Dizer e Viver a esperança Aspectos sobre Linguagem e Religião no pensamento de Rubem Alves

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"O tema central deste trabalho é a relação entre linguagem e religiãono pensamento de Rubem Alves. Procurou-se evidenciar como se dá arelação entre estes dois conceitos no pensamento do referido autor. Paraisso, partiu-se da análise e comparação das principais obras de Alvessobre a questão da religião [...]" (El autor)

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  • Dizer e Viver a esperana

    Aspectos sobre Linguagem e Religio

    no pensamento de Rubem Alves

    Fabiano Veliq1

    RESUMO

    O tema central deste trabalho a relao entre linguagem e religio no pensamento de Rubem Alves. Procurou-se evidenciar como se d a relao entre estes dois conceitos no pensamento do referido autor. Para isso, partiu-se da anlise e comparao das principais obras de Alves sobre a questo da religio e evidenciou-se que, para ele, a religio visa JDUDQWLUXPVHQWLGRSDUDDH[LVWrQFLDGRKRPHP8WLOL]RXVHWDPEpPDanlise do debate atual sobre Deus para compreender como essa questo abordada por Rubem Alves. Percebeu-se que a imagem de Deus en-TXDQWRHQWLGDGHPHWDItVLFDpDEDQGRQDGDQRGLVFXUVRPRGHUQRSDUDVHWRUQDUXPDH[LJrQFLDGDLQWHULRULGDGHKXPDQD$OLQJXDJHPVREUH'HXVQmRDSRQWDULDPDLVSDUDXPREMHWRTXHHVWDULDOiIRUDPDVVLPSDUDRprprio homem. Dessa forma, a religio s pode ser vista como uma lin-guagem que falar dos anseios deste homem, da esperana desse homem de construir um mundo com sentido. A metodologia utilizada no trabalho pGHFDUiWHUKHUPHQrXWLFRHWHPFRPRHL[RDFRPSDUDomRHQWUHDVREUDVde Rubem Alves e o estudo do atual debate sobre a religio na tentativa de elucidar os conceitos de linguagem e religio.

    1 Fabiano Veliq doutor em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC-MG).

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    PALAVRAS-CHAVE

    Religio. Linguagem. Esperana. Desejo.

    ABSTRACT

    7KHFHQWUDOWKHPHRIWKLVZRUNLVWKHUHODWLRQVKLSEHWZHHQODQJXDJHDQG UHOLJLRQ LQ WKH WKRXJKWRI5XEHP$OYHV ,W DWWHPSWV WR VKRZKRZWKHVHWZRFRQFHSWVDUHUHODWHGWRRQHDQRWKHU,WVWDUWVZLWKWKHDQDO\VLVDQGFRPSDULVRQRIWKHPDMRUZRUNVRI5XEHP$OYHVFRQFHUQLQJUHOLJLRQZKLFKKDVPDGHFOHDUWKDWIRUKLPUHOLJLRQLVPHDQWWRHQVXUHPHDQLQJIRUWKHH[LVWHQFHRIPDQ,WDOVRGHDOVZLWKWKHDQDO\VLVRIWKHFXUUHQWGHEDWHDERXW*RGLQRUGHUWRXQGHUVWDQGKRZWKLVLVVXHLVDGGUHVVHGE\5XEHP$OYHV:HQRWLFHGWKDWWKHLPDJHRI*RGDVDPHWDSK\VLFDOHQWLW\KDVbeen abandoned in modern discourse, and it has become something that human interiority requires. The language about God no longer points to DQREMHFWRXWVLGHPDQEXWWRPDQKLPVHOI7KXVUHOLJLRQFDQRQO\EHseen as a language that speaks of the mans desires and hope in order to EXLOGXSDPHDQLQJIXOZRUOG7KHPHWKRGRORJ\XVHGKDVDKHUPHQHXWLFFKDUDFWHUDQGLWVFHQWUDOD[LVLVWKHFRPSDULVRQEHWZHHQWKHZRUNVRI5X-bem Alves and the study of the current debate on religion in an attempt to elucidate the concepts of language and religion.

    KEYWORDS

    5HOLJLRQ/DQJXDJH+RSH'HVLUH

    Introduo

    5XEHP$OYHV OyVRIR H WHyORJR EUDVLOHLUR SURFXUD SHQVDU D UHOL-JLmR QR FRQWH[WR GD GLVFXVVmR LQLFLDGD SRU )HXHUEDFK H GHVHQYROYLGDat Nietzsche. Em sua proposta, Alves argumenta que a religio cons-titui um grito de esperana em meio ao caos e no est assentada sobre o objeto nem sobre o sujeito, mas se localiza em um ponto anterior, na UHODomRVXMHLWRREMHWR$UHOLJLmRUHYHODDOyJLFDGRFRUDomRDGLQkPLFDdo princpio do prazer na medida em que ele luta por transformar um caos no-humano ao seu redor numa ordo amoris2. O ser humano se v 2 ALVES, Rubem. O enigma da religio. 6 ed. Campinas: Papirus, 2007, p. 27.

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    em um mundo que no lhe pertence e, para tentar escapar deste, cria para VLXPRXWURHPTXHRSULQFtSLRGHSUD]HUVHVREUHS}HDRSULQFtSLRGHUHDOLGDGH(VWHSURFHVVRGHVREUHSRVLomRVHGiSRUPHLRGDOLQJXD-gem. O homem que efetua a sobreposio do princpio de prazer sobre o princpio da realidade assume uma nova linguagem, uma linguagem da esperana. O presente artigo mostra o caminho realizado por Rubem Alves para propor uma nova forma de ver a religio.

    1. O corpo e a linguagem

    A linguagem desempenha um papel fundamental na elaborao do conceito alvesiano de religio, pois por meio da palavra que os mundos so construdos. Isso corresponde a um reviver do mito bblico em que a SDUWLUGDSDODYUDGLYLQDWRGDVDVFRLVDVVmRFULDGDV$VVLPFRPRDUPD$OYHVSDUDVHHQWHQGHUDUHOLJLmRpQHFHVViULRHQWHQGHURFDPLQKRGDOLQJXDJHP3.

    Podemos notar que a linguagem algo completamente humano. A diferena feita por Feuerbach entre o homem e o animal no nvel da conscincia retomada aqui, acrescentando que o homem tambm difere do animal por possuir uma linguagem.

    O animal se relaciona com o meio de uma forma direta, adquirindo meios para sobreviver diante da natureza que o cerca. Para isso, repro-duz mimeticamente aquilo que seus progenitores faziam. O passado de sua espcie determina como esse animal agir durante toda a sua vida. Sua interao com a natureza tem em vista sua sobrevivncia no mundo, logo, o animal preserva uma memria biolgica que lhe possibilita agir sempre da mesma forma. Ele o seu corpo. Sua programao fechada, est preso sua estrutura biolgica de forma muito restrita.

    Diferentemente do animal, o homem um ser aberto. Ele capaz de reprogramar seu passado de forma a agir diferentemente no futuro, pois no h uma relao causal entre o seu corpo e sua atividade.

    possvel dizer que o ser humano aberto ao futuro, j que no determinado pelo seu passado biolgico como o animal. Enquanto este

    3 ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. 6 ed. So Paulo: Paulus, 2006, p. 5.

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    se relaciona com a natureza de forma a tentar se adaptar a ela, o homem DJHYLVDQGRWUDQVIRUPiODGHIRUPDTXHHODVHDGDSWHjVH[LJrQFLDVGHOHA atividade humana visa sujeitar a natureza s necessidades do corpo hu-mano, da vontade dele, e por isso que os indivduos criam os universos simblicos, religies, coisas que os animais no fazem nem nunca faro. a abertura do ser humano ao futuro que lhe possibilita criar o novo.

    &RPRDUPD$OYHV2VXQLYHUVRVVLPEyOLFRVDUHOLJLmRDKLVWyULDVmRH[SUHVV}HVGR

    esforo humano no sentido de tornar a natureza, o tempo e o espao em funo de si mesmo. Esforo titnico para antropologizar o uni-YHUVRWRGRWUDQVIRUPDQGRRQXPDH[WHQVmRGRFRUSR4.

    No entanto, nota-se que o corpo humano no capaz de fazer grandes coisas. Se comparado ao de outros animais, revela-se como um dos mais frgeis. Em razo disso, o homem precisa inventar meios para conseguir sobreviver diante da natureza. A esses meios, damos o QRPHGHWpFQLFD(VWDpSRUWDQWRH[WHQVmRGRFRUSRHQHVVHVHQWLGRSRGHVHDUPDUTXHDVRFLHGDGHpXPDWpFQLFDLQYHQWDGDSHORKRPHPpara sobreviver na natureza. No entanto, ao mesmo tempo em que o homem cria a sociedade, esta dita como ele dever viver. Segundo DUPD$OYHV

    [...] a linguagem que faz a sociedade possvel e esta torna a linguagem necessria. O condicionamento de nossa percepo pela linguagem , realmente, o condicionamento de nossa maneira de ver, RXYLUHVHQWLUSHODVRFLHGDGH,VWRVLJQLFDTXHQRVVRVPHFDQLVPRVGHinterpretao no so mais puramente biolgicos, mas sociais5.

    Diferentemente dos animais, que se relacionam diretamente com a natureza, o ser humano tem a mediao da sociedade, e ela que ditar o que pode e o que no pode ser feito pelos indivduos. Para isso, ela cria valores sociais que so mecanismos para interpretao do mundo, o que possibilita a sobrevivncia do homem em seu meio. Nesse caso,

    4 ALVES, 2006, p. 12.5 ALVES, 2006, p. 13.

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    considera-se possuidor de valor apenas aquilo que pode ser tomado como indispensvel para a sobrevivncia humana.

    6HQRWDUPRVLVVRSHUFHEHUHPRVTXHFRPRDUPD$OYHVWRGRHV-foro humano se constitui na tentativa de transformar valores em fatos histricos e sociais. O homem, portanto, quer moldar o mundo, fazendo GHVWHDH[SUHVVmRGHVHXVYDORUHV6.

    No entanto, como a relao do ser humano com a natureza aberta, torna-se necessrio que a sociedade que a medeia, enquanto provedora da tcnica possa ser reproduzida nas diversas geraes humanas. Por isso surge a linguagem. Esta inventada em resposta necessidade de reproduo e manuteno da sociedade, tornando-se uma tcnica que possibilita a sobrevivncia humana.

    Por ser dessa forma, percebe-se que a linguagem determinar como uma comunidade organizar sua ao. A linguagem, portanto, nasce de uma necessidade prtica do homem, a saber, da necessidade de sobrevi-vncia frente ao mundo.

    'LDQWHGRH[SRVWRDFLPDFDFODURTXHDOLQJXDJHPWHPXPSDSHOIXQGDPHQWDOQDGHQLomRGRUHDO&RPRDUPD:LWWJHQVWHLQ2VOLPL-WHVGDPLQKDOLQJXDJHPGHQRWDPRVOLPLWHVGRPHXPXQGR7. Ou seja, ela determina a forma como vemos o mundo, organiza-o, coloca-o den-WURGDHVWUXWXUDSRUHODFULDGD6HJXQGRDUPD$OYHV2KRPHPpXPconstrutor de mundos; sua atividade busca criar uma ordo amoris, uma RUJDQL]DomRTXHVHMDH[SUHVVLYDGRVVHXVYDORUHVHIXQFLRQDOSDUDDVXDVREUHYLYrQFLD8.

    2TXHRKRPHPGHQHFRPRUHDOLGDGHpRTXHHOHRUJDQL]D$WHRULDkantiana do conhecimento j aponta para algo parecido. Pode-se conhe-cer o que a coisa para o sujeito cognoscente, mas nunca a coisa em si. E essa coisa organizada pelas estruturas da razo considerada o real.

    Como a linguagem desempenha um papel importante na construo do real, isso permite considerar que as estruturas da razo, postuladas por .DQWVmRQDUHDOLGDGHDHVWUXWXUDGDOLQJXDJHP(VWDpXPLQVWUXPHQWR6 ALVES, 2006, p. 14.7 :,77*(167(,1/XGZLJTractatus logico-philosophicus. So Paulo: Editora Na-

    cional/Ed. da Universidade de So Paulo, 1968, p. 111. (Biblioteca Universitria. 6pULH)LORVRD

    8 ALVES, 2006, p. 18.

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    VRFLDOTXHDGTXLUHVLJQLFDGRGHQWURGRWRGRHPTXHpXVDGD$VRFLHGD-GHTXHFULDGHWHUPLQDGDOLQJXDJHPVHUiDUHVSRQViYHOSRUGHQLURTXHXPDSDODYUDHVSHFtFDVLJQLFDUiDVVLPFRPRGHQLUiRTXHpUHDOHRque no .

    2VHJXQGR:LWWJHQVWHLQFKHJRXjFRQFOXVmRGHTXHRVHQWLGRGHXPDSDODYUDpRVHXXVRQDOLQJXDJHPRXVHMDXPDSDODYUDSRGHWHUVLJQLFDGRVGLIHUHQWHVGHSHQGHQGRGRFRQWH[WRHPTXHIRUXVDGD9. No h na linguagem uma relao objetiva entre sujeito e objeto, mas uma mediao entre ambos, uma vez que o mundo humano organizado e estruturado por meio da linguagem em funo dos valores, inspiraes e emoes humanas. Esse processo de organizao busca criar um mundo VLJQLFDWLYRSDUDRKRPHP$R LQYHVWLJDUVH D OLQJXDJHPSHUFHEHVHque ela remete ao grupo social que a criou, cosmoviso desse grupo.

    &RQVLGHUDQGRRH[SRVWRDWpRPRPHQWRpSRVVtYHODUPDUTXHDlinguagem a mediadora entre o sujeito e o mundo. O mundo , portan-to, um constructo humano que resulta de um trabalho com a linguagem. (VWDIHUUDPHQWDpLQGLVSHQViYHOQDUHODomRKRPHPPXQGR$QDOGHVGHD LQIkQFLDR LQGLYtGXRFRQKHFHDVFRLVDVSRUPHLRGHOD&RPRDUPD$OYHV2KRPHPQmRYLYHQXPXQLYHUVRItVLFRPDVQXPXQLYHUVRVLP-blico. Ele no pode defrontar-se com a realidade de forma imediata; QmRSRGHYrODFRPRVHIRVVHIDFHDIDFH10. Dessa forma, percebe-se que toda construo do mundo realizada pelo homem necessita da lin-guagem. Ela ao mesmo tempo a ferramenta e a estrutura sobre a qual o mundo humano se apoia.

    A humanizao da natureza feita pela linguagem, pois o ser huma-no no lida com a realidade face a face, mas sempre mediado pelas pa-lavras e smbolos. Um mundo sem linguagem torna-se incompreensvel para o homem.

    Alm disso, por meio da linguagem o homem sai do mundo do me-ramente real (natureza) e entra no mundo do possvel (imaginao). No HQWDQWRHODWDPEpPSUHQGHRKRPHPGHQWURGRVHXXQLYHUVRGHVLJQL-cao. Assim, tem duas funes para a linguagem no pensamento alve-VLDQR(PSULPHLUDPHGLGDHODGHQHRVOLPLWHVGRPXQGRHGDDWXDomR9 WITTGENSTEIN, 1968, apud ALVES, 2006, p. 18.10 ALVES, 2006, p. 22.

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    GRLQGLYtGXR3RUpPSRUVHUGHQLGRUDGDYLVmRGHPXQGRTXHRLQGLYt-GXRSRVVDYLUDWHUHODWDPEpPWHUiXPFDUiWHUHQIHLWLoDQWHTXHGHYHUiVHUVXSHUDGRSHORKRPHPDPGHTXHHOHSRVVDUHFRQKHFHUDHVWUXWXUDdo mundo onde vive.

    3DUD5XEHP$OYHVDOLQJXDJHPFLHQWtFDpGLIHUHQWHGDOLQJXDJHPreligiosa, aquela descreve o mundo, ao passo que a linguagem religiosa H[SULPHFRPRYLYHRKRPHPHPUHODomRDRPXQGR$SURSRVWDGDIDODGDUHOLJLmRQmRHQYROYHDIRUPXODomRGHXPDKLSyWHVHVREUHDH[LVWrQFLDGH'HXVSRLV.DQWMiPRVWURXHPVXDFUtWLFDTXHWDOFRQKHFLPHQWRQmRpSRVVtYHOHQYROYHQGRDQWHVGHTXDOTXHURXWUDFRLVDXPDSDL[mRVXEMH-WLYD$OLQJXDJHPQmRpIRWRJUDDFRPRQRFDVRGRGLVFXUVRFLHQWtFR$OYHVDUPDTXHRGLVFXUVRFLHQWtFRSUHWHQGHID]HUGHFDGDSDODYUDXPUHH[RHOID]HUYLVtYHOHOXPLQRVRRPXQGRTXHH[LVWHOiIRUDIDODUDYHUGDGHDYHUGDGHWRGDQDGDPDLVTXHDYHUGDGH11. No entanto, a lin-JXDJHPpLQWHUSUHWDomRUHHWLQGRDUHODomRHQWUHRKRPHPHRPXQGR&RPRDUPD$OYHVD OLQJXDJHPGDUHOLJLmRDVVXPHRXWUD IXQomRHODpretende falar de outra coisa, de uma relao. Segundo Alves,

    [...] as palavras tambm podem ser objeto de fruio, se nos li-gamos a elas pela mesma razo que nos ligamos a um pr-do-sol, a uma sonata, a um fruto: pelo puro prazer que nelas mora... Brinque-GRVQVHPVLPHVPDVSDODYUDVTXHQmRVmRSDUDVHUHQWHQGLGDVVmRcomida para ser comida. Caminho da poesia12.

    &RPRDUPDPRVDWpDJRUDDOLQJXDJHPYLVDjVREUHYLYrQFLDKX-PDQDIUHQWHjQDWXUH]D$SDUWLUGLVVRSRGHPRVDUPDUTXHWRGDDOXWDGRKRPHPWHPHPYLVWDPDQWHURPDLRUYDORUTXHH[LVWHSDUDHOHDYLGD&RPRDUPD$OYHV

    o animal (inclusive o homem) v o mundo de acordo com o tipo de relao com a natureza necessria sua sobrevivncia. O mundo a natureza organizada do ponto de vista das necessidades de uma espcie, para que ela seja uma continuao natural do corpo13.

    11 ALVES, Rubem. Lies de feitiaria: meditaes sobre a poesia. So Paulo: Loyola, 2003, p. 24.

    12 ALVES, 2003, p. 30.13 ALVES, 2006, p. 24.

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    &DVVLUHUHPVHXHQVDLRVREUHRKRPHPVHJXLQGR9RQ8[NHOODU-ma que cada animal se relaciona com o mundo de uma forma prpria. Feuerbach tambm faz a mesma observao no livro Essncia do Cris-tianismo'HDFRUGRFRPHVWH~OWLPRVHDVSODQWDV WLYHVVHPROKRVHFDSDFLGDGHSDUDVHQWLUJRVWRHSDUDMXOJDUFDGDXPDGLULDTXHDVXDRUpDPDLVOLQGDGHWRGDV14. Percebe-se que o homem realiza o contato com o mundo pela mediao da linguagem, o que lhe possibilita a sobrevi-vncia. Para Alves, o esquecimento desta relao valorativa e funcional da linguagem a causa do dualismo entre a cincia e os valores.

    &RPRDUPD%HUJHUO homem no possui uma relao preestabelecida com o mundo.

    Precisa estabelecer continuamente uma relao com ele. A mesma ins-tabilidade assinala a relao do homem com o seu prprio corpo. (...) >$@H[LVWrQFLDKXPDQDpXPFRQWtQXRS{UVHHPHTXLOtEULRGRKRPHPcom seu corpo, do homem com o seu mundo. O homem est constante-mente no processo de pr-se em dia consigo mesmo. nesse processo que o homem produz um mundo. S num mundo assim, que ele mesmo produziu, pode o homem estabelecer-se e realizar a sua vida15.

    O ser humano se relaciona com o mundo primeiramente de uma for-ma emocional, pois est diante da natureza com uma necessidade prti-ca, a saber, sua sobrevivncia. Logo, ele busca conhecer para sobreviver. 'HZH\FRQVLGHUDTXHHPSLULFDPHQWHDVFRLVDVVmRFRPRYHQWHVWUiJL-cas, belas cmicas, estabelecidas, perturbadas, confortveis, desagrad-YHLVFUXDVUXGHVFRQVRODGRUDVHVSOrQGLGDVDWHUURUL]DQWHV16.

    Se o homem se relaciona com a natureza de maneira emocional, todo o conhecimento tem que primeiro estar em relao com a necessida-de humana mais vital, que sua sobrevivncia. Todo conhecimento tem que permitir a preservao da vida. A linguagem envolve a tentativa de ligar os fatos e os valores criados pela sociedade. Essa relao valorativa

    14 )(8(5%$&+/XGZLJA essncia do cristianismo. 2 ed. Lisboa: Fundao Ca-louste Gulbenkian, 2002, p. 20.

    15 %(5*(53HWHU/XGZLJO dossel sagrado: elementos para uma teoria sociolgica da religio. 6 ed. So Paulo: Paulus, 2009, p. 18.

    16 ALVES, 2006 p. 27.

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    o que faz o homem dar nomes s coisas. O ato de nomear algo consti-WXLVHFRPRXPDWRGHGDUVLJQLFDomRjVFRLVDVGHRUJDQL]DURPXQGRDpartir dos valores humanos.

    &RPRDUPD$OYHVRVHJUHGRGDOLQJXDJHPKXPDQDDVVLPQmR nem a esfera objetiva que ela pode indicar, nem simplesmente estados individuais subjetivos. Ao contrrio: a relao de um sujeito, indivduo RXFRPXQLGDGHFRPXPHVSDoRHXPWHPSR17.

    Linguagem, portanto, relao e relao valor. Por isso, toda pa-ODYUDH[SUHVVDXPVLJQLFDGRYDORUL]DGRSHORRKRPHPPHGLGDTXHDSDODYUDVHDSUR[LPDGRTXHWHPPDLVYDORUSDUDRKRPHPPDLVHODse enche de emoo. Essa atitude, no entanto, anterior razo. Alves GL]TXHDDWLWXGHYDORUDWLYDpDPDLV IXQGDPHQWDOQR UHODFLRQDPHQWRdo homem com o mundo. E so os valores que criam a necessidade e a SRVVLELOLGDGHGDUD]mR$UD]mRpIXQomRGRVYDORUHV18.

    'LDQWHGRH[SRVWRDFLPDSRGHVHQRWDUSRUTXHDOLQJXDJHPGHYHUiUHPHWHUVHPSUHDRVXMHLWRjFRPXQLGDGHTXHDXWLOL]D6HRVLJQLFDGRGDSDODYUDpR VHXXVRFRQWH[WXDOL]DGRH WHPHVVHDVSHFWRYDORUDWLYRdeterminada linguagem dar sempre os valores do grupo que a utiliza. A linguagem falar do homem que a elaborou. Ela d, portanto, a estrutura dos valores de determinada comunidade.

    Aqui, o conceito Wittgensteineano de jogo de linguagem til para compreender o papel da linguagem na construo da religio.

    2. O papel da linguagem na construo da religio

    Dada a relao entre corpo e linguagem no pensamento alvesiano, cabe agora tentarmos analisar como esta ltima desempenha um papel fundamental na construo da religio.

    Para Alves, toda religio um jogo de linguagem. Cada discurso religioso aponta para um grupo que compartilha valores e, por isso, esse discurso estabelece uma viso de mundo que ser compartilhada pela comunidade que o utiliza.

    17 ALVES, 2006 p. 27.18 ALVES, 2006, p. 28.

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    A religio uma forma de falar do mundo. Essa forma de discurso determinada socialmente e transmitida aos novos membros com o intuito de preservar os meios de sobrevivncia j conhecidos pela comunidade.

    Os jogos de linguagem propostos por Wittgenstein nos mostram que toda linguagem se constitui em um grande jogo. Criam-se regras para que as palavras possam ser usadas e possam possuir determinado sig-QLFDGRQXPDGHWHUPLQDGDFRPXQLGDGHGH WDO IRUPDTXH UHSUHVHQWHPYDORUHVSDUDDUHIHULGDFRPXQLGDGH'HVWDIRUPDDRDUPDUDUHOLJLmRcomo jogo, Alves aponta para a precariedade de toda construo religio-sa. Uma vez que a religio se funda sobre a linguagem e que toda lin-JXDJHPH[SUHVVDRVYDORUHVGHXPDFRPXQLGDGHFKHJDPRVjFRQFOXVmRTXHWRGDUHOLJLmRpXPMRJRGHOLQJXDJHPTXHH[SUHVVDYDORUHVKXPDQRV

    Para Alves, o homem cria a religio porque quer viver em um mun-do que faa sentido. Ele quer transcender a natureza, transform-la em H[WHQVmRGRVHXSUySULRFRUSR(DUHOLJLmRGHVHPSHQKDXPSDSHOLPSRU-tante nessa funo. Ela o sonho coletivo de uma determinada comuni-dade que v o seu prprio mundo atravs da linguagem que criou.

    Pelo fato de a religio ter na linguagem a sua base, ela s pode ser H[SUHVVmRGHYDORUHVKXPDQRVHSRULVVRRIDODUUHOLJLRVRpFDUUHJDGRde emoo. A religio se liga de forma fulcral necessidade bsica de sobreviver no mundo.

    $EXVFDSRUVLJQLFDGRGLDQWHGDQDWXUH]DID]RKRPHPHODERUDUDVideias religiosas de forma que o mundo passe a fazer sentido para alm da frieza da realidade.

    $UHOLJLmRSRUWDQWRQmRYLVDGL]HURTXHRPXQGRpHVVDSUHWHQ-VmRpFLHQWtFD(ODSURFXUDDQWHVGHTXDOTXHUFRLVDH[SUHVVDUDUHODomRKRPHPPXQGRRXQD WHQWDWLYDGHFULDUXPPXQGRTXHVHMDH[SUHVVmRdesse prprio homem.

    Pode-se perceber que Alves funda a religio sobre um aspecto hu-PDQLVWDDVVLPFRPR)HXHUEDFK0DU[H)UHXG$UHOLJLmRpYLVWDFRPRDOJRFRPSOHWDPHQWHKXPDQRFRPRH[SUHVVmRGRGHVHMRGRKRPHPGHviver em um mundo que faa sentido. Nessa perspectiva, o discurso reli-gioso determinado pelas condies materiais de cada comunidade que VHUHODFLRQDFRPDQDWXUH]DGHIRUPDDPDQWHUDH[LVWrQFLDKXPDQD1Rentanto, a superao proposta por Alves em relao a esses autores se d atravs do fato de que, para Alves, que aqui segue Cassirer, o homem no

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    pGHQLGRDSHQDVFRPRVHUUDFLRQDOPDVFRPRVHUVLPEyOLFR&RPRWDODRDSHODUSDUDDUHOLJLmRRKRPHPH[HUFHRTXHKiGHPDLVGLYLQRHPsi, a saber, seu poder simblico.

    2GLVFXUVRUHOLJLRVRpH[SUHVVmRGRGHVHMRKXPDQRGDtVHUWmRLP-SRUWDQWHSDUD$OYHVDGHQLomRIUHXGLDQDGRKRPHPFRPRVHUGHGHVHMRNa necessidade humana de sentido est a fonte da linguagem, e nesta, DIRQWHGDUHOLJLmR$RH[SUHVVDUWDOQHFHVVLGDGHRKRPHPpFDSD]GHsuperar a frieza do real e entrar no mundo do possvel. Dessa forma, a linguagem enquanto base da religio d ao homem o que ele necessita para viver em um mundo com sentido.

    Nesse ponto, muito importante para o pensamento alvesiano o dilogo que ele mantm com as cincias sociais, principalmente com RV VRFLyORJRV GH FRUUHQWHV PDU[LVWDV FRPR 3HWHU %HUJHU H 7KRPDVLuckmann. Alves, em seus primeiros escritos sobre religio, assumir a SRVWXUDDGRWDGDSRUHVWHVVRFLyORJRVHFRPRHOHVDUPDUiTXHDUHOLJLmRH[HUFHXPDIXQomRGHPDQXWHQomRGHXPDGHWHUPLQDGDRUGHPFULDGD

    Mesmo a linguagem sendo aquela que constri os mundos, nota-se co-mumente que muito difcil mant-los em funcionamento. Berger aponta nessa direo e tenta mostrar que, como toda construo humana, a religio WDPEpPQmRHVWi LVHQWDGDQHFHVVLGDGHGH OHJLWLPDo}HV(VVHDXWRUDU-PDHPVHXOLYUR2GRVVHOVDJUDGRTXHSDUDHVTXHFHUDSUHFDULHGDGHGDconstruo do mundo humano e para que o homem no caia em um estado de anomia, a religio constitui uma poderosa fora para tornar plausveis e duradouras as construes sociais da realidade. Isso feito quando se insere tais construes num mundo mais abrangente, isto , um mundo sa-JUDGRTXHOHJLWLPDMXVWLFDHH[SOLFDDVPD]HODVGRFRVPRVHODERUDGRSHORhomem, dando a elas um carter ontolgico que na verdade no possuem.

    A linguagem, portanto, cria o mundo, estrutura-o e depois o legitima para que o sentido se conserve diante da ameaa do caos e da desagrega-o. Dessa forma, a linguagem se constitui como tentativa de conceber WRGRRXQLYHUVRFRPRKXPDQDPHQWHVLJQLFDWLYR1RHQWDQWRYiULDVYH-]HVHVVHVLJQLFDGRFDRFXOWRSDUDRVLQGLYtGXRVHDUHOLJLmRSDVVDDWHUuma funo alienadora.

    Se por um lado a religio pode manter esse carter de tentativa de ma-QXWHQomRGDRUGHP$OYHVSURFXUDUiPRVWUDUTXHQRQDOpDH[SHULrQFLDreligiosa de cunho estritamente emocional que d sentido religio.

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    Alm disso, Alves indica como a religio pode desempenhar uma funo desalienadora que passar pelo mbito poltico e ter papel fundamental na construo de uma nova sociedade. Tal funo desa-OLHQDGRUDVyVHUiSRVVtYHOSDUD$OYHVVHDUHOLJLmRGHL[DUGHVHUYLVWDapenas como uma srie de rituais e passe a ser uma ao efetiva no PXQGR$ FUtWLFD SURSRVWD SRU0DU[ p DVVXPLGDSRU$OYHV VREXPDQRYDSHUVSHFWLYD5HDOPHQWHDFUtWLFDGRVFpXVVHWUDQVIRUPDHPFUt-tica da terra, a crtica da religio se transforma em crtica do direito H D FUtWLFD GD WHRORJLD VH WUDQVIRUPD HP FUtWLFD GD SROtWLFD19. Com LVVR$OYHVQmRTXHUHOLPLQDUDUHOLJLmRFRPRSUHWHQGH0DU[PDVVLPmostrar que ela pode e deve desempenhar um carter transformador do PXQGR(VVH~OWLPRpHQWHQGLGRFRPRGiGLYDGH'HXVHSRULVVRo homem, enquanto criatura de Deus, deve se colocar como agente do Seu Reino, visando transformar o mundo. Tal transformao se dar por meio da poltica. O homem ser responsvel por trazer o Reino de Deus terra e isso s ser feito se a religio assumir sua funo de GRDGRUD GH VLJQLFDGRV (VWHV QmR VmR YD]LRV QHP WUDQVFHQGHQWHVmas, sim, histricos, pautados na vivncia humana. Esta temtica H[SOLFLWDGDSRU$OYHVHPVXDGLVVHUWDomRGHPHVWUDGRHHPRXWURVWUD-balhos posteriores. O tratamento desse ponto, contudo, vai alm dos objetivos do presente artigo.

    3. O fenmeno da converso como mudana de linguagem

    Para se aderir a uma determinada religio, sempre necessrio que haja algum tipo de converso. Nas sociedades mais primitivas, tal SURFHVVRpFKDPDGRFRPXPHQWHGHULWRGHSDVVDJHP2LQLFLDQWHpobrigado a passar por uma prova que ateste que ele est pronto para ser encarado como adulto por sua comunidade. Nas comunidades crists, acontece a converso e posteriormente o batismo.

    190$5;.DUO(1*(/6)ULHGULFK ,QWURGXomRD FUtWLFDGDORVRDGRGLUHLWRGHHegel.7UDGXomR$UWXU0RUmR&RYLOKm/XVRVRD3UHVVS'LVSRQtYHOHPKWWSZZZOXVRVRDQHWWH[WRVPDU[BNDUOBSDUDBDBFULWLFDBGDBORVRDBGRBGLUHL-WRBGHBKHJHOSGI!$FHVVRHPMDQ7tWXORRULJLQDO=XU.ULWLNGHU+HJHOVFKHQ Rechtsphilosophie.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 181

    O processo de converso, para Rubem Alves, consiste em uma mu-dana de linguagem.

    Alves considera como motivo para a escolha dessa mudana de lin-guagem a falta de sentido do discurso religioso que ampara uma religio diante do mundo. Para ele, a lgica do cotidiano a lgica da linguagem. Alves concorda com Wittgenstein em que os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo. Como toda a humanidade estrutu-rada pela linguagem, um abalo forte nas estruturas lingusticas faz com TXHRPXQGRFRQVWUXtGRSRUHVWDOLQJXDJHPHQWUHHPFRODSVR4XDQGRLVVRRFRUUHRKRPHPFDVHPDOJRHPTXHVHDSRLDU$OLQJXDJHPTXHlegitimava a vida passa a no mais fazer sentido para a conscincia hu-mana. O homem entra num estado de anomia, em que se v diante de XPDH[LVWrQFLDVHPVHQWLGRDKDUPRQLDHQWUHRHXHRPXQGRpTXHEUDGDA conscincia uma estrutura de equilbrio precrio. A perda desse equi-lbrio leva a uma rebelio do ego e a uma desestruturao do mundo20. Como atesta Berger, a religio uma forma de legitimao que confere um status ontolgico s instituies sociais, colocando-as dentro de uma estrutura de referncia csmica sagrada214XDQWRjH[SHULrQFLDGDFRQ-verso, o que se v no seu incio uma crise dos sistemas de referncia. 6HJXQGRDUPD$OYHVRPRPHQWRGHGHVHVWUXWXUDomRGDFRQYHUVmRHV-tabelece as bases para a esperana utpica. Ou mais precisamente: por implicar a desintegrao dos topoi em que o homem se encontrava, ela WRUQDDYLVmRXWySLFDQHFHVViULD22.

    Tal viso nos leva a concluir que a converso consiste em uma ten-tativa de reestruturar, por meio da imaginao, a harmonia perdida pelo IUDFDVVRGDOLQJXDJHPTXHH[SOLFDYDRPXQGRYLJHQWH8PDYH]DFRQ-WHFLGRLVVRpQHFHVViULDXPDQRYDIRUPDGHH[SOLFDUDUHDOLGDGH1HVWHmomento h a converso. Esta, em qualquer uma de suas formas, uma tentativa de resgatar o sentido do mundo diante do caos que se instaurou pela perda dos sistemas de referncia.

    A converso, portanto, segundo Alves, uma tentativa de reestruturar a linguagem de forma a tentar viver em um mundo que novamente faa

    20 ALVES, 2007, p. 129-131.21 BERGER, 2009, p. 57.22 ALVES, 2007, p. 136.

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    VHQWLGR3RULVVRFRQYHUWHUVHVLJQLFDPXGDUGHOLQJXDJHP8PDYH]TXHessa ltima estrutura o mundo, ela nos condiciona a v-lo de acordo com DVXDSUySULDHVWUXWXUDLVWRpHODQRVHQIHLWLoDHFRORFDWRGDVDVFRLVDVdentro de um quadro de referncia. Logo, uma alterao brusca nesse qua-dro far com que o homem mude a sua forma de ver o mundo.

    Converter-se a uma religio, para Alves, aceitar o novo discurso proposto por uma comunidade religiosa e abandonar o discurso antigo que passou a no mais fazer sentido. Converter-se uma tentativa de reestrutu-rar, por meio da adoo de uma nova linguagem, a ordem da conscincia. uma tentativa de fazer com que a ordem prevalea sobre o caos.

    &DEHUHVVDOWDUTXH$OYHVFRPSUHHQGHTXH WDOH[SHULrQFLDGHFRQ-YHUVmRQmRpXPSURFHVVRUDFLRQDOMiTXHQmRpXPDH[SHULrQFLDREMHWL-va, mas subjetiva diante do mundo. As coisas permanecem como eram antes, a relao entre o sujeito e a realidade que se transforma. Nesse momento, ocorre um milagre, atravs do qual a conscincia ressuscita WUDQVJXUDGDVHPFDXVDQDWXUDO(ODWHPXPDYLVmRGHXPPXQGRTXHpnovo, mas que o mesmo.

    $OYHVDUPDTXHWDOPXGDQoDGHOLQJXDJHPQmRWHPQRVXMHLWRVXDFDXVDHFLHQWHLHHOHQmRpRDJHQWHGDWUDQVIRUPDomReXPPLODJUHSegundo o autor,

    RKRPHPTXHSDVVRXSHODH[SHULrQFLDGDLOXPLQDomRVDEHDSH-QDVGHXPDFRLVDQmRIRLHOHDFDXVDHFLHQWHRVXMHLWRGHVVDWUDQV-formao. No foi o poder de sua impotncia que gerou a sua fora. Seu poder vem de uma fonte que no o seu eu. No nasce do seu interior, como liberao de energia ali acumulada. Ao contrrio, tudo se passa como se ele tivesse sido repentinamente apanhado por um WRUYHOLQKRGHSRGHUTXHOKHpH[WHULRU23.

    $QRYDIRUPDGHYHUHSHQVDURPXQGRQDVFHPVHPRDX[tOLRGHSUR-cessos conscientes. Uma vez que a conscincia est desestruturada, no KiFRPRHPHUJLUGHODXPDQRYDUHDOLGDGHPDVDOJRH[WHULRUpTXHGHYHUipromover tal transformao. Isso leva a uma concluso que Alves mes-PRFRQVLGHUDFRQWUDGLWyULD$WLQJHVHRUHVXOWDGRTXDQGRVHDEDQGRQD

    23 ALVES, 2007, p. 154.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 183

    a esperana de alcan-lo. Resolve-se o problema quando se desiste de UHVROYrOR*DQKDVHRSRGHUTXDQGRVHGHVLVWHGHSURFXUiOR24.

    $OYHVDUPDTXHRKRPHPTXHSDVVRXSHODFRQYHUVmRQmRFRQVH-JXHH[SOLFDUFRPRWDOPXGDQoDVHGHXPDVVDEHDSHQDVTXHHODRFRUUHXTal passagem do estado de anomia para o de encontro com o sentido LQH[SOLFiYHOSRUPHLRGDOLQJXDJHP$H[SHULrQFLDUHOLJLRVDpLQHIiYHOSobre ela, no h um discurso que possa evocar uma relao causal entre a anomia e a descoberta de sentido, somente se constata que o novo ho-PHPYrRPXQGRFRPQRYRVROKRV$OYHVDUPDTXHDQRYDH[SHULrQ-FLDOKHIRLGDGD9HLRGHIRUD0LODJUH&ULDomRGR(VStULWR25. No h, portanto uma mediao lgica para tal processo.

    2DXWRUFRQVLGHUDTXHDH[SHULrQFLDGDFRQYHUVmRDWHVWDRFDUiWHUprecrio e provisrio dos modelos tericos humanos para compreender a realidade. Para ele, h uma descontinuidade entre o racional e o real. $UHDOLGDGHpPDLVFRPSOH[DGRTXHSHQVDPRV1mRQRVHQFRQWUDPRVsobre um plano unidimensional que pode ser projetado DGLQQLWXP, mas DQWHVQRSRQWRGHLQWHUVHomRGHXPDLQQLGDGHGHSODQRVTXHVHLQWHU-rompem, que se negam, que se superam. No possvel, portanto, man-ter-se a idia de uma realidade totalmente previsvel, racional26.

    Como se pode notar, o colapso da lgica introduz uma dimenso PLVWHULRVDQDH[SHULrQFLDUHOLJLRVD(ODVHDSUHVHQWDFRPRXPDQRYDPD-neira de ser em relao ao mundo, uma relao que no pode ser descrita pela lgica da linguagem uma vez que tal realidade lhe escapa.

    2FRQWH~GRGRSURFHVVRHQYROYLGRpSHVVRDOHH[LVWHQFLDOWHPDYHUcom a maneira de ser do indivduo diante do mundo. Para Alves,

    DH[SHULrQFLDGDFRQYHUVmRFRPYHVWHVUHOLJLRVDVRXQmRpXPDpossibilidade permanente aberta ao homem e como tal, um sintoma GDSHUPDQHQWHLQTXLHWDomRTXHQRVFDUDFWHUL]DH[LVWHQFLDOPHQWHHGDpermanente precariedade do mundo em que habitamos. (...) O homem VHFDUDFWHUL]DSHORVHXFRULQTXLHWXP27.

    24 ALVES, 2007, p. 15525 ALVES, 2007, p. 157.26 ALVES, 2007, p. 158.27 ALVES, 2007, p. 162.

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    O homem marcado pelo cor inquietum o ser que busca o sentido diante da realidade. a que a converso, essa metamorfose, d a esse ser a possibilidade de agir de maneira diferente diante do mundo. Alves DUPDTXHWDOPHWDPRUIRVHVHRSHUDSHODPiJLFDGDLPDJLQDomR(FRPRHVWDpGHULYDGDGDHPRomRDH[SHULrQFLDUHOLJLRVDSULPRUGLDOpIXQGD-mentalmente emotiva.

    3RUHVVHPRWLYRSDUD$OYHVRLGHDOFLHQWtFRGHREMHWLYLGDGHVHULDDOJRDQWLKXPDQRXPDYH]TXHRKRPHPVHGHQHFRPRVHUGHGHVHMRser que busca o sentido, ser que, atravs da linguagem, procura, acima de WXGRDVREUHYLYrQFLD7RGRFRQKHFLPHQWRGHYHVHUPRYLGRSHODSDL[mRDQDOQDHPRomRVHUHYHODDPDQHLUDGHVHUGRLQGLYtGXRHPUHODomRDRmundo e de o mundo colocar-se em relao com ele.

    Alves adotar a postura adotada por Rudolf Otto, que converge com DGH:LWWJHQVWHLQSURSRQGRTXHWDOH[SHULrQFLDUHOLJLRVDpLQHIiYHO6H-JXQGRHOHDH[SHULrQFLDGRGLYLQRpDH[SHULrQFLDGHXPDQRYDIRUPDde conscincia que se constitui no autonomamente sobre si mesma, mas DQWHVVREUHXPWUDQVFHQGHQWHTXHHODPHVPDQmRFRQWpP28.

    $ H[SHULrQFLD GR GLYLQR p YLVWD HQWmR FRPR XPD QRYD IRUPD GHFRQVFLrQFLDFRQVWLWXtGDVREUHXPWUDQVFHQGHQWHTXHVHHQFRQWUDIRUDGHVVDFRQVFLrQFLD$H[SHULrQFLDGDFRQYHUVmRQRSHQVDPHQWR$OYHVLD-no, coloca o homem diante desse outro que o transcende, mas este lti-PRSDUDGR[DOPHQWHQmRVHDSUHVHQWDFRPRWRWDOPHQWH WUDQVFHQGHQWHEsse outro, vrias vezes percebido como Deus. No entanto, o conceito de Deus em Alves sofre bastantes mudanas com o passar do tempo.

    $OLQJXDJHPTXHSUHWHQGHIDODUVREUH'HXVSe percorrermos a obra de Rubem Alves, desde os seus primeiros

    escritos, notaremos que a questo de Deus sempre est presente. O autor PDQWpPDUHH[mRVREUH'HXVHPVHXVHVFULWRVPDVDOWHUDPXLWRRROKDUlanado sobre Ele.

    Em sua dissertao de mestrado, Alves aponta para Deus enquan-to transcendente ao homem, uma viso mais clssica que coloca esse

    28 ALVES, 2007, p. 160, 161.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 185

    ser divino como criador e mantenedor de todas as coisas. Deus, nesta SULPHLUDIDVHVHULDWRWDOPHQWHRXWURWUDQVFHQGHQWHHGLIHUHQWHGRKR-PHP$OYHVQHVWHPRPHQWRHVWiH[WUHPDPHQWHLQXHQFLDGRSRUVHXVHVWXGRVWHROyJLFRVHGiD'HXVXPFDUiWHUWUDQVFHQGHQWHTXHVHDSUR[LPDGDTXHOHGDYLVmRFULVWm7DOYLVmRDTXLH[SRVWDYDLFRQWUDDLQWHUSUHWDomRde Gouveia Franco29, para quem Alves no tem esta viso transcendente de Deus nem em seus primeiros escritos. Percebe-se que Franco no leva HPFRQWDDGLVVHUWDomRGH$OYHVPDVFRQVLGHUDRVWH[WRVGHVWH~OWLPRDpartir do livro Da esperana. Se, na interpretao do pensamento de Al-ves, for levada em conta a sua dissertao, a imagem de um Deus trans-cendente se far presente de uma forma muito intensa, principalmente no ltimo captulo da mesma.

    Nos escritos posteriores, provavelmente devido ao contato com Feuer-EDFK0DU[1LHW]VFKHHFRPDVFLrQFLDVVRFLDLV'HXVSDVVDDGHVHPSHQKDUoutra funo. Alves passa a ver Deus no mais como um ser transcendente DRKRPHPPDVFRPRDOJRTXHGHULYDGHVWHSRUVHUH[SUHVVmRPi[LPDGRdesejo e, em ltima instncia, da esperana ltima do homem.

    $OYHVDUJXPHQWDTXHDPRUWHGH'HXVpXPSUREOHPDDQWURSR-OyJLFRTXHRFRUUH HPXPD VRFLHGDGHTXH DVVXPLXR GLVFXUVR FLHQWt-co como nico discurso possvel30. Se nos basearmos na causalidade natural, como faz a cincia, concluiremos que a linguagem de Deus impossvel. Mas se nos basearmos na subjetividade humana, veremos que a linguagem de Deus necessria. Neste tipo de sociedade no h OXJDUSDUDR'HXVPHWDItVLFR(VWH'HXVHQTXDQWRHQWLGDGHPHWDItVLFDpDEDQGRQDGRQRGLVFXUVRPRGHUQR3DUD$OYHV IRLRH[LVWHQFLDOLVPRque criou um novo lugar para Deus, mas Ele no o mesmo. Com efeito, QRVSHQVDGRUHVH[LVWHQFLDOLVWDVWHtVWDVFRPR.LHUNHJDDUG'HXVGHL[DGHVHUXPDHQWLGDGHPHWDItVLFDHSDVVDDVHUXPDH[LJrQFLDGDLQWHULRULGDGHhumana31$OLQJXDJHPVREUH'HXVQmRDSRQWDPDLVSDUDXPREMHWRque estaria l fora, mas sim para o prprio homem. Nessa perspectiva, os assassinos de Deus so seus novos profetas32.

    29 FRANCO, Sergio Gouveia. The concepts of liberation and religion in the work of Rubem Alves. Vancouver, 1987, p. 23. Tese no publicada.

    30 ALVES, 2007, p. 61.31 ALVES, 2007, p. 73.32 ALVES, 2007, p. 78.

  • 186 REFLEXUS - Ano VIII, n. 12, 2014/2

    O mesmo homem que antes tenta dar sentido vida atravs da cincia constata que ela no capaz de responder a seus anseios. $H[SHULrQFLDGRDEVXUGRVH LQVWDXUDHVREUHHVWHDVVXQWRRGLVFXUVRFLHQWtFRQmRSRGHIDODU$PRUWHGH'HXVHQYROYHDLPSRVVLELOLGDGHGHIDODUVREUHRTXHQmRVHSRGHIDODUGHYHVHFDODU'HSRLVGDPRUWHGH'HXV(OHSDVVDDVHUVtPERORGDUHODomR(X0XQGR'HXVQDVFHFRPRH[SUHVVmRGHXPDUHODomR>@$SDODYUD'HXVQmRVHUHIHUHQHPao Eu e nem ao Mundo, mas antes ao hfen, relao invisvel que RVXQH33.

    A situao do homem diante de Deus passa a ser descrita de forma SDUDGR[DODDXVrQFLDGH'HXVpD~QLFDIRUPDGHVXDSUHVHQoDFUHUHP'HXVpYLYHUFRPRVH(OHQmRH[LVWLVVHQRHQWDQWRDFRUDJHPHVWiHPDUPDURVHQWLGRDSHVDUGH

    Essa coragem silenciosa emerge das profundezas obscuras do ser, QmRGHULYDGDIpHP'HXVPDVSHUVLVWHDSHVDUGDPRUWHGH'HXV(VVDcoragem a f absoluta. F que no se relaciona a nenhum objeto. Deus desaparece enquanto objeto para se assumir enquanto esperana34.

    Deus, portanto, visto como esta nsia pela busca de um sentido SDUDDH[LVWrQFLD'HXVVHWUDQVIRUPDHPKRUL]RQWHTXHRKRPHPYLV-OXPEUD'LDQWHGRVLOrQFLRGDPRUWHGH'HXVUHVWDDSHQDVDHVSHUDQ-oD&RPRDUPD$OYHV

    Deus desaparece como objeto. [...] Mas sua presena continua de forma mais estranha, porque ela se anuncia numa conscincia de DXVrQFLDQDVDXGDGHGHXPEHPDPDGRTXHQRVGHL[RXRXTXHDLQGDno veio. E a conscincia de Deus como objeto se transforma em esperana: no uma conscincia de algo, mas no simples tender da conscincia para um imenso vazio que a enche de nostalgia. Nas li-QKDVGH(UQVW%ORFKWHPRVHQWmRGHDUPDUTXHRQGHTXHUTXHH[LVWDDHVSHUDQoDDOLH[LVWHDUHOLJLmRSRUTXHDtVHUHYHODDQRVVDQRVWDOJLDpelo Reino de Deus, o grande projeto utpico que a humanidade no cessa de sonhar mesmo quando, de olhos abertos, ela no tenha con-dies de ver35.

    33 ALVES, 2007, p. 65.34 ALVES, 2007, p. 81.35 ALVES, 2007, p. 82.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 187

    2KRPHPTXHPDWD'HXVVHQWHDQHFHVVLGDGHGHFRORFDUDOJRHPseu lugar e Deus retorna, passando agora a ser o smbolo da esperana ou, nas palavras de Alves:

    2UDRTXHp'HXV"2VtPERORGDSODXVLELOLGDGHGRVPHXVYDOR-res, a promessa da salvao, a realidade onipotente dos meus anseios, o poder da minha fraqueza. Deus o smbolo da esperana: a espe-UDQoDFRUSRULFDGDQD LPDJLQDomR'HVWLWXtGDDHVSHUDQoDPRUUHPos deuses. Destitudos os deuses, morre a esperana36.

    Percebe-se que Deus no habita o lugar dos discursos, a fala sobre 'HXVHVWiLQWHUGLWDGD5HVWDRVLOrQFLRDSHQDVQRPi[LPRXPDWHRORJLDnegativa. Mesmo assim, Ele assume outra forma, assume a forma da HVSHUDQoDTXH IDUi FRPTXHD UHOLJLmRGHL[HGH VHUXP LQYHQWiULRGHcoisas celestes e passe a ser uma atitude em relao ao mundo, visando WUDQVIRUPDUDVFRQGLo}HVGHH[LVWrQFLD'HXVHQTXDQWRVtPERORGDHVSH-rana aquele que motiva o homem a ser de uma forma diferente diante do mundo. No importa mais o que se fala sobre Deus, mas sim como se vive no mundo recebido com ddiva de Deus.

    Percebe-se que falar sobre Deus falar sobre os desejos desse ho-mem. Por isso, todo discurso sobre Deus nada mais que um discurso sobre o ser humano.

    Percebe-se uma semelhana muito grande com Feuerbach nesse ponto. No entanto, h uma diferena entre o pensamento alvesiano e a proposta feuerbachiana.

    Feuerbach coloca Deus como objetivao humana. Em suas pre-lees sobre a essncia da religio, esse autor tenta mostrar que Deus nada mais que um ser imaginrio, uma entidade da fantasia, e, como a IDQWDVLDpDTXLORVREUHRTXDODSRHVLDVHEDVHLD3RGHVHDVVLPGL]HUDUHOLJLmRpSRHVLDXP'HXVpXPVHUSRpWLFR37.

    $OYHVFRQFRUGDFRP)HXHUEDFKTXDQGRHVWHDUPDTXHUHHWLUVR-EUH'HXV p UHHWLU VREUH R KRPHP H WDPEpPTXDQGR DSUHVHQWD'HXV36 ALVES, 2007, p. 145.37 )(8(5%$&+/XGZLJ3UHOHo}HVVREUHDHVVrQFLDGDUHOLJLmR,Q628=$'UDLWRQ

    Gonzaga de. O atesmo antropolgico de Ludwig Feuerbach. 2a ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994, p. 153.

  • 188 REFLEXUS - Ano VIII, n. 12, 2014/2

    como ser potico. De acordo com Alves, Deus pode sim ser visto dessa IRUPDSRLVQDSRHVLDRTXHHVWiHPMRJRWDPEpPpDWHQWDWLYDGHH[SUL-PLURLQH[SUHVViYHO6H'HXVpSRHVLDHDSRHVLDpH[SUHVVmRGRGHVHMRKXPDQR'HXVSRGHVHUWRPDGRFRPRIRUPDGHUHDOL]DUHVVDH[SUHVVmREm Alves a religio tambm poesia, embora revele algo humano: os desejos do corao humano, assim como a esperana do homem diante da vida. Encarar a religio como poesia faz com que se evitem os dog-matismos, uma vez que sobre ela no recair a pergunta sobre a verda-GHRXDIDOVLGDGH)DODUVREUH'HXVpVHPSUHID]HUSRHVLDpH[SUHVVDUdesejos de um mundo melhor para os indivduos. Encarar Deus como SRHVLDpHQFDUiORFRPRH[SUHVVmRKXPDQD1RHQWDQWRDVVLPFRPRHP0DU[HP$OYHVQmRKDYHULDXPDHVVrQFLDKXPDQDLQGHSHQGHQWHGDVcondies materiais. O homem determinado pelas condies materiais, e como qualquer discurso sobre Deus , na verdade, sobre o ser huma-no, tal discurso aponta tambm para a sociedade em que esse homem est inserido.

    Deus no mais visto como ser transcendente, mas como horizonte a que todo indivduo tende. Deus assume ento a mesma funo de uma esperana utpica a ser concretizada na terra. Ele ir se associar de forma direta ao desejo de criar uma ordo amoris, um mundo que faa sentido. Para que tal objetivo ocorra, preciso que a religio desempenhe outro papel, o de construir uma ordem social que possibilite ao homem viver essa esperana.

    O reino de Deus assume uma dimenso no-transcendente, mas completamente imanente e social. , portanto, um reino poltico, em que a justia social prevalece e o homem retorna ao den38.

    A linguagem que quer falar sobre Deus, falar sobre justia social, sobre condies materiais dignas para os indivduos, sobre a esperana de viver em um mundo que faa sentido. No ser uma linguagem capaz de abarcar o transcendental, mas ser uma prtica visando fazer com que o homem retorne ao den.

    1HVVH VHQWLGR$OYHV DR UHHWLU VREUH'HXV QmR VH UHIHUH D XPser transcendente, mas a um ser que age na histria do homem e que H[SUHVVmRGHVWH38 ALVES, 2003, p. 140,141.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 189

    Como aponta Cervantes-Ortiz,

    o deus da religio no se entende nem se vive racionalmente; de fato h tantos deuses, sem a possibilidade de se harmonizarem, quan-WRUHOLJL}HVHOHVVmRKLSyWHVHVYLWDLVVLQWRPDVGHXPDLPHQVDYD-ULHGDGHGHSURMHWRVGHYLGDPRWLYRSHORTXDOVHUHYHODLPSRVVtYHOdizer qual o verdadeiro. O discurso religioso surge do corpo do ser humano, de cada homem/mulher, de sua unicidade absoluta39.

    Com o passar do tempo, o discurso alvesiano sobre Deus passa a ser XPGLVFXUVRVREUHRFRUSR1XPDHQWUHYLVWDFRQFHGLGDD%XHQO$OYHVesclarece:

    8PDTXHVWmRTXHSRVWHULRUPHQWHFRXRXWRUQRXVHLPSRUWDQWHpara mim, foi a questo do corpo. Compreendi que todas as lutas que VHWUDYDPWHPD~QLFDQDOLGDGHGHID]HUFRPTXHRFRUSRVHMDIHOL]No h absolutamente nada no mundo mais importante que o corpo. 6HQyVID]HPRVDUHYROXomRD~QLFDQDOLGDGHGDUHYROXomRpSHU-mitir que os corpos no tenham medo, que possam dormir em paz, que possam trabalhar em paz, que possam criar o amor, que possam WHUVHXVOKRV4XHSRVVDPYLYHURIXWXURVHPPHGRVHPDQJ~VWLDVEnto, meu pensamento sobre Deus transformou-se realmente em um pensamento sobre a libertao do corpo. Alm disso, para os cristos, RPDLVDOWRVtPERORUHOLJLRVRTXHH[LVWHpRVtPERORGDUHVVXUUHLomRGRFRUSR5HVVXUUHLomRGRFRUSRVLJQLFDDRPHQRVGXDVFRLVDVOL-berdade e dignidade. So para mim os dois valores mais elevados da religio crist40.

    O corpo, esquecido pelo discurso teolgico, retomado por Alves, que o coloca como centro do discurso sobre Deus. Este posto como es-perana para o corpo. relevante dizer que o corpo aqui no entendido como uma estrutura biolgica, mas sim como algo construdo cultural-PHQWHSRUPHLRGDOLQJXDJHP&RPRDUPD1XQHV39 CERVANTES-ORTIZ, Leopoldo. A teologia de Rubem Alves: poesia, brincadeira e

    erotismo. Campinas: Papirus, 2005, p. 152.40 9=48(=%8(1),//XLV5XEHP$OYHV\ODWHRORJLDGHOFXHUSR,Q&(59$1-

    TES-ORTIZ, Leopoldo. A teologia de Rubem Alves: poesia, brincadeira e erotismo. Campinas: Papirus, 2005, p. 171.

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    o corpo vive assim uma tenso permanente entre o assdio do passado, dos smbolos herdados, presentes nas bibliotecas, museus, monumentos e as vozes do futuro que emergem no mais profundo de nossas entranhas, indicando caminhos novos. Ele uma encruzilhada de discursos, uma instncia de negociao permanente, de resoluo HFULDomRGHFRQLWRVGHDOHJULDHGHGRU(OHpDRPHVPRWHPSRSDV-sado e futuro, memria e esperana. O corpo o centro do universo41.

    atravs do corpo que Deus se manifesta ao homem, garantindo a possibilidade da esperana. Esperana material que se realiza no futuro. Projeto utpico do homem.

    Dessa forma, percebe-se que a viso alvesiana sobre Deus sofre uma alterao com o passar do tempo. De um Deus transcendente, Alves passa viso de Deus como horizonte para a concretizao dos desejos KXPDQRV7DOUHDOL]DomRVypSRVVtYHODSDUWLUGRUHVJDWHGDVLJQLFDomRdo corpo como a parte mais importante do ser humano, uma vez que atravs dela que o homem se faz ser-no-mundo.

    5. A religio como linguagem da esperana

    7HQGRHPYLVWDRTXHIRLH[SRVWRDFLPDFDEHDJRUDUHVVDOWDUFRPRDreligio pode ser encarada como linguagem da esperana no pensamento alvesiano.

    J foi visto que a religio linguagem, uma forma de falar sobre o mundo, e nessa fala o que est em jogo o desejo humano de viver em um mundo que faa sentido, a tentativa de antropologizar o mundo. No entanto, para que isso acontea, preciso que o ser humano seja movido por algo. Esse algo que o move na construo da religio a esperana.

    2FRQFHLWRGHHVSHUDQoDDGRWDGRSRU$OYHVpOLJDGRDXPDWHRULDGDUHDOLGDGH6HJXQGR$OYHV

    Esperana uma teoria da realidade: uma suspeita de que os valo-UHVPHVPRQDVXDQmRH[LVWrQFLDIDWXDOSUHVHQWHVmRPDLVUHDLVTXHRV

    41 NUNES, Antonio Vidal. A cincia e o homem no pensamento de Farias Brito e Ru-bem Alves. Vitria: EDUFES, 2007, p. 207, 208.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 191

    fatos imediatamente dados. Esperana a suspeita de que o que im-portante agora se revelar como poderoso no futuro. uma rejeio do positivismo. Por isso o homem capaz de enfrentar a dor e o sofrimen-to. Ele os vive como acidentes provisrios, a serem conquistados no futuro. Enquanto permanecer a esperana, a estrutura da personalidade SHUPDQHFHUiWDPEpP4XDQGRHQWUHWDQWRDHVSHUDQoDHQWUDHPFRODS-so, a personalidade se desintegra. Porque o colapso da esperana o meso que reconhecer os valores como iluses e a brutalidade dos fatos sem sentido como realidade. S lhe resta ento entregar-se s estruturas de poder do seu tempo-presente, que so a negao dela mesma42.

    +iFRPRVHSRGHYHUXPDUHODomRtQWLPDHQWUHHVSHUDQoDHUHDOL-dade vivida. A esperana uma tentativa de negar o presente dado, uma tentativa de rebeldia contra a dor e o sofrimento.

    7DO WHPiWLFDVH LGHQWLFDFRPRGH(UQVW%ORFKHRXWURVH[SRHQ-WHVGRSHQVDPHQWRPDU[LVWDWDLVFRPR/HV]HN.RODNRZVNLH.DUO0DQ-nheim. Destes autores, Alves retirar a idia de esperana que norteia seu pensamento, estabelecendo o Reino de Deus como o lugar utpico.

    A esperana, tanto em Bloch quanto em Alves, vincula-se ao proje-to utpico entendido como o eterno sempre presente. Segundo Gerardo Cucino, em Bloch

    D ORVRD XWySLFD EXVFD XPD YLD DOWHUQDWLYD LQWHUSUHWDQGR Drealidade humana e csmica como um processo de autoproduo do HVVHQFLDOTXHVHPRYHQDGLUHomRGHXPOXJDUDLQGDLQH[LVWHQWHXtopos) que deveria, ao mesmo tempo, revelar-se como o lugar do vi-ver bem (eu topos), ou seja, justamente o novum de um ser satisfeito HMXVWLFDGRGRWDGRGHVHQWLGR43.

    3HUFHEHVHTXHDORVRDXWySLFDVHYROWDSDUDRIXWXURDLQGDLQH-[LVWHQWHEXVFDQGRIXQGDUDSDUWLUGDSUi[LVXPDQRYDGLPHQVmRSDUDDvivncia humana. Essa nova vivncia tem de se colocar, de forma inevi-tvel, contra o status quo.

    42 ALVES, 2007 p. 145.43 CUCINO, Gerardo. Messianismo ateu como meta-religio. In: GIORGIO Penzo;

    ROSINO, Gibellini (orgs.). 'HXVQDORVRDGRVpFXOR;;. 2 ed. So Paulo: Loyola, 2000, p. 263-264.

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    3RGHVH QRWDU TXH D ORVRD XWySLFDPDQWpPXPD UHODomRPXLWRSUy[LPD FRPR SHQVDPHQWR UHOLJLRVR( LVVR QmR DSHQDV SHOR IDWR GHFRQWHUHPVLXPDORVRDGDUHOLJLmRGHYLGRjSUHVHQoDGHXPDFRQV-cincia utpica, mas tambm por realizar uma interpretao antropologi-zante e crtico-religiosa das tradies religiosas, de forma a possibilitar a FODVVLFDomRGHVWDVFRPRUHOLJL}HVKXPDQtVWLFRVXEYHUVLYDVRXUHOLJL}HVWHRFUiWLFRFRQVHUYDGRUDV$ORVRDXWySLFDQHVVHVHQWLGRDSUHVHQWDVHcomo meta-religiosa, ou seja, ela constitui a autoconscincia e ao mesmo tempo a ultrapassagem da religio tradicional, de forma a possibilitar o UHWRUQRGRPLVWpULRjH[LVWrQFLD

    $VtQWHVHSURSRVWDSRU%ORFKHQWUHPDU[LVPRHFULVWLDQLVPRpDOJRTXHLQXHQFLDUiEDVWDQWHRSHQVDPHQWRDOYHVLDQR&XFLQRDUPDTXH

    RPDU[LVPRJHQXtQROHYDSRUpPDVpULRRFULVWLDQLVPRJHQXt-no, e a isso no contribui um mero dilogo em que os pontos de vista sejam abrandados e tornados conciliadores; pelo contrrio: se do lado cristo ainda visada realmente a emancipao dos fracos e oprimi-GRVVHGRODGRPDU[LVWDDSURIXQGLGDGHGRUHLQRGDOLEHUGDGHVHWRUQDe permanece realmente como contedo substancial da conscincia re-volucionria, ento a aliana entre revoluo e cristianismo na guerra dos camponeses no ter sido a ltima, e desta vez com sucesso44.

    3RGHVHQRWDUHP%ORFKTXHWDQWRRPDU[LVPRTXDQWRRFULVWLDQLVPRGHYHPLUDOpPGHVXDVJXUDVDWXDLVMiFULVWDOL]DGDVeSUHFLVRTXHVHredescubram e atualizem seu impulso originrio, que o impulso para a libertao total e para a realizao das esperanas humanas.

    6HJXQGRDUPD&XFLQR%ORFKYrRPDQLIHVWDUVHHVSHFtFDHDXWHQWLFDPHQWHUHOLJLRVR

    desse impulso num peculiar movimento do transcender como ultra-passagem radical fundada numa esperana mais forte do que todas, ou melhor, no totum de uma esperana que pe o mundo inteiro em UHODomRFRPXPDSHUIHLomRLQWHLUD1HVWDXWRSLDGDSHUIHLomRbuscada de modo intransigente como tenso escatolgica para o reino GDYLGDDXWHQWLFD%ORFKGHVFREUHDHVVrQFLDGDUHOLJLmRHWDPEpPR

    44 CUCINO, 2000, p. 265.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 193

    VHXVXEVWUDWRWmRLQVXSULPtYHOTXDQWRGLJQRGHVHUKHUGDGRWDPEpPSRUXPDHVSHUDQoDTXHQmRFRQHPDLVQXPDVDOYDomRWUDQVFHQGHQWH$XWRSLDGRUHLQRDJHFRPRQ~FOHRJHQXtQRHPWRGDVDVUHOLJL}HVPDVHQFRQWUDVXDH[SUHVVmRPDLVGLUHWDHH[SOtFLWDQRPHVVLDQLVPRMXGDLFRHHPVHXSDUDGR[DOSURORQJDPHQWRFULVWmR45.

    Em Bloch, o Reino de Deus enquanto ncleo ltimo da esperana humana necessita da rejeio do Deus transcendente e ao mesmo tempo da rejeio de toda divindade posta como entidade fundante. A elimina-o do prprio Deus como ens realissimum seria condio para a tota-lidade da esperana, uma vez que, presente, Ele tolheria a abertura dos indivduos para o futuro e impediria a ao criativa deles. Enquanto essa perspectiva se mantiver, o futuro se colocar de forma fechada para o homem. Por isso, Deus enquanto ens realissimum precisa ser eliminado.

    A esperana em Bloch vista ento como algo completamente hu-mano que s ser realizado com a participao da classe trabalhadora humanizando o mundo. A esperana, portanto, visa a uma nova realidade que supere o presente. O que no pode ser verdade, e por isso a espe-rana o mbile da ao humana para mudar o status quo que aprisiona o homem.

    Em seu livro Da esperana, tese de doutorado defendida em Prin-FHQWRQHP$OYHVSDUWHGDGHQLomRGRVHUKXPDQRFRPRVHUKLV-trico. Por possuir tal atributo, ele capaz de se abrir para o futuro de forma a tentar construir um mundo que seja humano. Na primeira frase GHVXDWHVH$OYHVDUPD

    O homem um ser histrico. Ele no nasce no mundo das coi-sas, das pessoas e do tempo como um produto acabado. Seu ser no SUHH[LVWHjKLVWyULD7RUQDVHRTXHpDWUDYpVGDKLVWyULDGHVXDVUH-laes com o meio ambiente. No , por conseguinte, apenas um ser QRPXQGRWRUQDVHXPVHUFRPRPXQGR+RPHPHPXQGRQmRVHjuntam como duas entidades estranhas que esto eventualmente numa relao de contato, como se fosse uma mente ou ego que simplesmen-te notasse aquilo que se lhe contrape, ou seja, matria46.

    45 CUCINO, 2000, p. 266.46 ALVES, Rubem. A Gestao do futuro. 2 ed. Campinas: Papirus, 1987, p. 45.

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    O homem um ser aberto, e isso que lhe possibilita ter esperana, que o coloca no reino da liberdade. Alm disso, essa liberdade que lhe permite nomear as coisas de forma que seu contato com o mundo seja mediado pelo desejo humano e no por uma imposio. Tal nomeao feita por meio da linguagem, ela nomeia os objetos do desejo. Da o fato de ser ela algo fundamental na construo do conceito alvesiano de UHOLJLmR6HJXQGRDUPD$OYHV

    A linguagem do homem constitui um espelho de sua historici-dade. Ela no emerge simplesmente do metabolismo que se d entre o ser humano e o mundo, mas proferida como uma resposta s si-tuaes concretas. bvio que linguagem nem sempre consiste na H[SUHVVmRGDKLVWRULFLGDGHKXPDQD>@4XDQGRDOLQJXDJHPpKLVWy-rica, no entanto, ela conta a histria humana, o que no implica uma simples descrio. Ela contm a interpretao humana da mensagem HGRGHVDRTXHHVWHODQoDDRPXQGRDUPDQGRRTXHDFUHGLWDTXHseja a sua vocao, o seu lugar, as suas possibilidades, a sua direo e a sua funo no mundo47.

    Desde seus primeiros escritos, o autor j enfatiza o carter histrico da linguagem, j que ela participa da interpretao do mundo feita pelo homem na tentativa de dar sentido realidade. A linguagem s cumpre esse papel por ser histrica, aberta, capaz de criao, pautada na esperan-a. De acordo com Nunes,

    O que Alves percebeu [...] que uma nova linguagem estava sur-gindo como parte de um processo histrico em que ele apenas contri-EXtDSDUDHODVHWRUQDUYLVtYHO(UDXPQRYRGLVFXUVRTXHH[SUHVVDYDa dor e os anseios de povos, comunidades, minorias que se sentiam H[SORUDGRVHIHULGRVHPVXDVGLJQLGDGHV>@

    0DVDQRYDOLQJXDJHPVRPHQWHSRGHULDVXUJLUFRPRH[SUHVVmRde um homem que sofresse no presente, mas soubesse que a ordem GDGDQmRSRGHULDVHUGHQLWLYD4XDQGRRSUHVHQWHOKHIRVVHDPDUJRe a conscincia voltasse sobre si mesma, recusaria o status quo e bus-caria no futuro de possibilidades adequadas e desejadas. Nisso, o ho-mem realizaria a sua liberdade. Motivado pela esperana, ele correria

    47 ALVES, 1987, p. 46.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 195

    atrs do amanh, o que implicaria sempre um ato poltico, atividade para a qual o homem tem vocao enquanto criador de histria, dina-mizado por uma imaginao engajada48.

    Pode-se observar como os conceitos de histria, de liberdade, de linguagem e de corpo se interligam no pensamento alvesiano. Neste, a esperana parte da conscincia do homem diante de sua situao hist-rica, a qual, por ser como , no pode permanecer no estado em que se encontra. A crena no futuro melhor nasce da insatisfao humana com a condio atual da realidade49. Esta dinmica se efetiva de forma muito PDLVFODUDQDJXUDGRVRSULPLGRVGRVSREUHVGRSUROHWDULDGR'HVVDforma, a dinmica da negao completamente histrica e secular. A histria determinada pela negao e pela esperana. Negao das con-dies atuais que desumanizam o ser humano e esperana de que, no futuro, as condies sejam outras. Segundo Alves:

    O presente negado porque o homem, vivendo nela (histria), apreende tudo aquilo que cria a dor, o sofrimento, a injustia e a ausn-cia de futuro da histria. Devido ao presente ser historicamente doloro-so e, portanto, desumanizante, ele tem de ser negado. A esperana no se deriva de uma idia a-histrica a respeito de uma sociedade perfeita; ela constitui, ao contrrio, a forma positiva assumida pela negao do presente inumano e negativo. A insatisfao da conscincia no se ori-gina da percepo de um padro apriorstico, anterior percepo dos fatos e, por isso, eterno, mas sim de seu desacordo com o modelo de futuro obtido a partir de sua percepo da presente realidade. A cons-cincia, assim, parte da histria e para ela permanece voltada50.

    4XDQGR R KRPHP VH GHVFREUH FRPR VXMHLWR KLVWyULFR HOH VH Yrcomo algum que pode gerar um novo amanh, encontrando assim a sua humanidade. A criao da histria, como apontado por Alves, possvel VRPHQWHSRUPHLRGRSRGHUXPDYH]TXHpSRUPHLRGRH[HUFtFLRKLVWyUL-co do poder que se pode negar o inumano e abrir-se para um futuro mais KXPDQR0DVFRPRDUPDRDXWRU48 NUNES, 2007, p. 196-197.49 ALVES, 1987, p. 46-47.50 ALVES, 1987, p. 59.

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    o emprego do poder um ato poltico. Por isso, a nova conscin-cia acredita que um novo homem e um novo amanh s sero criados por meio de uma atividade caracteristicamente poltica. A poltica se-ria, assim, a prtica da liberdade, uma atividade do homem livre com R LQWXLWRGH FULDU XPQRYRDPDQKm1HVVH FRQWH[WR DSROtWLFDQmRmais entendida como uma atividade de poucos, como um jogo de poder das elites. Antes, ela consiste na vocao do ser humano, pois todos so chamados a participar, de uma forma ou de outra, na criao do futuro51.

    Com isso percebe-se que o falar sobre Deus falar sobre a espe-rana humana. Logo, a religio enquanto linguagem ser a linguagem da esperana humana. A religio passa a assumir ento, no pensamento alvesiano, a funo de ser transformadora da sociedade, ela ser agente GDWUDQVIRUPDomRGRPXQGRXPDYH]TXHVHYrFRPRWHQWDWLYDGHH[-presso do maior desejo humano.

    Concluso

    Percebe-se que a linguagem religiosa, no pensamento alvesiano, abre-se para a esperana e para a tolerncia. Esperana de ver um mundo melhor no futuro e tolerncia ao reconhecer a precariedade de nossas construes, que se apoiam sobre algo to frgil como a linguagem. Nessa perspectiva, a religio enquanto linguagem um horizonte que se oferece ao homem em sua tentativa de viver o mundo com sentido.

    Enquanto a cincia constitui um fator de legitimao da ordem social, a religio constitui um fator crtico da realidade, enquanto a cincia sacraliza o dado, a religio um protesto contra essa sacrali-zao, buscando uma ordem no dada atravs da esperana. Por isso, a religio pode ser entendida como linguagem da esperana no pensa-mento alvesiano.

    51 ALVES, 1987, p. 60.

  • REFLEXUS - Revista de Teologia e Cincias das Religies 197

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    Submetido em: 14/05/2014Aceito em: 06/06/2013