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DÍVIDA PÚBLICA A Experiência Brasileira

Divida Publica - A Experiencia Brasileira

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DVIDA PBLICAA Experincia Brasileira

DVIDA PBLICA: a experincia brasileira

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

Anderson Caputo Silva Lena Oliveira de Carvalho Otavio Ladeira de Medeiros(Organizadores)

DVIDA PBLICA: a experincia brasileira

Braslia, 20093

Ministro de Estado da Fazenda Guido Mantega Secretrio-Executivo Nelson Machado Secretrio do Tesouro Nacional Arno Hugo Augustin Filho Secretrios-Adjuntos Cleber Ubiratan de Oliveira Eduardo Coutinho Guerra Lscio Fbio de Brasil Camargo Marcus Pereira Auclio Paulo Fontoura Valle Organizadores Anderson Caputo Silva (Banco Mundial) Lena Oliveira de Carvalho (Tesouro Nacional) Otavio Ladeira de Medeiros (Tesouro Nacional) Coordenao Editorial: Banco Mundial e Tesouro Nacional Reviso de Texto: Yana Palankof, Rejane de Meneses, Tereza Vitale Diagramao e Impresso: Estao Grca Ltda. Tiragem: 2.000 exemplares

Dvida Pblica : a experincia brasileira / Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Braslia : Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009. 502 p. Inclui bibliograa e ndice ISBN 978-85-87841-34-6 1. Dvida pblica Brasil. 2. Dvida pblica Brasil Planejamento estratgico. 3. Ttulos pblicos Brasil. 4. Mercado nanceiro Brasil. I. Silva, Anderson Caputo. II. Carvalho, Lena Oliveira de. III. Medeiros, Otavio Ladeira de. IV. Brasil. Secretaria do Tesouro Nacional. V. Banco Mundial. Sustentabilidade. Conceitos e Estatsticas. Planejamento Estratgico Gerenciamento de Risco. Oramento e Auditoria. Mercado Primrio e Secundrio. Tesouro Direto. Base de Investidores. I. Banco Mundial. II. Tesouro Nacional. III. Organizadores. Ttulo. CDD 336.340981 CDU 336.3(81)

Copyright Tesouro Nacional, 2009

Todos os direitos reservados Secretaria do Tesouro Nacional Braslia-DF. Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida ou transmitida sem prvia autorizao por escrito da instituio. Para permisso de fotocpia ou reimpresso de qualquer parte deste livro, envie, por favor, uma solicitao para: Secretaria do Tesouro Nacional Coordenao-geral de Desenvolvimento Institucional (Codin) Esplanada dos Ministrios, Ministrio da Fazenda (MF) Bloco P, ed. anexo do MF, ala A, Trreo CEP: 70.048-900 Braslia, DF Brasil Telefone: (55) 61 3412-3973 Fax: (55) 61 3412-1623 e-mail: [email protected] Este livro foi elaborado por vrios autores, dentre os quais servidores do Tesouro Nacional e do Banco Mundial. As opinies, interpretaes e concluses expressas neste livro so exclusivamente dos autores e no reetem necessariamente as opinies dessas instituies. O Tesouro Nacional e o Banco Mundial se isentam da responsabilidade sobre a exatido dos dados includos no trabalho.

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

SUMRIO

Carta de apresentao da Secretaria do Tesouro Nacional...................................................................... 07 Carta de apresentao do Banco Mundial.................................................................................................. 09 Agradecimentos......................................................................................................................................... 11 Prefcio .................................................................................................................................................. 13 Introduo ...........................................................................................................................................17 Parte 1 ENTENDENDO A DVIDA PBLICA BRASILEIRA

Captulo 1 Origem e histria da dvida pblica no Brasil at 1963............................................... 33Anderson Caputo Silva

Captulo 2 Histria da dvida pblica no Brasil: de 1964 at os dias atuais............................................ 57Guilherme Binato Villela Pedras

Captulo 3 Sustentabilidade da dvida pblica........................................................................ 81Carlos Eugnio Ellery Lustosa da Costa

Captulo 4 Conceitos e estatsticas da dvida pblica........................................................................ 101Aline Dieguez B. de Meneses Silva e Otavio Ladeira de Medeiros

Parte 2 O GERENCIAMENTO DA DVIDA PBLICA BRASILEIRA

Captulo 1 Estrutura institucional e eventos recentes na administrao da Dvida Pblica Federal.......................................................................................................131Karla de Lima Rocha

Captulo 2 Planejamento estratgico da Dvida Pblica Federal ..............................................149Luiz Fernando Alves e Anderson Caputo Silva

Captulo 3 Gerenciamento de riscos da Dvida Pblica Federal ...............................................173Anderson Caputo Silva, Rodrigo Cabral e William Baghdassarian

Captulo 4 O Oramento e a Dvida Pblica Federal ............................................................... 219Antnio de Pdua Ferreira Passos e Priscila de Souza Cavalcante Castro

Captulo 5 Marcos regulatrios e auditoria governamental da dvida pblica ................................ 243Larcio M. Vieira

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Parte 3 O MERCADO DE DVIDA PBLICA NO BRASIL

Captulo 1 Evoluo recente do mercado de ttulos da Dvida Pblica Federal. ...................................... 281Anderson Caputo Silva, Fernando Eurico de Paiva Garrido e Lena Oliveira de Carvalho

Captulo 2 Ttulos pblicos federais e suas formas de precificao .................................................. 307Ronnie Gonzaga Tavares e Mrcia Fernanda Tapajs Tavares

Captulo 3 Organizao do mercado financeiro no Brasil ..................................................................339Helena Mulim Venceslau e Guilherme Binato Villela Pedras

Captulo 4 Mercado primrio da Dvida Pblica Federal ..................................................................359Lena Oliveira de Carvalho e Jos Franco Medeiros de Morais

Captulo 5 A base de investidores da Dvida Pblica Federal no Brasil ...............................................383Jeferson Luis Bittencourt

Captulo 6 Mercado secundrio da Dvida Pblica Federal ............................................................... 415Fabiano Maia Pereira, Guilherme Binato Villela Pedras e Jos Antnio Gragnani

Captulo 7 Venda de ttulos pblicos pela internet: Programa Tesouro Direto.................................. 443Andr Proite

Anexo estatstico ...................................................................................................................................467 ndice remissivo ....................................................................................................................................485 Siglas .................................................................................................................................................491 Sobre os autores ................................................................................................................................. 499

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

Carta de apresentao da Secretaria do Tesouro Nacional com satisfao que apresentamos esta obra, fruto de uma gratificante parceria entre a Secretaria do Tesouro Nacional e o Banco Mundial. O livro, como poder ser observado j em suas primeiras linhas, visa a proporcionar aos leitores uma melhor percepo quanto experincia brasileira com a gesto de sua dvida pblica. Nesse sentido, o trabalho no poderia deixar de destacar o papel que o bom gerenciamento da dvida tem tido na reduo dos riscos e dos custos do passivo governamental, alm de destacar a histria da evoluo institucional do Tesouro Nacional e do mercado de capitais brasileiro, to importantes para que alcanssemos os resultados observados nos dias de hoje. Com a transparncia requerida a um pas comprometido com a adoo de boas prticas de gesto pblica, como o caso do Brasil, o Tesouro Nacional tem procurado, ao longo dos ltimos anos, administrar a Dvida Pblica Federal (DPF) a fim de minimizar seu custo de financiamento ao longo do tempo, sem perder o foco na manuteno de nveis prudentes de risco. Cabe destacar que esses objetivos somente so atingveis com a manuteno permanente de uma poltica fiscal prudente, que elimina qualquer incerteza quanto sustentabilidade da dvida ao longo do tempo. A evoluo na gesto da dvida pblica brasileira nos ltimos dez anos evidente para qualquer pessoa que a estude. No foi por acaso que, no incio de 2008, as principais agncias de classificao de risco concederam o grau de investimento para o pas. Destaque-se tambm que, a despeito da gravidade da pior crise econmica mundial desde 1929, a qual temos vivenciado desde 2008, a credibilidade do Brasil perante os investidores domsticos e internacionais permanece em alta. Certamente, as vitrias alcanadas pelo pas no gerenciamento eficiente de sua dvida pblica contriburam para que fosse atingida a estabilidade macroeconmica, o que nos permite vislumbrar um futuro melhor para todos os brasileiros. Os frutos colhidos na administrao da dvida pblica se devem, e muito, ao crescente esforo do corpo tcnico da Secretaria do Tesouro Nacional, do qual fazemos parte hoje. Certamente, o alto grau de capacitao e comprometimento com o trabalho dos servidores desta Secretaria foram fundamentais para o Brasil ser reconhecido, em conjunto com um grupo de pases selecionados, como referncia internacional no gerenciamento de sua dvida pblica. Acreditamos que o livro ajudar investidores, analistas financeiros, agncias de classificao de risco, pesquisadores, jornalistas e, principalmente, o cidado e a cidad de nosso pas a compreenderem um pouco mais a dvida pblica brasileira, de seus primrdios ao atual estado da arte. Do mesmo modo, esperamos que outros pases possam encontrar na experincia brasileira elementos enriquecedores para auxiliar seus debates internos e que este livro agregue idias interessantes s discusses entre os diversos gestores de dvida pblica. com experincias inovadoras como esta que a Secretaria do Tesouro Nacional colabora para o fortalecimento das instituies do Brasil e o aperfeioamento da gesto pblica deste pas. Contamos com isso ao construir esta obra, que traz a colaborao generosa de um amplo grupo de dedicados servidores, ex-funcionrios e outros colaboradores, responsveis pela redao de seus vrios captulos. Sem dvida, tratase de um material diversificado, profundo e rico que compreende o histrico da dvida desde o sculo XVI, seus conceitos, avanos institucionais e gerenciamento, alm do desenvolvimento do mercado de capitais e do Programa Tesouro Direto. Tudo isso confere um carter nico e pioneiro a esta publicao, o que nos faz consider-la uma significativa contribuio para a sociedade brasileira.

Arno Hugo AugustinSecretrio do Tesouro Nacional

Paulo Fontoura ValleSecretrio-Adjunto do Tesouro Nacional

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Carta de apresentao do Banco Mundial

O Banco Mundial muito se orgulha do lanamento desta obra em conjunto com a Secretaria do Tesouro Nacional. Trata-se de mais um exemplo da ampla cooperao entre o Banco Mundial e o governo brasileiro e, neste caso, em especial, com a Secretaria do Tesouro Nacional. Dvida pblica, sua gesto e desenvolvimento do mercado de ttulos governamentais so temas de destaque na agenda de trabalho do Banco Mundial, principalmente desde o final da dcada de 1990. Com a crise da sia e as turbulncias que afetaram pases emergentes, tornou-se ainda mais clara a relevncia de uma boa gesto da dvida pblica para apoiar a execuo de polticas pblicas eficientes e resguardar a qualidade do crdito de um pas. Do mesmo modo, houve crescente ateno importncia do desenvolvimento de mercados de ttulos pblicos domsticos como forma de reduzir a vulnerabilidade da economia a choques, criar referncia para emisses do setor privado e aumentar a estabilidade do sistema financeiro. Esses fatores so ingredientes essenciais ao crescimento sustentvel de um pas, ao estmulo do setor produtivo e ao combate pobreza. Diante da relevncia desses temas, o Banco Mundial vem exercendo liderana na formulao de princpios conceituais slidos, no incentivo produo cientfica e, fundamentalmente, na proviso de assistncia tcnica para facilitar o processo de reformas nas reas de gesto da dvida pblica e desenvolvimento do mercado. Nesse sentido, o Banco est sempre atento disseminao de boas prticas e experincias internacionais, como o caso deste livro, que permitam ampliar o conhecimento global nesses temas e auxiliar os diversos pases que esto procura de maior profissionalizao na gesto de suas dvidas. A parceria com a Secretaria do Tesouro Nacional um exemplo exitoso do papel que o Banco Mundial pode exercer para facilitar maior capacitao e sofisticao no gerenciamento da dvida pblica. O Banco acompanhou de perto o processo de profissionalizao da gesto da dvida pblica brasileira, inclusive por intermdio de um emprstimo de assistncia tcnica, em especial nas reas de gesto de risco, governana, otimizao do fluxo de procedimentos entre os departamentos responsveis pela gesto da dvida e, mais recentemente, no desenvolvimento de um sistema tecnolgico de informao integrado de administrao da dvida. As lies descritas neste livro, alm de serem importantes no contexto brasileiro, servem como estmulo ao Banco em sua atuao em outros pases que passam por desafios semelhantes aos experimentados pelo Brasil. Conforme o leitor perceber neste livro, os frutos do trabalho da Secretaria do Tesouro Nacional vm sendo relevantes para o reconhecimento e o fortalecimento da posio do Brasil no contexto internacional. O Banco Mundial continuar seu compromisso de apoio ao processo em curso de aperfeioamento da gesto pblica no Brasil, inclusive de entes subnacionais, e de desenvolvimento de seu mercado de capitais, to importantes para o crescimento do pas.

Makhtar DiopDiretor do Banco Mundial para o Brasil

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Agradecimentos

Este livro um projeto que vem sendo pensado, desenhado e estruturado h algum tempo pelos coordenadores do trabalho. A sua realizao requereu o esforo e o apoio de vrias frentes no Banco Mundial e no Tesouro Nacional. Os autores, cuidadosamente selecionados, dispuseram de seu tempo e dedicao para escrever captulos ricos em informaes, compartilhando suas experincias como gestores e conhecedores de dvida pblica. Alm deles, agradecemos: Secretaria do Tesouro Nacional, especialmente ao secretrio-adjunto Paulo Valle por seu empenho para que a elaborao do livro fosse possvel. Adicionalmente, Coordenao-Geral de Desenvolvimento Institucional, Karla de Lima Rocha e ao Bruno Santos Ribeiro que auxiliaram na organizao. Ao Banco Mundial, principalmente Jos Guilherme Reis e Deborah Wetzel, que apoiaram e viabilizaram este projeto, e Zlia Brandt de Oliveira pelo essencial auxlio no processo de publicao. Alm disso, agradecemos o fundamental apoio de John Briscoe, Makhtar Diop, Alexandre Abrantes, Fernando Blanco, Tito Cordella, Mauro Azeredo, Rodrigo Chaves e Marcelo Giugale. Por fim, gostaramos de agradecer a Lisa Schineller, Murilo Portugal e novamente ao Jos Guilherme Reis que trabalharam como revisores do contedo do livro e contriburam com seus comentrios que foram essenciais para o aprimoramento e o entendimento dos captulos e de sua estrutura.

Os organizadores

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PrefcioMurilo Portugal Filho1 Em razo de sua conturbada histria, a dvida pblica brasileira ficou com uma imagem negativa perante a opinio pblica. A dvida pblica associada tanto ao pagamento de juros elevados como proporo da receita fiscal e do produto domstico bruto quanto peridica ocorrncia de calotes explcitos, problemas que infelizmente tm sido recorrentes na nossa histria. Esses eventos negativos, entretanto, no decorrem de um problema inerente natureza essencial da dvida pblica. O endividamento pblico um instrumento apropriado para financiar o investimento pblico na construo de ativos de elevado custo e longa durao, como uma hidreltrica, um porto ou uma estrada. Nesse caso, o endividamento pblico permite distribuir equitativamente entre os contribuintes do presente e do futuro o custeio e os riscos da construo de ativos que vo gerar benefcios e rendimentos supostamente superiores ao seu custo por um longo perodo para vrias geraes de contribuintes. A dvida pblica permite tambm que os compradores de ttulos pblicos poupem sua renda no presente e transfiram para o futuro um poder de consumo ampliado pelos rendimentos positivos do investimento, de forma mais segura do que usualmente possvel utilizando ttulos privados. Quando utilizada para financiar o investimento pblico produtivo, a dvida pblica pode funcionar tanto como um mecanismo de equidade intergeracional quanto como um sistema de baixo risco de transferncia intertemporal de consumo, gerando resultados sociais positivos para todos. A dvida pblica tambm um instrumento muito til para o financiamento de despesas emergenciais e extraordinrias, mesmo que no sejam despesas de investimento, como as que ocorrem quando h uma calamidade pblica ou outro tipo de choque temporrio, at mesmo guerras. Alis, a dvida pblica brasileira comeou a se formar para financiar a guerra de independncia. Os problemas de juros elevados e dos calotes ocorrem principalmente em razo do continuado mau uso da dvida pblica para financiar o dficit pblico gerado por gastos com despesas correntes de consumo. O pagamento de despesas pblicas correntes de consumo deve ser normalmente realizado com impostos e no com dvida pblica, pagando juros. Financiar uma proporo grande e crescente do consumo pblico com dvidas sujeitas ao pagamento de juros significa destruir a riqueza pblica. A lgica da taxa de juros composta leva concluso inexorvel de que tal procedimento insustentvel no longo prazo. Com o passar do tempo, o peso crescente da despesa com juros no oramento pblico e a necessidade de taxar mais a gerao presente para pag-la torna o calote cada vez mais atraente para o sistema poltico, que usualmente gosta de gastar e no gosta de tributar. Essa tentao maior quando os credores so estrangeiros e no votam. Os problemas dos juros altos e dos calotes explcitos so principalmente o resultado de se abandonar os princpios clssicos de utilizar a dvida pblica apenas para o financiamento do investimento pblico ou para despesas emergenciais e extraordinrias, em vez de usar endividamento para simplesmente satisfazer a proclividade de gastar sem tributar. H, evidentemente, outros tipos de erros que podem contribuir para dificultar a gesto da dvida pblica. A m escolha e a ineficiente execuo de projetos de investimento pblico certamente tm sido um problemaMurilo Portugal Filho foi Secretrio do Tesouro Nacional entre 1992 e 1996 e Diretor Executivo do Banco Mundial entre 1996 e 2000. Alm disso, ocupou outros cargos relevantes no Ministrio da Fazenda e no FMI, instituio na qual atualmente exerce o cargo de Vice-Diretor Gerente.1

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srio no Brasil, que tem diminudo as taxas de retorno esperadas ex ante do investimento pblico, aumentando, com isso, o peso do seu financiamento nas receitas tributrias futuras. possvel tambm ocorrer m administrao da dvida, ainda que esta tenha sido originalmente emitida seguindo princpios prudentes, embora esse tipo de problema tenha diminudo bastante com a crescente profissionalizao da gesto da dvida pblica, como convincentemente demonstrado neste livro. Penso, portanto, que foi o abuso da dvida pblica criado pela proclividade do sistema poltico de gastar sem tributar que gerou sua m reputao. Trata-se de problema semelhante ao abuso tambm ocorrido no Brasil com a aplicao da teoria keynesiana de financiamento monetrio. Em perodos de recesso, nos quais a capacidade produtiva existente est claramente subutilizada e h uma carncia inquestionvel da demanda privada, no s possvel como tambm recomendvel financiar dficits pblicos para elevar a demanda agregada, utilizando a terceira forma de financiamento pblico (alm da taxao e do endividamento) de que dispem os pases com regimes monetrios independentes a criao de moeda. Entretanto, o financiamento de dficits com a criao de moeda s recomendvel em um nmero muito restrito de circunstncias, e o abuso da capacidade de emisso resultou historicamente em inflao, que uma forma de calote e tributao implcitos. A instabilidade macroeconmica sob a forma de inflao alta e voltil gera, por sua vez, problemas de difcil superao para a administrao da dvida pblica. Com inflao elevada e voltil, os compradores de ttulos pblicos procuram se proteger seja da incerteza seja da probabilidade crescente de calote futuro, exigindo juros reais cada vez mais elevados, encurtando os prazos e indexando a dvida pblica s variveis sujeitas elevada incerteza macroeconmica, como o cmbio e os juros futuros. Isso gera uma estrutura de dvida pblica altamente vulnervel a choques e expe as finanas pblicas a elevados custos. Cabe ao governo o dever de prover a estabilidade macroeconmica e, se o governo no o faz, tem infelizmente de assumir os resultantes altos custos da dvida pblica, em vez de tentar repass-los aos poupadores privados. As tentativas de repassar aos poupadores os elevados custos de financiamento resultantes da inflao e da instabilidade macroeconmica levam queda da poupana nacional, com a fuga de capitais para poupar no exterior, ou fuga da moeda nacional, com a dolarizao da economia, como ocorreu em muitos pases latino-americanos. Esses no so problemas que possam ser resolvidos com gesto da dvida pblica, por melhor que ela seja. Requerem mudana na gesto macroeconmica. Felizmente, essas dificuldades passaram a ser gradualmente superadas no Brasil a partir de 1994, quando a inflao foi controlada pelo Plano Real, o que permitiu j alguma melhora da estrutura da dvida pblica, com prazos crescentes de maturao e reduo da dvida indexada. O caminho , entretanto, lento e difcil, e o controle da inflao apenas o primeiro passo. Como evidenciado neste livro, os pequenos avanos alcanados na melhoria da estrutura da dvida pblica aps 1995 tiveram de ser revertidos a partir de 1997 com a crise da sia e a crise cambial brasileira de 1998, que provocaram uma elevao no estoque da dvida pblica e uma deteriorao na sua composio. A maior institucionalizao da responsabilidade monetria, com a adoo de um regime de cmbio flexvel e de metas de inflao a partir de 1999, bem como a renegociao das dvidas estaduais e a adoo da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovadas em 1997 e 2000, foram outros passos importantes no processo de melhoria da gesto macroeconmica. Creio que a importncia da manuteno de uma gesto macroeconmica saudvel vem deitando razes gradualmente na opinio pblica e no eleitorado brasileiros, que se tm mostrado menos tolerantes com a irresponsabilidade monetria ou fiscal, o que repercutiu positivamente no sistema poltico. A manuteno da responsabilidade monetria e fiscal, como evidenciado pela maturidade demonstrada a partir de 2002, permitiu uma queda significativa do risco da dvida pblica. Essa oportunidade foi excelentemente aproveitada pelos 14Dvida Pblica: a experincia brasileira

gestores da dvida pblica, que, a partir de 2003, implementaram uma profunda e significativa melhoria na composio da dvida pblica brasileira, com significativa reduo da dvida indexada e elevao de prazos, como descrito neste volume, a qual perdura a despeito de novos choques. Com a estabilidade macroeconmica, a responsabilidade dos gestores da dvida pblica ser crescente. Mas como este livro escrito de forma competente por profissionais da gesto da dvida pblica brasileira bem demonstra, os gestores de dvida pblica no Brasil esto preparados para esse desafio. O presente volume uma contribuio importante para o entendimento dos problemas e das limitaes referentes gesto da dvida pblica no Brasil. O livro apresenta o tema de forma abrangente e consolidada, cobrindo eficientemente seus vrios aspectos e reunindo informaes disponveis at ento apenas em fontes esparsas. Preenche assim uma importante lacuna no conhecimento emprico do tema no Brasil. Os autores apresentam inicialmente um quadro histrico, terico e conceitual necessrio ao entendimento do tema. A histria da dvida pblica brasileira dos seus primrdios aos dias atuais apresentada resumidamente, porm destacando-se seus marcos mais importantes. Os diferentes modelos tericos que definem a sustentabilidade fiscal e intertemporal da dvida so apresentados e discutidos de forma competente, e os conceitos e as definies estatsticos utilizados no Brasil so descritos e comparados com as boas prticas internacionais. A contribuio original do volume encontra-se na descrio detalhada apresentada pelos autores de como a dvida pblica tratada pelos dois grandes atores desse tema: o governo e o mercado. O livro apresenta os mecanismos de gesto da dvida existentes no do governo e os grandes avanos obtidos nessa estrutura institucional, bem como a organizao dos mercados de dvida no Brasil. No que se refere parte governamental, so descritos os mecanismos para o planejamento estratgico, a gesto de risco, o oramento, o controle e a auditoria da dvida pblica brasileira. As descries de como ocorrem na prtica a coordenao das polticas fiscal e monetria, a definio de uma estrutura tima de endividamento, a utilizao dos sistemas de informtica e os modelos probabilsticos para a gesto do risco fornecem fonte original importante para os estudiosos do tema de como funciona o sistema de gesto. Tratase, em muitos casos, de informao at ento no disponvel publicamente de forma organizada, consolidada e acessvel. Da mesma forma, o livro apresenta valiosas informaes sobre a formao de preos, o funcionamento dos mercados primrio e secundrio, a composio da base de investidores, o papel das principais instituies que atuam na manuteno do mercado e o desenvolvimento do mercado de varejo por meio do Tesouro Direto. O presente livro um valioso esforo de organizar e sistematizar informaes sobre o tema. Tem a grande vantagem de ser escrito por autores no s com conhecimento terico, mas tambm com experincia prtica no trato do tema, o que enriquece a apresentao. Permite avaliar o grande progresso alcanado no Brasil na gesto da dvida pblica. Estou convicto de que, ao trazer o tema ao conhecimento pblico de forma competente e profissional, os autores muito contribuiro para um melhor entendimento e melhor imagem da dvida pblica brasileira tanto em nosso pas quanto no exterior.

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

IntroduoDvida pblica um tema muitas vezes mal compreendido e pouco amigvel que, no entanto, em virtude de sua relevncia para a sociedade, merece ser bem explorado. Este livro busca atender a este objetivo. Preparado por profissionais com amplo conhecimento do tema, em sua maioria gestores da dvida pblica, o livro cobre em detalhes vrios aspectos do cotidiano da sua administrao. Procura-se descrever o tema de forma evolutiva, destacando a rica sequncia de eventos que proporcionaram maior profissionalizao da gesto da Dvida Pblica Federal brasileira e seu reconhecimento em nvel internacional.

Uma viso geral das funes da dvida pblicaAssim como o bom uso do crdito por um cidado facilita o alcance de grandes conquistas (a compra de sua casa prpria, por exemplo), o endividamento pblico, se bem administrado, permite ampliar o bem-estar da sociedade e o bom funcionamento da economia. Especialistas costumam destacar a importante funo que o endividamento pblico exerce em garantir nveis equilibrados de investimento e servios prestados pelo governo sociedade, propiciando maior equidade entre geraes. As receitas e as despesas de um governo passam por ciclos e sofrem choques frequentes. Na ausncia do crdito pblico, estes teriam de ser absorvidos por aumentos inesperados nos impostos do governo ou em cortes excessivos de gastos, penalizando, demasiadamente, em ambos os casos, a gerao atual. Alm da suavizao intertemporal do padro de servios sociedade, o acesso ao endividamento pblico permite atender a despesas emergenciais (tais como as relacionadas a calamidades pblicas, desastres naturais e guerras) e assegurar o financiamento tempestivo de grandes projetos com horizonte de retorno no mdio e no longo prazos (na rea de infraestrutura, por exemplo). A histria est repleta de exemplos nesse sentido, no sendo surpreendente o uso disseminado do endividamento por praticamente todos os pases do mundo. O endividamento pblico pode exercer funes ainda mais amplas para o bom funcionamento da economia, auxiliando a conduo da poltica monetria e favorecendo a consolidao do sistema financeiro. Ttulos pblicos so instrumentos essenciais na atuao diria do Banco Central para o controle da liquidez de mercado e para o alcance de seu objetivo de garantir a estabilidade da moeda, alm de representarem referencial importante para emisses de ttulos privados. O desenvolvimento do mercado de ttulos, pblico e privado, pode ampliar a eficincia do sistema financeiro na alocao de recursos e fortalecer a estabilidade financeira e macroeconmica de um pas.1 A lio fundamental dessa discusso recai na relevncia de se zelar pela qualidade do crdito pblico. S assim se pode valer do endividamento e de suas funes de forma eficiente. Aqui, mais uma vez, a analogia ao cidado comum se faz vlida, o qual deve manter um bom crdito para garantir permanentemente melhores condies de financiamento (por exemplo, via menores custos e maiores prazos para pagamento). No caso do governo, o mesmo ocorre. Suas condies de financiamento esto intimamente relacionadas sua credibilidade, sua capacidade de pagamento e qualidade de gesto da dvida. Quanto credibilidade e capacidade de pagamento, estas so fortalecidas por intermdio de bons fundamentos econmicos, associados a polticas fiscal, monetria e cambial prudentes. por intermdio de uma poltica fiscal equilibrada que se garante a confiana de uma trajetria sustentvel de endividamento.EICHENGREEN, Barry. Rationale and obstacles to the development of bond markets in emerging economies. Gemloc Advisory Services Guest Commentary, 2006. Disponvel em: www.gemloc.org.1

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Similarmente, polticas monetria e cambial slidas contribuem para maior estabilidade econmica, diminuindo os custos e os riscos da dvida pblica. Bons fundamentos so, contudo, condio necessria, mas no suficiente, para a qualidade do crdito pblico. A gesto eficiente e profissional da dvida cumpre papel fundamental sobre a capacidade de um pas absorver choques adversos que podem colocar em risco a estabilidade econmica e a solidez de suas polticas pblicas. Decises quanto s caractersticas dos instrumentos de financiamento e composio tima da dvida, incluindo seus prazos, indexao e tipos de credor, constituem algumas das decises importantes tomadas por gestores da dvida. Solues para essas questes exigem critrio e preparo tcnico elevado. Essa constatao explica o esforo concentrado de diversos pases, industrializados e em desenvolvimento, em prol da profissionalizao da gesto da dvida pblica.

O processo global de profissionalizao da gesto da dvida pblicaEmbora a funo de gestor da dvida pblica no seja de fato nova, sua profissionalizao ganhou mpeto somente aps o final da dcada de 1980, quando se iniciou um processo global de aperfeioamento de sua gesto. Diversos pases experimentaram, desde ento, mudanas institucionais importantes nessa rea e ampliaram o foco na capacitao dos gestores para que estes pudessem efetivamente traar e implementar estratgias de endividamento que minimizassem o custo da dvida do governo no mdio e no longo prazos, observando nveis prudentes de riscos. Conforme descreve Wheeler (2004),2 no foi por acaso que os primeiros pases a desenvolverem substancialmente suas capacidades de gerenciamento da dvida dentre eles a Blgica, a Irlanda e a Nova Zelndia foram justamente aqueles com histrias de problemas fiscais, alto nvel de endividamento com relao ao produto interno bruto (PIB) e elevada proporo de dvida em moeda estrangeira em seus portflios. Segundo o autor, a necessidade de maior profissionalismo ganhava fora medida que se tornava consenso que a estrutura da dvida, e no apenas seu nvel, era importante e que a baixa qualidade de decises na gesto da dvida ampliava o risco do balano patrimonial do governo. Pases emergentes, inclusive o Brasil, seguiram o mesmo caminho de profissionalizao no final dos anos 1990 e princpio do sculo atual, fundamentalmente aps a crise da sia e outras que vieram a abalar economias em desenvolvimento. Ficava claro quela altura os ganhos potenciais de uma maior qualidade na gesto da dvida, dentre outros, para melhor monitoramento de riscos e maior capacidade de absoro dos choques econmicos domsticos e internacionais. Como resultado, alm de uma onda de reformas institucionais nos departamentos de administrao de dvida por todo o mundo, houve significativo progresso no desenvolvimento de tcnicas e ferramentas para o planejamento e a gesto de risco da dvida pblica. Estreitamente ligado ao processo de profissionalizao da gesto da dvida, e quase ao mesmo tempo, veio o mpeto para o desenvolvimento do mercado domstico de dvida pblica. Longe de ser um tema inexplorado historicamente, a importncia de ampliar a capacidade de endividamento por intermdio dos mercados de capitais domsticos, como alternativa a emprstimos diretos do setor bancrio e reduo da dependncia de mercados internacionais, foi reforada aps a crise da sia, em 1997. Enquanto gestores de dvida desenvolviam capacidade tcnica e modelos para auxiliar decises sob o lado da oferta ou seja, quanto composio tima da dvida pblica, incluindo tipos de instrumento de financiamento, suas indexaes, prazos e moedas , tornava-se claro que a implementao de tais2

WHEELER, Graeme. Sound practice in government debt management. World Bank, 2004. Dvida Pblica: a experincia brasileira

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decises dependia diretamente do desenvolvimento do mercado de dvida domstico. Conhecer a fundo as oportunidades e as limitaes quanto demanda passou a ser um requisito a mais para uma boa gesto da dvida. No surpreendentemente, vrios pases, inclusive o Brasil, o Canad, a Coreia e a Tailndia, incluem o desenvolvimento ou a manuteno de um mercado eficiente de ttulos domsticos entre seus objetivos de administrao da dvida pblica. Organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional, cumpriram papel importante nesse processo de profissionalizao e coordenaram o debate internacional, com participao de gestores de vrios pases. Alm de consolidar o resultado desse debate no documento Guidelines for public debt management, essas instituies prepararam o livro Developing government bond markets: a handbook, dentre outras publicaes mais recentes que se tornaram referncia para administradores de dvida.3 Essas organizaes tambm vm contribuindo por intermdio de assistncia tcnica, treinamento e organizao de seminrios nos quais gestores internacionais compartilham experincias e discutem seus principais desafios.4 O Brasil acompanhou de perto e participou ativamente de todo esse processo. Reformas institucionais importantes foram implementadas e investiu-se na capacitao dos gestores da dvida. Como resultado, os procedimentos de administrao da dvida foram aprimorados, ferramentas sofisticadas para a tomada de deciso foram desenvolvidas e a transparncia da administrao da dvida foi ampliada por intermdio, por exemplo, da explicitao dos objetivos e das metas anuais para o perfil da dvida no Plano Anual de Financiamento (PAF). Tambm foram alcanadas conquistas significativas no desenvolvimento do mercado domstico de dvida e no aperfeioamento da estrutura das dvidas domstica e externa.

Melhora dos fundamentos econmicos e gesto da dvida pblica no BrasilA ausncia de bons fundamentos limita o escopo da gesto pblica, que se torna incapaz de alcanar melhorias consistentes e sustentveis na estrutura da dvida sob sua responsabilidade. Longe de ser um argumento puramente terico, a experincia brasileira comprova essa estreita dependncia. O aprimoramento da gesto da dvida pblica no Brasil coincidiu com seguidos avanos institucionais e macroeconmicos no pas. Essa combinao melhores fundamentos e gesto qualificada da dvida forma o pano de fundo para os avanos positivos obtidos pelo crdito pblico brasileiro nos ltimos anos. Uma breve reviso da evoluo da estrutura da dvida pblica nos ltimos anos e sua inter-relao com avanos no campo das polticas macroeconmicas ilustram essa importante lio, explorada em maiores detalhes no decorrer deste livro.5 Os Grficos 1 e 2 demonstram a evoluo da composio e do estoque da Dvida Pblica Federal6 brasileira desde dezembro de 1994.Ver, por exemplo: World Bank e IMF, Guidelines for public debt management, 2001a; Developing Government bond markets: a handbook, 2001b; World Bank, Managing public debt: from diagnostics to reform implementation, 2007a; Developing the domestic government debt market: from diagnostics to reform implementation, 2007b. 4 Alguns exemplos de eventos so o Sovereign Debt Management Forum, organizado pelo Banco Mundial, e o Global OECD-WBIMF Bond Market Forum, organizado pelas trs instituies. O Brasil um participante assduo desses eventos, sendo frequentemente convidado para expor a experincia brasileira para outros pases. 5 Ver especialmente o Captulo 2 da Parte 1: Histria da dvida pblica no Brasil: de 1964 at os dias atuais; e o Captulo 1 da Parte 3: Evoluo recente do mercado de Dvida Pblica Federal. 6 A DPF, tema central de diversos captulos deste livro, inclui as dvidas interna e externa, mobiliria e contratual, de responsabilidade do Tesouro Nacional e do Banco Central em mercado. Por fora da Lei de Responsabilidade Fiscal, aps 2002 o Tesouro Nacional passou a ser o nico emissor de ttulos da DPF. Para termos ideia da importncia para o pas de sua eficiente gesto, em dezembro de 2008 a DPF representava cerca de 70% dos passivos do setor pblico brasileiro, nele includos, alm desta dvida, os passivos dos estados, dos municpios e das empresas estatais.3

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Grfico 1. Composio da DPF por indexador

Fonte: Tesouro Nacional

Grfico 2. Composio da DPF por indexador % PIB

Fonte: Tesouro Nacional

Esse perodo relevante, pois descreve a srie de avanos (e s vezes retrocessos) observados desde a quebra estrutural nos nveis histricos de inflao ocorrida em 1994 com o advento do Plano Real (ver Grfico 3). Avaliando a composio da DPF, podemos notar que esta era essencialmente composta por dvida cambial e remunerada por taxas de juros. A participao de ttulos prefixados era praticamente inexistente, e os poucos ttulos emitidos com essas caractersticas tinham prazos muito curtos, que usualmente no passavam de dois meses.

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

Grfico 3. Evoluo da inflao IPC (Fipe) mensal (%)

Fonte: Fundao Instituto de Pesquisas Econmicas (Fipe)

Com a queda da inflao, foi possvel iniciar processo de desindexao da dvida, permitindo aumento expressivo e contnuo da dvida prefixada, que alcanou o pico de 36% em agosto de 1997. Sob forte consequncia da turbulncia iniciada na sia durante o segundo semestre daquele ano e da crescente crise de confiana que alcanava as economias emergentes, veio o primeiro grande teste solidez dos fundamentos econmicos brasileiros. Houve forte presso sobre a moeda e temores quanto ao descontrole da inflao, tornando difcil e custoso seguir no processo de desindexao da dvida. Esses eventos traduziram-se em acrscimo da dvida indexada ao cmbio, bem como da parcela indexada taxa de juros de curto prazo, conhecida por taxa Selic. Em dezembro de 1998, a parcela de ttulos prefixados j se havia reduzido para menos de 5% do total da DPF. Na verdade, parte do retrocesso no processo de desindexao da dvida foi administrada em uma estratgia de reduo do risco de refinanciamento. Embora os gestores da dvida continuassem a emitir ttulos prefixados por alguns meses, mesmo que mais curtos, as sinalizaes de que a crise era grave e de durao incerta indicavam a necessidade de modificao temporria da estratgia. quela altura, temia-se que o prazo da dvida se tornasse demasiado curto,7 com concentraes de vencimento que poderiam suscitar dvidas quanto capacidade de pagamento do governo e agravar ainda mais os efeitos da crise. O forte recuo da dvida prefixada, com consequente aumento da dvida vinculada taxa Selic e variao cambial, demonstrou a dependncia da estratgia da dvida aos fundamentos macroeconmicos. Ficava mais uma vez clara a importncia de se ancorar a economia a polticas fiscais slidas e de se promover ajuste das contas externas do pas. Tais fundamentos fortaleceriam a resistncia da economia a choques externos, aumentariam a credibilidade quanto capacidade de pagamento da dvida e permitiriam maior estabilidade melhoria de seu perfil, como pde ser observado a partir de ento.

7 O prazo mdio da Dvida Pblica Federal, que havia permanecido abaixo de 12 meses por mais de uma dcada, alcanou finalmente, em 1997, nveis superiores a um ano. Para os gestores, tal avano na estrutura da dvida no poderia ser perdido, ainda que para isso fosse necessrio sacrificar a composio da dvida naquele momento para recuper-la posteriormente. Para maiores detalhes sobre a evoluo dos indicadores da dvida pblica, ver Anexo Estatstico ao final deste livro.

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Em um longo e consistente caminho de aprimoramento dos fundamentos econmicos, a poltica fiscal comeou a ganhar credibilidade com os seguidos supervits primrios a partir de 1999 (ver Grfico 4) e com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, a qual trouxe maior disciplina para a gesto das finanas pblicas nas diversas esferas do setor pblico.8 As contas externas, por sua vez, passaram por ajustes significativos, permitindo reduo expressiva nos indicadores de vulnerabilidade externa do pas. A razo entre a dvida externa e as reservas internacionais, por exemplo, caiu de 557% para 96% entre 2002 e 20089 (ver Grfico 5). Grfico 4. Resultado fiscal do setor pblico

Fonte: Banco Central do Brasil

Maiores detalhes sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal podem ser encontrados nos captulos sobre oramento e auditoria, respectivamente Captulo 4 da Parte 2 (item 4.1 A Lei de Responsabilidade Fiscal no contexto da dvida pblica) e Captulo 5 da Parte 2 (item 2.4.1 Condies, vedaes, limites e penalidades). 9 Esse indicador emblemtico, pois indica que os recursos em moeda estrangeira depositados no Banco Central seriam suficientes para pagar a totalidade da dvida externa pblica e privada do pas. Para termos uma melhor idia da relevncia do atual nvel, a srie histrica da relao entre a dvida externa (pblica e privada) e as reservas internacionais (de 1952 a 2008) inicia-se com 1, 3, atinge 20 na crise do incio dos anos 1980, e vai se reduzindo paulatinamente, at atingir 0,96 em dezembro de 2008, o menor valor da srie. Para maiores detalhes, ver Anexo Estatstico ao final deste livro.8

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

Grfico 5. Indicadores de vulnerabilidade externa

Fonte: Banco Central do Brasil

As conquistas no campo econmico propiciaram ambiente favorvel para a gesto da dvida. Sob as diretrizes de uma estratgia cuidadosamente elaborada e disseminada por intermdio de seus planos anuais de financiamento, o Tesouro Nacional vem obtendo avanos consistentes na melhoria da estrutura da dvida pblica, com destaque para a acentuada reduo do passivo cambial e o aumento gradual e contnuo das parcelas das dvidas prefixada e indexada a ndices de preos.10 Essas melhorias devem-se ainda atuao proativa do Tesouro no gerenciamento da dvida, inclusive por meio de operaes de troca e compra antecipadas, que permitiram acelerar o processo de aprimoramento do perfil da dvida, reduzindo a exposio da economia brasileira a choques. A combinao de bons fundamentos macroeconmicos e de uma gesto eficiente da Dvida Pblica Federal permitiu ao pas colher frutos, conforme demonstram os indicadores de risco da economia brasileira (ver Grfico 6) e o almejado grau de investimento, auferido pela agncia Standard & Poors em 30 de abril de 2008. Conforme o anncio da agncia naquela data, o pragmatismo das polticas fiscal e de gesto da dvida11 foi determinante para que o Brasil fosse promovido, pela primeira vez em sua histria, ao grau de investimento.

10 Segundo estudos realizados, esses ttulos so ideais para compor a maior parte do estoque da dvida, observados os critrios de custo e risco. Para maiores detalhes, ver Captulo 3 da Parte 2 (Gerenciamento de riscos da Dvida Pblica Federal). 11 Ver relatrio da Standard & Poors, Brazil long-term foreign currency rating raised to investment grade BBB. Outlook stable, april 30 2008.

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Grfico 6. Spread performance Brasil e emergentes

Fonte: Bloomberg

Organizao e sumrio do livroCom o objetivo de ampliar o entendimento sobre a dvida pblica brasileira, incluindo sua gesto e caractersticas de seu mercado, o livro est organizado em trs partes: a Parte 1. Entendendo a dvida pblica brasileira; a Parte 2. O gerenciamento da dvida pblica brasileira; e a Parte 3. O mercado de dvida pblica no Brasil. Um breve sumrio do contedo de cada parte e dos captulos que as compem ser exposto a seguir. Na PARTE 1 buscou-se fazer uma anlise histrica e conceitual da dvida pblica, explicando os principais conceitos de dvida, as informaes disponveis sobre o tema, os documentos publicados regularmente sobre o assunto, alm de uma anlise histrica da dvida pblica, desde seu surgimento no Brasil at os dias atuais. Tambm so discutidos os principais pontos que permitem avaliar a sustentabilidade de uma dvida pblica. Para isso, a parte est dividida em quatro captulos, a seguir discriminados.

Captulo 1 Origem e histria da dvida pblica no Brasil at 1963Busca-se resgatar, compilar e analisar aspectos marcantes da histria da dvida pblica brasileira. Para isso, buscou-se dividir cada seo do captulo por perodo (Colnia, Imprio e Repblica) e por tipo de dvida (interna e externa), tendo sido usadas, como referncias, obras que tratam desses temas em detalhes. Portanto, mais que procurar analisar a fundo a evoluo da dvida em algum perodo em particular, o captulo fornece uma viso global da rica sequncia de eventos e desafios enfrentados na histria da dvida pblica brasileira. A anlise do processo de endividamento brasileiro, tanto interno quanto externo, auxilia-nos a entender os desafios herdados desse longo perodo, que em muito impactaram a gesto da dvida pblica brasileira recente.

Captulo 2 Histria da dvida pblica no Brasil: de 1964 at os dias atuaisNeste captulo procura-se traar a evoluo das dvidas pblica interna e externa a partir de 1964, buscando mostrar sua evoluo no s pelo aspecto quantitativo, mas tambm ilustrando os avanos obtidos sob o ponto de vista institucional e os desafios encontrados no percurso at os dias atuais. 24Dvida Pblica: a experincia brasileira

Quanto evoluo da dvida interna, so mostradas as razes do aumento do estoque no perodo, relacionando o fato com os eventos macroeconmicos que o acompanharam. Ainda, procura-se ilustrar os aspectos institucionais mais relevantes, ao se buscar melhor entender os eventos correlatos dvida pblica federal interna. A leitura desta parte particularmente interessante, ao se observar que algumas decises de poltica tomadas no passado podem ter contribudo para justificar restries evoluo da poltica macroeconmica no perodo mais recente. Com respeito evoluo e aos eventos relacionados dvida externa, o captulo mostra as diversas etapas experimentadas pelo pas, explicando as causas da crise da dvida nos anos 1980, sua superao e a retomada das emisses voluntrias at culminar com o ambiente de relativa tranquilidade experimentado atualmente na administrao da dvida externa, com destaque para as emisses qualitativas, o programa de recompras e a construo da curva em reais.

Captulo 3 Sustentabilidade da dvida pblicaLevando-se em considerao que o endividamento pblico deve cumprir de forma adequada suas funes, como destacado no incio desta Introduo, faz-se necessrio que o emissor adote uma poltica crvel, em que os valores contratualmente estipulados sejam honrados. Em outras palavras, a poltica fiscal tem de ser sustentvel. Nesse sentido, este captulo tem por objetivo a formalizao da idia de sustentabilidade, com a apresentao de vrias medidas ou metodologias de avaliao que oferecem uma maneira disciplinada de avaliar se uma poltica sustentvel ou no. Por fim, e no menos importante, procura-se aqui mostrar como a administrao da dvida pblica pode desempenhar um papel fundamental na determinao de sua sustentabilidade intertemporal.

Captulo 4 Conceitos e estatsticas da dvida pblicaNeste captulo so apresentados, de forma bastante didtica e completa, os principais conceitos, estatsticas e relatrios referentes dvida pblica divulgados atualmente pelo governo brasileiro com o intuito de facilitar a compreenso dos temas abordados no livro. Um aspecto interessante trazido pelo captulo diz respeito s recomendaes dos organismos internacionais quanto forma e abrangncia das estatsticas de dvida pblica conforme disposto em seus documentos oficiais. Tambm feita uma comparao dessas recomendaes com os dados divulgados pelo Brasil, sugerindo aperfeioamentos que permitiriam avanar em relao aos progressos j conquistados. A PARTE 2 descreve o gerenciamento da Dvida Pblica Federal em todos os seus principais aspectos, em particular a estrutura institucional e seus avanos recentes, o processo para desenvolver uma estratgia eficiente de financiamento da dvida, o gerenciamento de riscos, o oramento pblico como ferramenta de auxlio administrao da dvida pblica e, por fim, a estrutura regulatria e de auditoria na dvida. Para isso, a PARTE 2 foi dividida em cinco captulos, cujos sumrios so descritos a seguir:

Captulo 1 Estrutura institucional e eventos recentes na administrao da Dvida Pblica FederalEste captulo foi elaborado com o objetivo de oferecer uma leitura introdutria para os demais captulos desta parte. Assim, procura-se, de uma maneira clara e amigvel, descrever a experincia brasileira, ilustrando a forma como a administrao da Dvida Pblica Federal no Brasil se adequou s melhores prticas internacionais. 25

Dentre os principais aspectos abordados, explora-se a importncia da coordenao da gesto dessa dvida com as polticas fiscal e monetria; mostra-se o processo de desenvolvimento de uma governana slida e eficaz; avalia-se a importncia do desenvolvimento de uma estratgia prudente e consistente de dvida pblica, tendo por base o gerenciamento permanente de seus riscos; e descrevem-se as medidas que tm sido tomadas para aprimorar a capacidade tcnica da equipe e os sistemas tecnolgicos de informao. Alm desses pontos, uma contribuio importante do captulo mostrar a fase de transio do pas, que passou da etapa de implementao de reformas e desenvolvimento da capacidade de gesto da dvida pblica para a fase de disseminao para outros pases das boas prticas em administrao da dvida.

Captulo 2 Planejamento estratgico da Dvida Pblica FederalConsiderando a importncia de se desenhar estratgias adequadas para a administrao da dvida pblica que levem em conta, dentre outros elementos, a composio tima dessa dvida no longo prazo, os riscos inerentes a tais estratgias e o compromisso com o desenvolvimento do mercado de ttulos pblicos, este trabalho procura discutir os principais aspectos envolvidos no processo de planejamento estratgico do endividamento pblico luz da experincia brasileira. A esse respeito, ressaltam-se os antecedentes econmicos e as mudanas no arcabouo institucional do Tesouro Nacional, os quais influenciaram consideravelmente o desenho do planejamento estratgico da Dvida Pblica Federal, a definio dos objetivos de sua administrao, a estrutura tima da dvida no longo prazo (benchmark) e as diversas etapas do desenho de uma estratgia de transio do curto para o longo prazo.

Captulo 3 Gerenciamento de riscos da Dvida Pblica FederalAcompanhando a tendncia do gerenciamento de riscos que se consolidou como atividade essencial no mercado financeiro, principalmente em funo da expanso do mercado de derivativos, da maior disponibilidade de ferramentas amigveis para clculo desses riscos e de regras prudenciais para a gesto de riscos especficos, determinadas por reguladores dos mercados de capitais e bancos centrais, o Tesouro Nacional iniciou em 2001 um programa para desenvolvimento de capacidade tcnica e construo de ferramentas e sistemas de gerenciamento de riscos, arcabouo este construdo e mais tarde apresentado e validado em seminrio do qual participaram especialistas de diversos pases e organizaes internacionais. Nesse sentido, o objetivo do captulo descrever o escopo das atividades e os principais desafios no gerenciamento dos riscos que permeiam a dvida pblica brasileira. Alm de prover uma viso geral de como o Tesouro Nacional lida com o gerenciamento de tais riscos, o captulo tem tambm a (ambiciosa) inteno de atender s demandas de pesquisadores e pases em estgio inicial de capacitao sobre o tema, disponibilizando um mapa consistente de ferramentas e responsabilidades que essa atividade engloba. Ademais, a viso das ferramentas que precisam ser desenvolvidas e das habilidades especficas requeridas para tal funo pode ser um guia til para aqueles dispostos a aprimorar suas prticas de gerenciamento de riscos.

Captulo 4 O oramento da Dvida Pblica FederalNeste captulo procura-se propiciar um entendimento sobre o oramento brasileiro como ferramenta essencial na administrao financeira dos recursos pblicos e, especificamente, no que se refere Dvida Pblica Federal, trazendo os principais conceitos de oramento pblico, bem como os processos 26Dvida Pblica: a experincia brasileira

e as entidades envolvidas, alm de apresentar a estrutura institucional da administrao financeira e oramentria brasileira. Um aspecto interessante abordado no captulo em uma de suas sees, o foco no oramento sob a tica da Dvida Pblica Federal, que alm de estar subordinado s regras gerais s quais toda gesto de recursos pblicos est, possui um tratamento especial, j que impactado, por um lado, pelos controles legais sobre o endividamento pblico e pela transparncia das informaes, e por outro, pela busca da flexibilidade necessria para uma gesto eficiente dessa dvida, minimizando o risco oramentrio.

Captulo 5 Marcos regulatrios e auditoria governamental da dvida pblicaEm perspectiva geral, este captulo descreve os marcos regulatrios e o processo de auditoria governamental sobre a dvida pblica no Brasil. A importncia da estrutura regulatria e da auditoria em um processo eficiente de gesto da dvida pblica destacvel, pois tal processo no completo se no houver marcos regulatrios consistentes e instituies fortes. Nesse sentido, ao longo do texto possvel observar que diversos mecanismos de enforcement asseguram o cumprimento desses marcos legais, seja por disposies das prprias normas seja por avaliao de uma instituio independente de auditoria governamental, o que demonstra o alinhamento do pas com as melhores prticas difundidas pelos organismos internacionais de referncia (Banco Mundial, Fundo Monetrio Internacional e International Organization of Supreme Audit Institutions INTOSAI). A PARTE 3 procura mostrar o funcionamento do mercado de dvida pblica no Brasil, iniciando pela descrio da evoluo recente desse mercado, seguindo com a apresentao das caractersticas dos ttulos pblicos tradicionalmente utilizados para financiamento da dvida e de sua forma de precificao, descrevendo a organizao do mercado financeiro brasileiro e o funcionamento dos mercados primrio e secundrio de dvida, e terminando com um anlise sobre os principais investidores em ttulos do governo e sobre o desenvolvimento dessa base de investidores ao longo do tempo. Adicionalmente, a Parte 3, em seu ltimo captulo, descreve o programa de vendas de ttulos pblicos a pessoas fsicas pela internet o Programa Tesouro Direto, desenvolvido e gerenciado pelo Tesouro Nacional. Mostra-se, a seguir, o sumrio para cada um dos sete captulos que compem a referida parte.

Captulo 1 Evoluo recente do mercado de ttulos da Dvida Pblica FederalEste captulo busca ser introdutrio e dar sequncia aos captulos seguintes, procurando trazer uma viso geral do mercado de ttulos da Dvida Pblica Federal, bem como destacar os principais avanos recentes nesse mercado, tendo como pano de fundo as melhores experincias relatadas por organismos internacionais. Para isso, apresenta na primeira parte um panorama da dvida pblica brasileira, considerando os avanos macroeconmicos, as melhorias no gerenciamento de dvida pblica e a evoluo dos mercados internacionais, os quais tm auxiliado sobremaneira o desenvolvimento dos mercados de dvida tanto interno quanto externo. Por fim, aborda sucintamente as principais medidas para o desenvolvimento do mercado e os aperfeioamentos conquistados luz do que se observa para as melhores prticas internacionais.

Captulo 2 Ttulos pblicos federais e suas formas de precificaoO objetivo deste captulo descrever, de forma clara e didtica, os principais ttulos utilizados pelo Tesouro Nacional para financiamento da Dvida Pblica Federal, suas caractersticas e metodologias de clculo, bem como os insumos que servem de base para a formao de seus preos, levando-se em conta que o Tesouro 27

Nacional, como gestor da dvida pblica, se preocupa com o impacto que a precificao de seus ttulos pode ter no sucesso das emisses. No por outra razo, destaca-se o esforo empreendido pela instituio ao longo dos ltimos anos, com a colaborao de diversos participantes do mercado, para adotar medidas que visam a simplificar seus ttulos e a facilitar sua correta avaliao pelos investidores.

Captulo 3 Organizao do mercado financeiro no BrasilAo considerar a importncia do relacionamento peridico com diversos segmentos do mercado financeiro, tais como associaes de classe, cmaras de custdia e bolsas de valores, para que a administrao da dvida trabalhe em um ambiente propcio, a fim de atingir seus objetivos, o captulo analisa cada um dos principais participantes do mercado financeiro domstico, mostrando sua relevncia para o desenvolvimento do mercado de ttulos pblicos. Trata-se aqui, dentre outros aspectos, dos rgos reguladores dos principais participantes do sistema financeiro, dos participantes do mercado de ttulos pblicos que desempenham a funo de intermedirios e, tambm, dos investidores, que so os detentores finais dos ttulos. Por fim, avalia-se a relevncia da atuao das entidades de classe, do papel das centrais de custdia e das cmaras de liquidao, assim como dos sistemas e do ambiente de negociao de ttulos.

Captulo 4 Mercado primrio da Dvida Pblica FederalO objetivo primordial deste captulo apresentar um panorama geral do mercado primrio dos ttulos emitidos pelo governo federal por intermdio do Tesouro Nacional, seu nico emissor. Para tal, so descritas as modalidades de emisso nos mercados domstico e internacional, apresentando, em linhas gerais, a estratgia adotada e os mecanismos de emisso utilizados pelo Tesouro Nacional em cada um desses mercados, alm de tratar das operaes de gerenciamento do passivo sob sua responsabilidade, executadas com objetivos diversos. Adicionalmente, o captulo mostra o alinhamento da atuao do Tesouro Nacional aos princpios de transparncia e previsibilidade, de acordo com as melhores prticas internacionais.

Captulo 5 A base de investidores da Dvida Pblica Federal no BrasilComo destaca o Banco Mundial (2007 e 2001),12 promover uma base de investidores diversificada, em termos de horizontes de investimento, preferncias ao risco e motivaes para comercializao dos ativos, vital para estimular os negcios e a alta liquidez dos ttulos pblicos. Alm disso, tal diversificao fundamental tambm para viabilizar o financiamento dos governos em diferentes cenrios econmicos. Nesse sentido, a gesto da Dvida Pblica Federal no Brasil tem buscado, ao longo dos ltimos anos, ampliar e diversificar sua base de investidores, bem como aprimorar cada vez mais sua relao com os grupos representativos. Este captulo busca dar uma viso geral dessa evoluo e dos aspectos referentes base de investidores em ttulos pblicos no Brasil, da gesto da Dvida Pblica Federal nesse campo e de suas principais tendncias. Para isso, so identificadas a composio da base de investidores brasileira e o perfil dos grupos em termos de suas preferncias por ttulos, revelando como esse tema entrou definitivamente no planejamento estratgico da dvida e como, no seu gerenciamento cotidiano, o trabalho com a base de investidores tem sido conduzido. Tambm so mostradas as principais medidas implantadas, as prticas adotadas, as tendncias e os desafios para os prximos anos.12

Ver Referncias do captulo. Dvida Pblica: a experincia brasileira

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Captulo 6 Mercado secundrio da Dvida Pblica FederalUma das principais precondies para a existncia de um mecanismo eficiente de financiamento pblico a existncia de um mercado secundrio desenvolvido de ttulos pblicos. nas negociaes em mercado secundrio que se formam, de maneira eficiente, as referncias de preos dos diversos ativos, as quais, por sua vez, vo determinar o custo de financiamento dos ttulos do governo. Assim, a facilidade com que investidores entram e saem desse mercado sem custos elevados de transao, ou seja, a liquidez, representa varivel relevante na determinao do interesse das diversas classes de investidores pelos ativos financeiros. Dentre as tarefas de gerenciamento de dvida deve-se incluir a busca por um contnuo aperfeioamento do mercado secundrio. Este captulo pretende mostrar o estgio atual de desenvolvimento do mercado secundrio de ttulos pblicos no Brasil, as caractersticas desse mercado e os esforos envidados ao longo dos ltimos anos no sentido de dar-lhe maior liquidez e transparncia.

Captulo 7 Venda de ttulos pblicos pela internet: Programa Tesouro DiretoO objetivo deste captulo apresentar ao leitor o Tesouro Direto programa de venda de ttulos pblicos federais diretamente a pessoas fsicas por meio da internet, desenvolvido e gerenciado pela Secretaria do Tesouro Nacional. Para tal, o captulo descreve, com riqueza de detalhes, as caractersticas do programa, suas principais estatsticas, sua evoluo desde o lanamento, em 2002, e suas perspectivas, incluindo uma anlise comparativa com programas semelhantes desenvolvidos por outros pases.

Os organizadores

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

PARTE 1 Entendendo a Dvida Pblica Brasileira

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

Parte 1 Captulo 1 Origem e histria da dvida pblica no Brasil at 1963Anderson Caputo Silva

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Introduo

A histria da dvida brasileira encontra-se documentada em vrias obras, com enfoques e nvel de agregao diversos. Pode-se encontrar, por exemplo, referncias excelentes sobre a dvida no perodo imperial, como a obra de Carreira (1980), ou sobre a dvida externa desde sua origem at 1937, conforme Bouas (1950). Este captulo busca resgatar, compilar e analisar aspectos marcantes da histria da dvida pblica brasileira. Faz-se uso frequente de citaes literatura que trata esses temas em detalhe. Para uma melhor compreenso, as sees foram divididas por perodos histricos (Colnia, Imprio e Repblica) e por tipos de dvida (interna ou externa). Portanto, mais que analisar a fundo a evoluo da dvida em algum perodo em particular, o captulo fornece uma viso global da rica sequncia de eventos e desafios enfrentados na histria da dvida pblica brasileira. Discorremos sobre o incio do processo de endividamento brasileiro interno e externo, a institucionalizao da dvida e a formao de seu arcabouo legal, a criao do primeiro rgo de gesto, as caractersticas dos principais emprstimos e as dificuldades enfrentadas para fazer face ao pagamento da dvida. Em seguida, descrevemos operaes de reestruturao e consolidao luz do contexto poltico-econmico de cada perodo. Essa anlise ajuda-nos a entender os desafios herdados desse longo perodo para a gesto da dvida pblica brasileira. A partir desta breve introduo, o captulo est organizado em mais trs sees. A segunda seo trata da dvida pblica no Brasil Colnia (1500-1822). A terceira seo apresenta a histria da dvida no perodo imperial (1822-1889) por meio de duas subsees que abordam as dvidas interna e externa. Com igual subdiviso, a quarta seo resume pouco mais de 73 anos iniciais da histria da dvida interna e externa no perodo republicano (1889-1963). A histria da dvida a partir de 1964 ser assunto do prximo captulo.

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A dvida pblica no Brasil Colnia (1500-1822)1

A histria da dvida interna brasileira tem origem ainda no perodo colonial, no qual, desde os sculos XVI e XVII, alguns governadores da Colnia faziam emprstimos. A exemplo do processo de endividamento em outras partes do mundo (Box 1), os emprstimos da poca confundiam-se com emprstimos pessoais dos governantes. Alm disso, no perodo colonial tudo era desconhecido: o tamanho da dvida, a finalidade do emprstimo, as condies em que esse era feito etc. (NETO, 1980).

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Referncia principal: Bouas (1950).

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Box 1. Origem da dvida pblica Embora seja difcil identificar a origem do endividamento pblico, h evidncias da existncia do crdito pblico j nos tempos da Grcia Antiga. Baleeiro (1976) cita um estudo de Xenofonte sobre as rendas de Atenas em que so mencionados emprstimos para barcos de guerra de propriedade pblica. Com o renascimento comercial dos sculos XI e XII, foram introduzidos novos hbitos de consumo de artigos de luxo influenciando o comportamento da nobreza, dos prncipes e dos reis. Os supervits financeiros, bastante comuns poca, foram sendo substitudos por seguidos dficits, por conta do aumento de despesas sem correspondente aumento de receitas. Como o aumento de impostos e a emisso de moeda eram considerados solues difceis ou indesejadas naquele perodo,* passou-se a contar com emprstimos junto aos mercadores ricos da poca para o financiamento de despesas ordinrias e emergenciais, tais como aquelas associadas a guerras. Os emprstimos da poca, no entanto, eram bastante distintos do atual crdito pblico. Isso porque eram geralmente emprstimos pessoais do prncipe, muitas vezes representando obrigaes do monarca devedor e no se transferiam a seus herdeiros ou sucessores. As taxas de juros exigidas eram consequentemente exorbitantes e, de acordo com Baleeiro (1976), as garantias exigidas chegavam a ser humilhantes. O autor cita como exemplo de garantias desde o fio da barba sacratssima de Sua Majestade, prncipes tomados como refns, relquias de santos, at o penhor da Coroa, jias ou a vinculao de certas rendas ao servio de juros e amortizaes da dvida. A desvinculao entre o patrimnio do monarca e o Tesouro Pblico ocorreu a partir do sculo XVII, constituindo marco importante para a maior utilizao do crdito pblico como meio de financiamento de despesas do governo.* Hicks (1972) argumenta que, em funo de a base tributria poca ser estreita e de a arrecadao ser ineficiente e injusta, a elevao de impostos tinha reflexo popular bastante negativo. J a emisso de moedas era desestimulada pela restrita oferta de metais preciosos e pela situao inflacionria que criou onde foi adotada. Fonte: Neto (1980) e Baleeiro (1976) Elaborao: Anderson Caputo Silva

Conforme Bouas (1950), o primeiro a mandar ordenar a escriturao das finanas da Colnia foi Luiz de Vasconcelos e Souza, o vice-rei da idade de ouro do Brasil colonial. Apurou-se que, de 1761 a 1780, ao invs de saldos, a escriturao oficial acusava dficits anuais superiores a 100 contos, tendo-se elevado a dvida pblica, naquele ltimo ano, a mais de 1.200 contos, provenientes de soldos e fardamentos s tropas, fornecimentos de gneros, salrios e at dinheiro de que o governo, sob promessa formal de futura restituio, se apoderara em tempos de guerra. Apesar desse levantamento, os compromissos devidos pela Colnia no foram liquidados at que, em 1799, procurando atenuar j ento a ameaa dum colapso econmico, D. Joo VI determinou o pagamento da dvida apurada, e de outras, ainda no relacionadas, por meio de aplices que vencessem juros de 5%. Essa iniciativa marcou a fundao da dvida de Portugal no Brasil. Na mesma linha, a Carta Rgia de 24 de outubro de 1800, o Alvar de 9 de maio de 1810 e o Decreto de 12 de outubro de 1811 contriburam respectivamente para classificar todas as dvidas em legais e ilegais, considerar dvidas antigas todas aquelas contradas at 17972 e estabelecer um mecanismo de amortizao dessas dvidas.3 Bouas (1950) argumenta2 Requerendo que todas as dvidas fossem habilitadas no Conselho da Fazenda, com prazo de trs anos para a prescrio das que no se legalizassem. Segundo Leo (2003), verifica-se, assim, que, desde 1810, os ttulos de dvidas prescreviam desde que no apresentados para habilitao em um prazo determinado (no caso, trs anos) nas consolidaes da dvida interna, tradio esta que ir se repetir nas consolidaes de 1956, 1962, 1967. 3 Todos os anos, entregar-se-ia aos credores 6% do valor dos seus crditos, a metade como prmio e gratificao pela demora e o

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

que esse procedimento beneficiou superiormente a Colnia e serviu, mais tarde, para provar que, no passivo dela herdado pelo Brasil independente, aquelas antigas dvidas oravam, apenas, em 42 contos.4 A despeito desses avanos, os dficits intensificaram-se entre 1808 e 1821, perodo no qual D. Joo VI se estabeleceu no Brasil com sua Corte, enquanto tropas de Napoleo ocupavam Portugal. As despesas, dentre outras, para manuteno de seus sditos e, principalmente, para subsidiar o exrcito portugus eram vultosas e os recursos para financi-las bastante limitados, j que no se podia contar com auxlio financeiro de Portugal. Fatos e aes marcantes para a histria poltica, econmica e financeira do Brasil ocorreram nesse perodo. Destacam-se, por exemplo, a abertura dos portos em 1808 (iniciando a independncia econmica), a criao do primeiro Banco do Brasil e a implantao do papel-moeda (Box 2).Box 2. Criao do primeiro Banco do Brasil Uma das iniciativas de D. Joo VI durante seu perodo no Brasil foi a criao do primeiro Banco do Brasil, por meio da assinatura do Alvar de 12 de outubro de 1808, seguindo sugesto do ento ministro da Fazenda e da Marinha portuguesa D. Rodrigo de Souza Coutinho. Com autorizao inicial de funcionamento por vinte anos, o Banco do Brasil entrou efetivamente em operao apenas em 11 de dezembro de 1809 aps ter seu capital mnimo subscrito (cem aes). O fundo de capital era de 1.200 contos, divididos em 1.200 aes de um conto de ris cada uma. O incio das operaes do primeiro Banco do Brasil, em 1809, pode ser considerado um marco fundamental na histria monetria do Brasil e de Portugal, tanto por ter sido a primeira instituio bancria portuguesa quanto pelo fato de representar uma significativa mudana no meio circulante do Brasil atravs da emisso de notas bancrias (MLLER; LIMA, 2007). A criao do Banco do Brasil est intimamente ligada necessidade da Coroa de levantar o numerrio que carecia para financiar os gastos pblicos crescentes. O Banco do Brasil foi o quarto banco emissor do mundo, depois do Banco da Sucia (1668), do Banco da Inglaterra (1694) e do Banco da Frana (1800). (WIKIPDIA, http://pt.wikipedia.org/wiki/Banco_do_Brasil). De 1810 a 1828, segundo Mller e Lima (2007), foi emitido um total de 28.866.450$000 ris. No surpreendentemente, verificava-se j em 23 de maro de 1821 a insolvabilidade do banco ao se avaliar o balano organizado por sua Diretoria situao que ficaria ainda mais crtica aps a partida de D. Joo VI com sua comitiva para Portugal, j que assim as garantias representadas pela maior parte das alfaias e das jias da Coroa perdiam seu efeito (BOUAS, 1950). Com forte oposio no Parlamento para a renovao de sua autorizao de funcionamento, foi decidido em 23 de setembro de 1829 que o primeiro Banco do Brasil seria extinto em 11 de dezembro daquele ano, quando a instituio completaria vinte anos de existncia.Fonte: Mller e Lima (2007), Bouas (1950) e Wikipdia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Banco_do_Brasil) Elaborao: Anderson Caputo Silva

A situao financeira deixada por D. Joo VI quando de seu regresso a Portugal era, no entanto, realmente preocupante. Bouas (1950) fornece uma boa descrio das dificuldades enfrentadas no perodorestante como amortizao do capital, sem que se levasse em conta a poca em que o dbito fora contrado. 4 Contos ou contos de ris era a expresso utilizada para indicar 1 milho de unidades de reais (ou ris), a moeda em circulao naquela poca, que foi substituda pelo cruzeiro somente em 1942. Sua expresso financeira era 1:000$000. Para maiores detalhes sobre os padres monetrios brasileiros, ver Anexo.

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em que D. Pedro (filho de D. Joo VI) assumiu o papel de prncipe regente (Regncia 1821-1822) e, posteriormente, como o primeiro imperador do Brasil independente (1822-1831). Segundo o autor:A situao tornou-se mais crtica ao retirar-se ele (D. Joo VI) com sua comitiva para o Reino, pois a maior parte da moeda de ouro e de prata existente foi transferida para Lisboa na frota que conduziu o rei, ficando o Tesouro Pblico, na fiel expresso do ministro da Fazenda, o conselheiro Martim Francisco Ribeiro de Andrada, sem real em seus cofres.

Conforme o autor, at mesmo D. Pedro demonstrava sua amargura em cartas enviadas a seu pai no perodo anterior Independncia. Em uma, com data de 21 de setembro de 1821, mencionava: Se V. M. me permite eu passo a expor o triste e lamentvel estado a que est reduzida esta provncia, para que V. M. me d as suas ordens e instrues que achar convenientes para eu com dignidade me poder desembrulhar da rede em que me vejo envolvido. D. Pedro relata as dificuldades para fazer face s despesas desordenadas, diante de recursos limitados: [...] o numerrio do Tesouro s o das rendas da Provncia, e estas mesmas so pagas em papel; necessrio pagar tudo quanto ficou estabelecido, [...] no h dinheiro, como j ficou exposto; no sei o que hei de fazer. Segundo palavras de D. Pedro na mesma carta, ele havia ficado no meio de runas. Uma comisso nomeada pelo prncipe regente para avaliar o estado da Fazenda Pblica determinava que a dvida passiva de D. Joo VI chegava a 9.870:918$092. Houve ainda tempo para se tomar um emprstimo, com garantia das rendas da Provncia do Rio de Janeiro, durante os meses que antecederam a Independncia. O chamado emprstimo da Independncia foi autorizado pelo Decreto de 30 de julho de 1822, no montante de 400:000$, prazo de dez anos e juros de 6%. A destinao principal era para a aquisio de vasos de guerra. Com uma subscrio rpida e superior ao necessrio, a demanda excedente foi subscrita posteriormente, em 27 de outubro, para atender s despesas tambm maiores com a consolidao da Independncia.

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A dvida pblica no Brasil Imprio (1822-1889)5

As dificuldades financeiras enfrentadas pelo Brasil no perodo que antecedeu sua independncia, aliadas s demandas naturais para a consolidao de um pas em seus primeiros anos de independncia, formavam um contexto desafiador. Diante desses problemas, a histria da dvida pblica brasileira no Imprio tornou-se rica em vrios aspectos: criou-se a primeira agncia de administrao da dvida pblica, institucionalizou-se a dvida interna, os mecanismos e os instrumentos de financiamento foram ampliados e realizaram-se operaes de reestruturao de dvida (as chamadas operaes de gesto de passivo), que em muito se assemelham a operaes feitas nos tempos atuais. Alm disso, conforme mencionaremos em vrios pontos nesta seo, a evoluo da dvida (interna e externa) no Brasil Imperial guarda estreita relao com uma srie de fatores poltico-econmicos que caracterizam a histria financeira no Imprio. De forma ampla, essa histria poderia ser dividida em dois perodos: o primeiro,O perodo imperial brasileiro constituiu-se de dois reinados: i) o de D. Pedro I (1822-1831); e o de D. Pedro II (1831-1889). Este ltimo deu incio ao perodo regencial, que perdurou at a proclamao da maioridade de D. Pedro II pelo Poder Legislativo em 23 de julho de 1840, quando este tinha 15 anos incompletos. O reinado pessoal de D. Pedro II se estendeu, portanto, de 1840 at o advento da Repblica, em 15 de novembro de 1889.5

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Dvida Pblica: a experincia brasileira

de 1822 a 1850 um perodo spero de embates e consolidao; e o segundo, que se estende de 1850 a 1889 (Repblica) um perodo sobretudo de construo (BOUAS, 1950). A despeito das dificuldades, as finanas pblicas brasileiras ocuparam posio de destaque entre as naes latino-americanas no sculo XIX, pelo sucesso com o qual o pas foi capaz de emitir dvidas6 e de consistentemente honrar seus compromissos externos, enquanto seus vizinhos no o faziam (SUMMERHILL, 2008).7 O mesmo autor destaca, ainda, o no menos expressivo sucesso brasileiro na emisso de montantes elevados de dvida interna de longo prazo em moeda local em uma mesma poca em que os demais pases latino-americanos se encontravam em default com seus credores domsticos.8

3.1 A dvida pblica interna no Imprio9A histria da dvida pblica interna no Brasil Imperial ganha proeminncia a partir da iniciativa do imperador D. Pedro I de designar, em 20 de setembro de 1825, por meio de decreto, uma comisso para promover a apurao e a institucionalizao da dvida pblica interna no Brasil. Pela primeira vez na histria do pas executava-se uma medida com a finalidade de institucionalizar a dvida pblica interna, dar-lhe carter de dvida nacional, pela qual toda a Nao responsvel, desvinculando-a do carter de dvida pessoal do governante (NETO, 1980).

3.1.1 A pedra fundamental do crdito pblico no Brasil (Lei de 15 de novembro de 1827)Com base no trabalho dessa comisso, foi expedida a Lei de 15 de novembro de 1827, que estabeleceu, de forma abrangente, o arcabouo legal bsico para a poltica de endividamento no Brasil. Esta lei,10 considerada por muitos a pedra fundamental do crdito pblico no Brasil,11 sofreu poucas alteraes at a criao do Banco Central, quase 140 anos depois. A nova lei, em seus 75 artigos, distribudos em quatro Ttulos, dentre outros: i) reconhece dvidas passadas at 1826 ( exceo daquelas que se achavam prescritas pelo Alvar de 9 de maio de 1810); ii) estabelece regras para a inscrio de todas as dvidas reconhecidas, via registro no Grande Livro da Dvida do Brasil, e, no caso de dvidas provinciais, no respectivo Livro Auxiliar do Grande Livro, rubricado e encerrado pelo presidente da provncia respectiva (art. 5) estes livros foram institudos e criados tambm por esta lei; iii) trata da fundao da dvida pblica j lanando os primeiros ttulos da dvida interna

6 Segundo Cardoso e Dornbusch (1989), a histria do Imprio brasileiro de dficits financiados por emprstimos domsticos e externos. Os autores mencionam o relatrio do ministro Ouro Preto sobre a situao do oramento no momento da Proclamao da Repblica, o qual demonstrava que apenas 30% dos gastos totais do Imprio haviam, de fato, sido cobertos por impostos e outras receitas. Todo o resto foi financiado via emisso de dvidas. 7 De fato, j em 1825, exceo do Brasil, todas as naes recm-independentes da Amrica Latina j haviam aplicado default, eventos que se repetiram seguidas vezes no sculo XIX (DAWSON, 1990; MARICHAL, 1989). 8 Summerhill (2008) destaca em sua obra que esta histria de sucesso no perodo imperial brasileiro esteve ligada a mudanas institucionais (notadamente pela Constituio de 1824). A diviso de poderes com o Parlamento, por exemplo, eliminou a habilidade de o imperador unilateralmente tributar, gastar, adquirir emprstimos ou fazer um default. 9 Referncias principais desta subseo: Carreira (1980), Leo (2003) e Neto (1980). 10 Conforme Leo (2003), a Lei de 1827 segue a tradio da histria financeira inglesa. Em 1715, o rei Jorge III mandou consolidar a dvida pblica inglesa e determinou que as dvidas deveriam ser inscritas em um livro (Great Ledger) no Banco da Inglaterra. 11 Neto (1980) menciona como exemplo o analista C. J. de Assis Ribeiro.

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fundada, no montante de 12 mil contos de ris (inscrita automaticamente no Grande Livro); e iv) cria o primeiro rgo responsvel pela administrao da dvida pblica interna e externa (Box 3).Box 3. Caixa de Amortizao a primeira instituio para administrao da dvida pblica A criao da Caixa de Amortizao representou um dos principais avanos histricos trazidos pela Lei de 15 de novembro de 1827. interessante notar o nvel de detalhamento dispensado pela lei com relao ao arranjo institucional e aos procedimentos de funcionamento do novo rgo. A lei estipulou at mesmo os ordenados anuais de seus membros e destinou praticamente metade de seus artigos (36 dos 75) ao seu Ttulo IV Da Caixa de Amortizao. Dois aspectos merecem destaque: i) a independncia da caixa do Tesouro Pblico; e ii) os procedimentos de controle, prestao de contas e transparncia da gesto do rgo. A administrao da caixa era feita por uma junta independente do Tesouro Pblico e composta do ministro e do secretrio dos negcios da Fazenda, como presidente, de cinco capitalistas nacionais e da Inspetoria-Geral da caixa (art. 41).* O arranjo institucional previsto na lei em direo a uma estrutura de gesto de dvida mais autnoma antecipa um debate que ressurgiria bem alm do seu tempo. Nesse sentido, embora atualmente j possamos considerar como consolidada a separao entre a gesto das polticas monetria e fiscal, ainda no frequente a desvinculao entre a gesto da dvida pblica e esta ltima, sendo diversas as prticas internacionais.** A lei chega a estabelecer aspectos de controle bastante restritos (tais como a determinao de que o cofre da Caixa de Amortizao ter trs chaves, uma das quais ser guardada pelo inspetor-geral e as outras pelo contador e pelo tesoureiro [...] igual nmero de chaves ter o cofre de cada uma caixa filial [...] Nunca se abrir cofre algum sem que estejam presentes os trs claviculrios. A lei tambm inclua exigncias de transparncia e prestao de contas em linha com melhores prticas internacionais atuais. Destacam-se a obrigao de apresentao anual pela junta do balano geral da Caixa Cmara dos Deputados e a publicao de seis em seis meses pela imprensa de todas as operaes da Caixa e de suas filiais. A Caixa de Amortizao deixou de ser responsvel pela administrao do meio circulante em 1945, com a criao da Superintendncia da Moeda e do Crdito (Sumoc), embrio do futuro Banco Central. Em 1967, todas as atribuies da Caixa de Amortizao da Dvida foram transferidas para o Banco Central do Brasil. Extingue-se, assim, uma instituio que administrou a dvida interna e externa federal por 140 anos, sem que, nas pesquisas efetuadas, tenha sido encontrado qualquer registro de escndalo (LEO, 2003).* Caixas filiais eram criadas nas provncias do Imprio em que houvesse emisso de aplices. Essas filiais eram administradas por uma junta composta do presidente da provncia, do tesoureiro-geral e do escrivo da junta da Fazenda (arts. 52 e 53). **Ver Wheeler (2004). Fonte: Lei de 15 de novembro de 1827; Carreira (1980); Neto (1980) e Leo (2003) Elaborao: Anderson Caputo Silva

3.1.2 Origem e evoluo da dvida interna fundada no Brasil Imprio por intermdio da Lei de 15 de novembro de 1827 que os pilares bsicos para o registro e o controle de novas dvidas, bem como de sua administrao, so estabelecidos. E tambm a partir dessa lei que se inicia a histria da dvida interna fundada via emisso de 12 mil contos de ris (art. 19). A evoluo da dvida interna fundada no Brazil Imperial e seu impacto no oramento so bem retratados por Leo (2003), conforme Tabelas 1 e 2. A Tabela 1 subdivide o processo de endividamento interno em quatro 38Dvida Pblica: a experincia brasileira

subperodos que se seguem primeira emisso de 1827. A Tabela 2 permite analisar a evoluo do servio da dvida interna, bem como seu peso relativo, por vezes superior, ao servio da dvida externa. Esses dados ilustram a importncia do endividamento interno no perodo imperial. Tabela 1. Evoluo da dvida interna fundada no Imprio(em contos de ris)

Perodo 1827 1828-1840 1841-1860 1861-1880 1881-1889

Emisso 12.000 23.500 32.000 340.000 46.000

Resgate 3.800 11.300

Saldo 12.000 31.700 63.700 403.700 435.500

Fonte: Leis do Imprio do Brasil Rio de Janeiro: Tipographia Nacional (reproduzida de Leo (2003))

Tabela 2. Servios da dvida interna e externa nos oramentos brasileiros 1828-1889 (em contos de ris)Servio da dvida Lei n Data 08/10/1828 15/12/1830 15/11/1831 24/10/1832 58 38 99 70 106 60 108 243 317 08/10/1833 03/10/1834 31/10/1835 22/10/1836 11/10/1837 20/10/1838 26/10/1840 30/11/1841 21/10/1843 Oramento 1829 1831/32 1832/33 1833/34 1834/35 1835/36 1836/37 1837/38 1838/39 1839/40 1840/41 1842/43 1843/44 Externa 1.178 856 2.988 2.425 1.640 480 2.125 2.111 2.069 2.055 2.168 3.020 3.088 Interna 381 1.003 1.046 1.241 1.529 1.348 1.500 1.490 1.600 1.970 2.170 3.120 2.449

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Servio da dvida Lei n 369 396 514 555 668 719 779 840 884 939 1.040 1.114 1.177 1245 1507 1836 2670 2940 3017 3141 3349 Data 18/09/1845 02/09/1846 28/10/1848 15/06/1850 11/09/1852 28/09/1853 06/09/1854 15/09/1855 01/10/1856 26/09/1857 14/09/1859 27/09/1860 09/09/1862 28/06/1865 26/09/1867 27/09/70 20/10/1875 31/10/1879 05/11/1880 30/10/1882 20/10/1887 Oramento 1845/46 1847/47 e 47/48 1849/50 1850/51 1853/54 1854/55 1855/56 1856/57 1857/58 1858/59 159/60 1861/62 1863/64 1865/66 1867/68 e 68/69 1871/72 1876/77 1879/80 e 80/81 1881/82 1882/83 e 83/84 1888 Externa 3.026 3.026 2.797 2.798 4.213 3.823 3.823 3.823 3.787 3.787 3.787 3.648 3.683 3.646 8.277 8.056 12.535 14.374 12.499 20.887 22.383 Interna 3.909 3.473 3.391 3.479 3.447 3.447 3.462 3.461 3.461 3.460 3.460 3.460 4.174 4.817 6.338 15.785 17.551 24.904 26.338 20.276 19.090

Fonte: Coleo das Leis do Imprio do Brasil. Rio de Janeiro: Tipographia Nacional (reproduzida de Leo, 2003)

Os perodos apresentados na Tabela 1 demonstram uma dinmica de endividamento intrinsecamente ligada evoluo socioeconmica do Brasil Imperial. Observa-se, por exemplo, o grande aumento da dvida nas dcadas de 1860 e 1870 (mais detalhadas a seguir), bem como longos perodos de resgates suspensos da dvida, indicando as dificuldades financeiras vividas pelo Imprio. O perodo entre 1827 e 1839 foi marcado por emisses de ttulos com destinao quase exclusiva cobertura de dficits e de despesas com pacificaes de provncias. Porm, as primeiras dificuldades financeiras para sustentar o servio de amortizaes comearam a surgir e em 23 de outubro de 1839, por intermdio da Lei n 91, o resgate dos ttulos em circulao foi suspenso. A interrupo das amortizaes no impediu, contudo, que novos ttulos fossem emitidos. bem verdade que as dificuldades para a colocao de papis aumentou, especialmente entre 1840 e 1860, o que se refletiu 40Dvida Pblica: a experincia brasileira

no aumento dos desgios, que passaram a ser de 35%. Apesar disso, as emisses nesse perodo alcanaram 32 mil contos de ris, e os recursos delas provenientes foram utilizados para finalidades diversas, desde a cobertura de dficits at o pagamento do dote e do enxoval da princesa de Joinville.12 As condies de financiamento comearam a melhorar a partir da dcada de 1860, e as emisses no perodo entre 1861-1880 cresceram de forma nunca antes vista. No surpreendentemente, o servio da dvida interna no oramento tambm aumentou abruptamente nessas duas dcadas (Tabela 2). Embora as despesas a serem financiadas permanecessem diversas, incluindo o casamento das princesas D. Isabel e D. Leopoldina, o maior peso (mais de 80% dos 340 mil contos de ris emitidos) vinha definitivamente das despesas de guerra e daquelas para a cobertura de dficits que acumularam, respectivamente, 150 mil e 130 mil contos de ris. J no perodo entre 1881-1889, destaca-se uma expressiva operao de administrao de passivo. Embora as amortizaes continuassem suspensas, o elevado montante de emisses tornou bastante significativas as despesas anuais com o pagamento de juros da dvida interna, alcanando, em 1884, 21% da receita oramentria. Uma soluo para reduzir tais despesas foi permitir que, de forma facultativa, fossem convertidos ttulos que pagavam juros de 6% a.a. por outros que pagassem juros de 5% a.a. (Lei n 3.229, de 3 de setembro de 1884). Essa estratgia foi realizada com sucesso em 1886, propiciando uma economia anual de juros de 3.294 contos de ris.13 O Brasil terminava assim o perodo imperial com uma dvida interna relativamente elevada. Conforme Leo (2003), ao final do Imprio a dvida interna fundada federal era de 435.500 contos de ris, contra uma dvida externa de 270 mil contos de ris. A evoluo do endividamento externo no Brasil Imperial o tpico da prxima subseo.

3.2 A dvida pblica externa no Imprio14A histria da dvida externa brasileira remonta aos primeiros anos do Imprio.15 Ao todo, foram contrados 15 emprstimos entre 1824 e 1888. Alm disso, por conta da Conveno Secreta Adicional ao Tratado de 29 de agosto de 1825, o Brasil assumiu a responsabilidade pelo emprstimo contrado por Portugal em 1823 no valor de 1.400.000 (BOUAS, 1950), e, em outubro de 1889, j prximo Proclamao da Repblica, houve uma vultosa operao de converso, descrita em maiores detalhes a seguir. A Tabela 3 ilustra as caractersticas dos 15 emprstimos mencionados.

D. Francisca de Bragana, quarta filha do imperador D. Pedro I e da imperatriz D. Maria Leopoldina. Segundo Leo (2003), Be