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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ Patrícia Batista Ribeiro DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: Um estudo das interações sociais em uma escola de Educação Infantil Taubaté SP 2017

DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: … · DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: ... escola e currículo 33 36 36 2.3.2 Preconceito e as ... bem como o combate

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UNIVERSIDADE DE TAUBAT

Patrcia Batista Ribeiro

DIVERSIDADE TNICO-RACIAL NO

CONTEXTO ESCOLAR:

Um estudo das interaes sociais em uma escola de

Educao Infantil

Taubat SP

2017

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UNIVERSIDADE DE TAUBAT

Patrcia Batista Ribeiro

DIVERSIDADE TNICO-RACIAL NO

CONTEXTO ESCOLAR:

Um estudo das interaes sociais em uma escola de

Educao Infantil

Dissertao apresentada como requisito para

obteno do Ttulo de Mestre pelo Programa de Ps-

graduao Stricto Sensu em Educao e

Desenvolvimento Humano: Formao, Polticas e

Prticas Sociais da Universidade de Taubat.

rea de Concentrao: Formao Docente para

Educao Bsica

Orientadora: Prof. Dra. Roseli Albino dos Santos

Taubat SP

2017

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PATRCIA BATISTA RIBEIRO

DIVERSIDADE TNICO-RACIAL NO CONTEXTO ESCOLAR:

Um estudo das interaes sociais em uma escola de Educao Infantil

Dissertao apresentada como requisito para

obteno do Ttulo de Mestre pelo Programa de Ps-

graduao Stricto Sensu em Educao e

Desenvolvimento Humano: Formao, Polticas e

Prticas Sociais da Universidade de Taubat.

rea de Concentrao: Formao Docente para

Educao Bsica

Orientadora: Prof. Dra. Roseli Albino dos Santos

Data: 08/03/2017

Resultado:_________________________

BANCA EXAMINADORA

Prof. (a) Dr. (a) Roseli Albino dos Santos Universidade de Taubat

Assinatura________________________________________

Prof. (a) Dr. (a) Camila Beltro Medina Universidade Paulista

Assinatura________________________________________

Prof. (a) Dr. (a) Suelene Regina Donola Mendona Universidade de Taubat

Assinatura__________________________________________

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AGRADECIMENTOS

Muitos foram os momentos vividos ao longo desses dois ltimos anos, momentos

intensos, de alegrias, conquistas, aprendizado, outros tantos de dificuldades, incertezas,

cansao, mas ter pessoas que me ajudaram a caminhar fez toda a diferena, cada um

contribuindo para que esse sonho do mestrado se transformasse em realidade, por isso

agradeo imensamente:

A Deus, que me sustentou e guiou meus passos em todos os momentos.

Ao meu pai Chailer, que mesmo no estando mais aqui, esteve presente nas minhas

memrias e com certeza estaria muito orgulhoso dessa conquista.

A minha me Wanielza, que me apoiou incondicionalmente e me deu foras para

continuar nos momentos em que o desnimo aparecia.

Ao minha irm Priscila, minha grande incentivadora, pelas leituras e palpites nos meus

textos e por estar sempre presente nas horas que precisei.

Ao meu irmo Junior, por acreditar e me incentivar sempre.

Ao meu namorado Jos, por me ouvir falar inmeras vezes sobre a pesquisa, por

dialogar e sempre me fazer enxergar o lado positivo de tudo, obrigada por torcer por mim e

fazer das minhas conquistas as suas tambm.

A minha orientadora Prof. Dra. Roseli, que pacientemente e didaticamente me auxiliou

em cada detalhe dessa pesquisa.

A Prof. Dra. Suelene e a Prof. Dra. Camila, pelas importantes pontuaes e sugestes

feitas ao trabalho no exame de qualificao.

A diretora, a orientadora e a professora da escola em que foi realizada essa pesquisa,

pela participao e contribuio na realizao desse trabalho.

As crianas da escola pesquisada que me receberam com tanto carinho e me deram a

oportunidade de participar e conhecer o dia a dia delas.

Aos professores e colegas do mestrado, pela oportunidade de conhecer e aprender

novas teorias, mas tambm pelas muitas vivncias e trocas de experincias.

E aos meus alunos, que so a real motivao para viver toda essa intensa jornada que

o mestrado, obrigada por me fazerem acreditar que a educao vale a pena e que uma

educao de fato igualitria possvel.

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Ningum nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem

ou ainda por sua religio. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se

podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.

Nelson Mandela - 1995

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RESUMO

Esta pesquisa aborda o cotidiano das crianas de Educao Infantil no que se refere s interaes

sociais estabelecidas nesse ambiente escolar em relao criana negra. Entendendo-se que

necessrio respeitar a criana em suas individualidades, auxiliando-a no desenvolvimento de

habilidades de interao e respeito ao prximo, faz-se importante discutir sobre diversidade tnico-

racial no espao escolar. Assim, objetivou-se investigar como se estabeleciam as interaes sociais e

relaes raciais entre crianas negras e brancas e com a professora da sala em uma unidade municipal

de Educao Infantil de uma cidade do vale do Paraba- SP. Trata-se de uma pesquisa qualitativa cujos

instrumentos de coleta de dados so entrevistas e observaes do espao escolar e da rotina da sala de

aula. Os sujeitos foram os alunos de uma sala de aula dessa unidade escolar, a professora, a diretora e

a orientadora educacional. Os resultados evidenciaram que as crianas conhecem e empregam

categorias tnico-raciais em seus dilogos. Algumas delas mostraram que tm contato com o

preconceito racial, pois surgiram, em suas falas, comentrios depreciativos relacionados cor de sua

prpria pele. Para algumas delas, as caractersticas raciais pareciam incomodar. No entanto, durante as

brincadeiras relacionavam-se sem que o pertencimento racial interferisse em suas interaes. Um

projeto institucional especfico, voltado para questes tnico-raciais na rede municipal de educao da

cidade, pareceu possibilitar a presena de prticas promotoras de igualdade racial na escola, tanto nas

representaes que compem esse espao quanto nas prticas pedaggicas da professora e nas

interaes que as crianas estabeleciam entre si. Contudo, foi possvel perceber que a falta de um

documento norteador desse projeto institucional, Infncia sem racismo, dificulta um alinhamento de

aes e prticas entre os profissionais da escola. Enquanto algumas professoras desenvolvem

atividades voltadas especificamente para as questes do racismo, outras preferem abordar a

diversidade de forma mais ampla. Tambm apareceram nos discursos da equipe gestora descries

sobre a importncia de se trabalhar a diversidade em diferentes aspectos, sem foco especfico na

questo racial. Tal fato demonstra o incmodo que as questes tnico-raciais ainda provocam.

PALAVRAS-CHAVE: Diversidade tnico-racial. Educao Infantil. Preconceito.

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ABSTRACT

This research approaches the routine of children from early childhood education regarding the social

interactions that are based on this schooling environment in relation to the black child. Taking into

account that it is necessary to respect the child in ones individualities, helping on the development of

abilities of interaction and respect to the others, it is important to discuss about ethnic and racial

diversity in schooling space. Thus, it aimed to investigate how the social interactions and racial

relationships were set among black and white children and the teacher of the classroom in a municipal

early childhood education unit in a city from Vale do Paraba-SP. It is a qualitative research which

data collection instruments are interview and observations of the schooling space and the routine of

the classroom. Research subjects were the students of a classroom in this school unit, the teacher, the

principal and the guidance counselor. The results emphasize that children know and use ethnic and

racial categories in their conversations. Some of them showed that are in touch with racial prejudice

because it was brought, in their speeches, derogatory comments regarding their own skin color. For

some of them, the racial features seemed to bother. However, during fun moments, they interacted

with no interference from racial belongings. A specific institutional project aiming to ethnic and racial

matters in the municipal education of the city seemed to enable the presence of practices that promote

racial equality at school, as much on the representations that compose this space as on the pedagogical

practices of the teacher and o the interactions that children set among themselves. Although, it was

possible to realize that the lack of a guiding document of this institutional project Childhood without

racism, makes it difficult to align the actions and practices among the school professionals. Whereas

some teachers develop activities focused, specifically, on the matters of racism, others prefer to

approach diversity in a more wide way. Also, descriptions about the importance of working on

diversity in different aspects, with no specific focus on the racial matter were brought in the speeches

of the management team. This fact demonstrates the discomfort those ethnic-racial matters still bring

about.

KEYWORDS: Ethnic and racial diversity. Early childhood education. Prejudice.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Espaos da escola 62

Quadro 2 Descrio das atividades realizadas no dia a dia das crianas 64

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LISTA DE SIGLAS

CEP/UNITAU Comit de tica em Pesquisa da Universidade de Taubat

CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

CNE Conselho Nacional de Educao

DCNEI Diretrizes Curriculares Nacionais para Educao Infantil

EMEI Escola Municipal de Educao Infantil

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

RCNEI Referencial Curricular Nacional para Educao Infantil

PPP Projeto Poltico Pedaggico

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SUMRIO

1. INTRODUO 12

1.1 Problema de estudo 15

1.2 Objetivos 15

1.2.1 Objetivo Geral 15

1.2.2 Objetivos Especficos

1.3 Delimitao do Estudo

1.4 Relevncia do Estudo

1.5 Organizao do Trabalho

2. REVISO DE LITERATURA

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2.1 Panorama dos trabalhos acadmicos sobre diversidade tnico-racial na

Educao Infantil

2.2 Infncia e Educao Infantil

2.2.1 Infncia e suas particularidades

2.2.2. O espao da Educao Infantil

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2.2.3 Interaes sociais na infncia

2.3 Diversidade tnico-racial na escola

2.3.1 Diversidade, escola e currculo

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2.3.2 Preconceito e as relaes tnico-raciais na Educao Infantil

3. METODOLOGIA

3.1 Tipo de pesquisa

3.2 Campo de pesquisa: caracterizao

3.3 Populao e Amostra

3.4 Instrumentos para coleta de dados

3.4.1 Pesquisa documental

3.4.2 Observao participante

3.4.3 Entrevistas

3.5 Procedimentos de coleta de dados

3.6 Procedimentos para anlise de dados

4. APRESENTAO, ANLISE E DISCUSSO DOS DADOS

4.1 Caracterizao da Amostra

4.1.1 Caracterizao da escola

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4.1.2 Caracterizao da professora e da equipe gestora

4.1.3. Caracterizao da turma: os alunos e a rotina da sala observada

4.2 A entrada na sala de aula: as primeiras interaes com os alunos

4.3 Interaes sociais na escola

4.3.1 Interaes entre as crianas

4.3.2 Interaes entre as crianas e a professora

4.4 A representao da criana negra na escola

4.5 A diversidade tnico-racial nas prticas da escola o projeto Infncia sem

racismo

4.6 A sala de aula vivncias e prticas pedaggicas

5. CONSIDERAES FINAIS

REFERNCIAS

ANEXO A Ofcio instituio

ANEXO B Termo de Autorizao da Instituio

ANEXO C Parecer n1.225.974 CEP/ UNITAU Autorizao Comit de tica

ANEXO D Termo de consentimento Livre e Esclarecido

APNDICE I Instrumento de Coleta de Dados Questionrio

APNDICE II Roteiro de Entrevista - Professora

APNDICE III - Roteiro de Entrevista Equipe Gestora

APNDICE IV Roteiro de observao

APNDICE V Panorama das pesquisas na rea

APNDICE VI Sugestes de literatura

APNDICE VII - Memorial

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1 INTRODUO

A Educao Infantil o cenrio em que se inicia a formao escolar do indivduo.

Nessa fase, um dos objetivos do educador que a criana seja capaz de desenvolver

habilidades sociais em seu meio.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil destacam que as

propostas pedaggicas devem considerar a criana como o centro do planejamento curricular,

pois ela um sujeito histrico e de direitos. Devem-se assegurar [...] o reconhecimento, a

valorizao, o respeito e a interao das crianas com as histrias e culturas africanas, afro-

brasileiras, bem como o combate ao racismo e discriminao (BRASIL, 2009, art. 9, inciso

VII).

Partindo dessa afirmao e a partir de suas vivncias como professora da Educao

Infantil, algumas inquietaes e questionamentos levaram a pesquisadora a repensar sobre a

atuao prtica do professor nas interaes sociais em relao criana negra dessa faixa

etria.

interessante observar que mesmo as crianas menores j so capazes de reconhecer

possveis diferenas e semelhanas entre si e os participantes do seu grupo, alm de identificar

suas caractersticas e potencialidades.

Duarte (2012), em sua pesquisa com crianas da Educao Infantil, que tinha por

objetivo pensar sobre a constituio da identidade e da conscincia racial das crianas negras,

constatou que desde muito pequenas elas constroem sua identidade racial com base em

conceitos negativos. Essas crianas identificam quais caractersticas so valorizadas na

sociedade e na escola e introjetam o ideal de branqueamento.

Ao longo de sua trajetria como professora dessa faixa etria (dos trs aos cinco anos),

esta pesquisadora vivenciou situaes prticas em sala de aula que a levaram a

questionamentos sobre como so estabelecidas as relaes entre os alunos e seus pares e entre

os adultos, no que diz respeito criana negra. Essas experincias a fizeram refletir acerca da

temtica da educao para as relaes tnico-raciais no espao escolar em que atuo. Mesmo

sendo uma pessoa da cor branca e nunca ter sido alvo de discriminaes raciais, observava

como as crianas negras eram tratadas por alguns colegas e sua falta de representao no

espao escolar. Essas observaes a encaminharam para uma busca por respostas sobre o

porqu da ocorrncia desses fatos.

Em alguns momentos presenciou a intolerncia de crianas com amigos com a cor da

pele negra e algumas afirmaes negativas referentes s suas caractersticas fsicas. Em

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atividades especficas, como na escolha de brinquedos ou imagens, em que os alunos

manifestavam suas preferncias, as representaes de pessoas da cor negra eram excludas por

alguns deles, o que a levava a refletir sobre os critrios preestabelecidos em relao ao

conceito de beleza.

Em paralelo a essa vivncia, pde questionar tambm quais seriam as representaes

do ambiente escolar em relao s diferentes caractersticas dos alunos e se essas

representaes consideram as diferenas tnico-raciais ali presentes.

A partir dessas vivncias, passou a observar com ateno o espao escolar em que

trabalha h alguns anos. Percebeu que nos corredores da escola so fixados alguns cartazes

contendo normas e regras da instituio, ilustrados com fotografias das prprias crianas em

atitudes esperadas; no entanto, nesses cartazes, constavam fotos somente de crianas da cor

branca.

Sua inquietao e busca no parou por a. Ao procurar por livros paradidticos que

tivessem personagens negros em suas histrias, verificou a ausncia dessa temtica no acervo

da biblioteca da escola e tambm nos acervos pessoais das professoras. Tambm ficou

evidente a no representao dos alunos negros nos objetos que permeiam as brincadeiras. H

muitas bonecas, para os momentos de brincadeiras ldicas dos alunos, mas todas elas de pele

branca.

Cavalleiro (2000), que buscou compreender como se processam a discriminao racial

e a socializao de crianas pequenas, concluiu que:

[...] de modo silencioso, ocorrem situaes no espao escolar que podem influenciar a socializao de crianas, mostrando-lhes, infelizmente,

diferentes lugares para pessoas brancas e negras. A escola oferece aos

alunos, brancos e negros, oportunidades diferentes para se sentirem aceitos,

respeitados e positivamente participantes da sociedade brasileira (CAVALLEIRO, 2000, p.29).

Considerando que a escola deve ser esse lugar de respeito s diferenas, em 2003,

promulgada a Lei 10.639, que destaca a relevncia histrica e cultural dos povos africanos e

afro-brasileiros, decretando assim a incluso do ensino da Histria e da Cultura Afro-

brasileira no Ensino Fundamental e Mdio.

Em 2004, surgem as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educao das Relaes

tnico-raciais e para o ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana, determinando a

efetivao dos estudos sobre essa temtica no sistema escolar.

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Alguns anos depois, em 2008, a Lei 11.645 altera o artigo 26 da Lei de Diretrizes e

Bases da Educao Nacional lei 9.394, de 1996 , tornando obrigatrio o estudo da Histria

e Cultura Afro-brasileira e Indgena, e, incluindo a diversidade cultural no currculo oficial da

escola bsica brasileira.

A partir das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil, de 2009, essa

Lei passou a vigorar tambm para essa etapa da educao. Com isso, foi possvel inserir de

maneira mais consistente a discusso da temtica tnico-racial na Educao Infantil, apesar de

esse conceito j ser vivenciado nas prticas em sala de aula.

Diariamente, o professor identifica situaes em que seus alunos percebem diferenas

e semelhanas fsicas e sociais que interferem nas escolhas e posturas diante das atividades

propostas.

Infelizmente a escola pode ser considerada um ambiente em que o racismo

aprendido, e isso pode estar relacionado ao fato de que grande parte do seu currculo ainda

centrado no modelo eurocntrico. Os programas educativos e os manuais escolares, e muitas

vezes os comportamentos diferenciado de alguns professores frente aos alunos brancos e

negros, evidenciam o preconceito (MOREIRA; CANDAU, 2007).

Outro fator de resistncia para o ensino e efetiva implementao da legislao que

determina os estudos sobre a temtica da educao para as relaes tnico-raciais passa pelos

professores. Isso porque muitos deles no tiveram formao sobre o tema, e, outros tantos no

acreditam na existncia de preconceitos por parte dos alunos. Esse silenciamento em relao a

esse assunto percorre nossa histria.

Munanga (2005) destaca a importncia do resgate e da cultura da histria do negro,

pois nossa formao social e nossa identidade esto estritamente ligadas aos negros. Nesse

sentido, o autor afirma que:

O resgate da memria coletiva e da histria da comunidade negra no interessa apenas aos alunos de ascendncia negra. [...] Alm disso, essa

memria no pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em

vista que a cultura da qual nos alimentamos cotidianamente fruto de todos

os segmentos tnicos que, apesar das condies desiguais nas quais se desenvolvem, contriburam cada um de seu modo na formao da riqueza

econmica e social e da identidade nacional (MUNANGA, 2005, p. 16).

A partir desses questionamentos, nesta pesquisa de base qualitativa prope-se uma

discusso sobre como so estabelecidas as interaes sociais no ambiente escolar da educao

infantil em relao ao aluno negro.

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Para a realizao do estudo foi escolhida uma escola de Educao Infantil de uma

cidade do vale do Paraba onde existe um projeto institucional voltado para a temtica tnico-

racial.

Na busca por compreender como se do as interaes sociais e as relaes tnico-

raciais nessa etapa da educao, primeiramente preciso compreender quem essa criana

dessa faixa etria, como so constitudas as interaes nesse perodo de vida e como

provavelmente se desenvolve o preconceito na escola.

O intuito descrever e analisar a realidade observada em relao s interaes sociais

com o aluno negro, mas tambm anunciar possibilidades de uma educao mais justa e

igualitria. Espera-se que surjam questionamentos, demandas e proposies, que ajudem a

superar as barreiras do racismo na escola e a promover uma constante reflexo sobre a

diversidade racial, para construo de uma educao de fato igualitria.

1.1 Problema de estudo

Considerando os recentes estudos que propem uma educao que contemple o

respeito diversidade em todos os seus nveis, questiona-se: Como acontecem as interaes

sociais entre as crianas brancas e negras e entre os alunos negros e seus professores, no

contexto escolar da educao infantil? De que forma a criana negra representada no

ambiente escolar? Quais so as repercusses nas interaes sociais em uma determinada

escola da rede municipal de Educao Infantil, a partir do projeto institucional Infncia sem

racismo, de uma cidade do vale do Paraba?

Diante de tais questionamentos, tem-se o problema de pesquisa do presente estudo:

Como acontecem as interaes sociais em relao criana negra, em uma escola de

Educao Infantil?

1.2 Objetivos:

1.2.1 Objetivo Geral

Investigar como se estabelecem as interaes sociais e as relaes raciais entre

crianas negras (pardas e pretas) e brancas e com a professora da sala em uma unidade

municipal de Educao Infantil de uma cidade do vale do Paraba - SP.

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1.2.2 Objetivos Especficos

Verificar, no projeto poltico pedaggico da escola, referncias s diferenas raciais

e as aes propostas para trabalhar esse contedo no currculo escolar;

Conhecer e analisar a opinio da professora e das gestoras sobre a identidade racial

da criana negra e a presena dessa temtica no currculo escolar;

Conhecer, descrever e analisar as aes desenvolvidas pela professora, tendo como

objetivo curricular o desenvolvimento da temtica diversidade racial, bem como a

aplicao do projeto institucional Infncia sem racismo, da prefeitura municipal

de uma cidade do vale do Paraba;

Verificar se a presena de aes pedaggicas relacionadas temtica da diversidade

racial interfere nas interaes sociais (criana - criana e criana - professor)

estabelecidas nos contexto escolar.

1.3 Delimitao do estudo

O objeto de estudo foram as interaes sociais em relao criana negra na Educao

Infantil. Para isso o estudo foi realizado em uma escola de Educao Infantil de uma cidade

do vale do Paraba. A cidade escolhida possui um projeto institucional voltado para o trabalho

com as questes tnico-raciais, denominado Infncia sem racismo, implantado na rede

municipal de educao h aproximadamente cinco anos.

1.4 Relevncia do estudo

A questo tnico-racial vivenciada como uma realidade no ambiente escolar. As

dificuldades encontradas por gestores e educadores na discusso de propostas prticas de

atuao ainda no so claras, no que diz respeito ao trabalho com a diversidade racial. Na

literatura, verifica-se que essa problemtica vem sendo destacada por alguns autores, mas

ainda existem lacunas no que se refere discusso e implementao do conceito tnico-racial

no contexto da Educao Infantil.

Justifica a realizao deste estudo a inteno de ampliar a discusso sobre as questes

tnico-raciais no espao escolar, para favorecer reflexes e propostas de prticas pedaggicas

que reconheam a individualidade de cada aluno, promovendo assim sua interao com o

grupo.

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1.4 Organizao do trabalho

Este trabalho est organizado em cinco sees. A primeira delas uma introduo, em

que se apresentam o problema de pesquisa, os objetivos gerais e especficos, a delimitao, a

relevncia do estudo e a organizao do texto.

A segunda seo contempla a reviso de literatura, assim dividida: os apontamentos de

pesquisas desenvolvidas em espaos de Educao Infantil, tendo como foco a temtica das

relaes tnico-raciais; os conceitos de infncia e Educao Infantil, as particularidades da

infncia, as caractersticas do espao da Educao Infantil, a legislao que subsidia essa

prtica e como acontecem as interaes sociais nessa etapa da educao; e a diversidade racial

na escola, questes relacionadas ao currculo, diversidade escolar, ao preconceito s

questes tnico-raciais nesse ambiente.

Na terceira seo apontam-se a metodologia escolhida, o tipo de pesquisa, a populao

e amostra, os procedimentos adotados e os instrumentos utilizados na coleta de dados, assim

como os procedimentos para anlise dos dados.

Os resultados e as discusses sobre os dados coletados constituem a quarta seo. Na

quinta sesso so apresentadas as consideraes finais do estudo.

O texto termina com a apresentao das referncias bibliogrficas, de apndices e

anexos.

19

2. REVISO DE LITERATURA

2.1 Panorama dos trabalhos acadmicos sobre diversidade tnico-racial na Educao

Infantil

Considerando que a produo de conhecimento um processo de carter coletivo, do

qual fazem parte saberes construdos anteriormente, realizou-se um levantamento

bibliogrfico, na tentativa de apresentar um panorama das recentes pesquisas sobre Educao

Infantil e as interaes sociais em relao ao aluno negro estabelecidas no espao escolar.

Mesmo com as recentes discusses sobre a diversidade tnico-racial em torno da

educao, h um nmero reduzido de pesquisas que abordam essa temtica, principalmente no

contexto da Educao Infantil.

Com o intuito de identificar quais estudos abordam as interaes sociais no ambiente

escolar em relao criana negra, iniciou-se uma pesquisa no site do Banco de Teses da

Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES

(http://bancodeteses.capes.gov.br/).

Inicialmente, foram pesquisadas teses e dissertaes, com um recorte temporal de

2010 a 2015, utilizando como descritor a palavra negro. Foram encontrados 669 arquivos,

dos quais 600 foram excludos, aps anlise do ttulo, por no fazerem referncia aos aspectos

relacionados educao. Em seguida, foram analisados os resumos dos 69 estudos restantes,

observando-se que nenhum deles fazia referncia Educao Infantil. Os estudos estavam

relacionados a estudantes universitrios, ao sistema de cotas, s prticas no Ensino Mdio,

anlise de materiais didticos e ao processo histrico da educao de alunos negros.

Em uma segunda anlise, foram pesquisadas teses e dissertaes no mesmo perodo

(2010 a 2015), tambm no banco de dados da Capes, utilizando o descritor educao

infantil. Foram encontrados 1190 arquivos e, aps anlise dos ttulos, constatou-se que

somente seis documentos estavam relacionados s relaes tnico-raciais que so

estabelecidas no ambiente escolar.

Das pesquisas analisadas, quatro so dissertaes de mestrado e duas so teses de

doutorado. Essas pesquisas tm como sujeitos crianas na faixa etria de trs a cinco anos de

idade, e duas delas fazem referncia a livros paradidticos para essa faixa etria que tm como

temtica as relaes tnico-raciais.

Os estudos sinalizam que mesmo crianas de pouca idade j observam categorias

tnico-raciais na escolha de seus pares, brincadeiras e brinquedos, e que reconhecem as

http://bancodeteses.capes.gov.br/

20

caractersticas associadas ao grupo de pessoas brancas como sendo superiores, ainda que isso

no seja verbalizado por elas.

Trinidad (2011) realizou uma pesquisa com o objetivo de verificar como as crianas

em idade pr-escolar compreendem a identificao tnico-racial, quais critrios empregam e

como explicitam essa identificao. Encontrou que as crianas dessa faixa etria j so

capazes de reconhecer e utilizar as categorias tnico-raciais em suas brincadeiras e interaes.

Ela destaca que os sentidos e significados dados aos brancos e negros j foram apropriados

pelas crianas desde muito pequenas. Outro fator interessante observado nessa pesquisa foi

que, quando verificado o preenchimento do quesito cor/raa, nos documentos, tanto a

instituio de Educao Infantil quanto as famlias, no o consideram relevante. Segundo a

autora, isso explicita o desconhecimento da importncia de educar as crianas para

reconhecerem a diversidade tnico-racial como algo a ser respeitado e valorizado. A autora

ainda aponta que a Educao Infantil muitas vezes no tem sido objeto de estudo, por no ser

reconhecida como um espao para se conhecer os sentidos e significados construdos pelas

crianas no que diz respeito a sua identificao tnico-racial.

Por sua vez, Vital (2012) investigou as interaes entre as crianas da Educao

Infantil de uma escola municipal da cidade de So Paulo com o intuito de identificar possveis

atitudes preconceituosas entre elas. A partir das observaes da rotina em sala de aula e dos

momentos das crianas no parque, ela observou que as situaes de interao evidenciavam

atitudes preconceituosas por parte dos alunos. Destacou a ausncia de oportunidades para

discutir essas questes em sala de aula, devido ao silncio imposto pela professora, o que se

relaciona com o posicionamento da instituio em no oferecer oportunidade para que as

crianas discutissem e se manifestassem sobre os assuntos do dia a dia. Como alternativa, ela

sugere a elaborao de um projeto que tenha como objetivo desenvolver a tolerncia e

trabalhar o preconceito, ensinando aos alunos formas de conviver respeitosamente com as

diferenas. Pondera que a educao para a diferena um grande desafio para todos os

envolvidos e, para que acontea de fato, necessrio, primeiramente, que os profissionais

compreendam o significado da diversidade. Para isso, deve-se pensar em formao para os

professores, para que eles tenham como proporcionar s crianas oportunidade de discusso

sobre esses assuntos no dia a dia, redimensionando e ressignificando assim o papel da

interao na escola.

A pesquisa de Oliveira (2012) analisou a incorporao de atitudes racistas entre

crianas de trs a cinco anos em uma escola de Educao Infantil de Belo Horizonte. Suas

anlises foram feitas tendo como eixo central a observao das rotinas e se essas contribuam

21

ou no para a incorporao ou superao de atitudes racistas entre as crianas. Encontrou que

a cor da pele e o tipo de cabelo so os principais protagonistas do preconceito racial

manifestado pelas crianas. Destaca ainda que, apesar de ser reconhecida como fundamental

na atualidade, a temtica est longe de ser prioridade nas prticas educativas, pois uma

educao antirracista s ser viabilizada quando os educadores compreenderem seu papel

como protagonistas no processo pedaggico e, a partir disso, desenvolverem aes concretas

voltadas para o respeito diversidade. Ela aponta que necessria uma reviso da

organizao curricular, da rotina escolar e das prticas pedaggicas das instituies escolares,

pois o racismo reproduzido no contexto das interaes escolares. Segundo a autora, as

crianas esto imersas nessa cultura embranquecida, e a valorizao da cultura branca e das

marcas corporais tentam aproxim-las desses modelos. Assim, as crianas negras vo

construindo sua identidade a partir da desvalorizao do negro. Conclui que, para que se

avance nas propostas educacionais que valorizem a diferena, necessrio primeiramente o

reconhecimento da existncia da discriminao na escola. Somente a partir desse

reconhecimento ser possvel pensar em aes prticas.

A valorizao da cultura negra e a aplicao da Lei Federal n10.639/3 foram objetos

de pesquisa de Oliveira (2011). Ela desenvolveu sua pesquisa por meio da realizao de

atividades interativas com crianas da educao infantil e do ensino fundamental, com a

proposta de oficinas, teatro, filmes e leitura de histrias que tivessem como objetivo a

valorizao da cultura negra na escola pesquisada. Segundo a autora, dois fatores interferiam

de forma negativa nas relaes tnico-raciais e alavancavam atitudes preconceituosas na

escola observada. Primeiramente o fato de que muitos professores negam seu pertencimento

tnico-racial, o que traz dificuldade no trabalho de valorizao da Histria e Cultura Africana

e Afro-brasileira no estado do Cear, onde a pesquisa foi realizada. Em segundo lugar, a

invisibilidade de personagens negros na mdia e na literatura. Ela destaca o papel relevante da

mdia na construo do conceito de heris para as crianas. Muitas vezes, artistas que

possuem um pertencimento tnico-racial diferente das crianas so os que desempenham

posio de destaque, enquanto personalidades negras ocupam lugar de inferioridade na mdia.

Ela conclui que, apesar desses fatores, as atividades realizadas foram significativas e os

alunos reagiram de forma positiva, com a introduo de contedos sobre as populaes

africanas e afrodescendentes, durante sua pesquisa. A autora salienta que, apesar de a Lei

Federal n 10.639/03 ter sido promulgada em 2003, pouco se percebe a respeito da sua

insero nas escolas, pois a abordagem de temas relacionados diversidade tnico-racial tem

sido feita de forma artificial, se comparada ao desenvolvimento de outros assuntos. Para ela, a

22

promulgao da Lei apenas o incio da jornada, isso porque existe a necessidade de que

todos os envolvidos no processo educacional trabalhem com urgncia para a real efetivao

dessa Lei no ambiente escolar.

Duas das pesquisas encontradas referiam-se anlise de livros paradidticos para

crianas na faixa etria de trs a cinco anos. Soares (2012) analisou as imagens dos livros

infantis na perspectiva da afirmao da identidade afrodescendente, e Oliveira (2010)

verificou as estratgias ideolgicas presentes nos livros do acervo de 2008 do Programa

Nacional Biblioteca da escola, destinado Educao Infantil. Essas pesquisas partem do

pressuposto de que os livros so instrumentos, que transmitem conceitos ideolgicos pautados

nos ideais das classes hegemnicas. Assim, pode-se considerar que a literatura tem

significativa influncia na formao da identidade da criana. Ambas as pesquisadoras

concluram, entre outros aspectos, que houve um pequeno avano na insero da imagem do

negro nos livros paradidticos, porm ainda no existe uma participao efetiva e positiva da

representao negra. Esses estudos apontam que a predominncia dos personagens brancos

como protagonistas das histrias refora atitudes racistas e preconceituosas. Oliveira (2010)

afirma que, a partir da Lei 10.639/03, houve melhora na qualidade do desenho e da imagem

do negro nos livros, mas ainda falta muito para uma participao efetiva e positiva da

representao negra. Segundo a autora, os livros reforam o silenciamento sobre as relaes

tnico-raciais.

Tambm foi realizada uma busca por artigos sobre a temtica da educao para as

relaes tnico-raciais no espao da Educao Infantil no site de peridicos da Capes

(http://www.periodicos.capes.gov.br/), com recorte temporal de 2010 a 2015. Utilizando os

descritores negro, educao infantil e diversidade racial, foram encontrados 55 artigos, dos

quais 4 estavam relacionados diretamente Educao Infantil.

Silva e Souza (2013), em seu artigo, discutem as prticas pedaggicas observadas em

uma escola de Educao Infantil, com enfoque na literatura e nas imagens que circulam no

ambiente escolar. Observaram essas prticas a partir dos dados coletados para a pesquisa

nacional Prticas Pedaggicas de trabalho com relaes tnico-raciais na escola na

perspectiva de Lei 10.639/2003. Os resultados das observaes apontaram para uma

valorizao da populao negra nos livros que constituem o acervo dessa escola, nas imagens

que circulam no espao fsico e em algumas atividades propostas pelos professores. Embora

essas prticas no tenham chegado a um papel central na vivncia da escola, de certa forma,

aos poucos, foram incorporadas nas prticas pedaggicas. Os autores apontam que algumas

mudanas tm ocorrido nas instituies de Educao Infantil, a partir das proposies de

http://www.periodicos.capes.gov.br/

23

polticas curriculares. Mesmo de forma lenta, alguns movimentos, no que diz respeito s

questes tnico-raciais, esto acontecendo, mas esse processo marcado por contradies e

complexidade.

J o artigo de Rosemberg (2014) discute sobre os debates realizados frente temtica

da diversidade tnico-racial e as diferentes formas de racismo presentes no espao escolar. Ela

aborda as implicaes epistemolgicas e polticas dos conceitos de igualdade/desigualdade e

diversidade, tendo como foco as implicaes desses conceitos no campo da Educao Infantil,

enfatizando o direito de todos a uma educao escolar democrtica e de qualidade, incluindo

as crianas pequenas. A autora destaca tambm as aes pblicas que tm surgido na busca

por minimizar as diferenas entre crianas brancas e negras, que so um avano, mas ainda

insuficientes, pois no eliminam todo o impacto negativo das desigualdades no mbito

escolar. Como exemplos, as desigualdades estruturais de acesso aos bens materiais, a

permanncia e o sucesso no sistema educacional. Ela aponta tambm a importncia do

professor nessa busca por uma educao igualitria, a necessidade de esse educador pensar

em aes concretas que possam ser desenvolvidas no exerccio da sua funo, e tambm em

aes que possa desenvolver na esfera poltica.

Dias (2012), por sua vez, discute a formao do professor com enfoque na diversidade

tnico-racial. A autora questiona como os professores mobilizam seus saberes na construo

de um currculo para a diversidade, aps seus perodos de formao. Destaca que eles

afirmam perceber a discriminao no seu cotidiano escolar, e que h necessidade de se

criarem oportunidades de discusso sobre o tema, para viabilizar propostas de aes. Aponta

ainda que atuar sobre a formao dos professores fundamental, para a gerao de respostas

positivas no combate discriminao na escola. Para isso, essa formao deve proporcionar

uma anlise crtica da prpria prtica, com atitude reflexiva, para que assim o professor possa

interferir na realidade educacional de forma eficaz. A necessidade de formao especfica do

professor para a diversidade tnico-racial explicitada pela autora, que aponta falta de

investimento em formaes sobre essa temtica. Alerta para a pouca discusso sobre o tema

na Educao Infantil, o que, segundo ela, dentre outros fatores, se d pela ideia da inexistncia

do preconceito nessa faixa etria.

O artigo de Gaudio e Rocha (2013) tambm apresenta uma anlise de pesquisa

realizada em uma escola de Educao Infantil que teve como objetivo investigar as interaes

sociais estabelecidas entre as crianas e seus pares e entre os adultos, quanto s diferenas

tnico-raciais. Por meio da observao, os pesquisadores concluram que as relaes entre as

crianas e seus pares envolviam mltiplas dimenses e que, ao organizarem suas aes e

24

brincadeiras, elas se apoiavam em elementos constitutivos de sua prpria cultura, utilizando

concepes e vises estereotipadas de seu contexto, reproduzindo assim os conceitos

produzidos historicamente. Os autores observam que a cor da pele e a estrutura do cabelo

foram os elementos que apareceram com destaque como aspecto de iderio de beleza pelas

crianas. Destacam tambm a importncia do adulto nesse contexto, observando e refletindo

sobre as aes das crianas, para que, a partir dessas aes, possa criar estratgias

pedaggicas com a inteno de auxiliar na desconstruo de vises estereotipadas acerca da

diversidade tnico-racial. Assim, poder contribuir para que seus alunos construam uma

autoimagem positiva.

Nas teses, dissertaes e artigos encontrados observa-se que o enfoque das pesquisas

est, principalmente, nas relaes e interaes entre as crianas e seus pares. Pouco ainda

discutido, pensado e analisado sobre as interaes sociais no ambiente escolar, ou seja, as

relaes estabelecidas entre os adultos e as crianas, o posicionamento dos gestores sobre a

temtica das relaes tnico-raciais no ambiente escolar e as representaes estticas no

espao fsico da escola.

A leitura e anlise das pesquisas encontradas reafirmam a importncia da discusso

sobre as relaes tnico-raciais no espao da Educao Infantil. H necessidade de constante

reflexo e discusso de propostas especficas para responder aos questionamentos sobre como

essas interaes so constitudas entre os indivduos e para que essas propostas sejam

trabalhadas em todas as etapas da educao.

2.2 INFNCIA E EDUCAO INFANTIL

Sabendo-se que a criana difere do adulto por seu modo de pensar, agir e se relacionar

com as pessoas que a cercam, apresentam-se nesta subseo algumas discusses acerca das

concepes de criana e infncia e da relevncia da Educao Infantil como percurso escolar.

Apresenta-se tambm uma reflexo sobre como so estabelecidas as interaes sociais entre

as crianas e seus pares e entre elas e os adultos.

Para essas consideraes, foram consultados autores como Kramer (1998), Sarmento

(2005), Pinto (1997), Goffman (2011) e Vygotsky (1998). Foram tambm consultados

documentos oficiais, como a Lei de Diretrizes e Bases, o Estatuto da Criana e do

Adolescente e o Referencial Curricular Nacional para Educao Infantil, dentre outros.

25

2.2.1 Infncia e suas particularidades

Como a criana o sujeito principal desta pesquisa, importante refletir sobre alguns

conceitos acerca da infncia. Para isso, estudaram-se autores como Kuhlmann (1998), Kramer

(1998), Lajolo (2006) e Sarmento (2005), que abordam a infncia em uma perspectiva scio-

histrica.

Ao pensar sobre qual idade abrange o perodo da infncia, surgem divergncias, pois

essa definio est ligada cultura. Pinto (1997) destaca que essa segmentao uma questo

de disputa poltica e social, no estando indiferente ao contexto, ao espao e ao tempo de sua

colocao.

Oliveira (2012a) aponta que as construes dessas concepes acerca da infncia

variam ao longo dos anos, pois so frutos de fatores como o contexto social, tempo histrico,

espao, cultura e valores. Sendo assim, as mudanas que acontecem na sociedade alteram as

estruturas sociais e, consequentemente, a determinao dos papis e a insero da criana

nesse contexto. Segundo a autora, para se avanar em relao ao conhecimento sobre a

infncia preciso romper paradigmas, questionando a crena na existncia de apenas uma

concepo de criana ou infncia, pois as pesquisas tm evidenciado que distintos grupos

sociais concebem as necessidades e o carter da infncia de formas diferentes.

Segundo Kuhlmann (1998), o significado dessa etapa da vida est estritamente ligado

s transformaes da sociedade. Para ele:

[...] infncia tem um significado genrico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado funo das transformaes sociais: toda sociedade

tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas associado um

sistema de status e de papel (KUHLMANN, 1998, p.16).

A infncia construda historicamente, a partir de um processo de longa durao que

lhe atribui um estatuto social, e esse processo sucessivamente atualizado nas interaes

entre crianas e destas com os adultos (SARMENTO, 2005).

Com base nas caractersticas atribudas a essa faixa etria, os conceito de ingenuidade,

de pureza e de subjetividade foram atribudos por muito tempo s crianas, que eram vistas

como uma tbula rasa e, que necessitavam de formao moral e da instruo permanente do

adulto.

Alguns estudos (ARIS, 1981; PINTO, 1997) resgatam as concepes de infncia e

evidenciam que as crianas sempre existiram, mas que a preocupao da sociedade e dos

adultos sobre elas surgiram com a modernidade.

26

Aris (1981), considerado o pioneiro da histria da infncia, em sua obra Histria

Social da Criana e da Famlia, salienta que a descoberta da infncia ocorreu entre os sculos

XV, XVI e XVII. O autor assinala que o conceito de criana foi construdo ao longo dos anos

e que, por um longo perodo, ela era vista apenas como um adulto em miniatura. Somente por

volta do sculo XVIII a criana passou a ser reconhecida com um ser com caractersticas

prprias e a receber um tratamento diferenciado.

Para Aris (1981), a partir do sculo XVI aconteceu uma grande mudana, um

movimento moral em que se comeou a falar sobre a fragilidade das crianas, comparando-as

com os anjos. Nesse perodo, a educao era vista como uma obrigao humana, por isso

comearam a se multiplicar pequenas escolas que desenvolviam uma disciplina rigorosa,

voltada para a moralidade.

Para esse mesmo autor, a partir do fim da Idade Mdia novas ideias surgiam a respeito

da infncia e de sua educao. Os adultos passaram a ter, no apenas o dever de transmitir

conhecimento, mas tambm de inculcar virtudes e instruir as crianas, surgindo assim a noo

de fraqueza da infncia e o sentimento de responsabilidade moral dos mestres.

Para Aris (1981), a partir do sculo XIX surgia uma nova concepo de educao e

orientao quanto ao sentimento da infncia, que no estava mais ligado ao sentimento de

fraqueza, mas de despertar na criana a responsabilidade do adulto. As transformaes desse

perodo geraram uma funo espiritual e moral para a famlia, que passou a ser responsvel

por educar o corpo e a mente das crianas.

Outros pesquisadores, como Kuhlmann (1998), discutem o conceito de infncia a

partir de um constructo social, que varia conforme os diferentes perodos e lugares em que a

criana est inserida.

Para Kuhlmann (1998), a infncia deve ser considerada uma condio concreta da

criana, que vive um conjunto de experincias em diferes lugares histricos, geogrficos e

sociais, e isso mais do que a representao que os adultos fazem sobre essa fase da vida.

Para o autor, defender essa lgica possibilita considerar que qualquer criana tem infncia,

que no se trata de uma infncia idealizada, mas construda histrica e socialmente.

Kuhlmann (1998) afirma que para pensar a criana na histria preciso consider-la

como um sujeito histrico, reconhecendo-a como produtora da histria, um sujeito concreto.

Nesse sentido, afirma que:

[...] preciso conhecer as representaes de infncia e considerar as crianas

concretas, localiz-las nas relaes sociais, reconhec-las como produtoras

da histria. Torna-se difcil afirmar que uma determinada criana teve ou

27

no infncia. Seria melhor perguntar como , ou como foi, sua infncia

(KUHLMANN, 1998, p. 31).

A infncia diz respeito interao da criana com o mundo real, pois a partir de

interaes que ela se desenvolve, participando de um processo social, cultural e histrico,

apropriando-se de valores e comportamentos de seu tempo e lugar (KUHLMANN, 1998).

Para entender quem essa criana, como vive e o que pensa, Cohn (2005) afirma que

preciso um afastamento das imagens preconcebidas e abordar esse universo como realmente

ele , e no a partir das expectativas dos adultos.

Por vezes os adultos tm vises ingnuas e estereotipadas, considerando a criana

como modelo de doura, entendem que ela precisa ser preparada para a sociedade. Essas

vises dificultam a compreenso sobre a forma como ocorrem as experincias, as interaes e

os processos que definem a infncia.

Para Kuhlmann (1998), a realidade social e cultural da infncia complexa, articulada

na presena de diversos modelos de infncia concomitantes, mas tambm um percurso que

vai do estabelecimento de normas para o cuidado at uma mitificao dessa fase.

H necessidade de desconstruo e anlise crtica das imagens que foram mitificadas e

estereotipadas ao longo dos tempos acerca das crianas, imagens [...] que perpassam os

discursos, as prticas sociais e, em geral, as formas variadas de representao da infncia

(PINTO, 1997, p.63).

Por longos anos as crianas foram consideradas como coadjuvantes na sociedade, no

sendo dado a elas o direito de se expressar como sujeitos. Segundo Pinto:

[...] no apenas errneo, como pode ser perverso, o centramento dos

direitos da criana na proteo e (mesmo) na proviso dos meios essenciais

de crescimento, sem que se reconhea s crianas o estatuto de atores sociais e se lhes atribua de facto o direito participao social e partilha da

deciso nos seus mundos de vida (PINTO, 1997, p.20).

Lajolo (2006) aponta que, quando se fala sobre a infncia como um objeto de estudo,

enfatiza-se o lugar do outro. Segundo essa autora, essa categoria foi sempre definida de fora,

pois raramente se deu criana o lugar de sujeito do discurso, sonegando-lhe o direito de

expressar seu saber. A autora chama a ateno para o uso da infncia enquanto recurso

ideolgico em prol do que interessa ao mundo adulto. Nesse sentido, aponta que:

[...] por no falar, a infncia no se fala e, no se falando, no ocupa a

primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam. E, por no ocupar esta

primeira pessoa, isto , por no dizer eu, por jamais assumir o lugar de

28

sujeito do discurso, e, consequentemente, por consistir sempre um ele/ela

nos discursos alheios, a infncia sempre definida de fora (LAJOLO, 2006,

p. 230).

A infncia e a criana precisam ser pensadas em seu contexto histrico, caso contrrio

corre-se o risco de consider-la apenas como um organismo em desenvolvimento ou uma

faixa etria. Kramer (1986) salienta que relevante buscar o significado social da infncia e

compreender a criana enquanto ser social:

Conceber a criana como ser social que ela , significa: considerar que ela

tem uma histria, que pertence a uma classe social determinada, que estabelece relaes definidas segundo seu contexto de origem, que apresenta

uma linguagem decorrente dessas relaes sociais e culturais estabelecidas,

que ocupa um espao que no s geogrfico, mas que tambm d valor, ou seja, ela valorizada de acordo com os padres de seu contexto familiar e de

acordo com sua prpria insero nesse contexto (KRAMER, 1986, p. 79).

A sociedade desigual, e por isso as crianas desempenham papis diferentes,

conforme o contexto. Em seus estudos sobre a infncia, Kramer (2007) destaca a

heterogeneidade das populaes infantis nas contradies da sociedade. Para ela, a ideia de

infncia, na modernidade, est baseada em um padro de crianas das classes mdias.

necessrio, pois, considerar a diversidade de aspectos sociais, culturais e polticos do pas,

como a escravido das populaes negras, a opresso e pobreza de parte da populao, o

colonialismo, fatores que deixaram marcas diferentes no processo de socializao de algumas

crianas e adultos. relevante que se considere as crianas em seu contexto de origem, seu

desenvolvimento e seu acesso ao conhecimento, pois [...] so sujeitos sociais e histricos,

marcadas, portanto, pelas contradies das sociedades em que esto inseridas (KRAMER,

2007, p.15).

Considerando a trajetria histrica da criana e da infncia, Pinto (1997) reitera que

preciso que se considere a criana como protagonista de sua prpria histria e que ela pode

falar por si. Nesse sentido, segundo o autor,

[...] a considerao das crianas como atores sociais de pleno direito, e no

como menores ou componentes acessrios ou meio da sociedade dos adultos, implica o reconhecimento da capacidade de produo simblica por parte

das crianas e a constituio das suas representaes e crenas em sistemas

organizados, isto , em culturas (PINTO, 1997, p.20).

29

Ao desenvolver uma pesquisa com o objetivo de verificar como as crianas concebem

sua identificao tnico-racial, Trinidad (2011) priorizou ouvir o que as crianas tinham a

dizer sobre si mesmas. A autora afirma que a criana deve ser vista como ser que tem voz

prpria, que produtora de cultura ao interagir com outras crianas e com os adultos, pois

[...] ela participante ativa da construo da histria no aqui e agora, ativa em seu processo

de humanizao (TRINIDAD, 2011, p.78).

A partir dos estudos que buscavam entender a criana em seus contextos e suas

particularidades, especialmente no sculo XX, surgiu um olhar mais atento para as situaes

de risco em que estava envolvida, e as discusses deram origem a documentos relacionados

aos direitos da criana.

Nesse sculo, a comunidade internacional props documentos pela defesa dos direitos

humanos dessa faixa etria. Em 1923, em Genebra, foi aprovada uma declarao com

princpios bsicos de proteo criana. Em 1959, a Assembleia das Naes Unidas aprovou

a Declarao dos Direitos da Criana. Em 1978, a Polnia props comunidade internacional

a Conveno sobre os Direitos da Criana, que foi adotada pela Assembleia Geral nas Naes

Unidas em 1989, e o texto aprovado na ONU em 1990, destaca, em dois artigos, a crena nos

direitos das crianas:

Os Estados Partes garantem criana com capacidade de discernimento o

direito de exprimir livremente sua opinio sobre as questes que lhe respeite,

sendo devidamente tomadas em considerao as opinies da criana, de acordo com a sua idade de maturidade.

A criana tem direito liberdade de expresso. Este direito compreende a

liberdade de procurar, receber e expandir informaes e ideias de toda a espcie, sem consideraes de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa

ou artstica ou por qualquer meio escolha da criana (BRASIL, 1990, art.

12 e 13).

Tendo como suporte as novas concepes de criana, em 1998, no Brasil, foi

elaborado um importante documento, o Referencial Curricular Nacional para Educao

Infantil, para nortear as aes nas escolas. Esse documento define que:

A concepo de criana uma noo historicamente construda e consequentemente vem mudando ao longo dos tempos, no se apresentando

de forma homognea nem mesmo no interior de uma mesma sociedade e

poca. Assim possvel que, por exemplo, em uma mesma cidade existam maneiras de se considerar as crianas pequenas dependendo da classe social

a qual pertencem, do grupo tnico do qual fazem parte (BRASIL, 1998,

p.21).

30

As experincias vivenciadas nos primeiros anos de vida constituem-se como

elementos necessrios formao do sujeito, tanto as que ocorrem no ambiente familiar

quanto as que ocorrem na escola ou entre os diversos grupos no qual a criana est inserida.

Ao longo dos anos ocorreram discusses sobre as concepes de infncia, e com isso

documentos legais surgiram, garantindo s crianas alguns direitos, como um espao escolar

voltado especificamente para a primeira infncia, para suas necessidades e caractersticas, a

escola de Educao Infantil.

2.2.2 O espao da Educao Infantil

Partindo dos conceitos de criana e de infncia que vm sendo histrica e socialmente

construdos, ampliaram-se gradativamente a concepo acerca da importncia da Educao

Infantil, entendendo-a como um espao em que se respeite a criana, estimulando suas

habilidades e auxiliando em sua construo de aprendizagens significativas.

Dentre os marcos que consolidaram a importncia social e o carter educativo das

instituies que atuam com crianas de zero a seis anos de idade destaca-se a Constituio

Federal de 1988, que proclamou como dever do Estado, a oferta dessa modalidade de ensino

(artigo 208, inciso IV). Em 1990, o Estatuto da Criana e do Adolescente, (artigo 54, inciso

IV), tambm destacou o direito da criana a esse atendimento educacional.

A partir dessas conquistas, compreende-se que todas as crianas, independentemente

de sua classe social ou de seu pertencimento tnico-racial, tm direito a essa etapa

educacional.

Garantido o direito de frequentar a escola desde pequena, o cuidado com a criana

deixou de ser realizado apenas no mbito familiar, para tambm ser papel da escola. Assim,

passou a ser necessrio regulamentao e controle das instituies pblicas que atuavam com

essa modalidade de ensino, tornando-se essa faixa etria objeto de polticas pblicas.

Reafirmando essas disposies, promulgada em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases da

Educao Nacional (LDB), Lei n 9.394, que estabelece a Educao Infantil como primeira

etapa da Educao Bsica, prevendo atendimento gratuito e integrando-a como parte do

sistema escolar brasileiro.

O artigo 29 dessa Lei dispe que:

A educao infantil, primeira etapa da educao bsica, tem como finalidade

o desenvolvimento integral da criana at seis anos de idade, em seus

31

aspectos fsicos, psicolgico, intelectual e social, complementando a ao da

famlia e da comunidade (BRASIL, 1996, p.17).

Ao longo da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional aparecem diversas

referncias especficas Educao Infantil, como a que se refere formao dos profissionais

para esse segmento educacional, a forma de avaliao e a complementaridade entre as

instituies de ensino e a famlia.

Essa Lei atribui flexibilidade ao funcionamento das escolas de Educao Infantil,

permitindo que adotem diferentes formas de organizao e prtica, porm reafirma que

papel da Unio, em colaborao com os estados, Distrito Federal e municpios, estabelecer as

competncias e diretrizes que nortearo currculos e definiro uma formao bsica comum.

Com essas legislaes, a criana passou a ser reconhecida como um ser em

desenvolvimento com direitos garantidos por leis e pela Constituio. No entanto, vale

ressaltar que a presena dessas leis ainda no um sinnimo de materialidade desses direitos,

tampouco de qualidade educacional. Apesar de toda a legislao, que define o carter

educativo das escolas de Educao Infantil, ainda existem muitos problemas no cotidiano

dessas instituies.

Apesar disso, com essas diretrizes e com novos posicionamentos acerca do

desenvolvimento da cognio e da linguagem, propostas pedaggicas foram pensadas para

esse segmento educacional.

Em 1998, o Ministrio da Educao e do Desporto, props a elaborao de um

documento especfico para essa etapa da educao, o Referencial Curricular Nacional para a

Educao Infantil (RCNEI), com o objetivo de auxiliar na realizao do trabalho educativo

dirio com as crianas da faixa etria de 0 a 6 anos. Esse documento, que teve como intuito

direcionar as especificidades dessa etapa da educao e oferecer orientaes para o trabalho a

ser desenvolvido, defende que:

O ingresso na instituio de Educao Infantil pode alargar o universo inicial

das crianas, em vista da possibilidade de conviverem com outras crianas e

com adultos de origens e hbitos culturais diversos, de aprender novas

brincadeiras, de adquirir conhecimentos sobre realidades distantes (BRASIL, 1998, p. 13.).

O RCNEI (1998) apresenta orientaes para servir de base entre os profissionais de

ensino e para auxiliar na elaborao dos projetos educativos, entretanto destaca a necessidade

de o profissional considerar, na atuao junto a essas crianas, as caractersticas sociais e

culturais especficas dos locais onde as instituies esto inseridas.

32

Esse documento composto por trs volumes. O primeiro deles, denominado

Introduo, apresenta as caractersticas do documento, sua organizao, reflexes sobre

creches e pr-escolas no Brasil, concepes acerca da criana, da educao, da instituio de

Educao Infantil, do profissional que atende essa faixa etria, e a definio dos objetivos

gerais dessa etapa da escolarizao.

O segundo volume, intitulado Formao Pessoal e Social, enfatiza os processos de

construo da identidade e autonomia das crianas. Define os objetivos e contedos

especficos para o trabalho com as crianas de zero a trs anos e de quatro a seis anos e

apresenta algumas orientaes gerais para o professor, no que se refere organizao do

ambiente escolar, e aos cuidados essenciais com as crianas e com a organizao do tempo

didtico. Alm disso, delimita a forma de avaliao escolar, que tem como foco a observao

e o registro por parte do professor.

O terceiro volume, Conhecimento de Mundo, define orientaes para a construo

das diferentes linguagens pela criana. Abrange seis eixos de trabalho que devem ser

desenvolvidos na Educao Infantil: movimento, msica, artes visuais, linguagem oral e

escrita, natureza e sociedade e matemtica. Esse volume define os objetivos e contedos de

cada rea e delimita algumas orientaes didticas.

Nesse documento observa-se que suas orientaes no devem ser vistas como nica

fonte diretriz para a elaborao da prtica educativa, sendo ele um norteador dessas prticas.

Destaca tambm a necessidade permanente de atualizao dos docentes, que, num esforo

contnuo com a prpria instituio educativa, devem considerar a formao como um dos

elementos chave para o sucesso no atendimento a esse perodo da escolaridade.

No RCNEI (1998) apontado que a concepo de criana historicamente construda

e que vem mudando ao longo do tempo. Atualmente ela vista como um sujeito que est

inserido na sociedade e que estabelece uma multiplicidade de relaes nesse espao.

Reafirma-se a necessidade de que as funes de educar e cuidar ocorram de forma integrada,

destacando-se que educar significa:

Propiciar situaes de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de

forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de relao interpessoal, de ser e estar com os outros em

uma atitude bsica de aceitao, respeito e confiana, e o acesso, pelas

crianas, aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural

(BRASIL, RCNEI, 2002, p. 23).

33

Esse documento representou um avano para a Educao Infantil, pois trouxe

alternativas que possibilitaram a substituio da funo puramente assistencialista, que

envolvia creches e pr-escolas, para as funes educativa, didtica e pedaggica.

Sendo a Educao Infantil objetivo de polticas pblicas, em 1999, o Conselho

Nacional de Educao (CNE) instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao

Infantil (DCNEI), documento que teve como intuito orientar as instituies sobre a

organizao, articulao, desenvolvimento e avaliao de propostas pedaggicas.

Passados dez anos, foram revisitadas as diretrizes anteriores e elaboradas as novas

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil (2009), instituindo-se parmetros

que devem ser observados na organizao das propostas pedaggicas de todas as instituies

de Educao Infantil brasileiras.

Esse documento norteador apresenta concepes de currculo, de criana e de

Educao Infantil, orientando a elaborao das propostas pedaggicas e curriculares. Uma das

consideraes elencadas na DCNEI (2009) destaca que criana um sujeito de direitos e que

deve estar no centro do processo educativo e do planejamento curricular. Refora que:

[...] as propostas pedaggicas da Educao Infantil devero considerar que a

criana, centro do planejamento curricular, sujeito histrico e de direitos

que, nas interaes, relaes e prticas cotidianas que vivencia, constri sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende,

observa, experimenta, narra, questiona e constri sentidos sobre a natureza e a

sociedade, produzindo cultura (BRASIL, DCNEI, 2009, art. 4).

O cuidar e o educar tambm so destacados nesse documento, salientando-se que

precisam ser realizados em ambiente que possibilite o desenvolvimento das potencialidades

de cada criana, respeitando suas individualidades.

Pensando na faixa etria da criana que integra a Educao Infantil, para que ela se

desenvolva plenamente, esses dois aspectos, o cuidar e o educar, precisam ser supridos, pois

so entendidos como dimenses inseparveis. O aprendizado precisa contemplar as vrias

dimenses da vida da criana: a educativa, a social e a cultural (TRINIDAD, 2011).

Carvalho (2012) reitera que, como o cuidado e a educao so faces de uma mesma

moeda, devem estar comprometidos com a transformao do ser humano no seu

desenvolvimento global. A autora destaca que, muitas vezes, na Educao Infantil, esses dois

aspectos so vistos separadamente um do outro, o que empobrece, tanto o cuidado, como as

atividades expressivas.

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Sendo dimenses que se complementam, esses aspectos caminham paralelamente. No

dizem respeito somente a procedimentos fsicos ou atividades com propostas de

desenvolvimento cognitivo, mais do que isso, envolvem aspectos relacionais e de

entendimento do indivduo em sua integralidade.

As situaes de cuidado, brincadeiras e aprendizagens devem ser conjuntas, para que

assim contribuam no desenvolvimento da criana, das suas relaes interpessoais,

favorecendo aceitao, respeito e confiana entre elas.

Cabe s instituies de Educao Infantil uma ao intencional em todas as suas

prticas, tendo como foco o desenvolvimento integral da criana, com viso ampla de

educao. Esse desenvolvimento passa tambm pelo processo de socializao que ela

vivencia na escola, importante ambiente para a sua socializao.

O contato com outras crianas e com adultos diferentes do ambiente familiar amplia as

possibilidades de interao e auxiliam na construo da identidade da criana, possibilitando

seu desenvolvimento.

Ao adentrar no espao escolar, mesmo com pouca idade, a criana traz consigo

experincias vividas com seus familiares e com a comunidade em que est inserida. Nesse

lugar ela passa a conviver com muitas outras crianas e com adultos, e assim constri

interaes e concebe novas aprendizagens.

As instituies de educao contribuem para a construo da identidade das crianas e

possibilitam o desenvolvimento entre elas e com diferentes adultos, cumprindo assim seu

papel socializador (OLIVEIRA, 2012).

Diante da convico de que muitas interaes acontecem no espao escolar, e na

certeza de que elas so significativas no processo de desenvolvimento e aprendizado da

criana, torna-se necessrio compreender como essas interaes acontecem e como so

vivenciadas pelas crianas na faixa etria que corresponde Educao Infantil.

2.2.3 Interaes sociais na infncia

O espao escolar apresenta inmeras oportunidades para compreenso das

experincias sociais entre as crianas, ou seja, das relaes e interaes sociais que elas

estabelecem com seus pares e com os adultos, nesse ambiente.

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Por meio dessas interaes, que acontecem nos mais diversos momentos da rotina

escolar, a criana aprende, troca experincias, desenvolve autonomia, se reconhece e

reconhece o outro como sujeito.

Ao frequentar a escola, as crianas ampliam suas interaes com outras crianas, com

adultos e com objetos de conhecimento, o que lhes possibilita a construo de novas

percepes sobre o mundo que as cerca.

Goffman (2011) define interao como [...] a influncia recproca dos indivduos

sobre as aes uns dos outros, quando em presena fsica imediata, e tambm como aquela

relao que surge em situaes sociais. Para o autor, preciso a presena fsica, em um

determinado espao e tempo, para que a interao acontea. As situaes interacionais so

complexas, pois preciso construir mensagens e atribuir significados ao discurso

(GOFFMAN, 2011, p. 23).

Pensando na criana, Vygotsky (1998) destaca que o desenvolvimento humano se d

no meio social em que o indivduo vive. Para ele, desde seu nascimento a criana um ser

social, que para se desenvolver, necessita estar em contato com o meio, pois as interaes

sociais so elementos fundamentais na construo do indivduo. Essas interaes possibilitam

avanos no nvel de desenvolvimento, aprendizado de novas atividades, significados e

conceitos.

Vygotsky desenvolveu seus estudos segundo uma viso de desenvolvimento baseada

na concepo de um organismo ativo, cujo pensamento construdo paulatinamente num

ambiente que histrico e essencialmente social. Ele considera que o aprendizado resulta em

desenvolvimento, e que o desenvolvimento do indivduo se d na relao com seu ambiente

sociocultural.

Acreditando nessa interao entre os indivduos para gerarem aprendizagem,

Vygotsky desenvolveu o conceito de zona de desenvolvimento proximal. Segundo ele,

existem dois nveis de desenvolvimento, o real e o potencial. O nvel de desenvolvimento real

refere-se capacidade do indivduo para realizar tarefas de forma independente. Esse perodo

caracteriza-se pelas etapas j alcanadas pela criana, ou seja, aquilo que ela consegue realizar

sozinha, sem o auxlio de outra pessoa. So os denominados ciclos de desenvolvimento j

completados (VYGOTSKY, 1998, p.111).

Para compreender o desenvolvimento da criana, ele tambm considerou o nvel de

desenvolvimento potencial, que est relacionado capacidade de realizar tarefas com a ajuda

de outros mais experientes. Nesse nvel, a criana no consegue realizar sozinha todas as

atividades, mas sob a orientao e/ou colaborao de outros a execuo se torna possvel.

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O conceito de zona de desenvolvimento potencial fundamental na teoria de

Vygotsky, devido importncia atribuda por ele interao social. O autor considera que o

desenvolvimento individual se d num ambiente social e que a relao com o outro essencial

para o processo de construo do ser psicolgico.

A partir da existncia desses dois nveis Vygotsky definiu a zona de desenvolvimento

proximal como sendo o caminho que o indivduo vai percorrer entre as funes que ainda no

amadureceram. Depois de consolidadas, essas funes faro parte da zona de

desenvolvimento real. Nesse sentido, pode-se definir zona de desenvolvimento proximal

como:

[...] a distncia entre o nvel de desenvolvimento real, que se costuma

determinar atravs da soluo independente de problemas, e o nvel de

desenvolvimento potencial, determinado atravs da soluo de problemas

sob a orientao de um adulto ou em colaborao com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1998, p.112).

As concepes de Vygotsky sobre conceitos de desenvolvimento, aprendizado e zona

de desenvolvimento proximal evidenciam a importncia entre esses processos e a relao do

indivduo com o ambiente sociocultural. Em outras palavras, os seres humanos no se

desenvolvem plenamente sem o contato com outros indivduos.

Sendo assim, entende-se que a experincia social tem papel decisivo no

desenvolvimento cognitivo, o que confirma a relevncia da interao para o percurso de

aquisio de conhecimentos pela criana.

Pensando na escola como um lugar privilegiado, em que as trocas de experincias e

aprendizagens acontecem na relao entre as crianas e todos que compem esse universo,

Cavalleiro explica:

A experincia escolar amplia e intensifica a socializao da criana. O contato com outras crianas de mesma idade, com outros adultos no

pertencentes ao grupo familiar, com outros objetos de conhecimento, alm

daqueles vividos pelo grupo familiar vai possibilitar outros modos de leitura do mundo. Toda essa nova experincia pode ser muito positiva para o

desenvolvimento da criana, o que caracteriza as creches e pr-escolas como

um espao importante para o desenvolvimento da criana (CAVALLEIRO,

2000, p.17).

Considerando a importncia dessa socializao e o fato de que nas interaes que as

crianas aprendem sobre si e sobre os outros, Cavalleiro (2000) questiona, em suas pesquisas,

sobre como acontecem essas interaes em relao criana negra. Segundo ela, existe um

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silenciamento dessas questes, e a ausncia de discusso sobre a temtica impede que as

interaes aconteam de forma eficaz, no que diz respeito criana negra. Ela entende que

essa falta de preocupao com as questes tnico-raciais na escola colaboram para a

construo de indivduos preconceituosos e discriminadores.

Reconhecendo-se a relevncia da interao social no desenvolvimento dos indivduos,

fica evidente a importncia do trabalho com as diferenas tnico-raciais desde a primeira

etapa da educao. Cabe escola estruturar-se no sentido de promover trocas de experincias

e construo de conhecimentos por meio da interao entre todos os alunos,

independentemente de sua etnia.

Para compreender como acontecem essas relaes discriminatrias que muitas vezes

permeiam a escola, importante refletir sobre os conceitos de preconceito e sobre suas

manifestaes nesse espao.

2.3 DIVERSIDADE TNICO-RACIAL NA ESCOLA

Discutem-se neste tpico questes relacionadas diversidade tnico-racial presente na

escola. Para tanto, primeiramente apresentada uma reflexo sobre a presena da diversidade

tnico-racial no currculo escolar. Em seguida, aborda-se a questo do preconceito no

ambiente escolar com base nos conceitos de estigmas e esteretipos, para discutir como se do

as relaes tnico-raciais na escola, em relao s crianas da Educao Infantil, objeto deste

estudo.

Para fundamentar essas discusses, o referencial terico constitudo de autores como

Crochik (1995), Goffman (1988), Godoy (1996), Cavalleiro (2000), Dias (2007), Kramer

(1995), Trinidad (2011), entre outros.

2.3.1 Diversidade, escola e currculo

Durante muito tempo a escola tem sido um lugar de excluso social, e nesse ambiente

marcado pela heterogeneidade inmeras vezes as diferenas so desrespeitadas e os contedos

ensinados desconsideram a pluralidade de nossa sociedade.

Pode-se considerar que houve um avano com o surgimento de leis, como a de nmero

10.639/03, que prope a insero da diversidade cultural como contedo obrigatrio nas

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escolas brasileiras; no entanto, ainda que essas leis signifiquem um progresso, Bittencourt

(2014) destaca que um dos grandes desafios para a efetivao dessas prticas est na

formao de professores, cuja trajetria se constituiu no trabalho com currculos

homogeneizados quanto aos aspectos culturais.

importante salientar que essas leis concebem a introduo da temtica da

diversidade em suas mltiplas dimenses. As propostas no dizem respeito a uma disciplina,

mas insero dessas questes no contexto escolar. No se trata de trocar um currculo por

outro, mas de ampliar as possibilidades, favorecendo aos alunos o conhecimento das

diferentes manifestaes que fazem parte do nosso pas.

Para refletir sobre um currculo que respeite a diversidade cultural necessrio

primeiramente definir o que se considera como currculo. De acordo com Moreira e Candau

(2007):

[...] os currculos no so contedos prontos a serem passados aos alunos.

So uma construo e seleo de conhecimentos e prticas produzidas em

contextos concretos e em dinmicas sociais, polticas e culturais, intelectuais

e pedaggicas (MOREIRA; CANDAU, 2007, p.9).

Nas discusses sobre o currculo esto incorporados, no somente os conhecimentos

escolares, mas tambm os procedimentos e os valores que se pretende transmitir aos alunos.

Alm dos documentos que norteiam as prticas escolares, os autores acima citados

evidenciam tambm a existncia de outro tipo de currculo, denominado por eles de currculo

oculto, que vai alm do que est explicitado nos planos e propostas pedaggicas. Como

exemplos, os valores e atitudes transmitidos subliminarmente pelas relaes sociais

estabelecidas no cotidiano escolar, as imagens que perpassam esse espao, os materiais

didticos utilizados, as falas dos professores, o posicionamento da equipe gestora, aspectos

esses que, mesmo implcitos, muitas vezes propagam preconceitos.

Ao se referir ao preconceito, Ambrosetti (2002) aponta que a generalizao pode se

transformar em preconceito. Muitas vezes os professores tentam generalizar os contedos,

pois encontram muita dificuldade em trabalhar com a diversidade. Um dos questionamentos

refere-se ao que seria trabalhar com essa diversidade. Segundo a autora:

Trabalhar com a diversidade no , portanto, ignorar as diferenas ou impedir

o exerccio da individualidade, mas favorecer o dilogo, dar espao para a

expresso de cada um e para a participao de todos na construo de um

coletivo apoiado no conhecimento mtuo, na cooperao e na solidariedade (AMBROSETTI, 2002, p. 14).

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O currculo escolar, por vezes, um campo em que se tenta impor, tanto a definio

particular da cultura de um dado grupo, quanto o contedo dessa cultura, um territrio em que

se travam ferozes competies em torno dos significados. O currculo no um veculo que

transporta algo a ser transmitido e absorvido, mas um lugar em que, ativamente, em meio a

tenses, se produz e se reproduz a cultura. Currculo refere-se, portanto, a criao, recriao,

contestao e transgresso (MOREIRA; SILVA, 1994).

Moreira e Candau (2007) afirmam que, para que se elaborem currculos culturalmente

orientados com abertura para diferentes manifestaes culturais, necessrio superar o

daltonismo cultural. Segundo eles:

[...] uma ao docente multiculturalmente orientada, que enfrente os desafios

provocados pela diversidade cultural na sociedade e nas salas de aulas, requer uma postura que supere o daltonismo cultural usualmente presente nas

escolas, responsvel pela desconsiderao do arco-ris de culturas com que

se precisa trabalhar. Requer uma perspectiva que valorize e leve em conta a

riqueza decorrente da existncia de diferentes culturas no espao escolar (MOREIRA; CANDAU, 2003, p.161).

Esses autores apontam que esse daltonismo to grande que pode impedir que se

reconhea a presena da diversidade na escola, que se sensibilize frente pluralidade e que se

tomem atitudes frente a situaes de preconceito e discriminao. Portanto, a ruptura da viso

monocultural da escola um processo que exige descontruir esteretipos que foram

impregnados e que configuram a cultura escolar.

Silva (2010), em seu estudo sobre as teorias do currculo, destaca a necessidade de

mudanas nesse documento. Afirma que os currculos atuais favorecem os grupos culturais

dominantes em detrimento dos diferentes grupos tnico-raciais, sendo impossvel conceber o

currculo de forma ingnua e desvinculado das relaes de poder. Para o autor:

[...] o texto curricular, entendido aqui de forma ampla o livro didtico e

paradidtico, as lies orais, as orientaes curriculares oficiais, os rituais escolares, as datas festivas e comemorativas est recheado de narrativas

nacionais, tnicas e raciais. Em geral, essas narrativas celebram os mitos da

origem nacional, confirmam o privilgio das identidades dominantes e

tratam as identidades dominadas como exticas ou folclricas. Em termos de representao racial, o texto curricular conserva, de forma evidente, as

marcas da herana colonial. O currculo sem dvida um texto racial

(SILVA, 2010, p.101).

Tambm apontada por Silva (2010) a necessidade de um currculo que inclua as

diferentes culturas, no apenas de forma simples e informativa, mas um documento que

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promova a reflexo sobre os aspectos culturais e as experincias dos diferentes povos. Para

ele, o conhecimento sobre raa e etnia deve ser incorporado ao currculo de forma ampla, e

no simplesmente como um tema transversal, pois se trata de uma questo central do

conhecimento, do poder e da identidade, no podendo ser alvo de um trabalho isolado.

Para isso, em uma perspectiva crtica do currculo, necessrio incorporar estratgias

de desconstruo de narrativas e das identidades nacionais, tnicas e raciais. No deve ser

feito apenas um acrscimo de informaes sobre culturas e identidades, mas uma reflexo

sobre as influncias das diferentes culturas na construo da nossa histria. Para que um

currculo seja multicultural, necessrio que v alm de uma adio de contedos, sendo

importante lidar com a questo da diferena como histrica e poltica, pois [...] no se trata

simplesmente de celebrar a diferena e a diversidade, mas de question-la (SILVA, 2010,

p.102).

importante repensar o currculo, observando as diferentes razes tnicas, para que os

interesses de todos os grupos sejam identificados, evidenciados e faam parte do

conhecimento curricular.

Sugerimos que se procure, no currculo, reescrever o conhecimento escolar usual, tendo-se em mente as diferentes razes tnicas e os diferentes pontos

de vista envolvidos em sua produo (MOREIRA; CANDAU, 2007, p.32).

Para Gomes (2001), a escola esse espao de cruzamento de diferentes culturas, e tem

a responsabilidade de promover anlises e interaes das influncias que as diferentes culturas

exercem na sociedade, muitas vezes com conflitos, mas tambm com possibilidades de

dilogos entre elas. A imensido cultural que compe o nosso pas no deve ser vista de forma

hierarquizada, necessrio que se conheam as vrias facetas e manifestaes culturais, para

que assim se superem conceitos e preconceitos sobre a nossa diversidade.

Considerar a escola como esse cruzamento de culturas supe repensar e romper com a

[...] tendncia homogeneizadora e padronizadora que impregna suas prticas (MOREIRA;

CANDAU, 2007, p.35).

Para Santom (1995), o tratamento desse tipo de temtica nas escolas corre o risco de

cair em propostas de trabalho que ele intitula de currculos tursticos, com didticas isoladas,

nas quais se estuda esporadicamente a diversidade cultural. Passa a ser contemplada a partir

da perspectiva de distanciamento, como algo que no tem relao com a realidade da maioria.

O autor descreve algumas modalidades desse currculo turstico, que, segundo ele,

reproduzem a marginalizao e negam a existncia de outras culturas, sendo elas: a

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trivializao, quando se estudam os grupos sociais diferentes dos majoritrios, com

superficialidade e banalidade, como os costumes alimentares, folclore, rituais; o souvenir,

quando se estuda com uma presena quantitativa muito pequena, por exemplo, quando apenas

uma etapa do currculo abrange esse tema, ou quando existe apenas uma tarefa que diz

respeito a ele; a desconexo de situaes de diversidade da vida cotidiana, em que se separa

um dia para tratar o tema; a estereotipagem, em que se recorre a imagens estereotipadas das

pessoas e situaes pertences ao coletivo dos diferentes, como exemplo, quando se explica a

marginalidade baseando-se em esteretipos; e, por fim, a tergiverso, quando se recorre

estratgia de deformar ou ocultar a histria dessas comunidades objetos de marginalizao.

Santom (1995) afirma que as culturas dos grupos minoritrios, que no dispem de

estruturas de poder, por vezes costumam ser silenciadas, estereotipadas e deformadas, com o

objetivo de anular suas possibilidades de reao. O racismo aflora no sistema educacional de

forma consciente ou oculta. Se observado atentamente, o sistema educacional revelar que

no oferece neutralidade: [...] um currculo anti-marginalizao aquele em que todos os

dias do ano letivo, em todas as tarefas acadmicas e em todos os recursos didticos esto

presentes as culturas silenciadas (SANTOM, 1995, p.172).

Para Moreira e Candau (2010), a escola tende a silenciar e neutralizar a pluralidade e a

diferena, pois se sente mais confortvel com a padronizao. Assim, o grande desafio abrir

espaos para a diversidade, para a diferena e para o cruzamento de culturas.

O silenciamento perpetua as diferenas, por isso a necessidade de reflexes, para que

elas sejam discutidas e, assim, gerem aes em que a diversidade seja respeitada e

considerada como parte importante da nossa histria e cultura.

Moreira e Candau (2003) destacam tambm o conceito de justia curricular, em que,

mais do que considerar as diferenas, devem ser observadas as desigualdades da sala de aula

e, a partir delas, conceber o currculo pela lente do subalternizado. Desse modo,

[...] o critrio da justia curricular o grau em que uma estratgia

pedaggica produz menos desigualdade no conjunto de relaes sociais ao

qual o sistema educacional est ligado (MOREIRA; CANDAU, 2003, p.157).

Pensando em uma concepo multicultural e crtica do currculo, os autores sugerem

uma postura diferenciada quanto a sua prtica:

[...] uma ao docente multiculturalmente orientada, que enfrente os desafios

provocados pela diversidade cultural na sociedade e nas salas de aula, requer

uma postura que supere o daltonismo cultural usualmente presente nas

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escolas, responsvel pela desconsiderao do arco-ris de culturas com que

se precisa trabalhar (MOREIRA; CANDAU, 2003, p.161).

Para que seja possvel seguir esse caminho, de um currculo que respeite a

multiculturalidade, necessrio criticizar, questionar, identificar as ideologias presentes e, a

partir disso, contextualizar esse currculo. Para os autores:

Os propsitos [...] parecem ser clarificar de quem o conhecimento

hegemnico no currculo, que representaes esto nel