na qualidade de detentor da energia cíclica que tinha recebido tanto de Osíris como

de Ápis. O regresso quotidiano do astro do dia é o garante da vida e o símbolo da permanência da ordem

cósmica. Ele ilustra a vitória sobre a noite, a morte e o caos (Grenier, 1989, pp. 940-941, 977).

568 Para os antigos Egìpcios, era do Noun, oceano primordial e imenso reservatório das “águas de baixo”

(mares, rios, inundações, poços) e das “águas de cima” (chuva), que provinham as águas sagradas do Nilo

(Bohrmann, 1992, pp. 176-179).

569 A cisterna que devia alimentar o grande nicho-fonte foi deixada inacabada e nunca recebeu água. A

morte de Adriano, em 138 d. C., interrompeu as obras e o “Egipto” nunca teve oportunidade de ter sido

inundado sob a enchente do Nilo. À sua morte, colocou-se no sítio o busto de Ísis-Sothis-Deméter no

nicho que foi encerrado por um simples tabique (Grenier, 1989, pp. 976-977).

113

edifício e decorados muito provavelmente nos seus ângulos interiores por dois

Osirantínoo telamones colossais em granito vermelho (servindo também de suporte ao

telhado). De um lado e do outro do edifício estavam ainda dispostas diversas peças

cegas, abrindo unicamente no espaço transversal separando o pórtico da exedra.

Relativamente aos pavilhões, cada um comportava um grande nicho semi-circular

acomodado segundo um eixo transversal (perpendicular ao eixo geral do Serapeu) e

dedicados respectivamente a Ísis (o da direita) e a Harpócrates (o da esquerda),

constituindo assim a tríade alexandrina com Serápis cuja parte do santuário lhe foi

consagrada (outras “Ísis” mais pequenas, tal como uma Cleópatra-Ísis suicidando-se,

bem como estátuas de “Osíris de Cânopo”, podiam também decorar o pavilhão da

direita). Mas também, segundo a lógica “geográfica” e estando de um lado e do outro da

exedra (o Delta), os pavilhões evocavam igualmente a cidade de Pelúsio (o da esquerda;

a Oriente do Delta) e a cidade de Alexandria (o da direita; a Ocidente do Delta),

conotando-se com as divindades que eram aí consagradas.

Existiam igualmente no “Serapeu de Cânopo” de Adriano outras estátuas

egipcizantes que seriam entre uma vintena, muitas com função puramente decorativa,

como babuínos, crocodilos, ou até esfinges que enquadravam talvez portas colocadas

aos pares ou em formando dromo.

Por fim, frente ao pórtico, situava-se um tanque rectangular, seguido de outro de

grandes dimensões, ocupando todo o valezinho do “Canopus” (no eixo do Serapeu) e

representando o mare nostrum. Tínhamos na sua decoração estatuária a evocação de

Atenas na “margem ocidental” (com as cariátides do Erecteu), de Éfeso na “riba

oriental” (com as duas Amazonas de Policleto e de Fídias que decoravam o templo de

Ártemis), bem como a presença da monstruosa Cila devorando os marinheiros de

Ulisses (representada duas vezes sobre “ilhas”).

O acomodamento hidráulico deste Serapeu tinha portanto como objectivo

substituir-se ao Nilo. Todavia, a evocação do grande rio sagrado não está aqui limitada a

um elemento que ficava noutros sítios arquitecturalmente anexo. A água ocupava aqui

toda a arquitectura e é unicamente em função dela que o edifício inteiro foi concebido,

como se este Serapeu fosse o próprio “Nilo”, mais exactamente um “Nilo” em enchente

se se considera a vontade deliberada de inundar sob as águas toda a parte significativa

do edifício, da mesma maneira que o rio inundava toda a parte viva e fértil do Egipto.

114

Relativamente agora à forma peculiar do Serapeu de Adriano, temos de notar

que o Serapeum de Mênfis570

, cidade igualmente visitada pelo imperador aquando da

sua viagem no Egipto571

, tinha igualmente uma construção em hemiciclo.

Santuário mais antigo que o de Alexandria, o Serapeu de Mênfis possuía uma

exedra (dionisíaca) povoada de onze grandes estátuas-retratos, cinco poetas e cinco

filósofos (escolhidos por Ptolemeu I) em volta de um belo Homero em glória572

, à

entrada mesma do Serapeu573

.

De igual composição era também a base curva do Stibadeion de Tasos, que data

aproximadamente de um mesmo período – princípios do século III a. C. O monumento

apresentava de facto, no fundo do naos, um soco curvo onde tinham assento uma figura

de Dioniso rodeado por personificações de uma série de géneros literários.

Além da construção em hemiciclo, o Serapeu menfita possuía igualmente dois

pequenos templos situados nas margens de uma ala de esfinges (conduzindo do

santuário de Nectanebo para a entrada da necrópole propriamente dita do Serapeu),

dedicados respectivamente a Ápis e a Dioniso.

Adequando-se perfeitamente ao raciocínio de J.-C. Grenier sobre a origem de

Serápis (entidade resultante da fusão de Osíris de Cânopo com o Ápis de Mênfis),

podemo-nos perguntar se de facto a construção em hemiciclo no “Egipto” da Villa de

Adriano não seria na realidade uma réplica da exedra do Serapeu de Mênfis, berço do

deus Ápis, observado in situ por Adriano durante a sua viagem ou, eventualmente, já

referido por um desses sacerdotes egípcios eruditos chamados pelos imperadores em

intervir sobre obras egipcizantes574

. O acomodamento hidráulico representando o Nilo

em enchente relacionar-se-ia por sua vez com o Osíris de Cânopo.

570

Picard, 1951, pp. 71-81.

571 Para mais detalhes sobre a viagem de Adriano no Egipto, ver Golvin, 2002, pp. 40-45.

572 A existência da assembleia dos poetas e filósofos, desejado por Ptolemeu I, teve como origem um

largo movimento de curiosidade literária e de veneração do pensamento grego, ao qual se ligou depois a

actividade da Biblioteca de Alexandria, “Viveiro das Musas” (Picard, 1951, p. 77).

573 Desde o tempo da Academia, a meditação filosófica tinha-se instalado de bom grado perto das

necrópoles, o que explica o lugar do hemiciclo de Mênfis na entrada do Serapeu (Picard, 1951, p. 77).

574 Sobre esses sacerdotes, ver Grenier, 1989, p. 979 e notas 92 e 93.

115

III) 4) b) iv) O Iseu de Baelo Claudia (Bolonia,

Cádis)

O templo de Ísis de Belo575

(ver fig. 62), datado de cerca de 65 d. C. a meados

do século III d. C., estava inserido num pátio com pórtico (peristilo), dentro de um

períbolo de planta rectangular. A entrada no santuário fazia-se pela fachada meridional

através de uma escada monumental, permitindo aceder ao peristilo cujas galerias tinham

mais de dois metros e meio de largura (cinco colunas nas alas Este e Oeste, quatro

colunas nas alas Norte e Sul).

Na zona setentrional do pátio, embutido parcialmente na galeria Norte, erguia-se

um pequeno templo tipicamente romano sobre pódio com capitéis de tipo coríntio,

construído com a mesma técnica que se empregou nos vizinhos templos capitolinos, isto

é, com materiais pobres e reboco de estuque branco. A cella, praticamente quadrada,

estava precedida de um pronaos. Da decoração do templo não se conserva praticamente

nada, com excepção de uma escultura de mármore branco representando uma esfinge

(encontrada na parte meridional do pátio). Seguramente, segundo J. Alvar576

, pelos

paralelos de outros santuários, teria existido uma outra esfinge, destinadas as duas a

flanquear um elemento arquitectónico, possivelmente a escada de acesso ao pódio.

Por sua vez, na zona meridional do pátio, encontrava-se o altar principal577

seguido do tanque nilótico (de planta rectangular com 1,60 x 0,69 m), duas construções

perfeitamente alinhados ao aedis e fazendo-o frente. Um lar (focus) vinha completar o

conjunto do pátio, situando-se à direita do tanque e destinado a queimar as oferendas.

Relativamente ao reservatório, ele era alimentado por uma canalização de chumbo vinda

do Leste e embutida na sua parede Norte; o escoamento das águas efectuava-se no

ângulo Sudeste por um curto cano de chumbo ligado por sua vez a um esgoto em

alvenaria, coberto de lajes e selado pelo opus Signinum constituindo o pavimento do

pátio e do pórtico. Esta última conduta que se dirigia para o cardo assegurava tanto a

evacuação da água em demasia do tanque como das águas da area aquando das chuvas.

No extremo Sul da galeria ocidental existia um poço, e na galeria Norte, por

575

Alvar, 2012, pp. 79-80, 84; Pelletier et al., 1987, pp. 70-75; Pelletier et al., 1988, pp. 21-25.

576 Alvar, 2012, p. 84.

577 Entre os restos do altar do pátio principal documentaram-se figos, tâmaras, sementes de tremoço e

pinhas carbonizados (Alvar, 2012, p. 80).

116

detrás do aedis, situavam-se três edifícios que abriam para o lado do pórtico por uma

porta de 1 m de largura. O edifício mais oriental, de planta rectangular e duas vezes

maiores que os outros compartimentos, foi identificado como sendo a sala de iniciação

nos mistérios isíacos. O compartimento tinha uma parte a céu aberto, delimitada por

quatro colunas, comportando um altar de telhas com “bordaduras”578

, recoberto de

estuque579

, e uma estrutura quadrada de centro vazio. As colunas tinham capitéis de tipo

coríntio e sustentavam um telhado feito de telhas e de placas de chumbo. Encostada à

parede Oeste encontrava-se também uma construção em parte subterrânea, em que se

penetrava por uma porta situada no seu lado Norte; a edícula em pedra e coberta de uma

abóbada, tinha um interior exíguo com dois degraus (o degrau superior formava um

patamar) que permitiam descer ao nível inferior da cripta (a 0,88 m abaixo do

pavimento superior). Os outros dois compartimentos, do mais ocidental ao centro, de

dimensões muito vizinhas e de planta quase quadrada, representavam respectivamente

uma cozinha e uma sala de banquete ou de reunião, embora não se tenha achado

nenhum resto significativo (podiam simplesmente representar alojamentos para os

sacerdotes).

A organização da galeria setentrional, especialmente para a zona de acesso aos

dois compartimentos mais orientais, deixa pensar que a circulação estava sem dúvida

estreitamente controlada, senão interdita à maior parte dos fiéis, sendo uma zona

reservada ao clero e aos neófitos. De facto, o pódio do templo, invadindo largamente

esta galeria, as duas banquetas encostadas à parede dos compartimentos, e o pequeno

muro perpendicular à parede do recinto e fazendo frente à entrada para a sala dos

mistérios, transformavam a galeria num estreito corredor com passagens exíguas e

igualmente bem resguardado de olhares indiscretos (excepto para a dita cozinha).

578

Por cima do plano superior de uma mesa de altar, podìamos encontrar “bordaduras laterais” ou em

“Pi” de formas diversas (fr. “bordures”; termo preferido por R. Ginouvès de entre muitos outros), em que

uma das suas funções, mas não necessariamente a mais importante, era impedir a queda das cinzas

(Ginouvès, 1998, pp. 52-53).

579 Em torno deste altar encontraram-se ossos de animais, maioritariamente de frangos, cozinhados sem

cabeça, entre um resto de ganso e um dente de boi (Alvar, 2012, p. 80).

117

III) 4) b) v) O Iseu de Italica (Santiponce,

Sevilha), o templo dos deuses alexandrinos de

Emporiae (Ampúrias, Gerona) e o pé serapeico de

Conimbriga (Condeixa-a-Velha)

O templo de Ísis de Italica580

, situado no pórtico traseiro da scaenae frons do

teatro da cidade (no centro da galeria Norte,), foi construído em meados do século II d.

C. segundo a norma vitruviana para os templos romanos. O Iseu era composto de uma

cella com pronaos (tetrastilo) sobre podium (o naos ocupava um espaço exterior ao

pórtico), em que vinha acrescentar-se um altar e uma cripta (na área central), bem como

um tanque e um focus, formando assim, segundo J. Alvar581

, um complexo de culto que

respondia a um esquema canónico (complexo que se encontrava igualmente, como já

vimos, no Iseu de Belo).

O acesso à cella realizava-se mediante uma escadaria integrada no pódio, diante

da qual existia uma pequena entrada formada por duas grandes lajes de mármore e

protegida por uma cancela metálica (diante desta cancela encontraram-se placas

dedicadas a Ísis). Em frente ao aedis e alinhado com ele situavam-se o altar (1,97 x 1,95

m), algo deslocado, e em seguida o tanque de planta rectangular (10,90 x 3,60 m). Este

último apresentava reentrâncias e saliências interiores rectangulares e curvas

(lembrando o proscaenium de um teatro).

O focus (parcialmente soterrado e com 1,32 m2) onde se queimavam as

oferendas estava por sua vez localizado a Noroeste do tanque e em eixo com a cripta.

Esta última tinha planta em L, cujo lado curto albergava uma escada, de ao menos cinco

degraus, que descendia desde o eixo que marcava o templo. A câmara (6,26 x 1,81 m),

sensivelmente maior que outras conhecidas, não estava pavimentada e tinha mais de

dois metros de altura, coberta por uma abóbada de canhão rebaixada.

Na própria galeria Norte do pórtico identificaram-se outras construções

relacionadas com o templo e que representavam possíveis dependências cultuais e de

serviços.

580

Alvar, 2012, pp. 60-61.

581 Alvar, 2012, pp. 60-61.

118

Para além dessas construções no Iseu de Italica, existia igualmente um nilómetro

ao lado da cripta. Sabemos que os instrumentos utilizados pelos Egípcios para medir a

subida das águas da enchente do Nilo (cheias que se produziam cada Verão) eram os

nilómetros, e os agentes, os sacerdotes especializados dos templos. Os lugares de

observação localizavam-se essencialmente na primeira catarata (ilha Elefantina) e em

Mênfis, assim como, muito provavelmente, um pouco a Sul de Alexandria, à altura de

Schédia. Eles permitiam, segundo Diodoro de Sicília (I, 36, 11), informar a população

da importância da subida das águas bem como da sua descida, para saber de antemão da

abundância das colheitas futuras e dos riscos de inundações catastróficas582

– a

enchente, para ser benéfica, devia ser de 16 côvados, senão, quando insuficiente, dava

uma má colheita ou, quando demasiada importante, provocava uma inundação

destruidora583

.

Nos templos egípcios da época ptolemaica (bem como dos tempos

faraónicos584

), para além da medição, os nilómetros permitiam abastecer os santuários

em água pura do Nilo para as necessidades litúrgicas, sendo a água santa por excelência

aquela da inundação anual significando a renovação e o renascimento585

. R. A. Wild

propõe como hipótese que o Serapeum de Alexandria teria igualmente nilómetros cuja

utilização, visto a fraca amplitude da enchente neste lugar, seria simbólica, afirmação

que J. Leclant considera a relativizar. Para N. Genaille, supor que este “nilómetro”

servia para manifestar o poder de Serápis sobre a inundação e fornecer ao mesmo tempo

a água para os ritos litúrgicos leva a admitir que não se trata exactamente de um

nilómetro586

. Relativamente às criptas de água nilótica fora do Egipto (construções que

relembram os nilómetros), este último autor coloca igualmente a seguinte questão: «os

reservatórios serviam de facto a imitar a enchente do Nilo587

, ou a armazenar uma água

destinada a usos rituais588

, ver profanos?».589

582

Bonneau, 1981, pp. 105-106.

583 Bohrmann, 1992, nota 5 p. 177.

584 Genaille, 1983, p. 294.

585 Leclant, 1981, p. 197.

586 Genaille, 1983, pp. 294-295 e Leclant, 1981, p. 198.

587 Em Delos A, há efectivamente uma possibilidade de criar uma pseudo-enchente permitida pelos

trasbordamentos do Inopos de Delos, tradicionalmente ligada ao Nilo (Genaille, 1983, p. 295).

588 Em Delos B, já não há uma fonte aquática como em Delos A, o reservatório era enchido à mão

(Genaille, 1983, p. 295).

119

Tomamos como exemplo o caso da cripta de água nilótica do Iseu de Pompeia590

(ver fig. 58). De facto, por detrás do grande altar de culto (no ângulo Este do pátio

porticado), existia uma construção descoberta de paredes ricamente estucadas com

figuras em relevo, contendo no seu interior o acesso a uma cisterna subterrânea com

cobertura em abóbada591

. Para R. Mar592

, e respondendo à pergunta de N. Genaille para

o caso de Pompeia, esta estrutura em subsolo servia para conter a água lustral inspirada

no nilómetro dos templos egípcios. Relembramos que a água do Nilo, de presença

obrigatória nos santuários egípcios, podia ser importada em ânforas e logo guardada em

recipientes específicos593

.

Relativamente ao templo dedicado aos deuses alexandrinos em Emporiae594

,

denominado de templo M e edificado nos finais do século II ou inícios do século I a. C.

(conjuntamente com outro pequeno templo, na extremidade de um vasto pátio com

pórticos595

), sabemos, por intermédio de uma inscrição bilíngue comemorativa596

, que o

santuário foi dedicado a Ísis e Serápis, referindo-se a dedicatória à construção de um

templo, estátuas e pórtico. Existia igualmente uma cisterna em frente aos templos M e

P.

Para além da estátua de Serápis em tamanho maior que o natural (realizada

muito provavelmente em Delos, com a técnica de peças encaixadas) e fragmentos

marmóreos de outra relacionando-se provavelmente com Ísis, apareceu igualmente um

pedestal em pedra de cal, com forma de coluna estriada e rematada com capitel jónico,

tendo na parte superior uma cavidade para recolher a água das lustrações (foi

encontrado in situ no templo M). Interessante é igualmente um fragmento de relevo

589

Genaille, 1983, p. 296: «les réservoirs servaient-ils en fait à imiter la crue du Nil, ou à stocker une eau

destinée à des usages rituels, voire profanes?».

590 Mar, 2001, fig. 62 e texto p. 319.

591 O tanque data da época helenística (Genaille, 1983, p. 296).

592 Mar, 2001, fig. 62 e texto p. 319.

593 Mar, 2001, p. 325.

594 Alvar, 2012, pp. 95-100.

595 Rachet, 1994, p. 49.

596 J. Alvar transmite-nos a seguinte tradução: «A Isis. A Sarapis. Numas, hijo de Numenios, alejandrino,

devoto, mando hacer el templo, las estatuas y el pórtico. A Isis. A Sarapis. Noumas, hijo de Noumenios,

alejandrino, devoto hizo el templo, las estatuas y el pórtico» (Alvar, 2012, p. 99).

120

marmóreo em que se conserva a parte traseira de uma esfinge, e os restos de uma garra

que tanto podia pertencer a uma provável escultura do cão Cérbero que acompanharia

um Serápis entronizado, como pertencer a uma esfinge ou até um móvel.

Por fim, temos o caso do pé serapeico de Conímbriga597

, cuja tipologia o situa

entre finais do século II e inícios do III d. C. Segundo a análise de J. Alvar598

, L.

Castiglione599

considera os pés esculpidos como epifanias divinas600

e M. Le Glay601

defende que se trata de representações do próprio deus simbolizado em seu pé e que, em

consequência, seriam verdadeiras estátuas de culto, posto que não correspondem ao pé

do suposto peregrino. Tais pés eram frequentemente dedicados a Serápis. S. A.

Takács602

, por seu lado, sustem que se estes pés não são a expressão da presença mesma

da divindade, manifestam-se neles a sua percepção ou o agradecimento do fiel. Em

qualquer caso, os adornos com flor de loto neste exemplar de Conímbriga tornam

aceitável a sua conexão com os cultos nilóticos cumprindo a função de manifestação do

próprio deus que, com a sua presença, fertiliza o campo e proporciona bem-estar aos

seus seguidores. Em consequência, seria admissível a existência em Conímbriga de um

espaço sacro em que se albergava este monumento.

Esta representação do pé de Serápis relembra em muito a perna osiriana da ilha

de Bigeh no Egipto (no chamado Abaton). De facto, as listas de relíquias dos templos

greco-romanos dizem que em Bigeh, no túmulo de Osíris, achava-se enterrada

597

Segundo a descrição de J. Alvar é a «parte anterior de un gran pie izquierdo calzado com un calceus

senatorius vel patricius magnificamente trabajado. Está decorado com flores de loto estilizadas. La parte

inferior también está tallada y presenta una suela curva que impide asentar sobre base plana y excluye su

pertenencia a una estatua monumental» (Alvar, 2012, p. 39).

598 Alvar, 2012, pp. 39-40.

599 Castiglione, L., «Tables votives à empreintes de pied dans les temples d’Égypte» in Acta Orientalia

Academiae Scientiarum Hungaricae, 20, 1967, pp. 239-252.

600 As plantae pedis do Egipto foram consideradas, por L. Castiglione, como epifanias do deus ou

testemunho de sua presença permanente, comemorando ou provocando uma intervenção da divindade,

conotando-se com o caso dos pés esculpidos (Alvar, 2012, p. 39).

601 Le Glay, M., «Un “pied de Sarapis” à Timgad en Numidie» in M.B. de Boer et A. Edridge (eds.),

Hommages à Marteen J. Vermaseren. Recueil d’études offerts par les auteurs de la série EPROER à

Marteen J. Vernaseren à l’occasion de son soixantième anniversaire le 7 Avril 1978 II, EPROER 68,

Leyden, 1978, pp. 577-579.

602 Takács, S. A., «Divine and Human Feet: Record of Pilgrim Honouring Isis» in J. Elsner – I.

Rutherford (eds.), Pilgrimage in Graeco-Roman & Early Christian Antiquity. Seeing the Gods, Oxford,

2005, p. 357.

121

unicamente a perna esquerda do deus e que nesta perna estava situada uma fonte pela

qual as águas brotavam em torrentes603

. Ora, as águas do Nilo, especialmente as da

inundação anual, permitiam as ricas colheitas do Egipto, fertilizando a terra e

proporcionando a felicidade dos Egípcios, efeitos benéficos que reencontramos nos pés

serapeicos do período romano.

III) 5) Vivência religiosa num santuário egípcio

Segundo os estudos de W. Burkert604

, R. Mar e J. Ruiz de Arbulo605

sobre o

tema da vivência religiosa num santuário egípcio, sabemos que pelo efeito de uma

tradição milenar, os cultos egípcios dirigiam-se a estátuas, nas quais, pensava-se, a

divindade residia. Desde então, necessitavam de uma casa, isto é, um templo, assim

como cuidados constantes da parte dos sacerdotes. Isto significa que os membros do

clero deviam estar ligados em permanência ao templo606

, como foi sempre o caso no

Egipto, divididos em dignitários (sumo-sacerdotes), sacerdotes de menor renque e

simples servos607

.

Pela necessidade de adorar os deuses com os ritos vindo do Egipto, o “Egìpcio”

devia estar sempre presente para cumprir o sacrifício com competência608

– conhecer

603

López, 1993, p. 111.

604 Burkert, 2003, pp. 43-45.

605 Mar, 2001, pp. 323- 326.

606 O clero egípcio é absorvido por inteiro pelo seu ministério, vivendo unicamente para o seu templo e do

seu templo. Já não constitui, como os colégios sacerdotais de Roma, comissões administrativas regulando

os negócios sagrados do Estado sob a vigilância do Senado. Os membros não regressam como cidadãos,

aos seus deveres cívicos ou, como magistrados, à direcção dos negócios públicos, assim como o faziam os

antigos pontífices romanos, quando tinham cumprido o serviço solene de um dia de festa (Cumont, 1906,

pp. 52-53).

607 Segundo F. Cumont, o clero estava organizado como o era o do Egipto na época ptolemaica, formando

uma hierarquia dirigida por um sumo-sacerdote (Cumont, 1906, p. 115).

608 A eficácia da oração não dependia das disposições íntimas do fiel, mas da exactidão das palavras, do

gesto e da entoação. Se uma divindade é invocada segundo as formas exactas, sobretudo se se sabe

pronunciar o seu verdadeiro nome (na língua egípcia), ela estará constrangida em agir segundo a vontade

do seu sacerdote (o culto não se distinguia nitidamente da magia). O nome encontrava-se de facto

indissoluvelmente ligado a personalidade. Daí a necessidade de conservar a forma original do vocábulo

misterioso (Cumont, 1906, pp. 114, 116-117). Sabemos de facto que muitos deuses no antigo Egipto não

eram conhecidos pelo seu nome, que se guardava secreto, porque os Egípcios pensavam que os nomes

eram a essência mesma das coisas que designavam. O nome de uma pessoa era uma parte essencial do seu

ser. Bastava conhecê-lo para poder exercer uma influência benéfica ou maléfica sobre o seu proprietário.

A vida e a morte dependiam do nome (López, 1993, pp. 85-87).

122

com precisão os detalhes do ritual em aspectos tão complexos como era a leitura e

interpretação dos livros sagrados (prophetai e grammateis)609

; daí alguns dos

sacerdotes, pelos menos, deviam normalmente ser naturais do Egipto (existiam

igualmente ajudantes núbios). Para além disso, deviam utilizar livros escritos em

hieróglifos e servir-se da água sagrada do Nilo610

.

Como no Egipto, os sacerdotes, vestidos “a egìpcia” (com túnica de linho

branco, cabeça cuidadosamente rapada e sandálias de papiro611

) e obrigados a um voto

de castidade612

, cumpriam um serviço quotidiano613

, de manhã à noite, despertando

solenemente os deuses614

, vestindo-os615

, dando-lhes comida616

e pondo-os no leito. A

primeira hora matinal implicava a abertura das portas do templo, seguido do acender do

fogo e da purificação lustral com aspersões de água sagrada de todo o recinto e

fumigações de aromas prezadas617

. As clepsidras e os relógios de sol permitiriam, a

609

Os livros sagrados da época greco-romana reproduziam fielmente os textos gravados outrora nas

paredes das pirâmides. Cumpriam-se ainda sob os Césares com uma preocupação escrupulosa as antigas

cerimónias que remontavam às primeiras idades do Egipto. Este ritual e a ideia que se fazia dele passaram

em grande parte nos templos latinos de Ísis e de Serápis (Cumont, 1906, pp. 114-115).

610 Sabemos que a água do Nilo, de presença obrigatória nos santuários egípcios, podia ser importada em

ânforas e logo guardada em recipientes específicos (Mar, 2001, p. 325).

611 A “multidão com roupas de linho e cabeça rapada” era uma fórmula clássica para descrever, na

literatura, um santuário egipcizante (Burkert, 2003, p. 45).

612 A pureza ritual incluía vários aspectos, desde as abluções à pureza sexual, passando pelo trajar de

vestimentas brancas (Boëls-Janssen, 2004, p. 205). É preciso notar no entanto que no antigo Egipto os

sacerdotes podiam casar-se, porém a abstinência sexual era de facto rigorosa durante os meses de serviço

no templo (López, 1993, p. 148).

613 A antiga liturgia quotidiana egípcia, traduzida em grego e depois talvez em latim, e adaptada pelos

fundadores do Serapeu a necessidades novas, era fielmente seguida nos templos romanos dos deuses

alexandrinos (Cumont, 1906, p. 116).

614 O sacerdote, levando consigo um círio especial (Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120), despertava o deus

chamando-o na lìngua egìpcia (Cumont, 1906, p. 116). Segundo o antigo rito do Egipto, o “despertar”

consistia essencialmente em tocar a estátua nos locais onde se situam os órgãos sensoriais para lhe

devolver o uso daqueles, fazer-lhe ouvir música e cantos para o apaziguar e o despertar ao mesmo tempo,

apresentar-lhe oferendas alimentares para fortificar sua energia e fazer-lhe a homenagem dos produtos do

Egipto (Grenier, 1989, p. 947).

615 Sabemos que nos Iseus a estátua da deusa devia ser penteada, vestida, enjoiada e toucada

convenientemente para que os fiéis, que acudiam a área dianteira para saudá-la com sua oração matutina,

pudessem desfrutar sua presença majestosa (Mar, 2001, p. 324).

616 Para as divindades alexandrinas, já não se sacrificava somente em tal ou tal ocasião, como faziam os

Romanos para os seus deuses, mas duas vezes diariamente (Cumont, 1906, p. 117).

617 Ao longo do dia, o santuário e as oferendas eram repetidamente purificadas com a cremação de

incenso, mirra ou resinas, inundando o ambiente do imprescindìvel aroma “agradável aos deuses” (Ruiz

de Arbulo, 1996, p. 120).

123

partir deste momento, continuar a jornada e seus diversos actos particulares até ao

encerramento oficial das portas do templo618

.

Dois frescos procedentes de Herculano619

reflectem fielmente alguns daqueles

actos de culto quotidiano celebrados num santuário egípcio. No caso da pintura

representando a cerimónia da água sagrada (ver fig. 53), podemos ver um sumo-

sacerdote fazendo a sua aparição no pronaos de um templo, flanqueado por esfinges e

palmeiras, e levando consigo a jarra com a água do Nilo. A sua presença é anunciada

por dois oficiantes que tocam o sistro620

. Na área dianteira ao templo, aparecem outros

sacerdotes dirigindo o coro dos fiéis (ou iniciados) agrupados em duas fileiras, que

acompanham com os seus cantos e com o som de sistros e flautas, o percurso

processional do sumo-sacerdote até ao altar representado em primeiro plano e rodeado

de íbis (enquanto o sumo-sacerdote está ainda no pronaos, outro oficiante já está

queimando oferendas no altar). Por sua vez, na pintura mural representando uma

cerimónia com dança ritual, podemos observar uma personagem mascarada bailando no

alto do pronaos de um templo, enquanto que à volta dele e na área dianteira ao aedis,

dispersos diante de um altar em chama de tipo ptolemaico (com “cornos” angulares) e

rodeado de íbis, aparecem sacerdotes e iniciados, crianças e jovens, que cantam, batem

palmas, seguram objectos de culto, agitam sistros e tocam flautas e tambores, estando

alguns de joelhos em adoração.

Para além dos rituais quotidianos, o carácter mistérico de uma parte dos cultos

obrigava ao desenvolvimento de um complexo cerimonial introdutório para converter o

simples devoto num iniciado (mystès). As experiências como iniciado isíaco de Lúcio, o

protagonista das Metamorfoses de Apuleio, são bem ilustrativas: em primeiro lugar, o

sonho milagroso e profético em que a própria divindade se apresenta ao mortal

propondo-lhe uma solução aos seus problemas; depois, a frequência continuada do

618

Durante toda a manhã, após a cerimónia essencial da apertio, as imagens dos deuses eram oferecidas à

adoração muda dos iniciados. Depois, durante a tarde, celebrava-se o serviço do encerramento do templo,

fechando e selando o naos para a noite (Cumont, 1906, pp. 116-117). No antigo rito do Egipto, o rosto da

divindade era recoberto por um véu aquando do encerramento do naos (Grenier, 1989, p. 947 e López,

1993, p. 137).

619 Mar, 2001, estampas XXXIX e XL e textos página 167.

620 Na descrição da estampa, R. Mar refere-se a um sacerdote núbio e a um iniciado de larga cabeleira

agitando os sistros. Pelo contrário, W. Burkert descreve os dois indivíduos como sendo um sacerdote

negro, representando Anúbis, e uma sacerdotisa levando um sistro, representando Ísis, rodeando portanto

o oficiante que segura nas suas mãos o vaso contendo a água do Nilo, isto é, Osíris (Burkert, 2003, fig. 8

e texto em “Table des Illustrations”).

124

santuário e dos seus ritos quotidianos, podendo até alugar um alojamento no recinto do

próprio templo; por último, de novo por revelação divina, a aceitação pelo sumo-

sacerdote do iniciado, pagando previamente uma quantidade acordada “para custear as

rogativas”.

Compreendia esta iniciação a leitura das fórmulas rituais, o banho621

e a

purificação lustrais, seguidos de um período de jejum e abstinência depois do qual tinha

lugar a cerimónia, nocturna e secreta, da iniciação. Em seguida, o iniciado mostrava-se

diante dos devotos vestido com a “estola olìmpica” formada por doze túnicas

sobrepostas e uma clâmide ricamente bordada, toucado com uma coroa de folhas de

palmeira (para W. Burkert é uma coroa imitando os raios do Sol622

) e portador de um

archote. Após a apresentação seguia-se um banquete ritual, ambas cerimónias repetidas

três dias depois623

.

No caso de Serápis, os sacrifícios de animais que lhe eram destinados624

,

frequentemente gansos e frangos, mas também bois se o devoto era rico, junto a um

número muito diverso de oferendas consumíveis, potenciavam um ritual característico

dos santuários egìpcios: a “kliné do senhor Serápis”. Tratava-se de um banquete sagrado

no qual, depois dos ritos de apresentação dos novos iniciados, participava a própria

divindade por intermédio dos sacerdotes, aceitando os initiati em seu seio (este seria o

papel da grande sala do Iseu de Pompeia, denominada ecclesiasterion, e da grande sala

anexa à entrada do Serapeu A de Delos).

Os momentos em que o culto das divindades egípcias alcançava o seu ponto

culminante eram as grandes cerimónias ligadas ao ciclo isíaco, quando as estátuas

abandonavam a sua morada em grandes e ruidosos cortejos multicolores. Eram estas

fundamentalmente o navigium Isidis (ou Ploiaphesia) do 5 de Março, o grande cortejo

que assinalava a retomada da navegação, e a grande festa de Outono

(aproximativamente de 28 de Outubro a 3 de Novembro) que rememorava a paixão e

621

As formas diversas de purificação, de aspersão ou de ablução de água, nos mistérios assim como em

praticamente todos os outros cultos, não devem ser confundidas com o baptismo propriamente dito –

imersão numa ribeira ou num tanque, simbolizando o começo de uma nova vida (Burkert, 2003, p. 99).

622 Burkert, 2003, p. 95.

623 Descrição das experiências de Lúcio e das etapas da iniciação por R. Mar e J. Ruiz de Arbulo (Mar,

2001, p. 324).

624 O princípio do sacrifício consiste numa oferenda alimentar à divindade, sendo o sacrifício por

excelência o de uma vítima animal. Era pelo intermediário do fogo que a oferenda chegava até ao deus

(Boëls-Janssen, 2004, p. 205).

125

morte de Osíris, a busca dos seus restos e a sua ressurreição encarnado na água sagrada

do Nilo, culminada numa alegre procissão festiva (relembramos a festa nocturna da

Lychnokaie). Outras festas menores eram as Pelusia do 24 de Março que recordavam a

aparição de Harpócrates, celebradas com emplastos curativos aos viandantes. Nos

âmbitos egípcio e helénico outra festa característica era a festa das lâmpadas (lampadeia

ou lychnapsia) provavelmente destinada a celebrar o nascimento de Ísis, não

esquecendo também a do nyktelion. Por sua vez, em contraste com o ciclo isíaco, as

festas concretas celebradas em honra de Serápis são muito menos conhecidas. O

calendário de Philocalus menciona as Serapieia romanas do 25 de Abril como uma

grande festa da Primavera625

.

Os collegia reunindo os que participavam no culto de uma maneira ou de outra

multiplicaram-se, com toda uma hierarquia de iniciados ajudantes encarregados das

mais diversas incumbências (de salientar que a documentação epigráfica de cada

santuário proporcionou variações próprias): além dos pastophoroi (“portadores de

templos” nas procissões) que tinham como função preparar toda a rotina diária das

actividades, encontravam-se também os hiéraphoroi (“portadores de objectos

sagrados”), mélanophoroi (“que trajam vestimentas pretas”, como a enlutada Ísis em

busca de Osíris), sindonophoroi (“que trajam vestimentas de linho”), stolistai (que

vestiam e adornavam as estátuas; existiam também os hypostoloi, um grado inferior aos

stolistai), horologoi (responsáveis pela estrita manutenção dos horários de abertura e

encerramento), horoskopoi (intérpretes do calendário), oneirocrites (intérpretes dos

sonhos), lyknaptriai (guardiãs das lâmpadas), neokoroi e zakoroi (ajudantes e

guardiões), entre outros. F. Cumont626

acrescenta ainda os profetas, termo utilizado

pelos Gregos para designar os sacerdotes de classe superior, isto é, os “servos do deus”,

sendo o “primeiro profeta” o sumo-sacerdote do templo627

.

Ao lado deste núcleo estritamente ligado ao culto, existiam ainda, entre os

devotos que acudiam ao santuário de forma quotidiana, outros grupos de fiéis

(thérapeutai, cultores, katochoi), sem patente nem função específica; alguns de entre

eles alugavam até um alojamento no interior do santuário, para viver mais perto da

625

Enumeração das grandes cerimónias egípcias por R. Mar e J. Ruiz de Arbulo (Mar, 2001, pp. 324-

325).

626 Cumont, 1906, p. 115.

627 López, 1993, p. 145.

126

divindade, o mais tempo que podiam. Em Pérgamo, por exemplo, sabemos da existência

de um colégio de simples devotos compostos por thérapeutai, enquanto que no recinto

sagrado do Serapeu de Mênfis, hospedarias e casas eram “alugadas” pelo deus

especialmente para devotos que queriam viver perto dele, mais precisamente para os

katochoi (“aquele que é retido, agarrado ou possuìdo”). Segundo C. Préaux628

, a

semelhança com a condição do “noviço”, que no livro XI das Metamorfoses de Apuleio

espera que Ísis, em sonhos, lhe indica que o momento da iniciação chegou, é tão estreita

que se pode considerar os katochoi como “noviços”. Os “reclusos” do Serapeu de

Mênfis viviam, de facto, num estado de espera mística que não excluía no entanto

qualquer relação de negócios com o exterior, de onde provinham os recursos que eles

geriam, enquanto que eles eram remunerados por serviços auxiliares juntos dos

sacerdotes. No entanto, para R. Mar e J. Ruiz de Arbulo629

, os katochoi não eram

“noviços”, mas simples mendigos que buscavam alimento e abrigo ao amparo da

divindade.

Para os devotos em geral, e no caso da Hispânia, J. Alvar630

afirma que homens

e mulheres (incluindo escravos e libertos, pobres e ricos) aparecem em número similar

na epigrafia isíaca hispanense631

.

Por fim, tíasos632

de estilo grego, isto é, associações de Isiastai, Anubiastai e

Sarapiastai, podiam desenvolver-se à volta do núcleo egípcio.

628

Préaux, 1978, p. 654.

629 Mar, 2001, p. 324.

630 Alvar, 2012, p. 34.

631 J. Alvar afirma também que o sacerdócio dedicado a Ísis foi ocupado maioritariamente por mulheres.

Só elas detinham os escassos sacerdócios que se mencionam nas inscrições peninsulares (Alvar, 2012, p.

34).

632 O tíaso era um tipo de comunidade que podia persistir através várias gerações (koinon é uma dessas

designações mais correntes, e o termo symmystai marca o apego mutual). Há aí membros dedicados que

gastam um tempo considerável, energia, dinheiro para o deus e para seus companheiros de iniciação. Os

participantes cumprem actos em comum, especialmente sacrifícios, com a refeição de cerimónia que

segue; fazem também procissões (pompai) através da cidade. Obrigações semelhantes às de uma amicitia

pessoal existiam, compreendendo o auxílio em caso de processo e a assistência nos funerais. Os clubes

não eram feitos para aqueles que não tinham nada. São as honras (timai) que eram requestadas entre os

symmystai de um tíaso, honras ganhas especialmente por generosas contribuições financeiras (Burkert,

2003, pp. 49-50).

127

III) 6) As oferendas votivas de Santa Bárbara de Padrões

Na Antiguidade, sabemos que o voto era feito em público, diante testemunhas, e

o seu cumprimento era reconhecido publicamente, em plena luz do dia, no meio de

muitos outros, aproveitando do investimento os artesãos, os pequenos comerciantes e

todos aqueles que participavam aos banquetes acompanhando os sacrifícios633

.

O que é implicado na decisão de um pedido, em cada ocasião, é um acto de fé,

pistis (especialmente verdade no caso da doença), conceito particularmente atestado em

contexto isíaco634

.

Para ser ouvido pela divindade, o fiel tinha de se apresentar numa disposição de

espírito e de alma feita de integridade, de humildade, de abandono à sua vontade, por

outras palavras, a pietas e a fides eram as duas virtudes requeridas pelos deuses aos

fiéis635

.

Não é raro também que as inscrições votivas indiquem que a decisão ela mesma

é devido por sua vez a uma intervenção sobrenatural, a um sonho, a uma visão, a uma

ordem divina636

.

Por fim, sabemos igualmente que nos santuários de Serápis e de Ísis, era muito

comum dedicar estátuas de outros deuses ou de lhes dirigir votos637

.

Para o nosso caso específico, podemos observar que todas as lucernas votivas de

Santa Bárbara de Padrões, bem como as de Peroguarda, foram utilizadas antes de terem

sido depositadas na favissa638

, indiciando muito provavelmente a sua alumiação

aquando da sua oferta à divindade, permanecendo no sítio até que a luz se apagasse por

si mesma639

. Podemos até colocar a hipótese que era no momento em que se fechava as

633

Burkert, 2003, p. 17.

634 Burkert, 2003, p. 17.

635 Le Glay, 1995, pp. 43-45.

636 Burkert, 2003, p. 17.

637 Era perfeitamente corrente também para uma mesma pessoa de acumular diferentes sacerdócios:

encontramos particularmente associações de Cíbele com os deuses egípcios (Burkert, 2003, pp. 54-55).

638 Maia e Maia, 1997, p. 23; Viana e Ribeiro, 1957, pp. 19-20 e Ribeiro, 1960, p. 4.

639 Segundo H.-R. d’Allemagne, fora do contexto das lâmpadas que queimavam diante dos seus altares

particulares, os Romanos consideravam como um ponto de religião de não apagar uma luz servindo a um

uso doméstico e de a deixar morrer por si mesma, por causa, diziam eles, do respeito que se devia ao fogo

(Allemagne, 1891, pp. 2-3).

128

portas da cella e do santuário, que as lucernas dos devotos eram alumiadas junto do

naos e eventualmente de outras capelas, provavelmente por um sacerdote que tinha este

encargo específico, protegendo assim a(s) divindade(s) contra as trevas setianas,

permanecendo acesas durante a noite. No dia seguinte, extinguida a chama, as candeias

eram então transportadas até ao depósito votivo.

Segundo M. G. P. Maia e M. Maia640

, alcofas de esparto ou outro material

perecível foram utilizadas para o acondicionamento das lucernas, aquando do transporte

e do armazenamento na vala.

Em relação às lucernas fragmentadas de antigo e pertencentes ao século III (4ª

camada), os arqueólogos de Santa Bárbara pensam terem sido quebradas

propositadamente, talvez ritualmente, antes de serem enterradas, apresentando as

lucernas mais tardias de Peroguarda as mesmas características641

. Ora, reencontramos

este ritual em quebrar objectos relacionados com o sagrado nos Celtas. De facto, autores

antigos como Diodoro, Lucano ou Tito Lívio, evocaram nos seus escritos sobre certos

costumes dos Celtas (mais exactamente dos povos alpinos), a consagração de objectos

aos deuses quebrando-os nas paredes dos templos642

. Para citar alguns exemplos em

França, encontramos provas deste acto ritual em Acapte (Hyères)643

, onde loiça

cerâmica foi quebrada contra um rochedo sagrado; no já conhecido santuário de

Chastellard de Lardiers644

, em que argolas de grande formato foram partidas

intencionalmente como objectos votivos; ou nas áreas cultuais de grandes refeições de

comunhão em Bliesbruck (Moselle)645

, apresentando numerosos depósitos com

cerâmica fragmentada de antigo e propositadamente646

.

640

Pode-se observar em Santa Bárbara deposições de planta grosseiramente circular, contendo cerca de

80 a 100 candeias, mais ou menos intactas, parecendo coincidir, segundo M. G. P. Maia e M. Maia, com

as deposições de Peroguarda, onde as lucernas inteiras foram achadas “às bolsadas” ( Maia e Maia, 1997,

p. 21 e Viana e Ribeiro, 1957, p. 19).

641 Maia e Maia, 1997, p. 21 e Viana e Ribeiro, 1957, pp. 18-19, 30.

642 Tournie, 2001, p. 183.

643 Arcelin et al., 2003, p. 180.

644 Rolland, 1962, pp. 655-656.

645 Lévêque, 1989, pp. 515, 519.

646 Interessante é também o mobiliário que apresentou o túmulo de um príncipe orientalizante ibérico de

Pozo Moro (Espanha), datado de 500 a. C., e constituído por vasos de beber, vasos de libações e vasos de

perfume que foram queimados e destruídos por ocasião do enterro. Para R. Olmos, o facto de destruir

bens de luxo era um sinal de superabundância e um privilégio daqueles que detinham o poder (Olmos,

129

Ou seja, num dado momento do século III d. C., os Aranditani, de etnia celta,

voltaram a praticar um ritual dos seus antepassados no santuário de culto egípcio de

Santa Bárbara. Este comportamento pode ser explicado pelo período de crise e

instabilidade que caracterizou este século647

. De facto, sabemos que nos períodos de

instabilidade, de mutações socioeconómicas, os indivíduos têm tendência em

desenvolver a “religião do pai”, caracterizada por um grande respeito e um temor

reverencial648

. Este regresso às origens foi marcado em Santa Bárbara de Padrões pelo

acto ritual de quebrar objectos votivos.

Por sua vez, no depósito votivo de Lachau, podemos notar que os exemplares

intactos ou as formas completas de lucernas são raros, apresentando as várias

escavações arqueológicas, até 1976, uma quantidade de 50 kg de fragmentos de lucernas

contra somente uma quinzena de lucernas intactas649

, diferindo em muito do caso de

Santa Bárbara. Apesar dos autores da revista Gallia não terem especificado a

estratigrafia das várias campanhas de escavação e em que camada exactamente foram

encontradas as raras lucernas intactas, tudo indica uma forte sobrevivência celta no

ritual de quebrar objectos votivos durante toda a vigência do Império Romano em

Lachau, ao contrário dos Celtici de Arannis que só voltaram a praticá-lo durante o

período de instabilidade e decadência.

Além de lucernas votivas (inteiras ou quebradas), foram também encontrados, na

5ª camada pertencente ao período de meados do século I a finais do século II d. C.,

alguns fragmentos de vidro, quase todos de pequenos unguentários, e algumas moedas

da dinastia Antonina. Sendo esses objectos lançados no depósito votivo, juntamente

com as candeias, eles representam portanto excepções no acto votivo habitual praticado

neste santuário. Enquanto as moedas representam um ex-voto muito comum entre os

2002, pp. 39-40). No entanto não encontramos aqui o acto do quebrar, mas, tal como para os sacrifícios

sangrentos, o fogo parece transmitir, neste caso para o defunto, esses objectos que lhe foram consagrados.

647 Sabemos que nos anos 60 do século III d. C., a Gália e boa parte da Hispânia foram assoladas por

Francos e Alamanos que cruzaram o Reno. O território actualmente português, segundo J. Alarcão, não

sofreu certamente os efeitos desta invasão, embora deva ter sofrido da inflação, da recessão económica e

da agitação social que nesses meados do século III se verificaram em todo o Império (Alarcão, 1988, p.

75).

648 Carré, 1978, nota 97 p. 132.

649 Lancel, 1975, p. 535 e Boucher, 1977, p. 476.

130

Romanos, os pequenos unguentários, estando em contexto egípcio, podem representar,

tal como as candeias, uma oferta que pode ser utilizada pela divindade, mais

exactamente na parte final do asseio feito ao seu suporte terrestre, isto é, a estátua de

culto. De facto, o ritual do asseio no antigo Egipto concluía-se quando o oficiante ungia

a estátua com o cosmético medjet: o sacerdote segurava na mão esquerda um pequeno

pote de unguento, introduzia nele um dedo da mão direita e tocava depois a frente da

estátua enquanto se pronunciava a fórmula da unção650

.

Numa outra camada pertencente desta vez ao século III, outros fragmentos de

vidro e até agulhas de osso foram também exumados.

Para além dos objectos votivos, a própria constituição da 5ª camada que envolvia

os ex-votos denuncia outro ritual, que também resultou na deposição do que remanesceu

de um acto sagrado. A camada era de facto constituída por terra negra, com muitos

carvões, cinzas e esquírolas ósseas que, segundo M. Maia651

, pertenceriam a aves ou

ruminantes como carneiros, relacionando-se talvez com rituais de sacrifícios. Ora,

reencontramos essas mesmas características em poços e covas rituais de Bliesbruck652

(Moselle, França), fazendo parte de áreas cultuais onde se desenrolavam regularmente

cerimónias célticas cujo ritual compreendia uma refeição (refeições de comunhão

associando todos os membros de uma comunidade rural nos banquetes), oferendas e

sacrifícios. Para esta ocasião, e segundo a análise feita por P. Lévêque653

, depósitos

resultando deste ritual eram efectuados em covas ou poços; aí lançavam-se também

resíduos e cerâmica quebrada voluntariamente, misturados quase sempre com terra

preta, acinzada e engordurada levantada provavelmente no local de refeição. Pode-se

observar portanto que os restos dos banquetes, conservando sem dúvida um pouco do

sagrado da cerimónia, eram amontoados numa cavidade escavada para este efeito e

compreendendo também um depósito de objectos mais preciosos que foram lá

650

López, 1993, p. 137.

651 Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.

652 Bliesbruck era um pequeno burgo galo-romano da cidade dos “Médiomatriques” onde foi exumado

todo um bairro construído em terra e em madeira (50-100 d. C.), depois em material duro (segundo

século, com apogeu na primeira metade do terceiro século); e, entre este sector e a ribeira Blies, uma zona

continha várias centenas de covas e 250 poços murados, as covas sendo contemporâneas do primeiro

habitat, os poços do habitat em material duro (Lévêque, 1989, p. 515).

653 Lévêque, 1989, pp. 514-521.

131

consagrados. Ou seja, teríamos em Santa Bárbara de Padrões sobrevivências de antigos

rituais celtas que perduraram num santuário de culto egípcio durante a época romana.

As ditas refeições neste caso deviam ter sido provavelmente os banquetes rituais que se

realizavam após a apresentação de um novo iniciado, nos cultos de Mistérios, como por

exemplo a “kliné do senhor Serápis”.

Esta tradição pagã de quebrar objectos ligados a um acto sagrado, e de os

enterrar em seguida numa cova específica, junto a outros objectos, bem como o

enterramento de lucernas, perdurou ainda com os primeiros cristãos, mais exactamente

em ritos funerários. De facto, em Argos (Grécia), perto de várias dezenas de túmulos

paleocristãos, foram descobertas algumas covas que continham lucernas, moedas,

alguns vasos em terracota completos (exemplo de um caldeirão e de oinochoés) e

numerosos cacos de loiça comum, bem como fragmentos de pequenos vasos em vidro.

Segundo a interpretação de A. Oikonomou, loiça comum, relacionada com as refeições

fúnebres tomadas nos cemitérios por ocasião das cerimónias comemorativas, era

portanto quebrada voluntariamente sobre os túmulos, talvez para honrar os defuntos,

apanhando-se em seguida os fragmentos para serem lançados em covas específicas; os

utensílios para transportar a comida preparada pelos familiares do defunto, bem como a

água, o azeite ou o vinho, eram também colocados nas ditas covas, mas com a diferença

de estarem inteiros e não partidos, como no caso do caldeirão e dos oinochoés. As

lucernas dos túmulos eram igualmente recolhidas após as cerimónias, armazenadas

também em cavidades abertas logo nas proximidades das sepulturas654

.

654

Oikonomou, 1988, pp. 481, 500-501.

132

CONCLUSÃO

Tudo indica portanto que a cidade de Arandis, adquirindo no período romano um

lugar central de entre os locais de culto da região, acabou por acolher no século I d. C.

um importante santuário dedicado aos deuses alexandrinos, cuja devoção se exprimia

sobretudo pela oferta de uma luz votiva por parte dos devotos. Este contexto egipcizante

não resultou, no entanto, no completo abandono pelos Aranditani de certas práticas

rituais tipicamente celtas, como a deposição na favissa, junto das lucernas votivas, dos

restos de banquetes rituais, ou o acto de quebrar objectos votivos, já numa época tardia.

De acordo com os aspectos funcionais, arquitectónicos e decorativos

característicos de um santuário de culto egípcio no período romano, várias

possibilidades se apresentam para o local de culto de Santa Bárbara de Padrões. O

santuário seria composto provavelmente por um templo de estilo romano com um

pronaos desenvolvido sobre um pódio elevado, eventualmente com um tanque de

ablução à direita da cella, precedido de uma área descoberta com altar e tanques

nilóticos alinhados ao aedis, e talvez com a presença ainda de um focus, o conjunto

integrado num pátio porticado. Outros elementos podiam acrescentar-se para relembrar

o contexto egípcio do culto aí praticado: um par de esfinges ladeando a escada de acesso

ao pódio; uns telamones inspirados dos colossos osiríacos; uma cisterna subterrânea

relembrando um nilómetro (para conter a água lustral); e o desenvolvimento de toda

uma iconografia nilótica, com cenas rituais e paisagens relacionadas com o antigo

Egipto, em frescos, mosaicos e estatuária. Outras capelas ladeando o edifício de culto

principal podiam abrigar outras divindades, especialmente para uma tríade divina (com

a presença de um Harpócrates ou de um Anúbis).

Em termos dos materiais construtivos, sabemos da presença no nosso santuário

do mármore da área de S. Trigaches ou S. Brissos e de tijolos cozidos para colunas em

opus testaceum. Para além disso, podemos acrescentar igualmente a hipótese da

utilização, segundo as observações de T. Hauschild655

e de J. Alarcão656

, da pedra

granítica (revestida em seguida de estuque), para certas partes estruturantes do templo, e

do mármore da região de Estremoz e Vila Viçosa, para as estátuas de culto

(representando os deuses nilóticos sob uma fisionomia romanizada) e até para as

655

Hauschild, 2002, pp. 215-217.

656 Alarcão, 1988, p. 196.

133

estátuas simplesmente decorativas.

O temenos propriamente dito, por sua vez, seria provavelmente amplo, podendo

integrar, para além do templo principal, outras construções. De facto, segundo os

estudos de R. Ginouvès sobre os complexos religiosos de período greco-romano (com

cultos de mistérios)657

, e segundo exemplos de outros santuários de culto egípcio,

incluindo o santuário de Chastellard de Lardiers, várias possibilidades se apresentam:

sala de mistérios para cerimónias de iniciação (telesterion); edifício abrigando um

bothros e reservado a cultos de mistérios (megaron); cripta subterrânea; sala de

banquete (symposion) e cozinhas; sala de reunião para os iniciados (ecclesiasterion);

residências de sacerdotes e hóspedes (pastophoria); pórtico onde os fiéis passavam a

noite com o fim de ser “visitado” pela divindade (abaton); dormitórios para devotos que

queriam viver mais perto da divindade (hospedarias e casas “alugadas” por Serápis); via

sagrada ladeada de nichos ou edículas (oferendas de colectividades ou de ricos devotos),

pequenos “oratórios”, “esplanada” para a reunião de procissões (spatium apertum) ou

area para a celebração dos dramas sagrados.

A entrada (ou uma delas) no recinto sagrado far-se-ia provavelmente, segundo o

exemplo de Chastellard de Lardiers, do lado Sul, ao pé do depósito votivo, situando-se o

edifício de culto principal na parte Norte do cemitério actual e distanciando-se da

favissa cerca de 90 metros. Colocamos de facto a hipótese do templo se situar, não

debaixo da actual igreja, mas alinhado aos tanques, de frente (abrindo assim para

Norte), com a presença de um altar entre os dois.

Por fim, além da vertente religiosa, e estando localizado numa estação viária de

passagem obrigatória entre Pax Iulia e Ossonoba, o santuário podia igualmente ter

exercido, tal como no Serapeu ostiense, actividades comerciais e de exploração

imobiliária (albergar por exemplo os viajantes).

Desta lista apresentada sobre o complexo religioso de Santa Bárbara de Padrões,

ficamos um tanto surpreendido pelo pouco que ficou dos vestígios deste antigo

santuário de culto egípcio: um depósito votivo e um conjunto de três tanques. As

vicissitudes do tempo, como as destruições, reutilizações de materiais para construção

657

Ginouvès, 1998, pp. 34-36, 41-44, 48-53, 185-187.

134

ou outros usos658

, lavoiras agrícolas, edificação da actual igreja gótica com um

cemitério anexo (indiciando uma ocupação deste terreno na Idade Média com as

respectivas consequências), e obras públicas recentes (estrada e praceta alcatroadas

frente à igreja), podem em parte explicar os raros vestígios arqueológicos actualmente

conhecidos.

A zona mais importante do santuário situar-se-ia na área da igreja e do

cemitério, impossibilitando futuras escavações que teriam sido cruciais para um melhor

conhecimento deste local de culto. Só a zona a Norte do cemitério, onde se situam os

tanques e a basílica paleocristã, podem ainda revelar quiçá informações valiosas.

Em futuras investigações sobre este santuário e a luz votiva, dois aspectos da

pesquisa revelam-se cruciais. Em primeiro lugar, a análise dos depósitos de lucernas

votivas de Israel e do monte Ida em Creta, com o principal objectivo de descobrir quais

eram as divindades consagradas nos respectivos santuários. Isto permitiria elucidar

ainda mais sobre a problemática da lucerna votiva. Em segundo lugar, um estudo

aprofundado sobre todos os lugares consagrados a mártir de Nicomedia com possíveis

ligações a antigos santuários da Antiguidade (em Portugal continental temos, por

exemplo, uma Santa Bárbara de Nexe no concelho de Faro). Os resultados podem

confirmar a hipótese de que no momento da cristianização de antigos locais de culto

egípcio dedicados aos deuses alexandrinos, a santa Bárbara veio efectivamente

substituir e assimilar os atributos do casal divino Ísis e Serápis.

Para além dos indícios apresentados neste presente trabalho, é preciso notar

também que na própria religião cristã podemos encontrar antigas práticas e até

representações que remontam na sua origem aos cultos egípcios, assimiladas pelos

Cristãos aquando da sua luta contra tradições pagãs demasiadas enraizadas no povo.

Segundo P. Brázia659

, temos o caso das “Virgens espanholas” inspiradas de uma Isis

puellarum adorada em Acci (Guadix) e que era enfeitada com jóias, para uma procissão;

ou o caso da tradicional representação de Isis kourotrophos amamentando o seu filho

Hórus, a qual seria transformada, por via copta, na representação da Virgem Maria com

658

No caso de Chastellard de Lardiers, o desaparecimento de elementos de elevação em mármore ou em

calcário é explicado pela acção destruidora de recuperadores; um forno de cal foi efectivamente

encontrado no pátio Oeste do templo, instalado seguramente logo após o abandono ou a destruição do

santuário (Salviat, 1967, p. 389).

659 Brázia, 2011, p. 52.

135

Jesus sobre os joelhos. Relativamente às procissões propriamente ditas dos Cristãos,

mais precisamente dos Católicos, essas cerimónias relembram em muito os dias de festa

celebrados no antigo Egipto, em que a divindade, isto é, a estátua de culto, saía do seu

templo num cortejo solene660

.

Em termos da luz votiva, esta tradição está igualmente bem viva entre os

Cristãos, bem visível nas nossas igrejas onde «as velas e lamparinas são colocadas em

altares com intenção religiosa e sem qualquer propósito de iluminação»661

. O devoto

acende uma vela para pedir algo (a Jesus, a Virgem Maria ou aos santos) e até, para o

caso de Portugal, promete à Nossa Senhora de Fátima uma certa quantidade de velas por

ocasião da sua ida ao santuário. O acto de acender uma vela ou lamparina é considerado

como um acto benéfico e, tal como as lucernas votivas, a luz é dada com o intuito de

receber algo em troca, ou de agradecer um pedido que já foi concretizado (uma cura,

uma protecção, um auxílio, entre outros). A grande pergunta que se nos coloca é de

saber se, de facto, o acto de oferecer uma luz votiva provem efectivamente do antigo

Egipto, mais precisamente, remontando a sua origem primeira à hipótese de um

eventual ritual mágico praticado nos templos egípcios de época faraónica, em que a luz

protegia do seu poder apotropaico a divindade abrigada na sua cella de granito.

Eis outro caminho de investigação que, somando-se aos outros, nos podem levar

mais perto da verdade relativamente ao santuário de Santa Bárbara de Padrões e das

suas lucernas votivas.

660

Dessas procissões, as mais célebres ficaram conhecidas como a da “Festa da Boa Reunião”, quando

Hátor viajava desde Dendera até Edfu para reunir-se com o seu esposo, Hórus – carregava-se a estátua da

deusa numa barca que remontava o rio até Edfu, rodeada por outras embarcações em que tinham assento

o clero e numerosos peregrinos; ou a procissão da grande festa de Opet, quando Ámon de Karnak visitava

com grande pompa o templo de Luxor considerado como seu harém (Opet ou Ipet) – as andas tinham a

forma de uma barca portátil (López, 1993, pp. 28, 32, 139, 142-143, 149).

661 Ribeiro, 1960, p. 4.

136

Bibliografia:

Alarcão, Jorge de, O domínio romano em Portugal, 3ª Edição, Publicações

Europa-América, Forum da História, 1988, Mem Martins.

Allemagne, Henry-René d’, Histoire du luminaire depuis l’époque romaine

jusqu’au XIXe siècle, Alphonse Picard, Paris, 1891.

Almeida, José António Ferreira de, Introdução ao estudo das lucernas romanas

em Portugal, Tese de doutoramento em Ciências Históricas na Universidade de

Lisboa/Edição do autor, Lisboa, 1952.

Alvar, Jaime, «Cultos orientais e mistéricos na província da Lusitânia» in

AAVV, Religiões da Lusitânia – Loquuntur Saxa, Museu Nacional de Arqueologia,

Lisboa, 2002.

Alvar, Jaime, Los Cultos Egipcios en Hispania, Presses universitaires de

Franche-Comté, Institut des Sciences et Techniques de l’Antiquité, Université de

Franche-Comté, 2012.

Arcelin, Patrice et al., «La France du Sud-Est (Languedoc-Roussillon, Midi-

Pyrénées, Provence-Alpes-Côte d’Azur)» in Gallia, Tome 60, 2003, pp. 169-241.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_2003_num_60_1_3147, acedido em 17 de Novembro de 2011.

Ayala, Grégoire, «Alba-la-Romaine (Ardèche): les lampes en terre-cuite» in

Revue archéologique de Narbonnaise, Tome 23, 1990, pp. 153-212.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ran_0557-

7705_1990_num_23_1_1368, acedido em 25 de Novembro de 2011.

Barruol, Guy, «Miroirs votifs découverts en Provence et dédiés à Sélènè et à

Aphroditè» in Revue archéologique de Narbonnaise, Tome 18 (Vol. 18, nº 18), 1985,

pp. 343-373.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ran_0557-

7705_1985_num_18_1_1272, acedido em 7 de Dezembro de 2011.

Barruol, Guy, «Miroirs dédiés à Sélènè et à Aphroditè: observations et

découvertes nouvelles» in Revue archéologique de Narbonnaise, Tome 20, 1987, pp.

137

415-418.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ran_0557-

7705_1987_num_20_1_1318, acedido em 8 de Dezembro de 2011.

Bernardes, João Pedro, «A propósito da localização de Aranni / Arandis» in

“Conimbriga”, vol. XLV, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Instituto de

Arqueologia, Coimbra, 2006, pp. 153-164.

Blázquez, José María, Diccionario de las Religiones Prerromanas de Hispania,

Coleccion Colegio Universitario, Ediciones ISTMO, Madrid, 1975.

Boëls-Janssen, Nicole, «Les noces de l’eau et du feu» in L’eau et le feu dans les

religions antiques – Actes du premier colloque internacional d’histoire des religions

organisé par l’Ecole Doctorale “Les Mondes de l’Antiquité”, Paris, 18-20 mai 1995,

Université de Paris IV-Sorbonne, Ecole Normale Supérieure, Gérard Capdeville (ed.),

De l’Archéologie à l’Histoire, De Boccard, Paris, 2004.

Bonneau, Danielle, «Le Nil à l’époque ptolémaïque. Administration de l’eau au

III siècle avant notre ère» in L’homme et l’eau en Méditerranée et au Proche-Orient I.

Séminaire de recherche 1979-1980, Travaux de la Maison de l’Orient, Maison de

l’Orient et de la Méditerranée Jean Pouilloux, Lyon, 1981, pp. 103-114.

url:http://www.persee.fr/web/ouvrages/home/prescript/article/mom_0766-

0510_1981_sem_2_1_1154, acedido em 5 de Março de 2012.

Bohrmann, Monette, «La pluie dans le judaïsme antique et l’inondation en

Égypte» in Dialogues d’histoire ancienne, Vol. 18 Nº 2, 1992, pp. 175-186.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/dha_0755-

7256_1992_num_18_2_2022, acedido em 7 de Março de 2012.

Boucher, Jean-Paul, «Circonscription de Rhône-Alpes» in Gallia, Tome 35

fascicule 2, 1977, pp. 473-494.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1977_num_35_2_1579, acedido em 16 de Novembro de 2011.

Boucher, Jean-Paul, «Circonscriptions de Rhône-Alpes» in Gallia, Tome 38

fascicule 2, 1980, pp. 507-534.

138

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1980_num_38_2_1814, acedido em 17 de Novembro de 2011.

Boussac, Hippolyte, «Commentaire d’un passage d’Hérodote (II, 18) concernant

les source du Nil» in Comptes-rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et

Belles-Lettres, 58 année, Nº 1, 1914, pp. 29-30.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/crai_0065-

0536_1914_num_58_1_73330, acedido em 10 de Março de 2012.

Brázia, Paulo Jorge Martins da, Cultos Orientais no Ocidente Peninsular –

Perspectiva Artística, Tese de Mestrado em História da Arte, Área de especialização em

História da Arte da Antiguidade, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas, Lisboa, 2011.

Bruneau, Philippe, «Isis Pélagia à Délos» in Bulletin de correspondance

hellénique, Vol. 85, 1961, pp. 435-446.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bch_0007-

4217_1961_num_85_1_1592, acedido em 15 de Janeiro de 2012.

Bruneau, Philippe, «Isis Pélagia à Délos (Compléments)» in Bulletin de

correspondance hellénique, Vol. 87, livraison 1, 1963, pp. 301-308.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bch_0007-

4217_1963_num_87_1_2292, acedido em 16 de Janeiro de 2012.

Bruneau, Philippe, «Le dromos et le temple C du Sarapieion C de Délos» in

Bulletin de correspondance hellénique, Vol. 104, livraison 1, 1980, pp. 161-188.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bch_0007-

4217_1980_num_104_1_1961, acedido em 20 de Janeiro de 2012.

Burkert, Walter, Les Cultes à Mystères dans l’Antiquité, Colecção vérité des

mythes, Edição Les Belles Lettres, Paris, 2003.

Carneiro, André, Itinerários romanos do Alentejo. Uma Releitura de «As

Grandes Vias da Lusitânia – O Itinerário de Antonino Pio» de Mario Saa, cinquenta

anos depois, Edições Colibri, 2ª edição, Lisboa, 2009.

Carré, Renée, «Les cultes voconces» in Dialogues d’histoire ancienne, Vol. 4,

1978, pp. 119-133.

139

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/dha_0755-

7256_1978_num_4_1_2942, acedido em 2 de Novembro de 2011.

Chassaing, Marcel, «Sur un bas-relief poitevin de tradition celtique» in Bulletin

de la Société préhistorique française, 1978, vol. 75, nº 9, pp. 286-288.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bspf_0249-

7638_1978_num_75_9_8571, acedido em 5 de Novembro de 2011.

Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, Bouquins,

Robert Laffont / Jupiter, Paris, 1982.

Compère, Daniel, «Faits divers et vulgarisation scientifique» in Romantisme,

1997, nº 97, Le fait divers, pp. 69-76.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/roman_0048-

8593_1997_num_27_97_3238, acedido em 2 de Dezembro de 2011.

Cumont, Franz, Les Religions Orientales dans le Paganisme Romain, Ernest

Leroux, Paris, 1906.

Dubourdieu, Annie e Scheid, John, «Lieux de Culte, Lieux Sacrés: Les Usages

de la Langue – L’Italie Romaine» in AAVV, Lieux Sacrés, Lieux de Culte, Sanctuaires

– Approches terminologiques, méthodologiques, historiques et monographiques, André

Vauchez (dir.), Collection de l’École française de Rome - 273, École Française de

Rome, Diffusion De Boccard, Paris, 2000, pp. 59-79.

Duval, Paul-Marie, «Le monde celtique et l’Europe occidentale» in Travaux sur

la Gaule (1946-1986), École Française de Rome, Rome, 1989, pp. 51-62.

url:http://www.persee.fr/web/ouvrages/home/prescript/article/efr_0000-

0000_1989_ant_116_1_3650, acedido em 4 de Novembro de 2011.

Egger, Émile, «Sur une inscription grecque découverte au Serapeum par M.

Mariette et aujourd’hui déposée au Musée du Louvre. Essai de restitution et

d’interprétation» in Comptes-rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et

Belles-Lettres, 1er année (Vol. 1), 1857, pp. 68-69.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/crai_0065-

0536_1857_num_1_1_65883, acedido em 12 de Janeiro de 2012.

140

Encarnação, José d’, «Das religiões e das divindades indìgenas na Lusitânia» in

AAVV, Religiões da Lusitânia – Loquuntur Saxa, Museu Nacional de Arqueologia,

Lisboa, 2002.

Garcia, Joëlle, «Allégories et hiéroglyphes: l’iconographie du ministre chez

Giovanni Palazzi (1671)» in Bibliothèque de l’école des chartes, 2000, Tome 158, pp.

55-68.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bec_0373-

6237_2000_num_158_1_451016, acedido em 15 de Fevereiro de 2012.

Genaille, Nicole, «Cultes isiaques et eau sacrée (notes critiques)» in Revues de

l’histoire des religions, Tome 200, nº 3, 1983, pp. 293-309.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/rhr_0035-

1423_1983_num_200_3_4485, acedido em 2 de Fevereiro de 2012.

Ginouvès, René e Martin, Roland, Dictionnaire méthodique de l’architecture

grecque et romaine. Tome I. Matériaux, techniques de construction, techniques et

formes du décor, Collection de l’École française de Rome 84/1, École française

d’Athènes / École française de Rome, Rome, 1985.

url:http://www.persee.fr/web/ouvrages/home/prescript/monographie/efr_0000-

0000_1985_dic_84_1, acedido em 8 de Abril de 2012.

Ginouvès, René, Dictionnaire méthodique de l’architecture grecque et romaine.

Tome II. Éléments constructifs, supports, couvertures, aménagements intérieurs,

Collection de l’École française de Rome 84/2, École Française de Rome / École

française d’Athènes, Rome, 1992.

url:http://www.persee.fr/web/ouvrages/home/prescript/monographie/efr_0000-

0000_1992_dic_84_2, acedido em 8 de Abril de 2012.

Ginouvès, René, Dictionnaire méthodique de l’architecture grecque et romaine.

Tome III. Espaces architecturaux, bâtiments et ensembles, Collection de l’École

française de Roma 84/3, École Française d’Athènes / École française de Rome, Rome,

1998.

url:http://www.persee.fr/web/ouvrages/home/prescript/monographie/efr_0000-

0000_1998_dic_84_3, acedido em 7 de Abril de 2012.

141

Golvin, Jean-Claude, «Hadrien en Égypte» in Hadrien – Hadrien, vices et

vertus, voyages et passions. Le mur d’Hadrien en Angleterre. Le panthéon de Rome. La

villa de l’empereur à Tivoli, Dossiers d’Archéologie, nº 274, Éditions Faton, Dijon, Juin

2002, pp. 40-45.

Grenier, Jean-Claude, «La décoration statuaire du «Serapeum» du «Canope» de

la Villa Adriana. Essai de reconstitution et d’interprétation» in Mélanges de l’École

française de Rome. Antiquité, tome 101, nº2, 1989, pp. 925-1019.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/mefr_0223-

5102_1989_num_101_2_1653, acedido em 19 de Dezembro de 2011.

Gricourt, Daniel e Hollard, Dominique, «Taranis, le dieu celtique à la roue.

Remarques préliminaires» in Dialogues d’histoire ancienne, vol. 16, nº 2, 1990, pp.

275-320.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/dha_0755-

7256_1990_num_16_2_1491, acedido em 20 de Novembro de 2011.

Grimal, Pierre, Dicionário da Mitologia Grega e Romana, 5ª Edição, Difel,

Lisboa, 2009.

Guerra, Amílcar M. Ribeiro, Plínio-o-Velho e a Lusitânia, Arqueologia &

História Antiga, Edições Colibri, Lisboa, 1995.

Hauschild, Theodor, «Templos romanos na província da Lusitânia» in Religiões

da Lusitânia – Loquuntur Saxa, Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, 2002.

Husson, Geneviève e Valbelle, Dominique, L’État et les Institutions en Égypte –

des premiers pharaons aux empereurs romains, Histoire ancienne, Armand Colin, Paris,

1992.

Laforge, Marie-Odile, La Religion Privée à Pompéi, Études VII, Centre Jean

Bérard, Naples, 2009.

Lancel, Serge, «Circonscription de Rhônes-Alpes» in Gallia, Tome 33 fascicule

2, 1975, pp. 529-558.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1975_num_33_2_1538, acedido em 16 de Novembro de 2011.

142

Lapparent, Le Comte De, Sainte Barbe, Collection L’Art et les Saints, Henri

Laurens, Paris, 1926.

Lavagne, Henri, «Les dieux de la Gaule Narbonnaise; “romanité” et

romanisation» in Journal des savants, vol. 3, nº 3, 1979, pp. 155-197.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/jds_0021-

8103_1979_num_3_1_1390, acedido em 23 de Novembro de 2011.

Lavagne, Henri, «La Villa d’Hadrien» in Hadrien – Hadrien, vices et vertus,

voyages et passions. Le mur d’Hadrien en Angleterre. Le panthéon de Rome. La villa de

l’empereur à Tivoli, Dossiers d’Archéologie, nº 274, Éditions Faton, Dijon, Juin 2002,

pp. 76-86.

Leclant, Jean, «Isis au pays de Kouch» in École pratique des hautes études,

Section des sciences religieuses. Annuaire. Tome 90, 1981-1982. 1981. pp. 39-59.

url:http://www.persee.fr/web/ouvrages/home/prescript/article/ephe_0000-

0002_1981_num_94_90_18365, acedido em 8 de Janeiro de 2012.

Leclant, Jean, «Conférence de M. Jean Leclant» in École pratique des hautes

études, Section des sciences religieuses, Annuaire, Tome 90, 1981-1982, 1981, pp. 197-

208.

url:http://www.persee.fr/web/ouvrages/home/prescript/article/ephe_0000-

0002_1981_num_94_90_15794, acedido em 7 de Fevereiro de 2012.

Leglay, Marcel, «Circonscription de Rhône-Alpes» in Gallia, Tome 29 fascicule

2, 1971, pp. 407-445.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1971_num_29_2_2589, acedido em 14 de Novembro de 2011.

Leglay, Marcel, «Circonscription du Rhône-Alpes» in Gallia, Tome 31 fascicule

2, 1973, pp. 515-547.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1973_num_31_2_2647, acedido em 16 de Novembro de 2011.

Le Glay, Marcel, La Religion Romaine, 2ª edição, Armand Colin, Paris, 1995.

Lello Universal – Dicionário Enciclopédico em 2 Volumes, Lello Editores,

Porto, Setembro de 2002.

143

Lévêque, Pierre, O mundo helenístico, Lugar da História, edições 70, Lisboa,

1987.

Lévêque, Pierre, «Un rituel celtique: festins communautaires et enfouissement:

Jean-Paul Petit, “Puits et fosses rituels en Gaule d’après l’exemple de Bliesbruck

(Moselle)”», in Dialogues d’histoire ancienne, 1989, vol. 15, nº 2, pp. 514-521.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/dha_0755-

7256_1989_num_15_2_1889, acedido em 2 de Dezembro de 2011.

López, Jesús, «Mitología y religión egípcias» in Mitología y religión del Oriente

Antiguo. Egipto-Mesopotamia, vol. 1, colecção Estudios Orientales, Editorial AUSA,

Sabadell, 1993.

Lurker, Manfred, Dictionnaire des dieux et des symboles des anciens égyptiens –

Le monde magique e mystique de l’Égypte, traduit de l’allemand par Patrick Jauffrineau,

Pardès, Puiseaux, 1994.

Maciel, M. Justino, Vitrúvio, Tratado de Arquitectura – Tradução do latim,

introdução e notas, 3ª Edição, IST PRESS, Lisboa, 2009.

Maia, Manuel, «De Baesuris a Pax Ivlia por Arannis» in Actas das I Jornadas –

as vias do Algarve, da Época Romana à Actualidade, Câmara Municipal de São Brás de

Alportel / CCDR Algarve, São Brás de Alportel, 2006, pp. 39-45.

Maia, Maria Garcia Pereira e Maia, Manuel, Lucernas de Santa Bárbara, Edição

Cortiçol, Núcleo de Arqueologia da Cortiçol, Castro Verde, 1997.

Mar, Ricardo (ed.), El Santuario de Serapis en Ostia, Documents d’Arqueologia

Clássica 4, Vol. I Texto, Universitat Rovira I Virgili, Tarragona, 2001.

Marcadé, Jean, «Sur quelques représantations nouvelles du phare d’Alexandrie»

in Bulletin de correspondance hellénique, Vol. 76, 1952, pp. 61-95.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bch_0007-

4217_1952_num_76_1_2452, acedido em 17 de Janeiro de 2012.

Montero, Santiago, «Trajano y el Serapeum de Alejandria» in Religión y

Propaganda Política en el Mundo Romano, Col.lecció: Instrumenta Nº 12, Publicacions

Universitat de Barcelona, Barcelona, 2002, pp. 127-135.

144

Morenz, Siegfried, La Religion Égyptienne – Essai d’Interprétation, Traduit de

l’Allemand par L. Jospin, Payot, Paris, 1977.

Oikonomou, Anastasia, «Lampes paléochrétiennes d’Argos» in Bulletin de

correspondance hellénique, vol. 112, livraison 1 (nº 112-1), 1988, pp. 481-502.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bch_0007-

4217_1988_num_112_1_1758, acedido em 7 de Novembro de 2011.

Olivares Pedreño, Juan Carlos, «Las ofrendas votivas de comunidades rurales a

Jupiter en Hispania como testimonios de religiosidad indígena» in Dialogues d’histoire

ancienne, vol. 26, nº 2, 2000, pp. 63-75.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/dha_0755-

7256_2000_num_26_2_2426, acedido em 2 de Dezembro de 2011.

Olmos, Ricardo, «Rites d’initiation et espace sacrificiel en Ibérie préromaine» in

Rites et Cultes dans le Monde Antique – Actes de la table ronde du “LIMC” à la Villa

Kérylos à Beaulieu-sur-Mer les 8 & 9 juin 2001, Cahiers de la Villa «Kérylos» Nº 12,

(Édition) Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, Diffusion De Boccard, Paris,

2002, pp. 39-60.

Pelletier, Agnès et al., «Belo: le temple d’Isis et le forum» in Mélanges de la

Casa de Velázquez, Tome 23, 1987, pp. 65-105.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/casa_0076-

230x_1987_num_23_1_2485, acedido em 23 de Janeiro de 2012.

Pelletier, Agnès et al., «Belo: le temple d’Isis et le Forum (II)» in Mélanges de

la Casa de Velázquez, Tome 24, 1988, pp. 19-51.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/casa_0076-

230x_1988_num_24_1_2507, acedido em 24 de Janeiro de 2012.

Picard, Charles, «Les originaux retrouvés des statues grecques du Sérapeion de

Memphis» in Comptes-rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belles-

Lettres, 95e année (Vol. 95), nº 1, 1951, pp. 71-81.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/crai_0065-

0536_1951_num_95_1_9703, acedido em 3 de Fevereiro de 2012.

145

Préaux, Claire, Le Monde Hellénistique – La Grèce et l’Orient de la mort

d’Alexandre à la conquête romaine de la Grèce (323-146 av. J.-C.), tome second,

Nouvelle Clio – L’histoire et ses problèmes, Presses Universitaires de France, Paris,

1978.

Rachet, Guy, Dictionnaire de l’Archéologie, Collection Bouquins, Éditions

Robert Laffont, Paris, 1994.

Ribeiro, Fernando Nunes, «Lucernas Romanas de Peroguarda», Separata do

Arquivo de Beja, Vol. XVI, Minerva Comercial, Beja, 1960.

Rodrigues, Sandra, As vias romanas do Algarve, Centro de Estudos do

Património da Universidade do Algarve / Comissão de Coordenação e Desenvolvimento

Regional do Algarve, 2004.

Rolland, Henri, «Circonscription d’Aix-en-Provence (région nord)» in Gallia,

Tome 20, Fascicule 2 (Vol. 20, nº 20-2), 1962, pp. 655-685.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1962_num_20_2_2375, acedido em 10 de Novembro de 2011.

Rolland, Henri, «Aix-en-provence (région nord)» in Gallia, Tome 22 fascicule

2, (Vol. 22, nº 22-2), 1964, pp. 545-568.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1964_num_22_2_2212, acedido em 12 de Novembro de 2011.

Ruiz de Arbulo, Joaquín, «Altares domésticos y ritos orientales. Las árulas com

lucernas adosadas» in Cypsela, vol. XI, Centro de Investigações Arqueológicas de

Girona, Girona, 1996.

Salviat, François, «Provence-Côte-d’Azur-Corse (région nord)» in Gallia, Tome

25 fascicule 2 (Vol. 25, nº 25-2), 1967, pp. 373-396.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1967_num_25_2_2483, acedido em 14 de Novembro de 2011.

Salviat, François, «Circonscriptions de Provence-Côte d’Azur-Corse (région

nord)» in Gallia, Tome 28 fascicule 2, 1970, pp. 439-455.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/galia_0016-

4119_1970_num_28_2_2564, acedido em 14 de Novembro de 2011.

146

Scheid, John, «Sacrifice et banquet à Rome» in Mélanges de l’École française

de Roma. Antiquité, vol. 97, nº 1, 1985, pp. 193-206.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/mefr_0223-

5102_1985_num_97_1_1451, acedido em 10 de Dezembro de 2011.

Scheid, John, «Comment identifier un lieu de culte?» in Cahiers du Centre

Gustave Glotz, vol. 8, nº 8, 1997, pp. 51-59.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ccgg_1016-

9008_1997_num_8_1_1432, acedido em 2 de Novembro de 2011.

Silva, Jorge Henrique Pais da e Calado, Margarida, Dicionário de Termos de

Arte e Arquitectura, Editorial Presença, Barcarena, 2005.

Tournie, Irène, «Religion et acculturation des peuples alpins dans l’Antiquité» in

Dialogues d’histoire ancienne, vol. 27, nº 2, 2001, pp. 171-188.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/dha_0755-

7256_num_27_2_2519, acedido em 21 de Novembro de 2011.

Turcan, Robert, «Eau et feu dans la religion mithriaque» in L’eau et le feu dans

les religions antiques – Actes du premier colloque internacional d’histoire des religions

organisé par l’Ecole Doctorale “Les Mondes de l’Antiquité”, Paris, 18-20 mai 1995,

Université de Paris IV-Sorbonne, Ecole Normale Supérieure, Gérard Capdeville (ed.),

De l’Archéologie à l’Histoire, De Boccard, Paris, 2004.

Varagnac, André, «Les civilisations mégalithiques» in Annales. Économies,

Sociétés, Civilisations, vol. 17, nº2, 1962, pp. 332-342.

url:http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ahess_0395-

2649_1962_num_17_2_420829, acedido em 13 de Novembro de 2011.

Vasconcellos, J. Leite de, «Excursão pelo Baixo Alentejo» in O Archeologo

Português, Série 1, Vol. XXIX, Museu Etnológico do D. Leite de Vasconcellos, Lisboa,

1933.

Vasconcellos, J. Leite de, Religiões da Lusitania – na parte que principalmente

se refere a Portugal, vol. III, Imprensa Nacional, Lisboa, 1913.

147

Viana, Abel e Ribeiro, Fernando Nunes, «Notas históricas, arqueológicas e

etnográficas do Baixo Alentejo», Separata do Vol. XIII do Arquivo de Beja, Minerva

Comercial, Beja, 1957.

148

Lista de Figuras:

Figuras 1 e 2: fotografias do troço de calçada romana na margem da ribeira dos

Montes e Lagares (Santa Catarina da Fonte do Bispo, Algarve).

Figura 1

Figura 2

149

Figuras 3, 4 e 5: fotografias da povoação de Santa Bárbara de Padrões – a igreja

de Santa Bárbara e o seu cemitério no topo de uma colina (3); a parte traseira do

cemitério (4); a aldeia junto ao sopé Oeste da dita colina, do outro lado de uma

ribeira (5).

Figura 3

Figura 4

150

Figura 5

Figuras 6, 7, 8 e 9: fotografias de alguns cacos de cerâmica romana encontrados

no chão a Oeste e Noroeste da igreja de Santa Bárbara (6 e 7), bem como nos

muros divisórios de propriedades (8 e 9).

Figura 6

151

Figura 7

Figura 8

Figura 9

152

Figura 10: fotografia da peça marmórea romana utilizada como base para o

cruzeiro da igreja.

Figura 10

Figuras 11, 12, 13 e 14: fotografias do empedrado do adro da igreja (11 e 12) e

do topo do muro que encerra o adro (13 e 14).

Figura 11

153

Figura 12

Figura 13

Figura 14

154

Figuras 15, 16, 17 e 18: fotografias do menir.

Figura 15

Figura 16

155

Figura 17

Figura 18

156

Figura 19: fotografia do poço.

Figura 19

Figuras 20 e 21: fotografias de dois fragmentos pertencentes ao bocal (20) e sua

parte traseira (21).

Figura 20

157

Figura 21

Figuras 22 e 23: fotografias do depósito votivo (favissa) a Sul do cemitério.

Figura 22

158

Figura 23

Figura 24: planta da “Vala das Lucernas” ( Maia e Maia, 1997, p. 15).

Figura 24

159

Figura 25: as lucernas votivas de Santa Bárbara de Padrões (fotografia da capa

do livro Lucernas de Santa Bárbara de Maia e Maia, 1997).

Figura 25

Figura 26: fotografia das ruínas da basílica paleocristã a Norte do cemitério.

Figura 26

160

Figuras 27, 28 e 29: fotografias dos tanques de época romana a Norte do

cemitério.

Figura 27

Figura 28

161

Figura 29

Figuras 30 e 31: fotografias da extremidade Oeste do tanque mais meridional,

em que se pode ver o seu muro do lado Sul ser interrompido pela parede do

cemitério (30), que apresenta por sua vez uma base de blocos de pedra e

argamassa, bem como vestígios de opus Signinum em declive (31).

Figura 30

162

Figura 31

Figura 32: fotografia dos alicerces do muro setentrional do tanque intermédio,

em que se pode ver a sua continuação para Oeste até ser interrompido por uma

área ainda não escavada.

Figura 32

163

Figura 33: fotografia dos alicerces do muro que delimita para Oeste o tanque

setentrional (em primeiro plano).

Figura 33

Figura 34: fotografia da entrada ao chamado “tanque setentrional”.

Figura 34

164

Figuras 35 e 36: fotografias da base em opus incertum no ângulo Sudoeste do

chamado “tanque setentrional”.

Figura 35

Figura 36

165

Figuras 37 e 38: fotografias da base em opus incertum do tanque intermédio.

Figura 37

Figura 38

166

Figuras 39 e 40: fotografias das peças de cerâmica em quarto de círculo

encontradas no tanque intermédio.

Figura 39

Figura 40

167

Figura 41: fotografia de um fragmento de telha encontrado no tanque

intermédio.

Figura 41

Figura 42: fotografia da camada de opus Signinum colocada verticalmente ao

muro Este do tanque intermédio.

Figura 42

168

Figuras 43 e 44: fotografias da camada de opus Signinum do muro Norte do

tanque meridional formando um declive.

Figura 43

Figura 44

169

Figuras 45 e 46: fotografias da conduta atravessando a basílica paleocristã até

chegar ao tanque meridional.

Figura 45

Figura 46

170

Figura 47: quadro de Santa Bárbara, protectora contra o raio, por Desrais

(Lapparent, 1926, fot. p. 39).

Figura 47

Figuras 48 e 49: pequenas lucernas votivas de fabricação local do santuário de

Lachau (“Le Luminaire”), ornamentadas com símbolos solares, perlas e

pequenas cruzes (Leglay, 1971, fig. 32 p. 430).

Figura 48

171

Figura 49

Figura 50: planta do primeiro projecto das termas da “Trinacria” do Serapeu de

Óstia (Mar, 2001, fig. 30 p. 72).

Figura 50

172

Figura 51: planta do ninfeu em exedra do “Serapeu de Cânopo” da Villa de

Adriano em Tivoli (Ginouvès, 1998, est. 51 nº 4).

Figura 51

Figura 52: gravura representando a “fraga L” do santuário de Panóias (Alvar,

2012, fot. 198 p. 146 – Gravura Contador de Argote).

Figura 52

173

Figura 53: fresco representando uma cerimónia isíaca da água sagrada (Mar,

2001, est. XXXIX p. 167 – Fresco de Herculano; Museu Arqueológico Nacional

de Nápoles).

Figura 53

Figura 54: fresco isíaco de Pompeia representando Io e Ísis (Alvar, 2012, fot. 88

S/N p. 72 – Museu Arqueológico Nacional de Nápoles).

Figura 54

174

Figura 55: reconstituição da entrada Sul para o temenos do santuário de

Chastellard de Lardiers, junto a favissa (Rolland, 1962, fig. 4).

Figura 55

Figura 56: planta geral do oppidum de Chastellard de Lardiers, em que se pode

ver o templo e o pórtico no centro, e a entrada Sul ao temenos com um troço da

via sagrada do lado esquerdo (Salviat, 1967, fig. 20).

Figura 56

175

Figura 57: planta esquemática do Iseu (do lado direito) e do Serapeu C de Delos

(Mar, 2001, fig. 61 p. 317).

Figura 57

Figura 58: planta esquemática do Iseu de Pompeia (Mar, 2001, fig. 62 p. 319).

Figura 58

176

Figuras 59 e 60: plantas do santuário (59) e do templo (60) do Serapeu de Óstia

na sua primeira fase construtiva de 123-127 d. C., segundo a obra de R. Mar

(2001, fig. 5 p. 41 e fig. 7 p. 43).

Figura 59

Figura 60

177

Figura 61: o “Serapeu de Cânopo” da Villa de Adriano em Tivoli (fotografia

aérea tomada de Lavagne, 2002, pp. 76-86).

Figura 61

Figura 62: planta esquemática do Iseu de Baelo Claudia (Pelletier et al., 1988,

fig. 2 p. 24).

Figura 62