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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em História da Arte – Área de especialização em História da Arte da
Antiguidade, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Filomena
Limão.Versão corrigida e melhorada após a sua defesa pública.
3
AGRADECIMENTOS
Gostaria de expressar o meu agradecimento ao Senhor Doutor Manuel Maia, arqueólogo
e director do Museu da Lucerna em Castro Verde, por todo o apoio, tempo e
explicações que me dedicou durante as minhas visitas ao Museu das lucernas votivas de
Santa Bárbara de Padrões.
4
O Santuário de Santa Bárbara de Padrões – uma Perspectiva Religiosa
e Artística na Lusitânia dos Séculos I a III d. C.
Jaime da Encarnação Calado
Resumo:
O presente trabalho de investigação teve como principal objectivo desvendar os
mistérios do santuário de Santa Bárbara de Padrões (séculos I-III d. C.) em termos da(s)
divindade(s) aí venerada(s), da origem e significado primeiro da luz votiva que resultou
num depósito repleto de lucernas nas proximidades do santuário, da funcionalidade dos
tanques presentes no local de culto, e dos aspectos arquitectónicos e decorativos que
apresentaria o complexo religioso.
Após uma análise de vários tipos de indícios – arqueológicos, etnográficos,
topográficos, toponímicos, geográficos –, incluindo-se o paralelismo entre os
Aranditani de Santa Bárbara de Padrões e os Vocontii do Sudeste da Gália, e das
diferentes possibilidades relativamente à natureza da divindade, concluiu-se que o local
de culto foi consagrado aos grandes deuses alexandrinos, havendo uma relação segura
entre a toponímia do sítio – “Santa Bárbara” – e os antigos locais de culto dedicados a
Ísis e Serápis.
Neste contexto egipcizante, a presença de tanques no santuário estaria
provavelmente ligada a uma representação artificial da enchente do Nilo, fazendo frente
a um templo de estilo romano com pronaos desenvolvido sobre pódio elevado, o
conjunto inserido numa área descoberta e porticado. Vários elementos arquitectónicos e
decorativos com iconografia nilótica estariam presentes no santuário, para criar um
ambiente que rememorava um Egipto miniaturizado.
Além do principal edifício de culto, teríamos igualmente muitas outras
possibilidades de construções, como capelas abrigando outras divindades; salas de
mistérios, de banquete e de reunião relacionadas com os télétai; cozinhas; residências
para os sacerdotes e dormitórios para os devotos; via sagrada e espaços para reunião de
procissões ou celebração dos dramas sagrados; entre outros.
O depósito votivo, por sua vez, localizado a 100 m dos tanques para Sul, estaria
fora do recinto sagrado, mas provavelmente junto a uma porta de entrada para o
temenos. Aí eram arrecadadas lucernas votivas após sua dedicação e alumiação perante
a(s) divindade(s) do Nilo. A origem desta prática remontaria provavelmente até ao
antigo Egipto, mais precisamente, a um eventual ritual mágico realizado diante da cella
da divindade nos templos egípcios de época faraónica.
Palavras-chave:
Santa Bárbara de Padrões;
Deuses alexandrinos;
Serapeu;
Iseu;
Tanques nilóticos;
Lucerna votiva;
Espelho votivo.
5
Santa Bárbara of Padrões’ Sanctuary – a Religious and Artistic
Perspective in Lusitania of I-III A. D.
Jaime da Encarnação Calado
Abstract:
This dissertation’s main scope is to unveil Santa Bárbara of Padrões sanctuary’s
mysteries (I-III A. D.), in terms of the divinity worshiped there, of the origin and main
meaning of the votive light coming from a depository filled with lamps in the
proximities of the sanctuary, of the purpose of the tanks present at the place where the
cult took place, and of the architectonic and decorative features that the sanctuary would
present.
After an analysis of the several indications present at the site – archeological,
ethnographic, topographic, toponymic and geographic –, including the parallelism
between the Santa Bárbara of Padrões’ Aranditani and the Southeast of Gália’s Vocontii
and of the different possibilities into what the nature of the divinity is concerned, it was
concluded that the place where the cult took place was consecrated to the great
alexandrine gods; there exists a clear relation between the toponymic of the site –
“Santa Bárbara” – and of the ancient places of cult dedicated to Isis and Serapis.
Considering this Egyptian context, the presence of tanks at the sanctuary was
probably linked to an artificial representation of the flooding of the Nile, located in front
of a roman style temple with a pronaos developed on an elevated podium, all inserted in
an open area and with a portico. Several architectonic and decorative elements with a
nilotic iconography would be present at the sanctuary, in order to create an environment
that reminded a miniaturized Egypt.
In addition to the main building where the cult took place, we would have as
well many other possibilities of constructions, including chapels sheltering other
divinities; rooms of mysteries, of banquet and of meetings linked to the télétai;
kitchens; houses for the clergymen and dormitories for the devotee; sacred passage and
meeting places for processions and celebrations of the holy representations; and so one.
The votive depository, located at 100 m of the tanks heading south, would be
outside the sacred place, but probably close to an entrance door leading to the temenos.
Here, votive lamps were kept after their consecration and illumination facing the Nile
divinities. The origin of this practice probably goes back to ancient Egypt, more
precisely, to a possible magic ritual performed before the cella of the divinity in the
Egyptian temples during the pharaoh era.
Keywords:
Santa Bárbara of Padrões;
Alexandrine gods;
Sarapis’ temple;
Isis’ temple;
Nilotic tanks;
Votive lamps;
Votive mirrors.
6
ÍNDICE
Introdução ........................................................................................................... 9
Capítulo I: A antiga cidade romana de Arandis / Arannis ............................... 11
I) 1) A localização do santuário ............................................................. 11
I) 2) Os Aranditani .................................................................................. 13
I) 2) a) Origem e evolução .............................................................. 13
I) 2) b) Os Aranditani e os Vocontii................................................ 17
I) 3) Os vestígios arqueológicos………………………………………………………… 20
I) 3) a) A cidade………………………………………………………………………… 20
I) 3) b) O depósito votivo e os tanques……………………………………….. 25
Capítulo II: A(s) divindade(s) venerada(s) no santuário de Santa Bárbara de
Padrões – os indícios .................................................................... 32
II) 1) Táranis / Júpiter ............................................................................. 32
II) 1) a) Os Celtas do Sudeste da Gália e o santuário de Chastellard
de Lardiers…………………………………………………………………… 32
II) 1) b) O topónimo “Santa Bárbara”………………………………………… 35
II) 1) c) O menir………………………………………………………………………… 36
II) 1) d) Sob a dominação romana…………………............................... 38
II) 1) e) Impacto de um raio............................................................ 40
II) 2) As influências orientais………………………….................................... 41
II) 3) O depósito de lucernas votivas…………………………………………………. 44
II) 3) a) A “religião votiva”…………………………….............................. 44
II) 3) b) A iconografia das lucernas votivas…………………………........ 47
II) 3) c) A origem votiva das lucernas…………................................. 51
7
II) 4) Mitra……………………………………………………………………………………….. 54
II) 5) Divindades alexandrinas………………………………………………………….. 57
II) 5) a) As lucernas e os santuários dos deuses egípcios…………….. 57
II) 5) b) Os contactos greco-egípcios………………………………………….. 59
II) 5) c) O caso dos Vocontii………………………………………………………. 60
II) 5) c) i) A transmissão da luz votiva………………………………… 60
II) 5) c) ii) Os espelhos votivos…………………………….…….......... 64
II) 5) d) A toponímia de “Santa Bárbara”…………………………………… 68
II) 5) e) Os tanques……………………………………………………………………. 75
II) 5) f) O significado da luz votiva em contexto egípcio…………….. 81
Capítulo III: Os santuários e os cultos dos deuses alexandrinos ..................... 88
III) 1) Instalação dos cultos nilóticos na Hispânia ................................ 88
III) 2) Serápis. ......................................................................................... 89
III) 3) Os cultos de mistérios .................................................................. 92
III) 4) Os santuários romanos e egípcios – aspectos arquitectónicos e
decorativos .................................................................................... 94
III) 4) a) Os santuários romanos…………………………………………………. 94
III) 4) a) i) O templo romano segundo Vitrúvio…………........... 94
III) 4) a) ii) Vestígios de templos romanos na antiga
Lusitânia………………………………………………………….. 98
III) 4) a) iii) Os santuários greco-romanos – complexo
religioso………………………………………………………….100
III) 4) a) iv) O santuário de Chastellard de Lardiers…………… 101
III) 4) b) Os santuários egípcios……………………………………………..... 104
8
III) 4) b) i) Aspectos arquitectónicos e decorativos………………. 104
III) 4) b) ii) O Serapeu de Óstia…………………………………………… 108
III) 4) b) iii) O “Serapeu de Cânopo” da Villa de Adriano
(Tivoli)……………………………………………………………. 110
III) 4) b) iv) O Iseu de Baelo Claudia (Bolonia, Cádis)………… 115
III) 4) b) v) O Iseu de Italica (Santiponce, Sevilha), o templo dos
deuses alexandrinos de Emporiae (Ampúrias,
Gerona) e o pé serapeico de Conimbriga
(Condeixa-a-Velha)………………………………………….. 117
III) 5) Vivência religiosa num santuário egípcio. ................................. 121
III) 6) As oferendas votivas de Santa Bárbara de Padrões .................. 127
Conclusão ........................................................................................................ 132
Bibliografia .................................................................................................... 136
Lista de Figuras .............................................................................................. 148
9
Introdução
Em Santa Bárbara de Padrões, freguesia do concelho de Castro Verde, distrito de
Beja, foram exumadas no topo de uma colina onde se situa uma igreja e um cemitério,
as ruínas de uma basílica paleocristã (séculos IV-VI d. C.), junto a tanques de formigão
de época anterior, bem como um depósito de lucernas romanas, datadas entre os séculos
I e III d. C.. Esses vestígios arqueológicos foram descobertos aquando das obras de
ampliação do cemitério, em 1984 e 1994, mais exactamente, nas proximidades
imediatas das paredes Norte e Sul do recinto1.
Os arqueólogos M. G. P. Maia e M. Maia2 acreditam que a dita “vala das
lucernas” representa um depósito votivo secundário de um santuário localizado nas suas
proximidades, mais concretamente, no local onde hoje se situa uma igreja de traça
gótica. A presença deste edifício de culto cristão, bem como dos achados de parte de
uma basílica paleocristã (detrás da igreja) e de um menir encontrado deitado no adro,
testemunham a permanência do culto neste determinado local.
Várias centenas ou mesmo milhares de lucernas foram portanto arrecadadas no
depósito de Santa Bárbara, depois de retiradas do local de culto onde inicialmente foram
colocadas, em acto votivo, e dedicadas a uma divindade ali venerada, cujo nome ainda
se desconhece3.
Apesar de não se ter encontrado nenhuma peça epigrafada que nos pudesse
revelar a identidade da divindade aí consagrada4, muitos outros indícios podem no
entanto elucidar-nos sobre esta problemática: etnia da civitas; topografia do terreno;
toponímia do lugar; área geográfica de implantação e influências exteriores; vestígios
arqueológicos dos tanques e do depósito votivo com as suas lucernas, não esquecendo o
menir; e paralelos com outros santuários apresentando características semelhantes.
Após a devida localização do santuário numa determinada civitas, com a
consequente análise da sua etnia e dos paralelos que pode apresentar com outros povos
do Império Romano, várias propostas de divindades serão apresentadas ao longo deste
1 Maia, 2006, p. 41 e Maia e Maia, 1997, pp. 11-12, 13, 15.
2 Maia e Maia, 1997, p. 19.
3 Maia e Maia, 1997, p. 11 do prefácio de T. J. Gamito.
4 Não se encontrou nenhuma epígrafe romana em Santa Bárbara de Padrões, num raio de mais de 10 km
(Maia, 2006, p. 41), e a consulta à epigrafia do concelho de Ferreira do Alentejo, nomeadamente às
inscrições de Peroguarda, e à epigrafia latina do concelho de Castro Verde, muito pobre e proveniente de
áreas afastadas de Santa Bárbara, não deu resultado (Maia e Maia, 1997, p. 22).
10
estudo, desde Táranis/Júpiter a Mitra. Do cruzamento dos indícios, e sobretudo pelo
conteúdo invulgar da favissa de Santa Bárbara (raros são os santuários com depósitos
contendo uma grande quantidade de lucernas votivas) e da localização geográfica de
depósitos semelhantes, bem como da informação valiosa da toponímia do sítio, resultará
uma hipótese final que tende para a existência no nosso santuário de um culto egípcio.
De facto, tudo indica que o local de culto de Santa Bárbara de Padrões foi consagrado
aos grandes deuses alexandrinos Ísis e Serápis.
Tendo-se conhecimento da natureza do local de culto, o estudo irá em seguida
centrar-se nos aspectos arquitectónicos e decorativos que apresentaria o santuário de
Santa Bárbara de Padrões, bem como nos seus aspectos religiosos relativamente à
vivência dos sacerdotes e aos cultos aí praticados, tentando ao longo do caminho
desvendar o significado da luz votiva em contexto egípcio.
11
I) A antiga cidade romana de Arandis/Arannis
I) 1) A localização do santuário
Segundo o arqueólogo M. Maia5, a aldeia de Santa Bárbara de Padrões pode ser
identificada com a antiga cidade romana de Arandis ou Arannis6 no Sul da Lusitânia,
uma afirmação demonstrada pelo estudo da famosa via XXI do Itinerário de Antonino7.
Como uma das provas da sua hipótese, temos um bom troço de calçada romana ainda
visível desta via8 na actual povoação de Santa Catarina da Fonte do Bispo
9 (freguesia do
concelho de Tavira, Faro), na margem da ribeira dos Montes e Lagares, troço que
seguiria depois para Norte por Porto Carvalhoso. Este pedaço de estrada seria aquele
que ligaria a cidade de Arannis a Ossonoba (via XXI).
De facto, numa observação in situ (ver figs. 1 e 2), podemos encontrar vestígios
de summum dorsum10
no dito lugar11
(antes de chegarmos aos vestígios da via romana,
5 Maia, 2006, pp. 39-45.
6 Esta cidade romana é referida no Itinerário de Antonino (426, 3: «Arannis»), pelo anónimo de Ravena
(306, 13: «Aranis»), por Ptolemeu (II, 5, 5: «Arandis») e por Plínio-o-Velho (IV, 118: «Aranditani»).
Para a explicação das diferentes grafias, J. P. Bernardes propõe a hipótese de uma evolução do fonema,
com a queda do “d”, do Alto para o Baixo-Império (Bernardes, 2006, p. 155). É preciso notar que,
enquanto J. P. Bernardes escreve o nome da cidade sem “s”, resultando Aranni ou Arani, A. Guerra
escreve pelo contrário com “s”, resultando Arannis ou Aranis (ver Guerra, 1995, p. 105).
7 Via XXI [Ba]Esuri[s]-Pax Iulia do Itinerário de Antonino (Carneiro, 2009, pp. 83-85), que ligava
Ossonoba a Pax Iulia, passando por Arandis/Arannis, situado, segundo M. Maia, no local de S. Bárbara
de Padrões.
8 De [Ba]Esuri[s] a Pax Iulia por Arannis e Salatia não existe somente uma via mas antes um conjunto de
pelo menos quatro estradas ou troços de estrada que forma este Iter (Maia, 2006, p. 42).
9 Maia, 2006, pp. 42-44.
10 Em termos dos elementos constitutivos de uma calçada romana, temos a descrição de S. Rodrigues:
«Após a delimitação do traçado da estrada no terreno, abria-se uma trincheira ou fossa (sulcus) da largura
que a calçada teria, procedendo-se à extracção das terras até à rocha ou solo firme, onde assentaria o
lastro ou cama do empedrado. Esse lastro constituía-se por uma camada base de terra argilosa e pedras de
vários tamanhos bem compactadas (statumen). A fim de regularizar a superfície, antes de se estabelecer o
pavimento, adicionava-se uma camada composta por saibro, pedras de pequenas e médias dimensões e
cal, tudo bem compactado. Este nucleus ou camada intermédia designava-se por rudus ou ruderatio. A
um nível mais elevado dispunham-se as margines que flanqueavam a calçada, limitando-a e servindo de
contrafortes que impediam o seu esboroamento. Finalmente, pavimentava-se o nível superior (summum dorsum ou summa crusta) que era um pouco abaulado ao centro, permitindo o escoamento das águas das
chuvas para as bermas, sendo o tamanho das lajes do pavimento variado» (Rodrigues, 2004, p. 19). M.
Maia acrescenta que «as calçadas tinham que ser tapadas com terra a fim de permitirem o trânsito. (…)
Lembremo-nos de que as calçadas eram apenas cobertas com terra que, após um período de chuva
intensa, por muito calcada que fosse, teria tendência para ser arrastada pela água deixando as lajes à
vista» (Maia, 2006, p. 40).
11 Relativamente ao caminho para se aceder ao dito troço, referem-se aqui os seguintes passos a serem
seguidos:
12
podemos, desde logo, observar algumas lajes da calçada tombadas no fundo da ribeira).
O troço prolonga-se por vários metros até chegar a uma pequena ponte em cimento que
atravessa a ribeira (cuja base foi feita com lajes romanas reutilizadas para este efeito).
Após passar a ponte, à direita da ribeira, só algumas lajes aparecem muito esparsas para,
em seguida, reaparecer um pequeno troço desta via antes de desaparecer numa densa
vegetação (em que se pode, arrancando o musgo e as ervas, observar a continuação
deste troço até ao talude de uma estrada municipal que lhe passa por cima).
A. Carneiro, segundo a sua análise das vias romanas do Alentejo, baseada numa
releitura da obra de M. Saa sobre o Itinerário de Antonino Pio, refere-se também à
possibilidade de uma identificação de Santa Bárbara de Padrões com Arannis12
, nas vias
XIII e XXI13
.
Para a via XIII – Salacia-Ossonoba (Alcácer do Sal-Faro)14
, o trajecto passaria
talvez por Peroguarda (outro sítio importante para o nosso estudo sobre o santuário de
Santa Bárbara de Padrões) antes de chegar aos arredores da cidade de Pax Iulia. Em
seguida, a partir de Beja, tendo por destino final Ossonoba, a via tomava rumo para Sul
e, antes de entrar na serra algarvia, passava por Santa Bárbara de Padrões (Arannis).
Em relação à via XXI – [Ba]Esuri[s]-Pax Iulia (Castro Marim-Beja), A.
Carneiro nota que Arannis tem oscilado nesta via entre Garvão e Santa Bárbara de
Padrões e que Serapia (cidade incluída na via XXI, logo após Arandis15
), a ter existido,
pode corresponder a Santa Margarida do Sado ou a Peroguarda.
quando se chega a S. Catarina da Fonte do Bispo, vindo de Tavira ou Olhão, toma-se a direcção
de S. Brás de Alportel na primeira rotunda que se apresenta;
em seguida, toma-se a direcção Porto Carvalhoso (a direita) para logo voltar na primeira a
esquerda;
atravessa-se depois uma pequena ponte (a segunda, do lado esquerdo) que vai dar a uma oficina
para carros;
a cerca de 200 metros desta oficina, na margem esquerda da ribeira, aparece o nosso troço
romano (percurso a pé).
12 O autor cita para esta identificação o artigo de J. P. Bernardes (Bernardes, 2006).
13 Carneiro, 2009, pp. 77-85.
14 Possivelmente, segundo este autor, uma mera derivação, ou ramal da via XII (Olisipo-Emerita), a partir
de Salacia (Carneiro, 2009, p. 77).
15 Itinerário da via XXI de Antonino segundo a enumeração de A. Carneiro (2009, p. 83): Esuri, Balsa,
Ossonoba, Arannis, Serapia, Eboram, Serpa, Fines, Arucci, Pax Iulia.
13
Finalmente, J. P. Bernardes demonstra e confirma igualmente a identificação de
Santa Bárbara de Padrões com Arannis16
, salientando a importância que tinha ainda a
via XXI na Idade Média17
, o posicionamento geográfico de Santa Bárbara de Padrões18
e os vestígios arqueológicos desta última cidade, como argumentos fortes para aqui se
situar o locus de Arandis19
.
I) 2) Os Aranditani
I) 2) a) Origem e evolução
Para o conhecimento da origem dos Aranditani, começamos pelas informações
de certos autores da Antiguidade como Plínio-o-Velho, Ptolemeu ou Estrabão,
comunicadas e interpretadas por A. Guerra na sua obra Plínio-o-Velho e a Lusitânia20
.
A cidade de Arandis faria parte, segundo Plínio, dos ópidos estipendiários21
da
Lusitânia, e os seus habitantes, para Ptolemeu, incluíam-se entre os Célticos22
.
A afirmação de Ptolemeu é deveras interessante, sobretudo quando A. Tovar
reconhece no topónimo o sufixo -nt- característico das línguas indo-europeias e o
aproxima linguisticamente dos nomes que ocorrem nas legendas monetárias celtibéricas
A-r-a-ti-s e A-r-a-ti-co-s. Esta observação de A. Tovar é relacionada por A. Guerra com
um passo pliniano que afirma que os Célticos do convento Hispalense da Bética são
16
Bernardes, 2006, pp. 157-161.
17 Os percursos medievais concordam com o traçado viário que se faria pelas imediações de
Almodôvar/Santa Bárbara de Padrões, e esta antiga via romana de ligação Norte-Sul constituiria ainda na
Idade Média uma das principais ligações ao Algarve para pessoas e mercadorias (Bernardes, 2006, pp.
157-158).
18 Santa Bárbara de Padrões distancia-se de Faro por 60 milhas, e de Beja por 35 milhas (Bernardes, 2006,
p. 159).
19 Segundo uma hipótese do autor, o erro do Itinerário de Antonino, relativamente à via XXI, não está na
distância (a problemática das 35 milhas entre Arandis e Salacia) mas na localidade que se segue a
Arannis, isto é, em vez de Salacia, teríamos na realidade Pax Iulia (Bernardes, 2006, pp. 158-159).
20 Guerra, 1995, pp. 29, 34-35, 60, 105-106.
21 Estipendiário: imposto a que estavam sujeitas as províncias do senado ou do povo, enquanto que, para
as do imperador, o imposto era o tributo.
22 Ptolemeu enumera (na sua Geografia) as cidades da Lusitânia que pertenciam aos Célticos:
Lancobriga, Caepiana, Braetolaeum, Mirobriga, Arcobriga, Meribriga, Katraleukos, Arandis (Guerra,
1995, p. 60).
14
descendentes dos Celtiberos e que, pela religião, pela língua e pelos nomes das cidades
– que na Bética se distinguem pelos cognomes – vieram da Lusitânia.
A presença dos Celtas no Alentejo é confirmada também por Estrabão, referindo
que os Célticos, vizinhos dos Lusitanos e dos Turdetanos, dominavam boa parte da
região entre o Tejo e o Guadiana23
.
Ou seja, além da presença dos Conii e dos Turduli no Alentejo, tínhamos
portanto os Celtici24
, de que fariam parte os Aranditani, chegando nesta região nos
finais do século VI ou nos inícios do V a. C., com uma segunda vaga céltica, talvez no
século III a. C. Os Celtas viviam em aglomerados urbanos que, segundo Estrabão, se
reuniam em confederações25
.
Depois, no período romano, e segundo os estudos de J. Alarcão26
, vamos assistir
à ocupação do Alentejo pelos Romanos, provavelmente entre 202 a. C. e 139 a. C., a
que se seguiu uma reorganização administrativa do território no tempo de Augusto. Esta
reorganização incluiu a criação da província da Lusitânia (com a consequente definição
e reajustamento de fronteiras), a fundação de novos centros urbanos (provavelmente
com alguma imigração de cidadãos para permitir a romanização dos indígenas), a
urbanização de oppida preexistentes e, por fim, a delimitação dos territoria das
diferentes civitates (cada uma com sua capital).
É preciso relembrar que os Romanos criaram civitates mais ou menos
coincidentes com os limites das unidades étnicas anteriores e que uma civitas podia ser
criado ex nihilo, quando não havia, numa determinada área, unidade étnica ou política
(relevante) aquando da conquista.
Relativamente ao Sul da Lusitânia (actuais Alentejo e Algarve), a existência de
cidades de longa tradição, e certamente com dimensões consideráveis, tornava inútil a
criação de novos centros (o caso de Pax Iulia é ainda discutível); os existentes foram
renovados, por César ou por Augusto, embora mais provavelmente por este último.
Após o principado de Augusto, também houve novas criações de civitates e
23
Segundo Estrabão (ver Guerra, 1995, p. 60), os Celtas tinham como principal cidade Konistorgis e Pax
Iulia pertencia-lhes (Ptolomeu diverge aí de Estrabão, integrando Pax Iulia no grupo das cidades
turdetanas).
24 A toponímia confirma a existência deste grupo étnico, como no exemplo de Mirobriga ou de Ebora
(Alarcão, 1988, p. 13).
25 Alarcão, 1988, pp. 13-14, 65, 155.
26 Alarcão, 1988, pp. 14-15, 35-37, 40, 52, 67, 74-75, 165.
15
considerável renovação de algumas cidades (no tempo de Calígula, Cláudio ou Nero),
salientando-se, no entanto, o período dos Flávios. De facto, a atribuição do direito latino
às cidades peninsulares (promoção jurídico-administrativa) por Vespasiano terá tido
como consequência a municipalização27
daquelas que ainda não o tinham (promoção de
muitas das cidades romanas da Lusitânia), com a consequente renovação dos edifícios
públicos (como aconteceu com Conimbriga) ou construção de novos monumentos.
Após um período de muita construção ou reconstrução, desde Augusto até aos
inícios do século II d. C., o ritmo da edificação urbana monumental decaiu para, nos
finais do século III d. C. ou nos inícios do IV, entrarmos numa nova fase na história das
cidades romanas da Lusitânia, a do momento da edificação das muralhas (a partir daí,
ultrapassamos a cronologia do nosso santuário).
Quanto ao grau de romanização do território actualmente português, a área do
Algarve, Alentejo e zona litoral entre Tejo e Vouga apresenta-se como
consideravelmente romanizada em relação ao resto do território, composta por gentes de
outra origem (ao contrário do predomínio de uma população indo-europeia pré-céltica
no interior e a Norte) e tendo sofrido influência, nalguns casos intensa, das colonizações
fenícia, grega e cartaginesa.
Segundo J. P. Bernardes28
, a região em que está inserida Santa Bárbara de
Padrões, isto é, a área dos actuais concelhos de Castro Verde, Ourique e Almodôvar,
tem uma ampla tradição de ocupação pré-romana na Idade do Ferro, onde abundavam
locais de culto e povoados importantes. Na época romana, ao contrário de Santa Bárbara
que assume um lugar central dentro dos santuários da região, as manifestações cultuais
dos outros locais de culto tendem a decair. A razão deste fenómeno explica-se pela
passagem da via Ossonoba – Pax Iulia por Arandis onde, até ao momento, não se
conhecem vestígios da Idade do Ferro. A reorganização político-administrativa romana
desta região, com a consequente definição ou reafirmação de centralidades e eixos de
circulação, fez com que espaços antigos tenham perdido a sua primazia a favor de
núcleos antes secundarizados ou mesmo inexistentes. No caso de Arannis, a passagem
de uma via importante, que ligava o Alentejo ao Algarve, teria catalisado as tendências
27
O estatuto de municipium, com assembleia e duúnviros eleitos. Enquanto que nas cidades sem estatuto
municipal tínhamos os magistri ou assembleias locais, nos municípios existiam os duúnviros e ordines
decurionum (Alarcão, 1988, pp. 56, 168).
28 Bernardes, 2006, pp. 156, 162-163.
16
de culto dos locais próximos, como Montel, posicionado sobre a ribeira de Cobres e
sede de culto durante o período do Bronze Final e período Romano Republicano, ou S.
Pedro das Cabeças, um santuário de altura, onde foram recolhidos dezenas de ex-votos
de barro da II Idade do Ferro. Ou seja, para J. P. Bernardes, Arandis aliou a função de
estação viária a uma dimensão de local de culto de acordo com uma tendência algo
frequente no mundo romano.
Por sua vez, para M. Maia29
, Arannis era uma cidade-santuário, cuja componente
religiosa permitia a própria existência da cidade.
Em termos do estatuto da cidade, J. Alarcão propõe a hipótese de Arandis ter
sido uma capital de civitas (e não apenas um simples vicus ou mansio), cujo território se
estenderia pelos actuais concelhos de Ourique, Castro Verde e Odemira. Mas, devido à
ausência de provas arqueológicas (como a epigrafia30
ou elementos arquitectónicos
significativos) que suportem a existência de uma capital de civitas na área daqueles
concelhos31
, a cidade de Arannis resultaria portanto, segundo o mesmo autor, de uma
experiência urbana e administrativa falhada32
.
Pelo contrário, para J. P. Bernardes33
, Arannis não teria sido um centro de
civitas, considerando mais que plausível que nem todos os territórios étnicos se teriam
convertido em civitates com a reforma administrativa de Augusto
Mesmo que se queira admitir que tal tivesse acontecido no plano ou intenção
política, parece que, na prática, tal como pensava J. Alarcão, não teria chegado a
efectivar-se.
J. P. Bernardes propõe que Arannis nunca teria passado de um aglomerado
secundário, afirmando-se principalmente como mansio, isto é, como estação viária
importante na ligação de Ossonoba a Pax Iulia (tornando-se um lugar de refresco e
dormida para os viajantes), e como lugar de culto, devido ao seu santuário visitado por
29
Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.
30 Em termos da epigrafia que nos podia dar preciosas informações sobre Arandis e o nosso santuário, o
arqueólogo M. Maia não encontrou nenhuma epígrafe romana em Santa Bárbara, num raio de mais de 10
km (Maia, 2006, p. 41).
31 Ausência de padrões de magnificência urbana que se impunha aos centros de poder regionais
(Bernardes, 2006, p. 156).
32 Bernardes, 2006, p. 156.
33 Bernardes, 2006, pp. 156-157, 160-161.
17
muitos peregrinos (como o demonstra a grande quantidade de lucernas votivas
encontradas) 34
. A cidade estaria integrada muito provavelmente nos territoria, ou de
Myrtilis, ou de Pax Iulia, inclinando-se J. P. Bernardes pela primeira civitas, pela
simples razão de Arandis se encontrar muito mais próximo de Mértola do que de Beja.
Esta pertença administrativa de Arannis na época romana explicar-se-ia pela
perda de importância da região em que esta estava inserida (concelhos de Castro Verde,
Ourique e Almodôvar), em favor da emergência de grandes núcleos político-
administrativos de forte vocação centralizadora como eram Mértola e Beja. Para além
disso, face à estratégia romanizadora, não justificaria transformar Arandis numa capital
de civitas com tudo o que isso implicaria em termos de meios e recursos. No máximo,
Arannis poderia desempenhar algumas funções de gestão político-administrativa
delegadas pela cidade-capital de que dependia.
I) 2) b) Os Aranditani e os Vocontii
O caso dos Aranditani, cujo santuário se situa a 51 km em linha recta de outro
local de culto com depósito de lucernas votivas (tudo indica ter sido mais pequeno do
que o de Arannis), no sítio da Horta das Faias em Peroguarda (concelho de Ferreira do
Alentejo)35
, lembra muito os “Voconces”36
da Gália do Sudeste, que possuíam dois
santuários também com uma favissa contendo milhares de lucernas, desta vez entre
outros ex-votos. Encontravam-se respectivamente em Lachau37
(o mais pequeno) na
Drôme, frequentado de La Tène III ao século IV d. C. (com um nível de destruição no
século III d. C.)38
, e em Chastellard de Lardiers39
(o maior e a 1000 m de altitude) nos
34
Essas duas funcionalidades (estação viária e local de culto) encontram-se frequentemente associadas,
como no exemplo de certos aglomerados do Sudoeste da Gália (Bernardes, 2006, pp. 160-161).
35 O local de culto da Horta das Faias possui um depósito votivo de lucernas em tudo semelhante ao
santuário de Arandis, com estratigrafia absolutamente paralela. Só a situação topográfica diverge, estando
o santuário de Peroguarda no leito de inundação de uma ribeira, enquanto que o de Santa Bárbara se situa
no alto de uma colina (Viana e Ribeiro, 1957, pp. 17-20; Ribeiro, 1960, pp. 4-5; Maia e Maia, 1997, p.
21). M. G. P. Maia e M. Maia referem-se também a um outro depósito de lucernas (na altura ainda
inédito) nas imediações de Ferreira do Alentejo, ou seja, muito perto do de Peroguarda (Maia e Maia,
1997, p. 21).
36 Ver Carré, 1978, pp. 119, 122-123, 125-128 e nota 109, p. 133.
37 Ver Leglay, 1971, p. 430; Leglay, 1973, pp. 534-535; Lancel, 1975, p. 535; Boucher, 1977, p. 476;
Boucher, 1980, p. 509.
38 Carré, 1978, p. 122.
18
Hautes-Alpes, datando dos inícios do século I até finais do século IV d. C.40
, separados
pela montanha do Lure e por uma distância de 20 km em linha recta. Como já notaram
M. G. P. Maia e M. Maia41
, temos igualmente uma coincidência temporal entre as
lucernas votivas de Santa Bárbara e as de Lachau42
– desde o século I ao III d. C.43
.
Além desta prática da luz votiva, os Vocontii (palavra de origem celta,
significando “os vinte clãs”) eram igualmente de etnia celta e dominavam um vasto
território na Gália do Sudeste, cobrindo parcialmente os departamentos actuais da
Drôme, do Vaucluse, dos Hautes-Alpes e dos Alpes de Haute-Provence.
A religião jogava na vida deste povo um papel muito importante, sobretudo
marcada pela presença no território desta comunidade dos dois grandes templos acima
referidos. No caso de Lachau, o deus do céu era abundantemente honrado no seu
templo, mas nenhuma inscrição o menciona enquanto tal44
. As armas votivas,
encontradas no depósito, remeteriam por sua vez à noção de defesa do território, mesmo
se esta defesa seria mítica45
. Os outros ex-votos, como os utensílios agrícolas,46
e a
fabricação “no local” das lâmpadas votivas (insistindo portanto no lado técnico),
tornavam bem patente as estruturas de trabalho. No caso do santuário de Chastellard de
Lardiers, um deus solar está aí claramente atestado.
39
Ver Rolland, 1962, pp. 655-656; Rolland, 1964, pp. 545-550; Salviat, 1967, pp. 387-393; Salviat, 1970,
p. 448.
40 Salviat, 1967, p. 389.
41 Maia e Maia, 1997, p. 20.
42 Leglay, 1973, p. 535.
43 De notar no entanto que foi encontrado pedaços de lâmpadas tardias que sugerem uma recrudescência
de actividade a partir do início do século IV d. C., após um período de destruição durante a invasão dos
Alamanos (Lancel, 1975, p. 535).
44Entre as interpretações possíveis, poderíamos ter um Júpiter, um deus da roda, ou um deus tópico que
exerceria localmente a função de soberania. É preciso notar que os habitantes do território “voconce” que
se dirigiam a Júpiter Capitolino tinham ligações pouco marcadas com a tradição céltica, ou seja, este deus
parece ter poucos vínculos com o meio indígena (Carré, 1978, pp. 125-126 e nota 47, p. 130).
45 É preciso notar que em numerosas localidades nos “Voconces”, as divindades locais preenchiam no
primeiro século a função de organização do céu, enquanto que no terceiro, elas são geralmente associadas
à função guerreira, com uma nova importância cultual de Marte (assim como a multiplicação dos
teónimos indígenas ao lado do nome latino). Este facto explica-se pela grande instabilidade do século III,
assinalada por numerosas camadas de incêndio, implorando de novo o deus guerreiro na qualidade de
protector do grupo (Carré, 1978, pp. 125 e 127).
46 Os utensílios em miniatura achados no mesmo lugar poderiam ser ex-votos consagrados a um deus que
protege a agricultura do seu poderio militar, ideia expressa pela diferença de tamanho entre os utensílios
agrícolas e as armas: tamanho natural para estas, miniaturas para aqueles (Carré, 1978, p. 122).
19
A religião nos Vocontii aparece, portanto, segundo R. Carré, como um lugar de
reprodução da sua sociedade (os utensílios e as armas encontrados nos santuários fazem
referência a esta comunidade no seu funcionamento, mesmo se isto é um mito) e tem
como finalidade, entre outras, de soldar a comunidade, de tornar bem patente a vida, o
passado, o futuro do grupo.
De facto, os grandes santuários encontram-se na localidade de antigos lugares de
ocupação, indiciando o apego da comunidade à sua história. Para além disso, os altares
votivos e as estátuas divinas são quase todos em pedra do país, sendo o mármore
utilizado apenas para as estátuas decorativas e não para fins religiosos. Numerosos
objectos votivos são em bronze, material que relembra um período anterior de
desenvolvimento.
Por fim, no quadro comunitário dos “Voconces”, certas formas particulares da
vida religiosa, bem como a importância dos grandes santuários, podem ser vistas como
um fenómeno de resistência a Roma. Mas, ao mesmo tempo, e sobretudo no quadro da
comunidade, a religião aparece como um meio eficaz de fazer participar as massas na
romanização.
Como já vimos, J. P. Bernardes inclui a cidade de Arannis numa região com
forte presença de ocupação na Idade do Ferro, nos concelhos de Castro Verde, Ourique
e Almodôvar, e J. Alarcão afirma que o território dos Aranditani se estenderia pelos
actuais concelhos de Ourique, Castro Verde e Odemira. Baseando-se no caso dos
Vocontii, podemos acrescentar também a hipótese do concelho de Ferreira do Alentejo,
ou parte dele, onde se situa o local de culto da Horta das Faias, estar também incluído
no mesmo território que os Aranditani, que talvez formassem uma grande comunidade
tal como os “Voconces”. Muito provavelmente, os dois santuários de Peroguarda e
Arannis estariam ligados por uma mesma via romana, que poderia ser a chamada via
XIII (Salacia-Ossonoba), ou a via XXI ([Ba]Esuri[s]-Pax Iulia). A sede administrativa
seria, como já notou J. P. Bernardes, o grande núcleo urbano de Pax Iulia ou de
Myrtilis. Neste caso, tendemos mais para Pax Iulia, devido à sua posição geográfica
entre essas duas estações (estando muito perto de Peroguarda) e, sobretudo, das
divindades que apresenta esta capital de conventus, quando comparadas com as de
Myrtilis, como veremos mais adiante; lembremos ainda a afirmação de Estrabão, em
20
que a Pax Iulia pertenceria aos Celtici47
.
Claro que a prática da oferta de lucernas votivas não era exclusiva deste grupo
étnico no Sul de Portugal, havendo na Horta do Pinto, em Faro48
, outro depósito com as
mesmas características. Uma situação em tudo semelhante ao Sudeste da Gália onde,
além dos “Voconces”, nos seus santuários de Lachau e Lardiers, temos Alba Helvorum,
capital dos “Helviens”, pequeno povo de origem lígure, onde foi encontrado num
santuário, como um dos seus depósitos votivos, uma cova com um lote importante de
lucernas (depósito este que se formou durante o terceiro quarto do século I. d. C.)49
.
I) 3) Os vestígios arqueológicos
I) 3) a) A cidade
Em 1897, durante uma excursão pelo Baixo Alentejo, J. L. Vasconcelos visitou a
aldeia de Santa Bárbara de Padrões (ver figs. 3-5), comunicando-nos suas notas na
famosa revista do Arqueólogo Português de 193350
.
Pela povoação, o arqueólogo observou, em grande abundância, grandes pedaços
de opus Signinum, na rua e dentro de casas, bem como um grande número de
fragmentos de tijolo, de tégula (tegulae) e de vasilhame, espalhados nos campos que
avizinham a igreja actual de Santa Bárbara, como em cima e à volta dela (salientando os
tijolos grossos, avulsos, encontrados por toda a parte).
Além de sepulturas romanas feitas de tijolo (num quintal), ele observou no sítio
dito do “Comarão” (a Sudoeste da povoação) um lanço de muralha romana construída
em opus incertum (com cerca de 2,91 metros de largura, 1,06 metros de altura e
estendendo-se por 50 metros). Ao pé dela descobriu-se um cano de chumbo (fistula) de
uns 9 metros de comprimento e um palmo de diâmetro.
Perto da igreja encontrou também parte do alicerce de outro muro que, segundo
ele, seria a continuação da muralha do “Comarão” (igual a ele, de pedra rebocada),
fazendo com que a povoação romana fosse cercada por esta muralha que ia do alto para
47
Ao contrário de Ptolemeu que afirma ser turdetana (Guerra, 1995, p. 60).
48 Maia e Maia, 1997, p. 21.
49 Ayala, 1990, pp. 153, 157, 161-162.
50 Vasconcellos, 1933, pp. 231-232.
21
a zona baixa.
Na base do monte em que assenta a igreja de Santa Bárbara, do lado da
povoação actual, observou ainda alicerces de paredes duras, muitos cacos, e uma coluna
antiga que lhe parece romana (tem pregada na base, diz o autor, uma cruz de ferro).
Na povoação, J. L. Vasconcelos não encontrou nenhuma moeda romana (apesar
de ter ouvido relatos que afirmavam a sua existência), nem observou nenhum peso de
barro (que, diz ele, são tão frequentes nas nossas estações romanas), nem inscrições.
Por fim, da sua “carteira”, acrescenta que na parede do adro havia uma base de
coluna romana, de mármore, igual à da cruz, e que ao pé da igreja se via a parte superior
e circular de um poço de opus Signinum, de mais de 1 metro de diâmetro51
.
Actualmente, certos vestígios romanos referidos por J. L. Vasconcelos podem
ser ainda observados na povoação de Santa Bárbara de Padrões, mas outros
desapareceram por completo.
Relativamente aos «grandes pedaços de opus Signinum», achados «em tal
abundância, que o povo já lhes chama “betume”»52
, além dos encontrados nos tanques,
M. Maia confirma esta forte presença nos muros das hortas da aldeia, reaproveitados
como material de construção53
.
Por sua vez, em termos dos fragmentos em barro, J. P. Bernardes54
afirma que,
pelas vertentes da colina onde está assente a igreja gótica, sobretudo de nascente para
poente, podemos encontrar numerosos fragmentos de cerâmica de construção, muitos
dos quais integrados nos muros divisórios de propriedades e de quintais da povoação.
De facto, numa observação in situ (ver figs. 6-9), podemos confirmar esta
observação de J. P. Bernardes. Para além disso, na zona que fica a Noroeste da igreja
(do topo da colina até à estrada do lado Norte), temos também uma área denominada de
“Telheiro”, apresentando várias dezenas de cacos de cerâmica (infelizmente, uma
grande parte desta zona já foi completamente remexida e recoberta por terra devido às
51 J. L. Vasconcelos precisa no entanto a sua dúvida sobre esta sua última nota, tendo dúvidas de qual
igreja se trata, a de Santa Bárbara ou outra (Vasconcellos, 1933, p. 232).
52 Vasconcellos, 1933, p. 231.
53 Maia, 2006, p. 41.
54 Bernardes, 2006, p. 160.
22
obras de uma rotunda). Segundo M. Maia55
, esses fragmentos grossos de cerâmica
representam pedaços de telhas romanas, sendo também nesta zona (do “Telheiro”) a
provável localização de fornos de produção de telhas cerâmica para a cidade de Arandis.
Para a «base de coluna, de mármore, romana, igual à da cruz»56
na parede do
adro, tanto M. Maia57
como J. P. Bernardes58
confirmam a existência desta peça
romana. Numa observação in situ (ver fig. 10), podemos de facto ver esta peça
marmórea assente sobre o muro do adro, face ao portal de entrada da igreja, e servindo
actualmente de base a um cruzeiro (a cruz actual que fica por cima não é composta da
mesma pedra). Mede 64,5 cm de largura e 93 cm de comprimento (estando quebrada, ou
mais precisamente cortada para reutilização, o que não permite conhecer a verdadeira
altura da peça), feita com mármore dito “fétido” de cor acinzentada clara e veios
cinzentos, da zona de S. Trigaches ou S. Brissos, e com uma molduração ainda existente
na parte superior. Tanto pode ser considerada como uma base de um altar, ou a base de
um monumento honorífico, como tratar-se na realidade de um elemento arquitectónico,
mais precisamente, de uma base de coluna de um imponente edifício.
Além desta peça marmórea, J. P. Bernardes acrescenta ainda que «o empedrado
do adro da igreja é constituído por muitas pedras reaproveitadas algumas das quais,
apresentando acentuado desgaste, desempenharam diversas funções em vãos de
edifícios»59
(ver figs. 11-14) e que o grande monólito do adro (ver figs. 15-18), que M.
G. P. Maia e M. Maia interpretaram como sendo um menir60
, podia representar na
realidade um «elemento de um entablamento ou lintel de qualquer grande edifício, até
pelo entalhe que apresenta num dos lados à maneira de encaixe ou de superfície de
apoio sobre outro elemento»61
(tendemos nós para a primeira hipótese, o do menir). Por
seu lado, M. Maia confirma a inexistência de qualquer espécie de vestígios romanos no
55
Informações dadas por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.
56 Vasconcellos, 1933, pp. 231-232.
57As informações sobre a localização, morfologia e identificação desta peça marmórea foram-me
igualmente comunicadas por M. Maia no Museu da Lucerna em Castro Verde.
58 Bernardes, 2006, p. 161.
59 Bernardes, 2006, p. 160.
60 Maia e Maia, 1997, p. 19.
61 Bernardes, 2006, p. 161.
23
interior da igreja62
. No exterior, estando as paredes do templo cristão inteiramente
rebocadas a cal branco, nenhuma análise pode ser feita em relação aos tipos de pedras
utilizadas para a construção do edifício religioso.
Em relação «a parte superior e circular de um poço de opus Signinum»63
ao pé
da igreja, J. P. Bernardes64
pensa que se trata talvez de um poço antiquíssimo, situado
quase na base da vertente (Oeste) da colina da igreja, infelizmente desvirtuado
recentemente por restauros que lhe retiraram o bocal de pedra «com sulcos profundos
provocados pelo constante passar das cordas dos baldes mergulhados no seu interior» e
lhe refizeram a sua plataforma que apresentava anteriormente vestígios de opus
Signinum «que rodeavam pias escavadas na rocha para dar de beber aos animais» (ver
fig. 19).
Ao observar in situ (ver figs. 20 e 21) as partes do bocal deixadas no chão (só
dois pedaços, um pequeno e outro maior, restaram desta estrutura), e virando a pedra (a
mais pequena) do outro lado (de maneira a poder ver a parte de baixo), podemos
observar a zona em que o bocal foi removido do poço, apresentando uma superfície
ainda não desgastada pelo tempo. As características da pedra que se apresentam são em
tudo semelhantes às da base do cruzeiro, isto é, do mármore dito “fétido”. Ou seja, pelos
vestígios (hoje desaparecidos) de opus Signinum e pelo antigo bocal em mármore da
região de S. Brissos ou S. Trigaches, tudo indica que o poço pode ter uma origem
efectivamente romana.
Finalmente, «as sepulturas feitas de tijolo, ao parecer, romanas» que J. L.
Vasconcelos65
observou num quintal parecem ter desaparecido. O mesmo destino
sofreram os alicerces de paredes duras, bem como a coluna romana (aquela que tem
pregada na base uma cruz de ferro), que estavam situados na base do monte da igreja,
para o lado da povoação actual. Em termos do troço de grossa muralha do “Comarão”,
que M. Maia afirma estar hoje totalmente destruído66
, J. P. Bernardes67
pensa que a dita
62
Afirmação dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.
63 Vasconcellos, 1933, pp. 231-232.
64 Bernardes, 2006, p. 161.
65 Vasconcellos, 1933, pp. 231-232.
66 Maia, 2006, p. 41.
67 Bernardes, 2006, p. 159.
24
muralha corresponderia na realidade à parede de contenção de uma antiga barragem
(referida igualmente por M. G. P. Maia e M. Maia68
), mencionada na tradição local, e
que actualmente estará oculta sob a estrada municipal que conduz às minas de Neves-
Corvo.
Dos vestígios arqueológicos encontrados em Santa Bárbara de Padrões, deduziu-
se que no alto da colina, sob a actual igreja gótica, se encontraria o santuário69
, mais
precisamente, o templo principal da divindade. Este último estaria orientado na direcção
Este-Oeste (como é comum nos templos romanos)70
. No entanto, nos casos de espaços
sagrados comportando depósitos secundários de lucernas, M. G. P. Maia e M. Maia71
colocam a hipótese da existência nesses sítios de um simples temenos, provavelmente
desprovido de cobertura (santuário ao ar livre), devido à coincidência de não se terem
identificado (segundo as informações obtidas na altura) edifícios de culto perto de
qualquer dos depósitos conhecidos: os depósitos votivos da Horta das Faias e Horta do
Pinto, respectivamente em Peroguarda e Faro; os de Chastellard de Lardiers e Lachau,
no Sudeste da Gália; e os de Israel e do monte Ida em Creta72
. As componentes
estruturais do santuário que sobreviveram às vicissitudes do tempo são representadas
principalmente pela favissa, localizada a Sul do cemitério, e pelos três tanques, situados
desta vez a Norte do cemitério, ou seja, na vertente oposta à do depósito votivo de
lucernas e distando dele cerca de 100 metros73
. Encostado aos tanques, existia
igualmente um grande e longo edifício74
, datado dos séculos IV a VI d. C., interpretado
68
Maia e Maia, 1997, p. 13.
69 Maia e Maia, 1997, pp. 19 e 22 e Bernardes, 2006, p. 160.
70 Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde (ver
igualmente o Tratado de Arquitectura de Vitrúvio em Maciel, 2009, pp. 152-153).
71 Maia e Maia, 1997, p. 22.
72 Maia e Maia, 1997, pp. 20-21.
73 Maia e Maia, 1997, p. 22.
74 Edifício «com vasta abside semi-circular e pequenos anexos quadrangulares» (Maia e Maia, 1997, p.
22). Numa observação in situ, podemos observar que a escavação de M. G. P. Maia e M. Maia pôs a
descoberto uma parte da nave da dita basílica (a entrada far-se-ia para Norte), bem como o topo deste
edifício composto por uma abside oblonga (voltada para Sul), ladeada por 4 compartimentos que,
segundo uma hipótese de M. Maia, seriam talvez utilizados como martyrium, mas não foi encontrado em
nenhum deles restos de ossos. O edifício, na parte que foi escavada, foi construído em aparelho muito
irregular, diferenciando-se do opus incertum dos tanques.
25
como sendo muito provavelmente uma basílica paleocristã75
, orientada no sentido
Norte-Sul.
Relativamente à povoação romana propriamente dita, tanto J. P. Bernardes76
como M. Maia77
acreditam que ela se desenvolveria pelas vertentes da dita colina. Mas,
enquanto o primeiro autor afirma um desenvolvimento para poente até à linha de água a
partir de onde começam as casas da povoação de Santa Bárbara (sentido Este-Oeste,
ficando o santuário no topo da colina)78
, o segundo acredita que a povoação se
estenderia mais no sentido Nordeste-Sudoeste, ficando o santuário mais ou menos no
centro do aglomerado. Transposta a linha de água (para poente) e continuando com a
interpretação de J. P. Bernardes, situar-se-ia a necrópole (baseando-se o autor nas
observações de J. L. Vasconcelos sobre sepulturas romanas feitas de tijolo num quintal)
e, a Sudoeste da povoação, ficaria uma grande barragem construída em alvenaria (opus
incertum), permitindo «o armazenamento de grandes quantidades de água necessária à
irrigação dos campos, ao abastecimento das populações e termas de que não se
conhecem vestígios»79
.
I) 3) b) O depósito votivo e os tanques
Baseando-nos no exemplo do santuário de Lardiers, em que a favissa das
lucernas se encontrava fora do recinto sagrado, mas junto a uma entrada para o temenos,
do lado Sul, e encostada a um muro pré-romano que o separava e o delimitava da zona
de passagem para a via sacra80
, podemos colocar a hipótese do nosso depósito votivo,
igualmente situado do lado Sul do santuário (na zona meridional do cemitério de Santa
Bárbara), se encontrar também fora do temenos e eventualmente junto a uma entrada.
75
Maia e Maia, 1997, p. 22.
76 Bernardes, 2006, p. 161.
77 Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.
78 A área arqueológica estende-se sobretudo na direcção nascente-poente pelas vertentes da colina, numa
extensão de 6 a 7 hectares (Bernardes, 2006, p. 160).
79 Bernardes, 2006, p. 161.
80 Ver capítulo III) 4) a) iv).
26
Segundo a descrição de M. G. P. Maia e M. Maia81
, a favissa apresenta-se como
«um recinto, em parte natural, em parte construído, com 15 m de comprimento e cerca
de 2 m de largura, e com o fundo em forma de V muito irregular. O seu eixo maior
orienta-se no sentido Norte-Sul, aproximadamente» (ver figs 22-24).
A cobertura romana desta “vala das lucernas” era composta simplesmente por
pedras pequenas e fragmentos de cerâmica grosseira, com cal, tornando-se esta
superfície muito mais densa quando se distanciava da parede Este da favissa82
.
O limite Oeste deste recinto é constituído por uma rocha natural que forma uma
falha, mais ou menos abrupta, no xisto friável da região, resultando num acentuado e
extenso declive. Por sua vez, os limites Este, Norte e Sul são compostos por muros «de
aparelho irregular e de alvenaria grosseira, onde foram utilizadas pedras não trabalhadas
e de várias dimensões e formatos, juntamente com telhas e tijolos, tudo aglutinado com
barro»83
. De notar que a parede do limite Este (medindo cerca de 60 cm de largura)
apresentou pequenos canais na base, interpretados como orifícios de escoamento de
águas pluviais.
Esta estrutura estreita, em corredor, foi fundada em meados do século I d. C.,
tendo havido no século III um acrescento de paredes no seu topo Sul, constituindo outro
recinto84
, com 15-20 cm de profundidade e estratigrafia própria.
Por fim, o depósito em questão apresenta «a variedade habitual das lucernas85
desta época: com ou sem volutas no bico, com ou sem asa ou ansa, com ou sem aletas
laterais, com decoração predominantemente figurativa, por vezes com motivos vegetais,
81
Maia e Maia, 1997, pp. 16-19.
82 A estratigrafia da 3ª camada ao longo da parede Este do recinto, não excedendo uma distância, no
sentido lateral para Oeste, de 80-100 cm, era «constituída por elementos líticos de pequenas dimensões,
bem como por fragmentos de ânforas, dolia, tegulae e lateres. Estes elementos não formavam uma
camada compacta, mas estavam suficientemente próximos para constituírem como que uma ténue
cobertura. Nódulos de cal dispersos confirmam esta impressão» (Maia e Maia, 1997, p. 16). A 3ª camada
que se prolongava mais para Oeste e a 1, 30 m da parede Este, era também semelhante à observada
anteriormente, mas era muito mais densa, tomando «o aspecto de uma calçada compacta, formada por
pequenas pedras e fragmentos rolados de lateres, ânforas e cerâmica comum» (Maia e Maia, 1997, p. 19).
83 Maia e Maia, 1997, p. 16.
84 Neste acrescento rectangular para Sul da “vala das lucernas”, a parede Este do anterior recinto foi
prolongada por mais 2,80 m e a parede Sul, embora não tivesse sido demolida, deixou de ser utilizada e
foi substituída por outra, apenas com 40 cm de comprimento. Devido à cota muito mais elevada da rocha
natural, as deposições eram aí muito mais superficiais (Maia e Maia, 1997, p. 19).
85 A palavra latina lucerna corresponde à grega lychnus e significa qualquer utensílio iluminante com
combustível líquido, geralmente o azeite (Maia e Maia, 1997, p. 24).
27
que se localiza no disco ou tampa do reservatório»86
. Os armazenamentos cessaram nos
finais do século III d. C.87
Relativamente agora à estratigrafia-tipo88
, ao longo da parede Este da favissa
(deposições literalmente coladas à parede), é na 4ª camada, constituída por terra escura,
húmida e branda, e datada dos inícios, até finais do século III d. C., que começamos a
encontrar uma grande quantidade de lucernas, de reduzidas dimensões, sendo a 3ª
camada a cobertura do depósito.
Apesar do achado de bastantes exemplares inteiros nesta 4ª camada89
, a
particularidade nas deposições do século III (feitas directamente sobre as do século II)
reside no facto de quase todas as lucernas desta época terem sido, ao que parece,
quebradas propositadamente, talvez fazendo parte de um ritual90
.
Na 5ª camada, pelo contrário, constituída por terra negra, com muitos carvões,
cinzas e esquírolas ósseas91
(envolvendo as lâmpadas), encontramos desta vez lucernas
que foram lá colocadas inteiras e que não foram fragmentadas de antigo92
, depositadas
continuada e ininterruptamente desde meados do século I, até finais do século II d. C.
As deposições de lucernas nesta camada «assumiam uma forma grosso modo
circular e havia casos em que se justapunham e outros em que guardavam entre si uma
distância de 20-30 cm. (…) As lucernas foram colocadas de forma a poupar espaço,
disco contra disco e com cada asa (quando existiam) a acompanhar a curvatura do
reservatório do par. Estes pares formavam círculos com diâmetros de 80 a 100 cm,
aproximadamente e continham um número variável de lucernas, mas que muitas vezes
86
Maia e Maia, 1997, p. 11 do prefácio de T. J. Gamito.
87 Maia e Maia, 1997, p. 22.
88 Maia e Maia, 1997, pp. 16-19.
89 «Geralmente, os exemplares de lucernas encontrados intactos estavam protegidos por semi-círculos
irregulares de pedras ou pedras e fragmentos de tijolos, em dois casos, de quadrante» (Maia e Maia, 1997,
p. 16).
90 Maia e Maia, 1997, p. 80.
91 M. Maia, nas conversas que tivemos sobre este assunto no Museu da Lucerna, pensa que os fragmentos
ósseos de animais podiam pertencer a aves ou ruminantes como carneiros, conotando-se talvez com
rituais de sacrifícios.
92 «Foi esta 5ª camada que forneceu a maior parte dos exemplares inteiros ou apenas fragmentados mas
com todos os pedaços in situ, sinal evidente que lá foram colocados inteiros» (Maia e Maia, 1997, p. 18).
28
ia além das 200»93
. Foram registados 13 conjuntos “circulares” deste tipo.
Também encontramos nesta camada alguns fragmentos de vidro, quase todos de
pequenos unguentários, e algumas moedas da dinastia Antonina.
Por fim, a 6ª camada, muito dura, chegando a atingir os 20 cm de espessura, e
constituída por pedras e fragmentos rolados de cerâmica romana grosseira, tudo
conglomerado com terra negra e húmida, representaria o pavimento (pouco cuidado)
sobre o qual se faziam as deposições.
Podemos acrescentar também que, enquanto as deposições dos séculos I e II
seguiam ao longo da parede Este do recinto, não excedendo uma distância, no sentido
lateral para Oeste de 80-100 cm, as deposições do século III prolongavam-se mais para
poente, aproveitando a rocha que tinha aí uma cota muito mais elevada. Aí a 4ª camada,
além de estar completamente preenchida por fragmentos de pequenas lucernas, continha
também muitos fragmentos de vidro e as únicas agulhas de osso da jazida.
Por sua vez, na área situada a 10 m da parede Sul da zona nova do cemitério, em
vez das deposições se adossarem à parede Este do recinto, estendem-se numa área de
cerca de 8 m2, aproveitando uma profunda cavidade natural. Esta depressão na rocha foi
completamente preenchida, na 5ª camada (sempre caracterizada por terra negra, com
muita cinza e carvões, juntamente com fragmentos ósseos de animais), por uma massa
ininterrupta de lucernas dos finais do século I e de todo o século II d. C., não tendo
havido aqui deposições autónomas. Só raros fragmentos de cerâmica comum e alguns
outros de Sigillata hispânica se intercalavam entre candeias que se sucediam, quer no
sentido lateral, quer no vertical. Blocos de pedra foram colocados na 6ª camada com o
intuito de nivelar um pouco a vala. De notar por fim que na 4ª camada, tegulae em
fragmentos grandes, juntamente com imbrices quase inteiros e grandes pedaços de
ânforas e dolia serviram de base a deposições do século III.
Por fim, no recinto tardio do século III, «a 3ª camada simplesmente não existia e
era substituída por um espaço de deposição de lucernas inteiras, pequenas e
iconograficamente pobres, esparsamente colocadas. Por baixo e nos intervalos, havia
milhares de fragmentos que cremos resultantes de quebras intencionais. Trata-se do
nível do século III que identificamos e descrevemos, na estratigrafia-tipo como 4ª
camada»94
.
93
Maia e Maia, 1997, p. 18.
94 Maia e Maia, 1997, p. 19.
29
Em termos das lucernas propriamente ditas e segundo as análises de M. G. P.
Maia e M. Maia95
, um número significativo apresentou-se com volutas e discus,
possuindo muitas delas uma decoração figurativa em baixos-relevos no tampo, em
peças com características tecnológicas de outras províncias do Império Romano (ver fig.
25).
Umas eram oriundas do Norte de África ou da Península Itálica e outras, de
produção regional, oriundas do Sudoeste peninsular.
Para além dessas candeias de exportação, algumas peças de execução muito
pobre podem indiciar também uma fabricação local, indígena96
(ou serem simplesmente
de manufactura regional), que atestariam um certo carácter popular da peregrinação97
.
Ou seja, segundo os tipos tecnológicos, pastas e marcas de fabrico das candeias
de Santa Bárbara, podemos afirmar que não havia uma olaria perto do santuário
dedicada à fabricação e venda de lucernas ex-votos, como no caso do santuário do
“Luminaire” em Lachau98
. As lucernas regionais ou de outras províncias do Império
Romano eram certamente adquiridas em pequenas lojas ou pelas feiras e mercados99
,
talvez podendo existir uma loja (ou várias) nas proximidades do santuário para a venda
especializada de candeias votivas.
Tanto o santuário de Santa Bárbara, como o de Peroguarda e de Faro, foram
abastecidos em lucernas pela mesma rota comercial100
– os produtos chegavam do
Mediterrâneo por via marítima até Balsa ou Ossonoba, seguindo depois por via
95
Ver Maia e Maia, 1997, pp. 26-30.
96 Ao lado dos tipos de formas constantes, bem definidos e bem acabados, das grandes fábricas, podia-se
encontrar também lâmpadas de aspecto pouco cuidado ou de formas incorrectas, com ornatos grosseiros.
Trata-se de peças de fabrico popular, indígena, imitando os tipos clássicos ou combinando-os de um
modo diferente (Almeida, 1952, nota 111-A p. 80).
97 Na favissa do Chastellard de Lardiers, ao lado das lucernas de qualidade, encontram-se igualmente uma
quantidade de outras, rudimentares e pobres, que, para H. Rolland, atestam o carácter popular da
peregrinação (Rolland, 1962, p. 655).
98 Existiam efectivamente oficinas orientadas para o “mercado” religioso. Tomamos como exemplo
aquelas dedicadas às grinaldas e coroas: as pinturas da Domus Vettiorum mostrando Putti entrançando
coroas e grinaldas tendem a provar que existia em Pompeia uma actividade artesanal orientada para este
tipo de mercado; Ovídio (Fast. VI, 792) evoca também uma oficina destinada ao entrançamento de
grinaldas e coroas perto do santuário dos Lares em Roma (Laforge, 2009, nota 212 p. 125).
99 Almeida, 1952, p. 61.
100 Maia e Maia, 1997, p. 21.
30
terrestre101
.
Para além do depósito votivo, para Norte do cemitério e encostados ao muro
Oeste, de aparelho muito irregular, da dita basílica paleocristã (na zona da abside e parte
da nave), podemos também observar in situ (ver figs. 26-29) a presença de três tanques,
cujas paredes medem aproximadamente de 52,5 a 60 cm de largura, revestidas na sua
parte interior por uma camada de opus Signinum. Todos tinham a parede Este como
limite comum, apresentando-se a parte Oeste dos tanques, particularmente para dois
daqueles mais meridionais, muito danificada e ainda por escavar.
Colados uns aos outros e orientados para Norte, os tanques apresentam
dimensões e até plantas diferentes: o tanque mais a Sul é estreito e oblongo, medindo
cerca de 2,1 m Sul-Norte, para 6 m Este-Oeste até à parede do cemitério que parece ter
interrompido o seu percurso, ou mais provavelmente ter sido construído por cima do seu
limite Oeste (ver figs. 30 e 31); o tanque intermédio mede por sua vez cerca de 4,23 m
Sul-Norte e muito provavelmente condizia na sua largura com o tanque mais
meridional, medindo então cerca de 6 m Este-Oeste (ver fig. 32); por fim, o tanque mais
a Norte, medindo cerca de 5,44 m Sul-Norte, apresenta alicerces de um muro a 4,90 m
para Oeste (ver fig. 33), fazendo com que a sua largura não condiga com os tanques
mais meridionais. Para além disso, podemos observar ainda neste último tanque a
existência de uma entrada no seu lado poente, na extremidade Norte do muro Oeste (ver
fig. 34), e os alicerces de uma grande base em opus incertum no seu ângulo Sudoeste,
medindo cerca de 1,36 m Sul-Norte para 2,30 m Este-Oeste (ver figs. 35 e 36).
Podemos-nos perguntar então se este tanque, ou construção parcialmente destinado a
receber água, não terá sido construído posteriormente aos dois primeiros tanques mais
meridionais que parecem formar um conjunto homogéneo. O tanque intermédio possui
igualmente uma base em opus incertum, mas muito mais pequena (0,68 m Sul-Norte; o
lado Oeste está muito danificado, não permitindo a sua medição exacta no sentido Este-
Oeste), encostada à parede Sul, muito provavelmente pelo meio (ver figs. 37 e 38). Para
além da base, este tanque apresenta também, do lado poente, várias secções de cerâmica
em cunha semi-enterradas no chão (com espessura medindo cerca de 6 cm), podendo
indiciar a presença nas proximidades imediatas de uma estrutura com colunas em opus
testaceum, isto é, colunas de tijolos cozidos cujo núcleo cilíndrico é formado pela união
101
Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.
31
de peças de cerâmica em quarto de círculo102
(ver figs. 39 e 40). Será que a base do
tanque mais a Norte suportava esta dita estrutura? Também alguns fragmentos do que
parecem ser telhas de barro planas (tegulae) podem ser encontrados no sítio103
(ver fig.
41).
Relativamente aos vestígios abundantes de opus Signinum, enquanto os dois
tanques mais a Norte apresentam este revestimento colocado verticalmente à parede
numa camada que podia variar de espessura (de 3,3 até cerca de 10 cm), o tanque mais a
Sul, cujo nível do solo é aí mais alto do que os outros tanques, apresenta uma colocação
diferente: do lado da parede Norte, podemos observar que a camada de formigão grosso
começa do topo do muro para formar depois um declive suave até ao chão, lembrando a
extremidade em bico das bacias superiores de fontes monumentais (ver figs. 42-44).
Para além disso, este último tanque está ligado no seu lado Este por uma conduta (a
abertura deste canal mede aproximativamente de 27 a 28 cm de largura) com sentido
Este-Oeste, acabando por ficar, aquando da construção da basílica paleocristã, debaixo
das lajes da zona do topo da abside, bem como dos dois compartimentos superiores que
ladeiam esta última (ver figs. 45 e 46). Certamente que existiria no conjunto desses
tanques outra conduta para a evacuação da água. Tudo leva a crer, por conseguinte, que
o tanque mais meridional se destinava a receber a água de uma fonte qualquer, como se
fosse um reservatório, para logo em seguida, subindo a água rapidamente ao longo do
declive em opus Signinum, verter a água no tanque principal que lhe estava anexo (o
tanque intermédio), que por sua vez alimentava o tanque mais a Norte.
Para a problemática do abastecimento de água, M. G. P. Maia e M. Maia
propõem a «existência de uma nascente, talvez sulfurosa, perto dali e que, entretanto,
tenha secado»104
.
Mais tarde, sob o domínio da nova religião cristã, esses tanques, escapando à
destruição de que certamente foi vítima o templo pagão, teriam sido provavelmente
reutilizados como baptistério da presente basílica que lhe está anexo.
102
Ver Ginouvès e Martin, 1985, pp. 53, 100 e estampa 25 nº 3.
103 Ver Ginouvès, 1992, estampa 82 nº 1, para as formas comuns de tegulae (telha de barro plana com
rebordo) e imbrex (telha curva).
104 Maia e Maia, 1997, p. 22.
32
II) A(s) divindade(s) venerada(s) no santuário de Santa Bárbara
de Padrões – os indícios
Em termos da(s) divindade(s) venerada(s) no santuário de Santa Bárbara, M. G.
P. Maia e M. Maia105
propõem como hipótese uma qualquer relação com o culto das
águas, culto este bem documentado na Península Ibérica. Esta proposta baseia-se na
existência dos tanques e possível nascente sulfurosa no temenos de Santa Bárbara, bem
como pelo facto do santuário da Horta das Faias, em Peroguarda, se situar a não mais de
35 m de um curso de água.
Também estes autores se referem à importância da luz nos rituais egípcios, quer
de Ísis, quer de Serápis, e no culto de Cíbele, notando ainda que o Sul de Portugal
deixou vestígios de culto a essas divindades orientais, sobressaindo a cidade de Beja
com vestígios de Cíbele, Ísis, Serápis e Mitra106
.
Igualmente importante para esta problemática, numa primeira abordagem, é a
pertença dos Aranditani ao grupo étnico dos Celtici e as suas semelhanças com os
Vocontii da Narbonense. Ou seja, dois povos de origem celta, instalados na zona de
influência da bacia mediterrânica, e possuindo cada um (se aceitamos a hipótese de
Peroguarda pertencer efectivamente ao mesmo território ou comunidade que os
Aranditani) dois santuários de relevo onde foram recolhidas numa favissa uma enorme
quantidade de lucernas votivas.
II) 1) Táranis/Júpiter
II) 1) a) Os Celtas do Sudeste da Gália e o santuário
de Chastellard de Lardiers
Relativamente aos Celtas, e tomando como exemplo os povos alpinos (em que
estão incluìdos os “Voconces”), é preciso relembrar que a natureza divinizada (numina
das pedras, águas, montanhas, entre outras), as divindades tópicas protectoras e as
deusas mães ocupavam um lugar importante nas suas devoções, constituindo as
105
Maia e Maia, 1997, p. 22.
106 Maia e Maia, 1997, pp. 22-23.
33
divindades locais o essencial do seu fundo religioso107
. Sabemos igualmente que, para
os Celtas, como para os seus antepassados, os deuses comunicavam com os homens
através de manifestações naturais, singularidades das paisagens ou fenómenos
perturbadores. As áreas de culto achavam lugar no essencial no território, em lugares
maiores para os homens (limites de povos, estradas ou vau…) ou supostamente
marcados pelo cunho de uma divindade (jorro das águas, impacto do raio, curiosidade
geológica…). Muitas vezes, a par da epigrafia romana e da onomástica, é a descoberta
de um santuário romano que permite inferir a existência de um lugar devocional
anterior, somente caracterizado, como no caso do Chastellard de Lardiers, pela presença
de mobiliários do século II ou I a. C. As edificações perenes não constituem a norma no
processo de gestão dos lugares de culto célticos e das oferendas feitas aos deuses. É o
meio ambiente contextual que compõe o receptáculo fundamental dos depósitos, sem
necessidade de protecção particular108
. É dizer que a noção de “templo”, enquanto
espaço construído e fechado, não acha lugar na concepção religiosa tradicional dos
Celtas (o fanum na Gália é uma evolução tardia do recinto delimitado e do seu altar em
cova)109
.
No Sudeste da Gália, os lugares de culto celtas erigidos sobre eminências em
zonas montanhosas parecem numerosos, respondendo este facto à uma necessidade “de
elevação” em direcção às divindades celestes. O fenómeno é recorrente igualmente nas
zonas mais baixas dos sectores costeiros ou deltaicos, onde modestas alturas, colinas,
escamas rochosas ou rebordos de planuras, podem ser utilizadas para a implantação de
lugares de culto110
. Ora, o nosso santuário situa-se igualmente no topo de uma colina,
indiciando uma possível devoção a uma divindade celeste ou solar, como Belenos, o
deus gaulês do Sol111
, ou Táranis112
e Sucellus113
, deuses celtas do céu tonante (não há
107
Tournie, 2001, pp. 178-179.
108 Reconhecido de todos, o lugar podia ser eventualmente delimitado simbolicamente por pequenos
bétilos ou vigotas em madeira, cordinhas, fios de lã…No entanto, o melhor garante era a sacralização do
lugar no território para a divindade ela mesma. Quem a infringir terá como pena uma morte das mais
terríveis (Arcelin et al., 2003, pp. 178-179).
109 Arcelin et al., 2003, pp. 173, 177, 179.
110 Arcelin et al., 2003, p. 179.
111 Gricourt e Hollard, 1990, p. 313.
112 O nome de Táranis deriva do nome do trovão em céltico: irl. tarann; gal. taran. A dispersão geográfica
deste deus no domínio celta é notável – França, antiga Jugoslávia, Alemanha e talvez Inglaterra – e vai ao
34
no sítio em questão outro elemento natural que se poderia destacar a não ser a colina).
No caso do santuário em altura de Chastellard de Lardiers114
e segundo R.
Carré115
, os numerosos objectos votivos recolhidos na favissa e na via sagrada, em que
os mais representativos são uns cinquenta milhares de lucernas, milhares de argolas
diversas e representações figuradas de serpentes116
(não esquecendo os 50 discos solares
fragmentados117
), indicam um contexto de culto solar. Em termos epigráficos, só temos
o nome da divindade Bel[ado]118
inscrito num altar que lhe foi dedicado e que se
encontrava num dos nichos da via sagrada, datável do segundo século da nossa era.
Mas, para R. Carrée, os objectos depositados pelos devotos neste santuário remeter-nos-
iam antes ao deus da roda, isto é, Táranis119
. A roda, principal emblema deste deus,
podia evocar para os Celtas, ou o Sol, ou o trovão, ou o raio120
.
Para além disso, I. Tournie121
acrescenta que as oferendas em lucernas
encontro da ideia de ver em Táranis uma divindade secundária local (Gricourt e Hollard, 1990, pp. 291-
292).
113 Ainda que tenha algumas ligações de parentesco o aproximando de Táranis-Júpiter, o deus ao (fr.)
“maillet” (um maço de pau com duas cabeças) apresentava-se como uma entidade distinta com o nome de
Sucellus (Gricourt e Hollard, 1990, p. 294).
114 Chastellard de Lardiers era um antigo oppidum (de três recintos e habitado desde o fim da Idade do
Bronze) situado no limite dos “Albiques” e dos “Voconces” e a cerca de 1000 m de altitude. No inìcio do
primeiro século da nossa era, a aldeia de altura é abandonada por seus ocupantes que se instalam nos dois
vales, a Este e a Oeste do oppidum. Por ocasião desta deslocação, um grande santuário instala-se no local
do habitat indígena que será frequentado até os últimos anos do quarto século. O número de sinais votivos
atesta que este lugar foi visitado por um grande número de dedicantes (Carré, 1978, pp. 121-122 e
Rolland, 1962, p. 655).
115 Carré, 1978, pp. 122, 126.
116 Um dos emblemas de Táranis, o deus celta do raio, é a serpente (Carré, 1978, p. 125), e sabemos que
na religião helenística e greco-romana, o ofídio é muitas vezes solidário do fogo solar ou subterrâneo, de
essência ígnea (Turcan, 2004, pp. 262-263). Os Egípcios, por sua vez, tinham uma cobra apelidada
Uraeus, uma serpente que cospe fogo e protege de todo o mal, coroando o cimo dos templos ou a cabeça
dos faraós (simbolizando a natureza ígnea das coroas reais do Egipto). A serpente de fogo concentra nela
as propriedades do Sol (na época de Amenofis II, o uraeus é representado como o suporte do disco solar)
e representa também o olho flamejante de Ré, o deus-sol. Também Ré encontra na serpente Méhen
(“aquele que forma argolas”) um acompanhante útil durante a sua travessia do reino da noite. Méhen
desenha numerosas sinuosidades à volta da cabina do deus-sol (Chevalier e Gheerbrant, 1982, pp. 872,
986 e Manfred, 1994, pp. 201, 225-226).
117 Rolland, 1964, p. 547.
118 A radical “Bel-“ significa em lìngua céltica “brilhante” (Gricourt e Hollard, 1990, p. 308).
119 Ver Olivares Pedreño, 2000, p. 69.
120 Gricourt e Hollard, 1990, p. 287.
121 Tournie, 2001, p. 182.
35
(juntando-se às placas furadas e às argolas) do santuário de Chastellard de Lardiers
pertencem ao âmbito das tradições indígenas herdadas do fundo céltico e que
perduraram ao longo de toda a época galo-romana.
Ou seja, no caso do nosso santuário, poderíamos ter igualmente uma divindade
celeste de origem celta, cujas lucernas votivas lhe foram consagradas.
II) 1) b) O topónimo “Santa Bárbara”
Tanto M. G. P. Maia e M. Maia122
como J. P. Bernardes123
observaram a
permanência de culto em Santa Bárbara de Padrões na era Cristã, como que a perpetuar
o local sagrado pagão que ali existiu, com a construção de uma basílica paleocristã na
mesma colina do antigo templo dos gentios, substituído depois pela igreja gótica actual.
Sabemos que, nos lugares de implantação de santuários antigos (romanos ou
célticos, sendo estes últimos reconstruídos em alvenaria na época romana), muitas
igrejas cristãs foram construídas em seguida nesses mesmos locais já marcados pela
religião124
.
Nas palavras de J. Encarnação125
, «se a um determinado culto, perpetuado em
tempo romano, os Cristãos fizeram seguir um outro, retirado do seu flos sanctorum,
seria legítimo garantir que identidades havia». Este autor dá como exemplo o caso mais
eloquente de Endovélico, cujo local do seu antigo santuário viu erguer uma capela a São
Miguel, observando ainda que «o carácter “infernal”, de deus que zela pelo Além, que
luta contra as forças do Mal, ficou plenamente justificado» neste lugar.
Ora, a actual igreja de Santa Bárbara de Padrões, erguida no antigo local de culto
pagão (no topo da colina), foi consagrada à virgem e mártir de Nicomedia, Santa
Bárbara (martirizada na época do imperador Maximiano). Entre os seus vários atributos
que se podem relacionar com este sítio em altura, temos o da protecção contra as
trovoadas126
que vem ao de cima (ver fig. 47).
122
Maia e Maia, 1997, p. 19.
123 Bernardes, 2006, pp. 160, 163.
124 Duval, 1989, p. 59.
125 Encarnação, 2002, p. 12.
126 Lello Universal, vol. I, p. 296.
36
Da pena infligida ao seu pai (Dioscoro), fulminado por um raio por a ter
degolado com sua espada127
, fará dela uma santa toda poderosa contra o fogo do céu,
contra as trovoadas, contra as tempestades e, por extensão, contra os incêndios, sendo
apelidada a santa do fogo e implorada pelos fiéis com o intuito de se protegerem dos
golpes do raio128
.
Reencontramos este tema do raio, considerado pelos Celtas como o fogo do
céu129
, nas divindades de Táranis e Sucellus.
Para além deste atributo, tínhamos igualmente um acto religioso que ligava
Santa Bárbara ao ritual da luz. De facto, dizia-se que «qui la dira devant son image un
cierge bénit ou chandelle allumée à la main, il ne mourra point sans confession»130
.
Podemos notar, neste interessante trecho de C. Lapparent, sobre a mártir de Nicomedia,
o poder que tinha uma vela acesa segurada pelo fiel perante a imagem da santa,
permitindo a confissão dos seus pecados antes da morte o levar. Esta prática, em
apresentar a luz de uma vela (ou de um círio) diante da efígie de uma entidade
santificada, relembra em muito o ritual das lucernas votivas do nosso santuário.
II) 1) c) O menir
Em relação agora ao dito menir do adro da igreja, ele apresenta-se para M. G. P.
Maia e M. Maia131
como um dos testemunhos da probabilidade da localização do
santuário neste ponto da colina onde se localiza a igreja. Apesar de estar obviamente
fora do seu contexto original que não seria no entanto muito longínquo, a presença do
menir tornava este lugar um sítio marcado pelo sagrado que não passaria despercebido
tanto pelos Celtas como pelos Romanos.
Segundo A. Varagnac132
, em termos do exame das mitologias clássicas enquanto
herdeiras possíveis do megalitismo, uma investigação neste domínio nos levará depressa
127
Dioscoro sofreu a cólera de Deus pelo fogo, raio, tempestade e diabrura até não restar nada de seu
corpo (Lapparent, 1926, pp. 10-11).
128 Lapparent, 1926, pp. 16-17, 23.
129 Gricourt e Hollard, 1990, p. 287 e Chassaing, 1978, p. 287.
130 Lapparent, 1926, p. 17.
131 Maia e Maia, 1997, p. 19.
132 Varagnac, 1962, pp. 338-339.
37
a certos cultos do pilar erguido. É preciso relembrar a equivalência entre o menir, o
poste de madeira, a coluna e o obelisco133
.
Temos portanto, segundo o mesmo autor, numerosas associações de Zeus e da
estela erguida, com o menir. Começamos primeiro por Dioniso, o filho de Zeus, muitas
vezes representado sob a forma de pilar apenas antropomorfizado, e associado ao trovão
(o seu nascimento foi atribuído à morte da sua mãe fulminada)134
. A associação do raio
e do pilar reaparece aliás em mitos menores como o de Oinomaos, cuja casa fulminada
deixou subsistir apenas um grosso pilar de madeira, monumento sagrado que viu
Pausânias junto de um santuário de Zeus Keraunios. Mas a mitologia que se adequa
perfeitamente ao nosso caso é a da infância do deus do céu tonante. Reia, dando à luz ao
pequeno Zeus numa gruta do monte Ida em Creta, substituiu-o por uma pedra quando o
seu marido, Cronos, o quis devorar, dando-lhe em seguida à ninfa Amalteia que o
alimentou e o criou em segredo no cimo deste mesmo monte (a cabra Aíx, descendente
do deus-sol Hélios, é que amamentou a criança)135
. Mais tarde, Zeus irá tornar-se o
soberano celeste do panteão greco-romano, o mestre do raio, considerado pelos Antigos
como o fogo do céu136
. Ora, é exactamente no mesmo lugar, no monte Ida, que foi
encontrado outro depósito votivo de lucernas137
.
Continuando com a simbologia do menir, sabemos que muitos megálitos
ocidentais trazem gravuras figurando incontestavelmente machados polidos. Ora,
sabemos que o machado de pedra era um símbolo do fogo celeste138
(relembramos para
este âmbito as “pedras de trovão” dos campos bretões, as ceráunias), bem conhecido em
todo o mundo pré-helénico contemporâneo da expansão final do megalitismo ocidental.
Por fim, A. Varagnac observa ainda que alguns atributos de estátuas-menires
masculinas do Sul da França representavam unicamente elementos de “isqueiros de
arco”, o que pode corresponder à acção de acender fogos sagrados.
133
O símbolo cultual do deus Ré, divindade solar de Heliópolis, era o obelisco (Morenz, 1977, pp. 335-
336).
134 É preciso relembrar também que a especulação alegórica sempre identificou Dioniso com o Sol
(Burkert, 2003, p. 78).
135 Grimal, 2009, pp. 23, 107, 241.
136 Turcan, 2004, p. 260.
137 Maia e Maia, 1997, p. 21.
138 Os gauleses representavam o trovão sob a forma do martelo (Gricourt e Hollard, 1990, p. 293).
38
II) 1) d) Sob a dominação romana
Em primeiro lugar, é preciso relembrar que os contactos culturais na época
romana subentendem no domínio religioso mecanismos complexos: interpretatio
romana, sincretismo139
, coabitação ou coexistência dos deuses e isto numa dialéctica
entre aculturação e resistência140
.
Para além disso, a interpretatio romana dos cultos indígenas foi um fenómeno
que se manifestou diferentemente segundo o grau de romanização141
. No caso da
Hispânia, temos a preponderância dos cultos indígenas a Norte do Douro e seu
desaparecimento quase total nas regiões onde a dominação romana foi mais profunda (o
que é o nosso caso na área do Baixo Alentejo)142
.
Desta breve nota, podemos portanto observar que, do ponto de vista da
organização urbana dos templos romanos, reencontramos no caso do nosso santuário a
possibilidade de uma divindade celeste ser aí consagrada. De facto, segundo Vitrúvio143
,
os lugares mais elevados deviam estar reservados aos templos sagrados dos deuses de
mais alta tutela para a cidade, isto é, Júpiter, Juno e Minerva, de onde se podia observar
a maior extensão do recinto fortificado. Voltamos então a encontrar, nos preceitos de
Vitrúvio, um deus do céu tonante que era Júpiter, divindade da luz divina que foi
assimilada ao Zeus grego144
. A pensar numa divindade celta que se assemelhava em
muito com o deus romano da trovoada, reencontramos Táranis145
, o “Júpiter
indìgena”146
. É neste aspecto principal de grande deus celta do céu tonante, que Taranis
era próximo do seu paralelo romano Júpiter, o deus celeste supremo que é o raio
139
As divindades sincréticas são o resultado de uma aproximação, mais precisamente de uma assimilação
entre deuses romanos e deuses do panteão indígena tais Júpiter/Táranis (Tournie, 2001, p. 175).
140 Tournie, 2001, p. 174
141 Por exemplo, enquanto que em meio romanizado o epíteto indígena de um deus desaparece, esse
epíteto é pelo contrário muito difundido nas camadas de populações célticas (Lavagne, 1979, p. 164).
142 Lavagne, 1979, pp. 164, 194.
143 Maciel, 2009, p. 54.
144 Grimal, 2009, p. 262.
145 Le Glay, 1995, p. 59.
146 Olivares Pedreño, 2000, p. 69.
39
(Fulgur) ou o lança (Fulgurator), e com quem é precisamente assimilado nas inscrições
latinas147
.
Para além das normas de Vitrúvio, J. C. Olivares Pedreño148
acrescenta que na
Hispânia temos uma grande preponderância do culto a Júpiter nas regiões ocidentais da
Península Ibérica em relação ao resto das divindades romanas, mais precisamente em
uici e castella lusitano-galaicos, em que todas as inscrições votivas efectuadas pelo
conjunto dos habitantes de um uicus ou castellum se dedicaram, em exclusivo, a esta
divindade149
. Por detrás de muitas das dedicações feitas a Júpiter, sem epítetos, ou
Iuppiter Optimus Maximus (I. O. M.), pode-se vislumbrar também uma divindade
indígena (um deus soberano dos povos do Ocidente hispano) que teria sido assimilada
pelo deus supremo dos romanos (neste aspecto, J. Alarcão150
acha difícil decidir entre a
hipótese do sincretismo151
ou a hipótese de substituição152
).
Temos muitas semelhanças nos casos das Gálias e Germânia Superior, em que a
divindade honrada por seis das dez comunidades que aparecem como dedicantes contem
elementos do deus céltico assimilado a Júpiter, isto é, Táranis, o “deus da roda”
(sobrevivências do seu culto em Júpiter romano).
Para além disso, os registos epigráficos que mostram uma relação entre
comunidades rurais e Júpiter acharam-se em lugares aparentemente despovoados ou,
nos casos em que podiam relacionar-se com um núcleo de povoação, estas não se
encontravam no interior do mesmo. É muito possível que estes testemunhos isolados se
tenham efectuado em lugares sagrados dedicados a esta divindade, sem implicar,
147
Gricourt e Hollard, 1990, p. 292. Para o caso da Hispânia, é preciso notar que não foram encontrados
nenhuma inscrição ou qualquer outro testemunho arqueológico indicando a existência de um Taranis.
Outra divindade do raio, de nome diferente mas com as mesmas características que o deus Táranis, podia
ter existido entre os Celtici do Sul da Lusitânia.
148 Olivares Pedreño, 2000, pp. 63-75.
149 J. Alarcão confirma esta afirmação, acrescentando que temos também exemplos do culto a I. O. M. em
capitais de civitates, como Bracara Augusta, Aquae Flaviae, Civitas Baniensium, Lancobriga, Civitas
Igaeditanorum, Olisipo, Ammaia. Nalguns casos os praticantes são particulares, noutros parece ser a
própria cidade que dedica a ara. Mas o número de inscrições a Júpiter é maior fora dos centros urbanos
principais (Alarcão, 1988, p. 167).
150 Alarcão, 1988, p. 168.
151 Adopção de uma divindade romana sem abandono do culto de uma divindade indígena anterior,
associando ou acrescentando os novos rituais e o novo deus aos cultos locais (Alarcão, 1988, p. 168).
152 Substituição de uma divindade pré-romana por uma divindade clássica, assimiladas ou identificadas
uma à outra por interpretatio (Alarcão, 1988, p. 168).
40
necessariamente, a existência de um edifício de culto.
Todos esses indícios fazem lembrar a nossa Arandis, simples aglomerado
secundário, de origem celta, com a possibilidade de, segundo M. G. P. Maia e M. Maia,
o santuário ser composto simplesmente de um temenos sem templo.
No entanto, é preciso notar que as oferendas votivas feitas a Júpiter por parte dos
uici, pagi ou castella se centram na sua quase totalidade na região Noroeste da
Hispânia, ou seja, coincidindo com o âmbito de maior densidade de teónimos indígenas
e, além disso, de localidades algo distantes dos principais municípios ou capitais de
ciuitates e, portanto, com menor nível de romanização.
J. Alarcão153
, por sua vez, propõe a hipótese de o culto de I. O. M. se ter
difundido fundamentalmente nas civitates onde não existia culto imperial154
. O culto de
Júpiter terá constituído portanto uma alternativa ao culto do imperador.
Onde o culto municipal não estava instituído, a devoção ao imperador poderia
formalizar-se no templo de I. O. M.
As homenagens ao imperador celebrar-se-iam mesmo em pequenos vici que não
disporiam de templo. Neste caso, os vicani consagrariam um campo que, não sendo
lavrado nem servindo de pasto, seria o palco das cerimónias religiosas em honra de
Júpiter e do imperador.
II) 1) e) Impacto de um raio
Podemos ainda colocar a possibilidade de um fenómeno natural que teria
provocado a consagração desta colina a uma divindade do céu tonante.
Como já vimos para os Celtas, cuja área de culto podia ser marcada pelo cunho
de uma divindade, particularmente o impacto de um raio, sabemos igualmente que para
os Romanos, quando um lugar era fulminado por um raio, se tornava doravante
religiosus, porque a divindade parecia o ter dedicado para ela mesma155
. Era necessário
então enterrar, ao som de palavras sagradas, todos os sinais de lume por ele deixados
(fulgur condere, isto é, “enterrar o raio”). Os destroços consumidos pelo raio eram então
153
Alarcão, 1988, pp. 168, 178, 180.
154 No entanto, podemos encontrar aras dedicadas a I. O. M. em algumas capitais de civitates com culto
imperial, como em Olisipo ou Braga.
155 Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 61.
41
apanhados, enterrados e recobertos dum pequeno outeiro lajeado ou arrelvado rodeado
por um bocal (chamado puteal ou bidental). Esta acção acompanhava-se do sacrifício de
uma ovelha de dois anos (bidens) para apaziguar a divindade e tornar este lugar sagrado.
No puteal gravava-se uma inscrição atinente à cerimónia. Eram os harúspices156
que
praticavam o enterro do raio, na sua qualidade de fulguratores. Quando era uma árvore
a ser atingida por um raio, a intervenção de um strufertarius157
era neste caso requerida
para efectuar o sacrifício158
.
Ou seja, a nossa colina poderia ter sido também atingida por um raio e
consagrada então a um Júpiter Tonante ou Iuppiter Elicius159
, cujo templo seria
frequentado por indígenas de etnia celta, continuando com a sua tradição em oferecer a
luz votiva, e em que o menir se adequava perfeitamente à mitologia de Zeus.
II) 2) As influências orientais
Sabemos que a Península Ibérica ficou incluída nas rotas comerciais dos
Fenícios, Gregos (com a sua principal colónia em Ampúrias) e Cartagineses, cujos
contactos trouxeram novas ideias e crenças aos indígenas160
.
No caso do Alentejo, temos de facto, directa ou indirectamente, uma forte
influência da colonização desses povos vindos do Oriente, caracterizando a Idade do
Ferro I desta região, não esquecendo igualmente a fixação de Turduli no Sul de
Portugal, coexistindo aí com os Celtici161
.
Segundo J. Alarcão162
, além do grau muito superior de romanização do Alentejo,
156
Nos primeiros tempos esta função estava a cargo dos pontífices, passando depois para os harúspices
(Vasconcellos, 1913, p. 486).
157 Strufertarius da palavra fertum: bolo feito de farinha, de mel e de vinho, que se oferecia nos
sacrifícios, neste caso diante da árvore atingida pelo raio (Laforge, 2009, nota 685 p. 181).
158 Vasconcellos, 1913, pp. 481, 486-487 e Laforge, 2009, pp. 180-181.
159 Grimal, 2009, pp. 261-262.
160 Brázia, 2011, pp. 17-18.
161 Alarcão, 1988, pp. 64-65, 153.
162 Alarcão, 1988, pp. 154-155.
42
fazendo desta região uma zona quase sem cultos indígenas163
, o processo de
desaparecimento dos mesmos nesta parte da Lusitânia poderá ter começado já na época
pré-romana, por influência de contactos com Fenícios, Gregos e Cartagineses. É
possível que algumas divindades do panteão clássico romano e alguns deuses orientais
adorados em plena época romana tenham sido, de facto, introduzidos na época das
colonizações ou radiquem numa interpretatio de deuses fenícios, gregos ou
cartagineses.
Para além das influências orientais vindas do exterior, temos igualmente as
oriundas de uma grande cidade. De facto, sabemos que as classes populares, residentes
nos vici e castella, não teriam outros meios normais de acesso aos cultos clássicos que
não fossem as suas visitas à cidade mais próxima, capital do território, quando aí se
deslocavam para assistir a cerimónias religiosas ou a espectáculos, ou para vender e
adquirir certos produtos. Nessas cidades maiores, entre as múltiplas escolhas que se
apresentavam aos rurais, certas divindades, pela dimensão dos seus templos urbanos e
pelo brilho das cerimónias religiosas que em sua honra se celebravam, pela
especificidade das suas funções (Júpiter seria mais passível de aceitação, por exemplo,
que Febo), eram mais “sedutoras” do que outras164
.
Deste ponto de vista, a cidade de Myrtilis Iulia ou de Pax Iulia, as duas
prováveis capitais administrativas dos Aranditani, teria neste aspecto uma forte
influência na escolha da(s) divindade(s) para o santuário de Arannis, simples estação
viária romana.
Podemos notar que essas cidades apresentam testemunhos de divindades
claramente orientais165
.
Em Mértola, porto fluvial do Guadiana, foram encontradas uma cabeça de
Tyche-Cybele e outra de Dioniso.
163
A Sul do Tejo, conhecem-se somente 8 divindades indígenas: Ataegina; Carneus Calanticensis; Dea
Sancta Burrulobrigensis; Endovellicus (o deus indígena com maior número de inscrições votivas);
Ocrimira; Quanceius Tanngus; Runesius Cesius; Toga Alma. No Algarve, por sua vez, não temos
testemunhos alguns de deuses indígenas (Alarcão, 1988, pp. 154, 218).
164 Alarcão, 1988, pp. 165-166.
165 Para essas cidades e seus testemunhos de cultos orientais, ver Alarcão, 1988, pp. 40, 51, 172-174, 178,
197.
43
Por sua vez, a cidade de Beja, sendo uma colónia166
e sede de conventus
iuridicus167
, um pólo convergente e agregador das estradas romanas do Baixo
Alentejo168
, um centro comercial que atraía imigrantes, e um local de habitação de
numerosos colonos (libertos e peregrini) além de indígenas169
, apresentava-se como um
meio sócio-cultural propício à adopção de cultos orientais. De facto, além de provas
epigráficas da existência de um culto imperial (o culto municipal data da época de
Tibério), temos nesta cidade testemunhos de Cíbele, Ísis170
, Serápis171
e, talvez ainda, de
Mitra172
. No caso dos deuses alexandrinos que tinham seguramente um santuário173
,
sabemos que as duas divindades viveram lado a lado, tendo sofrido um sincretismo que
lhes deu um carácter de deus total, omnímodo (Serápis apresenta-se efectivamente como
um deus universal, devido ao epíteto pantheus174
que acompanha o nome da
divindade)175
.
Para além disso, foram encontradas nesta mesma cidade cabeças marmóreas de
touros, que J. L. Vasconcelos176
considera como romanas e relacionadas com o “boi
166
Uma referência de Estrabão sugere que a Pax Iulia foi fundada por César e elevada à categoria de
colónia por Augusto (Alarcão, 1988, p. 67).
167 Novo tipo de circunscrição administrativa criado por Vespasiano, integrando um determinado número
de civitates. No caso de Beja, a cidade era sede do conventus pacensis (Alarcão, 1988, p. 58).
168 Carneiro, 2009, p. 89.
169 Cada grupo com suas leis e sua assembleia, reunidos numa curiosa forma de sinecismo (Alarcão, 1988,
p. 40).
170 Uma inscrição a Ísis, em mármore de Trigaches, foi encontrada num monte de entulho, no local onde
ficaria uma das portas da muralha romana. J. Alvar acrescenta também a descoberta de uma estátua de
Ísis mumificada, talvez de factura faraónica, documentada num manuscrito de Fr. Manuel do Cenáculo,
de finais do século XVIII ou começos do XIX, que diz ter sido achada na freguesia de Peroguarda, a três
léguas da cidade de Beja (Alarcão, 1988, p. 173 e Alvar, 2012, pp. 43-44).
171 A inscrição a Serapis Pantheus encontrava-se gravada num grande altar, feito em mármore de
Trigaches (cinzento muito claro), que foi posteriormente aproveitado na época visigótica ou árabe, para a
construção de um arco; achado em 1794 na parte exterior da porta de Avis. J. Alvar nota que Pantheus é
um epíteto invulgar, um caso único em Hispânia, ainda que se documenta uma Ísis Panthea em Epora
(Montilla, Córdova) (Alarcão, 1988, p. 173 e Alvar, 2012, pp. 42-43).
172 A lápide de inscrição, que testemunha a existência de um edifício (studium) e de um grupo de
bracarenses organizados numa associação (sodalicium bracarorum), põe um problema de identificação:
terá sido consagrada mesmo a Mitra ou ao Sol? (Alarcão, 1988, p. 173)
173 Alvar, 2002, p. 206.
174 Inscrição a Serápis Pantheo feita por Stelina Prisca, em honra do seu filho Gaius Marius Priscianus,
datada da primeira metade do século II d. C. (Alvar, 2002, pp. 205-206).
175 Maia e Maia, 1997, pp. 22-23.
176 Vasconcellos, 1913, pp. 515, 518-519.
44
Ápis”177
, conotando-se portanto com o culto egípcio de Pax Iulia.
Voltamos também a encontrar um santuário dos deuses nilóticos em Emerita
Augusta (Mérida), capital da Lusitânia. Esta afirmação baseia-se sobretudo na
descoberta de uma grande cabeça de Serápis de mármore branco, apresentando a
divindade cabelo e barba abundantes com caracóis desordenados, bem como um corte
horizontal na parte superior da cabeça para colocar o seu modium que desapareceu (a
peça escultórica data de meados do século II d. C.). O tamanho que teria a estátua
permite considerá-la como o ícone cultual de um templo dedicado aos deuses
alexandrinos178
.
Por fim, segundo M. Maia179
, a cidade de Castro Verde, a poucos quilómetros de
Santa Bárbara de Padrões (cerca de 10,8 km em linha recta), teria sido na origem um
acampamento militar romano, baseando-se a sua hipótese na toponímia da povoação,
bem como no traçado das suas ruas formando uma planta ortogonal. Interessa-nos
portanto o trecho de P. Brázia dizendo que «na província da Hispânia, os cultos
orientais conseguiram ultrapassar as zonas portuárias e os aquartelamentos militares,
introduzindo-se no seu interior»180
.
Ou seja, estando o nosso santuário muito próximo desta cidade, e considerando a
proposta de M. Maia, podemos também colocar a hipótese de uma outra fonte de
influência em termos de cultos orientais, transmitidas desta vez pelos soldados romanos
de um acampamento nas circunvizinhanças de Arannis.
II) 3) O depósito de lucernas votivas
II) 3) a) A “religião votiva”
Em relação às lucernas de barro de Santa Bárbara de Padrões, foram todas
recolhidas, como já vimos, num depósito votivo, o que demonstra que essas lâmpadas
não foram utilizadas para a simples iluminação de um templo181
(no mobiliário vulgar
177
J. L. Vasconcelos afirma que foram encontradas 6 cabeças nesta cidade.
178 Alvar, 2012, pp. 46-47.
179 Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.
180 Brázia, 2011, p. 52.
181 Maia e Maia, 1997, p. 24.
45
dos templos estão sempre compreendidos lychnuchi, candelabra e grande número de
lucernas182
), mas antes como ex-votos (ex voto donatorum) ou resultante de actos de
piedade183
, oferecidos pelos peregrinos que iam visitar o santuário.
É preciso relembrar que, na Antiguidade, e segundo a análise de W. Burkert184
, a
forma de religião pessoal de um indivíduo era representada pela prática dos votos, a
chamada “religião votiva”, uma forma particular de culto no seio da religião pagã, em
que os actos permanecem na categoria dos “suplementos úteis”, e não entram na dos
“substitutos”, que implicam uma rejeição consciente do que existia antes. A religião
votiva consistia em promessas feitas pelos fiéis aos deuses, em troca do seu auxílio
contra toda a espécie de infelicidades nesta vida terrestre, como as doenças, as
incertezas na vida profissional, os perigos de uma viagem ou os riscos de um parto, a
protecção de entes queridos, as ameaças e destruições da guerra (para a classe
dirigente), ou o agradecimento de lucros ou sucessos obtidos e a manutenção deste statu
quo no futuro185
. As promessas eram cumpridas geralmente com oferendas de dons de
mais ou menos grande valor, agradecendo assim a divindade pela sua intervenção
benéfica. Ou seja, os objectos votivos, tão modestos à primeira vista186
, são documentos
de uma fé pessoal num deus bem definido, que, em troca, dá uma forma de salvação,
sôtèria, salus, saluatio. O fiel podia sem problema mudar de divindade até encontrar
aquela que lhe parecia a mais adequada ou a mais “interventiva” relativamente aos seus
pedidos, possuindo a religião votiva um carácter verdadeiramente experimental187
.
Tomando como exemplo os santuários galo-romanos, podemos encontrar vários
tipos de objectos depositados em oferenda ou em ex-voto, muitas vezes reunidos na
mesma favissa e geralmente de pequena dimensão188
: espelhos; taças, lucernas,
182
Almeida, 1952, p. 90.
183 Ruiz de Arbulo, 1996, p. 118.
184 Burkert, 2003, pp. 15-18.
185 Quando ele oferece seu dom votivo, o devoto reza para obter o mesmo auxílio no futuro (da ut dem)
(Burkert, 2003, p. 16).
186 Excepto as doações da classe dirigente, como alguns dos mais célebres monumentos artísticos dos
santuários gregos, ou quase todos os templos de Roma (Burkert, 2003, p. 16).
187 Os deuses pagãos não são ciumentos uns dos outros, formam, por assim dizer, uma sociedade aberta
(Burkert, 2003, p. 54).
188 A miniaturização votiva representa o recurso habitual para substituir simbolicamente as oferendas
(Ruiz de Arbulo, 1996, p. 117).
46
estatuetas, figurinhas de animais, trombetas em terracota; baixela, estatuetas, sinetas,
instrumentos de cirurgia, rodinhas, argolas, placas furadas em bronze; ferramentas
agrícolas ou artesanais e armas miniaturizadas, quase sempre em ferro; jóias (braceletes,
fíbulas, anéis, entre outras); laminazinhas de metal insculpidas; moedas; ferramentas
pré-históricas, fósseis e todas as espécies de amuletos. Tratam-se geralmente de
objectos produzidos em série para as necessidades dos peregrinos, mas em certos casos
adivinha-se objectos pessoais originais189
.
De notar que não temos aí um dos donaria mais frequentes nos santuários de
época romana, isto é, o pequeno altar (as arulae), oferecido a uma divindade como acto
de piedade ou em cumprimento de uma promessa190
, fazendo com que os depósitos
votivos pudessem divergir no seu conteúdo191
consoante a divindade principal venerada
no local192
, a evolução das funções principais desta última ao longo do tempo, a
localização geográfica do santuário (influências orientais mais marcadas na zona da
bacia mediterrânica por exemplo), as sobrevivências tradicionais pré-romanas dos
indígenas, entre outros.
J. Scheid193
acrescenta ainda, a propósito da religião pessoal, que a prática
privada do culto, que não era fundada em arquivos públicos, levava por conseguinte ao
depósito diante do santuário, sob pórticos ou em tesouros, de monumentos relembrando
o rito executado como altares, pinakes com pinturas, ex-votos preciosos ou não,
representando a divindade referida ou uma outra divindade, o celebrante, a vítima
oferecida, entre outros. Daí que, os sinais da actividade ritual (sendo os vestígios das
oferendas os documentos directos) concernem mais a frequência privada dos santuários
189
Barruol, 1985, p. 371.
190 Ruiz de Arbulo, 1996, p. 118.
191 Por exemplo, os ex-votos do santuário de Lachau são muito diferentes dos de Lardiers, apresentando o
primeiro como aspecto mais original do jazigo ex-votos metálicos de duas espécies: os mais numerosos
representam em miniatura instrumentos agrícolas (podadeira, foice, enxada, arado); os outros são
incontestavelmente armas (venábulo, dardo curto, pontas de setas ou de lanças) em tamanho natural
(Carré, 1978, p. 122 e Lancel, 1975, p. 535).
192 Por exemplo, segundo se dirigiam a Selene ou a Afrodite, os devotos, através da utilização de certos
tipos de espelhos, pediam às deusas o favorecimento na fecundidade e nos seus amores, a preservação de
certas doenças, o desvio do mal, o conhecimento do tempo, a protecção dos seus entes queridos, dos seus
campos e das suas colheitas (a organização do trabalho no campo no quadro do ciclo lunar é fortemente
recomendado por Virgílio, por Plínio e por Plutarco), entre outros (Barruol, 1985, p. 373).
193 Scheid, 1997, pp. 56-57.
47
que o culto principal que era aí celebrado194
. Este último podia tomar vários aspectos,
sendo os ritos da veneração dos deuses numerosos: podia tratar-se de sacrifícios sobre
um altar, numa cova, nas águas; podia tratar-se de lustrações com procissão simbólica à
volta da entidade a constituir, de purificações, de colheita e de oferenda de primícias, de
consultas divinatórias, de jogos, sem falar de todos os ritos que se complementavam aos
actos centrais do culto (ritos de iniciação, ritos de investidura, suplicações, em alguns
casos, mistérios…).
Esta prática pagã da chamada “religião votiva” sobreviveu muito para além do
mundo antigo – até aos nossos dias, mesmo no Cristianismo195
.
II) 3) b) A iconografia das lucernas votivas
Relativamente à iconografia das lucernas, e segundo J. Almeida196
, sabemos que,
em regra, os assuntos escolhidos nos tampos não tinham importância ou significado
especial, valendo somente pelo seu “decorativismo”. Só em casos raros, a decoração
correspondia ao uso a que se destinava, como em lucernas votivas e de boas-festas,
ornadas no caso das primeiras de imagens dos deuses a que eram dedicadas. O autor
acrescenta ainda a existência de inscrições referentes a nomes de divindades que se
podem encontrar em lucernas votivas197
.
No entanto, para além de não se ter encontrado nas lâmpadas de Santa Bárbara
de Padrões nenhuma inscrição a revelar o nome da divindade aí consagrada, sabemos
igualmente que num local de culto típico, o templo podia abrigar não só a estátua de
culto do deus venerado no santuário, mas também estátuas de outros deuses assistindo a
divindade tutelar do culto198
, e que, para além disso, esta última podia receber a
oferenda de uma estatueta representando uma outra divindade199
. Ou seja, mesmo se a
194
As regras regendo os actos de culto privados não eram forçosamente as mesmas que aquelas do culto
público (Scheid, 1997, p. 57).
195 Burkert, 2003, p. 15.
196 Almeida, 1952, pp. 75, 92-93.
197 Almeida, 1952, p. 82.
198 Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62.
199 Scheid, 1997, p. 57.
48
representação de uma entidade divina numa determinada lucerna votiva se possa
relacionar com a devoção de um certo devoto, ainda não se pode confirmar a verdadeira
identidade do deus a que o santuário foi consagrado.
No caso do repertório iconográfico das lucernas votivas de Santa Bárbara de
Padrões, M. G. P. Maia e M. Maia200
notaram uma possível existência, por parte dos
oferentes, de uma certa selecção entre os motivos disponíveis no comércio vulgar.
De facto, e segundo estes autores, no século I d. C. registou-se uma apetência
por temas mitológicos e astrais, em detrimento de outros, contudo igualmente
frequentes no mesmo período, como jogos de anfiteatro ou espectáculos circences.
Sobre as lucernas de volutas (especialmente Dressel 9, Dr. 11 B e Dr. 15), nota-
se uma presença significativa de Júpiter201
, seus atributos (águia) e mitos (rapto de
Europa), mas sobretudo Vitória202
(54 exemplares), representada quer pela figura da
própria deusa, quer sob a forma de atributos com ela relacionados, como as coroas de
louros e as palmas.
As coroas de folhagem (carvalho, louros, videira, etc.) são abundantes em Santa
Bárbara, sobretudo nas lucernas “de disco”.
As palmas estão também muito representadas, bem como a sua conjugação com
as coroas.
A predilecção parece dirigir-se também para Diana/Ártemis203
e para a sua
congénere Selene/Luna204
. Estes temas estão quase exclusivamente tratados em lucernas
200
Maia e Maia, 1997, p. 44.
201 Soberano da luz e do raio, do trovão, da chuva, garante da ordem do mundo, da justiça, das
hierarquias, Júpiter era o protector de Roma e centro da tríade capitolina, cultuada em todas as cidades do
Império. Recolheram-se em Santa Bárbara 8 exemplares de Júpiter com a águia (Maia e Maia, 1997, pp.
58-59).
202 Uma das principais divindades tutelares de Roma e dos seus imperadores (Maia e Maia, 1997, p. 44).
203 A deusa Ártemis era filha de Latona e de Zeus e irmã de Apolo. Foi, desde cedo, assimilada à deusa
romana Diana e a Luna. Deusa da caça e igualmente da pureza (era virgem) protegia as mulheres e os
partos e exigia dos seus fiéis abluções em água corrente. Em Santa Bárbara recolheram-se 9 exemplares
com a figuração de Diana (Maia e Maia, 1997, pp. 46-48).
204 Selene, personificação da Lua, era considerada às vezes pela mitologia grega como filha de Hélios, o
Sol. Para os romanos, a Lua era a deusa Luna, assimilada a Diana, a Ártemis grega que estava quase
totalmente identificada com Selene. Os seus atributos são o crescente lunar à cabeça – Selene, Diana,
Ártemis, Luna, são classificações atribuídas a bustos femininos com o crescente lunar à cabeça –, e, por
vezes, o chicote (não se pode esquecer também o motivo da estrela, muito recorrente na figuração da
deusa lunar). A Lua personificada ou não pode ainda surgir associada ao fruto do cipreste, símbolo da
vida de além-túmulo. Em Santa Bárbara foram recolhidas 20 lucernas que apresentam decorações
relacionadas com este tema (Maia e Maia, 1997, pp. 65-68).
49
de tipo Dr. 15, sem asa, com volutas simples. É um tipo de transição, entre os períodos
Flávio e de Trajano e que parece relativamente raro, noutros sítios arqueológicos.
As lucernas “de disco” apresentam portanto uma grande variedade de temas,
mas mantem-se a preferência pelos de índole religioso-mitológica, sendo, no entanto, o
busto de Hélios de longe o mais frequente (58 exemplares).
De facto, Hélios205
foi a divindade mais representada na iconografia de Santa
Bárbara206
, reproduzido por numerosas oficinas, indiciando a sua popularidade entre os
Aranditani. Pode-se distinguir diversas punções utilizadas para a figuração desta
divindade solar: busto de Hélios com 10 raios, sobre crescente lunar com estrelas nas
pontas (4 exemplares); busto de Hélios com 7 raios, cabeleira caída sobre os ombros,
com representação de braços e vestes drapeadas e cruzadas ao centro do peito, formando
um decote em V, e fíbulas circulares sobre os dois ombros (45 exemplares); busto de
Hélios com 7 raios (os raios inferiores são quase horizontais), cabelo curto, rodeando
apenas a face e a testa, com uma espécie de franja encaracolada sobre a testa (ou
diadema?), e representação esquemática do busto, triangular e terminando num círculo,
interpretado como um nó nas vestes (8 exemplares); Hélios com 5 raios, com drapeado
solto entre os dois ombros (1 exemplar).
Podemos observar que de entre as várias representações de Hélios, o segundo
motivo (o Hélios com 7 raios dos 45 exemplares), relativamente raro fora do depósito
de Santa Bárbara, gozou de grande popularidade entre os fiéis de Arandis207
, os quais
adquiriram e ofereceram desde exemplares muito perfeitos e certamente moldagens
originais, até remoldagens de muito má qualidade, sendo este motivo usado igualmente
nos fabricos locais (lembrando o caso de Lachau) ou regionais.
Por fim, devemos notar igualmente que, para além dos deuses Manes e Lares
estarem também significativamente representados (8 e 22 exemplares respectivamente),
205
Hélios, que na Grécia era uma divindade menor relativamente a Apolo, outra divinização do Sol,
torna-se o deus Sol por excelência em Roma. Havia uma Festa anual em sua honra, no dia 25 de
Dezembro (Maia e Maia, 1997, p. 51).
206 Maia e Maia, 1997, pp. 51-55.
207 M. G. P. Maia e M. Maia pensam que a oficina com a marca IVNIALEXI teria estabelecido uma
sucursal no Sudoeste Peninsular a partir da qual satisfaria uma procura específica por este tema (Maia e
Maia, 1997, p. 54).
50
temos a presença em Santa Bárbara da deusa egípcia Ísis208
, representada talvez 8
vezes209
: 3 exemplares com Ísis acompanhada de Anúbis e de seu filho Harpócrates; 4
bustos de Ísis (ou África?), com toucado complexo encimando sua cabeça e um sistro
(ou látego?) na mão esquerda; 1 busto de Ísis (ou Selene?), com crescente lunar (ou
cornos) na cabeça e flor de loto (ou plumas, ou trigo, ou estrela), tendo igualmente à
volta da cabeça uma larga auréola circular, na mão direita um chicote e na esquerda,
uma tocha acesa210
. Até temos uma lucerna com Júpiter-Ámon211
– representação da
cabeça de Júpiter com cornos enrolados de carneiro212
.
Por sua vez, no santuário da Horta das Faias (Peroguarda), de entre as centenas
de lucernas analisadas por A. Viana e F. N. Ribeiro213
, reencontramos Hélios radiado (4
exemplares), uma divindade lunar (2 exemplares com crescente lunar), a deusa Ísis (4
exemplares, em que numa aparece também Anúbis e Harpócrates) e talvez o seu par
divino Serápis (1 exemplar).
As pequenas lucernas votivas de fabricação local do santuário de Lachau (só um
quarto aproximadamente são das importações214
, de um tipo corrente e iconografia
maioritariamente animalesca215
), datando todo o conjunto entre os séculos I e III d. C.,
apresentam quase sempre, como ornamento, um motivo radiante à volta do buraco de
208
Símbolo da fertilidade, deusa mãe de todas as coisas, vencedora da morte (possui um carácter
psicopompo) e divindade salutífera, representa ainda a fidelidade conjugal e o amor maternal (Maia e
Maia, 1997, pp. 55-56).
209 Maia e Maia, 1997, pp. 55-58.
210 Apuleio descreve, para Ísis, um penteado idêntico e menciona um disco que irradiava uma luz branca,
onde se reconhece a Lua e serpentes (o uraeus). Espigas de trigo dominavam este conjunto. No caso do
motivo de Santa Bárbara, dada a assimilação que se registou em Roma entre Ísis e Luna-Selene, é difícil
decidir, com precisão, de qual das divindades se trata (Maia e Maia, 1997, p. 56).
211 Maia e Maia, 1997, p. 60. Enquanto deus de Tebas, Ámon foi elevado à categoria de divindade do
reino egípcio durante o Império Novo; ele enriquece-se então, sob o nome de Ámon-Ré, das
características do deus-sol (Lurker, 1994, p. 43). No sincretismo greco-egípcio, Zeus foi assimilado a
Ámon (Husson e Valbelle, 1992, p. 292).
212 Para um melhor conhecimento sobre a iconografia (e tipologia) das lucernas votivas de Santa Bárbara
de Padrões, ver a obra completa de M. G. P. Maia e M. Maia (1997).
213 Viana e Ribeiro, 1957, pp. 20-30 e Ribeiro, 1960, pp. 4-24.
214 Lancel, 1975, p. 535.
215 Nas lucernas vindas de Itália, os motivos mais frequentes são o galo, as máscaras de comédia, a
galinha e seus pintainhos, os ramos de folhagem, a cabeça de veado, o escorpião, a águia, o leão, os
cavalos, as palmas, Mercúrio (Leglay, 1973, p. 534).
51
enchimento (símbolos solares, perlas e pequenas cruzes as decoram)216
, coincidindo
portanto, como já observaram M. G. P. Maia e M. Maia, com a iconografia dominante
de Hélios em Santa Bárbara (ver figs. 48 e 49). Para além das lâmpadas, é importante
observar que foram também encontrados neste mesmo santuário do “Luminaire” sete
discos de coiro recobertos de estanho representando a Lua ou o Sol217
(além de
numerosos fragmentos em bronze de disco achados no contacto mesmo da rocha218
).
Ou seja, tudo parece indicar a importância do deus-sol Hélios ou qualquer outra
divindade solar em santuários com grandes depósitos de lucernas votivas.
II) 3) c) A origem votiva das lucernas
Como já vimos, I. Tournie219
pensa que as oferendas em lucernas dos santuários
galo-romanos do Sudeste da Gália tomavam a sua origem numa prática tradicional
indígena, mais precisamente celta. No entanto, quando comparamos esta afirmação com
os estudos de outros autores, não voltamos a encontrar esta prática como sendo de
tradição celta, mas como uma das características rituais de outros povos do
Mediterrâneo. M. G. P. Maia e M. Maia220
acrescentam ainda que dois grandes
depósitos votivos de lucernas foram achados respectivamente em Israel e no monte
Ida221
em Creta. Ora, nunca foi detectada a presença de Celtas nesta parte do
Mediterrâneo222
.
Vários outros povos utilizavam efectivamente lucernas para fins religiosos,
como, por exemplo, os Romanos. Num decreto do imperador Teodósio (código
Teodosiano XVI, 10, 12), que nos informa sobre alguns dos principais actos religiosos
consagrados às divindades domésticas, temos a proibição de honrar um deus Lar pelo
fogo, um Génio pelo vinho, os Penates por perfume, nem acender lâmpadas, depositar
216
Leglay, 1973, p. 534.
217 Boucher, 1980, p. 509.
218 Boucher, 1977, p. 476.
219 Tournie, 2001, p. 182.
220 Maia e Maia, 1997, p. 21.
221 Existência na obra de M. G. P. Maia e M. Maia (1997, p. 21) de uma gralha, havendo «Monte Ita» em
vez de Monte Ida.
222Ver Rachet, 1994, pp. 202-203, 254-255, 722-723.
52
incenso ou suspender grinaldas de flores223
. Segundo M.-O. Laforge224
, as lâmpadas,
colocadas nos santuários ou nos larários domésticos dos Romanos, tinham antes de tudo
um papel religioso, ritual, e pode-se considerar que o facto de acender uma lucerna
constitui uma oferenda ao mesmo título que o incenso lançado sobre o lar225
. O costume
de colocar ou de suspender lâmpadas acesas junto das divindades explica o número por
vezes considerável de lucernas descobertas em escavações. Estas podiam ser igualmente
votivas.
Também J. Almeida226
confirma o emprego das lucernas pelos Romanos para
fins votivos e para cerimónias religiosas. Ele acrescenta também que para consultar
certos oráculos, queimava-se incenso perante a estátua do deus e acendiam-se lucernas
em sua honra, e as árvores sagradas, durante festas rústicas, eram decoradas com fitas e
nos ramos penduravam-se lâmpadas acesas.
Para J. Ruiz de Arbulo227
, para além dos Romanos, as religiões vindas do Egipto
e da Frígia conotavam-se igualmente com a luz votiva. Para além da presença de
lâmpadas se conotar com cerimónias nocturnas228
e ritos funerários229
, nos cultos
orientais a luz tomaria parte nos rituais sagrados que implicavam actos de ressurreição.
Como no caso de Ísis (exemplo das festas em Sais), os cultos de Cíbele e Átis adquiriam
um marcado carácter fúnebre implicando a procissão funerária de canóforos e
dendóforos e a vigília de Átis, nas quais a presença da luz por meio de archotes230
ou
223
Laforge, 2009, p. 120.
224 Laforge, 2009, p. 123.
225 A prática quotidiana no culto doméstico dos Romanos consistia em gestos rituais: rezar e cantar,
acender lâmpadas, queimar incensos, pendurar grinaldas, coroas e trazer oferendas, sem esquecer a
obrigação de pureza para comparecer diante dos deuses (Laforge, 2009, p. 119).
226 Almeida, 1952, p. 90.
227 Ruiz de Arbulo, 1996, pp. 120, 123.
228 Exemplo de certos ritos agrários em honra da divindade Deméter celebrados de noite com archotes
(Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120).
229 A iluminação do cortejo fúnebre nos Romanos (archotes e círios assinalavam o passo do cortejo até o
túmulo) recordava o costume ancestral de os celebrar de noite para evitar que magistrados ou sacerdotes
se cruzassem com o cortejo. Para além disso, as luzes situavam o defunto no ambiente nocturno próprio
da morte e de seus espíritos. O contraste vida/morte, assimilado com o de luz/obscuridade, contava com
as luzes como elemento simbólico de pertença a uma realidade distinta, mas também como um útil
apotropaico que acompanhava o morto no Além. Ou seja, as lâmpadas de azeite jogavam um papel
fundamental nos ritos funerários do quotidiano romano (Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120).
230 Os archotes eram igualmente muito usados nas cerimónias isíacas, onde desempenhavam um papel
importante (Maia e Maia, 1997, p. 56).
53
lucernas231
era imprescindível. O autor acrescenta ainda que a luz e a cremação de
essências eram elementos igualmente indispensáveis nos rituais egípcios, quer de Ísis,
quer de Serápis – já os Gregos antigos tinham notado esta importância simbólica da luz
nos cultos do Delta, com os relatos de Heródoto sobre a festividade das lâmpadas
(lychnokaie) em Sais232
.
Também J. Almeida233
confirma igualmente a importância da lâmpada acesa nas
cerimónias religiosas dos Egípcios, dando como exemplo as procissões isíacas em que
era levada à frente uma lâmpada de ouro em forma de barca, com as figuras de Ísis,
Serápis, Ptah, a cabeça de Hélios, entre outras.
M. G. P. Maia e M. Maia234
, por sua vez, informam sobre um fragmento da lei
que regulava o funcionamento do santuário de Ísis e Serápis em Priene235
, onde era
comunicado a obrigação de o sacerdote fornecer uma quantidade fixa de azeite e duas
lucernas para a celebração da lampadeia, em honra de Ísis.
Por fim, resta o mitraísmo, utilizando igualmente nos seus templos (Mithraea)
lucernas com fins religiosos, colocando-as em círculo à volta da imagem de Mitra236
.
Apesar de incluídos no Império Romano, podemos notar que todos os depósitos
votivos de lucernas que observamos até agora se situam na zona de influência da orla
mediterrânica, e não foi achado nenhum depósito contendo uma grande quantidade de
lucernas ex-votos nas regiões mais interiores do Império, como por exemplo, no caso
das terras interiores da Gália, fora da antiga província da Narbonense. Todos estão
localizados em áreas que sofreram fortes influências de Fenícios, Cartagineses e
Gregos, o que permite reforçar a hipótese de uma origem oriental deste ritual da luz
votiva, como afirmar igualmente uma possível transmissão feita, senão pelos Fenícios
ou Cartagineses, muito provavelmente pelos Gregos.
231
Nilsson relacionava as lucernas com usos orientais e egípcios frente ao carácter helénico dos archotes
(Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120).
232 Almeida, 1952, p. 19.
233 Almeida, 1952, pp. 19, 90.
234 Maia e Maia, 1997, p. 22.
235 Existência na obra de M. G. P. Maia e M. Maia (1997, p. 22) de uma gralha, havendo «Pirene» em vez
de Priene.
236 Maia e Maia, 1997, p. 23.
54
Tomando-se como exemplo o caso dos santuários de Lachau e de Lardiers,
sabemos que nos Alpes Maritimes, pela sua situação geográfica, na charneira entre a
Europa céltica e um mundo mediterrâneo portador das influências etruscas, fenícias,
gregas e romanas, esta região se tornou uma terra de passagens e de encontros culturais
mas igualmente, por causa do seu relevo, um lar preservado para a religião indígena.
Situados na parte meridional do maciço, este território, através de uma abertura para o
litoral, estava aberto às influências exteriores, fazendo com que ao lado dos antigos
cultos indígenas, coabitassem novas devoções e especialmente cultos gregos, adoptados
ao contacto das feitorias gregas de Nice e de Antibes237
. As primeiras manifestações
discerníveis de uma integração de áreas cultuais específicas em habitats agrupados do
Sudeste da Gália, parecem ligadas à presença de elementos mediterrânicos, em relação
com as implantações coloniais gregas de Marselha (como um dos factores)238
. A
diversidade e a complexidade das correntes culturais regionais desta época tiveram
inevitáveis consequências nas modalidades das práticas religiosas. Este encontro entre a
religião alpina e as religiões grega e romana produziu fenómenos diversos que dão
conta da dinâmica interna da aculturação. De facto, segundo a sua sensibilidade, suas
tradições, e a variedade e precocidade dos contactos exteriores, os povos alpinos
responderam diferentemente às proposições culturais gregas e romanas239
. No caso dos
Vocontii, resultou portanto num acto votivo muito específico – a oferta em grande
quantidade de lucernas votivas para uma determinada divindade.
II) 4) Mitra
P. Brázia240
observa que desde cedo se manifestou na Península Ibérica, durante
a época romana e em parte associada aos cultos dos Iberos, uma certa tendência para a
valorização cultual de um elemento astral: o Sol ou a Lua. Por via de uma interpretatio,
temos em seguida uma associação do astro rei ao culto de Apolo, deus condutor do
237
Se a cultura greco-romana se difundiu rapidamente, é igualmente por causa da extraordinária
capacidade de adaptação dos Gauleses, reconhecida aliás por Júlio César (Tournie, 2001, p. 184).
238 O outro factor é o fenómeno de “proto-romanização” precoce que intervém próximo do litoral e no
baixo vale do Reno desde a segunda guerra púnica (Arcelin et al., 2003, p. 174).
239 Tournie, 2001, pp. 171, 176-177, 184-185, 188 e Arcelin et al., 2003, pp. 174, 191.
240 Brázia, 2011, p. 65.
55
carro solar, mas igualmente a Mitra.
De facto, o deus persa Mitra, deus do bem e criador da luz, responsável pelo
destino e pela ordem celeste, e divindade que ilumina e que guia os homens na luta
contra as trevas, era frequentemente associado ao Sol, a Hélios. Para além disso, o seu
culto comportava a dialéctica dos pares celestiais Sol-Lua/Hélios-Selene, o princípio
feminino e nocturno que se contrapunha ao do masculino e diurno.241
Ora, no santuário de Santa Bárbara de Padrões, vários indícios se conotam com
esta antiga divindade iraniana.
Em primeiro lugar, temos as influências dos principais deuses venerados nas
grandes cidades de Emerita Augusta, Pax Iulia ou Myrtilis, importantes pelo seu
estatuto administrativo ou proximidade em relação à pequena estação viária de Arandis.
Ora, sabemos da existência do culto ao Invictus Deus tanto na capital da Lusitânia,
Mérida, como sobretudo na capital do conuentus pacensis (e possível sede
administrativa dos Aranditani), Beja. Nesta última cidade foi encontrada uma lápide que
testemunha a existência de um edifício, studium, e de uma confraria bracarense
(sodalicium bracarorum). No entanto, a inscrição não é clara e coloca-se a dúvida se
não se referirá ao Sol (Hélios) ou a alguma outra divindade solar.242
Em segundo lugar, P. Brázia243
destaca a representação da figura de Hélios em
58 exemplares244
de lucernas do depósito votivo de Santa Bárbara, a divindade mais
representada e interpretada neste caso como uma alusão ao deus persa Mitra.
Em terceiro lugar, sabemos da dupla importância da água e do fogo245
no culto
do Invictus Deus. No caso do primeiro desses elementos, havia a consagração da água
nas cerimónias ou o ritual do lauacrum que lavava o misto das suas culpas. A
implantação dos santuários fazia-se nas proximidades de um rio ou em ligação com um
dispositivo de alimentação artificial nas termas públicas. No caso de não haver nenhuma
ribeira vizinha que pudesse facilitar as operações de culto, tínhamos a presença de
241
Brázia, 2011, pp. 44, 47-48, 65.
242 Brázia, 2011, pp. 64, 168, 171.
243 Brázia, 2011, p. 64 (P. Brázia cita a obra de J. Encarnação, «Aspectos da Religiosidade Vernácula na
Hispania Romana» in Hispaniae – Las províncias hispanas en el mundo romano, 2009, p. 470).
244 Na obra de P. Brázia (2011, p. 64), temos uma gralha no número das lucernas com a figura de Hélios,
aparecendo um total de 48 em vez de 58 (ver Maia e Maia, 1997, pp. 44, 51-55).
245 O fogo revestia um carácter sagrado nos antigos Iranianos, construindo em alturas maciços altares de
fogo. Conhece-se igualmente alguns templos do fogo (Rachet, 1994, p. 911).
56
tanques ou recipientes diversos246
. Ora, o nosso santuário possui efectivamente tanques
e o de Peroguarda situa-se nas proximidades imediatas de uma ribeira.
Relativamente à luz votiva, sabemos que se colocavam, nos Mitreus, lucernas
em círculo à volta da imagem de Mitra247
.
No entanto, outros indícios vêm contradizer esta ligação com Mithra.
Sabemos desde logo que os Mithraea eram muitas vezes um edifício semi-
subterrâneo248
, sendo uma religião de mistérios muito restrita (somente para os
homens), fazendo do local de culto um lugar estritamente reservado aos iniciados de
Mitra e escondido dos olhares dos passantes e curiosos. Para além disso, as oferendas
privadas não eram solicitadas e recebidas sem restrições249
.
O vestígio mais remoto da devoção ao deus persa na Hispânia data somente de
155 d. C. (uma inscrição de Emerita Augusta), e tudo indica que a penetração deste
culto tenha sido um processo de difusão contemporâneo e quase em simultâneo por todo
o Ocidente, em meados do século II d. C., no qual se tenham privilegiado os núcleos
urbanos mais importantes, colónias e sedes de conuentus250
. Ora, o santuário de Santa
Bárbara de Padrões já existia há muito tempo, datando de meados do século I até finais
do século III d. C.251
, e não de «meados do século II ou mesmo do século III» como
indicado na obra de P. Brázia252
. Para além disso, as lucernas votivas de Santa Bárbara
com a representação da divindade solar têm uma cronologia que se inicia muito antes do
período que abrange a segunda metade do século II e do século III: segundo M. T.
Amaré Tafalla253
, o grande número de paralelos de Hélios abarca todo o século I d. C. e
a primeira metade do século II, com sobrevivências posteriores, sendo mais frequente
entre os anos 90 e 140; no caso de Santa Bárbara, é no século I d. C. que registamos
246
Turcan, 2004, p. 259.
247 Maia e Maia, 1997, p. 23.
248 Silva e Calado, 2005, p. 241.
249 Burkert, 2003, p. 13.
250 Brázia, 2011, p. 54
251 Maia e Maia, 1997, pp. 16, 18, 22.
252 Brázia, 2011, p. 64.
253 Citação de M. G. P. Maia e M. Maia da obra de M. T. Amaré Tafalla, Lucernas Romanas de la Rioja,
Logroño, 1987 (Maia e Maia, 1997, p. 51).
57
uma apetência da iconografia das lucernas votivas por temas mitológicos e astrais254
.
Por fim, M. G. P. Maia e M. Maia255
interpretam a iconografia das 58
representações da divindade solar, não como uma alusão a Mitra, mas simplesmente
como o próprio deus Hélios. Esses mesmos autores salientam somente uma observação
de H. B. Walters256
de que Hélios e Selene eram temas favoritos talvez como referência
ao poder iluminante das lucernas, o que conferiria a estas representações um simples
papel de alusão, retirando-lhes quase todo o significado religioso.
II) 5) Divindades alexandrinas
II) 5) a) As lucernas e os santuários dos deuses
egípcios
P. Bruneau257
, analisando um fragmento de disco representando uma Ísis
Pelagia, achado no Serapeu C de Delos, relembra o papel cultual e votivo das lâmpadas
nos santuários dos deuses egípcios. Para reforçar a sua afirmação, ele acrescenta que
este facto se encontra atestado nas cidades da Grécia e Magna Grécia de Erétria (na ilha
de Eubeia do mar Egeu)258
, Filipos259
, Pompeia260
e no santuário de Delos261
(J. Ruiz de
254
Maia e Maia, 1997, p. 44.
255 Maia e Maia, 1997, pp. 51-55.
256 Citação da obra de H. B. Walters, Catalogue of the greek and roman lamps in the British Museum,
London, 1914, p. XXIX (Maia e Maia, 1997, p. 54).
257 Bruneau, 1961, pp. 435-446.
258 A cidade estava situada na costa ocidental da ilha, a uma vintena de quilómetros a Sudeste de Cálcis.
Mencionada por Homero, Erétria atinge o seu apogeu nos séculos IV e III a. C., dominando uma grande
parte da ilha e conhecendo uma grande actividade monumental. Saqueada pelos Romanos em 198 a. C., é
reedificada mas perde sua importância (Rachet, 1994, pp. 332-333).
259 A cidade de Filipos está situada na grande via romana Egnatia que ligava Dyrrachium (Durazzo) na
Albânia a Bizâncio, na fértil planície de Datos, a aproximadamente 15 quilómetros de Kavalla na Trácia
(Grécia). Fundada cerca de 360 a. C. por colonos vindos de Tasos, foi conquistada por Filipe II de
Macedónia em 356 a. C., substituindo o seu antigo nome “Krenides” pelo seu. Depois, os Romanos
fizeram passar nela a via Egnatia e estabeleceram nela veteranos, dando-lhe o estatuto de colónia sob o
nome de Colonia Augusta Julia Philippensis. A cidade desenvolveu-se sob a égide romana até o século
VI d. C. No flanco da colina onde a cidade foi edificada (no topo encontrava-se a acrópole), encontrou-se
um templo consagrado às divindades egípcias (Rachet, 1994, pp. 753-754).
260 Pompeia era uma cidade com origem grega (no sítio de aldeias oscas). De facto, sabemos que os
Helenos estabeleceram uma colónia em Cumes (a Norte de Nápoles, a pouca distância do mar), no século
VIII a. C. Cumes, fundada por colonos vindos da ilha de Eubeia, e em particular das cidades eubeias de
Cálcis, Erétria, e de uma povoação chamada Kymé que deu seu nome grego à nova cidade (Cumae em
58
Arbulo acrescenta também nesta lista a cidade portuária de Óstia262
). Em Delos, para
além das mais de três mil e quinhentas lucernas antigas guardadas no museu do sítio
arqueológico (poucas são de época romana, mas sobre algumas daquelas figuram temas
raros como uma Ísis Pelagia), sabemos dos achados de lucernas no Serapeu C deste
mesmo santuário. Voltamos a encontrar portanto locais de culto que utilizavam lucernas
com fins votivos mas também cultuais, consagrados neste caso aos deuses egípcios e
instalados na antiga área de influência, ou até no próprio território dos Gregos.
Para além da observação de P. Bruneau, J. Ruiz de Arbulo263
acrescenta ainda
que fora do âmbito fechado dos santuários egípcios, são diversas as referências de festas
específicas nos rituais de Ísis e Serápis que giram em torno das lâmpadas de azeite. A
componente trágica do mito de Ísis – o assassinato de seu esposo Osíris por Set e sua
busca posterior – foi rememorado numa festa egípcia nocturna (Lychnokaie) cuja
importância e popularidade foi transmitida por Heródoto (II, 62) na cidade de Sais264
.
Ritual que sabemos mantido até a Antiguidade Tardia. Esta festa tem sido considerada
como uma “noite dos mortos” em que as famìlias buscavam na luz das lâmpadas a
protecção contra as forças hostis (espíritos e demónios) das trevas. Rituais semelhantes
deviam repetir-se em festas de nomes sempre explícitos, como as lychnapsia celebradas
em Agosto ou o nyktelion de Ísis. Ou seja, para além de um papel cultual e votivo, as
lucernas eram ainda utilizadas em grande abundância em festas nocturnas, dedicadas
aos mesmos deuses alexandrinos.
latim), tornou-se numa feitoria que exerceu nos dois séculos seguintes uma verdadeira hegemonia numa
parte da Campânia, acabando por ter uma grande influência no mundo itálico (Rachet, 1994, pp. 258,
768). Relativamente ao Iseu de Pompeia, R. Mar refere-se a uma despensa na sala dita “do Larário” que
continha, para além de 36 vasos para abluções, 60 lucernas (Mar, 2001, texto da fig. 62 p. 319).
261 Delos apresenta os mais importantes vestígios do culto egípcio no mundo grego: na “plataforma dos
deuses estrangeiros”, a meio da encosta do Cinto, eleva-se o grande conjunto dos santuários egípcios,
Serapeum C, Iseum, Anubieion, que se juntaram desde o século III a. C., sem os destronar completamente,
às duas pequenas capelas primitivas, o Serapeu A e o Serapeu B (Lévêque, 1987, p. 151).
262 Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120.
263 Ruiz de Arbulo, 1996, pp. 120-121.
264 A conotação fúnebre de Osìris estava bem representada na sua “paixão” que tinha lugar em Sais, no
santuário de Atena-Neith onde havia, diz Heródoto (II, 171), «um lago ao pé do qual mima-se à noite a
paixão deste deus que os Egípcios chamam mistérios» (Préaux, 1978, p. 656).
59
II) 5) b) Os contactos greco-egípcios
Segundo S. Morenz265
e sobretudo P. Lévêque266
, sabemos que as relações entre
o Egipto e a Grécia se tornaram particularmente intensas uma vez que o Egipto, sob a
dinastia dos Ptolemeus, foi governado pela Macedónia. A política e a economia fizeram
então vir multidões de Gregos e uma classe bilíngue formou-se a partir de elementos de
uma e outra nacionalidade. Trocas intelectuais de toda a natureza começaram
inevitavelmente. Mas temos de admitir a possibilidade de relações mútuas entre as
religiões egípcia e grega logo antes do início do helenismo.
Desde Heródoto, se não for desde Homero, que os Gregos sabem que o Egipto é
uma terra de maravilhas, berço de toda a sabedoria, pátria dos deuses mais antigos. Os
reis macedónicos irão ali perpetuar a tradição do culto oficial, tornando-se autênticos
sucessores dos Faraós. Tentaram igualmente criar um deus de império que seria
aceitável mesmo para os Egípcios – criação do culto de Serápis, para reunir Gregos e o
povo do Nilo267
. Para além disso, houve um esforço para operar sínteses entre deuses
egípcios, gregos e orientais; os hinos gregos de Isidoro, no santuário faiúnico de
Madinet Madi, fazem de Ísis uma deusa universal, que todos os povos da terra adoram
sob nomes diferentes. No entanto, as primeiras manifestações do culto egípcio no
mundo grego parecem ser muito modestas: no Pireu, em Delos, na Erétria, pequenas
comunidades egípcias trouxeram, no fim do século IV ou no princípio do III a. C., o
culto da sua deusa, Ísis, culto este que, nos primórdios, se limitava provavelmente a
círculos restritos e a capelas bastante medíocres. Mas, nos séculos II e I a. C. – e da
época imperial – assistimos a uma notável florescência dos cultos egípcios nos meios
gregos, revestindo-se de um carácter oficial: Atenas, a Eubeia, a Beócia, Delos e Tera, a
Tessália e a Macedónia, assim como um certo número de cidades da Ásia Menor –
Esmirna, Éfeso, Magnésia do Meandro, Priene –, possuem no século II a. C., e por
vezes mesmo mais cedo, um culto oficial dos deuses egípcios. Estes últimos estão
representados por Ísis, Serápis (a quem os santuários e as festas do culto egípcio na
Grécia vão buscar muitas vezes o nome) e Anúbis (identificado com Hermes),
constituindo uma tríade análoga às famílias divinas dos templos egípcios. Harpócrates,
265
Morenz, 1977, pp. 312, 314-317.
266 Lévêque, 1987, pp. 151-152.
267 Papel de deus do império que tinham outrora ocupado entre um povo homogéneo Hórus, Ré ou Ámon
(Morenz, 1977, p. 315).
60
o deus-menino, aparece igualmente nas dedicatórias gregas, por vezes, aliás, sob o
aspecto adulto de Hórus, tal como Osíris, cuja identidade essencial com Serápis é
provavelmente desconhecida268
.
O mecanismo da difusão e do desabrochar do culto egípcio na Grécia a partir do
século II a. C. suscitou interpretações diversas: intervenção directa dos soberanos
Lágidas, favorecendo a introdução da sua religião egípcia no mundo egeu para aí
aumentar a sua influência; ardor propagandista do clero egípcio; apelo vindo dos
Gregos, seduzidos pelos rituais estranhos de um culto novo, o qual, mesmo ao
helenizar-se, conserva incontestavelmente, em solo grego, uma parte da sua
originalidade. A força de glória que parece possuir nesta época a religião de Ísis e de
Serápis, largamente adoptada pelos Gregos do Egipto, o intenso fervor testemunhado
pelos seus fiéis, explicam talvez em grande parte a sua expansão e o seu sucesso no
mundo grego269
.
II) 5) c) O caso dos Vocontii
II) 5) c) i) A transmissão da luz votiva
Quais eram portanto as oferendas votivas de tradição celta, e as de origem
oriental, para as potências celestes no Sudeste da Gália?
Tomamos como exemplo dois antigos lugares votivos de altura, pré-romanos,
que foram descobertos no departamento do Var270
.
O primeiro lugar, dito “La Peiro de l’Autar” (Cuers), apresenta-se como um
local sagrado que utilizava o espaço à volta de um imponente bloco rochoso, em forma
de mesa. A pequena eminência de instalação está a pouca distância de um habitat
fortificado que parece contemporâneo, datando do século II ou I a. C. Recolheu-se um
lote de várias dezenas de peças metálicas, 14 argolas, 18 pequenas placas, 3 rodelas e
pedaços de chapa em bronze recortados. A maior parte são voluntariamente perfuradas.
268
As divindades do ciclo de Osìris, sua esposa Ísis, seu filho Harpócrates (o “Hórus criança”) e seu fiel
servo Anúbis acabaram por ser as únicas divindades egípcias adoptadas pelas populações helénicas
(Cumont, 1906, p. 95).
269 Entre os numerosos deuses egípcios, os Gregos, desde a época arcaica, tinham dado uma importância
especial ao casal Ísis e Osíris (Burkert, 2003, p. 9).
270 Ver Arcelin et al., 2003, pp. 178-179.
61
Esses elementos de forma, como o modo de furo271
, são característicos dos depósitos de
vários lugares votivos de altura no Sudeste gaulês.
O segundo local de culto do Var é o dos Cannebières (Correns), situado num
maciço, isolado por valezinhos encaixotados das alturas das circunvizinhanças, onde
vários habitats da Idade do Ferro foram inventariados. Os objectos recolhidos
compõem-se de 58 moedas (com uma repartição cronológica que vai do século V a. C.
ao século IV da nossa era), 72 tentos em chumbo, ornados de cruz ou de estrela, 2 em
prata, 78 pregos em ferro, 1 ponta de seta em bronze e 140 recipientes em cerâmica de
dimensões reduzidas (essencialmente de época romana). O símbolo recorrente gravado
nos tentos, a estrela ou os raios da roda do “carro solar”, sugere uma área de depósitos
consagrada a Táranis/Júpiter.
Ou seja, tal como os colonos Gregos ensinaram aos Iberos da Hispânia os
ritos272
com que se venerava na metrópole a Ártemis Efésia273
, os Helenos, instalados
em feitorias ou colónias em Nice, Antibes e Marselha, poderiam ter igualmente
transmitido o acto votivo de oferecer lucernas a certos tribos Celtas da Gália do Sudeste,
como os Vocontii, que muito provavelmente viram em Serápis uma divindade solar ou
celeste, imitando este ritual para o seu deus indígena que tinha características
semelhantes ao deus alexandrino.
De facto, e como já observou P. Brázia274
, já no processo de fusão de Ápis com
Osíris, o grande deus alexandrino acabou por absorver as peculiaridades solares do deus
de Mênfis275
. E durante o período romano, tal como Mitra, ele foi assimilado ao Sol276
,
271
O furo, modo de neutralização da peça ou traço de uma antiga fixação sobre madeira para exposição,
torna-se uma marca ritual ligada ao gesto de oferenda de objectos metálicos ou de pedaços recortados e
reutilizados. Esses modestos presentes deviam ser simplesmente postos à vista ou suspendidos no lugar
sacralizado (Arcelin et al., 2003, p. 178).
272 Provavelmente o ritual das danças, muitas delas de carácter obsceno, que existiam em todos os
santuários das deusas da fecundidade: Esparta, Elis, Corfú, Éfeso, Magna Grécia, Sicília, etc. (Blázquez,
1975, p. 38).
273 Blázquez, 1975, p. 38.
274 Brázia, 2011, pp. 163-164.
275 O touro Ápis (Hapi), a “alma magnìfica de Ptah”, era reconhecido desde os tempos mais remotos
como um princípio procriador relacionado com o deus solar. Quando um touro Ápis morria, outro era
imediatamente engendrado por um raio do Sol (López, 1993, p. 40). No Império Novo do Egipto, Ápis
chegou a ser equiparado à grande divindade solar de Heliópolis, Áton, passando também a ser
representado com o disco solar (Brázia, 2011, pp. 163-164). Também o duplo carácter de Osíris,
simultaneamente deus da fecundidade e dono do mundo infernal, o identificava igualmente com o Sol
62
adquirindo o título de Kosmocrator277
. É sob Nero (imperador romano de 54 a 68 d. C.)
que surgem as primeiras moedas que associam Hélios com Serápis278
, e no “Serapeu de
Cânopo” da Villa de Adriano (Tivoli), Serápis foi representado como uma divindade
solar despertando do lódão primordial279
. Podemos acrescentar por fim as lucernas
hispanienses de Emerita Augusta (Mérida), Los Santos de Maimona (Badajoz), Tocina
(Sevilha), Hispalis (Sevilha) e Vrso (Osuna, Sevilha)280
, representando no disco um
busto de Serápis-Hélios (com 6 raios), representação figurativa aliás muito frequente em
África281
.
Além de Hélios, Serápis havia sido igualmente identificado com Júpiter. J. L.
Vasconcelos282
vem confirmar esta afirmação referindo-se ao autor latino Tácito
(Histor., IV, 84) que, ao falar das tradições em voga no Egipto a respeito de Serápis,
declara que uns o presumem Esculápio, outros Osíris, outros Júpiter, outros, finalmente,
Plutão. O arqueólogo português acrescenta ainda que o epìteto “altìssimo” de Serápis
numa inscrição, em grego e latim, situada numa das fragas do santuário de Panóias
(Vila-Real, Trás-os-Montes), aparece igualmente nas inscrições aplicado principalmente
a Zeus, e, por fim, o deus alexandrino usurpa também outros epítetos que são habituais
de Júpiter como o(ptimus) m(aximus). C. Préaux283
e M. Lurker284
confirmam
igualmente esta assimilação, fazendo de Serápis o “dono do universo” tal como Zeus.
Todas as principais características de Serápis285
serão reunidas pelo imperador
que, durante sua corrida diurna fertilizava a terra e que, à noite, percorria os espaços subterrâneos
(Cumont, 1906, p. 109).
276 Le Glay, 1995, p. 64.
277 Brázia, 2011, p. 43.
278 Brázia, 2011, p. 44.
279 Grenier, 1989, pp. 938-943.
280 Na lucerna de Vrso, ao lado de Serápis-Hélios (o autor J. Alvar que estudou essas lucernas não refere
desta vez o número de raios), temos também um busto de Ísis (Alvar, 2012, p. 78).
281 Alvar, 2012, pp. 54, 55, 58, 59, 76, 78.
282 Vasconcellos, 1913, pp. 345-346.
283 Préaux, 1978, p. 652.
284 Lurker, 1994, p. 199.
285 F. Cumont diz que ao deus alexandrino são atribuídas de preferência as funções de Zeus, de Plutão ou
de Hélios (Cumont, 1906, p. 109).
63
Juliano (reinou entre 361 e 363 d. C.), descrevendo o deus alexandrino como a fusão
entre Zeus, Hades e Hélios286
. Devemos salientar também a inscrição de Dessau
(Inscriptiones Latinae selectae, nº 4396) referido por J. L. Vasconcelos287
, consagrada a
J(uppiter)-O(ptimus)-M(aximus)-Sol-Sarapis, lavrada numa pedra em cujo lado direito
se esculpiu um touro preparado para o sacrifício.
Por sua vez, Ísis tinha sobretudo uma conotação com a Lua288
e, tal como
Serápis ou Anúbis289
possuía um carácter fúnebre290
.
Mas, perguntamo-nos agora o porquê desta tradição aparecer somente na época
romana imperial, não havendo qualquer espécie de lâmpadas nos santuários indígenas
anteriores à criação da Narbonense.
Sendo as lucernas romanas produtos comerciais de grande mercado291
,
acessíveis a todas as bolsas292
, e estando num período de paz (a pax romana, sobretudo
a partir do imperialismo de Augusto), permitindo o desenvolvimento do comércio
marítimo e da comunicação por via terrestre através da ampliação da rede viária (com o
consequente desenvolvimento das trocas comerciais), esses factores permitiriam sem
dúvida aos indígenas adquirir em grande quantidade e a baixo preço lâmpadas
romanas293
, bem como as fabricar eles próprios294
, para os seus fins religiosos.
286
Brázia, 2011, p. 158.
287 Vasconcellos, 1913, p. 519.
288 A deusa do Nilo foi identificada com Luna-Selene, Afrodite e Deméter (Maia e Maia, 1997, p. 56 e
Lévêque, 1987, pp. 154-155).
289 Deus com cabeça de chacal, patrão no antigo Egipto dos mumificadores (López, 1993, p. 99).
290 A identificação de Ísis com a Lua e com Perséfone – e também com Deméter – fê-la brilhar e reinar
sobre os infernos (Burkert, 2003, p. 30).
291 As lucernas eram de uso corrente, produto de uma indústria comum, triviais e baratas, de curta
existência pela sua fragilidade (Almeida, 1952, p. 8).
292 Maia e Maia, 1997, pp. 24 e 44.
293 Com a fundação de grandes fábricas, a produção em larga escala reduziu o preço por unidade.
Tomando como exemplo a África romana, sabemos da existência de grandes firmas de cerâmica que
negociavam por grosso e exportavam enormes cargas de lucernas. Deste comércio por grosso, existiam
igualmente intermediários na colocação de certos artigos num determinado mercado. Certas olarias
forneciam especialmente algumas áreas determinadas, enquanto outras vendiam para todo o lado. Foi no
reinado de Trajano (imperador romano de 98 a 117 d. C.) que se deram profundas alterações na
distribuição dos centros industriais do Império. Surgem em todas as províncias novas indústrias ou
desenvolvem-se as locais, e de tal modo que os seus produtos vão competir com os de origem italiana
(Almeida, 1952, pp. 45, 48, 50, 62).
64
Mas, podemos igualmente colocar a hipótese de uma transmissão não por
colonos gregos durante a época pré-romana, mas através do contacto com templos
egípcios instalados em algumas cidades da Narbonense a partir do principado de
Augusto. De facto, temos conhecimento que muitos emigrantes orientais vinham
procurar fortuna nesta nova província da Gália. As relações de Arles com Alexandria
eram frequentes, e sabemos igualmente que uma colónia de Gregos egípcios,
estabelecida em Nîmes por Augusto, trouxe aí os deuses da sua pátria295
. Os indígenas
da zona podiam ter assistido às cerimónias espectaculares dos cultos egípcios296
e terem
sido influenciados pela propaganda dos seus sacerdotes, ou até eventualmente observar
o comportamento religioso de certos colonos de Gregos egípcios, oferecendo perante os
seus olhos, em vez de moedas ou estatuetas, lucernas votivas.
II) 5) c) ii) Os espelhos votivos
Continuando com os Vocontii, é interessante observar também que junto à
prática oriental de oferecer lucernas, neste caso, a uma divindade solar, havia
igualmente a dos espelhos votivos que, por sua vez, conotavam-se com uma divindade
lunar297
.
Nos santuários de Lachau e de Lardiers298
, foram efectivamente encontrados
dezenas de espelhos circulares metálicos de pequena dimensão299
(para além disso,
294
A abundância da matéria facilitava a multiplicação das oficinas, e uma fábrica de lucernas não
necessitava de instalações grandiosas nem de numeroso pessoal. Os modelos copiavam-se com facilidade
dos tipos romanos, quer evidencie traços originais, quer seja cópia servil (Almeida, 1952, p. 50).
295 Cumont, 1906, p. 102.
296 Os espectáculos processionais (com danças, cantos, música), os cortejos de iniciados e de sacerdotes
vestidos de linho branco, os ritos de purificação, os preceitos cultuais de abstinência e de castidade
impressionaram sem dúvida os passantes (Le Glay, 1995, pp. 44, 62).
297 Ver Barruol, 1985, pp. 343-373 e Barruol, 1987, pp. 415-418.
298 Podemos incluir também o santuário de Alba-la-Romaine (Ardèche), do lado Oeste da zona dita “Cité
des Basaltes”, por apresentar ao lado de uma cova com lucernas votivas, outro depósito votivo
compreendendo, não espelhos, mas vasos em cerâmica, contendo cada um algumas estrelas em metal
(Ayala, 1990, pp. 161- 162). Ora, as estrelas representam um motivo muito recorrente nas figurações de
Selene/Luna, como se pode ver no repertório iconográfico das lucernas de Santa Bárbara, o que nos leva à
hipótese das estrelas do depósito votivo de Alba Helvorum se conotarem efectivamente com uma
divindade lunar, sobretudo quando estão incluídas no mesmo espaço sagrado que as lucernas votivas.
299 Espelhos circulares clássicos, em metal prateado ou estanhado, ou ainda de bronze brunido, de fraco
diâmetro e sem a menor decoração nem inscrição, de um tipo assinalado em outros santuários da Gália
(Barruol, 1985, p. 371).
65
temos igualmente uma centena de pequenos fragmentos de espelhos procedentes de
Lardiers300
), incluindo quatro armações de espelhos em chumbo (tipo evoluído e raro;
pequena placa quadrada, furada de um esvaziamento circular para a colocação de um
disco de vidro) comportando inscrições em grego301
, colocados sob a invocação de
Selene, divindade grega da Lua302
.
A Lua303
era muitas vezes figurada em inscrições sob a forma de um disco ou de
um crescente lunar, e o espelho apresentava-se como um emblema que lhe pertencia304
.
Irmã do Sol (Hélios)305
, representada sob os traços de uma jovem e bela mulher, ela era
no mundo clássico, tal como o seu irmão, objecto de devoções essencialmente pessoais
– invocada em particular pelos amantes – e sobretudo venerada nos meios populares e
rurais. Astro das noites, a Lua evoca também a luz nas trevas (lucifera306
), mas uma luz
que é somente o reflexo daquela do Sol.
P. Brázia307
salienta a dialéctica que temos entre pares celestiais Sol-Lua, em
que o princípio feminino e nocturno (Lua) se contrapõe ao princípio masculino e diurno
(Sol). M. G. P. Maia e M. Maia308
, por sua vez, recordam a associação de Selene com
bustos de Hélios309
.
300
Rolland, 1962, p. 656.
301 Esses espelhos datam do século II ou III d. C., fabricados na officina de Quintos Licinios Touteinos,
plumbarius e specularius, situada em Arles (Barruol, 1985, pp. 363-364).
302 Os espelhos de Quintos Licinios Touteinos foram colocados sob a invocação e a protecção de
divindades especificamente gregas: Afrodite e Selene (Barruol, 1985, p. 372).
303 A deusa romana da Lua era Luna, cedo assimilada a Diana. Onde quer que o seu nome apareça, em
especial nos poetas, traduz simplesmente Selene (Grimal, 2009, p. 286).
304 O espelho (speculum), na origem, era utilizado para o estudo dos astros e, por conseguinte, utilizado
em adivinhação. Segundo uma lenda, Pitágoras teria possuído um speculum mágico que apresentava à
face da Lua para ver nele o futuro (Barruol, 1985, p. 371). No mundo hitita, o espelho é próprio das
deusas do destino que lêem o futuro num espelho de água (Rachet, 1994, p. 628).
305 Selene podia ser considerada também como filha do deus-sol Hélios, percorrendo o céu num carro de
prata puxado por dois cavalos (Grimal, 2009, p. 414).
306 Lucifera é o nome latino de Fósforo que é o nome com que por vezes se designa a Estrela da Manhã,
astro que anuncia a Aurora e traz a luz do dia, geralmente chamada Heósforo (Grimal, 2009, pp. 178, 203,
286).
307 Brázia, 2011, p. 65.
308 Maia e Maia, 1997, pp. 65-66.
309 Em termos epigráficos, podemos tomar como exemplo as duas lápides com inscrição referidas por J.
L. Vasconcelos (Corpus, II, 258 e 259), encontradas próximo de Colares, consagradas, uma ao Sol e à
Lua (Soli et Lunae), e a outra ao Sol eterno e à Lua (Soli aeterno Lunae) (Vasconcellos, 1913, pp. 239-
240, 364).
66
Para G. Barruol310
, os tais espelhos consagrados (a Selene) sublinham e
confirmam a contribuição orientalizante e o sincretismo religioso da época romana desta
área da Narbonense311
.
Concordando com a afirmação deste autor sobre uma origem orientalizante dos
espelhos votivos, relembramos que a deusa egípcia Ísis312
, durante a época helenística e
segundo a interpretatio graeca, foi assimilada a Selene313
. Para além disso, através dos
estudos de M. Lurker314
, sabemos também que, no Egipto, desde ao menos o Império
Médio, o disco solar serviu de modelo ao suporte do espelho e que no decurso de certos
ritos egípcios, algumas deusas, como Hátor e Mut, recebiam dois espelhos em oferenda.
Ora, a deusa Mut, esposa de Ámon, tornou-se o “olho de Ré” aquando da elevação do
seu esposo ao nível do deus-sol, um atributo que também irá ser atribuído a Ísis315
. Por
seu lado, a deusa do céu Hátor, também conhecida por “Olho do Sol”316
, foi considerada
nos tempos antigos como mãe do deus solar Hórus (o Sol e a Lua eram os seus dois
olhos), até que Ísis a substitui neste papel (Hórus tomou então a forma de Harpócrates, o
“Hórus menino”), acabando esta última por estar estreitamente ligada a Hátor sob o
Império Novo, tomando até emprestado os seus ornamentos e atributos característicos,
como o toucado composto dos cornos de vaca com disco solar, ou o sistro, instrumento
de música de percussão317
. Ou seja, o espelho votivo acaba por não ser alheio a deusa
310
Barruol, 1985, p. 373.
311 É interessante notar a proposta de G. Ayala sobre a loja nº 5 do centro político e religioso da cidade de
Alba, no Sudeste da Gália, interpretando esta última como sendo na realidade uma pequena capela,
baseando-se, entre outros indícios, na descoberta de uma armação de espelho em chumbo juntamente com
numerosas pequenas lucernas, com um repertório iconográfico composto de divindades lunares ou da
figura de Cupido (Ayala, 1990, pp. 158-159, 189).
312 Plutarco via em Ísis uma divindade lunar. É interessante notar também que Osíris, na sua qualidade de
senhor do mundo inferior, representava o Sol nocturno; queria-se mesmo o reconhecer na Lua, as fases
deste astro sendo interpretadas como a correspondência cósmica da morte e da ressurreição (Lurker,
1994, pp. 125, 167 e López, 1993, p. 97).
313 Lurker, 1994, pp. 137-138 e Barruol, 1985, p. 373.
314 Lurker, 1994, pp. 111-112, 118-119, 125, 144, 146.
315 Para o povo egípcio, Ámon-Ré, esposo de Mut, era comparado ao Bom Pastor que cuida do seu
rebanho, era antes de tudo “o deus que atende às súplicas”. Todos acudiam a Ámon buscando protecção.
(López, 1993, pp. 153-154). Mais tarde, Serápis, esposo de Ísis, irá substituir o deus soberano Ámon
(Morenz, 1977, p. 315). Os Gregos remeterão nele suas esperanças de salvação sob todas as formas
(Préaux, 1978, p. 651).
316 López, 1993, p. 31.
317 No nomo II do Alto Egipto, Hátor acabou por ser a esposa de Hórus, viajando cada ano desde Dendera
até Edfu para se reunir com o seu esposo (“Festa da boa reunião”) – carregava-se a estátua da deusa numa
67
Ísis.
Devemos acrescentar também que Hátor, no período helenístico, foi igualmente
identificada com a deusa do amor Afrodite318
. Ora, sabemos que esta deusa grega
recebeu no período romano espelhos como ex-votos319
, que era honrada no grande porto
de Marselha320
e que se podia conotar com a Lua321
, até ser identificada com uma deusa
lunar como era Caelestis. De facto, a deusa Celeste (Caelestis), sucessora da Astarte
semítica, isto é, a deusa Tanit322
, era uma divindade da Lua que foi assimilada a outras
deusas clássicas, tais como Diana, Vénus, Urânia, Fortuna, Cíbele, pelo que se tornou
panthea e uma «verdadeira emula feminina de Serápis»323
. Entre os seus atributos
simbólicos figurava o disco de Vénus e a meia-lua324
.
Para além dessas deusas, outras divindades orientais se podiam conotar com os
espelhos, como a deusa frígia Cíbele. De facto, sabemos que nos Hititas o espelho era
um atributo da deusa Kubaba, divindade de origem certamente suméria, que se tornou a
Cìbele (fr. “Kybèle”) do mundo greco-romano325
, referida igualmente como uma das
identificações de Caelestis.
Ou seja, várias possibilidades podem ser apresentadas em termos da origem
oriental dos espelhos como ex-votos, mas, sendo a lucerna votiva de fundo muito
provavelmente egípcio transmitido aos indìgenas “Voconces”, tendemos mais para uma
mesma origem no caso da oferta votiva de espelhos, remontando talvez esta tradição,
consoante as provas arqueológicas de espelhos consagrados, à antiga deusa egípcia
barca que remontava o rio até Edfu (López, 1993, p. 28). Esta cerimónia utilizando uma barca lembra a de
navigium Isidis dedicada a Ísis protectora dos marinheiros, exibindo-se lucernas em forma de pequenos
barcos (Maia e Maia, 1997, p. 56) e fazendo deslizar nas águas do mar um navio consagrado a deusa
nilótica (Cumont, 1906, p. 118).
318 López, 1993, p. 32.
319 Ver Barruol, 1985, pp. 343-373 e Barruol, 1987, pp. 415-418.
320 Barruol, 1985, p. 370.
321 Afrodite era apelidada de Lucifera como a Lua, e como Luna partilhava a mesma virtude fecundante,
estimulando a reprodução de todos os seres animados (Barruol, 1985, p. 370).
322 Na época romana, Tanit (deusa da Lua dos Cartagineses) foi substituída em Cartago primeiramente por
Iuno, e Iuno Caelestis, e depois por Caelestis (Vasconcellos, 1913, p. 356).
323 Vasconcellos, 1913, p. 357.
324 Vasconcellos, 1913, pp. 356-357.
325 Rachet, 1994, p. 628.
68
Hátor, cujo ritual votivo se transmitiu depois para as deusas gregas Selene e Afrodite,
três divindades que foram assimiladas pela grande deusa nilótica Ísis326
. Para além
disso, relembramos as relações frequentes que existiam entre a cidade de Arles, berço
da oficina que fabricava os espelhos votivos consagrados a Selene, e a cidade de
Alexandria.
Teríamos portanto nos santuários indígenas de Lachau e de Lardiers a presença
de um casal divino celeste composto por uma divindade solar (a principal) e outra lunar,
recebendo cada uma delas um certo tipo de ex-voto de inspiração oriental e consoante
os atributos característicos da divindade consagrada: a luz votiva para o Sol; o speculum
para a Lua.
II) 5) d) A toponímia de “Santa Bárbara”
A toponímia de “Santa Bárbara” vem confirmar a presença clara dos deuses
alexandrinos no nosso santuário. De facto, os atributos e características da mártir de
Nicomedia, enumerados por C. Lapparent327
, adequam-se perfeitamente aos dos deuses
egípcios Serápis e Ísis.
Em primeiro lugar, devemos relembrar que Ísis surge invariavelmente associada
a Osíris, e que este último foi substituído no período greco-romano por Serápis que lhe
tomou as suas características328
. De facto, Ísis é a deusa que os Ptolemeus escolheram
para constituir com Serápis o casal divino protector da nova dinastia329
. Muitas vezes o
culto da grande deusa do Egipto surge associado ao de Serápis330
, fazendo com que as
duas divindades apareçam conjuntas em representações figurativas ou na epigrafia. No
Museu do Louvre por exemplo, J. L. Vasconcelos331
afirma existir duas lucernas em que
326
Ísis era igualmente identificada com Vénus, como Harpócrates o era com Eros (Cumont, 1906, pp.
110-111). De notar a existência, no repertório iconográfico das lucernas votivas de Santa Bárbara, de 28
peças com a figuração de Eros/Cupido (Maia e Maia, 1997, pp. 48-50).
327 Lapparent, 1926, pp. 5-61.
328 Brázia, 2011, p. 37.
329 Leclant, 1981, p. 44.
330 Maia e Maia, 1997, p. 22.
331 Vasconcellos, 1913, p. 349.
69
os bustos das duas divindades andam juntos332
, existindo igualmente outros
monumentos com o par divino no Museu de Alexandria. Por outro lado o mesmo autor
acrescenta também a existência de inscrições em que Serápis coexiste com Ísis: Serapi
conservatori et Isidi ceterisq(ue) dis deabus(que) immortalibus333
. O mesmo fenómeno
pode-se aplicar para a Hispânia, onde os testemunhos mais antigos de época romana
põem em evidência que a chegada de Ísis nesta província é igualmente acompanhada do
seu paredro Serápis334
. Podemos de facto observar a presença deste par divino no
templo M de Emporiae335
(Ampúrias, Gerona) ou na cidade de Pax Iulia, onde as duas
divindades viveram lado a lado336
.
Vejamos agora as equivalências entre os atributos de Santa Bárbara e os dos
deuses alexandrinos.
Começamos primeiro com a conotação da mártir de Nicomedia com o raio,
tornando-se a protectora contra as trovoadas, sendo igualmente apelidada a santa do
fogo. Já vimos que esta ligação com o fogo do céu podia-se reportar ao deus celta
Táranis (ou qualquer outra divindade indígena do raio) que, através de uma interpretatio
romana, se torna Júpiter (Zeus). Ora, sabemos que Serápis foi igualmente assimilado a
Zeus, bem como a Hélios, o deus Sol337
.
Por se ter refugiado num rochedo aquando da sua perseguição pelo seu pai, a
santa tornou-se a padroeira dos mineiros e dos trabalhadores numa pedreira. Este
padroado é particularmente comum nos países detentores de várias minas, onde alguns
poços são baptizados com o nome de Santa Bárbara. Na entrada, ou no fundo da cova,
podemos encontrar às vezes um altar, muitas vezes uma imagem, que protege contra o
grisu e contra os desabamentos338
. Ora, sabemos que Osíris, deus egípcio do mundo
332
Relativamente às lucernas, podemos referir ainda as de Padrão (Portalegre), Badajoz, Emerita Augusta
(Mérida), Santa Amalia (Badajoz), La Bienvenida (Ciudad Real), Vrso (Osuna, Sevilha), Malaca
(Málaga), Cacabelos (Leão), e talvez de Tróia (Grândola) e Vila do Bispo (Algarve), representando no
disco a tríade Ísis, Serápis e Harpócrates (Alvar, 2012, pp. 40, 41, 45, 52, 55, 59, 78, 92, 135).
333 Dessau, Inscript. selectae, II, nº 4383.
334 Alvar, 2012, p. 20.
335 Alvar, 2012, pp. 95-100.
336 Maia e Maia, 1997, pp. 22-23.
337 Préaux, 1978, p. 652 e Cumont, 1906, p. 109.
338 Lapparent, 1926, pp. 8-9, 27-28.
70
inferior, foi substituído por Serápis no período greco-romano, apoderando-se este
último das suas características infernais339
, sendo depois identificado por Tácito
(Histor., IV, 84) com Plutão340
. Este atributo de deus infernal torna portanto Serápis
dono do mundo inferior e das riquezas do subsolo, tal como o era Plutão o “Possuidor
de riquezas” – o epíteto fazia alusão à riqueza inesgotável da terra, tanto da terra
cultivada como das minas que encerra341
. Ísis acabou igualmente por se tornar uma
divindade infernal (identificada com Perséfone)342
. A benevolência das divindades
alexandrinas incluía portanto a riqueza e os negócios de dinheiro. Aelius Aristide (XLV,
18) proclamava que «mesmo a aquisição da riqueza é um dom de Serápis», e inscrições
votivas chamam Serápis o “Salvador que dá riquezas” (Sôtèr Ploutodotès). Pode-se até
lhe ser grato por uma redução de impostos343
. Importante é notar igualmente que na
aldeia de Santa Bárbara de Padrões não existe nenhuma mina, e que só a 6,6 km em
linha recta temos a presença das minas de Neves Corvo.
O costume de meter na água, a 4 de Dezembro, grãos de trigo ou ramos de
cerejeira, que devem germinar ou florir no dia de Natal em presságio de uma boa
colheita, atesta também a influência atribuída a Santa Bárbara sobre os bens da terra344
.
Voltamos a encontrar aí os atributos do deus alexandrino, símbolo da fertilidade
agrícola345
, em que a sua função de “doador de trigo” foi exprimida pelos Gregos
através do kalathos que lhe orna a cabeça346
. De facto, Serápis foi assimilado como
sabemos a Osíris, o deus da fecundidade dos campos347
, em que o seu aspecto vegetal
era simbolizado pelo grão348
, identificado portanto directamente com os cereais, que são
339
Préaux, 1978, p. 652 e Brázia, 2011, p. 37.
340 Vasconcellos, 1913, pp. 345-346.
341 Grimal, 2009, pp. 189-190, 380.
342 Burkert, 2003, p. 30.
343 Burkert, 2003, p. 19.
344 Lapparent, 1926, p. 30.
345 Brázia, 2011, p. 42.
346 Préaux, 1978, p. 652.
347 Préaux, 1978, p. 652.
348 Segundo M. Lurker (1994, p. 166), o grão conotava-se com a penetração na terra (enterramento), o
descanso nas trevas (mundo inferior) e a germinação da nova semente (ressurreição).
71
espalhados, depois reencontrados349
. Também Ísis, assimilada a Deméter, foi
considerada uma deusa agrária, símbolo da fecundidade da terra e garante das
colheitas350
.
C. Lapparent refere-se em seguida a um quadro muito interessante da escola
florentina (infelizmente não diz a data nem o nome do pintor da obra em questão),
apelidado de “Túmulo de Santa Bárbara”. Na pintura, podemos observar, segundo a
descrição do autor, o cenotáfio da santa com lâmpadas a brilhar por cima dele e, em
toda a volta, podem-se ver coxos, cegos, que vinham implorar a sua cura351
. Este quadro
revela-nos portanto o poder que tinham as relíquias da santa em curar os enfermos. Este
poder reencontra-se tanto em Serápis352
como Ísis353
, os dois identificados com
Asclépio (o Esculápio dos Latinos), o deus da Medicina354
. De facto, os deuses
alexandrinos eram especializados na cura, com um sucesso considerável – os iatreia,
“retribuições para cura”, devem ter sido uma fonte assaz importante de rendimentos
para os santuários355
. Para além disso, reencontramos no quadro da santa a presença de
lâmpadas, objectos de luz imprescindíveis nos cultos egípcios.
Sendo padroeira dos moribundos e preservando do golpe da morte repentina, os
devotos de Santa Bárbara, para não acabarem na impenitência e privados dos
sacramentos, não faltavam em colocar sob sua protecção a expressão de seus últimos
votos356
. Ora, Ísis tinha igualmente autoridade para prevenir uma morte iminente e
outorgar uma vida nova, novae salutis curricula (mas desta vez tratava-se da vida no
nosso mundo; durante a Antiguidade pagã, a maneira de pensar a vida, a felicidade e a
349
Burkert, 2003, p. 78.
350 Grenier, 1989, p. 959.
351 Lapparent, 1926, pp. 45-46.
352 Segundo C. Préaux, Serápis era sobretudo um deus “curandeiro” cujos milagres explicam o seu imenso
sucesso no mundo helenístico (Préaux, 1978, p. 652).
353 Ísis ela mesma, entre outras identidades, é Hygieia, a Saúde divinizada. A incubação era praticada nos
santuários de Ísis tanto como os de Asclépio (Burkert, 2003, p. 19).
354 Para Ísis: Burkert, 2003, p. 19; para Serápis: Brázia, 2011, p. 42, Lévêque, 1987, p. 153, Préaux, 1978,
p. 652 e Lello, Vol. II, p. 882.
355 Burkert, 2003, p. 19.
356 Lapparent, 1926, p. 15.
72
morte, era diferente da do Cristianismo357
), graças ao seu poder sobre o destino358
, o
fatum359
.
A mártir de Nicomedia é também patrona dos marinheiros360
, que pensam nela
quando vêem o fogo-de-santelmo361
na ponta dos mastros362
(na Antiguidade, o fogo-
de-santelmo era identificado com as entidades divinas dos Dióscoros363
). O caso da
aldeia de “Sainte-Barbe” em França, ao pé de Dieppedalle, nas cercanias de Ruão, deve
verosimilmente seu nome à devoção dos antigos pilotos364
. Ísis era igualmente, como já
observou P. Brázia365
, a protectora da navegação e dos marinheiros que a ela apelavam
aquando das intempéries366
, e Serápis foi também considerado como um deus da
navegação367
.
357
Os deuses orientais e seus mistérios não trazem uma reorientação da religião para preocupações do
Além. Nos olhos de um pagão, o Cristianismo era uma religião de túmulos, demasiado preocupado pela
morte e desvalorização moral (fr. “déchéance”). Nenhum dos mistérios pagãos jamais ensinou em
“morrer ao mundo”; nenhum processo era feito à laetitia vivendi. Nos mistérios, não havia fé dogmática
num triunfo sobre a morte como não havia desvalorização da vida (Burkert, 2003, pp. 32-33).
358 O destino, que no pensamento grego era absolutamente fora do poder dos deuses e tinha ameaçado
aqueles até na sua existência, é subordinado à direcção de Ísis (Morenz, 1977, p. 318). A salvação que ela
garante, aos navegadores, aos homens inquietos, aos mortos, deve-se ao seu poder de fazer triunfar a
ordem. E é sem dúvida também por essa razão que os Gregos a tomam por superior ao destino (Préaux,
1978, p. 659).
359 Burkert, 2003, p. 21.
360 Ver Lapparent, 1926, p. 22 e estampa p. 53.
361 Segundo uma descrição do século XIX, o fogo-de-santelmo tinha a forma de «línguas de fogo azuis e
brancas» que se erguia de objectos verticais (Compère, 1997, p. 72). É portanto um pequeno penacho
luminoso que por vezes se vê na extremidade dos mastros e vergas dos navios e que é devido à
electricidade atmosférica (Lello Universal, vol. I, p. 1027).
362 Lapparent, 1926, p. 24.
363 Os Dióscoros, protectores daqueles que vão sobre o mar, eram deuses luminosos que se acreditava por
vezes aptos em aparecer sobre a ponta dos mastros (Marcadé, 1952, p. 71). Chamava-se portanto
“Dióscoros” aos fogos-de-santelmo de duas pontas, que os marinheiros consideravam um presságio
favorável (Grimal, 2009, p. 123 e Garcia, 2000, nota 23 p. 65).
364 Lapparent, 1926, pp. 25-26.
365 Brázia, 2011, p. 38.
366 A soberania da grande deusa do Egipto sobre as cheias do Nilo é um dos antecedentes egípcios à
figura helénica da Ísis Pelagia (ou Pharia ou Euploia). Celebrava-se em sua honra as Ploiaphésia, festa
da retomada da navegação, e as aretologias dizem-na dona das águas e do mar (hino de Kymé) e
inventora da navegação (hinos de Kymé e de Ios). O hino de Andros precisa que se trata da invenção da
vela. A Ísis Pelagia venerada em Delos e em numerosos portos do mundo grego foi a divindade a quem
os marinheiros salvos do naufrágio ofereciam ex-votos. São aí traços estritamente gregos (Bruneau, 1961,
pp. 443-444 e Bruneau, 1963, pp. 305-306).
367 Montero, 2002, p. 129.
73
Virgem estudiosa que se iniciou muito rapidamente às verdades da fé cristã e
que teve a intuição do mistério da Trindade, nenhum outro, entre os eleitos, fez prova de
maior vivacidade na instrução das verdades sublimes da doutrina evangélica que a nossa
Santa Bárbara. É esta sede em conhecer os grandes mistérios da fé que valeu à mártir de
Nicomedia o título de protectora dos livreiros e também dos escolares368
. Ora, sabemos
que tanto uma parte do culto de Ísis como de Serápis369
era considerada igualmente
como um culto de mistério, em que a iniciação permitia um aprofundamento ou
extensão de uma piedade preexistente, por uma nova intimidade com o divino
(revelação ao iniciado dos “segredos” relativamente à divindade e sua mitologia), em
formas ao mesmo tempo conhecidas e novas370
. A propaganda isíaca adoptou a
perspectiva grega, como o prova o que chamamos as aretologias de Ísis, nas quais esta
deusa371
, entre outras actividades civilizadores, é proclamada fundadora, em todo o
mundo, dos mistérios. Os santuários de Ísis começaram a oferecer iniciações pessoais,
no modelo das de Elêusis e de Dioniso, num estilo perfeitamente adaptado às formas
egípcias de ritual e de mitologia372
. Para além do culto de mistério, não esquecemos
também a vertente erudita dos sacerdotes egípcios e o caso do Serapeu de Alexandria,
célebre pela sua biblioteca.
A virgem de Nicomedia, «belle comme la pleine lune»373
, santa esposa
(espiritual) do Cristo crucificado e ressuscitado, tornou-se muito rapidamente numa das
santas mais honradas, mais invocadas e mais populares. Por toda a parte, foram-lhe
dedicados santuários. Esta sua reputação universal encadeou uma produção literária
considerável, tornando-se num tema de um grande número de “Paixões gregas” ou
sírias, de Acta, de Vitae, de Sermones. A liturgia latina consagrou-lhe mais de duzentas
e cinquenta peças. Os dramaturgos religiosos extraíram da sua vida e martírio
368
Lapparent, 1926, pp. 28-29, 60.
369 Diz-se nas Metamorfoses do Asno de Ouro de Apuleio que Lúcio (Lucius Apuleius), o protagonista do
romance, depois de ser iniciado nos mistérios de Ísis, fora pela deusa avisado de que deveria iniciar-se
também nos de Osíris ou Serápis, deuses que Apuleio confunde (Vasconcellos, 1913, p. 351). Na obra da
Chave dos sonhos de Artemidore de Daldis (II, 39), é mencionado os “mistérios” de Serápis, Ísis, Anúbis
e Harpócrates, entre outros (Burkert, 2003, p. 90 e nota 15 pp. 148-149).
370 Burkert, 2003, p. 56.
371 A assimilação de Ísis a Deméter fazia dela uma deusa dos mistérios ctonianos (Leclant, 1981, p. 44).
372 Burkert, 2003, p. 46.
373 Lapparent, 1926, p. 14.
74
numerosos Mistérios374
. Por sua vez, Ísis, identificada como já vimos com a Lua que era
representada sob os traços de uma jovem e bela mulher, esposa (mas num sentido mais
mundano) de um deus que foi assassinado e ressuscitado depois, tornou-se também a
deusa mais popular na Antiguidade, e seus mistérios penetraram na totalidade do mundo
antigo375
. A sua grandeza deu lugar à composição de aretologias376
e as peripécias da
paixão e da ressurreição de seu esposo Osíris377
foram reproduzidas (cerimónias
miméticas) em muitas cidades do Egipto, sobretudo Abido378
(representações sagradas
análogas aos mistérios da Idade Média)379
, e até, quase nas mesmas formas, em
Roma380
, com uma maior intervenção de Ísis381
.
Por fim, desta crença em Santa Bárbara, nasceu em Faouët, na antiga diocese de
Cornouailles (França), uma das mais célebres peregrinações à mártir de Nicomedia. Na
noite de 3 a 4 de Dezembro, as circunvizinhanças de Faouët animam-se de uma maneira
extraordinária: «dans les châtaigneraies, les feuilles mortes froufroutent sous les pas;
des galoches ferrées résonnent sur le sol gelé. Comme des feux follets, des lumières
voltigent çà et là par les chemins creux. Des ombres, de toutes parts, surgissent et se
rassemblent sur le plateau, comme pour quelque nouvelle chouannerie. Bientôt, les
vitraux s’illuminent: les cierges de l’autel se sont allumés. La clochette tinte, le
374
Lapparent, 1926, pp. 13-15, 30-36, 61.
375 Lurker, 1994, p. 30.
376 Bruneau, 1961, p. 443.
377 Conservou-se o ritual: o deus saindo do templo tombava sob os golpes de Set; em seguida, simulava-se
à volta de seu corpo as lamentações fúnebres e inumava-se segundo os ritos; por fim, Set era vencido por
Hórus, e Osíris, a quem a vida foi devolvida, regressava ao seu templo após ter triunfado da morte
(Cumont, 1906, p. 119).
378 Desde o início a cidade de Abido tornou-se o principal centro funerário do antigo Egipto. Os reis das
duas primeiras dinastias (tinitas) tinham sua capital em This (Tinis) e recebiam sepultura em Abido, que
era o cemitério da capital. Os túmulos destes reis achavam-se em Um el Gaab, ao pé da escarpa desértica,
donde se supunha ser o local do sepulcro de Osíris. Abido converteu-se no mais importante santuário do
deus no Egipto e o principal centro de peregrinação, eclipsando Busiris, a pátria de Osíris no Delta. Todos
desejavam ser enterrados em Abido ou colocar pelo menos um cenotáfio (López, 1993, pp. 98-99).
379 Em Sais houve também representações da “paixão” de Osìris, no santuário de Atena-Neith onde havia,
diz Heródoto (II, 171), «um lago ao pé do qual mima-se à noite a paixão deste deus que os Egípcios
chamam mistérios» (Préaux, 1978, p. 656).
380 Ísis, cheio de dor, procurava no meio das lamentações desoladas dos sacerdotes e dos fiéis o corpo
divino de Osíris, cujos membros tinham sido dispersados por Typhon. Em seguida, o corpo encontrado,
reconstituído, reanimado, era uma extensa explosão de alegria, uma jubilação exuberante que ressoava
dos templos e das ruas (Cumont, 1906, pp. 119-120).
381 Cumont, 1906, pp. 119-120.
75
sanctuaire s’emplit. Sur le parvis, les pèlerins s’agenouillent. Les prêtres reçoivent
l’aveu des fautes. A la messe de nuit en succède une autre, puis une autre encore.
Jusqu’au jour, la foule se presse à la sainte Table. Une dernière messe a lieu vers dix
heures. Mais, déjà, les coiffes blanches, les vestes de toile bise se sont égaillées dans la
campagne en murmurant l’invocation qui assure la bonne mort, qui preserve du
naufrage, de l’incendie et de la foudre: “Intron santez Barbon, pedit evi damp –
Madame sainte Barbe, priez pour nous!”»382
. Podemos notar nesta descrição de C.
Lapparent que a célebre peregrinação e missas dedicadas à santa de Nicomedia se fazem
exclusivamente durante a noite (até de manhã, com uma última missa às dez horas),
trazendo os numerosos peregrinos lâmpadas que lhes iluminam os passos até a igreja,
iluminada por sua vez à luz das velas do altar. Dentro do edifício de culto, os padres
recebem dos peregrinos a confissão das faltas e os devotos murmuram a invocação que
assegura a boa morte e livra do naufrágio, do incêndio e do raio. Esta peregrinação de
noite relembra em muito as festas nocturnas consagradas aos deuses alexandrinos
(particularmente Ísis), como a celebração da Lychnokaie, das Lychnapsia ou do
Nyktelion383
.
II) 5) e) Os tanques
Sabemos que nos santuários romanos existiam, defronte ao recinto do local de
culto ou no interior, poços ou ninfeus, que forneciam a água necessária para as abluções
rituais384
e para o culto385
.
Segundo M. Maia, os tanques de Santa Bárbara podiam ser na realidade parte de
uma estrutura balnear romana386
, relacionando-se com o culto das águas que aqui se
382
Lapparent, 1926, pp. 17-18, 22.
383 Ruiz de Arbulo, 1996, pp. 120-121.
384 Qualquer fiel devia observar um certo asseio ritual para “abordar” a divindade. Cìcero (Leg. II, 10, 24-
25) relembra que «a lei manda que se adora os deuses com pureza» (Laforge, 2009, nota 96 p. 112). Para
Macróbio (Sat. 3, 1, 6), antes de sacrificar aos deuses de cima há-de se purificar por uma ablução de todo
o corpo (corporis ablutione purgari), mas para sacrificar aos deuses infernais basta uma aspersão (Boëls-
Janssen, 2004, nota 19 p. 204).
385 Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62.
386 Maia, 2006, p. 41.
76
praticaria387
. Sabemos de facto que os Ninfeus388
eram geralmente anexos às termas389
,
nos jardins390
.
Relativamente aos santuários egípcios, W. Burkert391
relembra que a autêntica
tradição egípcia ligava Osíris e o Nilo, a água doadora de vida que seca pouco a pouco e
contudo regressa com a enchente do Verão. Nas cerimónias do culto de Ísis e de Osíris,
mostrava-se um vaso contendo a água do rio sagrado do Egipto, levado em procissão, e
uma espécie de enchente artificial do Nilo podia ser posto em cena nos locais de
culto392
. Por sua vez, J.-C. Grenier393
afirma que os santuários das divindades egípcias
implantados fora do Egipto possuíam acomodamentos hidráulicos que constituíam um
elemento essencial e indispensável. Canais interiores, tanques alimentados por cisternas
e aquedutos substituíam-se ao Nilo cuja água era indispensável para o exercício do culto
e o cumprimento dos ritos. Podemos tomar como exemplo o caso dos tanques cheios de
água dos Iseus de Baelo Claudia394
e Italica395
, ou, de grande cenografia, o complexo
acomodamento hidráulico do “Serapeu de Cânopo” da Villa de Adriano em Tivoli396
,
387
Maia e Maia, 1997, p. 22. M. Maia comunicou-me igualmente, durante as nossas conversas no Museu
da Lucerna, que nesta zona do Alentejo se podem encontrar muitas fontes de águas sulfurosas.
388 Um Ninfeu era um lugar consagrado às ninfas, divindades das águas e mais especialmente dos rios. Ao
longo do tempo, os templos que lhes eram dedicados tomaram a forma de um edifício de planta
geralmente circular, semicircular ou elíptica. Por vezes eram ornados de estátuas e de pinturas e tinham
no centro uma fonte (Silva e Calado, 2005, pp. 256-257).
389 As termas romanas podiam possuir múltiplos compartimentos: caldarium (banho quente), tepidarium
(banho tépido), frigidarium (banho frio), laconicum (banho quentíssimo), vaporarium (banho de vapor),
heliocaminus (banho de sol), apodyterium (vestiário), palestra (local de palestra e preparação), piscinas
para nadar (natationes), espaço de bebidas, etc. As mais completas tinham bibliotecas, salas de reunião,
lojas (Silva e Calado, 2005, p. 352).
390 Silva e Calado, 2005, p. 257.
391 Para esta afirmação, W. Burkert baseou-se na obra de R. A. Wild, Water in the Cultic Worship of Isis
and Sarapis, EPRO 87, Brill Academic Pub, Leyde, 1981 (Burkert, 2003, pp. 78, 100).
392 Na medida do possível, buscava-se reproduzir a imagem das simbólicas inundações periódicas do
Nilo, o que requeria uma instalação arquitectónica mais sofisticada (Mar, 2001, p. 325).
393 Grenier, 1989, pp. 960-961.
394 Ver Pelletier et al., 1987, pp. 65-105 e Pelletier et al., 1988, pp. 19-51.
395 Ver Alvar, 2012, pp. 60-61.
396 Ver Grenier, 1989, pp. 925-1019.
77
representando todos uma figuração do Nilo em enchente. Por fim, N. Genaille397
acrescenta a existência de outros tipos de tanques, como os de aspersão de rito grego,
localizados na entrada dos templos para a purificação dos fiéis antes do contacto com a
divindade (exemplo do santuário de Ísis em Pérgamo), e os de ablução, reservados aos
sacerdotes devido à sua localização junto do edifício sagrado, à direita da cella ou da
estátua (é bem conhecida a “pureza” dos ministros egípcios398
). O seu canal de
escoamento seria característico. O autor dá como exemplos plausíveis os templos
egípcios em Gortina399
(mas o meio de escoamento não é conhecido) e em Sábrata400
(dois extensos tanques alimentados por poços, com os seus orifícios de drenagem).
Pompeia seria de um outro tipo, com um largo recipiente de metal (hoje desaparecido).
Temos também o Serapeu de Alexandria, onde são discerníveis seis construções
destinadas às abluções. Por fim, em Coríntia, um compartimento onde se acumulava a
água dos telhados vizinhos foi interpretado da mesma maneira.
De salientar por fim algumas notas de Tertuliano (Bapt., 5, 1) a propósito de um
banho (lavacrum) nos cultos de Ísis e de Mitra401
.
Sendo Arandis muito provavelmente uma cidade-santuário e estação viária de
passagem obrigatória entre Pax Iulia e Ossonoba, o santuário dos Aranditani devia
397
Observações que resultam de uma recensão crítica do autor sobre a obra de R. A. Wild, Water in the
Cultic Worship of Isis and Sarapis, EPRO 87, Brill Academic Pub, Leyde, 1981 (Genaille, 1983, pp. 306-
307).
398 O ritual egípcio sempre atribuiu uma importância considerável à pureza ou ao asseio. Antes de
qualquer cerimónia, o oficiante devia submeter-se a abluções, por vezes a fumigações ou unções, impor-
se a abstinência de certas iguarias e a continência durante um certo tempo (Cumont, 1906, p. 111).
399 Cidade da antiga Creta, ela foi construída nas margens da ribeira Lethaios, ao pé de uma acrópole, nas
faldas do monte Ida (planície de Mesara). Segundo tradições divergentes, foi fundada por Minos, o que
lhe dá uma origem minoana, por Laconianos, ou ainda por Tegeatas. Iniciando seu reinado sobretudo no
século III a. C., tornou-se rival de Cnossos, acabando por ser promovida, aquando da dominação romana,
como capital da ilha. O monumento mais importante é o templo de Apolo Pythios, situado no coração da
cidade. Na vizinhança, encontrava-se também um templo dedicado a Ísis e Serápis e um ninfeu do II/IV
século d. C. (Lello, vol. I, p. 1147 e Rachet, 1994, pp. 384-385).
400 Cidade romana da Tripolitânia (Líbia), a 64 km a Oeste de Trípolis, teria sido fundada, segundo a
tradição, por Fenícios de Cartago. O núcleo púnico da cidade, datando do século II a. C., foi substituído
em seguida por uma praça de mercado e, no século I d. C., por um verdadeiro forum. Em toda a volta
deste último erguem-se ainda alguns edifícios como o templo de Liber Pater, o templo de Serápis e uma
basílica. Nos séculos II e III, as obras de ampliação e melhoramento do foro e de seus edifícios incluíram
a reconstrução do templo de Serápis. No bairro Este, dois outros edifícios de culto foram também
edificados, um deles dedicado a Ísis (Rachet, 1994, pp. 802-803).
401 Burkert, 2003, p. 100.
78
representar um centro religioso de certa importância para esta zona do Baixo Alentejo,
confirmado pela enorme quantidade de lucernas votivas que foram encontradas na sua
favissa, indiciando a visita de numerosos peregrinos. A organização do complexo
sagrado e sobretudo o espaço ao seu dispor tenderia para um santuário semelhante ao de
Chastellard de Lardiers, e não num tipo de local de culto inserido numa grande
urbanização como foi o caso do Serapeu de Óstia ou do Iseu de Pompeia. O temenos
devia antes abranger seguramente toda a área do topo da colina (dos tanques para Norte
ao depósito votivo para Sul) e até partes das vertentes da mesma, sobretudo de nascente
para poente onde se encontrou maior número de fragmentos de cerâmica de construção.
Em termos dos tanques propriamente ditos e a sua eventual relação com uma
estrutura balnear, sabemos que o recinto sagrado do Serapeu de Óstia incluía um
edifício termal típico do século II d. C., conhecido por termas da “Trinacria”402
(ver fig.
50), e caracterizado, numa primeira fase, por uma distribuição tripartida: um caldarium,
sala quase quadrada com três aluei (banheiras) inseridas em nichos rectangulares e
acessíveis por dois largos degraus; um tepidarium, sala rectangular, sem piscina mas
dotado de hipocaustum (por detrás desta sala existia um pequeno pátio de serviço que
permitia alimentar os praefurnia); por fim, uma grande sala tripartida com pilares,
originariamente fria, provavelmente o frigidarium (acabou por ser transformada numa
sala temperada). Em planta, estas três salas estavam organizadas seguindo um simples
esquema linear com a única precaução de ter as portas não alinhadas para evitar as
correntes de ar, e a fachada do edifìcio estava voltada para a “via del Serapide”. Para
Sul do caldarium situava-se a zona de serviços com a parte técnica da instalação403
,
conservando-se a base circular da caldeira de água quente e o acesso à galeria de
alimentação dos praefurnia.
Ora, os nossos tanques, pelas características que apresentam404
e pela
inexistência de vestígio de hipocausto, não parecem representar piscinas ou aluei de um
provável edifício balnear, mas pertenceriam antes ao complexo do principal edifício de
culto. Apoiando-se na hipótese de um santuário de culto egípcio e do exemplo do ninfeu
em exedra do “Serapeu de Cânopo” da Villa de Adriano em Tivoli (ver fig. 51), os
402
Mar, 2001, pp. 71-75.
403 Este estabelecimento termal possuía uma complexa maquinaria para a extracção de água desde o
subsolo, baseada num sistema de noras de tracção humana (Mar, 2001, p. 328).
404 Ver descrição no capítulo I) 3) b).
79
indícios parecem apontar para uma representação artificial da enchente do Nilo na
forma, não de um simples tanque como o do Iseu de Belo, mas, muito mais elaborado,
que se aproxima dos ninfeus com frons scaenae405
, em que a cena teatral seria neste
caso o templo406
que se apresentaria do lado Sul, fazendo frente aos tanques e alinhado
com eles. Um ninfeu de frons scaenae comportava de facto um tanque superior (no
nosso caso seria o tanque mais a Sul), que interpreta um pouco o mesmo papel que o
reservatório, mas que é visível, dominando o (ou os) tanque(s) de (fr.) “puisage” que ele
contribui em alimentar. Para além disso, este tipo de ninfeu dividia-se em múltiplas
variantes.
A orientação Sul-Norte dos tanques vem reforçar esta hipótese de uma
representação artificial do Nilo. De facto, sabemos que ao contrário dos templos
romanos que estavam voltados para poente (sentido Este-Oeste), segundo os preceitos
de Vitrúvio407
, os templos construídos no Egipto ficavam por sua vez de frente às
margens do rio Nilo408
. Ora, tendo o grande rio do Egipto um sentido Sul-Norte, e
conotando-se o deus Osíris (mais tarde Serápis409
), bem como a deusa Ísis, à nascente
de onde jorrava as águas do rio Nilo410
, o templo egípcio representaria como que a
405
Ver Ginouvès, 1998, p. 98.
406 O templo egípcio era concebido como um cenário a partir do qual um oficiante podia dirigir-se a uma
comunidade de devotos reunidos na area sacra (Mar, 2001, p. 318).
407 Para Vitrúvio, se nenhuma razão o impedir e se houver total desobstrução, o templo e a estátua da
cella devem estar voltados para a vespertina região do céu, de forma que os que se aproximam da ara para
imolar ou fazer sacrifícios olhem para a parte do céu nascente e para a imagem que estiver no templo
(Maciel, 2009, pp. 152-153). Por seu lado, R. Ginouvès, no seu estudo sobre os templos greco-romanos,
afirma que o templo se abria normalmente para Este, para permitir aos primeiros raios do Sol nascente
despertar a estátua da divindade. Ele nota no entanto que outras orientações são possíveis, ligadas às
exigências religiosas, ou simplesmente por razões práticas (Ginouvès, 1998, p. 35 e nota 27).
408 Maciel, 2009, p. 153.
409 Serápis, assimilando alguns traços de Osíris, torna-se ele mesmo o senhor do Nilo e esposo de Ísis
(Lurker, 1994, p. 199).
410 Antes de chegar à primeira catarata, o Nilo abria caminho entre as ilhas de Bigeh, Konosso e Filas
(onde Ísis era soberana); a meio dos rápidos aparece a ilha de Sehel e logo depois a ilha de Elefantina
onde a corrente se apazigua (López, 1993, p. 25). Para J.-C. Grenier, a caverna-nascente de onde, segundo
a tradição indígena, saía a enchente do Nilo, situava-se na ilha de Bigeh, lugar do túmulo local de Osíris –
o Abaton (Grenier, 1989, p. 961). O Nilo era aliás chamado a “efusão de Osìris” (Lurker, 1994, p. 166).
Para J. López, os remoinhos do Nilo, “a água pura de Bigeh”, surgiam na dita ilha de uma das duas fontes
da inundação (López, 1993, pp. 110-111). Os outros autores referem-se à ilha principal da nascente como
sendo a de Elefantina (Boussac, 1914, pp. 29-30). De facto, nos antigos cultos que se celebravam nesta
ilha, o deus principal era Khnum “o senhor da catarata”, guardião das fontes do Nilo (López, 1993, p. 27).
Ísis, por sua vez, era a própria terra do Egipto que a enchente, imagem de seu esposo Osíris, vinha
fecundar. No entanto, algumas tradições atribuíam a Ísis o papel de provocar as cheias. De facto, existia
uma Ísis-Sothis, a estrela cuja aparição anunciava a chegada das águas (Grenier, 1989, pp. 963-964),
exercendo esta deusa sua soberania nas inundações do Nilo (Bruneau, 1963, p. 306).
80
origem mesma da enchente do rio sagrado, situando-se portanto por detrás do tanque
nilótico e com uma orientação igualmente Sul-Norte. Reencontramos esta orientação no
Serapeu de Adriano representando um autêntico “Egipto” sob a enchente do Nilo. O
Serapeum C e Iseum de Delos411
, bem como o Iseu de Belos412
, tinham igualmente esta
mesma orientação413
, mas nesses templos temos de ter em conta, para o primeiro caso, a
topografia do terreno onde foi instalado o santuário de Delos, no segundo caso, a
disposição do forum de Baelo Claudia. Por sua vez, o Iseu de Pompeia414
e o Serapeu
de Óstia apresentavam uma orientação completamente diferente, o primeiro com um
sentido Sudoeste-Nordeste, o segundo abrindo para Este. Esses últimos casos podem ser
explicados devido à sua inserção numa grande urbanização. De facto, segundo a obra de
R. Mar para o caso de Óstia415
, o marco jurídico que rodeava qualquer actividade urbana
(complexo sistema de normas e regulações) afectou o processo de construção do
Serapeum. Desde a obtenção do solo para construir todo o conjunto, até a organização
da obra ou a manutenção dos edifícios uma vez inaugurados, tiveram que respeitar as
condições previstas pela lei para este tipo de edifícios. Muito provavelmente as normas
da urbanização, conjugadas com o espaço que foi possível adquirir para o santuário (a
forma da parcela e suas dimensões), influenciaram a orientação do edifício de culto.
Baseando-se no exemplo da gruta-fonte do “Serapeu de Cânopo” da Villa de
Adriano, representando a imagem figurada da caverna-nascente da primeira Catarata do
Egipto, de onde saía as cheias do Nilo416
, o nosso tanque mais a Sul podia igualmente
simbolizar esta dita Catarata, criando também, através de uma altura ligeiramente
superior, uma pequena cascata de forte caudal, vertendo-se a água no tanque intermédio
para terminar o seu percurso no tanque mais a Norte417
. Eventualmente as bases em
411
Mar, 2001, fig. 61 p. 317.
412 Pelletier et al., 1988, fig. 2 p. 24.
413 Mais precisamente, um sentido Sul-Norte para o Iseum de Delos, e um sentido Norte-Sul para o
Serapeum C de Delos e o Iseu de Belos.
414 Mar, 2001, fig. 62 p. 319.
415 Mar, 2001, p. 76.
416 Grenier, 1989, p. 963.
417 É interessante observar a este respeito o conjunto de elementos religiosos (contexto isíaco e devoção a
Diana) da Casa di Loreio Tiburtino ou Casi di D. Octavio Quartio em Pompeia (II, ii, 2), comportando
uma capela, atribuída a Ísis por um certo número de autores, um euripo evocando o Nilo, e um pequeno
templo dedicado a Diana. Este último está colocado logo por cima do grande canal (ergue-se mais
81
opus incertum dos tanques intermédio e setentrional representariam respectivamente os
suportes de uma estátua, erguida no meio da cascata, e de um templete com colunas de
ladrilho, construído mais abaixo.
Claro que essas propostas para a interpretação dos tanques de Santa Bárbara são
meramente hipóteses, e não podemos descartar também por completo a suposição de M.
Maia sobre uma provável estrutura balnear ou de um Ninfeu, até se encontrarem provas
arqueológicas ou epigráficas indubitáveis sobre a verdadeira função deste
acomodamento hidráulico. Mesmo assim, a possibilidade de serem tanques nilóticos
num contexto egipcizante apresenta-se como um facto seguro, fazendo com que, e como
veremos mais adiante para os outros templos egípcios, o principal edifício de culto do
nosso santuário estaria localizado, não debaixo da igreja gótica como se pensava418
, mas
em frente aos ditos tanques, para Sul, na zona do cemitério419
.
Por fim, para além dos tanques, é preciso relembrar também que em toda a
aldeia de Santa Bárbara de Padrões se descobriu uma grande quantidade de pedaços de
opus Signinum que foi reutilizado como material de construção. Temos aqui mais
testemunhos arqueológicos da forte presença da água nesta estação romana, sobretudo
quando sabemos da probabilidade de ter existido na mesma altura uma barragem420
que
permitiria o fácil abastecimento de água.
II) 5) f) O significado da luz votiva em contexto
egípcio
Podemos concluir que os indícios apresentados por Santa Bárbara de Padrões
tendem para um santuário dedicado aos deuses alexandrinos, tal como foi o caso na
cidade de Emporiae (Ampúrias, Gerona). Não podemos descartar no entanto a
possibilidade da prevalência de um sobre o outro, isto é, de termos na realidade um
Iseu, ou um Serapeu. De facto, podemos notar que, por um lado, os atributos de Santa
exactamente no cruzamento dos dois braços do euripo), cujo nìvel inferior imita uma espécie de “gruta”
sagrada (Laforge, 2009, pp. 41-42 e nota 117).
418 Ver Bernardes, 2006, p. 160.
419 É interessante observar que o nível do cemitério fica pelo menos a dois metros acima do nível normal
da área onde se situam as ruínas da basílica paleocristã e os tanques de época romana.
420 Bernardes, 2006, p. 159 e Maia e Maia, 1997, p. 13.
82
Bárbara, bem como o seu género, tendem mais para a deusa Ísis (neste caso, a mártir de
Nicomedia acabaria por assimilar igualmente atributos de Serápis, por ser o paredro
divino de Ísis); mas, por outro lado, na iconografia das lucernas do depósito votivo,
sobressai a figura de Hélios que se pode conotar desta vez com o deus Serápis. Para esta
última divindade, não podemos esquecer também o caso de Chastellard de Lardiers
(bem como de Lachau) com lucernas ex-votos dedicadas muito provavelmente a uma
divindade solar – o Sol e a luz de uma lucerna facilmente se relacionam um ao outro.
Tentamos agora compreender melhor o significado da lucerna como ex-voto e
sua exclusividade perante divindades alexandrinas, pois que, o papel cultual e votivo da
lâmpada nos santuários egípcios e as festas nocturnas que eram aí celebradas, e que
seguramente deviam ter impressionado os passantes, não permitem uma explicação
cabal do significado da luz votiva num contexto religioso e egipcizante421
. Vejamos
então as referências epigráficas ou outros indícios que se conotam com ex-votos ou com
a presença de lucernas em santuários egípcios.
Relativamente a Serápis, para além dos achados de lucernas no Serapeu C do
santuário de Delos, temos uma interessante inscrição grega descoberta por A. E.
Mariette num Serapeu (certamente o de Mênfis422
), datando dos tempos ptolemaicos ou
remontando até ao reinado de Alexandre. Esta inscrição, guardada no Museu do Louvre,
foi analisada numa segunda leitura por um certo E. Egger423
que nos comunicou a
seguinte tradução424
: «[Moi] Aristyllus, j’ai dédié ce lychnaption, pensant que j’était
malade par la volonté du Dieu, puisque, tout en me servant des remèdes indiqués par les
songes [qu’il envoie] près du temple, je ne pouvais obtenir de lui la santé»425
. Para E.
Egger, lychnaption (“acendedor de lâmpada”; fr. “allumoir de lampe”), seria, ou a haste
de um acendedor, ou um candelabro sagrado de vários bicos (a segunda interpretação,
bem que menos conforme ao sentido próprio da palavra, lhe parece a mais provável).
421
Digno de nota é a figura 43, página 189, da obra de J. López (1993), onde podemos ver uma estela de
Hórus que calca e captura animais nocivos, tendo à sua frente um pequeno tanque onde os fiéis ofereciam
água para o deus. Aqui temos, portanto, a oferta de um elemento natural para uma divindade egípcia.
422 Ver artigo de Picard, 1951, pp. 71-81.
423 Egger, 1857, pp. 68-69.
424 O começo e o fim das linhas da dita inscrição faltavam, propondo E. Egger sua restituição.
425 Tradução em português: [Eu] Aristyllus, dediquei este lychnaption, pensando que estava doente pela
vontade do Deus, pois que, servindo-me dos remédios indicados pelos sonhos [que ele envia] perto do
templo, não podia obter dele a saúde.
83
Podemos acrescentar também, do Serapeu de Mênfis, a inscrição dedicatória (hoje no
Museu do Louvre) da confraria dos Lychnaptai de Serápis, consagrando um pequeno
templo helénico ao deus Dioniso426
.
Relativamente agora a Ísis, sabemos que numa solenidade em sua honra
(navigium Isidis – 5 de Março) se exibiam lucernas, mas essas últimas, por uma
descrição que nos foi transmitida por Apuleio (Metamorfoses, XI, 9-16), eram de ouro e
em forma de pequenos barcos, em nada semelhantes às lucernas comuns (como no caso
das lâmpadas de Santa Bárbara)427
. Pensa-se que o fragmento de disco representando
uma Ísis Pelagia, encontrado em Delos, foi muito provavelmente dedicado a esta última
deusa e tinha efectivamente a forma de navio. Semelhante forma apresenta igualmente a
lucerna nº 390 do Museu Britânico, vendo-se nas extremidades o busto de Serápis e o de
Harpócrates e, no centro, Ísis de pé428
.
Também relevante é o fragmento da Lei Sacra que regulava o funcionamento do
santuário de Ísis e Serápis em Priene, onde se pode ler a obrigação do sacerdote em
fornecer uma quantidade fixa de azeite e duas lâmpadas para a celebração da lampadeia
(ou lychnapsia) em honra de Ísis429
. Neste caso, estamos perante os preparativos de uma
cerimónia nocturna e a presença das lucernas visa, em parte, um uso prático –
iluminação. Segundo R. Mar e J. Ruiz de Arbulo430
, essas lucernas estavam
provavelmente destinadas a celebrar o nascimento da grande deusa alexandrina, não se
relacionando, portanto, com lucernas votivas de uma favissa.
Em termos dos ex-votos propriamente ditos, sabemos por intermédio do poeta
latino Tibulo431
(I, 3, 27-28) que Ísis recebia nos seus templos quadros votivos
(pequenas tábuas pintadas) oferecidos pelos fiéis que curava432
. Por outro lado, as
oferendas de vestidos e jóias preciosas eram um dos recursos votivos mais frequentes
426
Picard, 1951, p. 72 e nota 1.
427 Maia e Maia, 1997, p. 56.
428 Bruneau, 1963, nota 4 p. 306.
429 Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120.
430 Mar, 2001, p. 325.
431 Por estar doente, Tibulo esperava que Ísis o ajudasse, por intercessão da sua bem-amada Délia, uma
devota zelosa da deusa do Nilo; ele menciona os numerosos quadros votivos no templo de Ísis, que
testemunham o poder de cura da deusa (Burkert, 2003, p. 19).
432 Bruneau, 1961, p. 446.
84
para as ricas iniciadas433
.
Entre outros tipos de oferendas votivas, podemos referir o caso de uma estátua
de mármore branco do Museu de Córdova, datada do fim do século I ou do início do
século II d. C., representando Ísis em divindade fluvial e parecendo ser a oferenda de
uma associação de fabricantes de lâmpadas434
. Voltamos a encontrar aqui uma
conotação com a luz, mas a oferta para a deusa nilótica não se resume desta vez a uma
lucerna em forma de barco, mas a uma efígie da divindade em pedra. Por sua vez, em
Aquae Flauiae (Outeiro Jusão, Chaves), foi encontrado um altar de granito com foculus
circular, dedicado à deusa alexandrina por Cornelia Saturnina em cumprimento de uma
promessa435
.
Por fim, no Iseu de Italica (Santiponce, Sevilha), apareceu um depósito votivo
diante da entrada do templo, composto por quatro placas de mármore com plantae
pedum (pegadas de pés descalços ou com sandálias) e inscrições, formando lápides
pavimentais. J. Alvar propõe ser uma doação do próprio templo, cuja construção teria
sido um mandato divino, custeado pelos dedicantes dessas lápides. Quatro outros ex-
votos do mesmo tipo foram encontrados na área e uma outra fora do Iseu. Também no
Iseum de Baelo Claudia (Bolonia, Cádis), duas plantae pedis com inscrição se situavam
sob o primeiro degrau de acesso ao templo (interpretadas como prováveis lápides
inaugurais)436
.
Em termos gerais e segundo a análise de J. Alvar437
, têm-se interpretado muitas
vezes essas placas votivas como alusões pro itu et redditu a uma viagem real ou
iniciática, porém, esta explicação não satisfaz a variedade de pegadas existentes. A. M.
Canto438
propõe uma hipótese que sugere a atribuição das pegadas nemesíacas de Itálica
aos magistrados eleitos, para entrar e sair com bom pé do cargo. S. A. Takács439
, por sua
433
Mar, 2001, p. 324.
434 Bruneau, 1963, pp. 304-305.
435 Alvar, 2012, pp. 136-137.
436 Alvar, 2012, pp. 62-65, 69, 81-83.
437 Alvar, 2012, p. 65.
438 Canto, A. M., «Les plaques votives avec plantae pedum d’Italica: Un essai d’interprétation» in ZPE,
54, 1984, pp. 183-194.
439 Takács, S. A., «Divine and Human Feet: Record of Pilgrim Honouring Isis» in J. Elsner – I.
Rutherford (eds.), Pilgrimage in Graeco-Roman & Early Christian Antiquity. Seeing the Gods, Oxford,
2005, p. 369.
85
vez, propõe que as pegadas revelam a acção do oferente, um peregrino que acede ao
santuário descalço ou com sandálias, manifestando a sua devoção deixando as marcas
dos seus pés como expressão da sua peregrinação. Por fim, L. Puccio440
sugere que
quando as pegadas estão voltadas para o exterior correspondem à deusa, enquanto que
quando estão voltadas para o interior, representam o fiel.
Continuando com as marcas de pegadas, mas desta vez relacionadas com um
culto mistérico dedicado a Serápis, sabemos que no santuário originalmente indígena de
Panóias (Vila-Real), após a criação de um novo complexo serapeico pelo senador Gaius
C. Calpurnius Rufinus em finais do século II ou começos do III d. C., apareceram na
“fraga L” relevos de três plantas de pés (ver fig. 52). Das várias interpretações feitas,
essas marcas seriam, ou os testemunhos da existência de estátuas de bronze, ou ex-votos
como as placas isíacas de Itálica e de Belo (a ausência de epígrafes impede sua correcta
interpretação). Segundo J. Alvar (como uma das interpretações possíveis), a posição de
duas delas (viradas para o exterior) diante uma pequena cavidade na rocha e colocadas
de cada lado de um pequeno canal que levava o fluido depositado na pequena cavidade
até a base da rocha, simbolizaria o deus sobre um Nilo alegórico, expressão da
fertilidade provocada pela divindade. Por sua vez, a pegada solitária de um pé direito,
perpendicular diante do outro pé direito do par acima referido, poderia interpretar-se
como expressão do sacerdote ou do fiel que presencia o acto divino com o joelho
esquerdo apoiado no chão, daí não aparecer a sua pegada, ao estar prostrado diante da
presença divina, com a cabeça curvada para o líquido que corria no canal (a carga
simbólica desta cena relacionar-se-ia com a fertilidade agrícola propiciada pela
divindade). Ou, pelo contrário, o ritual da “fraga L” poderia simplesmente incluir-se no
contexto do sacrifício aos deuses infernais como uma lauatio com água bendita
purificada entre os pés do deus441
.
Sabendo que os depósitos votivos podiam divergir entre eles relativamente ao
conteúdo, podemos notar que, de entre os vários exemplos que apresentamos, temos as
referências da oferta de um lychnaption para Serápis ou lucernas em forma de barca
para Ísis. Podemos acrescentar igualmente oferendas de um outro tipo, mas vindas da
440
Puccio, L., «Pieds et empreintes de pieds dans les cultes isiaques. Pour une meilleure compréhension
des documents hispaniques» in MCV, 40.2, 2010, pp. 137-155.
441 Alvar, 2012, pp. 138-139, 145-146.
86
parte de uma confraria de Lychnaptai de Serápis ou de uma associação de fabricantes de
lâmpadas. Ou seja, de entre vários tipos de oferendas para os deuses alexandrinos
(perfeitamente normal no Império Romano), encontramos mesmo assim bastantes
referências de ex-votos com uma ligação directa ou indirecta com a luz, mas ainda
continuamos sem perceber o significado original. Para podermos elucidar mais esta
problemática, recuamos agora no tempo para uma análise mais aprofundada da religião
do antigo Egipto.
Segundo J. López442
, sabemos que a magia era parte essencial do fenómeno
religioso no Egipto dos faraós. Religião e magia eram inseparáveis e complementares.
Os deuses corriam perigos de toda a espécie, tanto no céu como no mundo inferior,
necessitando proteger-se através da magia (exemplo de Ré e seus inimigos): o fogo, por
exemplo, permitia expulsar as forças setianas e destruir o mal; os deuses, trazendo o
signo “fogo” sobre a cabeça ou sobre um toucado, devoravam os inimigos do deus-sol,
que possuía ele mesmo a serpente uraeus (aquele que cospe fogo) como um dos seus
olhos443
. Os malefícios tinham lugar frequentemente nos templos de modo oficial e com
motivos perfeitamente revelados, já que se tratava de utilizar a força da magia para
defender a obra do demiurgo solar, cada um dos elementos da criação e, num modo
particular, o faraó. A acção da magia exercia-se em todos os pormenores da vida
ordinária, da religião ou dos costumes funerários. Existiam também rigorosas medidas
de protecção com que se rodeavam as estátuas divinas, como encerrá-las em capelas tão
herméticas como a caixa forte de um banco444
, ou a execução de abluções e fumigações
para quem se acercava do santuário para não pôr em perigo o deus que residia no seu
ídolo de madeira e que estava exposto, por conseguinte, às bruxarias.
Ora, encontramos junto ao naos, aquando do encerramento do santuário, uma
simples lamparina de azeite iluminando debilmente o espaço em volta da cella e que
não foi apagada durante a retirada do sacerdote, continuando acesa durante a noite até a
luz se extinguir por si mesma, voltando o oficiante a acender a lamparina no dia
seguinte. Estando o lugar do santuário encerrado e vazio (e mesmo se havia alguém, a
442
López, 1993, pp. 90-92, 134-138, 183-184, 191-193.
443 Lurker, 1994, pp. 101-102.
444 Cobria-se o rosto da estátua, encerrava-se o naos, corria-se o ferrolho e impunha-se o selo de greda
que garantia que a cella permaneceria fechada até o dia seguinte. Por fim, fechavam-se os batentes da
porta do santuário, permanecendo o lugar totalmente tranquilo e debilmente iluminado pela luz de uma
lamparina colocada junto à bandeja de alimentos e ao naos (López, 1993, pp. 137-138).
87
iluminação de uma só lamparina não chegava para uma boa claridade), a presença desta
luz teria muito provavelmente uma função igualmente mágica, protegendo a divindade
durante o seu sono445
. De facto, sabemos que nos antigos ritos egípcios destinados em
expulsar as trevas e a manter assim à distância as forças tifonianas446
, a luz, de essência
divina, era considerada como o símbolo da pureza e do bem, possuindo um poder
apotropaico447
. Reencontramos esta protecção da luz na festa da Lychnokaie; também
nas narrativas funerárias, temos uma referência no “Livro dos Mortos” que fala do olho
irradiante de Hórus que destrói o triplo poder de Set448
.
Ou seja, e segundo as crenças dos antigos Egípcios, podemos colocar a hipótese
da lucerna votiva, ao contrário de uma oferenda usual representando um acto sacrificial
do ofertante ou relembrando um rito executado, representar na realidade uma prenda
que seria útil para a divindade, mais especificamente, que seria benéfica para a
divindade, reforçando a sua protecção contra as forças tifonianas através do poder
mágico e apotropaico da luz. Seguramente que os Gregos observaram ou tiveram
conhecimento deste acto específico de acender uma lâmpada (Plutarco refere-se até a
uma lâmpada perpétua449
) e de a colocar diante da cella, acabando a lucerna por se
transformar igualmente num ex-voto especialmente dirigida para divindades egípcias,
isto é, tanto para Ísis como para Serápis, não esquecendo as divindades secundárias –
Anúbis e Harpócrates (o “Hórus menino”).
445
Relembramos a presença também da bandeja de alimentos que, por sua vez, permitia fortalecer a
energia da divindade (López, 1993, pp. 137-138 e Grenier, 1989, p. 947)
446 A expressão “ forças tifonianas”, utilizada por M. Lurker, requer uma explicação: Set, que o triunfo do
culto de Osíris converteu num deus muito impopular, tornando-se o príncipe das trevas, foi identificado
pelos Gregos com Tífon (López, 1993, pp. 31, 97).
447 Lurker, 1994, p. 136.
448 Lurker, 1994, p. 137.
449 Lurker, 1994, p. 136.
88
III) Os santuários e os cultos dos deuses alexandrinos
III) 1) Instalação dos cultos nilóticos na Hispânia
Segundo J. Alvar450
, é a romanização451
a causa primeira que permitiu a
introdução em territórios iberos dos cultos egípcios, difundidos no novo movimento
comercial e demográfico que conheceu de ora em diante a Península Ibérica452
.
Os cultos alexandrinos453
chegaram a Hispânia por intermédio de comerciantes
orientais ou relacionados com os mercados do Mediterrâneo oriental, associando-se
muito cedo aos interesses dos grupos privilegiados e ocupando espaços simbolicamente
muito prestigiados nas principais cidades454
.
A inserção das divindades nilóticas entre suas homólogas romanas foi o motor
da expansão dos cultos egípcios na Península Ibérica. Em tais condições, o culto de Ísis,
por exemplo, acabou por se converter num elemento mais de difusão da romanidade
entre os indígenas, disfarçada neste caso sob um manto exótico que o fazia
especialmente atractivo para aqueles provinciais que não se sentiam amparados sob a
cobertura da religião tradicional romana455
.
Actualmente conhecem-se três santuários dedicados às divindades nilóticas que
450
Alvar, 2012, pp. 19, 23, 28-29, 32, 34.
451 A partir do reinado de Calígula (37-41 d. C.), gerou-se um ambiente propenso à difusão dos deuses
egípcios na capital do Império, e as autoridades locais fomentaram-no outorgando espaços públicos ou
autorizando outros para a construção dos santuários ou de estátuas. Foi a protecção dos Flávios que
favoreceu a implantação de Ísis e Serápis em diversas localidades ocidentais (Alvar, 2012, p. 31, Alvar,
2002, p. 205 e Burkert, 2003, p. 44).
452 Segundo J. Alvar, é improvável que tenha havido uma veneração dos deuses faraónicos na Ibéria pré-
romana (Alvar, 2012, p. 20).
453 Os deuses que eram venerados não eram as milenares divindades do Egipto faraónico, mas a
modalidade recriada em Alexandria sob os Lágidas. A famosa inscrição bilíngue de Ampúrias põe
claramente de manifesto que o culto chega directamente de Alexandria, graças à actividade de um
alexandrino provavelmente implicado no comércio (Alvar, 2012, pp. 19, 21).
454 Exemplo do Iseu de Belo, erigido na parte Este da esplanada dos templos do Capitólio do município
romano, de onde se domina o foro e a cidade (Alvar, 2012, pp. 79-80).
455 A religião cívica tradicional não dispunha de mecanismos para a integração ideológica dos provinciais,
pelo que o Império Romano teve de procurar novos instrumentos, entre os quais se destacavam as teorias
relacionadas com o sincretismo solar, o culto imperial e os mistérios orientais. No caso dos cultos
egípcios, após a submissão a um processo de condicionamento (helenização ou romanização),
converteram-se portanto em instrumentos adicionais de integração no sistema romano de gentes que, por
não possuírem o direito de cidadania ou pela sua extracção servil, ou ainda pelas próprias características
do lugar em que viviam, não tinham uma participação activa ou relevante nas expressões religiosas
próprias da romanidade, podendo com dificuldade demonstrar a sua adesão ao sistema ou experimentar
um sentimento positivo de lhe pertencerem (Alvar, 2002, p. 205).
89
foram reconhecidos como tais. O mais antigo é o de Emporiae (Ampúrias, Gerona),
segue o de Baelo Claudia (Bolonia, Cádis), e o último é o de Italica (Santiponce,
Sevilha). A eles podemos acrescentar o santuário rupestre de Panóias (Vila-Real), que
originalmente estaria dedicado aos deuses infernais e aos deuses protectores da
povoação local, mas que no século III d. C. seria remodelado para se converter num
recinto destinado às iniciações mistéricas de Serápis – nada, praticamente, se conserva
dos alicerces arquitectónicos deste santuário.
Se a abundância da documentação sugere que foi no século II d. C. quando mais
difundida esteve a devoção às divindades egípcias, a escassez do século III e seu total
desaparecimento no século IV levam a supor que o culto declinou e deixou de se
praticar naqueles últimos períodos. Neste aspecto a Hispânia não coincide com o resto
do Império, pois no século IV d. C. ainda continuava a actividade construtiva.
III) 2) Serápis
Ao contrário da deusa Ísis que já pertencia ao panteão tradicional egípcio456
,
Serápis apresenta-se como uma divindade cuja origem é ainda hoje sujeita a várias
interpretações.
Em primeiro lugar, muitos autores, como P. Lévêque457
, S. Morenz458
ou M.
Lurker459
, afirmam que o deus Serápis foi uma invenção da dinastia Ptolemaica, mais
especificamente por Ptolemeu Sôtèr I (diádoco de 323-306 a. C.; rei do Egipto de 306-
285 a. C.) em Mênfis, com a finalidade de criar um deus de império que poderia ser
adorado tanto pelos súbditos Gregos como Egípcios460
. Serápis seria portanto herdeiro
simultaneamente de Osíris-Ápis, deus funerário egípcio de Mênfis461
a quem deve o seu
456
Apesar de pertencer ao panteão tradicional egípcio, Ísis já tinha sofrido uma longa evolução desde
antes da chegada dos Gregos ao Egipto. Depois, no período helenístico, acabou por absorver as funções
da maior parte das deusas gregas e egípcias (Préaux, 1978, p. 655).
457 Lévêque, 1987, p. 153.
458 Morenz, 1977, pp. 314-315.
459 Lurker, 1994, p. 199.
460 O autor clássico Plutarco também atribuiu a aparição de Serápis com Ptolemeu Sôtèr I (Brázia, 2011,
p. 41).
461 Segundo a lenda, quando Ísis e Neftis retiraram da água o cadáver de Osíris, sepultaram-no em Mênfis.
Os menfitas confundiram depois o túmulo de Osíris com o de Ptah-Sokaris (López, 1993, p. 98).
90
nome462
, e de divindades gregas, filantrópicas como Zeus ou Asclépio, e místico como
Dioniso463
(combinação com os mistérios da Grécia464
), que já Heródoto identificava
com Osíris465
. Para fixar a imagem do deus, Sôtèr manda transportar para Alexandria,
por volta de 285 a. C., uma estátua que o escultor Briaxis tinha executado na segunda
metade do século IV a. C. para o templo de Hades em Sinope. A reprodução desta
estátua passaria a ser a imagem canónica desta divindade466
– representação de Serápis
sob os traços de um homem de idade madura, com cabeleira e barba abundantes, a
cabeça coroada por um toucado cilíndrico cingido de espigas (modius ou kalathos,
semelhante a um açafate) e vestido de um khiton, sentado num trono, segurando um
ceptro na mão esquerda e tendo num dos lados a presença do cão dos infernos,
Cérbero467
. De Mênfis, o culto estender-se-ia a Alexandria onde Ptolemeu III edificou
um vasto santuário.
Por sua vez, J.-C. Grenier468
, a partir do seu estudo sobre a estatuária do Serapeu
da Villa de Adriano, propõe como hipótese que o deus Serápis seria na realidade uma
entidade resultante da fusão de Osíris de Cânopo com o Ápis de Mênfis, transtornando
algum tanto a interpretação tradicional segundo a qual a sequência Osíris-Ápis
designaria o Ápis morto.
462
Após a sua morte, o touro Ápis é como “absorvido” por Osìris; daì fala-se de Osíris-Ápis, tornando-se
em grego Serápis (Lurker, 1994, p. 51). O nome do deus alexandrino representa portanto uma deformação
de “Osìris-Ápis”, designando um touro sagrado que era adorado em Mênfis e que, após a sua morte, era
enterrado junto dos seus congéneres numa cova gigantesca (Morenz, 1977, pp. 314-315), tornando-se
num novo Osíris (Husson e Valbelle, 1992, p. 222).
463 No Serapeu de Mênfis de Ptolemeu I, assistimos à primeira fusão sincrética entre Dioniso e Serápis
(Osíris-Ápis). Sabemos através de Tácito e Plutarco (Tácito, Hist., 4, 80-84; Plutarco, De Iside et Osiride,
28) que é o próprio Dioniso que tinha, no tão instrutivo “Sonho de Ptolemeu I”, determinado a instalação
no Egipto do sincretismo Dioniso-Serápis, prescrito pelo deus grego através uma epifania nocturna
(Picard, 1951, pp. 77-80).
464 Cumont, 1906, p. 93.
465 Considerado como o soberano das necrópoles e do mundo inferior (López, 1993, p. 96), o culto de
Osíris estava estreitamente ligado ao culto dos mortos no Egipto (Burkert, 2003, p. 29). No Império
Médio, a capacidade de se tornar num Osíris após a morte, até aqui reservada aos reis, propagou-se pouco
a pouco, em todo o Egipto, a todos aqueles em que o corpo tinha sido mumificado segundo os ritos
(Préaux, 1978, pp. 655-656). É preciso relembrar que durante muito tempo se reservou a religião
funerária solar aos reis e aos membros de suas famílias, enquanto que o osirianismo se propagou entre os
camponeses e as gentes modestas até o dia em que obteve a adesão fervorosa de toda a população (López,
1993, p. 90).
466 Brázia, 2011, pp. 41-42.
467 Brázia, 2011, p. 160, Lévêque, 1987, p. 153, Morenz, 1977, p. 315 e Lurker, 1994, p. 199.
468 Grenier, 1989, p. 956.
91
Cânopo, situada num ramo do Nilo, a uma vintena de quilómetros de
Alexandria, era uma cidade célebre pelo seu templo de Serápis, onde os oráculos eram
expedidos por incubação469
e os enfermos aguardavam curas milagrosas470
. Antes do
Serapeu, e segundo a análise de J.-C. Grenier471
, já existia um culto dedicado a um
Osíris local, figurado como um vaso pançudo contendo a água do Nilo e cuja tampa era
uma imagem da cabeça do deus. Da tríade divina da mesma cidade, encontramos
também Harpócrates, representado como um Hórus “triunfante” trespassando de sua
lança o inimigo deitado no chão (assimilação de Harpócrates/Hórus com Héracles). Ísis
estava igualmente presente, figurada como uma deusa “triunfante”472
, calcando sob os
pés um crocodilo, brandindo na sua mão direita uma serpente473
e segurando uma sítula
na esquerda. A sítula representaria a água do Nilo, seguramente uma alusão ao seu culto
que se celebrava em Cânopo e que tinha dado sua imagem ao Osíris local. Por seu lado,
o crocodilo e a serpente dominados pela deusa seriam o triunfo de Ísis sobre as forças
hostis, conotando-se com uma função curadora da deusa474
que seria conforme ao seu
papel “de esposa” do Serápis curandeiro de Cânopo.
Vamos reencontrar de facto esta representação de uma jarra contendo a água
sagrada (e relembrando o Osíris de Cânopo) nos rituais isíacos de época romana.
Podemos dar como exemplo a cena de uma cerimónia sagrada de tipo egípcio
representada num fresco de Herculano475
(ver fig. 53), em que no alto do templo, num
pronaos limitado por esfinges, um sumo-sacerdote surge da cella levando consigo um
469
Rachet, 1994, p. 189.
470 Grenier, 1989, p. 954.
471 Grenier, 1989, pp. 952-955.
472 Esta Ísis “triunfante” é conhecida por algumas decorações de discos de lucernas, algumas figurinhas
em terracota e sobretudo por uma estátua encontrada em Ras el-Soda, lugar situado entre Alexandria e
Cânopo, datável de meados do século II d. C. e actualmente no Museu de Alexandria (Grenier, 1989, p.
952).
473 O gesto desta Ísis domando de sua mão uma serpente lembra a lenda grega da esposa de Menelau,
Helena, esmagando de sua mão a víbora que, na localidade de Cânopo, acabava de morder seu piloto
Canopus o qual em morrendo deu o seu nome à cidade (Grenier, 1989, p. 953).
474 Esta Ísis poderia ser a famosa Ísis Ménouthis na qual certas tradições vêem a associação da deusa
egípcia e de Ménouthis, a esposa de Canopus, e em quem se acreditava ser uma deusa curadora (Grenier,
1989, nota 52 p. 954).
475 Ver Burkert, 2003, fig. 8 e Mar, 2001, estampa XXXIX p. 167 (actualmente o fresco encontra-se no
Museu Arqueológico Nacional de Nápoles). Na obra de W. Burkert (2003, “Table des Illustrations”, fig.
8) temos uma gralha, referindo-se ao fresco da cerimónia da água sagrada como pertencente à cidade de
Pompeia em vez da cidade de Herculano.
92
vaso (de ouro segundo R. Mar) contendo a água do Nilo (o Osíris segundo W. Burkert).
Interessante é igualmente outro fresco pompeiano procedente do templo de Ísis476
(ver
fig. 54), representando o Nilo transportando a jovem Io que toca com a sua mão direita a
da deusa Ísis, relatando por este gesto simbólico o mito da origem da deusa nilótica
venerada na cidade477
. Ora, a Ísis representada neste fresco também segura, na sua mão
esquerda, uma serpente, tal como a Ísis “triunfante” de Cânopo.
Por fim, temos a interpretação de C. Préaux478
que, ao contrário dos outros
autores, não considera o deus Serápis como uma criação dos Lágidas, afirmando que
nada autoriza a emprestar aos Ptolemeus a intenção de unir no culto deste deus seus
súbditos Gregos e Egípcios. Para este autor, foi uma consequência do interesse que
tiveram desde cedo os reis gregos pelo dito Serapeu egípcio de Mênfis479
. A novidade
na época helenística foi a expansão de Serápis no mundo grego, o antropomorfismo
dado às suas representações e a sua adaptação à mentalidade grega. As virtudes que lhe
eram atribuídas derivavam portanto de sua origem osiriana e eram assimiladas às de
outros deuses helénicos, como Asclépio ou Zeus, e os Gregos depositaram nele as suas
esperanças de salvação sob todas as formas.
III) 3) Os cultos de mistérios
Segundo os recentes estudos de W. Burkert480
, os mistérios eram ritos de
iniciação (myèsis ou télétè) que permitiam ao neófito (mystès) uma ligação mais estreita
476
Ver imagem do fresco em Alvar, 2012, p. 72 (actualmente o fresco encontra-se no Museu
Arqueológico Nacional de Nápoles; inv. nº 9558).
477 Io era uma jovem de Argos, sacerdotisa de Hera Argiva e que Zeus amou. Para a salvar dos ciúmes da
sua mulher, Zeus transformou Io numa vitela maravilhosamente branca, acabando por ser oferecida a
Hera. Após muitas tribulações e viagens, retomou a sua primitiva forma e instalou-se no Egipto onde
reinou sob o nome de Ísis (Grimal, 2009, p. 251).
478 Préaux, 1978, pp. 649-652.
479 O Serapeu de Mênfis era uma necrópole situada entre Abusir e Sacara (Rachet, 1994, p. 836), onde os
sacerdotes enterravam os touros Ápis mumificados com grandes solenidades, substituindo imediatamente
o touro defunto por um outro. A conjugação pelos teólogos de Ápis e de Osíris resultou no nome
Oserapis, tornando a necrópole num Serapeu visitado por uma multidão atraída especialmente pela
virtude mágica dos túmulos (Préaux, 1978, p. 649 e López, 1993, p. 40). O touro associa à necrópole e à
tumba a perpetuação da vida, baseada no seu poder fecundante (Brázia, 2011, p. 162). No entanto é
preciso salientar que, segundo G. Rachet (1994, p. 836), não se pode confundir os santuários dedicados
ao deus Serápis com o Serapeu da necrópole de Mênfis.
480 Burkert, 2003, pp. 10-15, 18-19, 23, 27, 46-47, 57, 86.
93
com a divindade, através de uma experiência do sagrado (o rito tende a fazer entrar o
candidato em comunhão com a divindade por actos extremamente pessoais481
). Esta
intimidade com o divino482
visava a obtenção de uma forma de salvação (sôtèria, salus),
mas uma salvação inteiramente prática, logo neste mundo, mesmo nas promessas de
uma outra vida483
. Por outro lado, em termos psicológicos, os mistérios bem sucedidos
permitiam também uma mudança de consciência e um estado de bem-estar do mystès
(télétai terapêuticos)484
. A admissão e a participação dependiam portanto de um ritual
próprio485
, a cumprir sobre o candidato que tinha os meios para a sua concretização. O
segredo486
e, na maior parte dos casos, uma encenação nocturna, acompanhavam este
exclusivismo487
.
Largamente paralelos às práticas votivas (a religião votiva constitui o pano de
fundo da prática dos mistérios), os télétai acabavam por ser uma nova forma religiosa
mais pessoal para pessoas abastadas, integrados na teia muito mais complexa dos cultos
dos deuses egípcios e correspondendo às necessidades diversas dos que estavam em
481
Morenz, 1977, p. 320.
482 Ísis tinha nomes infinitamente numerosos por todo o mundo. Ela é myrionymos. Mas quem se volta
para Ísis, quem conhece seu nome e as formas especiais do ritual egípcio, tem o acesso mais directo ao
divino (Burkert, 2003, p. 55).
483 O receio da morte é uma realidade da vida e muita gente, segundo uma descrição de Plutarco (Non
posse, 27, 1105 b), pensava que certas espécies de iniciações e de purificações iriam ao seu auxílio,
permitindo, uma vez purificados, continuar a jogar e dançar no Hades, em lugares cheios de esplendor, de
ar puro e de luz (Burkert, 2003, p. 27). Por seu lado, F. Cumont pensa que o indivíduo, se serve
piedosamente Osíris-Serápis, será assimilado a ele e partilhará a sua eternidade no reino subterrâneo,
onde assenta o juiz dos defuntos. Ele viverá não como uma sombra ténue ou como um espírito subtil, mas
em plena possessão de seu corpo como da sua alma. Tal foi a doutrina egípcia e tal foi certamente,
segundo o autor, também a dos mistérios praticados no mundo greco-romano. Pela iniciação, o misto
renascia para uma vida sobre-humana e tornava-se igual aos imortais. No seu êxtase, ele pensava transpor
o limiar da morte e contemplar face a face os deuses do inferno e os do céu. Após o seu falecimento, se
tinha cumprido exactamente as prescrições que, pela boca de seus sacerdotes, foram impostas por Ísis e
Serápis, a sua vida seria então prolongada para além da duração que lhe estabeleceram os destinos
(Cumont, 1906, pp. 121-122).
484 Segundo W. Burkert (2003, p. 85), a iniciação devia ser um evento inesquecível para o neófito,
iluminando todo o resto da sua vida, criando uma experiência que transforma a existência. Vários textos
antigos afirmam claramente que a participação nos mistérios foi uma forma particular de experiência, que
provoca um pathos na alma (psychè) do iniciado. Aristóteles dizia já que, em definitivo, nos mistérios não
era questão de “aprender” (mathein) mas de “sentir”/”sofrer” (pathein), e de estar colocado numa certa
disposição de espírito (diatéthènai).
485 Para os mistérios de Ísis era uma iniciação gradual: três vezes o herói de Apuleio deve submeter-se a
esta prova para obter a revelação integral (Cumont, 1906, p. 120).
486 A protecção do segredo dava maior valor ao prestígio dos cultos mais sagrados (Burkert, 2003, p. 12).
487 Os mistérios antigos, ou ao menos partes do seu ritual, podiam ser repetidos (Burkert, 2003, p. 11).
94
busca de salvação e de êxito. Os mistérios não constituíam portanto a raiz e o centro do
culto egípcio, havia outras formas de culto “normal” para a devoção do não-iniciado,
com festas anuais de data fixa, e as oferendas privadas eram solicitadas e recebidas sem
restrições.
As relações entre iniciações privadas e festas oficiais nos cultos que possuíam
mistérios eram complexas e longe de ser uniformes. Em Elêusis, por exemplo, a
iniciação marcava o ponto culminante da festa de Outono, justamente chamada
Mystèria; a iniciação de Lúcio-Apuleio, por outro lado, não era ligada a uma festa de
data fixa, mas determinada pelo mandamento divino, por meio de sonhos488
; contudo, os
initiati participavam colectivamente à procissão anual dos Ploiaphésia em Coríntia
(Apuleio, Met., XI, 17).
Para além dessas cerimónias (privadas ou oficiais), nos santuários dedicados a
Ísis, por exemplo, o clero residente servia quotidianamente os deuses egípcios, de
manhã à noite. Ou seja, vê-se que os mistérios eram uma forma especial de culto
cumprida no quadro mais largo da prática religiosa reconhecida.
III) 4) Os santuários romanos e egípcios – aspectos
arquitectónicos e decorativos
III) 4) a) Os santuários romanos
III) 4) a) i) O templo romano segundo Vitrúvio
Segundo a obra De Architectura de Vitrúvio, baseando-se na tradução do latim
em português de M. J. Maciel489
, a arquitectura romana devia constar de ordenação
(Ordinatio), disposição (Dispositio), euritmia (Eurytmia), comensurabilidade
(Symmetria), decoro (Decor) e distribuição (Distributio), realizadas de modo a que se
tenham presentes os princípios da solidez (Firmitas), da funcionalidade (Utilitas) e da
beleza (Venustas).
O decoro tem de se adequar ao tipo de divindade consagrada no templo, como
por exemplo os edifícios sem telhado e hipetros (templo hypaethros ou a céu aberto)
488
Sabemos por exemplo que Serápis era famoso pelos seus oráculos (chresmoí), e costumava aparecer e
falar aos fiéis através dos sonhos (Préaux, 1978, pp. 651-652 e Montero, 2002, pp. 129, 131).
489 Maciel, 2009, pp. 37-41, 109-124, 141-159.
95
dedicados a Júpiter Relâmpago, ao Céu, ao Sol e à Lua. Teríamos portanto templos
dóricos, despojados de ornamentos, para divindades caracterizadas pela força como
Marte; templos coríntios, mais gráceis e ornados de folhas e de volutas, para a
delicadeza de certas deusas como Vénus; templos jónicos, dispostos entre o severo
costume dos dóricos e a delicadeza dos coríntios, para divindades de posição intermédia
como Líbero.
As principais ordens clássicas adequavam-se igualmente ao género da divindade:
a ordem dórica relacionava-se com o corpo masculino (a coluna dórica, sem ornamento
e de aparência simples, demonstra «a proporção, a solidez e a elegância de um corpo
viril»490
); a ordem jónica relacionava-se com o corpo feminino (a coluna jónica contem
«a subtileza, o ornato e a boa proporção femininas»491
); a ordem coríntia relacionava-se
com a gracilidade da donzela (a coluna coríntia apresenta-se «com a delicadeza virginal,
porque as donzelas, mercê da sua tenra idade, possuem uma configuração de membros
mais grácil e conseguem no adorno os mais belos efeitos»492
).
Consoante a divindade consagrada e respectivos ritos493
, bem como o lugar
escolhido para a sua devoção (cidade, campo, topografia do terreno, entre outros),
vários aspectos deviam ser tomados em conta na construção de um templo. Em termos
decorativo, o arquitecto devia escolher o estilo mais adequado entre muitos, como as
principais ordens clássicas e respectivas decorações (como por exemplo as molduras de
tríglifos, métopas e mútulos do estilo dórico, ou os dentículos do estilo jónico), o estilo
ático (para bases de colunas e portas), as outras tipologias de capitéis (designadas por
nomes variados provindos da alteração dos modos coríntios, pulvinados e dóricos, cujos
sistemas proporcionais de medidas são copiados para aceitação das esculturas novas) e a
“ordem” dos templos toscanos. Para além disso, havia várias categorias de templos de
acordo com o seu alçado (aspecto das suas formas exteriores) – in antis494
, prostilo495
,
490
Maciel, 2009, p. 143.
491 Maciel, 2009, p. 143.
492 Maciel, 2009, p. 144.
493 Para Vitrúvio, não se devem dedicar templos a todos os deuses aplicando as mesmas normas, pois cada
um deles está conforme ao culto que lhes é prestado, de acordo com a variedade dos ritos sagrados
(Maciel, 2009, p. 159).
494 O templo in antis tem no frontispício as pilastras das paredes que circundam a cela (compartimento
interior do templo clássico, para abrigo da estátua ou simulacrum da divindade) e entre elas, no meio,
duas colunas, tendo em cima um fastígio colocado de acordo com a comensurabilidade (Maciel, 2009, p.
112).
96
anfiprostilo496
, períptero497
, pseudodíptero498
, díptero499
e hipetro500
– e de acordo com o
espaço entre as colunas (intercolúnio) – picnostilo501
, sistilo502
, eustilo503
(o mais
louvável para Vitrúvio), diastilo504
e areostilo505
. Podemos encontrar ainda outros tipos
de templos: templos de planta circular, sendo, uns, monópteros506
e, outros, ditos
perípteros507
; templos ordenados segundo as mesmas comensurabilidades mas
495
O templo prostilo tem tudo como o de in antis, mas com duas colunas face às pilastras angulares e
sobre elas epistílios semelhantes aos dos templos in antis, travando à direita e à esquerda cada um dos
ângulos das paredes (Maciel, 2009, p. 112).
496 O templo anfiprostilo apresenta-se com tudo o que tem o prostilo, além de que possui, do mesmo
modo, colunas e fastígio na parte de trás (Maciel, 2009, p. 112).
497 O templo períptero é aquele que tiver, seja no frontispício, seja na parte posterior, seis colunas e, nos
lados, com as angulares, onze. Estas colunas estão colocadas de tal modo que em volta, entre as paredes e
as filas das colunas que ficam do lado de fora, haja um espaço livre igual à largura do intercolúnio, assim
se obtendo uma zona de circulação em volta da cela do templo. O sistema do pteroma, disposição das
colunas em volta do templo, foi estabelecido a fim de que o aspecto do edifício, devido ao realce dos
intercolúnios, se revestisse de dignidade, permitindo igualmente abrigar os fiéis em caso de mau tempo
(Maciel, 2009, pp. 113, 116).
498 O templo pseudodíptero possui oito colunas no frontispício e na parte de trás, sendo quinze nos lados,
incluindo as angulares, situando-se a cela face às quatro colunas do meio, seja no frontispício, seja no
lado de trás. Em volta, entre as paredes e as filas das colunas que ficam do lado de fora, resulta um espaço
livre igual a dois intercolúnios e a um diâmetro inferior de coluna (Maciel, 2009, p. 113).
499 O templo díptero é octostilo tanto no pronau como na fachada posterior, mas tem em volta do templo
filas duplas de colunas (Maciel, 2009, p. 113).
500 Um templo hipetro é decastilo no pronau e no lado posterior. No restante, tem as mesmas
características que o díptero, mas na parte interior dispõe de duas colunas repetidas em altura, afastadas
das paredes, formando um perímetro como um pórtico de peristilo. A zona média, ao ar livre, fica sem
tecto. A entrada tanto se faz pela parte da frente como pela parte de trás, por portas de dois batentes
(Maciel, 2009, p. 113).
501 O intercolúnio apresenta um espaço de um
diâmetro e meio de coluna, resultando colunas cerradas
(Maciel, 2009, p. 114).
502 O intercolúnio apresenta um espaço de dois diâmetros de coluna, tendo os plintos das espiras as
dimensões da distância que houver entre dois plintos, resultando colunas um pouco bastas (Maciel, 2009,
p. 114).
503 O intercolúnio apresenta um espaço de dois
diâmetros de coluna e um quarto, com três diâmetros para
o intercolúnio do meio, seja no frontispício, seja na parte de trás (Maciel, 2009, pp. 114-115).
504 O intercolúnio apresenta um espaço de três diâmetros de coluna, resultando colunas mais amplamente
abertas (Maciel, 2009, p. 114).
505 As colunas dos templos areostilos acabam por estar mais distanciadas entre si do que convém,
obrigando ao uso de traves de madeira inteiriças em vez de epistílios de pedra ou de mármore (Maciel,
2009, pp. 114-115).
506 Templo circular de colunata e sem cela, com pódio e escadaria (Maciel, 2009, p. 157).
507 Templo circular com dois degraus e o estilóbata, dispondo-se por cima a cela e as colunas em volta
dela (Maciel, 2009, p. 158).
97
apresentando disposições de outro género (como por exemplo acrescentar colunas, à
direita e à esquerda, nos flancos do pronau); templos tomando dos géneros da “ordem”
toscana508
; templos pseudoperípteros509
de tipologia genuinamente romana,
respondendo aos condicionalismos urbanos e ao espírito prático dos romanos. Por fim,
em termos proporcionais, existia uma justa aplicação de módulos consoante os estilos e
categorias de templos, feita de inúmeras regras e sistemas de medidas para as diferentes
partes do aedis: as fundações; o estereóbata; o estilóbata; os degraus; o pódio; a cela e o
pronau; as portas (três géneros: dórico, jónico ou ático); a base de coluna (estilos: ático,
jónico ou toscano) com a espira (incluindo o toro e a escócia) e respectivo plinto; o
fuste; o capitel; a arquitrave/epistílio; o friso; a cornija; o tímpano do frontão e
acrotérios; as gárgulas leoninas; o madeiramento e telhado.
Os altares510
, por seu lado, deviam estar colocados sempre numa cota inferior ao
das estátuas que estiverem no templo, a fim de que, levantando os olhos para a
divindade511
, os que suplicam e sacrificam se possam dispor em diferentes níveis, cada
um respeitando o que convém ao seu deus (esta área, palco dos principais ritos, era
frequentemente flanqueada ou rodeada de pórticos512
). As alturas eram igualmente
planeadas conforme a divindade consagrada, dos mais elevados possíveis para
divindades celestes (altares de mesa ou altares de tabuleiro que permitiam erguer o
sacrifício por cima do nível do solo; lat. altaria513
) aos mais baixos para Vesta, Terra e
508
Templos que, tomando dos géneros toscanos as disposições das colunas, transferem-nas para as
ordenações das obras coríntias e jónicas e, dispondo colunas aos pares nas direcções das paredes da cela
naqueles espaços onde, no pronau, avançam as pilastras, seguem uma metodologia comum às obras
toscanas e gregas (Maciel, 2009, p. 158).
509 Templos com as paredes da cela colocadas nos intercolúnios, desaparecendo os espaços do pteroma
mas permitindo um amplo desafogo para a cella. Conservam no restante as mesmas proporções e sistemas
de medida. Temos portanto a fusão das paredes da cela com as colunas, sendo estas muitas vezes apenas
sugeridas e em materiais mais baratos e menos nobres do que o mármore (Maciel, 2009, p. 159 e nota
110).
510 Dispositivo destinado a permitir o rito do sacrifício a uma divindade (Ginouvès, 1998, p. 48).
511 A estátua do deus encontrava-se encostada à parede da cella, devendo ser contemplada pelos fiéis
através das portas abertas. Os sacrifícios eram realizados em frente do templo (Maciel, 2009, nota 49 p.
114).
512 Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62.
513 Ginouvès, 1998, p. 49 e nota 189 p. 48.
98
Mar (altares ctonianos para as divindades da terra, denominados também de altares-cova
ou bothros; lat. ara, ara sepulcri514
).
III) 4) a) ii) Vestígios de templos romanos na
antiga Lusitânia
Para o caso da Península Ibérica e segundo os estudos de T. Hauschild515
,
existia, entre os vários templos de distintos tamanhos e épocas, um grupo tipológico de
templos perípteros assentes sobre pódios, salientando-se os casos, para a Lusitânia, dos
templos de Mérida (de “Diana”) e de Évora. No entanto, Pax Iulia, cidade importante
relativamente a Arandis, apresentava por sua vez um templo prostilo.
No que se refere somente à província da Lusitânia, os templos romanos que nos
são conhecidos datam já da época imperial, e a sua tipologia, bem como as suas formas
decorativas, seguem quase sempre padrões evolucionados na pátria itálica a partir da
época imperial. Temos por exemplo o caso paradigmático do templo de Conímbriga
(época dos Flávios) que seguiu as ideias arquitectónicas dos grandes monumentos
estabelecidos em Roma: o conjunto arquitectural era composto de um recinto sagrado,
orientado segundo uma linha axial, e de uma praça estendida (um forum sem lojas
comerciais), a um nível mais baixo, diante da aera sacra; o aedis era integrado num
temenos, uma praça, cercado por um pórtico sobre criptopórtico, a galeria elevando-se
até um nível idêntico ao do pavimento do templo, criando assim um pano-de-fundo
teatral para o edifício religioso. Como particularidade, na entrada do recinto do dito
forum (na parte meridional), além da porta monumental existiam também possíveis
templetes, colocados entre as paredes das galerias e de tipo com pódio, talvez prostilo.
Sabemos igualmente, para a Lusitânia, que o templo hexastilo foi escolhido
nesta província para a zona do forum, preferencialmente apenas para as cidades de certo
nível (exemplos em Pax Iulia e até em Ebora). Outros municipia de menor categoria
apresentaram exemplares de menores dimensões, tetrastilos. Como especificidade
construtiva destaca-se a utilização da pedra granítica (material muito sólido que abunda
na região Centro e Norte) cuja dureza e difícil elaboração das formas decorativas
514
Tanto para as divindades celestes como ctonianas, podia-se igualmente utilizar um altar-lar ou
eschara, onde se queimavam as oferendas à divindade numa instalação do tipo do lar doméstico, ao nível
do solo (Ginouvès, 1998, p. 49 e nota 189 p. 48).
515 Hauschild, 2002, pp. 215-220.
99
levaram os arquitectos romanos a projectarem uma ornamentação com formas simples,
especialmente quanto aos capitéis: os capitéis corìntios do “Templo de Diana” em
Mérida foram trabalhados em granito, mas só de forma esboçada, para logo serem
cobertos com estuque em relevo; o pequeno templo áptero junto da ponte de Alcântara
(Cáceres) tem capitel de tipo toscano. Além do granito, podemos encontrar também
mármore para a decoração dos grandes edifícios, tornando-se um símbolo de uma
subida de estatuto da civitas, um equivalente visível do êxito alcançado pela cidade – as
colunas do templo de Évora tinham bases e capitéis em mármore branco de Estremoz,
enquanto os fustes eram de granito estriados e estucados. Por fim, T. Hauschild observa
ainda que o trabalho em granito (com cobertura de estuque), a utilização de duas
escadas laterais (como nos templos de Évora e de Conímbriga, subindo para a
plataforma do templo) e a prática dos criptopórticos que envolvem alguns dos templos
da província da Lusitânia (além de Conimbriga, reencontramos esta disposição em
Ebora)516
, acusam um modus faciendi idêntico que denuncia uma hipotética adaptação
dos modelos presentes na capital da província Augusta Emerita (sobretudo o “Templo
de Diana” de Mérida).
Relativamente à estatuária, J. Alarcão517
observa que a maior parte da escultura
do período romano encontrada em Portugal parece utilizar o mármore da região de
Estremoz e Vila Viçosa, pressupondo uma execução na Lusitânia, ou por artistas locais
ou, nalguns casos, por artistas itálicos imigrantes ou itinerantes.
516
Devemos notar que tanto para o templo flaviano de Conímbriga, como possivelmente para os
chamados “Templo de Diana” de Mérida e de Évora, o edifìcio de culto estava dedicado ao culto imperial
cuja disposição arquitectural parece continuar a tradição do caesareum. Este último possuía igualmente
um recinto sagrado rodeado de pórticos (era na realidade um forum), aberto por um propileu monumental
e comportanto um templo do antepassado mítico da gens Iulia. O conjunto arquitectural do caesareum
tornou-se efectivamente o ponto de partida da série dos fóruns imperiais e ao mesmo tempo na origem da
arquitectura do culto imperial (ver Ginouvès, 1998, p. 187).
517 Alarcão, 1988, p. 196.
100
III) 4) a) iii) Os santuários greco-romanos –
complexo religioso
Segundo os estudos de R. Ginouvès518
, na medida em que é delimitado, o
santuário constitui um temenos, isto é, um recinto sagrado dedicado a uma divindade,
podendo o santuário transborda-lo. O temenos era materialmente circunscrito, ou por
uma leve vedação em barreira, ou por balizas de cippus, ou por um muro (períbolo).
Esta parede (outras construções podiam substituí-la, como pórticos, ou a bordar) é
normalmente trespassada pelo menos por uma porta, por vezes guarnecida de um
propylon para proteger a espera dos visitantes.
A partir da entrada no santuário, o fiel circulava numa “via sagrada”519
(via
sacra) ou “via de procissões” que ligava as diversas instalações do temenos. O seu
traçado podia ser mais ou menos complexo, eventualmente uma espécie de grande Z.
Esta via podia alargar-se para formar uma “esplanada”, espécie de grande praça,
eventualmente lajeada, onde podiam reunir-se as procissões (spatium apertum), ou para
formar uma praça mais ou menos arredondada, onde podiam desenrolar-se danças ou
celebrar-se um drama sagrado (area).
Num grande santuário, além do altar e do templo, podiam existir outras
construções, eventualmente sobre terraços suportados por muros de sustentação, como
tesouros520
, oferendas monumentais, fontes521
, pórticos, dormitórios, cozinhas522
, salas
de banquete523
(symposion; stibadeion para os banquetes de confrarias), salas de
518
Ginouvès, 1998, pp. 34-36, 41-44, 48-53, 185-187.
519 Este termo é também muitas vezes utilizado para a via que conduz ao santuário (Ginouvès, 1998, p.
186).
520 Por oposição ao templo, o “tesouro” não continha estátua de culto, mas simples oferendas; o
vocabulário arqueológico emprega também a palavra oikos para designar uma construção religiosa que
não é um templo, onde se armazenavam oferendas e materiais diversos, e que neste aspecto constitui uma
espécie de tesouro, podendo também servir a reuniões ou a banquetes cultuais. Entre os edifícios
abrigando oferendas particulares, salienta-se o do hoplothèque (it. “deposito d’armi”), que em Delos
continha a panóplia de armas somente consagrada a Atena; na Acrópole de Atenas era uma chalcothèque
(it. “calcoteca”) que recebia as armas (Ginouvès, 1998, pp. 35, 187).
521 Em frente ao recinto sagrado do local de culto ou no interior, poços ou ninfeus forneciam a água
necessária para as abluções rituais e para o culto (Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62).
522 Um número assaz importante de inscrições assinala a existência de cozinhas, por vezes também de
refeitórios, nos lugares santos (Scheid, 1985, p. 197).
523 Existência do banquete sacrificial no rito privado e no rito público (Scheid, 1985, p. 194). As salas de
banquete jogavam então um papel importante em relação com o altar, elemento religioso maior
(Ginouvès, 1998, nota 112 p. 186).
101
reunião, “edifìcios de oikoi” (tipo arquitectural que alinha várias salas, de dimensões
comparáveis, muitas vezes precedidas de um pórtico)524
, edifícios administrativos,
edifícios para o desporto e para os espectáculos525
, exedras, edifícios de habitação, entre
outros. Podia até existir uma oficina, como o de Fídias em Olímpia. Para o nosso caso,
para além da possibilidade de construções com nomes especiais para os cultos
estrangeiros, é interessante salientar igualmente os edifícios do abaton (pórtico onde os
fiéis passavam a noite com o fim de serem “visitados” pelo deus, nos santuários de
divindades curandeiras), do megaron (edifício abrigando um bothros526
e reservado a
cultos de mistérios) e do telesterion (sala de mistérios para cerimónias de iniciação; é
organizado à maneira de uma sala de reunião, de planta próxima do quadrado ou
rectangular, com assentos para os fiéis poderem seguir facilmente as cerimónias).
III) 4) a) iv) O santuário de Chastellard de
Lardiers
Ao contrário de Lachau onde as fundações do santuário não foram ainda
encontradas527
(tal como para Peroguarda528
), mas que segundo M. Leglay529
ele estaria
situado a uns 50 metros da favissa530
, construído, segundo uma outra hipótese referida
por J.-P. Boucher531
, em madeira, o santuário de Chastellard de Lardiers532
apresentou
diversos vestígios arqueológicos (ver figs. 55 e 56).
524
A palavra oikos pode igualmente aplicar-se a um pequeno templo, feito de um só compartimento
(Ginouvès, 1998, nota 28 p. 35).
525 Os grandes locais de culto possuíam teatros (Dubourdieu e Scheid, 2000, p. 62).
526 O bothros é um tipo de lar, espécie de altar-cova em alvenaria que serve a queimar as vítimas
(Ginouvès, 1998, pp. 36, 49).
527 Carré, 1978, p. 122.
528 Viana e Ribeiro, 1957, p. 19.
529 Leglay, 1973, p. 535.
530 Num lugar onde foram achados fragmentos de telhas, uma estátua e duas urnas em chumbo (Leglay,
1973, p. 535). Para S. Lancel, as centenas de fragmentos de tegulae atestam a existência de edifícios
(Lancel, 1975, p. 535).
531 Boucher, 1980, p. 509.
532 Ver Rolland, 1962, p. 655; Rolland, 1964, pp. 545-550; Salviat, 1967, pp. 387-393; Salviat, 1970, p.
448.
102
Antigo oppidum pré-romano transformado na época imperial em local de
culto533
, o santuário de Lardiers estava delimitado por um grande temenos comportando
várias construções, cuja entrada (ou uma delas) foi localizada a Sul. A parede do recinto
sagrado, em pequeno aparelho regular e medindo de 60 a 85 cm de largura, nas
circunvizinhanças da entrada, não tomou conta da velha muralha pré-romana em pedras
secas, medindo de 3 a 4 m de largura. A favissa das lucernas votivas foi localizada fora
do temenos, encostada ao muro pré-romano (do lado Sul, isto é, no exterior da muralha
pré-romana), ao pé da dita entrada ao santuário. Após a entrada no recinto sagrado, os
fiéis deviam seguir uma via sacra que subia a encosta até ao topo do antigo oppidum
onde se localizava o templo. Esta via, de uma largura de 2,80 m e nivelada por uma
fraca camada de argamassa ou areia compactada nas irregularidades da rocha, estava
bordada de muros construídos em pequeno aparelho regular, medindo ainda perto de
1,50 m de altura, e de quatro nichos cultuais. O segundo nicho, larga de 2 m sobre 1,70
m e com um chão sobreerguido (0,60 m) possivelmente decorado em opus tessellatum
(mosaico), apresentou nas suas paredes restos de pintura (verde, amarela e vermelha) e
foi encontrado in situ um altar votivo anepígrafo (também o quarto nicho, escavado em
parte na rocha, conservava no local um altar anepígrafo; outra ara erigida por um devoto
e consagrada desta vez à divindade local Belado foi também achada numa dessas
construções). Nos dois últimos nichos, encontraram-se destroços de molduras em pedra
dura provindo de sua decoração.
Outro troço da via sacra, longo de 10 m, foi escavado (o autor não indica em
que zona do santuário), achando-se nas circunvizinhanças, a 25 m para Nordeste da
escavação, um edifício (4 x 4,75 m) de função indeterminada, aberto para Sul e coberto
de tegulae e, para Este e para Oeste, indícios de outras prováveis edículas do mesmo
tipo que foram nesta zona construídas em série, nas margens da via sagrada.
O templo, orientado para Este, compunha-se de uma cella com pronaos situada
no centro de um pátio e rodeada por uma galeria coberta, o conjunto estabelecido sobre
uma plataforma. A galeria, completamente fechada para o exterior (formando como um
períbolo de 24,80 m de lado), excepto na sua fachada oriental com uma larga abertura
533
Num primeiro período, que vai ao menos do século V a. C. aos primeiros anos da era cristã, uma aldeia
indígena ocupava este cimo fortificado por dois, e em certos lugares três, poderosas muralhas de pedras
secas. Por volta do início da nossa era, a aldeia de altura é abandonada por seus ocupantes que se instalam
nos domínios rurais estabelecidos nos dois vales que enquadram o oppidum a Este e a Oeste. Mas um
grande santuário instala-se no lugar do habitat indígena, frequentado até aos últimos anos do século IV d.
C. (Salviat, 1967, p. 391).
103
(4,60 m) para a porta principal do templo, apresentava para o interior uma colunata
(atestada ao menos no Norte e no Sul). O naos, de planta quadrada e em aparelho
regular, contendo um podium de 1,35 m de largura para a estátua de culto, estava
recoberto no interior de uma argamassa de cal com pinturas geométricas de painéis
vermelho vivo e largas faixas brancas, e no exterior por um reboco branco sobre o qual
estavam desenhadas falsas pedras de cantaria de bossagens circunscritas por chanfros
(este cimento fino e duro era ele mesmo recoberto de um esmalte branco). Por sua vez, a
parede da galeria estava decorada internamente de um reboco vermelho no qual eram
desenhadas faixas brancas, amarelas, verdes e azuis.
Por detrás do templo, entre a sua fachada ocidental e o primeiro recinto pré-
romano, existia uma grande via de circulação (fr. “boulevard de circulation”), enquanto
que na parte da frente, distanciado de 10 m para Sudeste, erguia-se um pórtico.
O pórtico de 30,80 m de comprimento sobre 3,69 m de largura, estendendo-se
em direcção Norte-Sul, abria-se para Oeste por uma colunata. Numerosas escórias de
bronze derretido, encontradas na parte Norte do pórtico permitem julgar do destino que
foi reservado aos objectos metálicos que continha ou deviam ornar o edifício. Dispostos
paralelamente, esses dois últimos edifícios (templo e pórtico) constituíam um conjunto
arquitectural homogéneo, estabelecido aquando do acomodamento cultual do oppidum
na primeira metade do século I d. C.
Flanqueando o pórtico para Este estavam encostados seis pequenos
compartimentos em pequeno aparelho regular, de junturas consertados a ferro. Em
direcção ao Sul, numerosos destroços de placas de mármore branco provinham
verosimilmente de um revestimento, e um telhado em madeiramento está atestado pelo
achado de fragmentos de telhas e pregos. Construídos posteriormente ao pórtico (cerca
de meados do século II), esses compartimentos representavam talvez lojas ou simples
hangares dando sobre uma das vias de acesso ao templo.
Rodeando o pórtico, nos lados Oeste e Norte, existiam mais três edículas de
planta rectangular e abrindo para Oeste (em direcção ao templo), representando, tais
como os nichos da via sacra, oferendas de colectividades ou de ricos devotos.
Outras construções situavam-se a Norte do templo: para Nordeste, temos
vestígios que tudo indicam pertencer a pequenos “oratórios” rectangulares, situados
num pátio ou sobre uma qualquer via de acesso ao templo (em termos decorativos, além
das telhas, encontraram-se elementos de calcário moldurados, estuques pintados,
placagens de mármore); para Noroeste, encontrou-se um pequeno edifício em forma de
104
trapézio irregular; entre essas construções, descobriu-se também um amontoamento de
mármores de placagens, alguns tendo formas geométricas e duas placas ornadas de
folhagens em relevo, indiciando nas proximidades um outro edifício relativamente
luxuoso.
III) 4) b) Os santuários egípcios
III) 4) b) i) Aspectos arquitectónicos e
decorativos
Em relação aos santuários de culto egípcio nas províncias de Roma, para além
dos tanques nilóticos e de ablução, sabemos que na época imperial se combinavam
monumentos de estilo grego ou romano com monumentos de estilo egípcio, com o
objectivo de dar aos templos dedicados aos deuses do Nilo um ar mais indígena,
relembrando os locais de culto do Egipto. Foi para este propósito que, para além de
prováveis razões cultuais534
, foi criada uma aleia de esfinges535
(dromo536
) no início do
século I a. C. em frente ao templo do Iseum de Delos 537
(ver fig. 57).
Para além das esfinges, podemos tomar como outro exemplo os telamones538
que
J.-C. Grenier pensa serem bastante frequentes nos santuários egipcizantes da época
romana (mais exactamente para santuários de grandes dimensões539
), sem dúvida
inspirados dos colossos osiríacos da arquitectura egípcia. Temos o caso dos dois
Osirantínoo telamones colossais em granito vermelho do “Serapeu de Cânopo” da Villa
534
Seja para que as cerimónias que se desenrolavam fossem daí em diante dissimuladas dos olhares, seja
para que os oficiantes dispusessem de um espaço especial inacessível à massa dos fiéis. É preciso notar
que o dromo estava limitado por dois longos muretes com poucos acessos laterais (Bruneau, 1980, pp.
163, 186).
535 Sob o Império Antigo, a esfinge foi representada na entrada dos templos, simbolizando o poder real (a
comparação muito antiga do rei com o leão está na origem da esfinge), acabando mais tarde por ser
rebaixada à categoria de simples guardiã de templo e de túmulo. No decurso do Império Novo, a esfinge
foi associada mais particularmente à divindade Ámon-Ré, rei dos deuses, a cabeça humana sendo então
substituída por uma cabeça de carneiro (Lurker, 1994, p. 211).
536 Avenida marginada de esfinges que conduzia à entrada dos templos egípcios (Silva e Calado, 2005, p.
131).
537 Bruneau, 1980, pp. 184-188.
538 Um télamon é uma estátua antropomórfica usada em arquitectura para sustentar entablamento, cornija,
etc. (Silva e Calado, 2005, p. 349).
539 Ver Mar, 2001, p. 314.
105
de Adriano, muito provavelmente colocados nos ângulos interiores dos pavilhões que
ladeavam a gruta-fonte540
, ou os do Serapeum de Pérgamo541
.
Sabemos igualmente que os recintos consagrados a uma divindade egípcia
englobavam templos ou capelas de outras divindades542
. Em Delos, por exemplo, Ísis
estava abrigada num dos Serapeus543
. Por sua vez, o Serapeu de Adriano em Tivoli, na
qualidade de monumento egípcio, retomou uma das regras fundamentais da arquitectura
indígena para uma tríade divina544
, estando a capela consagrada ao “deus pai”
flanqueada por um lado pela da “deusa mãe”545
, do outro pela do “deus filho”546
. No
caso do Iseu de Pompeia (exemplo excepcional por sua rápida reconstrução após o
terramoto do ano 62 e incluída numa ínsula), o pronaos comportava dois nichos laterais
provavelmente dedicados a Harpócrates e Anúbis, cujos altares respectivos se situavam
de cada lado da escada de acesso ao aedis, e na parede traseira do templo existia outro
nicho ocupado desta vez por Dioniso / Osíris547
(ver fig. 58).
Havia também, no recinto sagrado, hospedarias e casas que Serápis “alugava”
especialmente para devotos que queriam viver perto dele (os katochoi)548
; locais
especiais (oikoi) no templo, com leitos (klinai) dispostos de maneira particular, para as
tradicionais refeições (deipna) cerimoniosas549
; um pórtico (edifício dito do abaton)
para acolher devotos em busca de uma cura (tanto para Ísis como para Serápis, os
procedimentos eram os mesmos que para o deus Asclépio: os oráculos eram expedidos
540
Grenier, 1989, pp. 973-974 e nota 87.
541 Mar, 2001, p. 314.
542 Préaux, 1978, p. 653 e Vasconcellos, 1913, p. 350.
543 Préaux, 1978, p. 653. No Serapeu C, junto ao templo de Ísis existiam igualmente um pequeno templo
dedicado à tríade alexandrina e uma provável capela consagrada a Anúbis (Mar, 2001, fig. 61 e texto p.
317).
544 No santuário egípcio de Karnak dedicado a Ámon, encontra-se no centro a câmara que contem a cella
de granito que protegia a imagem divina. Em ambos lados desta câmara acham-se outras edificações que
alojavam as estátuas dos deuses parentes, geralmente a esposa (Mut) e o filho (Khonsu), e as dos deuses
exteriores acolhidos no templo (López, 1993, pp. 30, 127, 129-130).
545 Quando a deusa mãe, nos templos do Egipto, ia dar à luz ao pequeno deus, o parto realizava-se sempre
no mamisi (Rachet, 1994, p. 578).
546 Grenier, 1989, pp. 971-972.
547 Mar, 2001, fig. 62 e texto p. 319.
548 Préaux, 1978, p. 654.
549 Burkert, 2003, p. 108.
106
por incubação; aparição da divindade em sonhos, cura no acordar)550
; e eventualmente
uma biblioteca (exemplo célebre do Serapeu de Alexandria) 551
.
Segundo R. Mar e J. Ruiz de Arbulo552
, podemos observar, entre os diferentes
Serapeus (bem como nos Iseus), uma tradição arquitectónica comum que remontava às
origens do próprio culto, conservando traços específicos alexandrinos em função das
cerimónias pensadas para a participação de uma ampla comunidade de culto: pronaos
sobre pódio elevado, precedido de uma área descoberta, o conjunto integrado num pátio
porticado553
. A plataforma do pronaos constituía sempre um autêntico palco
relativamente a area sacra que precedia o templo. Esta organização do espaço interior
do santuário sugeria portanto que o culto tinha como ponto focal o pronaos do aedis –
graças a um pódio elevado e frequentemente desenvolvido como uma tribuna, a imagem
divina podia ser vista por todos, e os sumo-sacerdotes, situados no pronaos frente à
entrada da cella, podiam dirigir-se à comunidade dos devotos reunidos na área
descoberta, com os coros, iniciados e outros oficiantes em torno dos altares.
No helenismo tardio, vamos assistir a uma regularização da forma geral dos
edifícios serapeicos, conservando os aspectos necessários para o funcionamento do
culto (o pódio, a capela, a plataforma com o pronaos e o pátio fechado) e traduzindo-se
na forma de naiskoi, ou pequenas capelas, edificadas sobre um amplo pódio, construídas
no centro de pátios fechados. Reencontramos efectivamente estas características em
dois santuários ocidentais dedicados a Ísis no século I d. C.: Pompeia na Campânia e
Baelo Claudia na Bética.
Por fim, para ornar a casa dos deuses alexandrinos, havia a necessidade do
desenvolvimento de toda uma iconografia nilótica que recordava a paisagem original do
Egipto e seus símbolos característicos em fauna e flora sacralizadas. No Iseum de
Pompeia, por exemplo, o quadripórtico estava pintado com painéis do terceiro estilo
550
Ver Préaux, 1978, p. 652, Burkert, 2003, p. 19 e Rachet, 1994, p. 189.
551 Nos templos, não se discutia somente sobre a natureza dos deuses e do homem; estudavam-se as
matemáticas, a astronomia, a medicina, a filologia e a história. Os clérigos eram verdadeiros sábios,
aproveitando-se das conquistas do pensamento para uma melhor compreensão do destino do homem e do
mundo, das relações do céu e da terra (Cumont, 1906, pp. 39-40).
552 Mar, 2001, pp. 314- 320, 323 e figs. 59-63.
553 Só o Iseum de Erétria estava inserido num simples períbolo, ao contrário de muitos outros templos,
com pátios parcialmente ou completamente fechados por pórticos. Relembramos que o grande Serapeu de
Alexandria tinha a forma de uma imensa praça porticada em que se abria o templo propriamente dito,
junto aos de Ísis, Harpócrates, Anúbis e os theoi adelphou. Formas semelhantes tinham também o grande
Serapeu de Mênfis e o templo de Ísis em Philae (ver Mar, 2001, p. 314 e figs 59-63).
107
pompeiano, mostrando diferentes quadros e distintos sacerdotes protagonistas da pompa
isíaca; as paredes em redor da cisterna subterrânea estavam por sua vez ricamente
estucadas com figuras em relevo; o ecclesiasterion ou sala de reunião para os iniciados
possuía, além de um mosaico, grandes quadros de paisagens sagradas isíacas e cenas da
vida de Io decorando as paredes; por fim, a sala adjacente ao ecclesiasterion continha
um larário pintado e a cena do navigium Isidis.
Para o caso da Hispânia e segundo os estudos de J. Alvar554
, nenhum dos
santuários egípcios conhecidos proporcionou informação sobre uma decoração
especialmente egipcizante. Sabemos que os templos eram construídos num estilo
nitidamente romano, com excepção do singular caso de Panóias, mas não se sabe se as
suas paredes estavam cobertas com cenas rituais e paisagens nilóticas (para simular um
Egipto miniaturizado), como ocorre em Herculano. Só podemos notar certos elementos
egipcizantes em alguns restos de estatuária.
A maior parte das esculturas vinculadas aos cultos egípcios em Hispânia
representam os deuses nilóticos sob sua fisionomia romanizada (versão helenístico-
romana). Também é necessário chamar a atenção sobre algumas peças que parecem
sustentar que alguns elementos decorativos pretendiam dirigir a imaginação até ao
longínquo Egipto.
Esculturas de época faraónica apareceram também em estratos arqueológicos de
época romana. É legítimo, segundo o autor, a tentação de as considerar relíquias
ancestrais conservadas nos modernos templos romanos aos que, sem dúvida,
proporcionariam prestígio e veneração – testemunhas da veracidade dos rituais ali
efectuados, garantia da antiguidade e autenticidade do culto.
Por fim, J. Alvar acrescenta que o culto praticado em Hispânia devia desenrolar-
se de forma similar ao dos santuários mediterrânicos conhecidos.
554
Alvar, 2012, pp. 29, 31.
108
III) 4) b) ii) O Serapeu de Óstia
Segundo a obra de R. Mar555
, o Serapeu da cidade portuária de Óstia (ver figs.
59 e 60), dedicado a Júpiter Serápis e construído entre os anos 123-127 d. C. (primeiro
projecto; várias etapas construtivas seguiram-se depois ao longo dos séculos II, III e IV
d. C.), apresentava-se como um grande complexo religioso dentro de um recinto único
de planta “triangular” inserido na urbanização, comportando casas de aluguer (o edifício
residencial “Caseggiato di Bacco e Arianna”), armazéns (os pequenos horrea), termas
(da “Trinacria”) e uma área de culto: templo, area sacra e salas de reunião.
Pela sua tipologia, este conjunto recorda a forma de alguns templos colegiais
ostienses, e no caso deste Serapeu, o templo constituiu o elemento central que
organizava a composição de toda a zona de culto.
O recinto estava atravessado por um eixo de circulação, denominado “via del
Serapide”, que começava com o arco construìdo no centro da fachada do “Caseggiato di
Bacco e Arianna”, do lado Norte. Esta via constituía um distribuidor interno do Serapeu
que dividia as distintas dependências do santuário em duas partes. A parte Oeste foi
dedicada aos edifícios de culto (série de pátios e pórticos), enquanto a zona Este foi
reservada para a construção de uns balnea. No fundo deste distribuidor, do lado Sul,
situava-se um conjunto de armazéns integrados funcionalmente no sistema do santuário.
Era no pátio central da zona Oeste que se localizava o templo propriamente dito,
servindo os outros pátios de acesso a salões triclinares. Um corredor de serviço que
corria por detrás dos edifícios e um sistema de portas permitiam unificar funcionalmente
esta série de pátios.
A morada da divindade era constituída por uma pequena capela aberta para Este,
um templo prostilo e tetrastilo de planta rectangular praticamente isenta, edificado sobre
um elevado pódio e com um pronaos muito desenvolvido, cujo acesso se realizava
através do intercolúnio central graças a uma escada axial. Em correspondência com as
quatro colunas da entrada, uma tripla porta dava acesso a cella desde o pronaos. O
conjunto foi construído no fundo de um pequeno pátio decorado com pórticos. A area
descoberta que precedia o templo apresentava no seu centro um altar quadrado e estava
pavimentada com um mosaico de tema nilótico (sobre um fundo branco distribuíam-se
as habituais representações de pigmeus, hipopótamos, íbis, crocodilos e serpentes), cuja
555
Mar, 2001, pp. 39-44, 88-89, 100, 325-328.
109
representação esquemática e empobrecida das que foram as elaboradas paisagens
nilóticas helenísticas indiciava a modéstia de recursos dos fundadores do Serapeu
ostiense. O acesso ao recinto realizava-se através de um pequeno protiro porticado.
Podemos notar, segundo R. Mar, o carácter limitado dos elementos egipcizantes
deste Serapeu, não apresentando criptas subterrâneas relacionando-se com os rituais de
iniciação556
, nem instalações hidráulicas ligadas ao ritual da inundação do Nilo557
e às
quotidianas práticas de ablução purificadora das imagens de culto, dos sacerdotes e dos
iniciados558
. Pelo contrário, o carácter convivial dos ritos egípcios aparece claramente
definido na importância particular que desde um primeiro momento receberam os
quatro grandes oeci triclinares em ambos lados da area sacra, destinados aos banquetes
sagrados (o ritual da “kliné do senhor Serápis”). Os edifícios, ou uma parte dos mesmos,
onde se situavam essas salas, representariam eventualmente os pastophoria, as
residências de sacerdotes e hóspedes. Um número tão amplo de salões triclinares
originaria necessariamente uma importante actividade de cozinhas e preparações de
serviços. Crê-se portanto que o edifício de pilares situado junto ao quarto pátio,
directamente acessível desde o corredor geral de serviço situado por detrás do templo e
do resto dos edifícios de culto, permitia a instalação das cozinhas necessárias para a
celebração destes ágapes sagrados.
A ausência relativa de elementos arquitectónicos egipcizantes contrapõe-se com
o emprego de uma linguagem arquitectónica especificamente “romana” nas formas e
também por uma articulação directa com o sistema urbano da cidade. O Serapeu mostra-
se totalmente inserto, relativamente a delineamentos compositivos e a formas
decorativas, na arquitectura ostiense do século II d. C. Poderíamos citar ademais a
presença das termas ou a escassez da epigrafia grega em contraste com o que ocorre em
outros santuários egípcios. No fundo, trata-se de aspectos culturais do Serapeu ostiense
que refletem o processo de integração desta devoção na religiosidade romana. O próprio
nome da divindade venerada, Júpiter Serápis, o demonstra claramente: não há
sincretismo, senão assimilação.
556
A cripta era o lugar ideal para formar votos de uma maneira “pura” – euchesthai hagnôs – (Burkert,
2003, p. 20).
557 Somente nas reformas de época severiana a cenografia nilótica se desenvolveu a partir de uma edícula
adossada ao pátio de Baco e Ariadne contendo uma fonte e uma estátua do rio Nilo (Mar, 2001, p. 325).
558 Com o complexo e quotidiano ritual das abluções, tão só podemos relacionar a dedicatória da
reparação de um labrum, e as fontes e exedras próprias das reformas de época avançada (Mar, 2001, p.
325).
110
O importante volume de armazenagem evidenciado pelos pequenos horrea
indicia que de alguma forma o Serapeu participava também em negócios de comércio
através do porto da cidade559
. Esta actividade económica de tipo comercial
complementar-se-ia com a exploração imobiliária evidenciada pelo regímen de aluguer
das tabernae e dos cenacula ou apartamentos superiores do “Caseggiato di Bacco e
Arianna”.
Por fim, além dos aspectos rituais ou económicos no funcionamento quotidiano
do santuário, tínhamos as actividades de manutenção e negócios. O pessoal de origem
servil, ligado às cozinhas, termas, e muitos outros serviços, representava seguramente
uma parcela importante entre a comunidade do Serapeu ostiense.
III) 4) b) iii) O “Serapeu de Cânopo” da Villa
de Adriano (Tivoli)
O complexo, construído entre 123 e 128 d. C., representava na origem um
“Egipto jardim” com um cenário original, mas em suma convencional, não fazendo
senão perpetuar a tradição romana da ars topiaria (jardins romanos). Era composto
sobretudo de um Canopus, longo tanque evocando o canal canópico do Nilo, terminado
por uma gruta-triclinium (consagrada primeiro a espectáculos ou mesmo a festividades
tais como se praticavam nas margens do Canopus) formando um ninfeu de dimensões
colossais, com uma sala de banquete traçada em hemiciclo e coberta por uma semi-
cúpula (ver figs. 51 e 61). Por sua vez, a ornamentação do parque foi concebida na
origem para abrigar algum superficial reflexo dos prazeres exóticos de Cânopo.
Posteriormente, todo o conjunto foi transformado num templo de carácter serapeico por
Adriano, onde se devia comemorar a ressurreição ritual de Antínoo, favorito do
imperador que morreu afogado nas águas do Nilo. Esta transformação foi certamente
concluída para o regresso a Roma do imperador em 134 d. C. (foi na sua viagem ao
Egipto em 130/131 que se deu a morte do seu favorito), uma transformação que
abrangeu, senão a estrutura do edifício, seguramente sua decoração560
.
559
Para R. Mar e J. Ruiz de Arbulo, «los santuários de cultos egípcios sin llegar a relaciones de
dependência orgânica, se hallaban interrelacionados no solo por motivos de devoción común, sino
también por evidentes intereses económicos. En esse contexto las conexiones, en términos de patronazgo,
establecidas a través de la comunidade de culto, aportan un trasfondo social que explica perfectamente la
presencia de un horreum de estas dimensiones» (Mar, 2001, p. 327).
560 Lavagne, 2002, p. 82 e Grenier, 1989, pp. 929, 976, 978.
111
J.-Cl. Grenier561
, após uma análise completa da sua decoração estatuária
(segunda decoração do “Serapeu de Cânopo” aquando da sua transformação, muito
provavelmente realizada com o auxílio de um sacerdote egípcio erudito, como era
comum na época, para a concepção geral bem como em todos os detalhes562
), acrescenta
a hipótese de o antigo “Egipto de jardim” ter sido substituído na realidade por um
“Egipto de viagem”, ilustrando o essencial do que tinha marcado Adriano durante a sua
estadia no país do Nilo em 130/131, bem como as evocações sucessivas, no dito
Canopus, da odisseia de Ulisses e do imperador percorrendo o Império. A estrutura
arquitectural do Serapeu, segundo uma lógica “geográfica”, representaria portanto, não
uma réplica do Serapeum da cidade de Canopus – ao que parece, este santuário egípcio
era um templo clássico de ordem dórica, e não uma construção em hemiciclo –, mas
uma carta monumental do Egipto563
evocando com realismo o país inundado sob a
enchente do Nilo, sendo o grande tanque, não uma evocação do canal canópico, mas o
mare nostrum, isto é, um troço do Mediterrâneo.
A estrutura arquitectural do monumento, com uma orientação Sul-Norte,
apresentava portanto em primeiro lugar uma vasta exedra coberta de uma semi-cúpula
(a abóbada era na origem recoberta de mosaicos de pasta de vidro564
) e decorado de
quatro Antínoo Osíris de pedra vermelha (cor do Baixo Egipto), colocados em nichos
abobadados, em alternância com nichos-fontes (rectangulares com decoração de
embrechados565
). Esta construção em hemiciclo reproduzia na realidade o aspecto do
Delta, percorrida por dois canais semi-circulares, cujas quatro extremidades
representavam as quatro grandes bocas do Nilo (Canópica, Bolbítica, Sebenítica e
Pelusíaca), encerrando um pequeno tanque central que evocava as vastas zonas litorais
pantanosas do Delta e talvez até, mais precisamente, a do lago Borollos; estreitas
561
Grenier, 1989, pp. 925-1019.
562 O aspecto invulgar e profundamente “indìgena” deste Serápis regressando à categoria de Osìris-Ápis, a
cerimónia do seu despertar solar e do rito que o acompanhavam, a assembleia das divindades reunidas em
redor do deus, são outros tantos elementos plenamente estrangeiros às formas isíacas ou alexandrinas dos
cultos egípcios praticados fora do Egipto (Grenier, 1989, p. 978).
563 Este “Egipto” encontra-se em plena concordância com a passagem bem conhecida da «Vida de
Adriano» na História Augusta, indicando províncias e sítios famosos que tinham dado seu nome a
monumentos da Villa (Grenier, 1989, pp. 927, 975).
564 Lavagne, 2002, p. 82.
565 Lavagne, 2002, p. 82.
112
banquetas emergidas (leitos de triclinium566
) separavam esses canais e tanque semi-
circulares entre si.
A exedra era em seguida prolongada no seu eixo por um longo e estreito
corredor a céu aberto, evocando por sua vez o longo e estreito vale do Nilo, que possuía
uma “ponte” inteiramente coberta por uma abóbada que lhe era particular. O tabuleiro
da “ponte” apresentava uma “encenação” de uma cerimónia ritual representando o
despertar pelos oficiantes (sacerdotisa stolistes, sacerdotisa “música” e “portador de
oferendas”) do deus-sol Osíris-Ápis (bifrons humano e taurino emergindo de sua flor de
lotus567
), despertar testemunhado por outros deuses colocados por sua vez em nichos
acomodados de cada lado do corredor. Esses últimos estavam representados por duas
estátuas de Osirantínoo nos nichos centrais, estando nas extremidades as efígies de Ptah
e Nefertoum de Mênfis dum lado (par divino ligado a Ápis e formando assim uma tríade
menfita), Ísis e Hórus de Cânopo do outro (par divino ligado a Osíris e formando assim
uma tríade canópica), explicitando assim a dupla natureza e origem de Serápis. Acima e
a jusante da “ponte”, situavam-se outros nichos decorados de quatro Antínoo Osíris de
pedra branca (cor do Alto Egipto), terminando-se o corredor com uma parede que o
separava de uma cisterna. Aqui encontrava-se um nicho-fonte revestido de embrechados
(pietra pomice), decorado de um busto colossal de Ísis-Sothis-Deméter, e evocando a
gruta-nascente da primeira Catarata do Egipto donde saía a enchente do Nilo568
(uma
verdadeira cascata de forte caudal e alta de mais de quatro metros devia verter-se no
corredor569
).
Este conjunto exedra-corredor abria para um pórtico a quatro colunas flanqueado
de dois pavilhões avançados e simétricos, enquadrando na perfeição o corpo central do
566
Lavagne, 2002, p. 82.
567 Tema iconográfico do “deus sobre a flor” muitas vezes atestado na religião egìpcia para evocar o
nascimento, o despertar do Sol no Loto primordial. A religião alexandrina retomou-o mostrando o busto
de Serápis (entre outros) emergindo de um cálice de acanto. Esta iconografia solar ilustrava o poder do
renascimento do deus na qualidade de detentor da energia cíclica que tinha recebido tanto de Osíris como
de Ápis. O regresso quotidiano do astro do dia é o garante da vida e o símbolo da permanência da ordem
cósmica. Ele ilustra a vitória sobre a noite, a morte e o caos (Grenier, 1989, pp. 940-941, 977).
568 Para os antigos Egìpcios, era do Noun, oceano primordial e imenso reservatório das “águas de baixo”
(mares, rios, inundações, poços) e das “águas de cima” (chuva), que provinham as águas sagradas do Nilo
(Bohrmann, 1992, pp. 176-179).
569 A cisterna que devia alimentar o grande nicho-fonte foi deixada inacabada e nunca recebeu água. A
morte de Adriano, em 138 d. C., interrompeu as obras e o “Egipto” nunca teve oportunidade de ter sido
inundado sob a enchente do Nilo. À sua morte, colocou-se no sítio o busto de Ísis-Sothis-Deméter no
nicho que foi encerrado por um simples tabique (Grenier, 1989, pp. 976-977).
113
edifício e decorados muito provavelmente nos seus ângulos interiores por dois
Osirantínoo telamones colossais em granito vermelho (servindo também de suporte ao
telhado). De um lado e do outro do edifício estavam ainda dispostas diversas peças
cegas, abrindo unicamente no espaço transversal separando o pórtico da exedra.
Relativamente aos pavilhões, cada um comportava um grande nicho semi-circular
acomodado segundo um eixo transversal (perpendicular ao eixo geral do Serapeu) e
dedicados respectivamente a Ísis (o da direita) e a Harpócrates (o da esquerda),
constituindo assim a tríade alexandrina com Serápis cuja parte do santuário lhe foi
consagrada (outras “Ísis” mais pequenas, tal como uma Cleópatra-Ísis suicidando-se,
bem como estátuas de “Osíris de Cânopo”, podiam também decorar o pavilhão da
direita). Mas também, segundo a lógica “geográfica” e estando de um lado e do outro da
exedra (o Delta), os pavilhões evocavam igualmente a cidade de Pelúsio (o da esquerda;
a Oriente do Delta) e a cidade de Alexandria (o da direita; a Ocidente do Delta),
conotando-se com as divindades que eram aí consagradas.
Existiam igualmente no “Serapeu de Cânopo” de Adriano outras estátuas
egipcizantes que seriam entre uma vintena, muitas com função puramente decorativa,
como babuínos, crocodilos, ou até esfinges que enquadravam talvez portas colocadas
aos pares ou em formando dromo.
Por fim, frente ao pórtico, situava-se um tanque rectangular, seguido de outro de
grandes dimensões, ocupando todo o valezinho do “Canopus” (no eixo do Serapeu) e
representando o mare nostrum. Tínhamos na sua decoração estatuária a evocação de
Atenas na “margem ocidental” (com as cariátides do Erecteu), de Éfeso na “riba
oriental” (com as duas Amazonas de Policleto e de Fídias que decoravam o templo de
Ártemis), bem como a presença da monstruosa Cila devorando os marinheiros de
Ulisses (representada duas vezes sobre “ilhas”).
O acomodamento hidráulico deste Serapeu tinha portanto como objectivo
substituir-se ao Nilo. Todavia, a evocação do grande rio sagrado não está aqui limitada a
um elemento que ficava noutros sítios arquitecturalmente anexo. A água ocupava aqui
toda a arquitectura e é unicamente em função dela que o edifício inteiro foi concebido,
como se este Serapeu fosse o próprio “Nilo”, mais exactamente um “Nilo” em enchente
se se considera a vontade deliberada de inundar sob as águas toda a parte significativa
do edifício, da mesma maneira que o rio inundava toda a parte viva e fértil do Egipto.
114
Relativamente agora à forma peculiar do Serapeu de Adriano, temos de notar
que o Serapeum de Mênfis570
, cidade igualmente visitada pelo imperador aquando da
sua viagem no Egipto571
, tinha igualmente uma construção em hemiciclo.
Santuário mais antigo que o de Alexandria, o Serapeu de Mênfis possuía uma
exedra (dionisíaca) povoada de onze grandes estátuas-retratos, cinco poetas e cinco
filósofos (escolhidos por Ptolemeu I) em volta de um belo Homero em glória572
, à
entrada mesma do Serapeu573
.
De igual composição era também a base curva do Stibadeion de Tasos, que data
aproximadamente de um mesmo período – princípios do século III a. C. O monumento
apresentava de facto, no fundo do naos, um soco curvo onde tinham assento uma figura
de Dioniso rodeado por personificações de uma série de géneros literários.
Além da construção em hemiciclo, o Serapeu menfita possuía igualmente dois
pequenos templos situados nas margens de uma ala de esfinges (conduzindo do
santuário de Nectanebo para a entrada da necrópole propriamente dita do Serapeu),
dedicados respectivamente a Ápis e a Dioniso.
Adequando-se perfeitamente ao raciocínio de J.-C. Grenier sobre a origem de
Serápis (entidade resultante da fusão de Osíris de Cânopo com o Ápis de Mênfis),
podemo-nos perguntar se de facto a construção em hemiciclo no “Egipto” da Villa de
Adriano não seria na realidade uma réplica da exedra do Serapeu de Mênfis, berço do
deus Ápis, observado in situ por Adriano durante a sua viagem ou, eventualmente, já
referido por um desses sacerdotes egípcios eruditos chamados pelos imperadores em
intervir sobre obras egipcizantes574
. O acomodamento hidráulico representando o Nilo
em enchente relacionar-se-ia por sua vez com o Osíris de Cânopo.
570
Picard, 1951, pp. 71-81.
571 Para mais detalhes sobre a viagem de Adriano no Egipto, ver Golvin, 2002, pp. 40-45.
572 A existência da assembleia dos poetas e filósofos, desejado por Ptolemeu I, teve como origem um
largo movimento de curiosidade literária e de veneração do pensamento grego, ao qual se ligou depois a
actividade da Biblioteca de Alexandria, “Viveiro das Musas” (Picard, 1951, p. 77).
573 Desde o tempo da Academia, a meditação filosófica tinha-se instalado de bom grado perto das
necrópoles, o que explica o lugar do hemiciclo de Mênfis na entrada do Serapeu (Picard, 1951, p. 77).
574 Sobre esses sacerdotes, ver Grenier, 1989, p. 979 e notas 92 e 93.
115
III) 4) b) iv) O Iseu de Baelo Claudia (Bolonia,
Cádis)
O templo de Ísis de Belo575
(ver fig. 62), datado de cerca de 65 d. C. a meados
do século III d. C., estava inserido num pátio com pórtico (peristilo), dentro de um
períbolo de planta rectangular. A entrada no santuário fazia-se pela fachada meridional
através de uma escada monumental, permitindo aceder ao peristilo cujas galerias tinham
mais de dois metros e meio de largura (cinco colunas nas alas Este e Oeste, quatro
colunas nas alas Norte e Sul).
Na zona setentrional do pátio, embutido parcialmente na galeria Norte, erguia-se
um pequeno templo tipicamente romano sobre pódio com capitéis de tipo coríntio,
construído com a mesma técnica que se empregou nos vizinhos templos capitolinos, isto
é, com materiais pobres e reboco de estuque branco. A cella, praticamente quadrada,
estava precedida de um pronaos. Da decoração do templo não se conserva praticamente
nada, com excepção de uma escultura de mármore branco representando uma esfinge
(encontrada na parte meridional do pátio). Seguramente, segundo J. Alvar576
, pelos
paralelos de outros santuários, teria existido uma outra esfinge, destinadas as duas a
flanquear um elemento arquitectónico, possivelmente a escada de acesso ao pódio.
Por sua vez, na zona meridional do pátio, encontrava-se o altar principal577
seguido do tanque nilótico (de planta rectangular com 1,60 x 0,69 m), duas construções
perfeitamente alinhados ao aedis e fazendo-o frente. Um lar (focus) vinha completar o
conjunto do pátio, situando-se à direita do tanque e destinado a queimar as oferendas.
Relativamente ao reservatório, ele era alimentado por uma canalização de chumbo vinda
do Leste e embutida na sua parede Norte; o escoamento das águas efectuava-se no
ângulo Sudeste por um curto cano de chumbo ligado por sua vez a um esgoto em
alvenaria, coberto de lajes e selado pelo opus Signinum constituindo o pavimento do
pátio e do pórtico. Esta última conduta que se dirigia para o cardo assegurava tanto a
evacuação da água em demasia do tanque como das águas da area aquando das chuvas.
No extremo Sul da galeria ocidental existia um poço, e na galeria Norte, por
575
Alvar, 2012, pp. 79-80, 84; Pelletier et al., 1987, pp. 70-75; Pelletier et al., 1988, pp. 21-25.
576 Alvar, 2012, p. 84.
577 Entre os restos do altar do pátio principal documentaram-se figos, tâmaras, sementes de tremoço e
pinhas carbonizados (Alvar, 2012, p. 80).
116
detrás do aedis, situavam-se três edifícios que abriam para o lado do pórtico por uma
porta de 1 m de largura. O edifício mais oriental, de planta rectangular e duas vezes
maiores que os outros compartimentos, foi identificado como sendo a sala de iniciação
nos mistérios isíacos. O compartimento tinha uma parte a céu aberto, delimitada por
quatro colunas, comportando um altar de telhas com “bordaduras”578
, recoberto de
estuque579
, e uma estrutura quadrada de centro vazio. As colunas tinham capitéis de tipo
coríntio e sustentavam um telhado feito de telhas e de placas de chumbo. Encostada à
parede Oeste encontrava-se também uma construção em parte subterrânea, em que se
penetrava por uma porta situada no seu lado Norte; a edícula em pedra e coberta de uma
abóbada, tinha um interior exíguo com dois degraus (o degrau superior formava um
patamar) que permitiam descer ao nível inferior da cripta (a 0,88 m abaixo do
pavimento superior). Os outros dois compartimentos, do mais ocidental ao centro, de
dimensões muito vizinhas e de planta quase quadrada, representavam respectivamente
uma cozinha e uma sala de banquete ou de reunião, embora não se tenha achado
nenhum resto significativo (podiam simplesmente representar alojamentos para os
sacerdotes).
A organização da galeria setentrional, especialmente para a zona de acesso aos
dois compartimentos mais orientais, deixa pensar que a circulação estava sem dúvida
estreitamente controlada, senão interdita à maior parte dos fiéis, sendo uma zona
reservada ao clero e aos neófitos. De facto, o pódio do templo, invadindo largamente
esta galeria, as duas banquetas encostadas à parede dos compartimentos, e o pequeno
muro perpendicular à parede do recinto e fazendo frente à entrada para a sala dos
mistérios, transformavam a galeria num estreito corredor com passagens exíguas e
igualmente bem resguardado de olhares indiscretos (excepto para a dita cozinha).
578
Por cima do plano superior de uma mesa de altar, podìamos encontrar “bordaduras laterais” ou em
“Pi” de formas diversas (fr. “bordures”; termo preferido por R. Ginouvès de entre muitos outros), em que
uma das suas funções, mas não necessariamente a mais importante, era impedir a queda das cinzas
(Ginouvès, 1998, pp. 52-53).
579 Em torno deste altar encontraram-se ossos de animais, maioritariamente de frangos, cozinhados sem
cabeça, entre um resto de ganso e um dente de boi (Alvar, 2012, p. 80).
117
III) 4) b) v) O Iseu de Italica (Santiponce,
Sevilha), o templo dos deuses alexandrinos de
Emporiae (Ampúrias, Gerona) e o pé serapeico de
Conimbriga (Condeixa-a-Velha)
O templo de Ísis de Italica580
, situado no pórtico traseiro da scaenae frons do
teatro da cidade (no centro da galeria Norte,), foi construído em meados do século II d.
C. segundo a norma vitruviana para os templos romanos. O Iseu era composto de uma
cella com pronaos (tetrastilo) sobre podium (o naos ocupava um espaço exterior ao
pórtico), em que vinha acrescentar-se um altar e uma cripta (na área central), bem como
um tanque e um focus, formando assim, segundo J. Alvar581
, um complexo de culto que
respondia a um esquema canónico (complexo que se encontrava igualmente, como já
vimos, no Iseu de Belo).
O acesso à cella realizava-se mediante uma escadaria integrada no pódio, diante
da qual existia uma pequena entrada formada por duas grandes lajes de mármore e
protegida por uma cancela metálica (diante desta cancela encontraram-se placas
dedicadas a Ísis). Em frente ao aedis e alinhado com ele situavam-se o altar (1,97 x 1,95
m), algo deslocado, e em seguida o tanque de planta rectangular (10,90 x 3,60 m). Este
último apresentava reentrâncias e saliências interiores rectangulares e curvas
(lembrando o proscaenium de um teatro).
O focus (parcialmente soterrado e com 1,32 m2) onde se queimavam as
oferendas estava por sua vez localizado a Noroeste do tanque e em eixo com a cripta.
Esta última tinha planta em L, cujo lado curto albergava uma escada, de ao menos cinco
degraus, que descendia desde o eixo que marcava o templo. A câmara (6,26 x 1,81 m),
sensivelmente maior que outras conhecidas, não estava pavimentada e tinha mais de
dois metros de altura, coberta por uma abóbada de canhão rebaixada.
Na própria galeria Norte do pórtico identificaram-se outras construções
relacionadas com o templo e que representavam possíveis dependências cultuais e de
serviços.
580
Alvar, 2012, pp. 60-61.
581 Alvar, 2012, pp. 60-61.
118
Para além dessas construções no Iseu de Italica, existia igualmente um nilómetro
ao lado da cripta. Sabemos que os instrumentos utilizados pelos Egípcios para medir a
subida das águas da enchente do Nilo (cheias que se produziam cada Verão) eram os
nilómetros, e os agentes, os sacerdotes especializados dos templos. Os lugares de
observação localizavam-se essencialmente na primeira catarata (ilha Elefantina) e em
Mênfis, assim como, muito provavelmente, um pouco a Sul de Alexandria, à altura de
Schédia. Eles permitiam, segundo Diodoro de Sicília (I, 36, 11), informar a população
da importância da subida das águas bem como da sua descida, para saber de antemão da
abundância das colheitas futuras e dos riscos de inundações catastróficas582
– a
enchente, para ser benéfica, devia ser de 16 côvados, senão, quando insuficiente, dava
uma má colheita ou, quando demasiada importante, provocava uma inundação
destruidora583
.
Nos templos egípcios da época ptolemaica (bem como dos tempos
faraónicos584
), para além da medição, os nilómetros permitiam abastecer os santuários
em água pura do Nilo para as necessidades litúrgicas, sendo a água santa por excelência
aquela da inundação anual significando a renovação e o renascimento585
. R. A. Wild
propõe como hipótese que o Serapeum de Alexandria teria igualmente nilómetros cuja
utilização, visto a fraca amplitude da enchente neste lugar, seria simbólica, afirmação
que J. Leclant considera a relativizar. Para N. Genaille, supor que este “nilómetro”
servia para manifestar o poder de Serápis sobre a inundação e fornecer ao mesmo tempo
a água para os ritos litúrgicos leva a admitir que não se trata exactamente de um
nilómetro586
. Relativamente às criptas de água nilótica fora do Egipto (construções que
relembram os nilómetros), este último autor coloca igualmente a seguinte questão: «os
reservatórios serviam de facto a imitar a enchente do Nilo587
, ou a armazenar uma água
destinada a usos rituais588
, ver profanos?».589
582
Bonneau, 1981, pp. 105-106.
583 Bohrmann, 1992, nota 5 p. 177.
584 Genaille, 1983, p. 294.
585 Leclant, 1981, p. 197.
586 Genaille, 1983, pp. 294-295 e Leclant, 1981, p. 198.
587 Em Delos A, há efectivamente uma possibilidade de criar uma pseudo-enchente permitida pelos
trasbordamentos do Inopos de Delos, tradicionalmente ligada ao Nilo (Genaille, 1983, p. 295).
588 Em Delos B, já não há uma fonte aquática como em Delos A, o reservatório era enchido à mão
(Genaille, 1983, p. 295).
119
Tomamos como exemplo o caso da cripta de água nilótica do Iseu de Pompeia590
(ver fig. 58). De facto, por detrás do grande altar de culto (no ângulo Este do pátio
porticado), existia uma construção descoberta de paredes ricamente estucadas com
figuras em relevo, contendo no seu interior o acesso a uma cisterna subterrânea com
cobertura em abóbada591
. Para R. Mar592
, e respondendo à pergunta de N. Genaille para
o caso de Pompeia, esta estrutura em subsolo servia para conter a água lustral inspirada
no nilómetro dos templos egípcios. Relembramos que a água do Nilo, de presença
obrigatória nos santuários egípcios, podia ser importada em ânforas e logo guardada em
recipientes específicos593
.
Relativamente ao templo dedicado aos deuses alexandrinos em Emporiae594
,
denominado de templo M e edificado nos finais do século II ou inícios do século I a. C.
(conjuntamente com outro pequeno templo, na extremidade de um vasto pátio com
pórticos595
), sabemos, por intermédio de uma inscrição bilíngue comemorativa596
, que o
santuário foi dedicado a Ísis e Serápis, referindo-se a dedicatória à construção de um
templo, estátuas e pórtico. Existia igualmente uma cisterna em frente aos templos M e
P.
Para além da estátua de Serápis em tamanho maior que o natural (realizada
muito provavelmente em Delos, com a técnica de peças encaixadas) e fragmentos
marmóreos de outra relacionando-se provavelmente com Ísis, apareceu igualmente um
pedestal em pedra de cal, com forma de coluna estriada e rematada com capitel jónico,
tendo na parte superior uma cavidade para recolher a água das lustrações (foi
encontrado in situ no templo M). Interessante é igualmente um fragmento de relevo
589
Genaille, 1983, p. 296: «les réservoirs servaient-ils en fait à imiter la crue du Nil, ou à stocker une eau
destinée à des usages rituels, voire profanes?».
590 Mar, 2001, fig. 62 e texto p. 319.
591 O tanque data da época helenística (Genaille, 1983, p. 296).
592 Mar, 2001, fig. 62 e texto p. 319.
593 Mar, 2001, p. 325.
594 Alvar, 2012, pp. 95-100.
595 Rachet, 1994, p. 49.
596 J. Alvar transmite-nos a seguinte tradução: «A Isis. A Sarapis. Numas, hijo de Numenios, alejandrino,
devoto, mando hacer el templo, las estatuas y el pórtico. A Isis. A Sarapis. Noumas, hijo de Noumenios,
alejandrino, devoto hizo el templo, las estatuas y el pórtico» (Alvar, 2012, p. 99).
120
marmóreo em que se conserva a parte traseira de uma esfinge, e os restos de uma garra
que tanto podia pertencer a uma provável escultura do cão Cérbero que acompanharia
um Serápis entronizado, como pertencer a uma esfinge ou até um móvel.
Por fim, temos o caso do pé serapeico de Conímbriga597
, cuja tipologia o situa
entre finais do século II e inícios do III d. C. Segundo a análise de J. Alvar598
, L.
Castiglione599
considera os pés esculpidos como epifanias divinas600
e M. Le Glay601
defende que se trata de representações do próprio deus simbolizado em seu pé e que, em
consequência, seriam verdadeiras estátuas de culto, posto que não correspondem ao pé
do suposto peregrino. Tais pés eram frequentemente dedicados a Serápis. S. A.
Takács602
, por seu lado, sustem que se estes pés não são a expressão da presença mesma
da divindade, manifestam-se neles a sua percepção ou o agradecimento do fiel. Em
qualquer caso, os adornos com flor de loto neste exemplar de Conímbriga tornam
aceitável a sua conexão com os cultos nilóticos cumprindo a função de manifestação do
próprio deus que, com a sua presença, fertiliza o campo e proporciona bem-estar aos
seus seguidores. Em consequência, seria admissível a existência em Conímbriga de um
espaço sacro em que se albergava este monumento.
Esta representação do pé de Serápis relembra em muito a perna osiriana da ilha
de Bigeh no Egipto (no chamado Abaton). De facto, as listas de relíquias dos templos
greco-romanos dizem que em Bigeh, no túmulo de Osíris, achava-se enterrada
597
Segundo a descrição de J. Alvar é a «parte anterior de un gran pie izquierdo calzado com un calceus
senatorius vel patricius magnificamente trabajado. Está decorado com flores de loto estilizadas. La parte
inferior también está tallada y presenta una suela curva que impide asentar sobre base plana y excluye su
pertenencia a una estatua monumental» (Alvar, 2012, p. 39).
598 Alvar, 2012, pp. 39-40.
599 Castiglione, L., «Tables votives à empreintes de pied dans les temples d’Égypte» in Acta Orientalia
Academiae Scientiarum Hungaricae, 20, 1967, pp. 239-252.
600 As plantae pedis do Egipto foram consideradas, por L. Castiglione, como epifanias do deus ou
testemunho de sua presença permanente, comemorando ou provocando uma intervenção da divindade,
conotando-se com o caso dos pés esculpidos (Alvar, 2012, p. 39).
601 Le Glay, M., «Un “pied de Sarapis” à Timgad en Numidie» in M.B. de Boer et A. Edridge (eds.),
Hommages à Marteen J. Vermaseren. Recueil d’études offerts par les auteurs de la série EPROER à
Marteen J. Vernaseren à l’occasion de son soixantième anniversaire le 7 Avril 1978 II, EPROER 68,
Leyden, 1978, pp. 577-579.
602 Takács, S. A., «Divine and Human Feet: Record of Pilgrim Honouring Isis» in J. Elsner – I.
Rutherford (eds.), Pilgrimage in Graeco-Roman & Early Christian Antiquity. Seeing the Gods, Oxford,
2005, p. 357.
121
unicamente a perna esquerda do deus e que nesta perna estava situada uma fonte pela
qual as águas brotavam em torrentes603
. Ora, as águas do Nilo, especialmente as da
inundação anual, permitiam as ricas colheitas do Egipto, fertilizando a terra e
proporcionando a felicidade dos Egípcios, efeitos benéficos que reencontramos nos pés
serapeicos do período romano.
III) 5) Vivência religiosa num santuário egípcio
Segundo os estudos de W. Burkert604
, R. Mar e J. Ruiz de Arbulo605
sobre o
tema da vivência religiosa num santuário egípcio, sabemos que pelo efeito de uma
tradição milenar, os cultos egípcios dirigiam-se a estátuas, nas quais, pensava-se, a
divindade residia. Desde então, necessitavam de uma casa, isto é, um templo, assim
como cuidados constantes da parte dos sacerdotes. Isto significa que os membros do
clero deviam estar ligados em permanência ao templo606
, como foi sempre o caso no
Egipto, divididos em dignitários (sumo-sacerdotes), sacerdotes de menor renque e
simples servos607
.
Pela necessidade de adorar os deuses com os ritos vindo do Egipto, o “Egìpcio”
devia estar sempre presente para cumprir o sacrifício com competência608
– conhecer
603
López, 1993, p. 111.
604 Burkert, 2003, pp. 43-45.
605 Mar, 2001, pp. 323- 326.
606 O clero egípcio é absorvido por inteiro pelo seu ministério, vivendo unicamente para o seu templo e do
seu templo. Já não constitui, como os colégios sacerdotais de Roma, comissões administrativas regulando
os negócios sagrados do Estado sob a vigilância do Senado. Os membros não regressam como cidadãos,
aos seus deveres cívicos ou, como magistrados, à direcção dos negócios públicos, assim como o faziam os
antigos pontífices romanos, quando tinham cumprido o serviço solene de um dia de festa (Cumont, 1906,
pp. 52-53).
607 Segundo F. Cumont, o clero estava organizado como o era o do Egipto na época ptolemaica, formando
uma hierarquia dirigida por um sumo-sacerdote (Cumont, 1906, p. 115).
608 A eficácia da oração não dependia das disposições íntimas do fiel, mas da exactidão das palavras, do
gesto e da entoação. Se uma divindade é invocada segundo as formas exactas, sobretudo se se sabe
pronunciar o seu verdadeiro nome (na língua egípcia), ela estará constrangida em agir segundo a vontade
do seu sacerdote (o culto não se distinguia nitidamente da magia). O nome encontrava-se de facto
indissoluvelmente ligado a personalidade. Daí a necessidade de conservar a forma original do vocábulo
misterioso (Cumont, 1906, pp. 114, 116-117). Sabemos de facto que muitos deuses no antigo Egipto não
eram conhecidos pelo seu nome, que se guardava secreto, porque os Egípcios pensavam que os nomes
eram a essência mesma das coisas que designavam. O nome de uma pessoa era uma parte essencial do seu
ser. Bastava conhecê-lo para poder exercer uma influência benéfica ou maléfica sobre o seu proprietário.
A vida e a morte dependiam do nome (López, 1993, pp. 85-87).
122
com precisão os detalhes do ritual em aspectos tão complexos como era a leitura e
interpretação dos livros sagrados (prophetai e grammateis)609
; daí alguns dos
sacerdotes, pelos menos, deviam normalmente ser naturais do Egipto (existiam
igualmente ajudantes núbios). Para além disso, deviam utilizar livros escritos em
hieróglifos e servir-se da água sagrada do Nilo610
.
Como no Egipto, os sacerdotes, vestidos “a egìpcia” (com túnica de linho
branco, cabeça cuidadosamente rapada e sandálias de papiro611
) e obrigados a um voto
de castidade612
, cumpriam um serviço quotidiano613
, de manhã à noite, despertando
solenemente os deuses614
, vestindo-os615
, dando-lhes comida616
e pondo-os no leito. A
primeira hora matinal implicava a abertura das portas do templo, seguido do acender do
fogo e da purificação lustral com aspersões de água sagrada de todo o recinto e
fumigações de aromas prezadas617
. As clepsidras e os relógios de sol permitiriam, a
609
Os livros sagrados da época greco-romana reproduziam fielmente os textos gravados outrora nas
paredes das pirâmides. Cumpriam-se ainda sob os Césares com uma preocupação escrupulosa as antigas
cerimónias que remontavam às primeiras idades do Egipto. Este ritual e a ideia que se fazia dele passaram
em grande parte nos templos latinos de Ísis e de Serápis (Cumont, 1906, pp. 114-115).
610 Sabemos que a água do Nilo, de presença obrigatória nos santuários egípcios, podia ser importada em
ânforas e logo guardada em recipientes específicos (Mar, 2001, p. 325).
611 A “multidão com roupas de linho e cabeça rapada” era uma fórmula clássica para descrever, na
literatura, um santuário egipcizante (Burkert, 2003, p. 45).
612 A pureza ritual incluía vários aspectos, desde as abluções à pureza sexual, passando pelo trajar de
vestimentas brancas (Boëls-Janssen, 2004, p. 205). É preciso notar no entanto que no antigo Egipto os
sacerdotes podiam casar-se, porém a abstinência sexual era de facto rigorosa durante os meses de serviço
no templo (López, 1993, p. 148).
613 A antiga liturgia quotidiana egípcia, traduzida em grego e depois talvez em latim, e adaptada pelos
fundadores do Serapeu a necessidades novas, era fielmente seguida nos templos romanos dos deuses
alexandrinos (Cumont, 1906, p. 116).
614 O sacerdote, levando consigo um círio especial (Ruiz de Arbulo, 1996, p. 120), despertava o deus
chamando-o na lìngua egìpcia (Cumont, 1906, p. 116). Segundo o antigo rito do Egipto, o “despertar”
consistia essencialmente em tocar a estátua nos locais onde se situam os órgãos sensoriais para lhe
devolver o uso daqueles, fazer-lhe ouvir música e cantos para o apaziguar e o despertar ao mesmo tempo,
apresentar-lhe oferendas alimentares para fortificar sua energia e fazer-lhe a homenagem dos produtos do
Egipto (Grenier, 1989, p. 947).
615 Sabemos que nos Iseus a estátua da deusa devia ser penteada, vestida, enjoiada e toucada
convenientemente para que os fiéis, que acudiam a área dianteira para saudá-la com sua oração matutina,
pudessem desfrutar sua presença majestosa (Mar, 2001, p. 324).
616 Para as divindades alexandrinas, já não se sacrificava somente em tal ou tal ocasião, como faziam os
Romanos para os seus deuses, mas duas vezes diariamente (Cumont, 1906, p. 117).
617 Ao longo do dia, o santuário e as oferendas eram repetidamente purificadas com a cremação de
incenso, mirra ou resinas, inundando o ambiente do imprescindìvel aroma “agradável aos deuses” (Ruiz
de Arbulo, 1996, p. 120).
123
partir deste momento, continuar a jornada e seus diversos actos particulares até ao
encerramento oficial das portas do templo618
.
Dois frescos procedentes de Herculano619
reflectem fielmente alguns daqueles
actos de culto quotidiano celebrados num santuário egípcio. No caso da pintura
representando a cerimónia da água sagrada (ver fig. 53), podemos ver um sumo-
sacerdote fazendo a sua aparição no pronaos de um templo, flanqueado por esfinges e
palmeiras, e levando consigo a jarra com a água do Nilo. A sua presença é anunciada
por dois oficiantes que tocam o sistro620
. Na área dianteira ao templo, aparecem outros
sacerdotes dirigindo o coro dos fiéis (ou iniciados) agrupados em duas fileiras, que
acompanham com os seus cantos e com o som de sistros e flautas, o percurso
processional do sumo-sacerdote até ao altar representado em primeiro plano e rodeado
de íbis (enquanto o sumo-sacerdote está ainda no pronaos, outro oficiante já está
queimando oferendas no altar). Por sua vez, na pintura mural representando uma
cerimónia com dança ritual, podemos observar uma personagem mascarada bailando no
alto do pronaos de um templo, enquanto que à volta dele e na área dianteira ao aedis,
dispersos diante de um altar em chama de tipo ptolemaico (com “cornos” angulares) e
rodeado de íbis, aparecem sacerdotes e iniciados, crianças e jovens, que cantam, batem
palmas, seguram objectos de culto, agitam sistros e tocam flautas e tambores, estando
alguns de joelhos em adoração.
Para além dos rituais quotidianos, o carácter mistérico de uma parte dos cultos
obrigava ao desenvolvimento de um complexo cerimonial introdutório para converter o
simples devoto num iniciado (mystès). As experiências como iniciado isíaco de Lúcio, o
protagonista das Metamorfoses de Apuleio, são bem ilustrativas: em primeiro lugar, o
sonho milagroso e profético em que a própria divindade se apresenta ao mortal
propondo-lhe uma solução aos seus problemas; depois, a frequência continuada do
618
Durante toda a manhã, após a cerimónia essencial da apertio, as imagens dos deuses eram oferecidas à
adoração muda dos iniciados. Depois, durante a tarde, celebrava-se o serviço do encerramento do templo,
fechando e selando o naos para a noite (Cumont, 1906, pp. 116-117). No antigo rito do Egipto, o rosto da
divindade era recoberto por um véu aquando do encerramento do naos (Grenier, 1989, p. 947 e López,
1993, p. 137).
619 Mar, 2001, estampas XXXIX e XL e textos página 167.
620 Na descrição da estampa, R. Mar refere-se a um sacerdote núbio e a um iniciado de larga cabeleira
agitando os sistros. Pelo contrário, W. Burkert descreve os dois indivíduos como sendo um sacerdote
negro, representando Anúbis, e uma sacerdotisa levando um sistro, representando Ísis, rodeando portanto
o oficiante que segura nas suas mãos o vaso contendo a água do Nilo, isto é, Osíris (Burkert, 2003, fig. 8
e texto em “Table des Illustrations”).
124
santuário e dos seus ritos quotidianos, podendo até alugar um alojamento no recinto do
próprio templo; por último, de novo por revelação divina, a aceitação pelo sumo-
sacerdote do iniciado, pagando previamente uma quantidade acordada “para custear as
rogativas”.
Compreendia esta iniciação a leitura das fórmulas rituais, o banho621
e a
purificação lustrais, seguidos de um período de jejum e abstinência depois do qual tinha
lugar a cerimónia, nocturna e secreta, da iniciação. Em seguida, o iniciado mostrava-se
diante dos devotos vestido com a “estola olìmpica” formada por doze túnicas
sobrepostas e uma clâmide ricamente bordada, toucado com uma coroa de folhas de
palmeira (para W. Burkert é uma coroa imitando os raios do Sol622
) e portador de um
archote. Após a apresentação seguia-se um banquete ritual, ambas cerimónias repetidas
três dias depois623
.
No caso de Serápis, os sacrifícios de animais que lhe eram destinados624
,
frequentemente gansos e frangos, mas também bois se o devoto era rico, junto a um
número muito diverso de oferendas consumíveis, potenciavam um ritual característico
dos santuários egìpcios: a “kliné do senhor Serápis”. Tratava-se de um banquete sagrado
no qual, depois dos ritos de apresentação dos novos iniciados, participava a própria
divindade por intermédio dos sacerdotes, aceitando os initiati em seu seio (este seria o
papel da grande sala do Iseu de Pompeia, denominada ecclesiasterion, e da grande sala
anexa à entrada do Serapeu A de Delos).
Os momentos em que o culto das divindades egípcias alcançava o seu ponto
culminante eram as grandes cerimónias ligadas ao ciclo isíaco, quando as estátuas
abandonavam a sua morada em grandes e ruidosos cortejos multicolores. Eram estas
fundamentalmente o navigium Isidis (ou Ploiaphesia) do 5 de Março, o grande cortejo
que assinalava a retomada da navegação, e a grande festa de Outono
(aproximativamente de 28 de Outubro a 3 de Novembro) que rememorava a paixão e
621
As formas diversas de purificação, de aspersão ou de ablução de água, nos mistérios assim como em
praticamente todos os outros cultos, não devem ser confundidas com o baptismo propriamente dito –
imersão numa ribeira ou num tanque, simbolizando o começo de uma nova vida (Burkert, 2003, p. 99).
622 Burkert, 2003, p. 95.
623 Descrição das experiências de Lúcio e das etapas da iniciação por R. Mar e J. Ruiz de Arbulo (Mar,
2001, p. 324).
624 O princípio do sacrifício consiste numa oferenda alimentar à divindade, sendo o sacrifício por
excelência o de uma vítima animal. Era pelo intermediário do fogo que a oferenda chegava até ao deus
(Boëls-Janssen, 2004, p. 205).
125
morte de Osíris, a busca dos seus restos e a sua ressurreição encarnado na água sagrada
do Nilo, culminada numa alegre procissão festiva (relembramos a festa nocturna da
Lychnokaie). Outras festas menores eram as Pelusia do 24 de Março que recordavam a
aparição de Harpócrates, celebradas com emplastos curativos aos viandantes. Nos
âmbitos egípcio e helénico outra festa característica era a festa das lâmpadas (lampadeia
ou lychnapsia) provavelmente destinada a celebrar o nascimento de Ísis, não
esquecendo também a do nyktelion. Por sua vez, em contraste com o ciclo isíaco, as
festas concretas celebradas em honra de Serápis são muito menos conhecidas. O
calendário de Philocalus menciona as Serapieia romanas do 25 de Abril como uma
grande festa da Primavera625
.
Os collegia reunindo os que participavam no culto de uma maneira ou de outra
multiplicaram-se, com toda uma hierarquia de iniciados ajudantes encarregados das
mais diversas incumbências (de salientar que a documentação epigráfica de cada
santuário proporcionou variações próprias): além dos pastophoroi (“portadores de
templos” nas procissões) que tinham como função preparar toda a rotina diária das
actividades, encontravam-se também os hiéraphoroi (“portadores de objectos
sagrados”), mélanophoroi (“que trajam vestimentas pretas”, como a enlutada Ísis em
busca de Osíris), sindonophoroi (“que trajam vestimentas de linho”), stolistai (que
vestiam e adornavam as estátuas; existiam também os hypostoloi, um grado inferior aos
stolistai), horologoi (responsáveis pela estrita manutenção dos horários de abertura e
encerramento), horoskopoi (intérpretes do calendário), oneirocrites (intérpretes dos
sonhos), lyknaptriai (guardiãs das lâmpadas), neokoroi e zakoroi (ajudantes e
guardiões), entre outros. F. Cumont626
acrescenta ainda os profetas, termo utilizado
pelos Gregos para designar os sacerdotes de classe superior, isto é, os “servos do deus”,
sendo o “primeiro profeta” o sumo-sacerdote do templo627
.
Ao lado deste núcleo estritamente ligado ao culto, existiam ainda, entre os
devotos que acudiam ao santuário de forma quotidiana, outros grupos de fiéis
(thérapeutai, cultores, katochoi), sem patente nem função específica; alguns de entre
eles alugavam até um alojamento no interior do santuário, para viver mais perto da
625
Enumeração das grandes cerimónias egípcias por R. Mar e J. Ruiz de Arbulo (Mar, 2001, pp. 324-
325).
626 Cumont, 1906, p. 115.
627 López, 1993, p. 145.
126
divindade, o mais tempo que podiam. Em Pérgamo, por exemplo, sabemos da existência
de um colégio de simples devotos compostos por thérapeutai, enquanto que no recinto
sagrado do Serapeu de Mênfis, hospedarias e casas eram “alugadas” pelo deus
especialmente para devotos que queriam viver perto dele, mais precisamente para os
katochoi (“aquele que é retido, agarrado ou possuìdo”). Segundo C. Préaux628
, a
semelhança com a condição do “noviço”, que no livro XI das Metamorfoses de Apuleio
espera que Ísis, em sonhos, lhe indica que o momento da iniciação chegou, é tão estreita
que se pode considerar os katochoi como “noviços”. Os “reclusos” do Serapeu de
Mênfis viviam, de facto, num estado de espera mística que não excluía no entanto
qualquer relação de negócios com o exterior, de onde provinham os recursos que eles
geriam, enquanto que eles eram remunerados por serviços auxiliares juntos dos
sacerdotes. No entanto, para R. Mar e J. Ruiz de Arbulo629
, os katochoi não eram
“noviços”, mas simples mendigos que buscavam alimento e abrigo ao amparo da
divindade.
Para os devotos em geral, e no caso da Hispânia, J. Alvar630
afirma que homens
e mulheres (incluindo escravos e libertos, pobres e ricos) aparecem em número similar
na epigrafia isíaca hispanense631
.
Por fim, tíasos632
de estilo grego, isto é, associações de Isiastai, Anubiastai e
Sarapiastai, podiam desenvolver-se à volta do núcleo egípcio.
628
Préaux, 1978, p. 654.
629 Mar, 2001, p. 324.
630 Alvar, 2012, p. 34.
631 J. Alvar afirma também que o sacerdócio dedicado a Ísis foi ocupado maioritariamente por mulheres.
Só elas detinham os escassos sacerdócios que se mencionam nas inscrições peninsulares (Alvar, 2012, p.
34).
632 O tíaso era um tipo de comunidade que podia persistir através várias gerações (koinon é uma dessas
designações mais correntes, e o termo symmystai marca o apego mutual). Há aí membros dedicados que
gastam um tempo considerável, energia, dinheiro para o deus e para seus companheiros de iniciação. Os
participantes cumprem actos em comum, especialmente sacrifícios, com a refeição de cerimónia que
segue; fazem também procissões (pompai) através da cidade. Obrigações semelhantes às de uma amicitia
pessoal existiam, compreendendo o auxílio em caso de processo e a assistência nos funerais. Os clubes
não eram feitos para aqueles que não tinham nada. São as honras (timai) que eram requestadas entre os
symmystai de um tíaso, honras ganhas especialmente por generosas contribuições financeiras (Burkert,
2003, pp. 49-50).
127
III) 6) As oferendas votivas de Santa Bárbara de Padrões
Na Antiguidade, sabemos que o voto era feito em público, diante testemunhas, e
o seu cumprimento era reconhecido publicamente, em plena luz do dia, no meio de
muitos outros, aproveitando do investimento os artesãos, os pequenos comerciantes e
todos aqueles que participavam aos banquetes acompanhando os sacrifícios633
.
O que é implicado na decisão de um pedido, em cada ocasião, é um acto de fé,
pistis (especialmente verdade no caso da doença), conceito particularmente atestado em
contexto isíaco634
.
Para ser ouvido pela divindade, o fiel tinha de se apresentar numa disposição de
espírito e de alma feita de integridade, de humildade, de abandono à sua vontade, por
outras palavras, a pietas e a fides eram as duas virtudes requeridas pelos deuses aos
fiéis635
.
Não é raro também que as inscrições votivas indiquem que a decisão ela mesma
é devido por sua vez a uma intervenção sobrenatural, a um sonho, a uma visão, a uma
ordem divina636
.
Por fim, sabemos igualmente que nos santuários de Serápis e de Ísis, era muito
comum dedicar estátuas de outros deuses ou de lhes dirigir votos637
.
Para o nosso caso específico, podemos observar que todas as lucernas votivas de
Santa Bárbara de Padrões, bem como as de Peroguarda, foram utilizadas antes de terem
sido depositadas na favissa638
, indiciando muito provavelmente a sua alumiação
aquando da sua oferta à divindade, permanecendo no sítio até que a luz se apagasse por
si mesma639
. Podemos até colocar a hipótese que era no momento em que se fechava as
633
Burkert, 2003, p. 17.
634 Burkert, 2003, p. 17.
635 Le Glay, 1995, pp. 43-45.
636 Burkert, 2003, p. 17.
637 Era perfeitamente corrente também para uma mesma pessoa de acumular diferentes sacerdócios:
encontramos particularmente associações de Cíbele com os deuses egípcios (Burkert, 2003, pp. 54-55).
638 Maia e Maia, 1997, p. 23; Viana e Ribeiro, 1957, pp. 19-20 e Ribeiro, 1960, p. 4.
639 Segundo H.-R. d’Allemagne, fora do contexto das lâmpadas que queimavam diante dos seus altares
particulares, os Romanos consideravam como um ponto de religião de não apagar uma luz servindo a um
uso doméstico e de a deixar morrer por si mesma, por causa, diziam eles, do respeito que se devia ao fogo
(Allemagne, 1891, pp. 2-3).
128
portas da cella e do santuário, que as lucernas dos devotos eram alumiadas junto do
naos e eventualmente de outras capelas, provavelmente por um sacerdote que tinha este
encargo específico, protegendo assim a(s) divindade(s) contra as trevas setianas,
permanecendo acesas durante a noite. No dia seguinte, extinguida a chama, as candeias
eram então transportadas até ao depósito votivo.
Segundo M. G. P. Maia e M. Maia640
, alcofas de esparto ou outro material
perecível foram utilizadas para o acondicionamento das lucernas, aquando do transporte
e do armazenamento na vala.
Em relação às lucernas fragmentadas de antigo e pertencentes ao século III (4ª
camada), os arqueólogos de Santa Bárbara pensam terem sido quebradas
propositadamente, talvez ritualmente, antes de serem enterradas, apresentando as
lucernas mais tardias de Peroguarda as mesmas características641
. Ora, reencontramos
este ritual em quebrar objectos relacionados com o sagrado nos Celtas. De facto, autores
antigos como Diodoro, Lucano ou Tito Lívio, evocaram nos seus escritos sobre certos
costumes dos Celtas (mais exactamente dos povos alpinos), a consagração de objectos
aos deuses quebrando-os nas paredes dos templos642
. Para citar alguns exemplos em
França, encontramos provas deste acto ritual em Acapte (Hyères)643
, onde loiça
cerâmica foi quebrada contra um rochedo sagrado; no já conhecido santuário de
Chastellard de Lardiers644
, em que argolas de grande formato foram partidas
intencionalmente como objectos votivos; ou nas áreas cultuais de grandes refeições de
comunhão em Bliesbruck (Moselle)645
, apresentando numerosos depósitos com
cerâmica fragmentada de antigo e propositadamente646
.
640
Pode-se observar em Santa Bárbara deposições de planta grosseiramente circular, contendo cerca de
80 a 100 candeias, mais ou menos intactas, parecendo coincidir, segundo M. G. P. Maia e M. Maia, com
as deposições de Peroguarda, onde as lucernas inteiras foram achadas “às bolsadas” ( Maia e Maia, 1997,
p. 21 e Viana e Ribeiro, 1957, p. 19).
641 Maia e Maia, 1997, p. 21 e Viana e Ribeiro, 1957, pp. 18-19, 30.
642 Tournie, 2001, p. 183.
643 Arcelin et al., 2003, p. 180.
644 Rolland, 1962, pp. 655-656.
645 Lévêque, 1989, pp. 515, 519.
646 Interessante é também o mobiliário que apresentou o túmulo de um príncipe orientalizante ibérico de
Pozo Moro (Espanha), datado de 500 a. C., e constituído por vasos de beber, vasos de libações e vasos de
perfume que foram queimados e destruídos por ocasião do enterro. Para R. Olmos, o facto de destruir
bens de luxo era um sinal de superabundância e um privilégio daqueles que detinham o poder (Olmos,
129
Ou seja, num dado momento do século III d. C., os Aranditani, de etnia celta,
voltaram a praticar um ritual dos seus antepassados no santuário de culto egípcio de
Santa Bárbara. Este comportamento pode ser explicado pelo período de crise e
instabilidade que caracterizou este século647
. De facto, sabemos que nos períodos de
instabilidade, de mutações socioeconómicas, os indivíduos têm tendência em
desenvolver a “religião do pai”, caracterizada por um grande respeito e um temor
reverencial648
. Este regresso às origens foi marcado em Santa Bárbara de Padrões pelo
acto ritual de quebrar objectos votivos.
Por sua vez, no depósito votivo de Lachau, podemos notar que os exemplares
intactos ou as formas completas de lucernas são raros, apresentando as várias
escavações arqueológicas, até 1976, uma quantidade de 50 kg de fragmentos de lucernas
contra somente uma quinzena de lucernas intactas649
, diferindo em muito do caso de
Santa Bárbara. Apesar dos autores da revista Gallia não terem especificado a
estratigrafia das várias campanhas de escavação e em que camada exactamente foram
encontradas as raras lucernas intactas, tudo indica uma forte sobrevivência celta no
ritual de quebrar objectos votivos durante toda a vigência do Império Romano em
Lachau, ao contrário dos Celtici de Arannis que só voltaram a praticá-lo durante o
período de instabilidade e decadência.
Além de lucernas votivas (inteiras ou quebradas), foram também encontrados, na
5ª camada pertencente ao período de meados do século I a finais do século II d. C.,
alguns fragmentos de vidro, quase todos de pequenos unguentários, e algumas moedas
da dinastia Antonina. Sendo esses objectos lançados no depósito votivo, juntamente
com as candeias, eles representam portanto excepções no acto votivo habitual praticado
neste santuário. Enquanto as moedas representam um ex-voto muito comum entre os
2002, pp. 39-40). No entanto não encontramos aqui o acto do quebrar, mas, tal como para os sacrifícios
sangrentos, o fogo parece transmitir, neste caso para o defunto, esses objectos que lhe foram consagrados.
647 Sabemos que nos anos 60 do século III d. C., a Gália e boa parte da Hispânia foram assoladas por
Francos e Alamanos que cruzaram o Reno. O território actualmente português, segundo J. Alarcão, não
sofreu certamente os efeitos desta invasão, embora deva ter sofrido da inflação, da recessão económica e
da agitação social que nesses meados do século III se verificaram em todo o Império (Alarcão, 1988, p.
75).
648 Carré, 1978, nota 97 p. 132.
649 Lancel, 1975, p. 535 e Boucher, 1977, p. 476.
130
Romanos, os pequenos unguentários, estando em contexto egípcio, podem representar,
tal como as candeias, uma oferta que pode ser utilizada pela divindade, mais
exactamente na parte final do asseio feito ao seu suporte terrestre, isto é, a estátua de
culto. De facto, o ritual do asseio no antigo Egipto concluía-se quando o oficiante ungia
a estátua com o cosmético medjet: o sacerdote segurava na mão esquerda um pequeno
pote de unguento, introduzia nele um dedo da mão direita e tocava depois a frente da
estátua enquanto se pronunciava a fórmula da unção650
.
Numa outra camada pertencente desta vez ao século III, outros fragmentos de
vidro e até agulhas de osso foram também exumados.
Para além dos objectos votivos, a própria constituição da 5ª camada que envolvia
os ex-votos denuncia outro ritual, que também resultou na deposição do que remanesceu
de um acto sagrado. A camada era de facto constituída por terra negra, com muitos
carvões, cinzas e esquírolas ósseas que, segundo M. Maia651
, pertenceriam a aves ou
ruminantes como carneiros, relacionando-se talvez com rituais de sacrifícios. Ora,
reencontramos essas mesmas características em poços e covas rituais de Bliesbruck652
(Moselle, França), fazendo parte de áreas cultuais onde se desenrolavam regularmente
cerimónias célticas cujo ritual compreendia uma refeição (refeições de comunhão
associando todos os membros de uma comunidade rural nos banquetes), oferendas e
sacrifícios. Para esta ocasião, e segundo a análise feita por P. Lévêque653
, depósitos
resultando deste ritual eram efectuados em covas ou poços; aí lançavam-se também
resíduos e cerâmica quebrada voluntariamente, misturados quase sempre com terra
preta, acinzada e engordurada levantada provavelmente no local de refeição. Pode-se
observar portanto que os restos dos banquetes, conservando sem dúvida um pouco do
sagrado da cerimónia, eram amontoados numa cavidade escavada para este efeito e
compreendendo também um depósito de objectos mais preciosos que foram lá
650
López, 1993, p. 137.
651 Opinião dada por M. Maia durante as nossas conversas no Museu da Lucerna em Castro Verde.
652 Bliesbruck era um pequeno burgo galo-romano da cidade dos “Médiomatriques” onde foi exumado
todo um bairro construído em terra e em madeira (50-100 d. C.), depois em material duro (segundo
século, com apogeu na primeira metade do terceiro século); e, entre este sector e a ribeira Blies, uma zona
continha várias centenas de covas e 250 poços murados, as covas sendo contemporâneas do primeiro
habitat, os poços do habitat em material duro (Lévêque, 1989, p. 515).
653 Lévêque, 1989, pp. 514-521.
131
consagrados. Ou seja, teríamos em Santa Bárbara de Padrões sobrevivências de antigos
rituais celtas que perduraram num santuário de culto egípcio durante a época romana.
As ditas refeições neste caso deviam ter sido provavelmente os banquetes rituais que se
realizavam após a apresentação de um novo iniciado, nos cultos de Mistérios, como por
exemplo a “kliné do senhor Serápis”.
Esta tradição pagã de quebrar objectos ligados a um acto sagrado, e de os
enterrar em seguida numa cova específica, junto a outros objectos, bem como o
enterramento de lucernas, perdurou ainda com os primeiros cristãos, mais exactamente
em ritos funerários. De facto, em Argos (Grécia), perto de várias dezenas de túmulos
paleocristãos, foram descobertas algumas covas que continham lucernas, moedas,
alguns vasos em terracota completos (exemplo de um caldeirão e de oinochoés) e
numerosos cacos de loiça comum, bem como fragmentos de pequenos vasos em vidro.
Segundo a interpretação de A. Oikonomou, loiça comum, relacionada com as refeições
fúnebres tomadas nos cemitérios por ocasião das cerimónias comemorativas, era
portanto quebrada voluntariamente sobre os túmulos, talvez para honrar os defuntos,
apanhando-se em seguida os fragmentos para serem lançados em covas específicas; os
utensílios para transportar a comida preparada pelos familiares do defunto, bem como a
água, o azeite ou o vinho, eram também colocados nas ditas covas, mas com a diferença
de estarem inteiros e não partidos, como no caso do caldeirão e dos oinochoés. As
lucernas dos túmulos eram igualmente recolhidas após as cerimónias, armazenadas
também em cavidades abertas logo nas proximidades das sepulturas654
.
654
Oikonomou, 1988, pp. 481, 500-501.
132
CONCLUSÃO
Tudo indica portanto que a cidade de Arandis, adquirindo no período romano um
lugar central de entre os locais de culto da região, acabou por acolher no século I d. C.
um importante santuário dedicado aos deuses alexandrinos, cuja devoção se exprimia
sobretudo pela oferta de uma luz votiva por parte dos devotos. Este contexto egipcizante
não resultou, no entanto, no completo abandono pelos Aranditani de certas práticas
rituais tipicamente celtas, como a deposição na favissa, junto das lucernas votivas, dos
restos de banquetes rituais, ou o acto de quebrar objectos votivos, já numa época tardia.
De acordo com os aspectos funcionais, arquitectónicos e decorativos
característicos de um santuário de culto egípcio no período romano, várias
possibilidades se apresentam para o local de culto de Santa Bárbara de Padrões. O
santuário seria composto provavelmente por um templo de estilo romano com um
pronaos desenvolvido sobre um pódio elevado, eventualmente com um tanque de
ablução à direita da cella, precedido de uma área descoberta com altar e tanques
nilóticos alinhados ao aedis, e talvez com a presença ainda de um focus, o conjunto
integrado num pátio porticado. Outros elementos podiam acrescentar-se para relembrar
o contexto egípcio do culto aí praticado: um par de esfinges ladeando a escada de acesso
ao pódio; uns telamones inspirados dos colossos osiríacos; uma cisterna subterrânea
relembrando um nilómetro (para conter a água lustral); e o desenvolvimento de toda
uma iconografia nilótica, com cenas rituais e paisagens relacionadas com o antigo
Egipto, em frescos, mosaicos e estatuária. Outras capelas ladeando o edifício de culto
principal podiam abrigar outras divindades, especialmente para uma tríade divina (com
a presença de um Harpócrates ou de um Anúbis).
Em termos dos materiais construtivos, sabemos da presença no nosso santuário
do mármore da área de S. Trigaches ou S. Brissos e de tijolos cozidos para colunas em
opus testaceum. Para além disso, podemos acrescentar igualmente a hipótese da
utilização, segundo as observações de T. Hauschild655
e de J. Alarcão656
, da pedra
granítica (revestida em seguida de estuque), para certas partes estruturantes do templo, e
do mármore da região de Estremoz e Vila Viçosa, para as estátuas de culto
(representando os deuses nilóticos sob uma fisionomia romanizada) e até para as
655
Hauschild, 2002, pp. 215-217.
656 Alarcão, 1988, p. 196.
133
estátuas simplesmente decorativas.
O temenos propriamente dito, por sua vez, seria provavelmente amplo, podendo
integrar, para além do templo principal, outras construções. De facto, segundo os
estudos de R. Ginouvès sobre os complexos religiosos de período greco-romano (com
cultos de mistérios)657
, e segundo exemplos de outros santuários de culto egípcio,
incluindo o santuário de Chastellard de Lardiers, várias possibilidades se apresentam:
sala de mistérios para cerimónias de iniciação (telesterion); edifício abrigando um
bothros e reservado a cultos de mistérios (megaron); cripta subterrânea; sala de
banquete (symposion) e cozinhas; sala de reunião para os iniciados (ecclesiasterion);
residências de sacerdotes e hóspedes (pastophoria); pórtico onde os fiéis passavam a
noite com o fim de ser “visitado” pela divindade (abaton); dormitórios para devotos que
queriam viver mais perto da divindade (hospedarias e casas “alugadas” por Serápis); via
sagrada ladeada de nichos ou edículas (oferendas de colectividades ou de ricos devotos),
pequenos “oratórios”, “esplanada” para a reunião de procissões (spatium apertum) ou
area para a celebração dos dramas sagrados.
A entrada (ou uma delas) no recinto sagrado far-se-ia provavelmente, segundo o
exemplo de Chastellard de Lardiers, do lado Sul, ao pé do depósito votivo, situando-se o
edifício de culto principal na parte Norte do cemitério actual e distanciando-se da
favissa cerca de 90 metros. Colocamos de facto a hipótese do templo se situar, não
debaixo da actual igreja, mas alinhado aos tanques, de frente (abrindo assim para
Norte), com a presença de um altar entre os dois.
Por fim, além da vertente religiosa, e estando localizado numa estação viária de
passagem obrigatória entre Pax Iulia e Ossonoba, o santuário podia igualmente ter
exercido, tal como no Serapeu ostiense, actividades comerciais e de exploração
imobiliária (albergar por exemplo os viajantes).
Desta lista apresentada sobre o complexo religioso de Santa Bárbara de Padrões,
ficamos um tanto surpreendido pelo pouco que ficou dos vestígios deste antigo
santuário de culto egípcio: um depósito votivo e um conjunto de três tanques. As
vicissitudes do tempo, como as destruições, reutilizações de materiais para construção
657
Ginouvès, 1998, pp. 34-36, 41-44, 48-53, 185-187.
134
ou outros usos658
, lavoiras agrícolas, edificação da actual igreja gótica com um
cemitério anexo (indiciando uma ocupação deste terreno na Idade Média com as
respectivas consequências), e obras públicas recentes (estrada e praceta alcatroadas
frente à igreja), podem em parte explicar os raros vestígios arqueológicos actualmente
conhecidos.
A zona mais importante do santuário situar-se-ia na área da igreja e do
cemitério, impossibilitando futuras escavações que teriam sido cruciais para um melhor
conhecimento deste local de culto. Só a zona a Norte do cemitério, onde se situam os
tanques e a basílica paleocristã, podem ainda revelar quiçá informações valiosas.
Em futuras investigações sobre este santuário e a luz votiva, dois aspectos da
pesquisa revelam-se cruciais. Em primeiro lugar, a análise dos depósitos de lucernas
votivas de Israel e do monte Ida em Creta, com o principal objectivo de descobrir quais
eram as divindades consagradas nos respectivos santuários. Isto permitiria elucidar
ainda mais sobre a problemática da lucerna votiva. Em segundo lugar, um estudo
aprofundado sobre todos os lugares consagrados a mártir de Nicomedia com possíveis
ligações a antigos santuários da Antiguidade (em Portugal continental temos, por
exemplo, uma Santa Bárbara de Nexe no concelho de Faro). Os resultados podem
confirmar a hipótese de que no momento da cristianização de antigos locais de culto
egípcio dedicados aos deuses alexandrinos, a santa Bárbara veio efectivamente
substituir e assimilar os atributos do casal divino Ísis e Serápis.
Para além dos indícios apresentados neste presente trabalho, é preciso notar
também que na própria religião cristã podemos encontrar antigas práticas e até
representações que remontam na sua origem aos cultos egípcios, assimiladas pelos
Cristãos aquando da sua luta contra tradições pagãs demasiadas enraizadas no povo.
Segundo P. Brázia659
, temos o caso das “Virgens espanholas” inspiradas de uma Isis
puellarum adorada em Acci (Guadix) e que era enfeitada com jóias, para uma procissão;
ou o caso da tradicional representação de Isis kourotrophos amamentando o seu filho
Hórus, a qual seria transformada, por via copta, na representação da Virgem Maria com
658
No caso de Chastellard de Lardiers, o desaparecimento de elementos de elevação em mármore ou em
calcário é explicado pela acção destruidora de recuperadores; um forno de cal foi efectivamente
encontrado no pátio Oeste do templo, instalado seguramente logo após o abandono ou a destruição do
santuário (Salviat, 1967, p. 389).
659 Brázia, 2011, p. 52.
135
Jesus sobre os joelhos. Relativamente às procissões propriamente ditas dos Cristãos,
mais precisamente dos Católicos, essas cerimónias relembram em muito os dias de festa
celebrados no antigo Egipto, em que a divindade, isto é, a estátua de culto, saía do seu
templo num cortejo solene660
.
Em termos da luz votiva, esta tradição está igualmente bem viva entre os
Cristãos, bem visível nas nossas igrejas onde «as velas e lamparinas são colocadas em
altares com intenção religiosa e sem qualquer propósito de iluminação»661
. O devoto
acende uma vela para pedir algo (a Jesus, a Virgem Maria ou aos santos) e até, para o
caso de Portugal, promete à Nossa Senhora de Fátima uma certa quantidade de velas por
ocasião da sua ida ao santuário. O acto de acender uma vela ou lamparina é considerado
como um acto benéfico e, tal como as lucernas votivas, a luz é dada com o intuito de
receber algo em troca, ou de agradecer um pedido que já foi concretizado (uma cura,
uma protecção, um auxílio, entre outros). A grande pergunta que se nos coloca é de
saber se, de facto, o acto de oferecer uma luz votiva provem efectivamente do antigo
Egipto, mais precisamente, remontando a sua origem primeira à hipótese de um
eventual ritual mágico praticado nos templos egípcios de época faraónica, em que a luz
protegia do seu poder apotropaico a divindade abrigada na sua cella de granito.
Eis outro caminho de investigação que, somando-se aos outros, nos podem levar
mais perto da verdade relativamente ao santuário de Santa Bárbara de Padrões e das
suas lucernas votivas.
660
Dessas procissões, as mais célebres ficaram conhecidas como a da “Festa da Boa Reunião”, quando
Hátor viajava desde Dendera até Edfu para reunir-se com o seu esposo, Hórus – carregava-se a estátua da
deusa numa barca que remontava o rio até Edfu, rodeada por outras embarcações em que tinham assento
o clero e numerosos peregrinos; ou a procissão da grande festa de Opet, quando Ámon de Karnak visitava
com grande pompa o templo de Luxor considerado como seu harém (Opet ou Ipet) – as andas tinham a
forma de uma barca portátil (López, 1993, pp. 28, 32, 139, 142-143, 149).
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etnográficas do Baixo Alentejo», Separata do Vol. XIII do Arquivo de Beja, Minerva
Comercial, Beja, 1957.
148
Lista de Figuras:
Figuras 1 e 2: fotografias do troço de calçada romana na margem da ribeira dos
Montes e Lagares (Santa Catarina da Fonte do Bispo, Algarve).
Figura 1
Figura 2
149
Figuras 3, 4 e 5: fotografias da povoação de Santa Bárbara de Padrões – a igreja
de Santa Bárbara e o seu cemitério no topo de uma colina (3); a parte traseira do
cemitério (4); a aldeia junto ao sopé Oeste da dita colina, do outro lado de uma
ribeira (5).
Figura 3
Figura 4
150
Figura 5
Figuras 6, 7, 8 e 9: fotografias de alguns cacos de cerâmica romana encontrados
no chão a Oeste e Noroeste da igreja de Santa Bárbara (6 e 7), bem como nos
muros divisórios de propriedades (8 e 9).
Figura 6
152
Figura 10: fotografia da peça marmórea romana utilizada como base para o
cruzeiro da igreja.
Figura 10
Figuras 11, 12, 13 e 14: fotografias do empedrado do adro da igreja (11 e 12) e
do topo do muro que encerra o adro (13 e 14).
Figura 11
156
Figura 19: fotografia do poço.
Figura 19
Figuras 20 e 21: fotografias de dois fragmentos pertencentes ao bocal (20) e sua
parte traseira (21).
Figura 20
157
Figura 21
Figuras 22 e 23: fotografias do depósito votivo (favissa) a Sul do cemitério.
Figura 22
159
Figura 25: as lucernas votivas de Santa Bárbara de Padrões (fotografia da capa
do livro Lucernas de Santa Bárbara de Maia e Maia, 1997).
Figura 25
Figura 26: fotografia das ruínas da basílica paleocristã a Norte do cemitério.
Figura 26
160
Figuras 27, 28 e 29: fotografias dos tanques de época romana a Norte do
cemitério.
Figura 27
Figura 28
161
Figura 29
Figuras 30 e 31: fotografias da extremidade Oeste do tanque mais meridional,
em que se pode ver o seu muro do lado Sul ser interrompido pela parede do
cemitério (30), que apresenta por sua vez uma base de blocos de pedra e
argamassa, bem como vestígios de opus Signinum em declive (31).
Figura 30
162
Figura 31
Figura 32: fotografia dos alicerces do muro setentrional do tanque intermédio,
em que se pode ver a sua continuação para Oeste até ser interrompido por uma
área ainda não escavada.
Figura 32
163
Figura 33: fotografia dos alicerces do muro que delimita para Oeste o tanque
setentrional (em primeiro plano).
Figura 33
Figura 34: fotografia da entrada ao chamado “tanque setentrional”.
Figura 34
164
Figuras 35 e 36: fotografias da base em opus incertum no ângulo Sudoeste do
chamado “tanque setentrional”.
Figura 35
Figura 36
166
Figuras 39 e 40: fotografias das peças de cerâmica em quarto de círculo
encontradas no tanque intermédio.
Figura 39
Figura 40
167
Figura 41: fotografia de um fragmento de telha encontrado no tanque
intermédio.
Figura 41
Figura 42: fotografia da camada de opus Signinum colocada verticalmente ao
muro Este do tanque intermédio.
Figura 42
168
Figuras 43 e 44: fotografias da camada de opus Signinum do muro Norte do
tanque meridional formando um declive.
Figura 43
Figura 44
169
Figuras 45 e 46: fotografias da conduta atravessando a basílica paleocristã até
chegar ao tanque meridional.
Figura 45
Figura 46
170
Figura 47: quadro de Santa Bárbara, protectora contra o raio, por Desrais
(Lapparent, 1926, fot. p. 39).
Figura 47
Figuras 48 e 49: pequenas lucernas votivas de fabricação local do santuário de
Lachau (“Le Luminaire”), ornamentadas com símbolos solares, perlas e
pequenas cruzes (Leglay, 1971, fig. 32 p. 430).
Figura 48
171
Figura 49
Figura 50: planta do primeiro projecto das termas da “Trinacria” do Serapeu de
Óstia (Mar, 2001, fig. 30 p. 72).
Figura 50
172
Figura 51: planta do ninfeu em exedra do “Serapeu de Cânopo” da Villa de
Adriano em Tivoli (Ginouvès, 1998, est. 51 nº 4).
Figura 51
Figura 52: gravura representando a “fraga L” do santuário de Panóias (Alvar,
2012, fot. 198 p. 146 – Gravura Contador de Argote).
Figura 52
173
Figura 53: fresco representando uma cerimónia isíaca da água sagrada (Mar,
2001, est. XXXIX p. 167 – Fresco de Herculano; Museu Arqueológico Nacional
de Nápoles).
Figura 53
Figura 54: fresco isíaco de Pompeia representando Io e Ísis (Alvar, 2012, fot. 88
S/N p. 72 – Museu Arqueológico Nacional de Nápoles).
Figura 54
174
Figura 55: reconstituição da entrada Sul para o temenos do santuário de
Chastellard de Lardiers, junto a favissa (Rolland, 1962, fig. 4).
Figura 55
Figura 56: planta geral do oppidum de Chastellard de Lardiers, em que se pode
ver o templo e o pórtico no centro, e a entrada Sul ao temenos com um troço da
via sagrada do lado esquerdo (Salviat, 1967, fig. 20).
Figura 56
175
Figura 57: planta esquemática do Iseu (do lado direito) e do Serapeu C de Delos
(Mar, 2001, fig. 61 p. 317).
Figura 57
Figura 58: planta esquemática do Iseu de Pompeia (Mar, 2001, fig. 62 p. 319).
Figura 58
176
Figuras 59 e 60: plantas do santuário (59) e do templo (60) do Serapeu de Óstia
na sua primeira fase construtiva de 123-127 d. C., segundo a obra de R. Mar
(2001, fig. 5 p. 41 e fig. 7 p. 43).
Figura 59
Figura 60