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67 L M Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 6 N.11, INVERNO 2009 * Doutor em Filosofia, professor da UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE. Recebido em mai. 2009 Aprovado em jul. 2009 JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO * RESUMO O presente artigo apresenta os conceitos de sonho, imagem onírica e despertar tal como estes se encontram nas notas que Walter Benjamin redige entre 1927-1929/30 em suas pesquisas sobre as passagens parisienses do século 19. Trata- se aqui de demonstrar a relação dupla deste pensador com o surrealismo, uma relação que é de reivindicação e de crítica. E também de indicar como essa relação dupla tem como ponto de partida uma reflexão materialista sobre a história, nos termos da concepção do passado e de sua recepção pelo presente. PALAVRAS-CHAVE Sonho. Imagem onírica. Despertar. História. Presente. ABSTRACT The present article presents the conceptions of dream, dream- image and awakening just as they are found in the notes that Walter Benjamin writes between 1927-1929/30 in his researches on the Parisian Arcades of the 19th century. The intention here is to demonstrate this thinker’s dual relation with surrealism, a relation that is of vindication and of criticism. It is also of indicating how this dual relation has as starting point a materialistic reflection on history, in terms of the conception of the past and of its reception by the present. KEYWORDS Dream. Dream-image. Awakening. History. Present. “DISSOLUÇÃO DA MITOLOGIANO ESPAÇO DA HISTÓRIA”: NOTAS SOBRE O SURREALISMO, O SONHO E O DESPERTAR EM WALTER BENJAMIN

“DISSOLUÇÃO DA MITOLOGIA NO OTAS O SURREALISMO O … · que Walter Benjamin redige entre 1927-1929/30 em suas ... publicada no volume I das Obras escolhidas, e a de 1936, publ

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* Doutor em Filosofia, professor da UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ -UECE.

Recebido em mai. 2009Aprovado em jul. 2009

JOÃO EMILIANO FORTALEZA DE AQUINO *

RESUMOO presente artigo apresenta os conceitos de sonho, imagemonírica e despertar tal como estes se encontram nas notasque Walter Benjamin redige entre 1927-1929/30 em suaspesquisas sobre as passagens parisienses do século 19. Trata-se aqui de demonstrar a relação dupla deste pensador com osurrealismo, uma relação que é de reivindicação e de crítica.E também de indicar como essa relação dupla tem como pontode partida uma reflexão materialista sobre a história, nostermos da concepção do passado e de sua recepção pelopresente.

PALAVRAS-CHAVESonho. Imagem onírica. Despertar. História. Presente.

ABSTRACTThe present article presents the conceptions of dream, dream-image and awakening just as they are found in the notes thatWalter Benjamin writes between 1927-1929/30 in hisresearches on the Parisian Arcades of the 19th century. Theintention here is to demonstrate this thinker’s dual relationwith surrealism, a relation that is of vindication and ofcriticism. It is also of indicating how this dual relation has asstarting point a materialistic reflection on history, in terms ofthe conception of the past and of its reception by the present.

KEYWORDSDream. Dream-image. Awakening. History. Present.

“DISSOLUÇÃO DA ‘MITOLOGIA’ NO ESPAÇO DA HISTÓRIA”: NOTAS SOBRE

O SURREALISMO, O SONHO E O DESPERTAR EM WALTER BENJAMIN

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09Os conceitos de “sonho”, “imagem onírica” e

“despertar” aparecem numa série de notas queBenjamin tomou entre junho de 1927 e dezembro de1929 – no mais tardar, até os primeiros meses de 19301

–, já no início de suas pesquisas sobre as passagens(galerias comerciais) parisienses do século 19. Napublicação dos escritos de Benjamin, Rolf Tiedemann asorganizou sob o título “Primeiras notas” (Erste Notizen),situando-as no segundo volume do conjunto de textos eapontamentos mais diretamente concernentes à Obradas Passagens (Passagen-Werk), obra interminada, cujoprojeto Benjamin anunciou ao seu amigo GershomScholem numa carta em janeiro de 1928. De início, essasforam notas preparatórias para um pequeno ensaiosobre as passagens, que, em seguida, se configurou noprojeto mais amplo de um livro, do qual somente umaparte chegou à sua forma final: o ensaio Sobre algunsmotivos em Baudelaire, publicado na Zeitschrift fürSozialforschung, em 1939-1940; a primeira versão dessetexto, sob o título Paris do segundo império em Baudelaire,não chegou a ser publicada em vida, já que foi recusada(para não dizer, censurada) pelo Instituto de PesquisaSocial, a cuja revista ele se destinava.2 Um outro ensaio,concernente a este projeto, é A obra de arte na era de

1 Sobre essas informações históricas, cf. a Introdução redigida porRolf Tiedemann para a edição do Passagen-Werk (também presentena edição brasileira das Passagens); ver também o ensaio de T.Adorno, Caracterização de Walter Benjamin, publicado em Prismas.

2 Ambos os textos se encontram publicados no Brasil no volumeIII das Obras escolhidas, volume que porta o título da obra queBenjamin chegou a desejar escrever sobre o autor de As flores domal, a saber, Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo.

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sua reprodutibilidade técnica, o qual, segundo Benjamindiz em uma carta a Horkheimer, expressaria o ponto devista do presente a partir do qual – numa perspectivahistórico-estética – o trabalho sobre as passagens seriaarticulado.3 Do mesmo modo, as anotações postumamentepublicadas sob o título Sobre o conceito de história seriama preparação de uma introdução relativa à teoria críticado conhecimento histórico que ele planejara escrever parao livro sobre as passagens, assim como o fizera no Origemdo drama barroco alemão (1925) sobre as formasestéticas. A pedido do Instituto de Pesquisa Social, do qualpretendia financiamento para sua pesquisa, Benjaminredigiu ainda um Exposé da pesquisa, em 1935, refazendo-o parcialmente em 1939; nesses Exposés, a proposta dolivro ganha o título de Paris, capital do século XIX.

Essas notas de 1927-1929/30 são, portanto, asprimeiras que Benjamin toma para aquele trabalho quenão chegou a concluir e que tomou os últimos 13 anos

3 Este ensaio conheceu três versões, duas das quais – a primeira ea terceira – foram traduzidas e publicadas no Brasil (a de 1935,publicada no volume I das Obras escolhidas, e a de 1936, publicadana coleção Os pensadores). Segundo nos informa J.-M. Gagnebin, asegunda versão, que não conhece nem tradução nem publicaçãono Brasil, “dada por desaparecida pelos editores das GesammelteSchriften, foi finalmente encontrada em Frankfurt somente em1989”, seu desaparecimento sendo explicado, pelo menos em parte,porque “foi censurada por Adorno e Horkheimer não só porque elaretomava hipóteses brechtianas, mas, talvez, porque ela continhaas teses mais genuinamente benjaminianas sobre a aura e sobre a‘capacidade mimética’”. (Gagnebin, J.-M. De uma estética davisibilidade a uma estética da tatibilidade em W. Benjamin. In: Couto,E. S., Damião, C. M. (org.). Walter Benjamin: Formas de percepçãoestética da modernidade, p. 106).

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09de sua vida. Nelas, ele desenvolve uma série não

imediatamente articulada de reflexões sobre a história,a concepção do passado e sua relação com o presente. Arelação privilegiada com o surrealismo – particularmentecom Une vâgue des rêves e Le paysan de Paris, de LouisAragon, e Nadja, de André Breton – se demonstraprecisamente pela presença dos conceitos de sonho eimagem onírica, ambos articulados com a principalcategoria que Benjamin começa a elaborar naquelemomento: a de imagem dialética. O conceito de despertar(Erwachen) nasce, nessas notas, em conexão com essesconceitos e com essa relação crítica com o surrealismo.O despertar diz respeito a uma fundamental intençãoprática, política, que norteia sua pesquisa sobre aspassagens e, teoricamente, tem a ver com sua forma derecepção da psicanálise e da crítica da economia política.Portanto, de um ponto de vista mais imediato, essas notastêm a ver também com o ensaio Surrealismo: o últimoinstantâneo da inteligência européia, publicado em 1929.Mas este último ensaio, segundo Benjamin diz numacarta a Scholem, é apenas um “paravento”, um “biombo”posto diante do trabalho das passagens, tendo sidomantido secreto o que em verdade se oculta por trás dele;este algo “secreto” parece dizer, indissociavelmente,tanto da sua relação com o surrealismo quanto do métodohistórico que ele pretendia desenvolver no trabalho daspassagens: “chegar a compreender a concretude extremade uma época, tal como ela se manifestou aqui ou aliatravés dos jogos das crianças, de um edifício, de umasituação de vida” (carta de 15.03.1929).4 As primeiras

4 Para todas as citações de cartas, cf. Benjamin, W. Correspondances, t. I e II.

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reflexões sobre este método encontram-se precisamentenessas “primeiras notas”.

Provavelmente, Benjamin começou a entrar emcontato com os textos surrealistas em 1925, quando jáhavia concluído o livro sobre o barroco; naquelemomento, ele registra – em seus próprios termos – uma“virada política de meu pensamento” e pretende tornar-se familiar à técnica da “crítica literária”: tinha em vistauma colaboração com Die literarische Welt, para a qualpretendia escrever sobre a “nova teoria literáriafrancesa”. Já nesse momento, ele se refere àquelesescritos de Aragon e Breton como “obras ambíguas dossurrealistas” (carta a Scholem, 21.07.1925). Quando, dezanos depois, envia para Adorno uma cópia do primeiroExposé, refere-se particularmente à leitura de O camponêsde Paris, de Aragon: “Há no começo Aragon, Le paysande Paris, do qual à noite, na cama, eu não podia ler maisde duas ou três páginas, que meu coração batia tão forteque me era preciso repousar o livro. [...] E, no entanto,os primeiros esboços das Passagens provêm dessaépoca” (carta a Adorno, 31.05.1935).

I ARAGON, A IMAGEM POÉTICA E A MITOLOGIA MODERNA

Tendo em vista as anotações que Benjamin fazneste período, cabe perguntar o que, centralmente, lheteria chamado atenção no texto de Aragon. Maisparticularmente: o que ele teria a ver com o projeto deuma compreensão concreta ao extremo de uma épocahistórica? Em nossa hipótese, fundamentalmente duas

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09coisas: uma, o próprio objeto, a própria questão da

pesquisa, as passagens; outra, a imagem, que emBenjamin se configura sob os conceitos de imagemonírica, imagem do desejo e imagem dialética. Nanarrativa de Aragon, esses dois aspectos sãoinseparáveis. Eles articulam-se, no entanto, num nó cujaambigüidade é central ao surrealismo de Aragon: de umlado, a valoração positiva da efemeridade, daperecibilidade da experiência moderna; de outro, a buscapoética de uma “mitologia moderna” dessa mesmaexperiência efêmera, desse devir.

Essa duplicidade acontece, no surrealismo, apartir de sua posição frente à modernidade, posição estaque, em si mesma, não é particularmente ambígua: ossurrealistas põem-se como “modernos”, no sentido deuma ruptura requerida com o passado e a tradição, e,nesta mesma reivindicação da modernidade, se põemcriticamente frente ao “racionalismo absoluto”, ao “reinoda lógica” que caracteriza a experiência moderna. Trata-se, nesta posição, de reivindicar o moderno contra osconstrangimentos da tradição e, no mesmo ato, opor-seaos constrangimentos modernos que aparecem sob aforma da “lógica” e do “racionalismo”. O que parece sercentral nesse programa surrealista é a experiência daalma solitária, e que se quer solitária, frente à história, àtradição, e do mesmo modo frente às formas dadas desociabilidade. Assim, a experiência poética surrealistaprocura ser, antes de tudo, a experiência de re-significação, de doação de sentido, num mundo que é visto– nele mesmo – como pobre de sentido, de significação.As experiências surrealistas da escrita automática, das

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deambulações pelas ruas de Paris têm a ver com isso... Aambigüidade que daí nasce deve-se, essencialmente, aorecurso ao “sonho”, à investidura poética posta a partirdesse “eu” solitário (seria melhor dizer, desse “isso”solitário), como método de re-significação crítica de ummundo esvaziado de sentido.5

Em O camponês de Paris, Aragon opõe à “lógica”e à “evidência”, o “erro”: este, “sozinho, poderia revelar,àquele que o tivesse encarado de frente, a fugitivarealidade”. 6 Esta noção de erro, de errância, aparece aqui,para Aragon, tanto como recusa da reta “razão”cartesiana quanto como uma reivindicação do “sonho”;mais ainda, trata-se de, nas experiências de errância, deperambulação pelas ruas e lugares da cidade, fazer o“sonho” penetrar nas – e misturar-se com as – aparênciassensíveis. Diz ele: “Razão, ó fantasma abstrato da vigília,eu te expulsara já de meus sonhos, e eis-me aqui no pontoem que eles vão se confundir com as realidades daaparência: aqui não há lugar a não ser para mim”. 7 Oque encontramos nesse passo é precisamente o métododa investidura poética sobre o sensível, isto é, a busca

5 A busca surrealista de uma “mitologia moderna”, tal como Aragona expressa em O camponês de Paris, Michael Löwy a caracteriza –em termos filo-weberianos – como uma “tentativa eminentementesubversiva de re-encantamento do mundo, isto é, de estabelecer, nocoração da vida humana, os momentos ‘encantados’ apagados pelacivilização burguesa: a poesia, a paixão, o amor-louco, aimaginação, a magia, o mito, o maravilhoso, a sonho, a revolta, autopia” (Löwy, M. Romper a gaiola de aço. In: A estrela da manhã:surrealismo e marxismo, p. 9).

6 Aragon, L. O camponês de Paris, p. 38.7 Idem, p. 40.

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09por tomar o sensível exterior como imagem inconsciente

que vem à consciência dotada de significado.São justamente essas imagens investidas

poeticamente de sentido que Aragon chama de “mitos”,de “mitologia moderna”. A condição essencial dessainvestidura seria a exigência de não se relacionar com omundo a partir de uma experiência recebida, o que tema ver com a renúncia tanto dos significados da tradiçãoquanto do sentido já posto no cotidiano presente: “A cadadia modifica-se o sentimento moderno da existência.Uma mitologia se tece e se desenlaça. É uma ciência davida que pertence unicamente àqueles que não têmexperiência dela [da vida!]”.8 É isso o que conduz ao“maravilhoso cotidiano”. Breton, no Manifesto surrealistade 1924, retomara já a importância do olhar ingênuo dacriança em relação à experiência poética de Paris, queespera por aqueles que lhe vão olhar com o olhar infantil.“Mito”, “mitologia”, “imagem”: estes são termoscorrelatos dessa experiência que Aragon reivindica comopropriamente moderna. Ele diz:

[...] é a vida que faz aparecer aqui essa divindadepoética, ao lado da qual tanta gente passará sem nadaver e que, repentinamente, torna-se sensível eterrivelmente obsedante para aqueles que a tenhampercebido, desajeitadamente, uma vez. Metafísica doslugares, é você quem acalenta as crianças, você équem povoa seus sonhos. [...] Não há um passo queeu faça rumo ao passado em que não reencontre essesentimento de estranho, que me dominava quando euera a própria admiração, num cenário em que pela

8 Idem, p. 42.

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primeira vez chegava-me a consciência dumacoerência inexplicada e de seus prolongamentos emmeu coração.9

Nas perambulações pelas passagens do século 19,por seus corredores e escadas, Aragon se depara comimagens poéticas, fugidias como as próprias passagensem demolição próxima. Nessas deambulações se deparacom o passado sob a forma do estranhamento, dodistanciamento crítico do presente, produzindo dessemodo imagens poéticas, imagens de uma mitologiamoderna; no seu dizer: “Não há um passo que eu façarumo ao passado em que não reencontre essesentimento de estranho”. A experiência da “Passagem daÓpera” é apresentada por Aragon precisamente nessestermos da investidura poética, na qual novos “mitos” –“mitos modernos”! – podem ser percebidos, mas que sóo são unicamente nessa experiência da perecibilidade.Diz ele:

Lá onde se persegue a atividade mais equívoca dosseres dos seres vivos, o inanimado se reveste, àsvezes, de um reflexo de clarões, e mais segredosmóveis: nossas cidades são assim povoadas poresfinges desconhecidas que não detêm o passantesonhador se ele não volta para eles sua distraçãomeditativa, esfinges que não lhe colocam questõesmortais. Mas caso ele saiba adivinhá-las, então estesábio que as interroga irá sondar ainda, novamente,seus próprios abismos graças a esse monstros semrosto. A luz moderna do insólita: eis o que doravanteirá retê-lo.

9 Idem, p. 43.

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09Ela reina extravagantemente nessas espécies de

galerias cobertas que são numerosas, em Paris, nosarredores dos grandes boulevards e que se chamam,de maneira desconcertante, de passagens, como senesses corredores ocultados do dia não fossepermitido a ninguém deter-se por um instante. [...] Ogrande instinto americano, importado para a capitalpor um préfet do segundo império [Haussmann,1848-1870], que contribui para cortar regularmenteo plano de Paris vai, dentro em breve, tornar possívela manutenção desses aquários humanos que jámorreram para sua vida primitiva e que merecem,entretanto, ser olhados como os receptores dediversos mitos modernos, pois apenas hoje, quandoa picareta os ameaça, é que eles se transformamefetivamente nos santuários dum culto do efêmero,na paisagem fantasmática dos prazeres e profissõesmalditas, incompreensíveis hoje, e que o amanhã nãoconhecerá mais.10

No final do livro intitulado O sonho do camponês,Aragon faz uma série de “especulações”, que Benjaminchama de “filosofemas”, sobre o significado filosófico desua narrativa. Particularmente nesse passo o texto ganhaimportância para as reflexões de Benjamin. Aragon põe-se a pensar sobre o “concreto” e o “particular”. Diz ele:“Toda idéia é suscetível de passar do abstrato ao concreto,de atingir seu desenvolvimento mais particular, de nãoser mais essa noz oca com a qual os espíritos vulgaresse contentam”.11 A esse conhecimento do particular, ele

10 Idem, p. 44-45.11 Idem, p. 216.

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nomeia “metafísica”. O particular ele o configura nãocomo conceito, mas como “noção”. Ele quer a metafísica,enquanto conhecimento do concreto que é a noção; mas– isso é que nos parece importante – a noção só semanifesta na imagem, no traço que foge no devir. “Tomaraeu possa fixar seu traço antes que ele fuja”, diz ele. Oconcreto, o particular, enfim, a noção, é para Aragon umaaparição:

Nessa zona é que meu conhecimento era propriamentea noção. Tinha acesso a ela através de uma escada oculta,a imagem. A busca abstrata fez-me tomá-la por umailusão grosseira e eis que em seu termo a noção, emsua forma concreta, com seu tesouro de particularidadesnão me parece diferente, em nada, desse mododesprezado do conhecimento, a imagem, que é oconhecimento poético e as formas vulgares doconhecimento não são, sob pretexto de ciência ou dalógica, nada além das etapas conscientes que a imagemqueima maravilhosamente, a sarça-ardente.12

Essa concepção do “concreto”, por Aragon, tem aver com a recusa surrealista do “real”. Para Aragon, oconcreto não é o “real”; o concreto é o que está fora doreal. Desse modo, a imagem não é o concreto, mas a“consciência possível, a maior consciência possível doconcreto”. Mais ainda: “Não há, em essência, umamaneira de pensar que não seja uma imagem”. Trata-se,para Aragon, da “imagem poética”, que tem um “poderde materialização”: “A imagem poética apresenta-se nofato, com tudo o que lhe é necessário”; e “o fato não está

12 Idem, p. 224.

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09no objeto, mas no sujeito: o fato existe apenas em função

do tempo, quer dizer, na linguagem”. A imagem não é,portanto, o “real”, o imediato-sensível, mas tem a ver coma investidura poética; é, portanto, uma aproximação doespírito, na forma da linguagem, do que é “concreto”,“particular”.

II BENJAMIN, BAUDELAIRE E A CRÍTICA AO SURREALISMO

Também Baudelaire já reivindicara o método dainvestidura poética como próprio à poética moderna,método que distinguiria o artista “imaginativo” do artista“realista”:

[O artista] realista [...], positivista, diz: “Eu querorepresentar as coisas tais como são, ou ainda comoseriam, supondo que eu não existo”. O universo semo homem. E este, o imaginativo, diz: “eu queroiluminar as coisas com meu espírito e projetar seureflexo sobre os outros espíritos”.13

Em Benjamin, encontramos algumas consideraçõessobre esse tipo de investidura poética precisamente na suainterpretação da poesia baudelairiana. De início, tratar-se-ia para ele de algo próprio à poesia aurática:“Experimentar a aura de uma aparição significa investi-la com a capacidade de revidar o olhar”; mas, em seguida,a esse poder de investimento ele faz corresponder aprópria atividade poética enquanto tal: “Essa investidura

13 C. Baudelaire, Salon de 1859. In: Œuvres complètes, p. 755.

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é uma fonte da poesia. Quando o homem, o animal ouum ser inanimado, investido assim pelo poeta, revida seuolhar, lança este olhar na distância; o olhar da naturezadesperta sonha e lança o poeta em seu sonho”.14 Por issomesmo, para Benjamin, na investidura poética não é ocaso de simplesmente opor distanciamento efamiliaridade, mas, ao contrário, de identificar umainterpenetração entre ambos, interpenetração esta postajustamente pelo distanciamento do olhar poético:

Olhares poderiam agir de modo mais dominantequanto mais profunda a ausência daquele que olha,ausência que nele foi vencida. Nos olhos queespelham ela permanece inquebrantável. Justamentepor isso esses olhos não conhecem nada de longe.15

É essa interpenetração de distanciamento e, poreste distanciamento, familiaridade que caracterizaria aalegoria baudelariana. Por isso, Benjamin termina pordizer que “Baudelaire introduziu na poesia, de formamemorável, o olhar carregado de distância como umolhar familiar”.16 Em Baudelaire, segundo o concebeBenjamin, essa investidura poética já não tem mais nadade aurática. A experiência da aura só pode se dar nointerior da experiência da tradição, na qual o objeto

14 Benjamin, W. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 140 (incluindonota de rodapé), tradução levemente modificada; Über einige Motivebei Baudelaire, p. 646-647. (Doravante a edição alemã desse textoserá indicada pelas iniciais GS I-2, significando o volume I, livro 2,dos Gesammelte Schriften de Benjamin).

15 Idem, p. 141, tradução modificada; GS I-2, p. 648.16 Idem, p. 141-142; GS I-2, p. 649.

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09olhado revida o olhar; mas Baudelaire, segundo a análise

benjaminiana, inscreve sua poética exatamente noprocesso histórico da “desintegração da aura”, em que aexperiência comunitária tradicional, pré-moderna (queBenjamin nomeia de Erfahrung), deu lugar à vivência doindivíduo isolado das sociedades modernas (a Erlebnis).Como que o contrapondo aos surrealistas, Benjaminafirma que Baudelaire “indicou o preço que é precisopagar para adquirir a sensação do moderno: adesintegração da aura na vivência do choque”. 17

A experiência baudelairiana do choque secaracterizaria para Benjamin exatamente pela açãoconsciente que, frente às surpresas e aos inesperadosda cidade moderna, “amortece” e “apara” o choque e oimpede, em linguagem freudiana, de tornar-se “trauma”.“Baudelaire abraçou como sua causa aparar os choques,de onde quer que proviessem, com seu ser espiritual efísico”, diz Benjamin; sua esgrima poética teria sido uma“resistência, uma defesa ao choque” (Chockabwehr). 18

Nessa análise da poesia baudelairiana, Benjaminmantém aqui um diálogo privilegiado e central com Alémdo princípio do prazer, de Freud. Com base neste, eleexplica que o amortecimento consciente do choque“emprestaria ao evento que o provoca o caráter devivência [Erlebnis] em sentido estrito”; mas, ao assimfazer, “o tornaria estéril para a experiência poética[dichterische Erfahrung]”. Se é assim, então o quetornaria possível a poética de Baudelaire? SegundoBenjamin, justamente “um alto grau de conscientização”,

17 Idem, p. 145, tradução levemente modificada; GS I-2, p. 653.18 Idem, p. 111; GS I-2, p. 616.

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que “despertaria a representação de um plano, que estavaem sua elaboração na obra”. Toda a poesia de Baudelaireteria como razão de estado “a emancipação com respeitoàs vivências”.19

Nossa afirmação de que essas consideraçõesacerca de Baudelaire constituem uma possívelcontraposição aos surrealistas – que também buscavam,como vimos em Aragon, uma experiência com o“sentimento moderno da existência” – se explica combase na crítica que Benjamin dirige a Aragon. Nas assimchamadas “Primeiras notas”, Benjamin afirma:

No domínio histórico, nós estamos educados naromântica visão-à-distância. É importante prestarcontas da herança imediatamente transmitida. Masainda, é cedo, por exemplo, para colecionar. Umaconsciência [reflexão, Besinnung] materialista,concreta do mais próximo é exigida. Uma “mitologia”,como diz Aragon, empurra as coisas de novo paralonge. Apenas a explicação do que nos é aparentado,do que nos condiciona é importante. O século XIX, parafalar como os surrealistas, são os ruídos que intervêmem nosso sonho, os quais nós interpretamos nodespertar [Erwachen]. (Co 5).20

Antes de tudo, esse fragmento apresenta umacrítica à concepção romântica da história, que, segundoBenjamin, constitui uma “visão-à-distância”, sendo o

19 Idem, p. 110, tradução levemente modificada; GS I-2, p. 614-615.20 As citações das notas das Passagens serão cotejadas – e, quando

necessário, modificadas – com a edição alemã do Passagen-Werk ereceberão suas referências, entre parênteses, no corpo do texto,indicados aí a letra do caderno e o número do fragmento.

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09problema da posição de Aragon na sua figuração da

experiência com o passado n’O camponês de Parisjustamente o de ser solidário com tal concepção. Essasolidariedade se manifestaria na proposição de uma“mitologia”, que, enquanto tal, “empurra as coisas de novopara longe”; e “de novo” porque reporia a posiçãoromântica. Em contraponto, Benjamin exige uma“reflexão/consciência materialista, concreta, do maispróximo”. Mas em que sentido a “mitologia moderna” deAragon empurraria as coisas para longe, ao invés de pô-las em relação com o que nos é mais próximo, com o quenos condiciona? Se se leva em consideração a radicalfiliação da experiência surrealista à modernidade, aindaque seja uma filiação que se mantenha socialmentecrítica, o que significaria este “empurrar as coisas paralonge”? A resposta a essa questão parece estar no últimoperíodo do fragmento, quando Benjamin, buscando ater-se – “como os surrealistas” – aos “ruídos que intervêmem nosso sonho”, afirma a necessidade de osinterpretarmos no “despertar”. O caráter romântico(passadista) da mitologia proposta por Aragon estaria,segundo essa hipótese de leitura, em não se colocar anecessidade da interpretação das imagens oníricas, bemcomo a própria necessidade de saída do sonho pelodespertar. Essa hipótese de leitura parece ser confirmadapor outro fragmento, em que Benjamin escreve:

Enquanto Aragon persevera no domínio do sonho, deveser considerada aqui a constelação do Despertar[Erwachen]. Enquanto em Aragon permanece umelemento impressionista – a “mitologia” – [fazerresponsável este impressionismo por muitos filosofemas

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sem teor do livro], trata-se aqui de uma dissolução[Auflösung] da “mitologia” no espaço da história. Isso,contudo, apenas pode acontecer através de umdespertar [Erweckung] de um saber ainda-não-consciente do Outrora. (Hº, 17).

É a supervalorização surrealista do inconscientee do sonho, ou da natureza onírica das imagens, o que –diferentemente do que ocorre com Baudelaire –“empurraria as coisas de novo para longe”, afastando-nosdo “que nos condiciona”: a saber, o passado mais recente.A temática do esquecimento do passado mais recente,Benjamin o mobiliza criticamente logo no início doexposé de 1935, relacionando-o às imagens da sociedadecapitalista, que seriam imagens do desejo em que seinterpenetram o novo e o velho: “emergem nessasimagens do desejo a expressa aspiração a afastar-se doenvelhecido (Veraltete) – que quer dizer, porém: dopassado mais recente (Jüngstervergangene). Essastendências remetem a fantasia imagética, que ergue seuimpulso pelo Novo, de volta ao passado primevo (ouarcaico, Urvergangene)”.21

A postura surrealista de superestimação doinconsciente e do sonho se afastaria do trato crítico como que nos condiciona, com o passado mais recente,porque não combateria essa tendência das própriasrelações sociais capitalistas, que, em sua interpenetraçãodo moderno e do arcaico, da novidade e do eternamenteo mesmo, nos afastam constantemente do presente e,portanto, do passado próximo. Este afastamento se dá,

21 Benjamin, W. Passagens, p. 41, tradução modificada; DasPassagen-Werke, p. 46-47.

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09nas relações mercantis, pela dialética da novidade da

mercadoria que, ultrapassando o “envelhecido”, orecentemente passado, reafirma assim o eterno retornodo mesmo: as mesmas relações sociais, a mesma forma-mercadoria. Na dupla recusa do presente e do passadomais recente, se reafirmaria o passado arcaico, que, natransposição materialista que Benjamin faz dascategorias psicanalíticas, é a própria forma-mercadoria, as próprias relações sociais capitalistas.Seria desse modo que as relações capitalistassintetizariam antagonicamente (mas também,ambiguamente) o moderno e o arcaico na próprianovidade. Essas imagens do desejo, imagens ambíguas(como é toda imagem), pois oníricas, Benjamin asdeseja interpretar, colocá-las sob a perspectiva do“despertar”, a partir do qual possa emergir “um saberainda-não-consciente do outrora” (isto é, do passadopróximo que nos condiciona e nos explica).

Em outros termos, é a subestimação dainterpretação consciente dos “ruídos” da experiênciasocial onírica, ruídos que, no entanto, eles valorizam, que– aos olhos de Benjamin – coloca os surrealistas numaposição não suficientemente crítica no seu trato com asimagens do passado próximo. Se em Baudelaireencontramos uma dialética na qual o olhar, lançado nadistância pelo objeto olhado, traz para perto este mesmoobjeto (a rigor, isso constitui a alegoria baudelairiana),nos surrealistas haveria a permanência do objeto numdistanciamento que o impede de vir ao presente (talcomo poderia acontecer – como em Baudelaire – pelaação consciente que intercede no choque).

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Na análise benjaminiana, o surrealismo manteriaassim uma ambigüidade fundamental, correspondenteàquela que acima descrevemos. Referindo-se não mais aAragon, mas ao Nadja de Breton, Benjamin saúda nosurrealismo o “truque” – “seria mais honesto falar emtruque do que em método” – de “trocar o olhar históricosobre o passado por um olhar político”.22 Essainterpretação ele a baseia na metáfora de Apollinaire,que compara o poeta a um “porta-chaves feérico”, queconvida os túmulos, os mortos “a entrar no mundo dehoje”. Breton o faz, nas palavras de Benjamin, porque“está mais perto das coisas de que Nadja está perto, quedela mesma”. E explica:

Quais as coisas de que ele está perto? Para osurrealismo, nada mais pode ser mais revelador que alista canônica desses objetos. Onde começar? Ele podeorgulhar-se de uma surpreendente descoberta. Foi oprimeiro a ter pressentido as energias revolucionáriasque transparecem no “envelhecido” [Veraltetes], nasprimeiras construções de ferro, nas primeirasconstruções fabris, nas primeiras fotografias, nosobjetos que começam a extinguir-se, nos pianos decauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locaismundanos, quando a moda começa a abandoná-los.Esses autores compreenderam melhor que ninguém

22 Benjamin, W. O surrealismo. O último instante da inteligênciaeuropéia. In: Obras escolhidas, I, p. 26; Der Sürrealismus. Die letzteMomentaufnahme der europäischen Intelligenz, p. 300. (Nas notasque seguem a edição alemã desse texto será indicada pelas iniciaisGS II-1, significando o livro 1 do volume II dos Gesammelte Schriftende Benjamin).

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09a relação entres esses objetos e a revolução. [...] [Breton

e Nadja] conduzem à explosão as imensas forças“atmosféricas” ocultas nessas coisas.23

Antecipando algo cujo significado só fica claro sepusermos os olhos sobre as “primeiras notas”, Benjaminescreve que no “centro desse mundo de coisas está o maisonírico dos objetos, a própria cidade de Paris”; ao queacrescenta, formulando com mais precisão o que paraele significa “trocar o olhar histórico sobre o passado porum olhar político”: “mas somente a revolta desvendainteiramente o seu rosto surrealista”.24 Essa revolta, aque os surrealistas se entregaram por inteiros, não seriaainda suficiente se mantida nos marcos da embriaguez(melhor seria dizer, a embriaguez onírica). “Sabemosque um elemento de embriaguez está presente em cadaato revolucionário, mas isso não basta”, diz Benjamin; eacrescenta algumas linhas depois: “De nada nos serve atentativa patética ou fanática de apontar no enigmáticoo seu lado enigmático”.25 O que se tornaria necessário,nesta troca do olhar histórico sobre o passado por umolhar político no presente, seria submeter as ambíguasimagens oníricas à interpretação desperta, ou ainda,“dissolver a mitologia no espaço da história”.

Isso quer dizer que o espaço da história éunicamente o presente, o “mundo de hoje”, para o qualos mortos devem ser convidados “a entrar”. Assimsomente “o Agora [pode tornar-se] a imagem mais

23 Idem, p. 25; GS, II-1, p. 299-300.24 Idem, p. 26; GS, II-1, p. 300.25 Idem, p. 32 e 33; GS, II-1, p. 307.

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íntima do Outrora” (Oº, 81). A importância teórica de umahistória materialista do século XIX, época na qual se teriaexpressado o “alto-capitalismo” (Hochkapitalismus), talcomo o sugere o título que Benjamin daria ao seu livrosobre Baudelaire, estaria justamente em que nesseperíodo histórico se constituíra o “passado recente”,justamente aquele “que nos condiciona” (isto é, à geraçãode Benjamin). Contudo, esse passado recente não sedetermina enquanto tal apenas cronologicamente, numaproximidade temporal, mas sim, principalmente, porqueo presente de Benjamin é aquele do “estremecimento daeconomia mercantil”;26 é, portanto, um presente que –como limiar, ‘lugar’ de passagem – possibilita a leituracrítica daquele período passado em que o capitalismo,longe ainda do abalo em que se veria nos anos 30 doséculo XX, encontrar-se-ia no seu auge. Precisamenteporque – pela crise – é o lugar de um limiar, de um não-mais-ser, esse é um presente que se constitui num “Agorada recognoscibilidade” (N 3, 1) dessa experiênciapassada. É para essa relação imagética do Agora com oOutrora, em que este deve, pela imagem, ser trazido aopresente, que a interpretação consciente da imagem éfundamental: ela é a condição do que Benjamin chamoude Despertar histórico.

26 Benjamin, W. Passagens, p. 51; Das Passagen-Werke, p. 59.

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