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D JACIR MENEZES

Djacir Menezes - Motivos Alemães

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filosofia e direito

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D JAC IR MENEZES

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Motivos Alemães

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Menezes, Djacir, 1907 —M499m Motivos alemães: filosofia, hegelianismo, marxo- logia, polêmica. Rio de Janeiro, Cátedra; Brasília,

INL, 1977.195p. 21cm.Dados biográficos do autorI. Filosofia alemã 2. Hegel, Georg Wilhelm Fri- drich, 1770-1831 I. Instituto Nacional do LivroII. Título.

CCF/SNEL/RJ-76-0731 CDU — 1 (430) 1 Hegel CDD — 193

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Djacir MenezesProfessor emérito da U.F.R.J.

Ex-Reitor da U.F.R.J.Membro do Conselho Federal de Educação

Motivos Alemães

(Filosofia Hegelianismo -, Marxologia Polêmica)

LIVRARIA EDITORA CÁTEDRA RIO DE JANEIRO em convênio com o

INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA

BRASÍLIA 1977

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1977

Printed in Brazil Impresso no Brasil

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OBRAS DO AUTOR:

I — FILOSÓFICAS* O Problema da Realidade Objetiva. 2$ ed.,

Tempo Brasileiro, Rio, 1972.* Raízes Presocráticas de Teses Atuais. Imprensa

Universitária, Fortaleza, 1957.* O Sentido Antropógeno da História. Organiza­

ção Simões, Rio, 1958.* Hegel e a Filosofia Soviética. Zahar, Rio, 1959

(Premiada pela Academia Brasileira de Letras).* Temas de Política e Filosofia, Rio, 1962.* R. Mondolfo e as Interrogações de nosso Tempo.

Rio, 1963.* Textos Dialéticos de Hegel. Zahar, Rio, 1968.* Evolucionismo e Positivismo na Crítica de Farias

Brito. Universidade do Ceará, 1962.* Proudhon, Hegel e a Dialética. Zahar, Rio, 1966.* Teses quase hegelianas. Editorial Grijalbo, São

Paulo, 1972.* Idéias contra Ideologias. Imprensa Universitária,

Rio, 1972.* Filosofia do Direito. Editora Rio, 1974.* Temas Polêmicos. Editora Rio, 1975.

II — SOCIOLÓGICAS* Diretrizes da Educação Nacional. Fortaleza,

1932.

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* Preparação ao Método científico. Editora Na­cional, São Paulo, 1938.

* . 0 outro Nordeste. 2$ ed., Arte Nova, Rio, 1970.* Teoria Científica do Direito de Pontes de Mi­

randa. Fortaleza, 1934 (traduzido para o Fundode Cultura Econômica, México, 1945).

* Naturgetzlichkeit und soziàles Leben. Forta­leza, 1936.

* O Princípio de Simetria e os Fenômenos Eco­nômicos. Pongetti, Rio, 1939.

* O Ouro e a Nova Concepção da\ Moeda. Alba Editora, Rio, 1941.

* Direito, Socialismo e Confusionismo. Fortaleza, 1934-35.

* A s Elites Agressivas. Organização Simões, Rio,1953.

* Das Leis Econômicas. 2$ ed., Aurora, Rio, 1945.* Estudos de Sociologia e Economia. Organização

Simões, Rio, 1953.* O Brasil no Pensamento brasileiro (antologia).

2^ ed., Conselho Federal de Cultura, Rio, 1970.

DIDÁTICAS* Psicologia. 3 ̂ ed., Livraria do Globo, Porto

Alegre, 1941.* Pedagogia. 3^ ed., Livraria do Globo, Porto

Alegre, 1933.* Princípio de Sociologia. 2^ ed., Livraria do Glo­

bo, Porto Alegre, 1944.* Economia Política. 2% ed., Livraria do Globo,

Porto Alegre, 1933.* Introdução à Ciência do Direito. F. Bastos, Rio,

1954.* Dicionário Psico-Pedagógico, Editora Nacional,

São Paulo, 1935.* Direito Administrativo Moderno, Coelho Branco,

Rio, 1943.

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* Finanças das Empresas. 2^ ed., Forense, Rio, 1968.

* Introdução à Economia. 2$ ed., Editora Nacio­nal, São Paulo, 1958.

* Tratado de Economia Política, Freitas Bastos, Rio, 1955.

IV — LITERÁRIAS* Evolução do Pensamento literário no Brasil.

Organização Simões, Rio, 1954.* Crítica Social de Eça de Queiroz. 3^ ed., Liv.

São José, Rio, 1970.* Vida Social e Criação literária. Ministério da

Educação e Cultura, Rio, 1957.* Poesias heréticas e heresias poéticas. Edição do

autor, Rio, 1970.* Diários de Buenos Aires, de La Paz e do México.

(a sair).* Duas peças de Brecht: Antigona e Vida de Ga-

lileu — tradução e notas (em preparo).

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DJACIR MENEZES

DADOS BIOGRÁFICOS

Nascido em Maranguape (Ceará), em 16 de novembro de 1907, fez o curso de humanidades no Liceu, bacharelou- se em 1930 na Universidade do Brasil. Doutor em Direito (1932) pela Faculdade de Direito do Ceará, onde ocupou, após concurso, a cátedra de Introdução à Ciência do Direito. Catedrático da Faculdade de Filosofia e da Faculdade de Ad­ministração e Economia da U.F.R.J. Atualmente, professor titular de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da U.F.R.J. Professor Emérito e Ex-Reitor da U.F.R.J. no pe­ríodo de 1969-1973. Dirigiu o Centro de Estudos brasileiros em Buenos Aires ( 1953-54) e o Instituto Bolívia-Brasil (1958). Regeu a cátedra de Literatura e Problemas brasilei­ros na Universidade Nacional Autônoma de México (1959).

Atualmente: membro do Conselho Federal de Cultura e Diretor do Centro de Ciência e Filosofia Política, do INDIPO, da Fundação Getúlio Vargas. Do Instituto Histórico e Geo­gráfico Brasileiro. Da Ordem do Mérito Cultural. Etc.

Obras. Dentre as 40 e tantas publicadas, citamos: O Pro­blema da Realidade Objetiva, 2 ed., 1972. — O Sentido An- tropógeno da História (1958). — Proudhon, Hegel e a Dia­lética, 1966. — Teses qua\se hegelianas, 1972. — Idéias contra Ideologias, 1972. — Filosofia do Direito, 1974. — O Outro Nordeste, 1970. — A s Elites Agressivas, 1953. — Princípios de Sociologia, 1944. — Economia Política, 1954. — Evolu­ção do Pensamento Literário no Brasil, 1954. — Poesias heréticas, 1950, (edição do autor). — Etc.

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SUMÁRIO

Prefácio .......................................................................................Introdução .............................. ........................... .................... ..Capítulo /. Nietzsche e Wagner: notas para uma filosofia

da música ......... ......................................................... ..1. A intuição musical de Nietzsche. 2 . Os

matizes emocionais do sonido. 3 . Os im­pulsos proféticos do “Lohengrin” e do “Tannhãuser”. 4 . O anti-vocalismo wag­neriano. 5. A intuição dos itinerários1

Capítulo II. Interpretação hegelüma da tragédia grega1. Poesia, filosofia e religião como formas

de Conhecimento. 2. Prometeu esquilia- no: herói nobremente herético. 3 . A angústia na tragédia esquiliana. 4 . Jus­tiça não é graça dos deuses. A “gens” e a “polis”. A vitalidade do “concreto”. 5. A grandeza do drama esquiliano e o privatismo subjetivista. O Prometeu goe- theano ............................................................

Capítulo JII. VariaçÕés sobre o léxico filosófico de Hegel1. Linguagem e estilo de Hegel. 2 . A ri­

queza semântica do alemão. Os termos

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ambivalentes. O sentido deictico do “Da” . Wirklichkeit e Actuosidade. Outras vozes.4 . Formação de verbos: prefixação no­minal e verbal, com carga especulativa.5 . O valor semântico e especulativo das conjunções. 6. O exercício idiomático 55

Capítulo IV . A s hegelianizações soviéticas .....................1. A “qualidade” como determinação essen­

cial da coisa. 2 . O quantitativismo apaga as oposições qualitativas. 3. O dogmatismo soviético e as hegelianizações heréticas. 4 . Negatividade e organicidade do devenir. 5 . O afã de “materializar” a dialética. 6 . O intuir concreto, unifica- dor de nexos: a verdade é o Todo. 7 . Astúcias da R a z ã o ........................................ 69

Capítulo V. Introdução a Hegel1. Vitalidade e negatividade do conceito.

2 . Juízo predicativo e juízo relacionai.3. O vôo da coruja de Minerva. 4 . Re­trato falso de Hegel. 5. Hegel e o con­servadorismo prussiano. 6. Pensamento, linguagem, tradução ................................... 85

Capítulo VI. A Querela\ anti-Hegel ...................................1. Um catecismo dialético. 2. O pecado

idealista. 3 . O “Begriff” e as incompreen- sões. A relação “sujeito x objeto” . 4 . Conceituação flexível de “matéria” e “objetividade” . 5 . O hegelianismo de Marx. 6 . Marxismo e fatalismo. Distor­ções do crítico. O cabresto dogmático. 107

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Capítulo VII. Teoria da\ Casualidade ou Crítica da Ra­zão Impura ....................................... ................................

1. Representação, Conceito e Idéia. 2 . Do sensibilis ao inteligibilis. 3 . O universal na “coisa”. 4 . A “coisa” em via de desa- parição. 5 . A negatividade das “determi­nações” . 6. A vacuidade do princípio de identidade. 7 . A subversão do pensar diá- lético. 8. Quando se esvai a “reflexão” .9. O Fundamento. 10. Leis tautológicas.11. A vitória da Razão Impura ............ 137

Capítulo VIII. Shakespeare nas lições de Hegel1. A “colisão” . 2 . A mesquinhês da tragédia

moderna. A “inferioridade” shakespea- reana ............................................................... 169

Capítulo IX . Von Martius ....................... .........................1. O balanço científico. 2 . A história social

do povo. 3 . Como escrever a história do Brasil. 4 . As conexões com as correntes mercantis européias. 5 . IntuiçÕes de um p recu rso r.......................................................... 177

Capítulo X . Um livro sobre a Lei Fundamental de Bonn1. A propósito da obra do prof. O. Bitar2. O direito nacional-socialista.3. Os perigos da teia ideológica ................ 189

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Reden wir nur davon, ihr Weisesten, ob es gleich schlimm ist. Schweigen ist schlimmer; alie verschwiegen Wahrheiten werden giftig. (* )

Nietzsche, Also sprcuch Zarathustra.

A s causas da crítica são as causas da crise. Ambas as palavras procedem da mesma raíz gréga. Radicalizar é ir à raíz do mal na ilusão de cortar o mal pela raíz.

Djacir Menezes, Teses Quase hegelianas.

(*) Falemos destas coisas, eminentes sábios, ainda que apor- rinhem. Pior é o silêncio. As verdades que se calam tornam-se ve­nenosas.

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Introdução

Que os motivos determinantes deste livro têm sua inspi­ração nas leituras de autores alemães e nos temas por eles abordados é coisa que o leitor facilmente perceberá no correr de qualquer página, se o título não o convenceu. As implica­ções do pensamento político se desdobram nas arengas que seguem. Por outro lado, minha formação filosófica fez-se, em grande parte, sob influência de autores germânicos, que há vários decênios me ensinam a pensar. O convívio mais assíduo com Kant, Hegel, Marx, Dielthey, Weber, entre ou­tros, sugeriram-me páginas que me pareceram aproveitaveis. Talvez ilusão de autor. No final de contas, nesta altura da vida, não passo de um professor que sempre viveu em função da cátedra e no trato de problemas especulativos; não quero que essa mediocre experiência intelectual se perca. Suponho, um tanto vaidosamente, que ela brinde qualquer perspectiva de alguma rentabilidade crítica.

Já se vê que estou falando sem falsa modéstia. Nem pre­cisam me advertir caridosamente de que não descobri a pól­vora. Mas, julgando pela craveira da produção especulativa que se defeca neste país, não é de todo impertinente o que botei nestas páginas. Assim, rogo como termo de comparação aos que se proponham podar minha petulância, a bondade de in­seri-la na paisagem bibliográfica. É uma voz fraca. Mas que pode ser audível no diapasão filosófico em que sussuram os glosadores indígenas.

Devo abrir aqui uma exceção para o esforço de Miguel Reale, que convocou estudiosos e empenhou-se num labor materializado em mais de uma centena de volumes da Revista

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Brasileira de Filosofia, creditando-se-lhe ainda a proeza de um Congresso Internacional em São Paulo e numerosos con­gressos nacionais. Mas como aquela vibrante exceção confir­ma a regra, volto a insistir no ponto. Destarte, reitero a nota aposta à reedição de um livro publicado há mais de quarenta anos, quando não havia sequer Faculdades de Filosofia. Es­tranhava o teor da pedagogia que viera a lume nos novos órgãos docentes nestes termos:

“Falhos, em sua maioria, de espírito especulativo, os scholars da filosofia universitária apuram a hostilidade contra os que podem voar acima do poleiro de seu ascetismo erudito. Causa pasmo ver como orientam candidatos ao doutoramento, ensinando a caçar coisinhas minúsculas, desenvolvendo peritos na arte de couper des cheveux en quatre — e sufocando, com obstinação meticulosa, qualquer inspiração filosófica que lhes passe ao alcance do arpão pedagógico. A título de reagir contra os autodidatas, esses catadores de pulgas na cabeleira de gigantes, pretendendo preparar pesquisadores (a pesquisa é tudo, o resto quase nada!), acabam produzindo eunucos de erudição temível, que se tornam autores de teses de 50 páginas assentadas no pedestal de 500 de compacta biblio­grafia, onde provam questiúnculas capazes de anestesiar as mais alertas inteligências. E o diabo é que pensam prestar serviços à Filosofia”.1

Aqui recordo as remotas palavras de Nietzsche, que afi­nam na mesma clave: “O que se pretende é ensinar a odiar ou a desprezar a Filosofia? Chega-se a ponto de pensar, quan­do se sabe a que torturas têm de submeter-se os estudantes nos ̂exames de Filosofia para imiscuir nos pobres cérebros os casos mais obsoletos e malucos, ao mesmo tempo os mais altos e abstrusos (schwerfasslichsten Einfalien) que produ­ziu o engenho humano”. Nietzsche revoltava-se contra essa “crítica de palavras sobre palavras (Kritik der Worte ueber Worte), sem que nas Universidades se ensinasse o verdadeiro método crítico e reflexivo, capaz de mostrar a vacuidade dos preconceitos ambientes, com as cátedras povoadas de catado-

(1) Djacir Menezes, O Problema da Realidade Objetiva, Biblio­teca Brasileira, Rio, 1971, p. 163.

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res de pulgas, — aquela “raça débil” que enraivecia Scho- penhauer, ein schwachliches Geschlechí ouf den Kathedem herrscht.

Outro ponto — e neste trabalho há dois pontos funda­mentais — é o apego, ou melhor, o fascínio que a cultura alemã exerceu no meu espírito no que toca à Filosofia. Refi­ro-me à Filosofia, — porque na Literatura fui, como toda minha geração, atraído pelo magnetismo da Literatura fran­cesa, de onde irradiavam as idéias do revolucionarismo dix- huitard. Aos vinte anos, no último ano do curso jurídico, deu-se o encontro com Hegel. Quem me apresentou? Karl Marx. Apresentou-o a seu modo, dizendo que repusera a dia­lética nos seus verdadeiros pés, no que então facilmente acre­ditei. Antes, eu já fizera estágio na filosofia biológica, rumi- nara darwinismo, bem como o sociologismo conseqüente que circulava no nordeste na década de 20. Eis senão quando o famoso prefácio da segunda edição de Das Kapital me anun­ciou o problema da dialética posta de cabeça para baixo por Hegel (sie steht bei ihm auf dem K op f) — e Marx pretendia desmistificá-la, tirando-lhe o miolo idealista.

Atrapalhado por essas notícias, custei muito a compreen­der o verdadeiro sentido da dialética hegeliana. O materialis­mo biológico, que Ingenieros pusera em linda mancebia com o materialismo histórico, me resguardava da metafísica espi­ritualista, mas produzia um duplo efeito: também me impedia de comprender toda a amplitude do horizonte hegeliano. Tais aspectos ressurgem em várias passagens deste livro.

A verdade é que só pude enfrentar o tema quando venci o preconceito marxista. Ou melhor, fui vencendo: porque foi se extinguindo paulatinamente, a medida em que compreen­dia o conceito hegeliano de “Espírito”, bem diverso do que se desprendia daquelas formas herdadas da metafísica tradi­cional. Os marxistas, jurando nas palavras de Marx (que re­petia Feuerbach e Bruno Bauer), não se cansam ainda hoje de dizer que Hegel metamorfoseara Deus na Idéia (a explica­ção vinha de Feuerbach). Acusavam Hegel de ser um agente secreto da Teologia, empenhado em confeccionar perniciosa­mente um Jeová abstrato. Mas os teólogos, por outro lado, não se enganavam com a tapeação: farejavam em Hegel um hereje

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astucioso, que fingia adorar o que, na verdade, estava destruin­do à sorrelfa.

O certo é que a ladainha anti-idealista, entoada nos ar­raiais marxistas anos a fora, ressoa bem alta na igreja sovié­tica: o idealismo é o Diabo assalariado para cumprir tarefas traiçoeiras, pago pelo imperialismo americano.

Idéia puxa idéia, livro puxa livro — e tive que estudar também os antepassados espirituais de Hegel. Foi por isso que andei vagueando pela teologia protestante, nos meus intervalos de magistério e algumas vezes por solicitação da própria cáte­dra. O lastro da teologia protestante, que está no hegelianismo, é bem maior do que presumem os epígonos do começo do século. Tal convicção se reforça na leitura da publicação dos textos inéditos, que deram novo impulso à crítica histórica. Na genealogia espiritual do estudante do Stift estão Jacob Boehme, Meister Eckhart, os panteistas românticos que per­turbaram Hoelderlin. Quantos motivos irradiam do pensa­mento alemão e despertam o interesse do estudioso! Princi­palmente daqueles que vêm de outras fronteiras e de outros idiomas.

* * *

Por que Motivos alemães? Repito: simplesmente porque as idéias discutidas foram lidas em textos alemães e consti­tuem o leit motiv mais constante destas páginas. São idéias universais, — trago-as a debate com o sinete de seus autores. Vale o pensamento litigioso, o drama dialogal, o sentido po­lêmico do desvendar de caminhos, que se exprime na cdetheia grega. Mesmo versando assuntos universais, eles me vieram pelo conduto daqueles pensadores freqüentemente citados aqui. De modo que, na aparente diversidade dos temas, há uma convergência especulativa, que lhes dá unidade e congruência.

D. M.

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I

NIETZSCHE E WAGNER: notas para uma fi­losofia da música.

1. A intuição musical de Nietzsche. 2 . Os matizes emocionais do sonido. 3 . Os impulsos proféticos do “Lohengrin” e do “Tannháuser”. 4 . O antivocalismo wagneriano. 5 . A intuição dos itinerários.

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Bei Wagner ífteht im Anfang die Halluzina- ñon: nicht von Tõnen, sondem von Gebarden.

Nietzsche.

1. A intuição musical de NietzscheNietzsche, numa de suas intuições geniais, exaltou a força

expressiva que o mito desempenha na tragédia grega. Sua vitalidade plástica vibra no teatro esquiliano, onde a música, encarnada no coro, ressoa impregnada da ananké religiosa, O sentido profundo da música, com tons de mistério, aqueceu a imaginação do filósofo desatinado na fanática admiração por Richard Wagner, ao qual dedicou sua Die Geburt der Tragõdie. Inspirado, como Wagner, nas teses schoperihaue- rianas, teve os relâmpagos de compreensão que o pensamento domesticado da época recebeu como afrontas ao senso comum. “Quel Satan a fait de vous un pédagogue!” — exclama Wag­ner em uma de suas cartas.1

Interessa-nos a maneira como viu a conexão entre o sen­tido do trágico e a expressão musicalmente vigorosa da vis my­thica. Ao baixar das alturas de Ésquilo, onde o drama vive a colisão das forças que representam conflitos anímicos (que a psicanálise trouxe, nas interpretações básicas, à tona da consciência moderna) — para o nível humano e burguês de Eurípides, sente-se, nesse perder de altitude, a transição da hora dionisíaca para o equilíbrio apolíneo, usando aqui as palavras de Nietzsche. Os começos da arte lírica, que já bal­bucí ava nos intervalos dos espantos trágicos, entre homens e

(1) D. Halevy, La Vie de Frédéric Nietzsche, p. 107, Calmann Levy, Paris, s/d .

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deuses em luta brava, começou a amainar em Sófocles: é o caminho que leva ao mundo euripidiano, cada vez mais apo­líneo e menos dionisíaco, isto é, cada vez mais dentro das serenidades clássicas e menos sacudido pelas vertiginosidades do romântico.- Nos dois adjetivos de Nietzsche está a uni­dade heraclitiana dos contrários, no nível vital, simbolizando o progresso contínuo (foríwaehrenden Fórtschriften) — “a natureza dupla exprime-se na poesia da máscara trágica, e, sobretudo, na tragédia” . Coube à música alemã, e, especial­mente, a Richard Wiagner, a missão1 de retomar a linha de Esquilo e Sófocles.3

A análise de Nietzsche, malgrado os exageros passionais do paraneóide, denuncia a intuição excepcional do filósofo na percepção do valor íntimo do trágico, captável através da mú­sica conjugada à força plástica do mito. Mas o mito com a densidade humana que nos revela o estudo do paleopsiquismo. Em Eurípides, a degenerescencia daquele pathos se acusa: esmorece o papel imenso e profético do coro, altera-se a fei­ção dos ditirambos e de outras figuras rítmicas, simultanea­mente com a debilitação dos valores religiosos que tão alto pulsam em Ésquilo. £ que todo o mundo social em torno se aburguesara: as classes mercantis enriqueciam, os antigos status aristocráticos se rompiam, o pensamento filosófico se gol­peava de clarões heréticos, definiam-se novos padrões de con­duta política, — e a tragédia descia dos cimos religiosos onde ressoara, entre deuses enormes, para a crítica prosaica da vida. Aristófanes triunfa. Em vez das Eumênides, temos as Rãs.

“É no desfecho dos dramas que se manifesta mais nitida­mente o novo espírito anti-dionisíaco”, — escreve Nietzsche. “O fim da tragédia antiga vaporava a consolação metafísica, fora da qual o gosto da tragédia é inexplicável; essas harmo­nias de paz, emanadas de outro mundo, é talvez, no Êdipo em Colona, de mais pura ressonância. Agora, o gênio da música abandonou a tragédia e está m o r to . . .” E Nietzsche busca figurar, em termos de filosofia escolástica, essa interpretação

(2) Nietzche, Die Geburt der Tragoedie, Verlag von. C. G. Nau- mann, Leipzig, 1903, 1. Bde. Nietzche's Werke.

(3) Idem, ibidem.

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da música como veículo mais revelador da “substancia” das coisas, do substmctum e abstractum da realidade: as idéias são os universaiia post rem, a música os universalia ante rem, a realidade os universalia in re.

2 . Os matizes emocionais do sonidoComo germina o sentido no sonido? Tentamos abordar o

problema recorrendo à fonte de bons autores.4 Agora, porém, reformulamos, já com outra mira, a interrogação: como a ati­vidade perceptiva se exprime no som musical? O sentido do som, ao atingir âmbito conceituai, é palavra. Talvez se pudes­se falar, nessa fase de transição, em protopviavra: elemento dotado de tropismo para núcleo inteligível. Mas no som, que produz “estado de consciência” estranho às determinações conceituais, na esfera pura do sensível, é que se anuncia o sentido musical. “Compreende-se” intuindo pela sensibilidade. É outra forma de apreensão do espírito, na categoria gnosio- lógica da afetividade, muito mais remota na vida interior.

Afim de fixar melhor, relembraria, de passagem, a clas­sificação dos tipos humanos em relação à linguagem musical, feita por José Ingenieros. Ao definir os cinco tipos (o idiota, o imbecil, o inteligente, o talento e o gênio musical), adotou, como critério classificativo, o contacto e a intuição perceptiva do sentido da sonoridade musical. O “idiota” seria o imper­meável: a integridade do aparelho auditivo lhe permite ouvir o som (fenômeno físico), escapando-lhe, porém, o sentido das Variações (surdez tonal). O conteúdo emocional, com todos os matizes subjetivos, não é captado. Já o “imbecil” pode apreender os rudimentos de uma linha melódica, embora não chegue a experimentar os sentimentos expressos pela mú­sica. Claro que não se delimitam fronteiras nítidas entre tais formas de frenastenia musical. No idiota — explica Ingenie­ros — não há aptidões musicais por falta de percepção; no imbecil, por falta de compreensão. Na etapa seguinte, está o

(4) Djacir Menezes, Raizes pré-socráticas de Temas atuais, Forta­leza, Imprensa Universitária, 1957.

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que ouve e compreende. Há uma enorme variedade de tipos. Goethe se lamentava de não sentir a música de Mozart. Zola não atinava com a mais simples frase musical. Ingenieros anota vários homens excepcionais para os quais a música era aborrecida ou inexpressiva. Por ele ficamos sabendo que Na- poleão III franzia o sobrolho ao ver abrir um piano e o tio Napoleão I queixava-se que lhe agastava os nervos. No penúl­timo grau da escala estão os talentos — que são os grandes intérpretes; e enfim, acima deles, os gênios, que criam as formas novas de expressão dos sentimentos humanos.

Voltando ao ponto. Empregando o mito na tradução plástica do conflito íntimo de forças do psiquismo humano, os grandes trágicos, ao tomar essa “matéria” como substância do trabalho, superavam as limitações sociais das inspirações de seu tempo: passavam a criar fora do tempo e para todos os tempos. Eis a razão porque Ésquilo, Sófocles ou Shakespeare são singelamente descomunais porque são contemporâneos do Homem. Ou melhor, coexistem extemporáneamente. Nas verdades profundas é que está a essência do humano. Assim, a intuição de Wagner impele o artista irresistivelmente para a poesia mítica: e alguns temas transcendem os quadros his­tóricos para imergir nas regiões estranhas e dilatadas do hu­mano despido das conotações mesquinhamente definidoras de “idades” e “civilizações”. O estudo da exaltação amorosa, feito por Ingenieros, a propósito de Tristão e Isolda, dispensa-nos de qualquer digressão aqui. Reenviamos o leitor àquelas pá­ginas lapidares do filósofo argentino.5 O conflito entre a razão, encarnada no sistema social de normatividades (hierarquias de casta, de sangue, de honra, etc.) e o instinto (a vitalidade criadora, a vontade inconsciente de ser, de afirmar) alcança, com a música, no segundo ato do poema wagneriano, a mais poderosa expressão dos sentimentos em choque. A palavra não diz a tormenta subjetiva, mas a torrente sonora transmite a significação intensa. Wagner subverte os símbolos: “a men­tira social da personalidade consciente em luta com a verdade vital da personalidade instintiva, as conveniências da sociedade

(5) José Ingenieros, El Lenguaje musical, Editorial Hemisfério, Buenos Aires, 1952.

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em luta com as inclinações do indivíduo”. O dia, a claridade é a convenção, a mentira. A noite, as máscaras da moral caem. A treva é a redentora, não a luz. Porque é na noite que a verdade da paixão deslumbra os amantes graças ao filtro de Brangânia.

3. Os impulsos proféticos do “Lohengrin” e do “Tannhàuser”

Há, porém, outro tema, que Edouard Schuré perscrutou, num lúcido relance, no Tannhàuser.

Não foi por mero acaso que o faro agudo de Nietzsche descortinou o contraste. O autor de Zaratustra sentiu onde palpitava o anti-cristianismo de Wagner e apressou-se, frene­ticamente, a exaltá-lo. Desde que começou a freqüentar a residência do compositor, nos arredores de Bâle, em Trebs- chen, nos intervalos de suas aulas de filologia helenística, acreditou na sua própria alucinação. E não podia deixar de se escandalizar e romper com o mestre ao vê-lo ascender, gra­dualmente, à serenidade de tintas cristãs de Lohengrin e de Parsifal, aurora que vinha de outros pontos do horizonte es­piritual.

Quando Wagner busca a poesia mítica não é movido por sentimento oriundo de antagonismos religiosos; é porque nela encontrava maior liberdade plástica para a “pintura” acústica de personagens tumultuosas, de paixões genuínas e proteicas, agitando-se fora dos convencionalismos sociais. Seu pathos esquiliano necessitava aquela linguagem de tragédia nas fron­teiras de cosmogonías e teomaquias. As profundidades do dra­ma (como viu Liszt ao apreciar Lohengrin e Tannhàuser em 1851), revelam-se na “fusão genérica do impulso profético e do musical”. E só outro artista de tal porte divisaria o alcance desse fato, escreve Schuré. E indaga: que é Tannhauserl Dois mundos se chocam, o antigo e o novo, o pagão e o cristão, o antro das sereias e o céu de Maria. No fundo dessa pugna, há a grande contradição inerente à civilização moderna, a se­paração entre o mundo dos sentidos e o da alma. Aquele é

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maldito e este é tão longe, tão inacessível! Todavia, o homem desejaria alcançar todos dois” .G

Tannhàuser se exalta ante a pureza e o encanto transcen­dentes de Elisabeth, mas o desejo o arremessa para Venus; sua morte é uma “ambivalência” desencadeando emoção reli­giosa: “a Graça aqui é o milagre de Amor e Sacrifício, não o do dogma e de uma igreja”.7 Mas é a dualidade que rasga a alma de Tannhàuser. A deusa incarna a vida instintiva, os sentidos volvidos para o mundo e Elisabeth representa a vir­ginal pureza da idealidade racional. Nietzsche presentirá a incompatibilidade que vai crescendo no itinerário do Tannhàu­ser a Lohengrin, percorrido pelo gênio de Wagner. Da luta pela serenidade transcendente aos remansos luminosos da lenda céltica do Graal. Nesse itinerário, as idéias naturalistas se es­piritualizam irisadas nas simbolizações de alento cristão. Uma paisagem de força mítica e mística, que só a música wagne­riana poderia dar forma e expressão.

De há muito os psicólogos analisaram a vinculação entre os fatores afetivos e as inflexões de voz, produzidas na lin­guagem articulada. A emoção muda imediatamente a expres­são tonal e modifica a natureza sintática do período. Há uma sintaxe emotiva e uma sintaxe intelectual. Na primeira assi­nala-se a tendência sintética e exclamativa, na segunda, a ten­dência analítica e discursiva, coisa já bem estudada e conhe­cida dos especialistas de estilística. É na riqueza da voz hu­mana que residem as variações de expressividade capazes de traduzir os matizes sentimentais. Por isso mesmo, o canto é a fome primigenia da música — e só ele explica a estrutura do ritmo.8 A disposição neuro-muscular do aparelho de fona- ção se relaciona com a mobilização afetivo-intelectual, sabe-se desde Spencer. “De tais premissas -— observa Ingenieros -— se pode deduzir que o espaçamento das notas médias é o

(6) D. Halevy, ob. cit.(7) Ed. Schuré, Richard Wagner, Librairie Academique, Paris,1910. — Maurice Kufferath, Le Theatre de Richard Wagner, De Tan-

nhauser a Parsifal, 2 ed., Paris, 1893. — A. Bossert, La legende cheva- leresque de Tristan et lseult, Librarie Hachette, Paris, 1902.

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sinal de uma emoção crescente, enquanto o retrocesso às notas médias indicará o sossego sentimental ou emotivo”. Que se evoque o ritmo do “stacatto”, do “adagio”, do “allegro”, do “presto”, para facilmente se ptrceber que o conteúdo subje­tivo está nas inflexões da voz sob a ação de diferentes fatores internos — jovialidade, energia, cólera, amor, etc. vinculados às situações definidas. A poesia, onde a palavra se impregna de valores estéticos, atinge, por isso mesmo, a mais alta po­tência expressiva. “A poesia — ensinou Hegel — a arte da palavra, constitui o termo médio, uma nova tonalidade reu­nindo os dois extremos formados pelas artes plásticas e pela música, para realizar a síntese, levando-as, assim conjugadas, a nível superior, que é o da interioridade espiritual. De uma parte, a poesia, como a música, repousa sobre o princípio da percepção da interioridade pela interioridade; de outra parte, ela se amplifica, até formar, com as representações, as intui- ções, os sentimentos, um mundo objetivo, conservando, apro­ximadamente, a precisão do mundo da escultura e da pin­tura”.8 É na ambiência simbólica que vai buscar o “material” de seu labor: combinação sonora entre o “meios” e as signifi­cações não-conceituais; o que mostra dificuldade extrema do problema.

4 . O anti-vocalismo wagnerianoRazão tinha Hegel de colocar a poesia no cimo de todas

as Artes. Nascera cantando e cantada. Depara-se no admirá­vel livro de Charles Darwin Expression of the Emotions in Man and animais, cheio de observações exímias e sempre atuais, a tese de que o hábito de usar sons musicais, que se desenvolvera nos antepassados humanos, associando-se às emo­ções fortes, preparou a linguagem articulada. A propósito, assinala genialmente: “Quando a voz é usada sob qualquer emoção forte, tende a assumir, mediante o princípio de asso-

(8) Hegel, Vorlesungem weber die Aesthetik, 10 Bde., 2 imp., Ber­lín, 1843.

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ciação, um caráter musical”.0 Nesse princípio reside a fonte inspiradora da instrumentalização. Na história da música, vê-se o papel progressivo que desempenha em função das condi­ções técnicas da comunidade. A instrumentalidade cresce e acaba assumindo o papel supremo, conforme nos explica Adol­fo Salazar ao estudar a música de Berlioz. Em Wagner, a ins­trumentalização se aprofunda de tal modo que toma suas obras “fundamentalmente in-vocais, quase anti-vocais; o ca­ráter instrumental das vozes chegou a identificar-se com os instrumentos genuínos da orquestra”.

No polo oposto dessa evolução está Giuseppe Verdi: escapa ao romantismo alemão, que assentara o quartel general da teatralização no Walhala da mitologia germânica. Nabucco, de Verdi, é a réplica italiana ao Fliegende Hollãnder, de Wag­ner. A ópera vocal, que o italiano representa no mais eminente grau, seria atacada no seu próprio território pelos wagnerianos. O duelo que se trava, resume Salazar, se define entre o mí­nimo orquestral, de Verdi, em Falstaff, e o mínimo vocal de Wagner, em Parsijal.

Aqui me valho de outra citação de Nietzsche, sempre nos relâmpagos de sua intuição audaciosa. Talvez tenha sido o primeiro a apontar o “incrível esforço de Wagner para dar certa posição natural aos cantores, ao buscar, com esforço titánico, deslocar a tendência da ópera, quase subvertendo a música”. Que fizera para isso? “O drama, que usa a palavra: a orquestra como intonação da voz humana”. E Nietzsche, resolutamente, ainda mais realista do que o rei, afirma: “Eu penso que devemos riscar (stroichen) os cantores. Porque o cantor dramático é um absurdo ( Unding). Ou devemos pô-lo dentro da orquestra”.10 Um coro de novo tipo, meio trans­figurado, a que se aliaria outra Mimesis.

(9) Ch. Darwin, The Expression of the Emotions in Man and Animais, Philosolhical Library, N. Y., 1955.

(10) Nietzsche, Nachgelassene Werke, Bde. IX, in Nietzche’s Wer­ke, Leipzig 1903 "Wagner desejaria uma renovação no espírito do drama grego. Encontrou mais tarde em Nietzsche o amigo que faria tal esforço no terreno filosófico. Para esclarecer suas reformas, Wagner demorou o plano de sua ópera e redigiu os escritos teóricos: Die Kunst und die Revolution (1849), Des Kunstwesk der Zukunft (1850), Kunst

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É curioso não tenham os especialistas perquirido, com a profundidade necessária, o valor exegético das páginas de Nietzsche no que diz respeito às relações entre música e pala­vra, a poesia despindo-se da palavra articulada para quintes- senciar-se na música pura, naquela orquestração monumental que produzia o gênio do Ring des Nibelungen. É apenas o ponto culminante de uma tendência que se poderia estudar facilmente no passado, quando começa a se desenvolver a música concertada para instrumentos, determinando modifica­ções no estilo musical, — a transformação do estilo gótico de polifonia vocal na textura harmônica das novas formas re­nascentistas.11 Os instrumentos de teclado e de cordas pulsa­das — ensina Salazar — até o significado do “accorde” e do “arpeggio”, a simultaneidade da harmonia vertical típica da música polifónica.

Tomamos emprestadas estas informações técnicas para poder fixar nossas considerações sociológicas. É no aperfei­çoamento das técnicas de fabricação dos instrumentos, e na criação de novos, que se descobrirá, em parte, os fatores que enriquecem as formas de expressão. Tais estilos musicais não brotam espontaneamente dos instrumentos, permitindo outras possibilidades rítmicas. Tais possibilidades surgem em função dos sentimentos, que inspiram a mensagem sonora, dentro de ioda a gama subjetiva que constitui a atmosfera espiritual de uma sociedade. A multiplicação dos valores melódicos dentro do clima social é algo inteiramente fora de qualquer captação e expressão conceituai. Nas outras artes, que mobilizam valo­res plásticos e sensoriais (escultura, arquitetura, pintura), ain­da é possível certa aproximação para abordagem objetiva e procedimento científico. Objetivam no espaço a interioridade subjetiva, ante o espectador — ensina Hegel. “O som, porém, é uma exteriorização que, pelo mesmo fato de sua exteriori­zação, desaparece ao aparecer. Desde que o ouvido o per­

und Klima (1850)', Oper und Drama (1851), Eine Mitteilung an meine Freunde (1851)” G. Ullstein Musik Lexikon, Verlag Ullstein, Berlín, 1965.

(11) Ad. Salazar, Conceptos Fundamentales de la Historia de la Musica, Manuales de la Revista de Occidente, Madrid, 1954.

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cebeu, ele extinguiu-se; a impressão produzida por ele se in­terioriza logo; os sons acham apenas seu eco no mais pro­fundo da alma, atingida e comovida em sua subjetividade ideal”. “A poesia deve ser a filha dócil da música (Gehorsa- me Tochter der Musik”) — dirá Mozart.12

5. A intuição dos itineráriosCada época expande seu repertório de sensibilidade e sen­

timento — e a música dá, na acepção grega do vocábulo, a “simpatia” como expressão do clima espiritual, o pathos em comunhão, syn, rompendo os ídioi e permeando as almas, fundindo mais a unidade humana na afetividade das mesmas raízes. Daí deriva um problema estético de grande fascinação, o das relações entre a sensibilidade coletiva e a mensagem sonora, nos instantes das transformações do “meios”. O ino­vador, o rebelde estético, aquele que é portador de uma nova maneira de comunicação musical, e vem alterar o léxico so­noro, começa a atuar, por vezes, no círculo raffiné, nem sem­pre quebrando o hermetismo e alcançando o grande “pú­blico”. Tal esoterismo se explica dentro das condições sociais das classes em desenvolvimento e da urdidura das relações sociais mais amplas. Episódios demonstrativos enchem a his­tória da música. As obras menores de Schubert mostram o aburguesamento da música romântica — escreve Salazar, acres­centando: “Em certos tempos do romantismo, encontramos essa ruptura entre produtor e consumidor”. Essa intuição pioneirista confere à Arte um certo endereço para a posteri­dade. A intuição artística é uma espécie de antena perscrutan­do itinerários futuros. Dizíamos há alguns anos: “A arte é um aspecto do comportamento social do homem. Para o so­ciólogo, é um registro delicado do que há de mais íntimo na

(12) Hegel, Vorlesunden ueber die Aesthetik, 10 Bde., III Abtel- lung, 2 Aufl. Berlin, 1843, ps. 128, segs. “O pensador que melhor com­preendeu a essência do verbal dentro dos limites do filosófico, na sua maior pureza, foi Hegel”. — Hermann Beck, Neue Wege zur Sprache, Stuttgart, p. 79.

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experiência humana. Através dela se faz uma espécie de intros- pcctivismo social. Porque não nos dá apenas o que pode ser conceitualmente expresso pela linguagem ordinária. Strauss, IJeethoven ou Mozart fazem-nos sentir mais intimamente o comportamento emocional da sociedade do que qualquer dis­sertação científica. Sentir e compreender. A literatura de Bal- sac, de Dickens, de Zola, de Steinbeck, de Gorki, de Eça aclara-nos o lado interno, o insight, numa visão de intimidade psicológica que escapa aos métodos científicos. Porque é na literatura, na pintura, na música que afloram traços do que é mais profundamente humano, na trama palpitante das re­lações sociais: dá-nos experiência viva, pingando de emoção e pensamento, sem classificações e conceitos ressequidos. . . Sons, cores, palavras são emanações do homem e de sua “alma”, que o artista soube trazer à periferia da expres­são; emanações que se tornam veículos estranhamente pode­rosos para o trabalho de compreensão íntima do processo vital e social do que se chama natureza humana.”1*

Nótula. O autor tentou esta análise do ponto de vista das ciências sociais, sem qualquer pretensão além de sua seara. Confessa, com salutar insolência, que desejaria prosseguir, mas é impedido pela insuficiência de seus minúsculos conhecimentos musicais. O ter­reno é fecundo — e outros, melhor aparelhados nos dois domí­nios, poderiam lavrá-los a contento dos entendidos. Aqui se apro­veitam apenas algumas notas de estudo. Se alguém as corrigir, credita-se a conigenda como recompensa à precária tentativa.(13) Djacir Menezes, Crítica Social de Eça de Queiroz, Imprensa Universitária, Fortaleza, 2 ed., 1962.

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II

INTERPRETAÇÃO HEGELIANA DA TRAGÉDIA GREGA1. Poesia, filosofia e religião como formas

do Conhecimento. 2 . Prometeu esquiliano: herói nobremente herético. 3. A angústia na tragédia esquiliana. 4 . Justiça não é graça dos deuses. A “gens” e a “polis” . 5 . A grandeza do drama esquiliano e o privatismo subjetivista. O Prometeu goetheano.

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Die Poesie ist alter ais das kunstreich ausgebildete prosaische Sprechen.

Hegel

1. Poesia, filosofia e religião como formas do Conhecimento.

Quando, certa ocasião tive de dissertar sobre o tema deste capítulo, numa audiência estudantil, comecei declarando que, falar a jovens sobre ccisas da cultura grega, era ir ao encon- Iro dos jovens duas vezes: no presente e no passado. Agora, que retomo o assunto para escrevê-lo à base das notas conser­vadas, acode-me a mesma reflexão sob outra forma: repetirei (|ue volvemos às fontes do conhecimento do Homem, da So­ciedade e do Pensamento. Retorna-se, em rota de contínuo encantamento, às belezas matutinas do espírito ocidental que madrugava naquelas orlas marinhas da Jonia. Regride-se as­cencionalmente. Embora minha cátedra e meus estudos não gravitem na órbita helénica, dela não distanciam suas raí­zes, haurindo a seiva sagrada e esplendor humanístico. Ade­mais, sou dos que não respeitam os guardas alfandegários do cspecialismo canonizado pela mediocridade vigilante, ciosa do mapa burocrático do Conhecimento, com a propriedade dos territórios defendidas pelas patentes presumidas pelo Estado.

Ninguém desconhece o valor pragmático do saber: o nú­cleo da atividade científica e filosófica é o homem. Qualquer que seja a interrogação, acaba-se descobrindo o tropismo in- coercível: o tropismo antropocêntrico. Os laços podem ser invisíveis, mas existem. Mesmo quando se trata de elucidar o matiz exegético de um texto erudito encontrado em uma excavação sábia, que se busca? A cintilação do hum ano... Assim como um maxilar pré-histórico denuncia o elo da an-

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tropogênese, também as formas de expressão, desde o bal- búeio ideográfico à plenitude dos textos, mostram as formas progressivas da embriogenia do Espírito. Não meditamos, nes­tes dias inquietos, sobre o paleopsiquismo, mas sobre a obra gloriosa do Pensamento ocidental e universal.

Devo confessar, de início, ainda justificando a incursão clandestina no domínio da Arte, que foi a Estética, de Hegel, que me deu, anos corridos, a melhor compreensão das cria­ções do gênio grego. Já havia quebrado a cabeça com a Lógica e a Fenomenología do Espírito; entretanto, somente depois de 1930, cai em minhas mãos as obras coligidas pelos discípulos de Hegel: um professor de alemão chamado Koehler, desgar­rado pelo Ceará, logo notório pelos seus altos conhecimentos e não menos altas libações alcoólicas, me ofereceu, por preço que honrava Baco, a primeira edição da obra completa do filósofo. Foi quase espantado que penetrei da Estética; e, aos meus olhos, a medida que avançava, desaparecia o artifício didático que marca as divisas entre a poesia, a filosofia, a reli­gião, o conhecimento, expressões múltiplas da profunda his- toricidade do Pensamento.

Se me permitem simplificar o enredado tema em que me aventurei, desbastando-o das citações do barroquismo erudito, direi que parto de pressupostos assentados entre os scholars. Omitirei as informações dos compêndios. Sabe-se que no diti­rambo, forma lírica mais antiga dos cantos dionisíacos, nos coros de Corinto, começa o processo genealógico da tragédia. Simônides, Stesícoros, Baquílides, Tespis de Icaria, Frínicos, são os nomes que se encontram na curva ascendente; mas qual­quer manual traz os esclarecimentos propedêuticos.

Em primeira aproximação do tema, poderia indagar, a fim de dar congruência às minhas reflexões: que imprime eternidade a Ésquilo, a Sófocles, a Eurípides? Sim, porque vamos considerar apenas os três píncaros. “Considerar” no exato sentido etimológico — con-sideração, “sideração”, olhar para o sidéreo, visão dos astros. Um nexo impressionante liga os três trágicos: a batalha de Salamina, em 480 a.C., que deteve a onda persa. Lá combateu Ésquilo, — e celebraria a vitória nacional no drama que o ateniense assistiria, oito anos depois, com lágrimas nos olhos; Sófocles tinha 15 anos e era40

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helo, figurando no coro que cantou o poean comemorativo; c Eurípides nascia no dia em que as armadas batalhavam nos mares. O meridiano de Salamina era comum aos três: ao re­cém-nascido, ao adolescente, ao adulto.

2. Prometeu esquiliano, herói nobremente herético. O Diálogo imperecível. “Sympatheia” e “Compassio”

Vou me referir de preferência ao primeiro e máximo: Ésquilo, eupátrida iniciado nos mistérios de Eleuses, que guar­dou, no tom e no gênio, o sentido oracular e solene das reve­lações humanas raiando no sobrehumano. Sófocles é o equili­brio clássico, Eurípides o comedido humano, quase burgués. Repitamos, então, a pergunta: que lhes dá eternidade? Por que o tempo, envelhecendo tudo, não os enruga, apaga e desacre­dita? Ao contrário: quando se contemplam essas alturas gené­sicas de onde desceram auroras sucessivas, espanta-nos a juve- nilidade dos dramas. Na sua emoção, palpita o frescor de urna infância imperecível.

Não sei se o leitor teve essa impressão. Quando me dispus a 1er, pela primeira vez, o Prometeu, abri o livro como se abrem os clássicos: ia cumprir um dever. Já encontrara mui­tas referências ao drama do Titã e não podia continuar ouvin­do seu protesto através de intérpretes. Surpresa. Dissipa-se a atitude convencional e pré-estabelecida, e se descobre, sob a aparência do antigo e de seus artificios, a força profunda do espirito humano rebelado contra a Opressão. Rasga-se o pa­norama iluminado da Libertação: é a Humanidade que se levanta e caminha. Diz Gilbert Murray que a palavra grega para definir o Prometeu é terateía, termo quase intraduzível, derivado de térm, maravilha, prodigio, portento. Era a pala­vra que se empregava na Vida, de Ésquilo, consagrada por Aristóteles: ékplêxis teratôdês. 1 A imensa alegoria em que

(1) Aristóteles, Poet., 1456 a, tò dè tearatódes, óion ai te Phdkrí- (les kai Prometheús kai osa én Haidou. Em Esquilo, Prometeu, 832. Km Platão, Euthydemo, 296 e, sobre o homem — teradôdês eis

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se desdobra a trilogia ainda exprime a luta contra todos os tabús que barram o livre Pensamento no esforço de interpre­tação do Universo onde o Homem avulta ascencional e cres­cente. Ainda hoje é o símbolo mais nobremente herético, o do Heroi chumbado na orilha da Cítia, no penedo inabordá- vel, por Bias e Kratos, chefiados por Hefaistos, a mando de Zeus. Símbolo de todos os sacrificados que se anteciparam à sua época, apontando, no horizonte ainda noturno, as entra­nhas de madrugadas dormindo. Símbolo dos que são imola­dos por razões de Estado, por fogueiras ortodoxas, por ordens estabelecidas e restabelecidas, por magistraturas que lavam as mãos na bacia covarde de Pilatos enquanto corre o sangue do justo. Não aproximemos o Titã, como outros o fizeram, do Jó bíblico, humilhado no seu muladar, gemebundo e vencido. Prometeu não reconhece a Opressão, ruge e resiste, é o Pro­metheus lyómenos, imperfeitamente traduzido por libertado, mas é o libertando-se, na eloqüência do participio presente grego que dava vigor ao momento da trilogia. Não admira que se encarasse a trilogia como a tragédia da cultura huma­na, como fê-lo Karl Reinhardt2. O titanismo se ergue contra o Olimpo, anunciando-lhe a ruina inelutável. O rebelde acor­rentado interpela e protesta. E o empolgante silêncio inicial do agrilhoamento, quando os esbirros do Poder o provocam, é o silêncio de desafio inapelável3. “Quanto mais se estuda Ésquilo — escreveu Croisset — tanto mais se percebe o cuidado calculado com que construiu suas peças. Um pensa­mento diretor, presente a todo momento, conduz tudo.” 4. Era o aliado dos homens que Zeus odiava e castigava no Titã; a consciência humana, crescendo, podia suprimir o Olimpo.

sophían. Em Diodorus Siculus, essa expressão curiosa: fabricador de maravilhas, teratourgós.

(2) Karl Reinhardt, Aischylos ais Regisseur und Theologe, A. Francke AG. Verlag, Bern, 1949, p. 74: "Ist aber nicht doch dei "Prometheus”, wie man ihn gennant hat, die Tragoedie der menschli- chen Kultur?... Menschheitstragoedie?”

(3) E.E. Owen, The Harmony of Aeschylus, Toronto, 1952, p. 56: "Aescylus was famous for these dramatic silences, as is noted by Aristophanes in the Frogs (907 ff.)"

(4) Croisset, Eschyle, Les Belles Lettres, Paris, 1928, ps. 28-29.

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Diluída a convicção na consciência, o mito desaparece nos es­paços. Segundo Croisset, é dessa concepção de uma Divinda­de hostil ao progresso humano que brota todo o sentido da trilogia 5. A reconciliação, que era o momento final da tri­logia, perdeu-se. Quem mudara? Zeus, reconhecendo a força do líder? Ou Prometeu, transigindo com a Opressão, por in­termédio de Heraclès? Que espécie de armistício foi celebra­do? Hesiodo pôs a cena no Cáucaso. Mas Hesíodo dá-nos outro Prometeu. Ésquilo pô-lo na Cítia, na solidão sinistra do deserto. Ai dos sós! O amigo da Humanidade sem víncu­los sociais: castigo supremo6.

E o diálogo inicial? O vencido ouvindo o excesso de zelo dos executores policiais de Zeus. Silêncio arrogante, silêncio soberbo, silêncio inexprimível, dizendo tudo mais alto que todos os rugidos, enquanto os zelotas, violentos na sabugice dos servis de todos os tempos, cospem-lhe o desprezo e falam na ordem que as cadeias de Hefaisto garantem. Diante dos esbirros, o Titã ouve e cala. Valmigli discutiu quanto o Pro­meteu de Ésquilo difere do hesíodico7. Ésquilo é o primeiro a transformar o material mítico, no Prometeu, como é o pri­meiro a plasmar o material histórico nos Persas. E constrói o símbolo com a força da tradição religiosa. Não foi impune­mente que acusaram o filho de Euforión de violação dos mis­térios eleusinos. . . Em todo caso, não chegamos ao extremo de Benjamín Farrington, que vê ali a “dramatização de um problema político”, que consistiria no ajustamento das insti­tuições contemporâneas à subversão dos antigos estilos de vida ameaçados pela especulação jônia. Para justificar sua explicação, altera a ordem em que deveria ter sido escrita a trilogia: abre com o Prometheus desmóthes, e não com o furto do fogo, o Prometheus pyrphóross. Idéia já sugerida

(5) Idem, ibidem, p. 138.(6) Prometeu, 20, 21.(7) Valmigli, Eschilo: la Trilogia di Prometeo, Bologna, 1904, p.

23, segs. |(8) Benjamín Farrington, Science and Politics in the Ancient

World, George Alien & Unwin Ltd., 1946, p. 69.

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por George Thompson °. Que leva o Titã à rebeldia contra o Supremo? O sentimento que o agiganta se exprime na palavra grega sympathéia pelos seres efêmeros a quem ensina a téc­nica, palavra mais vigorosa que a compassio latina, pois ain­da se intensifica na sympathéia tôn hólón.

3 . A substância dramática. “Physis” e “nomos”.O conservadorismo eupátrida.

Seria abusar de vossa paciência tentar a análise dos motivos que são a substância das criações trágicas. Aponte­mos apenas, en passant, o caráter eminentemente público e par­ticipante da Ação dramática, que intimamente se casava à forma artística. E aqui irrompe a claridade de interpretação hegeliana.

3. A angústia na tragédia esquilianaEnquanto as demais formas de expressão estética, utili­

zando a pedra, o mármore, a cor, o som, representam fases de um desenvolvimento, a culminância está na poesia dramá­tica, porque o veículo expressivo é o verbo. Este conjugaria a plástica do sonido à espiritualidade do sentido. A objetivi­dade épica e a subjetividade lírica transfundem-se na ação, onde evolvem os conflitos, que são produtos da vida social e revelam a consciência histórica do povo. Diz então Hegel: “A aparição da tragédia já coincide com a desaparição da fase poética do épos propriamente dito”. Neste se expunha a ação como totalidade do espirito nacional em marcha, en­quanto na lírica a interioridade subjetiva se afirma em sua unidade dissociada dos nexos exteriores. Essa individualização, que permite a exacerbação dos conflitos entre os homens, ad­quire contornos na colisão dramática: os sujeitos perseguem fins, impelidos por forças espirituais que personificam — amor

(9) George Thompson, Aeschylus and Athens, London, 1950, p. 316, segs.

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da pátria, da justiça, da família — e de cujos litígios são a própria substância dramática. Daí emergem os três momen­tos essenciais que originaram a tragédia esquiliana: primeiro,o nascimento do conflito; segundo, a produção do choque entre os interesses contrários; terceiro, o paroxismo das riva­lidades e a conciliação. Cada momento, porém, da trilogia representa uma totalidade. Estamos distante do subjetivismo privado do lirismo moderno, que se engendra na subjetivida­de alienada, desligada dos grandes motivos públicos; o lirismo dramático e mesmo épico se embebia na ação dos caracteres e sentimentos coletivos, a pedir o coro como um dos meios de expressão potente. Se, como nota Hegel, o monólogo era um momento subjetivo, em que o indivíduo fletia sobre a pró­pria consciência, — era no diálogo que se expandia a ação dramática. Bruno Snell10 estuda o papel da angústia na peça esquiliana, e a angústia é interiorizante, leva ao enfraqueci­mento dos vínculos que ligam os seres à sociedade e à pers­pectiva histórica. Mas Pohlenz lhe fez reparos felizes: em Esquilo não é a angústia que nutre a ação dramática, mas a ação dramática resulta do combate contra a angústia. Co­menta Opstelten que, na alma profundamente religiosa de Ésquilo pulsava o temor de que Zeus fosse um Deus de facto e não de jure, um usurpador pela força e não um rei­nante pelo d ireiton . Daí dizer: Zeus é a primeira e última palavra da obra de Ésquilo, pois a Moira é aborvida nos seus poderes e Zeus é o medo supremo, hypsistos phóbos. E Loui- sa Matthaei sugere que o Zeus que aparece no Prometeu não confere com o perfil de Zeus delineado no A gam em non12 Ainda há que considerar o Faíum, determinando a ação total, dentro de cuja trama a personalidade toma contornos que exi­giriam mais detido estudo: as forças cósmicas, que atuam na trilogia, são manifestações de poderes monárquicos de Zeus,

(10) Bruno Snell, Ayschyllos und das Handeln im Drama, "in" Phil, Suppi. XX, Heft I, 1928, Cit. de Opytelten, in Sophocles and Greek Pessimism, North-Holland Publishing C9, Amsterdam, 1952.

(11) Opstelten, ob. cit., p. 28.(12) Louise Matthaei, Studies in Greek Tragedy, Cambridge,

1918, p. 25.

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desfecham movimentação medonha para o encaminhamento trágico, que em Sófocles se concentra no herói e nas suas dores. Mas é precisamente por isso que Ésquilo tem, através do mito, maior conteúdo humano. Parecendo mais fantástico, é, dialeticamente, muito mais vivo. Sua teodiceia é a desme- suração do antropológico. Há uma dilatação teolátrica do hu­mano. No fundo, parecendo um teocentrismo, é ainda proje­ção da essência violentamente humana, na maior palpitação de sua potência histórica.

Tal pathos épico cria sua própria energia verbal. Assina­lou-o Hegel: ao hexametro e as medidas silábicas da lírica sucede o metro iâmbico, que tem mais vivacidade rítmica, com a ondulação dos anapestos alternados com o ralentissi- ment dos espondeus. Nesse jogo, viu o filósofo as condições necessárias a turgência do pathos dramático na sua plenitude.

“É entre os Gregos que se deve procurar o verdadeiro raiar da arte dramática; é entre eles que o princípio da indi­vidualidade livre, de maneira geral, tomou possível, pela pri­meira vez, o nascimento e a perfeita elaboração da arte clás­sica. Conforme tal princípio, a ação individual só se poderia afirmar na? medida em que se exige o conteúdo substancial, livre e vivo, dos fins humanos” 13.

A explicação é sutil e profunda. Conduz-nos à compreen­são do lado interno e íntimo: e desvenda o conflito entre a natureza humana e a ordem social, entre o Ego e os mores, entre a família e o Estado, entre a justiça e a lei, entre a physis e o nomos, que vêem através das idades e formas de civilização. Snell lobrigou, no fundo da tragédia, o ato deci­sorio como essência da ação humana. Aprofunda a consciên­cia dos valores vitais através dos ingredientes míticos e fa­brica uma interpretação do universo e da vida a serviço da técnica política. Organiza, como observa Snell, um arqué­tipo de ação14. Completa-o a reflexão de Owen, dizendo que

(13) Hegel, Vorlesungen ueber Aesthetik, 10 Bde.f Worke, Berlín, 1843, ps. 525, segs.

(14) Bruno Snell, The Discovery of the Minei, Basil Blackwell, Oxford, 1953, p. 106, segs.

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I Esquilo não escrevia uma tragédia, mas uma tragôidia15, on­de perduram as características do hino coral. O coro era uma espécie de instância da consciência pública, onde se desfazem os conflitos, emitindo juizos sobre a totalidade da ação, uma consciência em suspenso, alienada do jogo das lorças em jogo, consciência teórica ou contemplativa, mas car­regada de tensões sociais e espirituais. O coro é incompreen­sível para a mente moderna: e toda vez que pretenderam ressuscitá-lo, tornou-se ridículo. Cindida a gens, que, mesmo historicamente despedaçada, perviveu espiritualmente nas ideo­logias, o coro foi a ressonância ulterior, em- formas sociais onde a competição mercantil operava transformações que não atingiam diretamente e de chofre as sob revi vências arcaicas. As estruturas gentilicias, baseadas na propriedade territorial, por volta do século V -A .C ., sofreram a agressão dos homi­nes novi das cidades comerciais, onde vibrava o espírito livre, irreverente, analítico e crítico. O comércio golpeava o conser­vadorismo eupátrida, assentado nas estruturas agrárias. A fi­losofia era o exame da tradição e promovia a decadência das oligarquias rurais. Os momentos da tirania nem sempre signi- Ticaram, simplistamente, a interrupção do processo democrá­tico, mas, em vários instantes, resistência às tentativas dos partidos eupátridas. O núcleo de ação política se definiu, por vezes, com Polícrates, de Samos, filho de Pisistrato, de Ate­nas, com Periandro de Corinto, com Hieron, de Siracusa. Pisistrato protege as inovações de Tespis, incrementando os festivais dionisíacos, que eram formas populares de Arte. “O crescente desenvolvimento da economia monetária — ensinou Jaeger — frente a economia natural, produz uma revolução no valor das propriedades dos nobres, que haviam constituido até então os fundamentos da ordem pública” 16. É o período de transição entre a nobreza eupátrida, que se desagrega, e a demagogia democrática, que ressoa nas cidades, durante o século V .-A .C ..

(15> Oweri, ob. cit., p. 63.(16) Werner Jaeger, Paideia, Fondo de Cultura Econômica, Mé­

xico, 1957, p. 213.

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4 . Justiça não é graça dos deuses. A “gens” e a “polis".

Valeria a pena comparar o significado do coral lírico das odes pindáricas, glorificando o esplendor das aristocracias dóricas, com a técnica agonal das peças esquilianas, que já traduzem o agravamento dos conflitos democráticos em Ate­nas 16a. Nelas, a justiça não é o donativo que cai das mãos dos deuses, mas-a conquista pela luta, entre colisões e dores. Para Ésquilo, a harmonia resulta dos antagonismos, a ordem é superação de dissidências, a paz não é regalo dos deuses, mas prêmio da vontade dos homens. Há fundo heraclitiano na dinâmica do seu drama. Já o polo filosófico de Sófocles é Parmênides. E na essência da tragédia está o problema da responsabilidade humana. A especulação filosófica apreendeu o problema em termos abstratos, a custa da elaboração ra­cional — e acreditou-se que o problema surgia ante a cons­ciência humana pela primeira vez. Mas já as antenas da Arte haviam captado maravilhosamente tudo. Nisto reside o caráter legítimo da poesia, antecipando divinatoriamente, com seus meios próprios, a intimidade dramática da praxis. Porque intui com especial energia sinóptica, o universal no concreto. “Po­de-se, de modo geral, definir a representação poética como re­presentação pela imagem, porque nos coloca sob os olhos, não a essência abstrata, mas a realidade concreta, não con­tingências e acidentes, mas manifestações que nos permitem, através da exterioridade e da individualidade, e em estreita relação com esta, perceber o substancial, e, por conseqüên­cia, o conceito da coisa e sua existência (Dasein) como a única e mesma totalidade no interior da representação.” 17

(16a) W. Schmidt und O. Staehlin, Geschicht der Griechischen Literatur, Erster Teil, Zweiter Bde., Münschen, 1959, p. 301: "Waeh- rend ferner Pindaros alies Heil in der Festhaltung der aristokratis- chen Tugender sah und der demokratischen Stroemung seiner Zeit und seines Landes ablehnend gegenueberstand, ist Aischylos ents- chlossen auf den Boden des Volkstaats getrsten". Sobre as relações entre o homem e Deus, cf. p. 265, segs.

(17) Hegel, Vorlesungen ueber Aes thetik, 10 Bde.. Werke, Verlag von Duncker und Humblot, Berlin, 1843, p. 276: "Im Allgmeinen

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Os exemplos hegelianos são esclarecedores. Dizendo sim­plesmente “o sol” ou “a manhã”, compreendemos abstrata­mente o que se indica; mas quando Homero refere aos “de­dos róseos de Eo” ou a “cabeleira fulva de Febo”, junta-se à compreensão a intuição visual de uma realidade precisa: “a representação poética se apropria, em toda plenitude, da rea­lidade fenomenal, que funda na interioridade e a essência da coisa, criando um todo indivisível” 18. Mergulhar a represen­tação abstrata na vitalidade real do concreto mediante certa refração dos sentidos — eis a intuição essencial da verdadeira poesia, que não está nos meios utilizados, mas na intimidade do próprio pensamento. Essa verdade, excelentemente ensina­da por Hegel, não foi absorvida por numerosos críticos de Arte, a buscarem nas exteriorizações os fundamentos da Poe­sia. Assim, a potência de expressão, acumulada no legado idiomático, sofreu elaboração profunda na transfusão esquilia- na.

Tudo isso se concilia com alguns pontos firmados. Se, partindo das observações de Hegel, insisto em fixar a atenção no Prometeu, não quero deixar de anotar lealmente que o

koennen wir das dichterische Vorstellen ais bildlich bezeichnen, in sofera es statt des abstrakten Wessens die konkrete Wilrklichkeit desselben, statt der zufaelligen Existenz eine solche Erscheinung vor Augen fuehrt, in welcher wir unmittelbar durch das Aeussere selbst und dessen Individualitaet, unstrennt davon, das Substantielle erken- nen und somit den Begriff der Sache wie deren Daseyn ais ein und dieselb Totalitaet im Innern der Vorstellung vor uns haben".

(18) Hegel, Vorl. d. Aesthetik: "Die poetische Vorstellung nimmt deshalb die Fuelle der realen Erscheinung in sich hinnein..." (p. 276). A representação poética, diz ele, se opõe à representação prosáica. Nesta, o conteúdo é a significação como tal, não o figurado em ima­gem (nicht auf das Bildsche) sendo a representação o veículo signi­ficativo. E prescinde de dar a realidade plena do objeto aos nossos olhos. Os "comentadores prosáicos dos poetas" (die prosaischer Kom- mentatoren der Poeten) é que cindem a imagem da significação, desprendendo da figura viva a nota abstrata (aus der lebendigen Gestalt den abstrakten Irihalt herauszuziehn) a fim de fazer acessível a forma de representação poética ao conceitualismo racional. A poe­sia mobiliza energia intencional (absichtlichen Energie) para des­prender-se da representação abstrata à busca da vitalidade concreta da coisa (ps. 280, 281).

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filósofo preferiu sempre e acima de tudo a Antigona, de Sófocles. Foi nela que descobriu os conflitos eternos: o Ego e a comunidade política, o exame racional e os idola specus, o direito da família e o direito da polis. Teve razão o grande scholar Gilbert Murray quando qualificou-o de poeta das idéias.

Volvamos ao conflito que é essência do trágico. Hegel pensava particularmente na Antigona, que dizia ser a produ­ção poética e filosófica mais perfeita do espírito humano: “O que, na tragédia grega, engendra os conflitos, não é a von­tade má, nem o crime, nem a indignidade nem a simples des­ventura ou cegueira, mas a justificação moral de ação deter­minada. A maldade abstrata não participa absolutamente do verdadeiro e é desprovida de interesse”. Com efeito, Antigona coloca acima de tudo os vínculos de sangue, Creon, acima de­les, o laço religioso. As duas atitudes definem o duelo: o dever de família, cheia da tônica da gens, contra o cumpri­mento do dever da polis. Uma obedece ao nexo gentilicio, outro ao do Estado. Essas discórdias irrompem nas Eumêni- das, nas Choeforas, em Agamemnon. Oreste adora a mãe, mas, defendendo o direito do pai, assassina a mãe. Em todos esses conflitos, surpreendem-se antagonismos anímicos pro­fundos, socialmente simbolizados. Essa garimpagem subter­rânea de vida psíquica fascinou Freud, outro poeta a que faltou gênio. Veja-se o resumo de Hegel: Édipo mata o pai, ascende ao trono de Tebas, esposa a rainha viúva, procria filhos incestuosos. Todavia, sua consciência e sua vontade não participam do que está ocorrendo: não são decisões cons­cientes. Onde a responsabilidade subjetiva? O drama esquilia- no, porém, não esquiva o problema da responsabilidade, por­que está tudo posto acima da subjetividade formal da cons­ciência, responde-nos Hegel. O problema ascende às relações entre a Ação e o Fatum, transcende o estreito quadro ético em que, modernamente, se insere a noção de erro e culpa. “Os heróis trágicos são a um tempo inocentes e culpados — diz ele. Se se admite que o homem só é culpado quando, podendo escolher decide-se pelo que poderia evitar, então se deve reconhecer que as figuras plásticas são inocentes; cada qual se conduz segundo seu caráter, segundo seu paíhos,

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porque ela é este caráter, animado deste pathos. Não há he­sitação ou op ção .. . São o que são e o são eternamente; e é nisto que reside sua grandeza” 19.

5 . A grandeza do drama esquiliano e o priva-tivismo subjetivista. O Prometeu goetheano.

Personificando forças inconscientes em conflito, — não são, como no drama moderno, subjetividades privadas, de ca­racterização individual, cujos conflitos efêmeros emergem de regras jurídicas ou mores especiais de uma época, acidentais e exteriores. Nos quadros sociais, transitoriamente, surge toda uma multidão fermentesoente de temas e motivos de confli­tos, miudamente tratados por um proustianismo de catadores de pulgas, com as novelizações de cacoetes. Essa privatiza­ção é o refúgio da mediocridade militante da arte mod-erna, encolhida diante da vaga de antagonismos crescentes do nos­so tempo; mas então a arte se torna mística, esotérica, e, por fim, histérica; agiganta o pequenino e esquece a grandeza dos problemas reais. O estudo de Ésquilo não é culto de eli­tes blasées, porque o mundo que ele nos mostra está cheio de tumulto da Humanidade em marcha. São os temas dele que são eternos, mas apanhados em relâmpagos que clarea­ram recessos da consciência como uma paisagem noturna su­bitamente golpeada de clarões. Não foi, pois, mera necessi­dade de imitação que, séculos afora, gerações de intelectuais se prosternaram na imitação e no estudo daqueles criadores. Entretanto, o próprio Hegel reconhecia, em pleno século

(19) Hegel, Vorl d. Aesthetik, p. 552. Daí a idéia de se desem­baraçar das idéias falsas de culpa e inocência (die falsch Vorstel- lung von von Schuld und Unschuld bei Seite lassen) quando se trata de estudar a tragédia grega. A força dos caracteres está nessa au­sência de opção, conduzidos pela ação total, sem que os fins sub­jetivos rompam os laços. Essas figuras plásticas (para usar a ex­pressão de Hegel, plastischen Gestalten) constituem uma só peça moral. Para melhor entendimento, pgs. 552, 553, ob. cit. — Finlay diz que o problema mergulha na idéia áo tempo. . . cf. Pindar and Aesehyles, Harvard, 1955. p. 191.

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XVII, outro cimo torturado pelos mesmos raios, desenhando no horizonte humano o mesmo perfil orográfico. O drama shakespereano se emparelha e mede por aqueles gênios remo­tos. Pouco importa que Voltaire, dentro do fino gosto francês, o qualificasse de barbaro; Flaubert, ao contrário, dizia alar­mado: “se encontrasse Shakespeare na minha frente, arre­bentava de pavor sagrado.”

Mas é tempo de parar. Estes dias comemorativos são uma pausa de êxtase cultural. Por que não lembrar que Re­nán supunha a civilização helénica um sorriso de luz à tona da História? E que nos seus altares se ajoelharam os maiores espíritos, que sempre viveram entre as sombras luminosas qualquer que fosse a latitude do planeta em que respirassem? O último daqueles espíritos siderais fugido da constelação grega viveu, como sabéis, em Weimar, e, na dinastia de Só­focles, produziu Ifigênia em Tamida. Pois, como Herder e Byron, Swinburne e Shelley, também Goethe quis interpretar o mito prometeico, naquele admirável poemeto da juventude, de alta intensidade rebelde.. . Era o Goethe juvenil, sentindo baforadas da revolução francesa na face e a força do gênio nas asas nascentes. O Prometeu goetheano, interpela Zeus nessa arrogância primaveril:

Quem me ajudouContra a arrogância dos Titãs?Quem me livrou da morte E da escravidão?

Eu, venerar-te? Por que? Mitigaste jamais as dores Do oprimido?Enxugaste jamais as lágrimas Do aflito?

Aqui estou eu! Formo homens à minha imagem,uma estirpe que seja igual a mim,

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Para sofrer, para chorar, para gozar, para alegrar-se E não te respeitar Como eu!20

Assim falou Goethe. E depois de Goethe não se tem o di­reito de dizer mais nada.

(20) Goethe’s Werke, herausgegeben von Ludwig Geiger, 1 Bde., Berlín, 1901, p. 310. O poemeto foi escrito em 1774. Os versos tradu­zidos acima são estes:

Wer half mirWider der Titanen Uebermuth?Wer rettete vom Tode mich,Von Sklaverei?

Ich dich ehren? Wofuer?Hast du die Schemerzen gelindert Je des Beladenen?Hast du die Thraenert gestillet Jes des Geaengsteteri?

Hier sitz’ich, forme Menschen Nach meinem Bilde,Ein Geschlechet, das mir gleich sei,Zu leiden, zu weinen,Zu geniessen un zu feuen sich Und dein micht achten Wie ich!

(Traduzido em Poesias heréticas e heresias poéticas, do autor. Rio, 1970).

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III

VARIAÇÕES SOBRE O LEXICO FILOSÓFICO DE HEGEL

1. Linguagem e estilo de Hegel. 2. A ri­queza semântica do alemão. Os termos am­bivalentes. A dialética imánente da palavra. 3. O sentido deictico do “Da”. “Wirklichkeit” e “Actuosidade”. Outras vozes. 4. Formação de verbos: prefixação nominal e verbal com carga especulativa. 5. O valor dos elementos conectivos. O exercício idiomático.

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Das Vernunftige existiert nur ais Sprache.Hegel

1. A linguagem, e o estilo de Hegel. Seus de­tratores. Sermo e Verbum. A visibilidade do Es­pírito.

Ainda não pude concluir o estudo sobre o léxico de Hegel, — tenho a safra de quase uma centena de vocábulos que fui recolhendo, durante três décadas, na leitura do filóso­fo x. As notas remontam ao ano de 1930, quando fazia o pri­meiro aprendizado no texto alemão da Wissenschsft der Logik, edição de Felix Meiner presenteada por meu Pai. Embora se refiram preferentemente à terminologia, exprimem os concei­tos mais densamente significativos. Depois, as notas foram se multiplicando sempre. Comecei a comparar traduções ingle­sas, francesas, italianas, e, enfim, castelhanas, com as respon­sabilidades de Mc-Taggart, de Johnston e Struthers, de Jan-kelevitch, de Coni, de Croce, de Augusta e Rodolfo Mondol- fo. E então cada vez mais compreendi e senti o poderoso efeito que desempenhou o idioma alemão no trabalho espe­culativo de Hegel.

Tento agora apenas registrar algumas reflexões feitas durante esse exame, a maneira de breve ensaio em torno de

(1) A Editora Zahar lançou em 1969, a obra Textos hegelianos, seleção, notas e comentários do prof. Djacir Menezes. Em anexo, se publica um breve glossário ao léxico filosófico de Hegel, com indicações sucintas sobre as diversas traduções feitas dos principais conceitos especulativos.

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sua estilística filosófica. Ainda assim, deficiente; não passa de esboço preliminar.

Já li numerosas opiniões sobre a linguagem hegeliana. A acusação mais estrebilhada e inconsistente é a de que escreve dificilmente, obscuramente, num estilo esotérico e tor­tuoso. E outros afirmam exatamente o contrário. “A maturi­dade intelectual da Europa é Hegel” — escreve Zubiri. “E isto, não só por sua filosofia, sim por toda sua História e seu Direito. Em certo sentido, Europa é o Estado e talvez só em Hegel se produziu uma ontologia do Estado. A verda­de da Europa está em Hegel. Por isso, toda autêntica filosofia começa hoje por ser uma conversação com Hegel” 2. Tal força de pensamento não poderia emanar de linguagem im- perscrutável e trôpega. Mas, a respeito de problemas de estilo e linguagem, convém iniciar com as reflexões do próprio Hegel.

Em nota que os discípulos anexaram ao § 394 da Enci­clopédia e que foi publicado no volume Filosofia do Espírito, Hegel bordou considerações acerca da claridade do idioma francês e obscuridade do alemão. Suas palavras são, por as­sim dizer, uma propedêutica ao nosso tema; vale a pena ouvi- lo: “O que, porém, os franceses consideram como meio mais seguro de agradar a todo mundo é o que chamam espírito. Para as naturezas superficiais, esse espírito se limita a com­binar representações separadas entre si (einander fem liegen- der Vorstellungen); mas, nos homens notáveis, como Mon- tesquieu e Voltaire, toma a forma genial da Razão, que une o que o entendimento isola; porque a determinação essencial da razão é essa conexão”. De modo que Hegel vê na clari­dade do francês a expressão do entendimento, que submeteu a regras precisas os mecanismos da língua, alcançando aquela proverbial concisão de pensamento que caracteriza o idioma. Em cotejo com o alemão, diz ele, “passamos por pensadores profundos, mas frequentemente por obscuros (unklãre Den- ker); queremos captar a natureza íntima das coisas e suas conexões necessárias. . . Nosso espírito está sempre mais vol­vido para o interior que o de qualquer outra nação européia.

(2) Zubiri, Naturaleza, Historia, Dios, Madrid, 1951, p. 221.

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Vivemos sobretudo a vida interior do Pensamento e do Senti­mento” 3.

Não admira, pois, que se repitam as acusações com va­riantes. Recentemente, num livrinho de síntese, dois profes­sores ensinam que a “dificuldade de Hegel não reside apenas na extrema tensão de seu pensamento, mas também na sua forma: mesmo aos olhos dos alemães o estilo de Hegel é pe­sado e inelegante, sua sintaxe é complicada e por vezes con­fusa” 4. Essa dissociação entre forma e fundo é falsa. Jamais tão alta voltagem do pensamento teria a expressão tranqüila e translúcida dos estilos serenos, que mansamente redizem os giros habituais em que se vazam as cogitações rotineiras. E aqui é que está o ponto incisivo. A luta por exprimir o que vai sendo apreendido pela primeira vez, o esforço pela con- ceitualização do ainda não dito, porque não pensado e não cabe no modelo feito: o que está in fieri tem certa franja de inefabilidade perturbadora.

Serrau aponta exemplos do jogo semântico hegeliano: “Bestimmungen significa a uma vez determinação e destina- ção, aufheben, a um tempo, suprimir, conservar, subir". E acusa-o de recorrer a etimologias, nem sempre válidas, para fortalecer suas teses, — er-irmert ( interioridade) e Er-inne- rung (recordação), a essência — Wesen — e o que foi — Gewesen — imediatamente antes do ser imediato. Glockner cita um ensaio sobre o verbo “ser”, onde se lê: “Em língua alemã, Wesen exprime a natureza ou propriedade do Sein e o ser passado também é expresso por ge-wesen”. E Hoffmeister anota que “a sílaba ge no alemão tem força compreensiva abrangente (Zusammenfassend K raft)”. Seria ainda interessan­te o exame do ge em termos como Ge-wissen (con-sciencia), análogo ao Syn grego ou ao cum latino — e a função de­sempenhada em escritos teológicos — Mitwissen, Gewissen [Bewusstsein (ético)], Gefühl, Gesinnung, Ge-setz, compara­dos as formas latinas por que foram introduzidas na especula­

(3) Hegel, Enzyklopaedie der philosophichen Wissenschaften im Grundrisse, Berlim, 1954, Bde., 7. p. 79.(4) Cresson et Serrau, Hegel, Presses Universitaires de France, 1963.

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ção filosófica. Pondera ainda: “O vergangene Sein é igual­mente um Wesen, porque não é mais {nicht mehr wird), po­rém já é realmente o que deve ser. O Wesen de uma coisa é também o ser acabado, não mais sendo (nicht mehr wer- dende), porém desse ser existente (vorhandenes S e in )” 5.

Continua Serrau: “Hegel despreza os termos latinos uni­versalmente adotados: emprega-os muitas vezes em sentido pejorativo (por exemplo, um Rasonnement é falso) ou para duplicar seu vocabulário quando quer opor o “refletido” ao “imediato” : verbi gratia, o ser determinado como existência imediata — Da-sein — torna-se Existenz quando se explica como resultante, emergente (ex-sistens) do que o condicio­na” 5.

Dotado de potente imaginação verbal, Hegel descobre nas palavras e no jogo semântico um surprendente valor fi­losófico: porque a língua, como forma objetiva do Pensamen­to, revela a mobilidade dialética das determinações. Em con­seqüência disso, a variedade de calembours, de giros de ex­pressão, de boleios sintáticos, que aborrecem os tradutores. Muito bem resume Koyré: “A língua é a fronteira inferior do espírito, criação de um mundo próprio; de um mundo que, único, possui o ser. Não admira, pois, que toda evolução ulte­rior terá a linguagem por meio e por veículo; que se incarna- rá na língua (única incarnação do Logos que Hegel conhece); e é a razão pela qual Hegel, o filósofo que proclamara que o mundo da metáfora é o mundo ao revés, ignora absoluta­mente a crítica da linguagem. Ele critica o mau uso da lin­guagem, — palavra e pensamento, sermo e verbum, é reali­dade espiritual. . . A história da língua, a vida da língua, é, ao mesmo tempo, a história e a vida do espírito.” 7

A língua é a invisibilidade visível do Espírito — diz Hegel na Fenomenología — a sua realidade historicamente configurada e presente. Ao enriquecer-se de formas lógicas, torna-se mais expressivamente “real” — porque exprime mais

(5) Hoffmeister, Dokumente zu Hegels Entwichklung, Fr. Fro- manns Verlag, Stuttgart, 1936.

(6) Cresson et Serrau, ob. cit.(7) Koyré, Êtudes d’Histoire de la Pensée Philosophique, A. Co­lín, Paris, 1961, p. 183.

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poderosamente a Realidade, compreendida como um Todo. E a verdade está na Totalidade.

“A língua alemã, em relação a outras línguas modernas, oferece muitas vantagens; várias palavras, além disso, apre­sentam a grande propriedade de possuirem diferentes signifi­cações, e ainda significações opostas, de tal maneira que não se pode deixar de reconhecer o espírito especulativo da pró­pria língua.” E Hegel observa o prazer do pensador em pre- líbar, no encontro com tais palavras, o sabor especulativo que está espontaneamente entranhado no vocabulário, a identida­de dos contrários afluindo naturalmente na trama das cone­xões determinativas. Então, o entendimento ( Verstand), aves­so à contradição, não apanha o fluir dos contrários; tudo lhe aparece como contrasenso. Somente a Razão, que intui aquele fluir heraclitiano, capta o sentido verdadeiro do devenir. “A língua e a terminologia hegelianas — discorre Koyré — efetuaria, pois, a síntese das significações diversas incarnadas nas palavras”.

2. A riqueza semântica do alemão. Os termosambivalentes. A dialética imánente da palavra.

A riqueza semântica de que dispõe o alemão, graças, en­tre outros recursos, aos prefixos verbais (indicativos de ori­gem, com ab, aus, ent; de fim, com er, ver, nach; de aspec­tos incoativos, com ein, empor; de progressividade, com er, durch), que modalizam, nuançam, captam conotativamente o devenir do Real na intuição plástica da expressão viva; o ge­rundivo de aposição, de alta carga expressiva; os processos de substantivação do verbo e do adjetivo, por composição e derivação, que melhor concentram a descrição do fenômeno, permitindo, ao mesmo tempo, ao lado dessa tensão deíctica8,

(8) O adjetivo usado vem do verbo grego deíknomi, indicar, apontar com o dedo, deíkelon, imagem, díke, direção, regra, lat. dico, dicere, index (digitus)', família de vozes reveladora da selva filosó­fica sendimentada na evolução das palavras. Nesse exemplo, entre cen­tenas, vê-se o caminho do concreto vivencial para o sinal abstrato, o dedo, o gesto humano, que se interioriza, se faz palavra, a palavra

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maior força, maior vis abstractiva, e, portanto, generalizante. Mas não é somente nos processos gramaticais que a energia expressiva anima de alto tonus os valores especulativos.

Bally e Wartburg, para citar apenas esses dois mestres, estudaram a feição estética do francês (podem-se estender algumas conclusões às neolatinas), comparando-o à feição dinâmica do alemão. Malblanc, discutindo a questão, opõe embargos que apenas reduziram a amplitude das conclusões. Recolho algumas notas sobre o modo porque a natureza dia­lética do pensamento se reflete inconscientemente na lingua­gem: enquanto o verbo alemão apreende o movimento ou a situação dinâmica no seu aspecto externo, o verbo neo-latino exprime o modo ou o aspecto do movimento. Quando, por­ventura, reflete o dinamismo, fá-lo subjetivamente, pelo seu aspecto interno ou inspecto. Ensina Malblanc a propósito: “o francês vê o acontecimento, o fenômeno interno, quando o alemão vê o exterior.” A diversidade das intuições se traduz na preferência pela voz passiva, no alemão, que é o fenôme­no encarado pelo ângulo do objeto — e não pelo do sujeito agente. Facilmente exemplificável: Je trouve cette idée très nette. Dieser Gedanke scheint mir recht klar.

Os verbos reflexivos, em que o sujeito se volta sobre si mesmo, mais abundantes no francês, dão margem, no alemão, às formas passivas. O francês — opina Malblanc — insere, no fenômeno observado de fora, o movimento interior, ativan­do-o animisticamente. Onde Nietzsche diz Da wurde Eins zu Zwei, o francês traduz Un se fit deux, o que dá uma visão imánente do processo. Com isso, abre-se uma intuição subje- tivista; a frase alemã porém conservou a objetividade. Não hesito em dizer que, no idioma francês, há fatores conspirando pela imanência. Exemplifique-se: emprego do participio pre­sente, do gerundivo com a preposição en. Ao traduzir, o ale­mão usa wenn ou ais, imprimindo um giro fraseológico onde se pressente o tropismo para a objetividade. Malblanc escla­rece: “O alemão vê ações, onde o francês vê atos”. Tai résolu. Es ist mir ernst.

nascendo da mão, desligando-se do sensorial, abrindo o hiato interno, alvorecendo na racionalidade.

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Daí partimos para interrogações mais fundas. A noção de causalidade tem origem gnosiológica na intuição subjetiva. Os verbos transitivos são elucidativos: o sujeito representa a causa; o conhecimento, o efeito. Nas construções sintáticas, as orações subordinadas causais oferecem, nas duas línguas, fisionomias estilísticas diferentes. Assim, enquanto “o alemão reflete o aspecto objetivo do fenômeno, o francês vê frequen­temente ou quer ver do interior; o francês julga a priori o alemão a posteriori” 9.

3. O sentido deictico do “da”. Wirklichkeit e Actuosidade. Outras vozes.

Os tradutores anotam a cada passo o caráter deictico do da, com mais insistência do que ocorre ao es ou so, na semântica alemã. Da-sein entrou na terminologia corrente co­mo Ser-aí, Ser determinado (lembre-se a grande família deic- tica damit, dagegen, darauf, darunter, darum, daruber, etc.). É um Sein das urgleich Beziehung auf Anderes, also, auf sein Nichtsein hat — ensina Hegel. É o limite de algo: die Grenze und Sehmnke des Etwas. “Dasein” — interpreta Mure — en­quanto categoria de Qualidade, é quale, da qual sua qualida­de não pode ser distinguida: a qualidade é quale quantificado.

Eis uma prova fácil para verificar a imprecisão da tra­dução, por mais que se ajustem os dois textos. Tome-se ao acaso um trecho de Hegel:

Die Wahrheit der Erscheinung ist das wesentliche Verhãltnis. Sein Inhalt hat unmittelbare Selbstãndigkeit und zwar die seiende Unmittelbarkeit und die reflektierte Unmit- telbarkeit oder die mit sich identische Reflexión”.

Eis a tradução feita por Jankelevitch:. . . .C ’est le rapport essentiel qui constitue la vérité du phé- noméne. Son conterui posséde une independence immediate, et cela aussi bien en tant qu’immediateté, qui est une imme- diateté étant et immediateté reflexie, ou en tant que reflexión identique à soi.

(9) Malblanc, Stylistique Comparée du Français et de l’Allemand, Didier, París, 1963.

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O leitor alemão começa diante do conceito de Verdade como fenômeno: Verdade = relação essencial. A tournure da versão vem da relação essencial como constitutiva da ver­dade do fenômeno. Há certo matiz entre “ser” e “constituir”. Por sua vez, a “independência” não conota precisamente o “Selbst-standigkeit”, que lembra “auto-nomia”, inadequada­mente. E o “con-teudo” diante o “/n-halt”? O “seiende Unmittelbarkeit” exigiu violentação no francês com a “ime- diatété étant”. No castelhano, Mondolfo preferiu “imediación existente”. Se continuarmos balanceando impropriedades, te­remos de observar como se ajustam “imediatidade”, “imedia­ção” como correspondentes a “Unmittelbarkeit”, “Unmittelbar”. Há, com efeito, passagens extremamente difíceis para uma tradução rigorosa do pensamento hegeliano, exigindo perífra- ses e recursos idiomáticos diversos. Como verter Realitãt e Wirklichkeit, Seiendheit, Dingheit, Urgrund, Allmãlichkeit, em contextos onde tomam coloração especial na trama do pensa­mento embebido de tonalidades idiomáticas?

Os conceitos que a estilística moderna classifica de ambi­valentes — “palavras que podem exprimir duas direções con­trárias” — espelham a dialética espontânea do espírito crista­lizada na linguagem. Os filólogos redescobrem descobertas he- gelianas. No caso do verbo heben, que, prefixando-lhe auf, significa, do mesmo passo, suprimir e conservar, ascencional­mente, temos a categoria básica do devenir hegeliano, que tem algo de demiúrgico. Nele, Hegel foi encontrar o termo de que precisava para conceituar a síntese como superação dos contrários. Mas há outros exemplos.

Eis dois pares de qualificativos, formell-formal, ideél- ideal. Mery propõe ideei no sentido de reflexão pura, de abs­tração de natureza ideal; e ideal, no plano da especulação viva. Formei seria categorial; formal, excluiria tal accepção. Não tive ensejo de estudar, nos textos hegelianos em que aparecem as expressões, até onde tal interpretação seria legí­tima.

Aludi acima a Wirklichkeit. Lembrando-se do verbo wirken, Wallace verteu por actualitas; Mure preferiu Actuosi­dade ou poder, Jean Hypolitte, efetividade. Nessas vozes, vê- se que há um núcleo significativo comum, mas percebe-se a64

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imprecisão dos termos empregados. Freqüentes vezes, Janke- levitch transladou Grund por fundamento, outras por razão ou causa. Urgrund seria o fundamento primordial, desde que o prefixo ur, mais forte que er, denuncia situação ou fase pri­mitiva das coisas ou representações. Esse prefixo nominal carrega-se de tonalidade na linguagem de Hegel: Ur-sache, Ur-mensch, Ur-ding, UrAeil. E que dizer do Ent-ftemdung, Ent-zWeiung, Ent-àusserung, que são conceitos de densa reper­cussão especulativa? Já tratamos do assunto noutro capítulo deste livro.

4 . Formação de verbos: prefixação nominal e verbal, com carga especulativa.

Às vezes, enquanto a voz alemã conserva o sentido pre­sente e vital das raízes componentes, a latina esvaiu, esmaeceu, e não resta na consciência erudita senão o resíduo semântico. No Begriff está bem vivo o greifen, a ação de agarrar, de pe­gar, que a análise etimológica vai discernir no con-ceptum, do verbo cápio, capere. Quando Hegel explana sua teoria do Conceito, a explicação do Begriff ajusta-se à intuição viva do Real; e gera o “juizo”, ao cindir-se organicamente ( Ur-teil). Sugestão que vem do próprio idioma, onde vive o Espírito. Razão porque Koyré e outros estudiosos hegelianos não acei­taram o Begriff como noção, conforme traduziram Wallace e Nohl, mas como conceito. “Se o filólogo não é capaz de fa­zer a filosofia de sua arte — escreveu Poncelet — abandona­rá entre as mãos dos filósofos profissionais a sementeira de futuros filólogos” 10.

Mery trasladou verstanding por conceituai, alegando que “entendimento” ( Verstand) é conceito abstrato; e que o Be­griff hegeliano é conceito concreto. No mesmo teor, Jean Hypolite na versão da Fenomenología, aventou gemeine Vers­tand por “senso comum”, e gesunder Memchenverstdnd por “bom senso”.

(10) Djacir Menezes, Proudhon, Hegel e a Dialética, Zahar, Rio, 1966. — Do mesmo autor. Raízes pré-socráticas de Temas atuais, Imprensa Universitária, Fortaleza, 1958.

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O ver alemão ajuda a formação de verbos, dando-lhe a significação de conclusão ou negação (v .g . , vergehen, ver- derben, vetrirmen); de transição para estado novo (v .g ., vergolden, verkarten, verbeamten); de oposição negativa ao sentido que tem no radical ( v .g. vertraumen, verkemmen, verkleiden, vertaufen). Também no sentido fatitivo. Para o famoso conceito de “alienação”, o prefixo verbal facilitou ma­tizar o pensamento além do que exprimem os idiomas neo­latinos. Houve quem arrolasse nos escritos hegelianos de Marx os seguintes termos: Vergegenstândlichung, objetificação do social; Veraüsóerung, alienação que transforma as estruturas em parelhos de dominação. Observe-se que fomos levados a mencionar desinências um tanto estranhas aos radicais a fim de exprimir menos infielmente o vocábulo alemão. É o caso de V ergegenstartdlichung, “objetificação”, pois “objetivação” não exprimiria exatamente o que se deseja. Como, por exem­plo, verter Entwirklichung senão por “desrealificação”? Dizer “desrealização” seria outra coisa diferente do que está no texto. “Descoisificação” ainda seria mais rebarbativo no ver­náculo.

A propósito de “alienação” {Entfremdung), referido an­teriormente, Cottier alvitra o termo cenóse. E Franz Gregoire conjectura: “O caráter estranho, estrangeiro (fremd) e hostil (feindselig) das coisas, suscita em Hegel, posto diante delas, um sentimento de desunião (Entzweiung, Trennung), de afas­tamento (Entfremdung), de alienação, de despossessão de si próprio (Entàusserung), em uma palavra, de divórcio. Sen­te-se fora de si, frustração (entaussert).

5 . Valor demântico e especulativo das conjun­ções.

“Língua e linguagem de Hégél — discorre Guido Oldoni— possuem uma originalidade peculiar irrepetível. Notou re­centemente Negri, em apêndice à sua tradução revista da Fenomenología do Espírito, que “o periodizar alemão, na sua longa freqüência de proposições subordinadas e longas inver­sões, é um produto do humanismo, e tem diante de si como modelo o que genericamente se chama o estilo ciceroniano”.66

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E prossegue: “Considerando-se o fato de que a característica Deutscheit de que Hegel reveste suas próprias formulações, alcançando vocabulário por vezes bastante rico de vozes e locuções específicas, importa, em aparência, imediato desta­que de matiz etimológico clássico e humanístico e diferença no andamento do estilo, que em Hegel não segue, como em Cicero, uma linha ampla, ondulante, com largos giros cons­truídos de assonâncias, antíteses, alternativas simétricas, mas antes opõe-se à facunda retórica ciceroniana, o cunho ora solene, ora nervoso, mas não clássico, de uma concepção res­trita, sintética — levando-se tudo isso eiñ conta e não se aferrando ao significado, a linguagem de Hegel, prossegue Negri — não oferece maior resistência a ser vertida em italia­no escorreito quanto o vulgar latinizante de muitos escritores de todo o século poderia oferecer-nos a ser vertido no alemão moderno”.

Parece que Oldoni, no período acima, quis imitar o mo­delo ciceroniano que gabava, alongando-o a todo fôlego. Mas não tem o gosto do estilo hegeliano. Ao traduzir ao português certas passagens hegelianas, anotamos esse fato: os tradutores ingleses e franceses (Struthers, Knox, Jankelevitch, para citar os últimos aparecidos) nem sempre apreciam o papel que desempenha na periodização o valor semântico — e especula­tivo! — das conjunções e de outros recursos conetivos. Pre­cisamente, o jogo dialético que está na estrutura sintática do período alemão amortece ou desfaz-se ao passar para o idio­ma do tradutor. O pensamento hegeliano sofre certa descolo­ração da força original. Algo daquela potente concisão de que falava Croce se perde numa flacidez vulgar. Esse defeito começa nas primeiras traduções com Vera, Wallace, Bernaíd e Barriobero y Herran, nos fins do século passado. Muitas vezes, para evitar a longurá do período articulado de conexões, Papaioanou e Jankelevitch não hesitam em fazer orações prin­cipais e coordenadas de orações relativas e subordinadas ou passar formas substantivas abstratas alemãs para verbos im­pessoais e perífrases, onde esmaece o sentido originalu .

(11) Poncelet, Cicerón, traducteur de Platon, Brocard, Editeurs, Paris, 1949.

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Que dizer de locuções técnicas? Oldoni fez valiosa pes­quisa nas traduções de Vera, apontando erros e desastrados arranjos. Entretanto, foi o pioneiro nas versões dos textos ale­mães para o francês12. Os que vieram depois, foram capri­chando na fidelidade e aprendendo nas experiências anteriores. Pois ainda assim, Croce fracassa em várias passagens. A pon­to de Oldoni dizer taxativamente: “Assinalamos, a título de mera curiosidade, que em qualquer lugar da Logica é exata a tradução de Vera e errada a de Croce”. Quer dizer: onde Croce divergiu de Vera foi para errar.

6. O valor dos exercícios idiomáticos.Desde seus primeiros escritos, ainda no seminário do

Stift, Hegel se apaixonara pela análise do sentido das pala­vras, auscultando-lhes a vitalidade íntima. As línguas clássi­cas lhe segredavam a invisível palpitação do Espírito. Falou, nos seus Ueber das Exzipieren, no noviciado do magistério, sobre o valor filosófico dos exercícios dos idiomas estrangei­ros em virtude das sugestões que derivam da “plena desigual­dade entre o alemão e as outras línguas”. A respeito, Glockner cita esta opinião de K. F. Irving: “Compondo palavras, for­mamos também conceitos; são, simultaneamente, ação da al­ma e ocorrem do mesmo m od o.. . O estudo da língua, se ligado ao ponto de vista filosófico e ao conhecimento da sig­nificação das palavras para a finalidade, merecem grande aten­ção, tanto para o próprio entendimento, quanto se torna de maior importância para a própria História”. *

(12) Hoffmeister, Dokumente, p. 444, passim.(*) Onde recorreu a perífrase, a traição ao texto foi flagrante. Vera, por exemplo, traduziu An-sich e por vezes An-sich-sein por ma-

tière individualisée, existence propre, dans Vessence, virtuel virtualité, virtuellement, ideal. As locuções fuer sich e an und juc'r sich por realité, absolument, étre absolu, etc. Andersein é posto no francês, ora como varielé, ora como séparation ou existence extérieur, que tam­bém serve para traduzir Aussereinandersein. Quando Hegel usa Inner- lichwerdung, significando interiorização de algo exterior, difere de Errinerung, que se não conotam nas duas versões.

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IV

AS HEGELIANIZAÇÕES SOVIÉTICAS

1. A “qualidade” como determinação essen­cial da “coisa”. 2. O quantitativismo apaga as oposições qualitativas. O truque racional do quantum. 3. O dogmatismo soviético e as hegelianizações heréticas. 4. Negatividade e organicidade do devenir. 5. O afã de “mate­rializar” a dialética. 6. O intuir concreto, uni- ficador de nexos: a Verdade é o Todo. 7. Astúcias da Razão.

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Sic kommen aus ihrer Hodie herous, mit Schrecklichen Mienen. . .

Nietzsche

1. A “qualidade” como determinação essencial da coisa.

Por volta de 1934, quando escrevíamos tese para cáte­dra e nos enfronhávamos avidamente nos estudos hegelianos, deparamos na obra de PONTES DE MIRANDA, o mestre nacional que mais influência teve em nossa formação acadê­mica, esta síntese, que nos pareceu definitiva: “á qualidade é o aspecto sensorial da quantidade”. Eivado de biologismo (DARWIN, LE; DANTEC, BUCHNER, SIGHELE, INGE­NIEROS, LE BON, com fortes influxos de COMTE, eram o lastro da literatura acadêmica no Ceará daqueles idos) a frase nos encantou: era a diretiva metodológica que vinha a calhar ao cientificismo fin de siècle, que perdurava na provín­cia estudiosa. Os que encaravam hostilmente o bergsonismo, continuavam jurando pelos velhos deuses.

O ataque contra o quantitativismo partia do front idea­lista e espiritualista: tanto bastava para que as armas se le­vantassem, com jovem belicosidade. Materialismo significava “objetividade”. Simplifica-se: o quantum era. a. propriedade inabluível da “matéria-em-movimento”. Conseqüentemente, a linguagem matemática representava o instrumento por exce­lência da investigação e do pensamento científico. Escrevía­mos: “A linguagem matemática tem sido incessantemente e laboriosamente aperfeiçoada. Ela forneceuovas possibilidades ao estudo da fenomenalidade objetiva. Como instrumento po-

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deroso de investigação, dá-nos forças para avançar no báratro dos fenômenos que se desenrolam no mundo das realidades.” 1

Relemos isso com a distância de trinta anos. Durante o itinerário, não paramos de pensar os mesmos problemas, en­quanto experiências novas e novos autores abriam perspecti­vas e interrogações cresciam. Não procedemos agora a abju- ração daqueles velhos pontos-de-vista. Diga-se antes que os repassamos e atualizamos.

Para isso, concorreu poderosamente o ininterrupto estudo do hegelianismo. Somos hegeliano? Talvez. Não vem ao caso a matrícula porque não estamos dispostos a jurar qualquer fidelidade a sistemas, não hesitando em desrespeitá-los. Há mesmo secreto prazer nas atitudes heréticas. . . Mas devemos à interminável leitura do filósofo a intuição de que o aspecto quantitativo é exterior: a determinação essencial da coisa está na “qualidade” -— die unmittelbafe Bestimmtheit des Etcas— como noção imediata de “algo”. É por sua “qualidade” que um objeto é o que é, o id quod est dos escoláticos. Já o quantitativo emerge do plano das propriedades, que Hegel explica como sendo relação entre qualidades — bestimmt Beziehungen auf Anderes. De onde se pode inferir que a quan­tidade é a manifestação “exterior” da qualidade.2 Mas é preciso ter presente a relação dialética que nos mostra a interpenetração dos opostos como eficácia da negatividade: de contrário, voltaríamos a considerar um tanto kantiana­mente a “qualidade” como aspecto sensorial de “quantida­de” — escapando-nos a “contradição” em que se fundamenta a relação.

Ao debater a lei dialética que ENGELS anunciou como a “transformação da quantidade em qualidade”, com exempli- ficação da física, da química, da sociologia -— a filosofia so­viética foi levada a esclarecer os conceitos empregados na demonstração. Em tal labor exegético, a especulação acabou aproximando-se das correntes tradicionais e reacionárias. O inimigo entranhava-se como um vírus na ortodoxia. Assistiu-

(1) Djacir Menezes, Teoria. Científica do Direito de Pontes de Mi­randa, Fortaleza, 1934, pág. 9.

(2) Hegel, Wissenschaft der Logik, Félix Meiner, Leipzig, 1923.

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se a malabarismos curiosos. Assim, KEDROW e LAPSIN enre- daram-se em sutilezas para distinguir entre “propriedades es­senciais” e “propriedades inessenciais”, isto é, as que são necessariamente ligadas à estrutura interna dos fenômenos e as que não o são. E o caso foi tão flagrante que um crítico apontou, quase escandalizado, a distinção de KEDROW como a redescoberta da tese escolástica sobre a predicação in se­cundo modo discendi per se e a predicação acidental! Tais “inteligências” com o inimigo causam pasmo e causam susto.

Mas o arrepio do susto fica à conta do sectarismo. Mes­mo entre filósofos, pensamentos gêmeos despertam bulha e rixa quando vazados em verbos diferentes. Seria interessante o exame comparativo dos léxicos da escolástica e do mar­xismo soviético sobre os problemas gnosiológicos das cate­gorias e conceitos de: Ser, matéria, idéia, universal, predica­mento, ipseidade, useidade, abãlidade, An-fur-sich-sein, Meine e Meinung, etc. As surpresas do parentesco maldito seriam alarmantes — para ambas as greis.

2 . O quantitativo apaga as oposições qualitativas.O truque racional do quantum.

A lei da mudança qualitativa determinada pela variação quantitativa pretende explicar a ruptura ou salto dialético, que caracteriza a passagem ou metamorfose de um estado a ou­tro. Uma qualidade corresponderia a oerta quantidade — e a variação desta, em certo limite nodal — acarretaria a su­pressão daquela, advindo nova qualidade. A primeira reflexão que nos acode vem a ser a de PONTES DE MIRANDA: o quantum seria essência, a ousía, do fenômeno; a qualitas, seu aspecto sensorial (subjetivo). Mas, à luz do hegelianismo, tal explicação não é absolutamente dialética. O qualitativo não é o adjetivo do quantitativismo substancial. A qualidade é deter­minação imediata e essencial do ser existente, do que neste é captado, — e a leitura apressada de HEGEL, balizada pelas notas descosidas de LENIN, não permite interpretação plena do sentido. Que significaria a passagem da quantidade à qua­lidade? O que se observa é uma variação da quantidade: a

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qualidade a do quantum passa a qualidade b, porque o quan­tum aumentou (ou diminuiu). As qualidades seriam mani­festações (aparências) dos quante ̂ — e o aprofundamento do processo cognoscitivo implicaria para matematização, ideal científico da era laplaciana e newtoniana. A medida seria o nexo vital entre “qualidade” e “quantidade”. As diferenças qualitativas seriam medidas em termos das variações quantita­tivas, LORD KELVIN altivamente declararia: “só compreendo aquilo que posso medir e só há ciência do mensurável”.

Tais pontos-de-vista vigoraram, mas não exprimem o pen­samento dialético.

“A quantidade é a determinação indiferente” — explica JEAN HYPPOLITE. “Traduzir quantitativamente o real é apagar as oposições qualitativas, é fazer desaparecer o conceito em favor da diferença indiferente, e, pois, ficar na identidade homogênea que não consegue distinguir-se e opor-se a si mes­ma”. 3 A matemática considera a diferença essencial, que se exprime na determinação da “grandeza” : mas não atingindo o processo dialético, que consiste na passagem qualitativa dos contrários, — vale dizer, no movimento da “negação da ne­gação”. De fato, HEGEL ensina que o que mais aparece, não é como aparece. A essência revela-se no fenômeno de maneira dialética, como sua negação — e a qualidade não se reduz à quantidade. O quantitativismo, suprimindo a “qualidade” como aspecto sensorial, ilusório ou subjetivo, para afirmar a validade do quantum, foi vítima de um truque racional. Por isso, desemboca na frivolidade de um evolucionismo sem al­cance, que deu solução frustre. No seu critério, as regiões on- tológicas do Ser — o inorgânico, o superorgânico ou social, e outras estratificações ônticas do Real — foram miseravel­mente escamoteadas. Daí não custou passar para aquela idéia da evolução como sucessão de emboltements, que é o emagre­cimento do processo, degenerando na concepção vulgar do mecanicismo.

Nessa idéia rasa e estéril não caiu, evidentemente, a or­todoxia soviética, graças ao pouco que lhe sobrou do hege-

(3) Jean Hyppolite, Genèse et Structure de la Phénoménologie de VEsprit de Hegel, Aubier, Paris, 1946, pág. 242.

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lianismo mal digerido, engulido às pressas, com medo do diabo idealista. Lá, o areópago de censores assusta sempre os filósofos. Mas, rejeitando a redução da qualidade à quan­tidade, salvaram o critério que levaria a melhor compreensão das “regiões ontológicas”. Na verdade, o critério qualitativo impediu se reduzisse o humano ao animal, o social ao me­cânico, o psiquismo ao fisiológico, e assim por diante.

3 . O dogmatismo soviético e as hegelianizações heréticas.

É espantosa a incapacidade de dialogar dos pensadores russos, observa GUY-PLANTY BONJOUR. E escreve: “A filosofia soviética é, seguramente, a menos crítica das filosofias: não sabe nem admirar, nem interrogar, nem ler os autores. Aborda-se o problema dos universais, o da substância, a difícil questão da dialética: a cada passo, deve-se esperar encontrar essa dupla afirmação: nenhum filósofo antes de MARX trouxe a verdadeira solução; ao contrário, MARX resolveu comple­tamente o problema. Nunca, em ponto de maior importância, depara-se-nos um filósofo soviético hesitante. Ele responde a tudo”. 4

Daí, o espetáculo divertido: gabam-se que são antidog­máticos, antiautoritários, dialogantes, dialéticos. E não há mais duro exercício do magister dixit: o pensamento asfixia-se sob a bota do Partido. Anota CHATELET: “O marxismo se cons­titui precisamente como dogmática no instante em que substi­tui o estudo objetivo dos acontecimentos pela vontade de en­contrar nos acontecimentos a confirmação dos princípios em que ele crê”. 5

Durante a vida de STALIN, a lei da “negação da negação” foi um tanto suspeita. Isso porque o livrinho chamado Mate­rialismo Dialético e Materialismo Histórico, de sua autoria, vindo a lume em 1938, não se referia expressamente a essa.

(4) Guy-Planty Bonjour, Les Categories du Materialisme dialecti- que, D. Reidel Publishing Co., Holland, 1965.

(5) Chatelet, Logos et Praxis, Sedes, Paris, 1962, pág. 155.

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lei. Tanto bastou para que a procissão servil dos teorizadores emudecesse a respeito. Ninguém se arriscava a ser carimba­do de menchevisante ou revisionista. Ao morrer STALIN, alguns pensadores cobraram fôlego e protestaram contra a ignorância da lei — que estava enunciada na obra de EN- GELS! Mais: que fora comentada por LENIN! Ferveu en­tusiasmo. KEDROW tentou desculpar o silêncio, dizendo: “A maior parte dos erros perpetrados em filosofia, nas ciên­cias e na técnica, especialmente nos anos de 1939-53, expli­cam-se por não termos levado na devida conta os ensina­mentos de LENIN sobre a lei da negação da negação”. Vai daí, remendando o engano, o ensino da lei passou a ser ofi­cial: foi incluído nos programas. Ainda assim, alguns res­mungaram contra essa “hegelianização do marxismo”.

O fató é que até então a exposição da lei da negação, se feita em termos hegelianos, constituía atentado revi­sionista ou artimanha traiçoeira, que podia ocasionar dis­sabores. Escrevem ROSENTAL e JUDIN, no conhecido Di­cionário Filosófico Abreviado, que HEGEL “neutraliza, concilia os contrários, empenhando-se em atenuar a luta aguda que se desenvolve no seio da sociedade em classes antagônicas”.6 É uma ingenuidade gaiata ou descabelada falsidade. HEGEL concentrou a atenção no problema filosófico e não no lado social do problema: e criava a dialética moderna. Em 1944, o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética condenou severamente o terceiro tomo da História da\ Filoso­fia, feito por equipe adestrada de autores, “porque diluiu a diferença radical entre dialética hegeliana e dialética marxista”.

Muitas barbaridades são postas à conta de HEGEL. STIEHGLER, estudioso de fina perspicácia, afirmou, por exemplo, que a “idéia do automovimento é mistificada por HEGEL, pois, segundo parecer deste, é a Idéia absoluta que move sua própria dialética e não a luta dos opostos, que pro­duz a aparição da contradição e respectiva solução”. Eviden­temente, a Idéia, que é o capítulo final da Wissenschaft der

(6) Rosental y Judin, Dicionário Filosófico Abreviado, Ediciones Pueblos Unidos, Montevideu, 1959. — Djacir Menezes, Hegel e a Filo­sofia Soviética, Zahar Editores, Rio, 1959.

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Logik, não é de modo algum o primum movens demiúrgico. Tal concepção negaria todo o esforço gigantesco despendido pelo filósofo para elaborar a concepção monística do Ser e do Logos, aspiração suprema da especulação hegeliana.

4 . Negatividade e organicidcde do de\>enir.Voltemos, todavia, a ROSENTAL e JUDIN. Nos vários

verbetes do dicionário citado, afirmam coisas de espantosa leviandade a respeito de HEGEL. Sobre a lei da negatividade avançam: “esta fórmula, empregada pela primeira vez em filosofia por HEGEL, designa o desenvolvimento do inferior ao superior, conservando certos elementos positivos do velho. Todo o processo do desenvolvimento está subordinado em HEGEL a tríadas — teses, antíteses, sínteses. Para HEGEL, a negação da negação é “essencialmente um instrumento que permite edificar suas construções idealistas artificiais”. Segue- se a declaração de que os inimigos do marxismo e as variantes revisionistas empregaram a lei para seus fins demolidores. Ei-los, entre outros: BERNSTEIN, DUHRING, MIHAI- LOVSKI.

A refutação do trecho é fácil, porque nada tem de HE­GEL. GOTTFRIED STIEHLER é mais honesto, porque cri­tica texto lido e meditado. É o que se vê no exame que faz da diferença entre “negação lógica” e “negação dialética”, coi­sas distintas: “A negação de um determinado fenômeno não é negação vazia, não é o nada, mas grau superior de evolução, que contém os sinais (notas) de dado fenômeno, embora pos­suam caráter permanente, reproduzindo-se sob relações mais ricas e desenvolvidas”. Sendo assim, reconhece ele que na negação residem, a par de negatividade, “elementos de afir­mação, de conservação do positivo”.7 Aliás, a tese dificilmente se poderia sustentar sem a noção hegeliana do Begriff, que, por sua vez, implica o real como ideal, na superação da uni­dade dos opostos. Mas tal superação do real-ideal é vista pela

(7) Gottfried Stiehler, Hegel und der Marxismos über den Wider- spruch, Diezt Verlag, Berliíi, 1960, págs. 188-189.

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ortodoxia marxista como “forma mística da dialética”. Cui bono? Em tais impasses, desanda-se para a diatribe. ALBRE- CHT, refutando BOCHENSKI, acaba acusando-o de ser “a expressão mais crassa do ódio à filosofia alemã”. É um desa­bafo; não chega a ser uma objeção.

Na Wissenchaft der Logik, às tantas, encontro a reflexão seguinte, sobre passagens que vimos comentando: e para com­preendê-las bem, temos de esquecer as “tríadas” e os concei­tos de “superior” e “inferior”, de ROSENTAL e JUDIN, tal qual estão no seu péssimo enunciado. Precisamente o que HEGEL exprime é a organicidade do Werden, o heraclitianis- mo do devenir. E o que nos dão os dois autores, repetindo os compêndios soviéticos? Precisamente o que HEGEL se recusa & admitir, ao falar sobre aquela representação como “reflexão extrínseca”, que se estabelece por comparação exterior, po- der-se-ia dizer, mecanicística, entre tese e antítese. O que HE­GEL explica é a natureza íntima do devenir das coisas, que reside no “aparecer do positivo no negativo e incluso seu “por- se a si mesmo” como outro”. Releia-se a sutileza de exposição do livro II, seção C. nota 1, da Wiss.d.Logik, sobre o rela­cionamento do positivo-negativo, para verificar que estamos a enorme distância das inépcias articuladas como hegelianismo pelos sobreditos autores. Crítica feita assim é, positivamente, improbidade. No final da nota anexa, HEGEL resume: “Um ■dos conhecimentos mais importantes é o entender e estabele­cer essa natureza de determinações reflexivas consideradas, isto é, que sua verdade consista só na sua relação mútua e, por conseguinte, no fato apenas de que cada uma, em seu conceito próprio, contém a outra. Sem tal conhecimento não é possível, na Verdade, dar qitqlquer passo em filosofia”.8

Os “momentos” se fundamentam na contradição — que não se segmenta em “tríadas”, como afirmaram os dois auto­res. Todo o gemebundo esforço dos filósofos soviéticos, nestes cinqüenta anos de especulação vigiada, não lhes deu o sentido exato da dialética da obra de HEGEL. E quando porventura algum mais atilado, esquecendo a vigilância, formulou pen­samento mais original sobre o assunto (DEBORIN, por exem-

(8) Hegel, Wiss, d. Logik, ed. cit.

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pio), logo lhe caiu sobre a cabeça o punho bestial do Partido. Contra as tríadas artificiais há essa lição profunda:

“A diferença, geralmente, contém seus dois lados como momentos; na diversidade, esses lados se excluem indiferente­mente (sich gíeichgültig auseinander); na oposição como tal, eles são lados da diferença, um determinado pelo outro, por­tanto, como momentos; são porém determinados em si mes­mos, indiferentes em face um do outro (gíeichgültig gegenei- nander) e excluindo-se reciprocamente (und sich gegenseitig ausschliessend): são as determinações reflexivas independentes”. Adverte HEGEL que a determinação reflexiva • independente deve sua independência ao que se contém na outra, e, ao ex­cluí-la, elimina-se de si mesma. Com isso não se caracteriza como independente, porque perdeu a sua determinação negati­va, advinda da relação. O positivo e o negativo “pousam” a contradição ao se “pousarem” eles próprios, cada qual se su­primindo e “pousando” seu contrário (das Positive und Negative sind der gesetzte Wíderspruche):

“O negativo, que se opõe ao positivo, tira sua significa­ção apenas desse relacionamento com seu outro (in dieser Beziehung auf díes sein Anders); ele o contém em seu con­ceito. Mas o negativo tem também sua existência própria ( ein einigen Bestehen); é idêntico consigo mesmo; destarte, é ele próprio o que o positivo devia ser”. Toda a minuciosa e tortuosa argumentação desenvolvida sobre o tema é o es­forço de exprimir a dialética imánente ao jogo das determina­ções, que se não imobilizam no “conceito”, qual o formali­zou a lógica tradicional. Lendo-o, assiste-se ao labor de pen­sar dialeticamente a dialética. O que parece malabarismo es­peculativo é coisa bem diferente. Entretanto, diante da lição genial, muitos hermeneutas da ortodoxia marxista se conten­tam em redizer trivialidades a respeito do idealismo, em críti­cas que nem sequer roçam as páginas do filósofo.

5 . O afã de "materializar” a dialética.Não se mantém de pé a acusação de que a metafísica

idealista isolou os termos, separou teses e antíteses do con­79

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tacto com o processo real, que totaliza a conexão dos fenô­menos.

Senão, vejamos. Quem destaca e esclerosa, nessa meta- physique figée, as determinações? Os próprios acusadores, ig­norando a matéria criticada. Posta a tese, não surge, como posterius, a antítese. Ao determinar algo como A — expli­ca-nos METZE — delimito-o de todos os não-A. Assim, deve tomar-se a determinação de A em sua imediatidade, a media­ção do não-A Nada, como se percebe, mais estranho à con­cepção da tríada mecanicística.9 Na Fenomenología do Espí­rito, a contradição se manifesta através das metamorfoses da consciência, no processo do “ser-em-si”, do “ser-para-si” e do “ser-em-si-e-para-si” (Ansichsein, Fürsichsein, Anundfii- sichsein). Ali, as “reflexões” da consciência se anunciam nas formas da consciência sensível, do entendimento e da razão: é o crescer dinâmico do “logos”. Na Ciência da Lógica, o es­quema da tese-antítese-síntese é apenas outra maneira de ex­posição, que abriu a porta a tantas incompreensÕes.

No prurido de materializar a dialética (no programa mar­xista: de pô-la nos Seus verdptdeiros pés), perquiriu-se a luta heraclitiana dos contrários no seio da unidade objetiva. Dali se refletiria na mente dos homens, o que elimina, por sua vez, a relação dialética entre a mente e o processo real. Mas a idéia de “conflito” ou “litígio” (o pólemos, de HERÁCL1TO), oriunda de nível humano, aplicando-se ao inanimado, não se­ria intuição animista? A “dramaticidade” da contradição haure certa tonalidade afetiva, com essa projeção das relações hu­manas nas relações naturais. CHATELET não trepida em dizer que “na idéia de uma dialética da natureza, há uma trans­ferência ilegítima de uma realidade revelada no nível da ação humana, vinculada ao trabalho e à história, para a realidade natural”.10 O sentido dialético só aparece na consciência his­

(9) Erwin Metze, Hegels Vorreden, Kerle Verlag, Heidelberg, 1949.

(10) Chatelet, ob. cit., pág. 33. Cf. Djacir Menezes, Mondolfo e as Interrogações do Nosso Tempo, Imprensa Universitária, F. N. Fil., Rio, 1963. Cf. ensaio de G. Gentile sobre La Riforma delta Dialectica hegeliana.

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tórica, porque o pensamento tem historicidade. É datado: efetua-se no seio de uma época determinada. Encontramos no estudo de um marxista já citado, GOTTFRIED STIEHLER, a afirmação de que HEGEL determina a negatividade como força produtiva do pensamento e da realidade, acentuando em palavras vigorosas a inaudita potência do negativo”. Na verdade, a teoria do “conceito” de HEGEL é a chave da in­terpretação, que se omite sempre na argumentação ma­terialista corrente. É claro: se o sentido da contradição só existir no nível da consciência reflexiva e racional, — como falar de uma dialética real, imánente às coisas; independente da apreensão humana? Num escrito juvenil, disse MARX que a raiz do conhecimento e das ciências é o próprio homem. De acordo: a cultura é vitalmente antropocêntrica — e a dialética implicaria a interpretação humana do universo.

5. O intuir concreto, unificador de nexos: a ver­dade é o Todo.

LENIN, marchando no compasso de ENGELS, falou no positivo e negativo da eletricidade como contrários. Não seria expressão da “dialética do real”? Independente da consciência? O “conflito” não é objetivo? As oposições se processam na natureza e na sociedade. Mas sua transposição para a cons­ciência, sua apreensão e formulação humanas, desfecha na interpretação antropocêntrica inevitável: é a dialética. O sen­tido de “negação”, de “qualidade”, de “propriedade”, em su­ma, das “determinações” ou “conotações”, sintetizados no “conceito”, revelam-se historicamente mediante o logos e a praxis. Quando os dialéticos soviéticos falam no “negativo como desigualdade do fenômeno consigo mesmo” (das Nega­tive ais Ungleichheit der Erscfteinung mit sich selbst), não escapam do hegelianismo e empregam — como é traiçoeiro o terreno! — a mais refinada linguagem idealista.

“Em minha Fenomenología do Espírito” — escreve HE­GEL — “que foi considerada por isso como sendo a primeira parte do sistema de ciência, o itinerário começa da inicial e mais simples aparição do espírito, a “consciência imediata”,

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para dali desenvolver a dialética até o ponto-de-vista das ciências filosóficas, cuja necessidade é demonstrada por essa progressão (Fortgang). Não se limitaria, evidentemente, ao lado formal da consciência espontânea, pois o ângulo do saber filosófico é em si o mais rico de conteúdo e o mais concreto (gehaltvollste und konkreteste Wissens); e, produzindo-se co­mo resultado, pressupunha também as formas concretas da consciência, como, por exemplo, da moral, do costume, da arte, da religião”.

Da citação feita, vê-se que HEGEL não considera os aspectos fenomenais e categoriais abstratos, mas as configu­rações historicamenlte concretas da consciencia, o que sitúa o problema de maneira diversa. Atente-se no aspecto tran­sitivo da consciência imediata para a racional: o conceito já concreto e ainda abstrato. O filósofo quer mostrar como se passa do pensar parcelante, que cinde e fixa as determina­ções (maneira de trabalhar do entendimento, Verstand), que é via abstratizante, formalizante, para o pensar superior da ra­zão dialética, que intui o devenir concreto, totalizante, unifi- cador de nexos; diríamos em alemão, konkretzummmenschau- enden Bewustssein.

A atividade filosófica se prénde vitalmente ao “concreto” e não à sua aparência, ou modo como surge a realidade ao entendimento, que confecciona o material utilizado por certa gnosiología científica a caminho do ceticismo. Este opera com determinações desvinculadas, que se esclerosam numa história feita de compilações de pedaços abstratos (eine Historie von mancherlei zusammengestallten Gedankenbestimnuingen).

O pathos da especulação hegeliana é o “pensamento con­creto”. A verdade é o Todo, das Wahre ist das Ganze; e o Todo é concreto. A parte, o particular, o fragmentário, é o abstrato, porque é o cindido, o isolado e insulado, o que se decepou e alienou da conexão, a determinação que se des­prendeu. “Apenas o concreto é o verdadeiro” (Nur das Kon- krete ist Wahre). A razão, diferente do entendimento, tem determinações. No conhecimento sensível começa a madru­gar a “consciência em-si”, que atinge o estágio superior no conhecimento racional, na “consciência-em-si-e-para-si”. Mas é no “conceito”, unidade das notas contraditórias, que resi-82

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de o problema gnosiológjco máximo: o do intuir o real. Como pensa o homem vulgar? Abstratamente — porque se atém ao “particular”, sensorialmente colhido. (Este abstrato, vulgar­mente, é o concreto). Ele perde o sentido do nexus rerum, que dá a vitalidade do processo. Compreende-se então porque especular não é transcender a Realidade, mas esgotá-la (aus- schopferi). Explica GLOCKNER: “Chamamos Real à Efeti­vidade ( Wirklickeit) e Ideal ao Logos ou Espírito ou Razão; deve-se dizer que na filosofia de HEGEL, Wirklichkeit e Vernunft não se contrapõem simplesmente, mas também se inter- penetram; pois Razão compreende a Realidade exatamente tanto quanto o Absoluto”. 11

Essa reciprocidade “interna” (o vocábulo alemão é ex­pressivo: Ineinander) da Razão e da Realidade na história põe-nos em face da Lógica como Teoria da Realidade, com seu princípio fundamental da contradição entre o Real e o Ideal, que se não excluem. O oposto está no posto, o abstrato no concreto, a essência na aparência, o espírito na natureza, a coisa nas suas determinações. Há a presença imánente do Todo nos momentos parciais, conforme viu GARAUDY.12 Sem o que as abstrações se cristalizam e secam.

7. Astúcias da Razão . . .Conclusão bem singela ressalta desse ligeiro relanço das

posições da ortodoxia soviética diante do hegelianismo em recrudescência. Depois de STALIN, cessando um pouco a pressão ideológica do Partido, alguns estudiosos começaram a hegelianizar em surdina. E apesar das declarações de serem materialistas a outmnce, de distribuírem seu desprezo pelos adversários, o terreno era resvaladio. O idealismo é um sata­nás ardiloso e armou arapucas traiçoeiras. A ortodoxia enta­

(11) Glockner, Hegel-Studien, H. Bouvier und Co., Verlag, Bonn, 1965, pág. 362.

(12) R. Garaudy, Dieu est Mort, Presses Universitaires de France, Paris, 1962. Cf. Gottfried Stiehler, Die Dialekíik in HegeVs “Ph&nome- nologie des Geistes", Akademie Verlag, Berlim, 1964.

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lou-se entre dois perigos: o da dogmatização de um escola- ticismo, que virava seita; e do revisionismo menschevizante, que viciaria a medula doutrinária do partido. Por efeito da­quela “astúcia da Razão”, de que falava HEGEL, o antidog­matismo tornou-se em dogma. A crítica vigiada é simulacro de crítica. O pensamento, cadenciado pela batuta oficial, per­de sua virilidade. Deu-se então o curioso paradoxo: a filosofia socialista, sob o cabresto da ditadura bolchevista, estiolou: e começaram a florescer novos rebentos para além dos seus meros, nos climas estranhos, onde o pensador não receia as lavagens do cérebro nem a censura inquisitorial das idéias.

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V

BREVE INTRODUÇÃO A HEGEL1. Vitalidade e Negatividade do Conceito. 2.

Juízo predicativo e juízo relacionai. 3. O vôo da coruja Minerva. 4 . Retrato falso de Hegel. 5. Hegel e o conservadorismo prussiano. 6 . Pensa­mento, linguagem, tradução.

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. . .die ursprüngliche Weltanschmng der Vòlker, disse grosse geistige Naturgeschichte. . .

Hegel

1. Vitalidade e negatividade do conceitoA Filosofia de Hegel toda se impregna de vitalismo: suas

categorias flexíveis têm a inspiração da vida. Embora abracem e cinjam a Totalidade, saturam-se de vitalismo, que se revela no sentido do desenvolvimento orgânico; mas organicidade essencial, implicando interioridade dialética, não se asseme­lhando a esse organicismo exterior, aparente, das interpreta­ções que encobrem apenas o mecanicismo. Por isso mesmo, em virtude dessa intuição interna do processo, é que muitos críticos descobriram, no insight hegeliano, a filiação genealó­gica nos grandes místicos — Bõhmer, Meister Eckardt, até Jacobi. Talvez por sugestão desta idéia, traduzi também, a exemplo de outros, entstehen e vergehert por “nascer” e “mor­rer”. Pensando melhor, ao situá-los nos respectivos contextos, acabei optando por “origem” e “extinção”, “aparição” e “de- saparição”, termos que se dilatavam para além dos limites bio­lógicos. É, contudo, um matizado semântico que tem pequeno valor em face de tantas outras dificuldades, que mencionarei mais adiante e nas notas finais deste volume.

O pensar dialético é o passo inicial para tentar compreen­der o sistema hegeliano. E não é fácil apresentar didaticamente o problema. Daí a forma adotada nesta coleção de excertos:

(*}■ Este capítulo serviu de introdução aos Textos Dialéticos, de Hegel, Seleção, tradução e notas do prof. Djacir Menezes, Zahar, Rio, 1969 (esgotado).

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é na exposição de temas históricos, políticos, estéticos e me­tafísicos que se pode aprender a marcha dialética. Deixou-se para a última seção o exame da dialética, conforme os textos do filósofo. Por que não seguir a marcha do pensamento he­geliano na sua concepção sistemática? Seria então — a Idéia (lógica), a Natureza e o Espírito absoluto. Dito singelamente, a impressão dessa sinopse é quase caricata. Então a caricatura é inevitável — e divulgou-se com Karl Marx! Tratar-se-ia de simples transunto da mitologia religiosa: Deus, forma antro- pomórfica da Idéia, que cria o Mundo e volve aos Céus. Mas a interpretação mítica é uma das formas primitivas do pensa­mento em face do mundo exterior: uma filosofia dramática de ação, uma cosmovisão da mentalidade primitiva, envol­vendo o que seria futuramente a própria intuição filosófica e científica das coisas. Já nos escritos juvenis de Hegel, ver­sando o problema do cristianismo, pressente-se o esforço racio­nal e lúcido sob aquelas aparências. Vários teólogos o adivi­nharam — e protestaram. Onde críticos apontaram tentativas de clericalizar a Filosofia — aqueles teólogos acusaram de tentativa atéia e descristianizadora.

Na sua cosmovisão histórica repousa uma grande inspi­ração: o perquirir de um nexo íntimo dos episódios universais, que traduzem o Espírito, resulta de uma visão do sentido do desenvolvimento humano para a consciência de si mesmo. Há uma conscientização crescente no processo histórico: o Espí­rito absoluto não é um ponto de partida, mas um resultado. A unidade do pensamento e do ser é a categoria fundamental. Mas unidade dialética, identidade de contrários. Hegel chama a força impulsiva da atividade do Espírito de “negação”, que se recria na “negação da negação”. Não é a negação formal, de que trata a Lógica tradicional. É contradição ontológica, na identidade do ser e do pensamento. Na linguagem da Ciência da Lógica, “realidade” é unidade da essência e do fenômeno, da Idéia e da Existência. A unidade formal é do nível do entendimento ( Verstand)’, só a dialética exprime o nível racional. Todo esforço de Hegel se desenvolve no desíg­nio de triturar, digerir o dualismo, que cinde os contrários, na identidade movente, dinâmica, da contradição. Assim, a antiga88

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Lógica formal torna-se uma coleção e classificação de “formas de pensamento” no nível do entendimento ou do senso comum, privada de conteúdo vivo. Por isso, a Lógica hegeliana é uma ontologia. Mas ontos penetrado do logos: monismo vivo. Esse viver não se circunscreve, porém, ao mundo biológico vulgar: é o processo universal das coisas.

Daí dizer-se que a Filosofia de Hegel é essencialmente concreta — e o Espírito absoluto é o concreto supremo, a síntese última, Totalidade in fieri. Deus? Não sendo ex ma­china, poderia parecer aos olhos do noviço como um panteís­mo. Há neste livro páginas de boa argumentação para desfazer a suposição. Fica ao leitor o prazer de deletreá-las, nas pró­prias palavras do filósofo.

Não se julgue, porém, que a percepção ordinária das coi­sas, eliminada a contradição íntima para a sua representação abstrata, seja o “erro” da Lógica formal diante da Lógica dia­lética. Não se cuida de erro. A consciência vulgar, que se exprime no entendimento, é uma fase na evolução da cons­ciência percipiente: eleva-se a nível mais álto, na razão: são graus de conscientização progressiva. O pensamento não é ó refletir passivo do real, que é racional-dialético: a identidade da identidade e da não-identidade. Sua expressão é o Begriff, que traduzimos por “conceito”. Nele o real é ideal e vice- versa. A extrema dificuldade de explicar o conceito levou He­gel, nas preliminares da terceira parte da Ciência da Lógica, a escrever: “É tão impossível manifestar de modo imediato em que consiste a natureza do conceito como explicar diretamente o conceito de qualquer outro objeto”. Há certa tensão genética do conceito, onde se revelam as determinações: e o juízo ̂para Hegel, não resulta, daquela junção mecanicista de termos, compondo-o, mas de um desenvolvimento dicotômico. Revela a própria unidade de contrários da coisa, que só nos aparece como objeto pelo conceito, que é a coisa revelando-se no seu devenir. O conceito não é, no espírito, uma cópia ou tradução mental; está nas determinações das coisas e nelas é captado. Por isso, o Absoluto é o conceito concreto, a totalidade obje­tiva, que a intuição dialética, superando o dualismo “sujeito objeto”, pode apreender na unidade suprema. A cisão do su­

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jeito e do objeto, básica no criticismo, falseia e frustra aquela unidade, que exprime a autoprodução da Razão, Selbstpro- duktion der Vernunft, abrindo a porta às antinomias do Ser e não-Ser, Intuição e Conceito, Finito e Infinito, etc. 2

Hegel esclarece que isso não leva à idéia de que haja consciência nas coisas, como aprouve a certos críticos afirmar: “Sentimos, ao contrário, repugnância em conceber como pensa­mento a atividade interna das coisas; porque dizemos que o homem se distingue das coisas da natureza pelo pensamento”. Mas o dinamismo interno dai Natureza implica um “noüs” interno, que não atingiu à consciência e sua negação — e que só se forma consciente no homem. Como se vê, a explicação diverge muito, sendo mais profunda que a oferecida na exe­gese vulgar do hegelianismo.

2 . Juízo predicativo e relacionaiDesde seus primeiros escritos e através dos temas religio­

sos, a tônica da especulação hegeliana recai no encadeamento histórico, a perquirição do nexus vitalis dos episódios univer­sais que mostram a finalidade do acontecer — um logos inti­mamente histórico na sua lógica dialética profunda. Só à luz desse logos heraclitiano se pode ter idéia do Volksgeist, do Espírito objetivo e de outros conceitos fundamentais. Na raiz de sua metafísica palpita sempre a substância humana — e nisso difere da metafísica tradicional. A vis abstractionis do filósofo reverte em fundo mergulho na concretude. Decerto, muitos desanimam ao deparar, nas primeiras leituras, trechos onde o raciocínio é pura dialética no conteúdo e na forma, fazendo supor, como aconteceu a Ingenieros, tratar-se de sim­ples logomaquia. Frases como: “a identidade e a diferença são momentos da diferença encerrados no interior dela mesma; são momentos refletidos em sua unidade; porém, a igualdade

(2) O pensamento não reflete sobre o real, mas reflete o real; isto é, não é reflexivo, mas especulativo. Isso é fundamental para compre­ender Hegel.

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e a desigualdade são a reflexão exteriorizada”, ou expressões como “diferença indiferente” etc., levaram o grande argentino a comparar excertos da grande Lógica à glossolália de um alienado de sua clínica. O enrolado matagal surpreende até os que vêm do campo da metafísica, desabituados de seu estilo especulativo. Tendo, porém, os pulmões adaptados ao gênero de exercício, cedo se aclimam à atmosfera ozonificada.

Convido o leitor a reler a citação acima a fim de fazer um pequeno treino de análise hegeliana. A “diferença” implica o seu contrário, que é a “identidade”. Se penso na “diferença”, não posso mentá-la sem que, imediatamente, para determiná-la, exista, sem explicitar-se, a referência à determinação oposta: esse jogo íntimo é a “reflexão intrínseca”, que é imánente no pensar estes conceitos. O que difere da “diferença”? O seu contrário, que a determina, a “identidade”. Mas, por sua vez, o “idêntico”, ao diferir, desidentifica-se: é um diferente em rela­ção à “diferença”, a qual, se diferente de si própria, se torna em “identidade”, que é, simultaneamente, o seu contrário. Em tal jogo reflexivo, está a essência do raciocinar, porque é um jogo da Razão, nível acima do Intelecto ou Entendimento (Verstand). Como procede o Entendimento, isto é, a inteli­gência vulgar? Por deteiminações fixas. Paralisa a dutilidade do conceito: o que é, indefinidamente é. Neste esclerosar, for­maliza-se. O “diferente” não transita para o idêntico — e então a expressão “diferença indiferente”, à luz do entendimento, redunda em coisa abstrusa, em galimathias, ou mero flatus vocis. No conceito “diferença”, hegelianamente falando, as determinações ou notas, que o precisam, dão-lhe sentido, que o tornam Bc-griff, isto é, con-ceptum, dos verbos greifen, no alemão, e capere, no latim: agarrar, apanhar, pegar. Tais “re­flexões” são internas: o oposto não se põe “de fora”: suscita­se no ato de pensar. Da mesma sorte, penso o conceito “nor­te”, sem mencionar o seu contrário — mas sem o seu “outro”, ele seria impensável. Essa interioridade móbil dá uma tensão vital e genésica ao Begriff, permitindo se dicotomise no juízo (C/r — teil, disse Hegel). Foi o analitismo aristotélico indu­zido da língua grega que esclerosou o juízo; Hegel devolveu- lhe a força interna da negatividade dialética, inspirado no

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orgânico, na vitalidade heraclitiana: o efésio ressurgiu na luta contra o estagirita.

Tiram-se grandes conseqüências aplicáveis a problemas que andam em debate. O “juízo predicativo”, paradigma da Lógica clássica, é analisado por Hegel de modo inteiramente diverso: é expansão orgânica do conceito. E quando compara­mos ao “juízo relacionai” de tipo matemático, percebemos tratar-se de juízo de natureza diferente. O exemplo dispensará delongas. Enunciando: “5 é maior do que 3” ( a relação po­dendo ser expressa por um sinal > ) , vejó que compus o juízo, estabelecendo a relação entre as duas noções: a proposição resulta da vinculação entre os termos. A proposição enuncia relação exterior, que deriva do fato de se confrontarem os termos. Existe com os dois em presença. Há certo “substancia- lismo” na relação. Bertrand Russell encara este tipo de “pro­posição relacionai”, que tece o raciocínio matemático, como superior ao tipo predicativo. E Rougier mostrou a sua fecun- didade dedutiva — a técnica de passar de uma a outra, enca- deadamente, baseando-se nas suas propriedades formais. :

Diante disso, Russell não hesitou em qualificar como Lógi­ca de adjetivos a que usava o tipo predicativo (proposições de uma variável), enquanto a Lógica relacionai (Lógica de várias variáveis), ampliando-se, abrangeria todo o pensar lógi­co: seria uma Lógica de preposições.

Russell, entretanto, não aplicou, como devia, sua excep­cional inteligência ao exame da dialética hegeliana, embora em certa fase de sua juventude tenha-se julgado um hegeliano.3 E toda uma falange de matemáticos, seguindo-lhe as pegadas, explora o mesmo campo, imbuídos dos mesmos preconceitos metódicos.

A análise da “exterioridade” do juízo matemático, enun­ciando relação quantitativcn, permitiu a Hegel, tantos anos atrás, expor a superficialidade (especulativamente falando!)

(3) Escreveu Russell: "Por dois ou três anos, sob influência dele (McTaggart), fui um hegeliano". Portraits from Memory, George Al­ien & Unwin Ltd., London, 1956. — "Russell foi hegeliano?" — Djacir Menezes em Temas de Política e Filosofia, pág. 129, DASP, Rio, 1962.

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das demonstrações newtonianas, apresentando como leis tauto­lógicas a lei da gravitação e as leis de Kepler. Por isso, abri espaço noutro livro a grande parte da Ciência da Lógica, para incluir passagens relativas ao cálculo infinitesimal ñas obras de Newton, Leibnitz, Euler e Lagrange.

Não cabe aprofundar aqui o estilo das indagações hege- lianas, que o leitor vai encontrar abundantemente nestas peri­gosas páginas. Perigosas para os velhos clichês mentais, que perduram como estereótipos no ensino e no pensar comum. Na singeleza desses exemplos, eu quis apenas estimular o noviciado no trato de tais questões; tentando mostrar como ir-se habi­tuando a novo tipo de abordagem dos problemas. Os que não vencem os hábitos verão malabarismos inconseqüentes. Têm lá suas razões. A razão vulgar não filosofa: vê superfícies ou se entorpece no que todos pensam.

Insistamos: a Lógica de Hegel é uma visão do logos como totalidade concreta, a presença no pensamento do “movimento da coisa” a revelar-se no “conceito”. O pensamento não é um filme de pictorial thinking, uma sucessão de fixidezes dando a ilusão do movimento, mas o movimento transfigurado no pen­samento: a verdade é o Todo (das Wahre ist das Ganze). Exatamente por isso, a dialética é o concreto. O abstrato isola e mata, criando o reino do entendimento ou intelecto. Neste reino, não há passagens, transição, onde se acumulam as con­tradições; porque suprime o devenir.

3 . O vôo da coruja de MinervaHá hoje uma surpreendente renascença hegeliana: e Jean

Hyppolite, com autoridade de grande intérprete de Hegel, declarou, na abertura das jornadas de Royaumont, a 19 de outubro de 1964, que todos aqueles estudiosos, que pesquisam a riqueza dos textos, não se propõem restaurar ou refazer o “sistema” — mas explorar-lhe a opulência especulativa:

“Não podemos achar em Descartes tantas coisas quantas podemos, sem ser hegelianos, achar em Hegel; e na riqueza deste homem, que trabalhou para a história do mundo e que também escreveu a mais magnífica obra de Lógica especulativa

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que se possa escrever, como isso se arranja, confesso nada saber e nem mesmo quero sabê-lo — porque, quanto a ser o sustentador do sistema, eu o renuncio.” Declarava, em nome dos estudiosos, acolher todos os que não queriam refazer o sistema, nem excomungar os críticos, que porventura retirem dos textos interpretações diferentes.

Mas retomemos o fio. O combate sempre se travou em torno do núcleo genésico da dialética: a contradição. Quando Aristóteles, na base do desenvolvimento anterior, extirpa a con­tradição, prepara o caminho que trilharia, por dois milênios, o pensamento lógico. O corte do nexus vitalis da unidade dos opostos foi a cirurgia essencial do formalismo. Heráclito tor- nou-se então o escándalo permanente — até Hegel, com pequenas interrupções através dos séculos. E mesmo depois de Hegel, na voz de muitos discípulos, os hábitos de pensar não permitiram que raciocinassem dialeticamente, embora fa­zendo apanágio da dialética. Ironia: a dialética, na pena de repetidores, virou algo de automático, onde se alternam tese, antítese e síntese em dança mecânica, vazia de “espírito”. Au­tomatismo é o inimigo número um do Espírito: e Hegel sem­pre denunciou a morte do Espírito naquilo que passa à rotina, que se cibernetiza, negando-se como pensamento. Por isso, a Razão é essencialmente dialética: cinge a vida, exprime a vida, é movimento vital. O mecânico é o seu oposto: representa a fase primária, o degradado. Pensar não é repetir ou reprodu­zir, exercício que apenas imita exteriormente o espírito. Por­tanto, toda igreja esclerosa: mata o espírito. Foi o que Hegel tentou expor na sua cristologia. Para ele, Jesus é o adversário das ortodoxias, dos rituais de onde foge o espírito, deixando a exterioridade farisaica das formas e dos atos maquinais.

Diante da “morte” — é que se percebe a vigorosa filosofia da vida, que o hegelianismo traduz. Até na sua alegoria da filosofia como a coruja de Minerva, desferindo seu vôo no cre­púsculo dos povos, anunciando o declínio do ciclo das formas de civilização. Dialeticamente, porque é da morte que sai a vida. Quando a realidade presente começa a caducar, tornar- se “irracional” (e a crítica, que define a crise, é a análise da irracionalidade aparecendo) — a adequação a outra ordem vai-se prefigurando no novo racionalismo: daí a hostilidade94

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dos intelectuais autênticos às instituições crescentemente desa­justadas. Fala-se, então, no pensamento perigoso. E a estupi­dez quer corrigir o pensamento, não as instituições.

O vôo do mocho crepuscular anuncia a ruína: porque é na ruína que bolem os germes de vida. O “espírito” vindouro não vem de fora nem do alto, mas de dentro do processo: a negação está implícita na afirmação. Os que estão fechados no ciclo não conseguem ver a direção do processo: proclamam o fim da civilização — quando o fim é de uma civilização. O seu mundo desaparece — mas não é o mundo que desaparece. Se se adota este insight hegeliano, o horizonte' que se fecha é o horizonte que se abre. Em vez do réquiem, a aleluia. Por mais que vaticinem o cataclismo termonuclear, suspeita-se de outra gênese. Filosofar não é aprender a morrer, mas aprender a sobreviver.

Nessa ordem de idéias, Hegel é profundamente histori- cista. “A Filosofia começa — diz ele — com a ruína do mundo real. Quando ela aparece esparzindo suas abstrações, pin­tando com tintas de cinza a cor fresca da juventude, sua vita­lidade passou”. O pássaro de Minerva não põe termos à histó­ria: vira apenas uma de suas páginas com sua asa gelada, como disse poeticamente Jacques d’Hondt. E continua o crescimento histórico da Consciência.4

Um sistema filosófico condensa o espírito de sua época e os sistemas anteriores — ao negá-los. É um diálogo no tempo: e aprofunda a consciência universal. Tornamo-nos cada vez mais o genus humanum. O Zeitgeist, superando-se, transfor­ma-se, numa assimilação criadora, deveniente. Se o labor do estadista, do homem do poder, se faz com certa inconsciência criadora — o labor do filósofo resulta de uma clarificação da consciência, com o novo pathos, com a revisão dos valores, com a direção crítica de seu pensamento.

O ponto em que se concentra sua elaboração, conforme mencionamos en passmt, é o monismo dialético, a luta contra todas as formas de dualismo. Daí, ao voltar-se para Kant, toma-o como o melhor tema para desenvolver seu pensamento.

(4> Djacir Menezes, Hegel e a Filosofia Soviética, Zahar, Rio, 1960, pág. 64.

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Mas, nem mesmo nos tempos juvenis, Hegel pode ser conside­rado um kantiano.

4 . Retrato falso de HegelGravou-se e circulou, inspirado pela esquerda hegeliana e

retocado por Marx e Engels, o retrato de um Hegel conser­vador, idólatra do Estado prussiano, que renegara todas as ten­dências liberais. E a mediocridade militante do marxismo, tambour battant, propagou nos compêndios, ao rés de um pro­selitismo fácil, montado em citações decepadas do contexto hegeliano, a figura filosófica de Hegel personificando a encar­nação suprema da Idéia. A imagem, entretanto, vai-se desfa­zendo em face da crítica, que passou a dispor de documentos inéditos e mesmo dos trabalhos já publicados, mas esquecidos, relegados no rol de ensaios temporãos.5 Lentamente, o verda­deiro perfil do filósofo se aclara, definindo a linha de coerên­cia de seu pensamento. Por último, Jacques d’Hondt, avan­çando no rumo aberto por Jean Hyppolite, Kojève, Koyré e onde agora se contam Hillmann, Kaufmann, Cottier e alguns outros, mostrou a inconformidade de Hegel com os tabus cen­trais daquela ordem prussiana. Exemplo. A propósito do tema religioso da “reconciliação” entre o homem e a natureza, He­gel jamais teve a atitude contemplativa, mas a atitude ativa, defendendo a inteligência que digere o real, o “dado” natural, transfundindo-o no racional. Diz Jacques d’Hondt:

“A reconciliação com o mundo humano não implica mais um espírito de contemplação e de conciliação, uma ‘acomoda­ção’ à situação social, religiosa, política, tal qual se apresenta. Lukacs pensa que Hegel pagou o progresso do sentido histó­rico, que lhe permitiria a doutrina da reconciliação, com a atenuação de seus arroubos revolucionários da juventude. De-

(5) Gunther Hillmann, Marx uYid Hegel, Europaische Verlagsans- talt, Frankfurt, 1966. — Hegel-Studien, H. Bouvier u. Co. Verlag — Bonn, 1964, vários volumes publicados. — Hegel-Jahrbuch, Dobbeck Verlag. Munschen, 1961 em diante. Consulte-se bibliografia final.

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nunciou em Hegel uma tendência crescente para a recon­ciliação.”

Não se demorou em pintar o catedrático de Berlim feito funcionário prussiano, gozando as delícias da Ordem, bem assentado na sua cétedra e na sua glória. Lukacs, rastejando na esteira ideológica, repete a legenda marxista de que a espe­culação de Hegel cumpria seus deveres para com o Estado prussiano. Pagava em justificativas filosóficas o prestígio pro­fessoral, que o circundava. Tal interpretação caluniosa foi des­manchada. Ao contrário, reaparecem desmascarados, na seara de Marx, teses e argumentos que para lá foram transladados e metamorfoseados.

Nos ensaios teológicos juvenis, Jesus é uma figura bem controvertida. Discorda dos paradigmas firmados na ortodoxia protestante. Neste ponto, escreve ainda Jacques d‘Hondt que, para Hegel, “o primeiro defeito do cristianismo primitivo e do catolicismo é o de ficar estranho ao mundo”. A necessidade de penetrar na vida real humana exige contorções que o defor­mam — sobretudo na vida política. Como procedeu Hegel? Tinha que haver uma “reconciliação”. Considera aquele escri­tor: “Jesus não conhecerá um novo avatar. Ele se converterá ao hegelianismo — Hegel não fará quase concessões senão no tocante aos termos e às fórmulas.”

Somente agora se aprofundou a análise do significado desse “cristianismo hegeliano”. Alguns teólogos, desconfiados das artes de Santanás, já refletem: não é a burguesia que se cris­tianiza, porque, na sua arrière pensée, ela é incristianizável como classe; daí, foi o cristianismo que se aburguesou. Mas, nessa metamorfose de puro estilo hegeliano, entregou a alma ao diabo. Isto é, perdeu sua essência como tal.

O famigerado conservadorismo de Hegel nasce de uma exegese superficial, tangida há tempos pelo bombo marxista. Ainda é Jacques d’Hondt que medita: quando, já velho, Hegel justifica todas as ordens sucessivamente estabelecidas, está a dizer-nos, na verdade, outra coisa: todas elas têm seu momento, satisfazem as exigências de seu momento, mas são inapelavel- mente feridas de transitoriedade. São legítimas enquanto cor­respondem. Cessando essa correspondência, aparecem os sin­tomas da crise da ordem constituída, em cujo ventre bole a

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ordem constituenda. De tal ponto de vista, não tem sentido saber se o regime é bom, nem se é bom, porque seu valor não está nele: chaqué monde nourrit son propre fossoyeur.

5 . Hegel e o conservadorismo prussianoO papel que a praxis desempenha na Filosofía hegeliana

foi aproveitado por Marx como um dos fundamentos do mate­rialismo histórico. Em Hegel, a idéia também se realiza na historia mediante a atividade prática, cuja natureza dialética evidencia-se na própria lógica do devenir humano, que revela o “Espírito”: mas esse Espírito é processo histórico, manifes­tação de contradições subterrâneas, operando no “interior” dos acontecimentos e das instituições, rompendo limitações e des­bravando vias para novas formas. Citando Hamlet, Hegel comprar o espírito à toupeira, “rompendo a crosta terrestre que a separa de seu sol, de seu conceito” e é precisamente nesse momento da ruptura que o espírito se mostra “sob figura de uma juventude nova e calça as botas de sete léguas”. À luz do que fica dito, o “ideal” é imánente à realidade profunda da história, e essa cosmovisão não se reduz à estreiteza do subjetivismo voluntarista. é um ideal produzido historicamente, embora alcance sua formulação nalgumas cabeças mais atiladas, capazes de discernir, no báratro das contradições, o lado posi­tivo ainda embaraçado na negatividade — o novo universal no duelo com o universal decadente, que, ao declinar, se par­ticulariza.

Sob a camada de instituições, costumes, folkways, ideais conscientes — Hegel viu, no obscuro trabalho interior, que a história se cumpre num Sentido. Isto é, traduz o espírito pro­fundo, que se configura, através das dores, lutas e glórias, nas diferentes fases e formas da civilização. Este processo, confuso para os contemporâneos, se aclara na posteridade, na tomada de consciência advinda da perspectiva histórica: é a hora em que o pássaro de Minerva solta o vôo.

Nesse porvir, que rompe dolorosa e duramente a casca do presente, nas épocas críticas e parturientes, é que se enraíza

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o Sollen, expressão das contradições latentes. Não se trata de um Sollen kantiano vindo do “além” nomênico: a consciência não se separou do processo histórico para insular-se em reinos morais de imperativos axiológicos. Todo o mundo dos valores está íntima e dialeticamente vinculado ao progredir da historia social da consciência que se resolve na consciência humana da historia. Que fez Marx diante dessa concepção? Substituiu o “Espírito” pelas forças produtivas e relações de produção, como base, pondo as instituições e estilos de vida social como superestruturas. A base, entretanto, não opera senão mediante a inteligência, é também o resultado da inteligência, representa sempre um determinado grau de consciência: são forças que superam a natureza, exprimem “espiritualidade”, esse plus que define o humano em frente ao zoológico. Não se trata de um revisionismo fideísta, como argüi a acusação marxista, baseada em alguns textos de Marx.

A cada ímpeto da renovação, que assinala crise e ruptura no seio de estruturas insuficientes, a violência desempenha seu papel, porque o proscrito resiste à proscrição. Como apontou Hondt, a responsabilidade da violência não está à conta dos renovadores — mas no obscurantismo que obtura e impede a evolução. A estrutura que ouviu a sentença de morte jamais se recolhe, de boa sombra, ao sepulcro: e, muitas vezes, tenta repetir o drama da morte na comédia da ressurreição. A longa evolução silenciosa, que Hegel concebeu como trabalho subterrâneo do Espírito, é sincopada pela violência, que é o momento superficial e estridente, mas efêmero e destrutivo. Mas o que passou, passou mesmo. “Ao repelir a verdade, abra­çamo-la” — eis uma das mais profundas glosas de Jacobi, pon­dera Hegel, numa carta a Niethammer. Por isso, os restaura­dores do passado, sofrendo a nostalgia das coisas estranhas ao seu Zeitgeist, são promotores de violências. E o Zeitgeist, nessa evolução golpeada de violência, é como aquela águia do poeta:

. . .RecolHer de novo a águia ao seu ovo,ô bonzos, ê impossível: quebrou-o ao nascer.O processo histórico não é governado por uma finalidade

externa. O problema só pode ser esclarecido com a compreen­99

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são clara das relações entre causalidade e casualidade.6 O raciocínio dialético não separa o acaso, o contingente, da cau­salidade, que o envolve. Aparece-nos como acaso aquilo que dependeu de causas exteriores, que estão fora das contradições íntimas do processo. Igorada a finalidade que governa extrín­secamente o processo, resvala-se no formalismo mecanicista. Este afasta inteiramente de seu campo visual a identidade dos contrários, que constitui a interioridade ativa da coisa (Sache): e o que produz o acontecimento é um estranho emaranhado de interferências que, pela sua complexidade, supõe a categoria do “acaso”.

Eis o exemplo dado pelo próprio Hegel para fixar melhor o problema. Um homem decide, por vingança, atear fogo à casa do inimigo. Várias circunstâncias exteriores, que não per­tencem à sua ação, condicionam-lhe a ação: aproximar a cha­ma de um local de pólvora. O rastilho, porém, imprevistamente, toma outras direções — e o incêndio devasta imensa área. O objeto da vingança é ultrapassado: vidas e bens são consu­midos, à revelia da vontade do autor. Há um plus além da finalidade colimada. A substância da ação (die Subsíanz der Handlung), execedendo, volta-se contra o autor. Esse contra­golpe funciona como ricochete da Providência, segundo Bos- suet (ricocheteou contra Alexandre, César, N apoleão.. . ) ; para Hegel, porém, é a causalidade interna da ação. O elemento substancial, estranho à consciência do executor, foi exatamente o que deu amplitude e alento efetivo (isto é, força desmesurada ao efeito), graças à aliança imprevista de fatores potentes: e desta maneira se inseriu o “acaso” no inbreeding das interde­pendências!

Quando um príncipe foi assassinado em Serajevo — não foi a bala dum exaltado que fabricou a guerra de 1914. O campo de minas estava preparado: o encadeamento de causas concomitantes à sombra dará a fisionomia imprevisível e irrepri­mível ao processo, do qual se tinha uma “consciência parcelar”.

Essa consciência parcelar está hoje na iminência de incen­diar o mundo. Na sua tacanhice, na sua nesga de horizonte,

(6) Djacir Menezes, Hegel e a Filosofia Soviética, ed. cit. cap. IX.

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visa a pequenos efeitos nas latitudes mais distantes e mais dis­persas do globo: Vietname, Oriente Médio, Egito, guerrilhas dos Andes. Ninguém deseja a conflagração — mas o conluio de causas está fora da consciência parcelar, enrolada em pro­pósitos pequeninos e particulares. Assim, do “particular” sai o universal, que ninguém quer. Se não fora a “amplitude”, que se abre na causalidade do processo histórico, a história humana seria apenas um episódio da Zoologia ou da Ciência Natural. Não haveria o campo onde se exercita a vontade humana. Evi­dentemente, a amplitude do “fortuito” se estreita à medida que cresce a consciência parcelar no sentido do universal. Mas o “acaso” não é o que ficou fora dela, o que se ignora; tem suas leis objetivas, porque o universal é o momento do particular. Não se pode comprender isso dentro do determinismo meca- nicista; mas é explicável no processo da causalidade recíproca. Se bem que a vida, no nível animal, mostre os desvios e flexi­bilidade do determinismo, que supera o mecanicismo — no nível humano, a consciência rompe o esquematismo: a ação histórica interrompe linhas de causação e o processo afirma-se, teleologicamente, com a imanência da necessidade, que dita direções que são apreensíveis somente no plano histórico.

Isso tudo escapa à consciência parcelar dos líderes envol­vidos nos acontecimentos, que os sobrepassam. Mas a história se cumpre através da atividade desses perigosos e solícitos iludidos.

Cita-se muito a frase de Cícero, que diz ser a história a mestra da vida. E dela se tira a lição conservadora: modelar o comportamento das gerações novas na sabedoria das gerações velhas. Confunde-se então experiência com prudência senil. Ainda aqui Hegel nos mostra que a lição a explorar é inteira­mente outra: a da mudança periódica do Espírito, a cada etapa mudando a pele como a serpente: toma novas formas, supe­rando as formas peremptas. Nada mais irônico que apresentar Hegel como filósofo do conservadorismo prussiano — quando, de sua cátedra de Berlim, mostrava o Zeitgeist das civilizações! Leia-se este trecho:

“César sabia que a república era uma mentira; que Cícero discursava no vácuo; que era preciso, em lugar desta forma oca, instalar outra, e que a forma, que ele pretendia introduzir,

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era a forma necessária.” Cesarismo de Hegel? Predileção pela autocracia, desprezo pela liberdade? Bruto era a liberdade — ou a reação do Senado, órgão do patriciado rural? O tema deu pábulo a lições fastidiosas: de um lado, teóricos da ditadura, de outros sonhadores da liberdade — ambos na mesma falsi­dade. Hegel viu lucidamente o que o momento comportava e ditava: uma república de aparência, um senado de latifun­diários, uma plebe crescendo fora dos quadros legais, as insti­tuições esvaziadas: e César era o reformador capaz.7

6. Pensamento, linguagem e traduçãoA idéia deste livro nasceu de uma conversa com Jorge

Zahar a respeito da dificuldade ou mesmo da ausência de tex­tos portugueses de Hegel, que conjugassem num só volume as páginas sobre temas variados onde mais se manifestasse o método dialético de tratamento. Os estudiosos e o público universitário reclamam a complicação que ora se apresenta. Não tem grandes pretensões; mas ir-se-á paulatinamente escoi- mando nas próximas edições, se porventura obtiver o favor de perdurar.

Preferi o que versava problemas centrais do pensamento onde havia a intuição dialética a transparecer na própria lingua­gem. Procurei encadear os trechos de modo que oferecessem alguma seqüência — e muitas vezes tive vontade de declarar ao editor que desistia da proposta. Mas, passado o cansaço da peleja, encetava a marcha com novo ânimo — e aqui apre­sento modestamente o resultado.

Faço minhas as palavras de Kaufmann, que é simultanea­mente um excelente tradutor e um exímio intérprete de Hegel: onde Hegel é obscuro ou ambíguo, procurei conservar a ambi-

(7) Hegel, Phil, d. Gesch, Werke, págs. 37 e segs. 3 Aufl., Berlim, 1848. Quando Liebknecht aludiu ao reacionarismo prussiano de Hegel, Engels escreveu a Marx em carta de 8 de maio de 1870: “Este igno­rante tem o desplante de querer liquidar um tipo como Hegel a troco do epíteto de prussiano." Marx respondeu-lhe que já dissera a Liebknecht para não repetir asneiras. — Marx-Engéls Werke, Bde. 32, págs. 501, 503, Dietz Verlag, Berlim, 1965.

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güidade e obscuridade o mais fielmente possível. Que o leitor vernáculo tenha, quanto possível, a impressão que dá o texto original ao leitor alemão. E a ambição não é pequena. De começo, tinha o propósito de conservar a tradução ao rés do texto, seguindo o exemplo de Augusta e Rodolfo Mondolfo ao traduzirem a Ciência da Lógica. Entretanto, a fidelidade tem suas limitações, conforme escreveram aqueles tradutores: “Afas­tar-se do texto sem necessidade, alterar a expressão dada por Hegel a seu pensamento, a pretexto de torná-la mais clara e acessível, implicaria neste caso mais do que nunca um perigo de atraiçoar o próprio pensamento. Sem dúvida, às vezes resulta indispensável introduzir alguma palavra de esclareci­mento, inverter o período, dividi-lo em dois ou mais, quando é mais largo e intrincado. Hegel costuma compor, freqüen­temente, períodos complicados, e referir-se neles a coisas e conceitos, anteriormente mencionados, por meio de indicações pronominais: este, aquele , seu, dele, do mesmo, etc., que muitas vezes, quando são vários as coisas e conceitos já men­cionados, resultam de incerta referência para o leitor despre­venido.”

Era possível desmembrar as articulações dos períodos longos da sintaxe hegeliana, conservando inteira lealdade ao pensamento, cuja claridade, graças aos recursos peculiares do idioma, é admirável nos textos originais.

Ao escrever estas linhas, lembrei-me do que ocorreu a Hõlderlin na sua tradução da Antigona, de Sófocles. Dominado pela intuição poética, Hõlderlin trasladou para o alemão cer­tas imagens sofoclianas na sua pureza quase literal, — escan­dalizando professores. A passagem da Antigona que reza: — “a palavra se colore de vermelho” foi objeto do sarcasmo de Voss: ofereceu-a a Goethe para ilustrar sua teoria das cores. A versão foi considerada delirante, reflexo da insânia do poeta. Pois foi a tradução de Hõlderlin que pôs o espírito alemão em contato com o espírito helénico, fazendo-o sentir os veios dra­máticos da poesia grega e não as traduções limadas dos grandes filólogos, germanizadores do grego. Encontro este exemplo num breve e lúcido ensaio sobre o problema da tradução escrito pelo Sr. Haroldo Campos, repondo em cena o nosso Odorico Men­des, cujo flagiciado barroquismo verbal latinizante e helenizante

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continua sendo fértil campo de estudo.8 A citação mira apenas mostrar que a sensibilidade à força especulativa ou poética de um texto influencia a versão, e o tradutor, se não quer fazer obra de descaracterização, recebe o influxo na sua linguagem. Como o faz, isso dependerá de sua mestria, de suas faculdades inventivas, de sua intuição estética, de sua percepção plástica no idioma em que labora.

Porque é sabido que todo pensador, na medida da pujança original de seu pensamento, exerce uma tensão modificadora do léxico e da sintaxe em função do esforço de exprimir. Pensar e exprimir são dois aspectos da mesma dialética. Dentro do clima semântico, exercita-se a faculdade pessoal de captar matizes próprios, de intuir a nota viva do conceito, que está mudando, naquela zona assinalada por Amado Alonso entre o pensar idiomático e o pensar lógico. A ausência do artigo deu, no latim, certa predominância de tonalidade qualitativa na nomeação do obejto, que passou a ser mentado mais por sua essência: “O artigo realiza a trama categorial aludindo direta­mente à existência do objeto nomeado e introduzindo com isso um momento quantitativo” (grifo nosso). Viu-se que a ausência do artigo desempenha papel na sintaxe emocional, revelando uma espécie de cognição afetiva da essência genérica da coisa, um valor diferente da cognição intelectual. São dois aspectos muito dissociados na análise filosófica tradicional. Na especula­ção hegeliana, entretanto, os dois aspectos são encarados com genial perspicácia, antecipando muitos ensinamentos da estilís­tica e da psicologia lingüística moderna. A metáfora, a hipér­bole, que resultam de tensão afetiva, modeladora e moduladora das tonalidades dos valores sonoros, exprimem formas do senti­mento fora da secura das categorias gramaticais. E o logicismo, que Alonso indica como esclerosante do idioma, teve sua ex­pressão no formalismo clássico, contra o qual Hegel travou renhido combate.

Quem esperar ler um livro de Hegel com a fácil desenvol­tura das leituras habituais comete evidentemente um engano.

(8) Harold Campos, "A Gargalhada de Schiller", Correio da Ma­nhã, 14 de maio de 1967. Leia-se Martins de Aguiar, Notas de Por­tuguês de Filinto e Odorico, Organização Simões, Rio, 1955.

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Há, decerto, trechos animadores, que o estudioso de outros filósofos percorrerá com fluência e agrado. Ou com decepção. O retrincado da forma peculiar do estilo hegeliano só constitui obstáculo enquanto o leitor não se familiariza com o pensar dialético. Nas sentenças excessivamente longas, se acumulam elos conjuntivos, de gosto estilístico um tanto inatual, que não se coadunariam bem ao frasear vernáculo. Refleti sobre o pro­blema e o debati com alguns estudiosos. Os cabedais idiomá­ticos, no alemão, permitem a longura do período, já o disse­mos, sem obscurecer a marcha do pensamento. A flexão gené­rica dos pronomes pessoais e relativos vinculam, deixando claro o que se referem, sem necessidade de repetição do re­ferido e começo de novo período. A fidelidade da tradução de Augusta e Rodolfo Mondolfo é tão grande que mantém, nas orações subordinadas, a forma verbal finita do alemão, sem recorrer sequer às formas reduzidas gerundiais das línguas neolatinas. Knox, por exemplo, na complexidade do período, não trepida em cortá-lo em frases curtas, abandonando a estrutura sintática hegeliana para traduzir cuidadosamente as idéias. Em casos tais, o leitor perde um pouco o contato com o formular dialético das orações encadeadas, e, sutilmente, esca­pa-lhe certo matiz de pensamento. Para firmar as significações de certos termos, que variam no contexto do filósofo, preferi muitas vezes colocar entre parênteses as palavras alemãs (Exis- tenz, Dctèein, BeisichSein, Begierde, Dinghatftigkeit, etc., que vão anotadas nas apostilas finais).*

Bem ao contrário do que diz Lowenstein, perfilhando le­vianamente opiniões fúteis a respeito do estilo hegeliano, “as obras de Hegel aparecem, na extremada severidade da forma, sempre cheias de pensamento preciso, amiúde tão rigorosa­mente exato que não se lhe pode mudar uma palavra”; é o que afirma Hildebrandt.

Estudei os melhores tradutores — e bastará uma vista na bibliografia geral para comprovar-lhes a excelência. Muitos deles vacilaram nas incertezas do texto. Aos que amam o po­limento literário e a elegância na elocução, direi que também

(*) Referência ao livro Textos Dialéticos, Zahar, Rio, 1968 (es­gotado).

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os prezo. A indigência na expressão entremostra as falhas do pensamento. Pensamento é linguagem — sentencia Hegel. A robusta atividade especulativa sempre forjou seus meios ex­pressivos. O leitor encontrará numerosas passagens em que a tradução lhe parecerá claudicante, à míngua de recursos léxicos ou sintáticos. Serão passagens onde a lealdade ao texto coibiu o tradutor. Onde Hegel repete a mesma palavra com o mesmo sentido, não havia razões para fazer o contrário. No ritmo das construções, respeitamos o valor lógico das con­junções alternativas, que por vezes desempenham papel dialé­tico, numa fina sensibilidade ao jogo dos contrários. A dialé­tica, no pensar hegeliano, aparece então naquele estado de prática teórica, de que fala recente e longamente Althusser.9 Onde alguns dizem entweder — oder, ele escreve sowohl — ais auch. Agudamente anota ainda Koyré: contrariamente à tradição milenar de Filosofia, Hegel não pensa com substanti­vos, mas com verbos.

Nessa navegação entre Cila e Caríbidis, entre forma e fundo, entre pensar e dizer, mesmo dialeticamente interpene­trados, a tradução devia preocupar-se incessantemente com a cosmovisão do filósofo. Todo este arrazoado visa a advertir os críticos mais apressados de que, antes de soltar o arpão, sustenham um instante o golpe para o cotejo. Reconhecerei humildemente qualquer erro nesta introdução — e a lição será registrada nas edições vindouras, se lá chegar. Apelo para a absolvição dos pecados nesta declaração de Koyré, publica­da nos Hegels-Studien, anos passados: “Hegel é intraduível e mesmo em certo sentido, inconcebível.” E depois de fazer o traslado para o francês, Koyré apôs-lhe a nota: “Não pre­tendo ter traduzido estes textos.” Tinha feito apenas uma trans­posição, que Jean Wahl proclamou uma tradução admirável. Apenas para não perder o ânimo coloquei a mira em tão altos exemplos.

(9) Louis Althusser, Jacques Rancière, Pierre Macheray, Lire le Capital, t. 19, pág. 73, François Maspero, Paris, 1965; — Althusser, Pour Marx, idem, ibidem, 1966.

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VI

A QUERELA ANTI-HEGEL1. Um catecismo dialético. 2 . O pecado

idealista: a identidade do Ser e do Pensamento. 3. O “Begriff” e as incompreensões. 4 . Relação “sujeito x objeto”. 5 . A revelação do Real no seio da Experiência. 6 . Conceituação flexível de “matéria”. 7 . Conceito de “matéria” e “objetivi­dade”. O hegelismo de Marx. 6. Marxismo e fata­lismo. Distorções da crítica. O cabresto dogmá­tico. Ne sutor supra crepidam.

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1 — Um catecismo dialético.Dissera-me o professor Hermes Lima, a respeito de Hegel

e a Filosofia soviética, entre outros comentários e algumas res­trições inevitáveis: “Sendo um hegeliano, você todavia não quer ser um idealista no sentido corrente do termo: primeiro o mental, depois o material”. Na mesma direção, reconheceu o professor Joaquim Pimenta, também longamente versado nas fontes clássicas do socialismo, que o sistema filosófico estuda­do em meu livro continua debatido “na Rússia e por comunis­tas letrados de todo o mundo com o mesmo interesse dos pri­meiros padres ou doutores da igreja em esquadrinharem todos os recantos da filosofia grega”. Aos olhos dos dois mestres, que leram o livro, com a disponibilidade de espírito dos que buscam a maior compreensão dos problemas, a obra lhes pa­receu honestamente pensada e decentemente escrita. Decerto que imperfeita, com insuficiências e senões, evidenciando a mediocridade estudiosa do que escreve estas mal traçadas li­nhas no mesmo desejo de acertar com que escreveu aquele mal traçado trabalho.

À luz, porém, do terceiro comentarista de Hegel e a Filo­sofia soviética, que se arroga em marxista definitivo, sou ape­nas um escolástico, compilador de citações, invectivador le­viano, êmulo de qualquer Ribentrop de citações mal costura­das. Mais: meu livro é “uma enxurrada de insultos aos filó­sofos soviéticos e marxistas em geral”, fruto de um “incapaz por deliberação desonesta ou miopia intelectual”. Pois é a tão estranho produto de improbidade e ignorância que se dedicam

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dez páginas de uma revista. Seu autor me parece honesto e inteligente. Suspeito, entretanto, que estamos reciprocamente enganados. Como os atributos com que me agracia são exces­sivos e a lição que pretendeu dar, por entre repelões de gros­seria, toca em temas fascinantes, que a prolixidade não em­baçou, decidi responder reexaminando apenas o que me foi argüido — e não o que me foi atribuído. Se o crítico decla­rasse que sou dolicocéfalo, louro e ariano, bastaria mandar o retrato à revista; os alunos e amigos, que privam comigo, dis­pensariam a prova, lembrando a figura do jagunço cearense. Tal não acontece, porém, no largo círculo de leitores, aos quais falou, desconhecedores dos revérberos municipais de meus es­critos. Devo-lhes provar que não sou escolástico, não espiolho citações para erudição ostentosa, não me improvisei hegeliano,— e não admiro tanto o professor D.M., como supõe o crítico, abrindo, entre tanto aborrecimento, um fino ar de ironia, infe­lizmente logo desvanecido pelo azedume do sectário. Pois saiba que tenho admiração tão fácil de borbulhar que até começo a distendê-la ao Sr. Jacob Gorender, tão convencido de sua força e de sua verdade.

Sr. Jacob Gorender, muito prazer em conhecê-lo. Creio que nunca nos vimos nem nos encontramos, nessas desencon­tradas andanças por este mundo das idéias e das coisas. E passo ao exame de sua lição. Por questão de ordem, inicio pelas idéias gerais.

Considerando-me V .S . um papagaio de citações hege- lianas, incapaz de “pensar o pensamento encerrado naquelas obras”, sou, ao seu olhar vigilante, de tal ignorância na filo­sofia soviética que “toda a crítica se baseia num único traba­lho, o manual das Categorias do Materialismo dialético, ela­borado por um grupo de autores, sob a direção de M .M . Rosenthal e G .M . Straks”. Por ele ajuizei de toda a latitude do pensamento marxista em floração naquelas paragens. En­tretanto, logo no frontispicio, abaixo do título, informei o leitor de que me propunha a crítica daquela obra1. Na sua

(1) Cito as que reli, com mais vagar, em abono -de minha probidade intelectual, posta em dúvida pelo sr. Jacob: Philosophie und Gesells- chaft; Beitráge zum studium der marxistischen Philosophie, Akademie

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opinião, trata-se de “simples manual, valioso, porém não isento de defeitos, preparado pela cátedra de filosofia do Instituto Pedagógico do Estado da cidade de Yaroslavl, uma entre as numerosas cátedras de filosofia operante na U.R.S.S.”.

Sei que o sr. Jacob não vai acreditar no lapso que me escapou sobre a exposição “acabada e completa” e considera aquilo reflexo da má-fé, possuído, como estou, do fervor anticomunista: essa febril excitação me levaria, rancorosa­mente, a todas as contrafações. Entro, porém, no mérito dos problemas levantados.

O manual soviético foi escrito por homens eminentes de um Instituto notório, com a “colaboração de alguns investi­gadores de outras instituições científicas”, como lá anuncia. Por que dizer que é livrinho apressado? Em vários países do ocidente, onde reina certa liberdade e alguma desordem no ensino, podem os professores reunir-se, avaliar as verbas dos Ministérios, e publicar seus compêndios para adoção oficial, sem que reflitam a orientação política dominante. Podem até contrariá-la, atrapalhá-la ou perturbá-la. Talvez porque não haja responsabilidade doutrinária fixada em catecismo. Na U.R.S.S., porém, nada se aprova sem a chancela do Partido; principalmente em obra que “se propõe ajudar, na medida do possível, as pessoas interessadas no estudar filosofia marxista”. é o que comunica o prólogo, pedindo se lhe enviem críticas. E eis que vem o sr. Jacob dizer que é livro sem importância, que pouco representa no meio soviético! Mas é livro didático. Sua intenção é sugerir que perdi meu tempo com manual in­significante dentro da imensa cultura soviética? Talvez. Por outro lado, o sr. Jacob afirma que o manual está certo e é bom — e eu miseravelmente equivocado por causa de minha paixão anticomunista. Essa paixão me deixou meio desalenta-

— Verlag, Berlín, 1958; — Grundlagen der marxistischen Philosophie, Dietz — Verlag, Berlín, 1959; — Rosental, Dialektik in Marx’ Kapital, Dietz — Verlag, Berlín, 1957; — Gottfried Stiehler, HegeVs und der Mar- xismus iiber den Widerspruch, Dietz Verlag, Berlín, 1960. Deixo de in­dicar obras de análise e crítica adversas, bem como as traduções em línguas neolatinas, distribuídas como propaganda e proselitismos doutrinários, com o imprimatur moscovita. São por demais conhecidas dos catecúmenos.

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do. Na sua defesa, há um vai-e-vem incessante, que não é movimento dialético, mas vacilação do sr. Jacob. Assim, a certa altura, já meio olvidado dos roncos iniciais, diz: “mesmo nos limites que (o manual) se propôs, cabe observar que existem no texto insuficiências, imprecisões, superficialidades” (Estudos Sociais, p. 450. Daqui avante, indicarei pelas iniciais E. S. e a página da citação). Leram? O manual, que era ape­nas “valioso, embora não isento de defeitos”, tornou-se “su­perficial, impreciso, insuficiente”. Pois foi exatamente isso que, no livro rudemente criminado, me dispus a provar — e abun­dantemente o provei. Em sinuosa estratégia, o crítico, noutra passagem, balbucía, a respeito do positivismo lógico, que te­nho razão em “algum argumento isolado”. Todavia, obliqua­mente, deixa escapar que o manual “dedica brevíssimas linhas à contribuição positiva de Hegel, finalizando-as invariavel­mente com um “entretanto”. Este “entretanto” serve para lem­brar apenas que Hegel foi idealista” (E. S., p. 451). — Pois aí está o ponto mais vivo de minha análise: eles não conhe­cem Hegel. O que o sr. Jacob sussurra, encolhido, foi o que enunciei alto.

As questões enxameiam. Em vez de lançar sobre elas o jorro de sua luz, o sr. Jacob, esquivando-se comunica: “pen­samos que o leitor compreenderá porque não nos detemos no exame das especulações do autor de HEGEL E A FILOSOFIA SOVIÉTICA sobre o objeto específico do manual de Rosen­tal e Straks: as categorias da dialética materialista. Aquelas especulações decorrem das posições de princípio, cuja análise consideramos suficiente para os fins de nossa crítica. Seria, além disto, fastidioso ao extremo enfrentar, página por pá­gina, as confusões que o autor vai acumulando, de vez que, no labirinto das categorias, não consegue seguir ao menos o fio hegeliano”. (E. S., p. 450).

Dizia Feuerbach que os sistemas filosóficos sofrem con­tinuamente dupla crítica: a do conhecimento e a da incom­preensão. Sem dúvida, a má compreensão do meu antagonista explica a maioria das objeções levantadas.

É pena. Se acaso se detivesse naquele exame, veria que o fio hegeliano, nas mãos soviéticas, desapareceu inteiramente; e meu propósito não era fazer exposição hegeliana das cate­112

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gorias, mas demonstrar a incompetência dialética dos autores do manual, entremeando minhas reflexões. Mesmo sem se deter, acha que ando irritado: “Irrita-se o professor D .M ., repetidas vezes, diante da afirmação de que no sistema hege­liano existe o elemento teológico” (E. S., p. 438), que é sua “componente fundamental”. Em verdade o digo que isso não me amargura a existência. E o ardiloso crítico resolve com­provar aquelas ousadas afirmações nas próprias palavras de Hegel! Santa perogrulhada. Isso está dito e rédito milhares de vezes — e não teria tão corajosa ignorância para negá-lo. Nas palavras de Hegel se encontra abundante teologia. O que quis, todavia, foi mais sutil. Quis mostrar que, sob a lingua­gem, escondia-se pensamento ateu, só aparentemente teoló­gico, como bomba de explosão retardada, — mas os detecto­res dos tradicionalistas, passando sobre o campo minado, logo lançaram a advertência. Não fui eu quem o descobriu. Aná­lise cuidadosa revelou que Hegel era suspeito de ateísmo e por várias vezes teve de defender-se das acusações. Tinha de expor seu pensamento como fizeram Kant e outros. Lar­vatus prodeo, — soprou, precavido, Descartes aos ouvidos do padre Mersenne. Ingenieros, generalizando, falou na “hipo­crisia dos filósofos” que não se dispuseram a marchar, de fronte alta e cantando, como alguns cristãos sem filosofia, ao encontro do martírio — ou, mais silenciosamente metidos no sambenito, para a fogueira.

2 . O pecado idealista: a identidade do Ser e do Pensamento.

Quase todos os escritos do primeiro período, desde o se­minário de Tubingen ao exame de teologia em Berna, onde aceitou cargo de preceptor, o problema religioso preocupa Hegel e seu grupo de amigos — Lessing, Herder, Hõlderlin, Schelling. É quando escreve os Fragmenta zur Kritik der Theo- logie, Begriff der Positivitaet der Religión, Thesen der THeolo- gischen Dissertation, Glaube und Wissen entre outros, incluí­dos no primeiro e segundo tomo das obras publicadas em 1845, três lustros após sua morte. As interpretações da vida

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de Jesus e dos temas religiosos despertam reação nos meios protestantes, cujos teólogos interpretaram a especulação em sentido oposto ao do sr. Jacob e seus numerosos partidários. As cartas trocadas entre Hegel e Schelling, por volta de 1795 la, mostram como o grupo de pensadores se esforça por escapar à opressão de órgãos supersticiosos. A faina de disse­minar idéias sempre inquietou o dogmatismo sob todas as for­mas. Escrevia Hegel nesse tempo: “Sob uma cortina, Religião e Filosofia negaceiam; aquela ensinou o que o despotismo de­sejava: o desprezo pelo gênero humano, sua incapacidade para qualquer bem, para ser qualquer coisa em si m esm a.. . ” Tais sinais induziram Kojève, Sartre e outros a levantar a tese do ateísmo de Hegel. Também Croce escreveu: “É uma filosofia (direi a única filosofia) radicalmente irreligiosa, porque não se contenta em contrapor-se à religião, mas a resolve em si e a substitui”. Por que? porque é a negação de toda trans­cendência, o que significa a liquidação de todo A lém 2. Con­tra a tese do ateísmo hegeliano bradaram Heidegger e Wahl; cito apenas os que me ocorrem no momento. Refiro esses fa­tos para dizer que, mencionando as raízes leigas do pensa^ mento de Hegel, não dei provas de tanta miopia, como aprou- ve declarar o clarividente marxista. Bem sei que “nem toda a esquerda hegeliana viu em Hegel um ateu”, como escreve Paul Asveld, doutor em Teologia pela Universidade de Louvain. Também a bomba kantiana tardou em explodir. Em todo caso, há, contraditoriamente, numerosas passagens que documentam, com as palavras de Hegel, as mais rotundas afirmações teo- logais: e sem penetrar na análise mais profunda, mediante a crítica social das idéias, não se poderia sustentar as teses de Alexandre Kojève e outros.

Acusa-me o sr. Jacob: “O seu respeito, ao menos exte­rior, pela ciência moderna, leva-o a rejeitar o dualismo no plano dos princípios” — e acha isso meritório. Mérito fra- quinho, aliás, todo periférico; destarte, por motivos exteriores, é que recuso também o idealismo subjetivo. Nesse ponto, ele condescende, mas logo adverte: “Mas repele com violência

(la) Briet von und an Hegel, Felix Meiner, Bd. 1, 1952.(2) Croce, Saggio sullo Hegel, Bari Gius. Laterza, 1948, p. 48.

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o materialismo dialético, ou seja precisamente aquele monis­mo que não é só consentâneo com a ciência moderna, como lhe é intrínseco, constitui seu genuíno resultado” (E. S., p. 445).

Que seja consentâneo com a ciência, não oponho dúvidas; que lhe seja intrínseco, começo a opor reservas; que seja seu genuíno resultado, é falso. Por que? Simplesmente porque não resultou genuinamente do progresso científico, mas da elabo­ração filosófica anterior. Não leva em conta a evolução da filosofia alemã? Hegel? Feuerbach? Marx não era dialético antes de iniciar os trabalhos econômicos? Não tinha na mente a dialética, bebida nos textos hegelianos, a priori, antes das demonstrações que iria fazer através das centenas de páginas de Das Kapital? Henri Lefèbvre teve uma idéia: a de pesqui­sar quando aparece na literatura socialista a expressão “ma­terialismo dialético”, que Marx nunca empregara. Concluiu que era de fresca data e choveu-lhe na cabeça toda sorte de reprimendas. Garaudy chefiou a fila atacante.

Diz, referindo-se a mim: “Quer a ortodoxia idealista he- geliana, mas envergonha-se de que ela possa conter qualquer vestígio teologal que a tornaria algo envelhecida nestes tem­pos, quando a concepção científica do mundo se impõe com força crescente” (E. S., p. 439). A verdade é que não me envergonho de qualquer ortodoxia pelo simples fato de não ter nenhuma. Entretanto, um marxista ortodoxamente sovié­tico, quero dizer, que vê no leninismo a realização accomplie do marxismo, não pode deixar de considerar minha critica como manifestação de adversário obstinadamente hegeliano. E faz muito bem, embora parte da perspectiva derive do ân­gulo em que ele se coloca. Porque, ao valorizar a alienação do idealismo, frustra-se-lhe a mobilidade dialética do pensa­mento que permitiu a Hegel, no capítulo final da Wissenschaft der Logik, sobre a Idéia, atingir o maior grau de concreção na análise do Real. Absurdo? Então ouçamos Plekhanov, marxista que discordou da autocracia do Partido e cujas obras ficaram algum tempo no ostracismo. Escreveu: “O hegelia­nismo tem por traços distintivos a mais minuciosa análise do real, o máximo escrúpulo em face do objeto, e o estudo deste no interior de seu meio concreto, em todas as circunstâncias

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de tempo e de lugar que condicionam e acompanham a exis­tência” 3. Antes, já Plekhanov aplaudira esta citação de Las- salle: “Em cada página de suas obras, Hegel não cessa de precisar infatigavelmente que a filosofia se identifica à totali­dade da Experiência, que ela exige apenas o aprofundamento das ciências experimentáis. . . Os fatos sem pensamento não têm jamais senão valor relativo, e o pensamento sem fatos possui exatamente o sentido de quimera. A filosofia não é e não pode ser senão a consciência que as ciências experimen­tais tomam de si próprias” 4. Com efeito, é precisamente por isso que do idealismo germânico sai a análise histórica con­creta da filosofia vinculada aos destinos humanos. O “uni­versal” do conceito está no “individual” do processo histórico, que tornaria possível, mediante o devenir do que é, a formu­lação prospectiva do que deve ser. Foi o que Lock, Hume, Condillac, os empiristas situados na genealogia do materialis­mo, não souberam nem puderam jamais discernir. Assim, em vez de divisar, no racionalismo hegeliano, o panlogismo re­gressivo destinado a salvar a teologia, o “divino transformado abstratamente em processo espiritual” (E. S., p. 441), depa­ramos o reverso, — o perecimento progressivo da teologia no seio da robusta vis histórica hegeliana. Porque daquele “divino” transubstanciado em “processo histórico” nunca po­deria “nascer o imenso sistema idealista objetivo, cuja riqueza se comprime e contorce dentro do arcabouço da especulação abstrata”, como pensa o sr. Jacob. A contorsão do sistema dentro do arcabouço de especulação abstrata é coisa esquisita. O crítico prossegue, com o mesmo alento: “Por mais espe­culativo e abstrato na forma, o seu processo discursivo não deixava de seguir paralelo ao desenvolvimento dos fatos obje­tivos”. E a contorsão? Parece que fala outra pessoa, mas éo sr. Jacob (E. S., p. 453).

Outro ponto onde faz alarido, balburdiando minhas glo­sas à margem do Categorias do Materialismo dialético, é per-

(3) Plekhanov, Essai sur le Devéloppement de la conceptiori matérialiste de VHistoire, Moscou, 1956.

(4) Idem, ibidem, ps. 96-97.

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I i ncnte ao conceito de “materialismo histórico”, de “matéria”, ilc “realidade objetiva” (E . S., p. 443, segs.). Transcrevo:

“O prof. D .M . quer fulminar a filosofía marxista a par­tir do principio hegeliano da identidade absoluta entre Ser e Pensamento”. Prudentemente, replico-lhe que não posso ful­minar coisa nenhuma por falta de aparelhos, mas examinar e debater. A identidade entre Ser e Pensamento não se me afi­gura assim absoluta, de vez que sustento exatamente “que se lenha sempre em mente a dialética imánente a tal concepção para não se contrapor, ingenuamente, a identidade isenta de negatividade intrínseca e operante” 5. Por que? Responde tam­bém Lukacs: “Porque a unificação hegeliana — dialética — do pensamento e do Ser, a concepção de sua unidade como unidade e totalidade de um processo, formam também a es­sência da filosofía da historia do materialismo histórico”6. Pois tal principio é a suprema formulação de Hegel e não se deve a Karl Marx.

Todo estudioso sabe que Hegel foi exibido em duas ca­ricaturas: na oposição formal entre pensamento e realidade ou na imanência de pensamento e realidade, ambas sumárias e simplificantes. Ambas fogem da imanência dialética, que as supera, assimilando-as. A obtusa compreensão dialética do crítico lhe empana a distinção. Repete de outros, com o abono de seus clássicos: “A conclusão é, pois, que, no sistema de Hegel, o portador do movimento dialético.. . ” Ora, a dia­lética não tem veículo, é a expressão da identidade dos con­trários. A dialética do Ser e do nada é o Dasein, o “Ser de­terminado”, que é devenir. Arguir-se-á que é casuística de ranço escolástico. Engano. Aquela forma de exprimir o proces­so é que denuncia o ranço mecanicista.

Toda minha crítica aos marxistas conjugados no manual prova a ignorância de Hegel, e, concomitantemente, a ausên­cia do tratamento dialético das questões discutidas (causali­dade, lei, fenômeno, essência, etc.). Quanto possível, concen­trei a atenção nesse alvo, omitido nos comentários do sr.

(5) Hegel e a Filosofia soviética, ps. 203-204.(6) Lukàcs, Histoire et Conscience de Classe, Les Editions de

Minuit, Paris, 1960, p. 55.

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Jacob. Entretanto, a longa digressão, encaroçada de citações marxistas, me leciona que Hegel é idealista, teologante, etc. Comove-me o generoso propósito de lançar tanta luz em meu espirito obnubilado.

3 . O “Begriff” e as incompreensÕes. A relação “sujeito x o b j e t o A revelação do Real no seio da Experiência.

No capítulo V, intitulado “Transição do sensível ao in­teligível”, procurei estudar a mobilidade dialética das deter­minações da coisa, reveladas no conceito, que apreende a es­sência; e nessa revelação se reflete a mais penetrante intuição dialética do filósofo. Ingenuamente, o sr. Jacob exclama: “Encontramos até — que surpresa! — uma tese marxista: a de que o essencial universal se exprimiria no respectivo con­ceito” (E. S., p. 445). Sinto esfriar-lhe a surpresa: a tese é hegeliana, contrabandeada ao surrão marxista. O conceito ex­prime a essência, sendo a unidade do ser e da essência; mas, hegelianamente, a essência se pousa7 como opondo-se ao ser imediato, inessencial, privado de essência, portanto, como apa­rência. A aparência é o outro da essência, não externo à es­sência: é a aparência da essência, — a reflexão. Nesse movi­mento de pura negatividade, a essência se confunde com a re­flexão: “é o movimento do devenir e da transformação” ■— diz Hegel. A maneira mecanicista porque se aborda e enuncia o problema é responsável pela deformação do pensamento de Hegel, ocasionando equívocos na interpretação da teoria do conceito ou Lógica subjetiva. Ao formular a “objetividade do pensamento.. . como identidade do conceito e da coisa que é a verdade”, Hegel permanece na plena consciência dia­lética: a distinção na identidade, a identidade da identidade e da diferença. Sem isso, a coisa e suas determinações capta­das no conceito é algo de absurdo e ininteligível. Não sub­

(7) Deve-se atentar no sentido do verbo setzen, na composição de diferentes vozes do léxico de Hegel, principalmente ao tratar da unidade dos contrários e da lei.

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traio, como se vê, teses marxistas para o hegelianismo, re- mendando-o assim anacrónicamente, quando escrevo que “He­gel elaborou noção autogenética do Begriff, obtendo perspec­tiva nova para sua explicação dialética da proposição” 8. Ainda:

“Logo, é necessário que as determinações da coisa, que refletem mobilmente sua essência e a revelam, sejam captadas no conceito como expressão de sua unidade, e o transitar do sensível para o intelectual implique a negatividade dialética do fenômeno à essência, do singular ao universal”. Por que? por­que eu demonstrava que o conceito, como se’explana no ma­nual, é tomado no sentido da psicologia associacionista mais vulgar. E o crítico foi passarinhando ao largo do problema, não quis se enliçar no assunto por demais inútil, indo catar nas adjacências o que lhe convinha. Entretanto, todo o capí­tulo é o problema da transição da imagem para o conceito, da consciência sensível para a consciência inteligível, tema central de toda a Phaenomertologie des Geistes, laboriosamen­te estudada por Kojève, por Hypollite, por Hoffmeister, etc. Tema sério: o do madrugador da racionalidade no seio da Experiência filogenética e histórica. Por isso, escrevi:

“O que Hegel chama de conceito é a tensão genética da realidade que se compreende a si mesma e se autoexprime, a fusão do imediato na mediação, no processo da negatividade, dado primário da relação original “sujeito-objeto”, raiz de todas as relações” 9. O “universal concreto”, a Idéia absoluta (que Lenin considerava da mais alta densidade no pensamento dialético) não é a “esqueletização da realidade, mas com­preensão desta em sua plenitude e riqueza: as abstrações filo­sóficas não são arbitrárias, mas necessárias, e por isso se ade- quam ao real e não o mutilam e falsificam”, conforme pon­derou Croce10. O crítico nem sempre atinou com o sentido

(8) Djacir Menezes, Raizes pre-socráticas de Temas atuais, 1955, ps. 44, segs. — " ... der Begriff, begriffen ais eine Totalitàt in den Schranken seines Elements, d. h. der Begriff bei Hegel in seiner ursprünglich — logischen Bedeutung". — Glockner, Der Begriff in Hegéls Philosophie, J. C. B. Mohr, Tubingen, 1924, p. 47.

(9) Idem, Hegel e a Filosofia soviética, p. 59.(10) Croce, Saggio, p. 6.

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das passagens hegelianas a respeito da coisa-em-si como pen­samento. Para Hegel “é urna coisa que tem propriedades, e, por conseguinte, há várias coisas que se distinguem entre elas, não por referência que lhes seja estranha, mas por si mes- mas” n . E se as privamos das propriedades, restará o “abstra- to-em-si”, explica-nos, o caput mortuum, a identidade vazia de seu próprio objeto 12. Acrescenta esta nota significativa: “a forma da coisa se converte em propriedade”. É essa con­versão que muitos materialistas não percebem, vítimas da astúcia da Razão, para empregar a fina indicação de Hegel. As propriedades captáveis são refletidas assim no conceito, escapando-lhes aquele movimento. Falam, então, no conceito como “reflexo altamente trabalhado pela razão, criação sub­jetiva em sua forma” (E. S., p. 448) e, ao mesmo tempo, em “reflexo conceituai” (idem, p. 454), como se a Razão tra­balhasse sobre algo (raciocínio mecanicista) e o conceito, expressão viva da dinâmica dos contrários não fosse Razão (raciocínio dialético). Nisso se funda uma observação de Croce: uma coisa é o ato mental de raciocinar dialeticamente, outra o raciocínio sobre a dialética. Precisamente o fenôme­no que ocorre na Rússia é o esclerosamento na ideologia de superstrutura. Tornou-se ideologia de um sistema de domina­ção — e está sendo codificado, ossificando-se. Essa transfor­mação, escreveu Marcuse, destrói a dialética mais penetran­temente que qualquer revisionismo burguês. Nota aquele es­critor, que, no reinado de Stalin, quase desapareceu da cir­culação a lei da negação da negação, arrolada entre as leis fundamentais da dialética. E é da China que vem, pela pala­vra de Máo-Tse-Tung, a frenação da negatividade destrutiva: a lei das contradições não-antagonísticas. Hoje, até o sr. Jacob dá seu beliscãozinho no lombo stalianiano, falando nas “incom- preensões e deformações da dialética não podiam deixar de conduzí-lo (Stalin) a falsa opinião sobre H egel.. . ” Não sor­

(11) Hegel, Wissenschaft der Logik, Felix Meiner, 1923, Ed. IV, ps. 112, segs.

(12) Hegel, Encyklopaedie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, Berlim, 1843, § 44.

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rio. Mesmo sério, lembro o provérbio matuto: depois da onça morta, todo mundo mete o dedo na bunda dela.

O crítico se enreda no cipoal filosófico com a suficiência dc quem está dissipando equívoco: “Mas ao incorporar a teo­ria do reflexo, o materialismo dialético depurou-a dos aspec­tos mecanicistas aplicando-lhe a dialética hegeliana, colocada por sua vez sobre uma base materialista” (E. S., p. 448). “Já não é mais reflexo passivo das coisas”, adverte. Deve scr, portanto, um reflexo ativo. Que espécie de reflexo, cópia ou imagem ativa vem a ser? O sr. Jacob não explica. Aplicou- se à teoria do reflexo a dialética hegeliana. Vai daí, — “o processo cognoscitivo humano, para que atravesse a superfí­cie fenomenal das coisas e apreenda sua essência. . . ” Sus­pendo e examino. Ele concebe a superfície fenomenal como envoltório a ser escalpelado: no interior, a essência. Onde a dialética do fenômeno e da essência? Apresenta-nos o mais fútil mecanicismo. Hegel ensinou a penetração dos contrários, o processo da negatividade, coisa mais sutil; e na sua explica­ção, a aparição da essência, como negatividade, é o outro de si mesmo em seu mover-se dialético, no seu desenvolver-se em conceito. Continua, porém, aquele período: “O processo cognoscitivo humano. . . não pode ser reprodução passiva, deve ser transformação de sua matéria prima perceptiva, ela­boração criadora de conceitos e julgamentos, etc.” Assim, a operação de atravessar a superfície fenomenal implica na transformação da matéria prima perceptiva, que permite a captação da essência. Será que o censor atinou bem com o que escreveu? Pois não está muito distante do perigo que o apavora: essa elaboração conceituai vai, progressivamente re­velando à consciência a realidade exterior, “mediatizada por toda a prática histórica da vida social”, como arredonda a sua conclusão. Na raiz de todo o processo, está a interação “cons­ci ência-mundo”, “sujeito-objeto”. O sujeito se insere realmente no mundo objetivo, e o objeto se revela idealmente na cons­ciência . . . O pior é que anda por perto desses temas, roçando nas mesmas afirmações, sabe quem? — o metafísico Heideg- ger, falando do ser-no-mundo da analítica existencial, e outras fantasias ontológicas, que os marxistas imputam à decadência burguesa, mas que representa a filosofia das elites angustiadas.

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Entretanto, há outras elites mais saudáveis, que lutam por valores éticos e científicos e que não abdicaram sua virilidade de pensar nas aras de nenhum clero político ou religioso. Re­tomo o compasso dessa contestação.

Com algumas citações hábeis, o sr. Jacob me nomeia “idealista”; eu faria o possível por merecer a qualificação. Se me abre ante os passos o dilema — materialismo e idealismo— considerando qualquer solução estranha como tentativa do pequeno-burguês aperreado entre as pontas da opção, não há fugir ao carimbo ideológico com que marca meu livro. Em todo caso, cabem aqui alguns embargos, que redijo rapida­mente. O debate converge para a definição de matéria, que está na famigerada definição de Lenin:

“A matéria é uma categoria filosófica para caracterização da realidade objetiva, que é dada ao homem em suas sensa­ções, que é por nossas sensações copiada, fotografada, refle­tida (die von unseren Empfindungen kopiert, photogriaphiertabgebildet wird) e existe independentemente delas (und von ihnen existiert) ” 13.

4 . Conceituação flexível de “matéria”Que decorre daí? Seria ingênuo aceitar que a sensação

copie, fotografe, apanhe a imagem da matéria, na interpreta­ção literal da palavra leninista. Estes verbos são tomados um tanto elásticamente: os sinais sensíveis das propriedades das coisas não são integrados em cópias, mas informam so­bre a realidade objetiva. Enquanto o monismo do idealismo subjetivo — escreve Rosental noutra grande obra soviética— quer reduzir a matéria às sensações, o monismo materia­lista procede inversamente, considerando a matéria a fonte das sensações; todavia não há na natureza nada imutável nem “substância fundamental absoluta (keine absolute Grund-

(13) Lenin, Materialismus und Empiriscarticismos, Diezt Verlag Berlim, 1949, pgs. 118-119.

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substanz) ” 14. Adjudico a nota hegeliana: onde o limite de um objeto termina, aí começa o de outro: e nisso está o fun­damento da trans-formação. £ o ângulo que nos faz com­preender porque Hegel encontrava na “substância” o proces­so da causalidade. Apresso-me a atalhar novas objeções com a glosa leniniana dos fragmentários cadernos: “a relação de substancialidade se transforma na de causalidade”. Ainda: “o real conhecimento da causa é o aprofundamento do conheci­mento que vai da superfície à substância do fenômeno” 15. Nesse caso, em que pé fica a fotografia? Em abono, poderia arrimar a argumentação no Marx juvenil da Natiomloekono- mie und Philosophie, quando diz: “Os sentidos se relacionam à coisa por amor da coisa, porém a própria coisa é uma re­lação humana objetiva com ela mesma e com o homem e vice-versa (ctber die Sache selbst ist ein gegenstaendliches menschliches VerhaUen zu sich selbst und zum Menschen und umgekehrt) ” 16. Portanto, se é através da atividade recíproca que na consciência se define a objetividade do mundo, o ob-jeto, sem o seu contrário, perderá o seu ob. A coordena­ção entre “sujeito-objeto” é a relação fundamental. Nessa am­bivalência está o fundamento do “humanismo crítico”, de­fendido pelos hegelianos da Itália desde Spaventa e Labriola, Gentile e Croce. Extrapola-se, entretanto, quando se extraem conclusões sobre o subjetivo criando o objetivo, rumo ao solipsismo. Aqui está, por exemplo, nas palavras de Marx, o que é puro Feuerbach: “Vemos que o humanismo ou na­turalismo realizado distingue-se tanto do idealismo como do materialismo e é ao mesmo tempo a verdade que os liga a

(14) Rosental, "in" Grundlagen der marxisíischen Philosophie, Dietz Verlag, 1959, p. 131.

(15) Lenin, Aus dem philosophischen Nachl&ss, Diezt, Berlin, p. 78.

(16) Marx, Die Fruehschriften, Kroenner, Stuttgart, ps. 241, segs. Aliás, como observa Max Lange, o caráter social das idéias é intei­ramente esquecido pelo líder bolchevista ao abordar o problema gno- siológico: "O homem que conhece, em Lenin, é, praticamente, o ho­mem abstrato", renovando-se a antiga “concepção aristotélica da verdade". — Cf. Marxismo, Leninismo, Stalinismus, Ernst Klett, Stut­tgart, 1955, p. 95.

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ambos entre si (und zugleich ihre beide vereinigende Wahr- heit ist). Vemos também que só o naturalismo é capaz de compreender o curso da historia universal (nur der Naturalis- mus fahig ist, den akt der Weltgeschichte zu begreifen)” 17. E o próprio Feuerbach: “O ser que não é objeto de outro ser pressupõe que não existe ser objetivo”. Quando Marx argu­menta que, “se tenho um objeto, esse objeto me tem a mim próprio como objeto”, — trata-se de um sujeito que é objeto de outro sujeito. Não há, portanto, nenhuma verbiagem esco­lástica no modo de pousar a questão. Acontece que tudo isso não é Marx nem Feuerbach; é Hegel. Foi Hegel que se manteve sempre atento a interação dialética do “sujeito-obje- to”, cuja Experiência é inexcedivelmente descrita na aventu­ra espiritual de sua obra. A história do Pensamento é a cres­cente revelação do Real no seio da Experiência histórica, o Real revelado e revelando-se, a aletheia, a verdade. “A Ex­periência hegeliana não se relaciona nem ao Real, nem ao Discurso isoladamente tomados, mas a sua unidade indecom- ponível”, ensina Kojève18. Dessa Experiência se desentranha­ram, historicamente, sujeito e objeto. Estes não preexistiram, pre-estabelecidos, e entraram em contacto para compor a re­lação cognoscitiva e ativa. Filogeneticamente, suas origens são obscuras. Há que buscá-las no protopsiquismo.

Volvamos. Onde a cópia da matéria pelas sensações? Não se pode aceitar a definição leninista. Então, a objetivida­de exterior, que se pretende subsumir no conceito “matéria”, como “dado”, é captada pela percepção sensorial, progressi­vamente. Qual o órgão? A “consciência”. Bla nos atesta a Realidade, que independe da consciência, mas de cuja exis­tência só se pode saber mediante a consciência. Lutando con­tra os empiriocriticistas. Lenin pôs a tônica naquela “inde­pendência”. Mas — leciona o sr. Jacob — a consciência é propriedade da matéria específica, que é o homem. Entretan­to, esse órgão pensante — consciência — se contrapõe, dia- leticamente, negando a natureza como tal, com propriedades

(17) Idem, ibidem, 273.(18) Kojève, Introduction à la lecture de Hegel, Gallimard, Pa>

ris, p. 453.

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que são apenas físico-naturais. Torna-se “alteridade” da Na­tureza, o seu outro, para usar, se me permitem, a linguagem hegeliana. É “espirito”. As dimensões da “espiritualidade” (ou cultura, no sentido da antropologia moderna) estão em plano especificamente humano. E lá estou fora do materia­lismo.

“Eis ai os contrabandos idealistas e o respectivo escolas­ticismo!” dirá o sagaz crítico, levantando o arpão para físga­los. Qual a ciência que me ensina o que seja a matéria? A física nuclear e os demais ramos. Mas reina desacordo pro­fundo na informação do que seja a matéria. Da definição leninista, por exemplo, restaria apenas esta determinação: a sua existência objetiva, isto é, independente da consciência humana, o que é sobremaneira vago. Neutrons, mesons, cor­púsculos e ondas, existem objetivamente. E outros elementos poderão ainda desentranhar-se dos atuais, falando-se confu­samente até na “anti-matéria”. A mobilidade prodigiosa das determinações do conceito, com a experiência dos laborató­rios, está suscitando a profunda transformação do conceito. A matéria não se dissipou, mas não se sabe o que é. Bem advirto que não se desfechará na concepção espiritualista e na velha tradição querida dos metafísicos tomistas e suas va­riantes; mas já não é possível ficar amarrado à antiga heran­ça, de que os materialistas dialéticos não sabem se livrar, em­bora o proclamem a tão altas vozes. E que fica sendo o ma­terialismo? Expressão de algo, como princípio misterioso, co­mo arché, fonte universal de todos os processos da realidade. Que não se assustem: aquele “algo” não encobre, como revi- vescência de filosofia universitária, o sobrenatural e suas se­duções.

5 . O conceito de “matéria” e de “objetividade O hegelismo de Marx.

E o “materialismo histórico”? Hoc opus, hic labor. Marx batisou a doutrina com esse apelido. Por que? porque expli­cava os fenômenos histórico-sociais por meio das “relações de produção”, encaradas como relações materiais travadas entre os homens no propósito de organizar a produção e dis­

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tribuição dos bens necessários à vida. Aqui o termo “ma­téria” já tem conotação bem diferente, — pois tais relações interumanas não são nenhuma espécie de matéria. Hegel me­ditara: “Se se faz abstração de todas as determinações, de toda forma de algo, resta a matéria indeterminada ( inbes- timmt Materie). Não é possível vê-la, palpá-la, etc.; o que se vê ou palpa é uma matéria determinada, isto é, uma unidade de matéria e forma. Esta abstração, de onde surge a matéria, não é somente supressão e superação extrínseca da forma (ein aeusserliches Wegnehmen und Aufheben der Form), sim a forma que se reduz por si mesma a essa simples identida­de” 19. Adiante, esclarece que a “matéria tem que ser forma­da e a forma materializada”. Mas se a matéria é o que está à base de todas as formas e nós conhecemos as suas determi­nações dialeticamente flexíveis, resta-nos, sob o termo, “algo” que toma todas as formas; isso encaminha ao conceito de substâncias Todavia, o termo é malsinado por Lênin, que observa que os professores usam-no arbitrariamente, sem de­linear-lhe a precisão e clareza unívoca20. Hegel escrevera: “Ao eliminar-se a forma, desaparece a determinação da ma­téria” — e nesse caso, ante a variabilidade das formas, se im­poria o conceito de substância. No período mais hegeliano dos fragmentos, Lenin falou no “grau essencial no processo do desenvolvimento do conhecimento humano da natureza e da matéria (grifos dele)” — onde Hegel mencionava o “pro­cesso de desenvolvimento da Idéia”.

No meio de tumultuosa página, o crítico ataca meu dua­lismo: “para o professor há a matéria e há o plus, o além- matéria” — o que exige esclarecimento. O plus não será, hegelianamente, um além, porque os contrários são idênticos e a negatividade é intrínseca. Ele me cita: “O conceito de Ser não é apenas o conceito de matéria-, há um plus”. Mas se a premissa maior do raciocínio é a imanência do pensamento e do Ser, onde reside a incongruência ou sofisma? Querer separar os contrários é preparar a mistificação, que nasce, destarte, de premissa mecanicista, coisa que a candura do crí­

(19) Hegel, Wiss. d. Logik, p. 70.(20) Lenin, Materiálismus, p. 159.

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tico não percebeu. Entretanto, pondera: “que a consciência não seja um ser, uma substância independente, mas uma pro­priedade de determinado ser material, não significa também que ela “se reduza” a outras propriedades da matéria” (E. S., p. 447), — isto é, que é algo irredutível, portanto, um plus, noutras palavras. Mas as novas propriedades, que definem a consciência, não se reduzindo às da matéria, lhe são diale- ticamente opostas. A irredutibilidade do “reflexo” na cabeça dos homens é o modo sinuoso porque se fez a concessão pe­rigosa para o sr. Jacob. “O conceito de “matéria” — diz o marxista soviético Tugarinow noutro livro coletivo chamado Philosophie und Gessellschaft21 — é mais profundo e mais rico do que o conceito de Ser”. Precisamente por isso, as co­notações que lhe aumentam a compreensão, lhe restringem a extensão. Se pensasse melhor o ensinamento de Hegel não escreveria que o sentido e a relação entre “Ser”, “Natureza” e “Matéria” é a seguinte: “a Natureza, no sentido de mundo, universo, tem duas determinações: Ser e Materialidade”. De­pois de argumentar com a materialidade do Ser, conclui: — “o Ser não deve identificar-se com a matéria, com a mate­rialidade. A consciência não é matéria, não tem propriedades de materialidade”. Insiste, adiante: “O ideal é o reflexo ( Wi- derspielung) do material”. Mais: “A consciência é um fenô­meno da natureza, noutras palavras: ela tem seu ser apenas de ângulo ontológico. Não é, porém, ser imediato, mas refle­xo desse ser imediato”.

Laborioso esforço para aceitar a realidade do inespacial, na atitude refratária ao reconhecimento da realidade do que se não reduz à matéria no velho sentido da expressão. Na re­lutância, torna-se necessário exaltar o caráter “reflexivo”, te­mendo que, por tal brecha aberta, não se insinuem as “entifi- cações”. Com que aguda consciência tais filósofos não vigiam e confiscam a força crescente da consciência! Inútil, creio, tentar fundamentar o que digo. O crítico repetirá o que lhe dita o catecismo. A nota que apus a página 79, com citações de Gramcsi, de Rubei, de Mondolfo, de Gentile, foi tão des-

(21) "In" Philosophie und Gessellschaft, Akademie-Verlag, Ber­lín, 1958, p. 431.

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valiosa como o que lhe agrego agora. Toda a argumentação sobre a dialética do fenômeno e da essência, base de minha análise, foi arredada, com desdém sumário, à conta de alga­ravia escolástica. E como articulei que à raiz das relações re­side o dado primário “sujeito-objeto”, o sr. Jacob, em vitória fácil, pespega-me: “Sem o sujeito, por conseguinte, não exis­tiria o mundo objetivo” (E. S., p. 444). Replico: sem o su­jeito não existiria a veri ficação do mundo objetivo, a cons­tatação de sua existência, a afirmação de sua objetividade. Mistificação? Pois leio no marxista Gramcsi: “Sem o homem— que coisa significaria a realidade do universo? Toda ciên­cia é ligada às necessidades, à vida, à atividade do homem. Sem a atividade do homem, criadora de todos os valores, mesmo os científicos, que seria a objetividade? Um caos, isto é, nada, o vácuo, se é possível dizer assim, porque, se se ima­gina que não existe o homem, não se pode imaginar a língua e o pensamento. Para a filosofia da praxis, o ser não pode ser distinto do pensar, o homem da natureza, o sujeito do objeto; se se faz a separação, cai-se em umas tantas formas de religião ou na abstração sem sentido” 22.

E tanto a força da abstração revela o artifício da “có­pia” que um dos fautores do manual, noutro livro, volveu a ensinar que “é indubitável ser a matéria, considerada fora de suas numerosas e várias manifestações concretas, uma abs­tração científica” — “refletindo a mesma realidade objetiva que nossas sensações” com a “única diferença que a reflete mais intimamente”. E atesta que “o geral não pode ser foto­grafado”. Que significa isso? Que a forma de reflexão do Real em nossa mente é muito diversa do que se afirmara antes.22a.

Assim, o que atesta a objetividade como tal é a ativida­de subjetiva, que se lhe opõe, incorporada ao processo histó­rico. Sem ela, repito, que significaria aquele ob, preposto à -jetividade? Se a praxis é posta como categoria gnosiológi-

(22) Gramcsi, II Materialismo storico e la Filosofia di Benedito Croce, Einaudi, 1949, ps. 55-56.(22a) Rosental, Die Dialektik irt Marx Kapital, Dietz-Verlag, Ber­

lín, 1957, p. 287, segs.

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ca básica, — a relação sujeito-objeto, implícita na praxis, é relação básica. Partindo daí, Marcuse fez exegese aguda, des­cobrindo certa ambivalência nos conceitos hegelianos que “nunca denotam meros conceitos, como na lógica formal, porém formas ou modos de ser compreendidos pelo pensa­mento. Hegel não pressupõe uma identidade mística de pen­samento e realidade, porém sustenta que o pensamento certo representa a realidade, porque, em seu desenvolvimento, al­cançou o estágio em que existe adequado à verdade” 23. Já, aliás, havia dito Gentile: “O sujeito sem objeto relativo, de que é sujeito? e o objeto, sem sujeito relativo, de quem é objeto?” 24. Insulados, são abstrações mortas. “Então o objeto, o mundo, depende do sujeito” — retrucam alguns, no teor do sr. Jacob. E eu, arremedando o escolástico: distingo. Só há verificação da existência do objeto pelo sujeito. Sem este sub, aquele ob desaparece na indiferença do -jecto, do “em- si”, sem alteridade; não pode ser o outro, o Andersichsein. Escolasticismo? Não; Hegel. Aliás, o problema foi, entre con­tendores clássicos, atacado por Feuerbach em dois vigorosos ensaios, onde Marx bebeu algumas idéias mães para enxertar na Deutsche Ideologie. Um é Zur Kritik der Hegelschen Phi­losophie (1839) e outro, Kritik der “Anti-Hegel”, escrito em resposta à polêmica que C. Fr. Bachmann moveu contra o filósofo no ano de 18 3 5 25.

(23) Herbert Marcuse, Reason and Revoíution, Oxford University Press, 1941, p. 25. Escreve noutro livro: "As dificuldades do marxismo soviético em produzir um compêndio adequado sobre dialética e lógica não são apenas de natureza política, mas da verdadeira es­sência da dialética, rebelde às codificações" — Soviet Marxism, Lon- don, 1958, p. 137.(24) Gentile, La Riforma delia Dialettica Hegeliana, 3® ed., G. C. Sansoni, ps. 41, segs. Cf. Pontes de Miranda. O Problema fundamen­tal do Conhecimento, Liv. do Globo, 1937. Louis Atthusius distinguiu, em Feuerbach, o emprego de Objektivitat em dois sentidos: o que é dado na objetividade absoluta e se opõe ao sujeito, — e o que se insere na objetividade constituída, Gegenst'Ándlichkeit, que a consciência reconhece e atesta como objeto.

(25) Feuerbach, Philosophische Kritiken und Grundsaetze, From- mann Verlag, 1959 (29 vol. da nova edição das Obras completas de Bolm e Jodl).

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Claro que não é idéia minha a de que Marx sugou abundantemente em Hegel e Feuerbach. O aleitamento foi mais prolongado do que disseram os epígonos de Marx e Engels. Porque afirmou isso, Lukàcs foi obrigado a recuar, sendo posto de quarentena, pelos censores marxistas, seu livro História e Luta, de classes, agora em tradução francesa bem anotada. Foi acusado de revisionista, reformista e idealista. Logo no prefácio, Lukàcs proclamava a “necessidade de com­preender o sistema e o método de Hegel, tal como nos são dados, em sua unidade coetente e de preservar essa unida­de”. 2C. Hegel era o chien crevé; mas só agora os marxistas soviéticos, ainda atirando olhares espantados para o stalinis- mo, começaram a estudar, e muito mal, as páginas de Hegel.

“Toda uma série de categorias decisivas continuamente empregadas —: discorre Lukàcs — vem diretamente da lógica de Hegel” — das quais passaram às mãos de Marx. O sr. Jacob não pode ainda avaliar a extensão da herança. O in­ventário não está concluido; tem que vir muita coisa à co­lação. Muita coisa subtraída e escondida.

O último argumento sobre as sensações como cópias da realidade. Ao expor as formas fenomenais do “valor”, Marx pretende ir à essência delas, descobrindo, sob a aparência por que foram captadas pela consciência vulgar, o movimen­to interno mais profundo, no processo real da vida social. Lá estão os momentos dialéticos — a “existência” (que se revela na “aparência”, na “aparição” e “essência”) e a “rea­lidade”, no processo de devenir, tudo isso é puro Hegel. Em certo aspecto, é a transição da mera representação para o con­ceito, mais vitalmente profundo. O real, pois, é desvendado na marcha dialética do processo de pensar. Como a realidade pode ser “copiada” nas sensações, se é mais profunda, e, pelo processo- da negatividade imánente, vai ser atingida mediante operação conceituai? Por outro lado, encontra-se em Engels outra saída diferente. Escreveu ele que “a matéria não é se­não a totalidade dos elementos de que se abstrai esse concei­to. E os dois termos, matéria e movimento, não passam de

(26) Lukàcs, ob. cit.

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resumos — Abkurzungen — em que resumimos as múltiplas e diferentes coisas sensorialmente percebidas segundo suas propriedades comuns” 27. Será exato chamar de “material” as relações travadas entre os indivíduos, materielle Lebensver- haeltnissel Em Hegel, o conjunto dessas relações constitui a “sociedade civil”. Essa sinonimização entre economia e maté­ria está habilmente analisada em suscinta nota do professor R. Mondolfo, dispensando-me de alongar o ponto. Valeria a pena fazer pesquisa, partindo da Heilige Familie, sobre a mul- tivocidade de tais termos no curso da elaboração doutrinária do marxismo. É lição incompleta, apenas iniciada pelos hege- lianos da Itália.

6. Marxismo e fatalismo. Distorções do crítico.O cabresto dogmático. Ne sutor ultra crepidam

O olho de lince do sr. Jacob discerniu provas insensatas na crítica que fiz. Talvez tenha dó de minha miopia intelec­tual; pois a procissão desses miopes é longa. Eles vão dele­treando, pacientes e cooperativos, os textos sagrados. Que se há de fazer? Nem todos nascem com retina privilegiada. Po­deria citar Spaventa, Matteucci, Prometeo Filodemo, Alfredo Poggi, Pastore, além dos já registrados. Mencionarei que a polêmica de Mondolfo com Filodemo e Gramcsi versava pre­cisamente sobre o infeliz apelido de “materialismo histórico” e sobre o voluntarismo e humanismo feuerbachianos, estanca­dos e atrofiados no marxismo adulto. As regressões ao Marx juvenil é uma forma de beber Hegel em taça emprestada. Sob a denominação de “filosofia da praxis” ou humanismo práti- co-crítico, o sábio italiano examinou, em trabalhos interna­cionalmente acatados, as interrogações que, de relance, indi­quei. Que viu o sr. Jacob? Isso: reduzo todo o marxismo a fatalismo econômico, depois recuo e me desdigo. Todavia, reconheci apenas que naquela doutrina pulsam duas tendências bem nítidas.

(27) Engels, Dialektik der Natur, Dietz, Berlín, 1952, p. 251.

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Naquelas duas direções, que se contrariam dentro do mar­xismo, a ditadura bolchevista, por circunstâncias históricas es­peciais, vitalizou, predominantemente, a de que necessitava para construir o paternalismo do Estado soviético: o leninis­mo é a sua teorização inteligente, a formulação do marxismo nas circunstâncias russas. Será paixão maccarthista? Sou pela perseguição das bruxas? No creo en las brujas, amigo. Tam­bém, data vênia, não pretendo entrar na caravela do almiran­te Pena Boto pelo fato de recusar a viagem à lua no “sputinik”.

O pregão da liberdade talvez pareça ao crítico simples bulha de intelectual comprimido nas forças sociais. Entretanto, foi um claro espirito que disse: “Tal exigência fundamental de liberdade, respeito e desenvolvimento universal da persona­lidade humana deve considerar-se central e essencial na dou­trina marxista e deve reafirmar-se, por quem queira ser fiel ao seu espírito, contra toda deformação e desvio de princí­pios sobre ditadura e onipotência do Estado, que renegam e convertem em puro instrumento privado de todo valor pró­prio da personalidade humana, cujo livre desenvolvimento Marx e Engels consideraram como o verdadeiro fim univer­sal da missão histórica do proletariado” 28. Conhecedor mi­nucioso das fontes socialistas, Mondolfo teve a coragem de escrever ainda: “Tem importância fundamental a oposição entre marxismo genuino, animado de funda consciência histó­rica e elevada exigência de liberdade e sua adulteração ou fal­sificação, efetuada pelo leninismo ou comunismo totalitário de nossos dias (grifo meu), desconhecedor dos limites que as condições históricas impõem a toda praxis revolucionária de transformação social e menosprezador da pessoa humana e suas exigências de liberdade”. Procedida a amputação, perdeu-se parte do naturalismo antropológico que estava no reale Hu- manismus de Feuerbach e havia se insinuado no “primeiro momento da concepção marxista”.

“A questão que interessa — prossegue o filósofo italiano— não é de estabelecer se a realidade é matéria ou espírito, mas de determinar a consistência e função da realidade e suas

(28) Rodolfo Mondolfo, Sülle Orme di Marx, Cappelli Editore, Bologna, 1948, p. 9.

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relações com a ação” 29. Tal conteúdo humanístico foi selva- gemente trucidado no leninismo e a “ditadura bolchevista de­veu criar e desenvolver um capitalismo de Estado, ao qual nem sequer é alheia a prática do trabalho forçado.” 80. Em nome da disciplina se organizou a fiscalização do pensamento, onde “o dever da ortodoxia implica a perseguição e a repres­são impiedosa de todas as h e r e s ia s Replicando, Gramcsi ta­xou a argumentação de pedantismo, filisteismo e incompreen­são absoluta, além de outros epítetos 81. Recentemente, o mar­xista Henri Lefebvre arrancou a mordaça e escreveu:

“O marxismo oficial, apesar de protestos esparsos, riscou de uma penada o acaso na natureza, na história e na sociedade. E isso sob o pretexto de que há causas e efeitos, de determi­nismo. Ele tende a colocar o determinismo como um absoluto, sem indagar se destarte não se suprimem as bases da praxis e se a prática não revela outra coisa” 32. Tinham-lhe exigido penitência dos erros e desvios. Na mesma obra herética, de­clarou: “Eu devia começar boa confissão pública: em nome de Joseph, Mac-Tse-Tung e Maurice, Amen. Camaradas, eu me acuso de ter pecado por orgulho, e tc . . . ”

O livro de Léfèbvre só chegou a nossas plagas depois de publicado meu livreco. Não pude transcrever essa citação: “os dogmáticos enchem a boca discorrendo sobre a “virada” ou a cambalhota do hegelianismo por Marx. Em Hegel, o mé­todo dialético se firma na cabeça; é preciso desvirá-lo, para descobrir o núcleo racional sob o envoltório místico. Assim, Marx teria desvirado o hegelianismo como se reverte um va­so para esvaziá-lo do seu mau conteúdo, conservando-lhe a forma intacta33.

Escandalizo o sr. Jacob dizendo-lhe que Mondolfo, há quase meio século, acompanhando Labriola, marxista acatado

(29) Idem, ibidem, p. 124.(30) Mondolfo, El Materialismo historico de F. Engels, Raigal,

B. Aires, 1956, p. 413.(31) Gramcsi, L’Ordine Nuovo, Einaudi, 1054, p. 374.(32) Henri Lefèbvre, La Somme et le Reste, La Nef de Paris

Editions, 1959, vol. I, p. 241.(33) Idem, ibidem, vol. I, p. 37.

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por Engels, preferiu o caminho humanístico da “filosofia da praxis”, que nega, no parecer de ambos, o caráter materialista da filosofia de Marxl Isso levanta enorme berreiro, não há dúvida. “Por isso precisamente — escreve o filósofo italiano— eu sempre identifiquei essencialmente minha interpretação do materialismo histórico com a de Antônio Labriola e me esforcei, pois, por depurar esta de qualquer resíduo de fata­lismo determinista” 84.

“Advoga — irroga-me o crítico — a causa de Hegel sem perceber que a condena, porque dela pretende ressuscitar o que merecidamente pereceu” (E . S., p. 443). Cá estou com meus exorcismos, tentando a ressurreição; mas não estou so­zinho. Apenas, enquanto os outros querem injectar mais feuer- bachismo em Marx, eu investigo somente o espólio hegeliano, pouco se me dando as brigas entre os herdeiros. Ratifico: não advogo causas; provo a ignorância dos professores soviéticos agenciados, no manual, à volta de temas definitivamente eluci­dados por Hegel e canhestramente deformados pelos ditos escritores. Quando o sr. Jacob informa que “Feuerbach rom­peu o sistema e o pôs de lado justamente com o método dia­lético, do qual não compreendeu a importância”, estribilha acusação desfeita por estudos mais recentes. Feuerbach ja­mais esqueceu o conteúdo histórico ou o fundamento dialé­tico do hegelianismo. Pelo fato de não ter vinculado sua an­tropologia às classes, não significa que a tenha desprendido dos vínculos sociais para apresentar o homem em estado na­tural 3r>.

Há ainda temas sérios na crítica, mas a resposta já vai muito longa. Apenas não posso deixar em silêncio a baforada vernácula do sr. Jacob, a respeito de minha “elaboração su­mamente aligeirada e sem apuro gramatical”. Para que ele tenha algum apuro, reveja aquela concretidcde, aquela extra- nfiação (tradução do Entãusserung, Entfremdung) e aqueles

(34) R. Mondolfo, El Materialismo histórico de F. E ., ed. cit., ps. 384-385.

(35) R. Mondolfo, Marx y Marxismo, Fondo de Cultura Eco­nômica, México, 1960, ps. 59, segs.

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adjetivos dialeta e ruinaz. Portanto, antes de pedir apuro, apu­re-se a si mesmo. Ne sutor ultra crepidam.

N O T A *A revista Estudos Sociais, em seu número 8, inseriu longa

e fogosa crítica ao meu livro HEGEL E A FILOSOFIA SO­VIETICA **. Consultei se editariam a contestação, escrevi-a, mandei-lha. Corridas quase três semanas, avisam-me, por te­lefone, que ia publicação dependia da supressão de passagens que, a juizo ide seu comitê de vigilância, haviam -sido consi­deradas estranhas à polêmica. Achei curioso; o debate não merecia que se invpcasse o § 5? rfo prt. 141 da Constituição, que assegura o direito de riesposta\ perdido rio largo tumulto eleitoral que por áí campeia.

Comentava a recusa, casualmente, com o prof. Eremildo Viana, diretor 4a Faculdade Nacional de Filosofia, quando ele me propôs tirar tf breve ensaio em “plaquetté”. Por que não? No final de contas, a controvérsia girava em torno de problemas científicos e filosóficos situados no âmbito do De­partamento de Ciências Sociais, o que justificava a iniciativa de editá-lo.

Também assim julgo.Com meus agradecimentos ao prezado colega, aquiescí

imediatamente na organização do ptesente opúsculo, que en­dereço agora a meus alunos.

Rio, 22 de setembro de 1960.D . M.

(*) Esta nota precedeu o opúsculo que constitue o capítulo anterior e explica a origem destas páginas de controvérsia. De resto, que esperar dos catecúmenos indígenas quando seus mestres sovié­ticos, nas suas Academias de altos estudos, confundem o hegelia­nismo com tão despejada e adulta prosápia?

(**) O livro recebeu o prêmio Joaquim Nabuco, da Academia Brasileira de Letras, em 1959.

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VII

TEORIA DA CAUSALIDADE OU CRÍTICA DA RAZÃO IMPURA

1. Representação, Conceito e Idéia. 2. Do sensibilis ao iníéligibilis. 3. O universal na “coisa”. 4. A “coisa” em via de desapari- ção. 5. A negatividade das “determinações”.6. A tautología do princípio de identidade.7. A subversão do pensar dialético. 8. Quan­do se esvai a “reflexão”. 9. O “Fundamen­to”. 10. Leis tautológicas. 11. A vitória da “Razão impura”.

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1. Representação, conceito e idéia.Já despontava o pensamento hegeliano como adversário

mais poderoso de todas as tentativas de desfiguração ou des­crédito do princípio de causalidade: e é precisamente na obra de Hegel que buscaremos as armas decisivas para o com­bate cm prol da legitimidade das interpretações científicas do Universo e da Vida. A proliferação das doutrinas que ten­dem, clara ou implicitamente, à valorização de categorias místicas na formulação de uma concepção das coisas, recla­ma, em nome do bom senso e do equilíbrio racional, a aná­lise profilática e a peito aberto, definindo os limites entre os que trabalham com honestidade científica — e os fabricado­res de tóxicos espirituais que turvam a consciência clara da realidade objetiva. De fato, nenhum pensador alcançou a altu­ra de Hegel na faina gigante de explicar geneticamente a aparição histórica do “Espírito” como interiorização da pró­pria Natureza, dentro do processo do devenir universal. E nesse processo, pelo fato mesmo de ser um processus, que integra em si mesmo suas causas dialéticas de desenvolvimen­to, — a interrogação fundamental, a interrogação ôntica, re­side no princípio de “ação recíproca”. Qualquer que seja o ponto tratado por Hegel, no plano da história ou da Nature­za, seu pensamento é essencialmente impressionado pela dia­lética imánente do objeto que estuda — e todas, as incom- preensões e confusões dos intérpretes derivam do esquecimento dessa advertência metódica. Na sua introdução à Encyclopae- die der philosophische Wisâenschaften, onde tentou a exposi-

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çao sistemática da sua filosofia1' há notas prévias indispen­sáveis para a penetração do seu pensamento. Uma delas é a que se refere ao “preconceito do tempo que separa sentir e pensar, tão opostos um a outro e mesmo tão hostis, que o sentimento, especialmente o sentimento religioso, seria pre­tende-se, alterado, transformado, anulado pelo pensamento e que a religião e religiosidade não teriam raiz essencial nem lugar no pensamento”.

A razão disso é a confusão entre o pensamento refletido— das reflektierende Denken — isto é, o pensamento cujo conteúdo é pensamento, de que o sujeito se torna consciente, enquanto a maioria, alheia à filosofia, os têm sem pensá-los. Entretanto, tais sentimentos e representações assimilados à vida mental não implicam passividade do espírito, que ativa­mente os recebeu; — mas não os discerniu, analisou, apro­fundou, numa palavra, não os pensou.

É isso que constitui a reflexão.Graças à sua “mediação”, o conteúdo de nova consciên­

cia imprime sua determinação aos sentimentos, intuições, imagens, representações, fins, deveres, etc., assim aos pensa­mentos e conceitos. A clarificação lógica desse conteúdo não se processará espontaneamente, como formas de digestão ani­mal do espírito — digamos assim — e só pela reflexão é que se torna possível aquela atividade filosófica. Nesse passo, He­gel recorre a uma imagem nítida: será absurdo exigir que a crença religiosa exigisse, preliminarmente, a determinação da­queles conceitos para que fosse ato de pensamento. Seria co­mo querer que o homem só comesse depois de compreender

(1) A Encycklopaedie foi escrita nos cursos de Heidellberg <1816-1817), quando a publicou. Precedia o livro a Phenomenologie des Geistes (1807} e a Wissenschaft der Logik (1812-1816). Duas ou­tras edições, com laboriosos acréscimos, que dobram o número <le parágrafos, saem em 1827 e 1830; as observações e corrigendas sucessivas, na forma e na dilucidação das idéias, fazem alguns entusiastas proclamarem-na enfaticamente — a "bíblia do hegelia­nismo". Treitschke reconhece ali a "natural potência expressiva do gênio". E Rosênrkranz alude ao sistema exposto como uma "tota­lidade concêntrica", tal a força e nitidez da linguagem. (A edição citada é a Gesammelte Werke de 1841).

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os fenômenos químicos e biológicos dos processos da diges­tão. “Se fosse assim, é certo que tais ciências, nos seus res­pectivos domínios, como também a filosofia no seu, lucrariam com o aumento de utilidade, que cresceria até tornar-se indis­pensável de modo geral e absoluto. Ou antes, todas, em vez de indispensáveis, absolutamente não existiriam.”

A consciência das determinações de sensibilidade são as representações, que, na reflexão filosófica, originam os con­ceitos, as categorias, as idéias. Pode-se considerar aquelas — diz pitorescamente Hegel — como “metáforas das idéias e dos conceitos”. Daí a incapacidade de pensar abstratamente pe­culiar aos que não se adestraram no trato da essência daque­las metáforas, despindo-as das notas que a sensibilidade faz. na representação. “A outra face da inteligibilidade consiste na impaciência de querer alcançar, sob forma de representa­ção, o que está na consciência como idéia ou conceito” ( § 3 , Zusatz). O que parece a todo mundo fácil, accessível ao pri­meiro lanço, resulta, pois, de que compreendam apenas o já compreendido, o conhecimento familiar, feito de representa­ções habituais.2

E a realidade, como conceituá-la? O que é independente, objetivo, estranho à nossa consciência? A pergunta nos salteou há trinta anos, quando escrevemos nosso primeiro trabalho de filosofia 3. Desde então, numerosas reflexões, oriundas de con­tinuadas leituras, suscitaram corrigendas à interpretação que firmamos — mas que não afetam à linha central do nosso pensamento, que, na sua essência, é o mesmo no tocante à posição filosófica. Queremos agora, com mais profundidade, situá-lo em face do hegelianismo.

O objeto da filosofia, para Hegel, seria o conteúdo ori­ginariamente produzido e produzindo-se no domínio da vida espiritual — espírito vivo — 4 (im Gebiete des lebendigen

(2) Consideram-se mais claros os escritores, predicadores, ora­dores, etc. que contam a seus leitores e ouvintes coisas que pre­viamente sabiam, que lhes são familiares e que por si mesmos compreendem". Loc. cit. ("Werke, vol. 6, p. 7).

(3> O Problema da Realidade objetiva, Fortaleza, 1932. — 2*ed., Tempo Brasileiro, Rio, 1971.

(4) "Mental life”, traduz W. Wallace, p. 9, The Logic of Hegel

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Geistes ursprunglich hervorgebracht und sich hervorgebrin- gende) — e que dá a configuração do mundo exterior e in­terior da consciência. Tal conteúdo é a realidade ( ihr lnhalt die Wirklichkeit ist) — e a consciência mais imediata dessa realidade é a Experiência. Não se encontra na explicação a simplista exposição de que Hegel tenha dissolvido o Real no Ideal, aniquilando o mundo exterior diluído no pensamento. Ele assimila a essência da Realidade ao processo que produz na Consciência essa forma de apreensão das coisas internas e externas, que se chama experiência, fonte de todas as deter­minações que se apreendem, no crescimento histórico da “es­piritualidade” como “realidade objetiva”. E a jurisdição entre o que é “interioridade” e o que é “exterioridade” resulta da mesma experiência, que leva a distinguir a aparência, que é transiente e insignificativa como fenômeno (Erscheinung, vorúbergehend und bedeutunglos) e a “realidade” ( Wirklich­keit) , na sua verdadeira significação. A tradução inglesa e nas línguas neolatinas de “Wirklichkeit” é, por vezes, atuali- dáde, efetividade, pois sentem os tradutores a necessidade de acentuar a nota operativa que está na voz germânica — wir- ken — e se esmaeceu no realitas, res, latino. Digamos — realidade operante, e atentemos nas especulações que apro­ximaram o conceito de verdade com o de realidade, como por exemplo o desse trecho de Feuerbach: “O homem representa como real o que ele considere verdadeiro, — entendendo por verdadeiro o contrário do que é somente representado, sonha­do ou imaginado. O conceito de existência é o primeiro con­ceito, o conceito originário da verdade. Noutras palavras: na origem, o homem faz depender a verdade da existência, e so­mente mais tarde a existência da verdade” 5.

O real é o dado na experiência, que, da percepção em nível biológico, comum a várias espécies animais, se alarga e aprofunda imensamente na experiência histórica: e é graças a isso que o homem transitou das simples representações para os conceitos, do sensibilis para o intelpgibilis, sem que essa transitação seja cisão ou divórcio entre dois planos estanques, mas uma transição dialética, dentro, portanto, de uma iden­

(5) Feuerbach, Das Wesen des Christentum, capítulo II.

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tidade viva de opostos. Essa “realidade”, compreendida he- gdianamente, não é a desfiguração com que se apresenta vul­garmente, encarnação de idéia, na exposição empobrecida da concepção originária alienada da natureza dialética, que está no pensamento ininterrupto do autor. Ao dizer que tal “rea­lidade” se acusa na consciência imediata ou sensível, ainda na fase primigênia de cisão entre “sujeito x objeto” 6 põe o problema de tal modo que não permite sua formalização dua­lista: o algo, da imediatidade indiferenciada (Ser), já implica o Nada, que é o seu oposto, a negação, e ambas são puras c pobres abstrações, se não se somam no processo do devenir ( Werden) como determinações iniciais. Só então se considera o Ser determinado (Dasein), algo exterior, “um Ser que tam­bém se relaciona com outro e que, assim pensado, é Reali­dade” 7.

Existe algo fora da consciência: o “Outro”, sem que, nas fases iniciais, se haja consciência da consciência. Esta não sabe de si mesma, ignora-se, mas a alteridade já implica que existe. O objeto se define primordialmente no plano do conhe­cimento sensível: é o ob que se jecta, e o sub ainda não foi apreendido, captado na consciência — inconsciente do Eu. é um saber imediato, que é saber do imediato, a protogênese do “espírito”. A Phaemomenologia des Geistes é o esforço tre­mendo para narrar esse devenir, o parto da consciência pelo inconsciente na diferenciação primária do “sujeito objeto”: é o momento inexprimível, porque não é possível fixar em con­ceito o que é aconceitual ou preconceitual, o que está antes da linguagem não pode ser alcançado pela linguagem senão ilusoriamente. Como explicar o pre-pensamento sem reduzí-lo a pensamento, o preverbal a verbo, sem completa deformação? Aí que Hegel nos fala do inefável.

“A certeza sensível — escreve Jean Hypollite — ilustra assim o primeiro teorema da lógica hegeliana, o que, pousan­do o imediato, o Ser, descobre-o idêntico ao Nada; esta po­sição do Ser se refuta a si mesmo. Retenhamos da nossa aná­lise este ponto essencial: o singular visado pela certeza sensí-

(6) Djacir Menezes. Raízes pressocrâticas de temas atuais.(7) Propedeutische Philosophie.

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vel, ela própria singular, é, de fato, sem próprio contrário, é o mais abstrato universal” 8. Começa assim o itinerário que permite a superação do inexprimível da intuição sensível, do “isto”, do “aqui”, para as formas superiores, que iniciam o “saber” mediante as determinações qualitativas, que se desen­tranham da “imediatidade”. E vemos a íntima conexão em que se desenvolve a consciência no jogo “sujeito x objeto”. O saber vai se definindo, sob esse aspecto, como um sistema de mediações.

Em geral, argumenta-se com essa aparição, emergência dos “universalia” do seio da experiência sensível sem levar em conta a fina argúcia com que Hegel analisa o processo cognoscitivo. Diz-nos ele que é a certeza sensível que nos in­forma: "agora é dia, isto é uma casa”, insinuando determina­ções qualitativas, frustrando a imediatidade com a inserção de conceitos como dia, noite, casa, que implicam espécie e gêne­ros, diferenciações alcançadas só ulteriormente; são media­ções qualitativas, frutrando a imediatidade com a inserção de porém, assevero que “isto é uma casa”, “agora é noite”, aque­la intuição sensível retira o “isto” e o “agora” do sistema de mediação, a que vinculam. Ao enunciar-se aquele juizo, está valendo este agora e este isto, do instante em que dois sujei­tos se comunicam entre si, como indicativos inefáveis capta­dos por cada um deles; pouco importa que amanhã a casa seja uma tapera, a noite seja dia: o que se afirmou como ver­dade no hic et nunc verdade, o seu “ser outro”, na lingua­gem de Hegel, não o altera nem afeta. “Uma entidade que pela mediação, sem ser isto nem aquilo, indiferente' a isto ou aquilo, é o que chamamos Universal” — define Hegel.

3. O universal na “coisa”Enquanto Kant estacionou na fase perceptiva, tornando-a,

até certo ponto, o centro de sua especulação crítica, — Hegel voltou as vistas para o período anterior, concentrando forças na análise de formação do conceito, que, destarte, era a do

(8) Jean Hypollite. Genese, etc. p. 87.

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gênero da própria atividade espiritual: o apanhar — (greifen, Begriff) das determinações (representações, Vorstellungen) que estão postas nas “coisas” e nelas são capturadas dentro do processo das contradições (Alsein Ganzer von Bestimmun- gen derSelbern ist das Existierende das Ding) 9.

O “universal”, como “sensível” ultrapassado (aufgeho- ben), exsurge na percepção complexa da “coisa”, que é uma sob a multiplicidade de suas determinações: daí esclarecer Hegel que “a riqueza do saber sensível pertence à percepção, não à certeza imediata, na qual era apenas o que se jogava à margem (an der nur das Beiherspielende Mtar), pois só a percepção tem a negação, a diferença e a multiplicidade em sua essência. A forma porque Hegel busca formular seu pen­samento sobre a “coisa”, como síntese de propriedades con­traditórias na sua identidade, e a intuição sensível imedia­ta do “isto”, que foi negado-conservado na superação para o nível perceptivo, é torturado e tortuosa. Mas o exemplo ilus­trativo dissipa a dificuldade:

“O sal é um “aqui simples” e, ao mesmo tempo, é múl­tiplo; é branco, e é também sápido, também de forma cúbica, também de peso determinado, etc. Todas estas múltiplas pro­priedades estão em um aqui simples, no qual elas se compene­tram; nenhuma tem um aqui diverso das outras, mas cada qual é no mesmo aqui onde estão as demais (Keiríe hat ein anderes Hier ais die anderes, 1sondern gern ist atlenthalben, in dem- selben, woein die andere ist) — E ao mesmo tempo, sem estar separadas por aquis diversos, elas não se afetam nessa compe­netração. O branco não afeta ou altera a forma cúbica; as duas não alteram o sápido etc. Todavia porque cada uma des­sas propriedades está ela própria numa simples relação consi­go mesma, ela deixa as demais em quietação (sondern da jede selbst einfaçkes Sichaufsichbeziehen ist, lasst sie die andem ruhig) e relaciona-se com elas pelo também indiferente” 10.

Esses “aquis” (Hier), essa “indiferença” entre as pro­priedades, esses tambéns, chocam um pouco o leitor não fa­miliarizado com o léxico hegeliano e com a natureza do pro­

(9) Prop. Phil., 124.(10) Phaen. ed. Hoffmister, p. 90.

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blema. A “coisidade” seria aquele meio (os “aquis”) em que se compenetram as propriedades indiferentemente, pois não se repartem especialmente: são a “coisa” e não no são pois a “coisa” ê, como objeto da precepção, unidade exclusiva e excludente (universal). O processo percipiente, que parte do sensível, não é mera compilação de sensações para construção da “coisa” percebida, como aprouve explicar o mecanicismo formalista, — porque o perceber não é o simples captar de determinações do real, mas ainda reflexão, incessante jogo dia­lético da regatividade operativa imánente ao ato de intelegir através do intuir, quando a “singularidade” desaparece diale- ticamente na transfiguração em “universalidade”, que, depois, permite o inverso — para pousar a singularidade.

O sensível e o intelegível, o singular e o universal, como polos da contradição, têm que ser tomados ao vivo — na “coisa”. Porque o sensível é a propriedade: o branco do sal, o sabor etc. — é determinação universal apreendido como brancura, sapidez, etc. São, portanto, dois momentos. Consi­deradas abstratamente, sem a “coisa”, aquelas determinações não inherem a algo (substrato) e perdem o caráter de proprie­dade. Que faz então o formalismo abstrato? Compõe a “coi­sa” com aquelas determinações e obtem a noção ou represen­tação, mas que não é o conceito na acepção hegeliana. Este, em vez de surgir daquela compilação unificante, resulta da “coisa” — e Hegel, na sua posição idealista — dialética, diz— está na “coisa”, é a “coisa”. Retenha-se o importante, epis­temológicamente: o de que se parte de “algo”, que existe co­mo Actuosidade — Wirklichkeit — ponto nodal de contradi­ções em desenvolvimento, que é a “coisa” 11.

4 . A refletividade imánente“Enquanto totalidade, a coisa é contradição: por sua

unidade negativa é a forma, na qual a matéria é determinada e rebaixada às propriedades e também consiste de matérias

(11) Phaen, ed. Hoffmaister, p. 91.

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que, na reflexão da coisa em si mesma (in-der Reflexion-des- Dings-in-sich), são ao mesmo tempo tanto independentes quan­to negadas. A coisa é assim a existência essencial que se su­prime e conserva em si, é fenómeno. Atente-se: a coisa é a totalidade em desenvolvimento, portanto, unidade de contra­ditórios. Para ser tal coisa determinada e concreta, não é ou­tra: portanto, falando hegelianamente, ela contém, em dado momento, a reflexão-sobre-outra coisa. As determinações se distinguem, não em si mesmas mas na coisa, de que são “pro­priedades”. Entre estas e a coisa, há uma relação de ter ( ihre Beziakung auf dasselbe ist das Haben) — e essa rela­ção toma o lugar de outra relação — a de ser: E nessa subs­tituição há ilusão, e faz-se da propriedade, inexatamente qua­lidade, o que é errado e conduz a conseqüências falsas. Por­que a qualidade é determinação concreta que se unifica com a “coisa” e sua alteração transmuda a coisa, que deixa de ser o que era. A coisa é, na expressão hegeliana, a reflexão em si, isto é, identidade distinta das determinações que tem, mas que são independentes da coisa, embora refletidas nela. Por isso mesmo, que, rebaixado a coisa às propriedades, olvida-se a distinção que nos conduz a conceituação do fenômeno como “aparição” (Erscheinung) da “essência” (Wesen). Nesse sen­tido, aparência não é o ilusório, o que está à superfície, sem raiz na realidade, como discutem os céticos: o aparecer é a manifestação da essência, que se torna imediata pela reflexão.

Não é possível compreender o raciocínio sem examinar essa categoria básica no pensamento de Hegel — a reflexão. Ele escreve que foi buscar o termo alheio ao alemão para melhor exprimir a posição de uma aparência que se tornou estranha a sua imediação: “a essência é a reflexão, o movi­mento do devenir e do traspassar, que permanece em si mes­mo, onde o diferente está determinado de modo absoluto só como o negativo em si, isto é, como aparência” 12. Ele com­para ao raio de luz, que é refletido ao incidir sobre a super­fície que o devolve: obtém-se, pois, algo duplicado; primei­ramente algo imediato que tem ser, e secundariamente, o mes-

(12) Encyktopaedie, § 130 "ais eine sich in sich selbst aufhe- bende zu zeyn, ist Erscheinung".

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mo como algo mediatizado ou simplesmente posto (Geseízes).A coisa, na reflexão, já não é tal qual surgiu imediatamente, mas tecido de nexos e relacionamentos no jogo de mediações com outras coisas. Então, a essência de algo se “revela” no movimento do seu contrário: o imediatamente aprendido ou captado já é mediatizado, algo que resulta da negação da apa­rência e que se põe como essência13. Daí insistir Hegel que aparência é reflexão, e reflexão é essência, “movimento do devenir e do traspassar — die Bewegung des Werden und Uebergehens — que permanece em si mesmo”. O processo de refletividade é imánente: se algo é concebido como positivo, outro algo é concebido como negativo; se algo é concebido como fundamento, algo é concebido como fundamentado; etc. Esses pares de conceito reflectivos não são correlativos, alter­nantes, duais, o que levaria a interpretação mecanicista. A re­lação não é vínculo exterior entre dois termos, entre dois algos, porque um se volve no outro, dialeticamente; se a é o outro de b, b é o outro de a\ o outro do outro, portanto; flexibiliza- se a bipolaridadé, que, por força das palavras, conduz-nos a conceber erróneamente como dois o que é dois momentos do mesnjo algo em devenir, que nos insinua a falar de tais algos, como escrevíamos há pouco. Às vezes, é-se forçado a falar de relações entre coisas ou de determinações e já estamos no dominio da lógica aristotélica, traduzindo no seu léxico idio­mático a concepção hegeliana.

A categoria da “reflexão” é que impede de aceitar o mundo subjacente, oculto, inalterável do id quid est tranqui­lamente imutável__enquanto o mundo mutadiço e transitoriodas aparências fica sendo a exteriorização devassável pelos meios da perquirição científica ou vulgar. “É o erro habitual da reflexão apreender a essência como o que é simplesmente interior, se tomamo-lo unicamente assim, esta consideração é também toda exterior e esta essência, abstração exterior e vazia” 14 realidade está na unidade do exterior x interno, determinações formais abstraídas de dois momentos de iden­tidade morta, isto é, onde não se intuiu a contradição dos

(13) Hegel, Wies, d. Logik, II, L. C. Reflexión.(14) Encyklopaedie, § 140, Zuzats.

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opostos no processo das coisas mesmas. Contrapõe-se externo a interno, como se faz com matéria e forma, continente e con­teúdo — e imobilizam-se em representações que deixam de ser conceitos na accepção hegeliana. O traspassar dialético de um no seu contrário, no jogo dos opostos, — a essência que se volve em aparência, a aparência que se essencializa, a es­sência que se põe como inessência, — tudo isso, omitido ou traduzido falsamente para o formalismo aristotélico, dá a mis­tificação tremenda que enche volumosas exposições filosóficas a título de crítica ou análises do pensamento de Hegel.

Adverte o filósofo que, geralmente, se considera a “re­flexão” no sentido subjetivo, como “movimento da faculdade judicativa, que ressalta de dada representação imediata e lhe busca determinações gerais”. Com Kant, “pensar” foi esse re­lacionar do particular ao universal, relação de conteúdo a continente. Ainda sob esse ângulo, a reflexão constituiria um movimento de superação do imediato (particular, singular) na direção da lei, da regra, do princípio, que é essencial. Essa reflexão no sentido kantiano é extrínseca, o imediato exprime algo que é dado e que se vai enquadrar ou subsumir no que lhe preexiste como universal. Para Hegel, naquele imediato está, graças ao movimento reflexivo, que é a negatividade pura, o essencial, id quid est indiferente diferenciando-se, por­que se caracteriza tal ao opor-se às determinações (proprie­dades). A qtífllidade já é determinação essencial e a unidade das manifestações, nesse nódulo de contradições, se exprime (Hegel diz idealisticamente: é) o conceito. Assim, seria o conceito intermediário do ser e da essência, como a trans- Iuminescência da pre-coisa em via de “aparição” e, portanto, de “apreensão”. Ao captar as determinações, o que era ime­diato mediatiza-se, mas não de modo extrínseco ao imediato, sim como ser próprio do imediato. Convém pensar sobre essa afirmação, porque nela se exprime a natureza essencialmente dialética da reflexão. Só por este caminho, é possível distin­guir as determinações essenciais das inessenciais; estas são transitórias, relativas e se alteram sem alteração da “coisa” (<determinações quantitativas) , enquanto nas primeiras a va­riação implica na mudança (determinações qualitativas) e são seus limites.

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“O Ser-determinado (Dasein) é somente o Ser-positado (Gesetzessein); esta é a expressão da essência do Ser deter­minado.” Determinação é negatividade, — e como a deter­minação resulta da distinção em face do outro, o raciocinio hegeliano é mais penetrante do que se cogita ao considerar a refletividade (negatividade pura). O “Ser determinado”, com não se confundir mais na imediatidade indiferente, no puro e simples “Ser”, já se lhe opõe para definir-se. É o mes­mo processo dialético que conduz à conceituação da “essên­cia x aparência”, totalizadas contraditoriamente na “coisa”. Se quedamos com a essência indiferente, igual a si mesma, sem intuir a ação imánente dos contrários, desembocamos, irre­mediavelmente, no formalismo lógico de estrutura aristoté­lica e tomista, celebrados por escolásticos de todos os nai­pes desde Heráclito.

5 . A negatividade das “determinações”O aparecer (Schein) da essência é a reflexão, que se

traduziu nas clássicas leis fundamentais do pensafnento (prin­cípio da identidade, princípio da contradição, princípio da exclusão de meio) — os quais, no final de contas, são apenas um só: A = A. Ou, na formulação negativa: A não pode ser ao mesmo tempo A e não-A. “A essência aparece em-si-mes- ma” 15 e assim se determina: as determinações são unidade com ela, — determinações da reflexão. Ora, a primeira de­terminação é a unidade essencial consigo mesma, isto é, a identidade, que se exprime na proposição A = A , a saber, cada coisa é idêntica a si mesma (ou, na forma negativa, conforme se enunciou acima). Pergunta Hegel: por que só formulamos as determinações primárias da reflexão? Se enunciarmos as de­mais categorias que expressam determinações na esfera do Ser, teremos outras tantas proposições do mesmo tipo: tudo tem existência; tudo tem uma qualidade, uma quantidade etc. Por que? Porque o “Ser determinado” possui as determina­

(15) Hegel, Philos. Prop&d., Zweitw Abtheilung, Das Wesen, wesen scheint in-sich-selbst und bestimmt sich".

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ções lógicas que o predicam como tal. Não significa o kathe- gorein aristotélico o que se afirma do existente? afirma-se algo de algo.

“Todavia — adverte Hegel — qualquer determinação do Ser implica o transitar para seu oposto; a negativa de toda determinação é tão necessária como a própria determinação”. Dada uma determinação, formuladas em proposição, ocorrerá o mesmo a qualquer delas, o que não ocorre com as determi­nações reflexivas. Por que? porque estas não são qualitativas: são “relações”. Esclarece-nos Hegel: têm já a forma de pro­posições. E explica: “a proposição se distingue do juízo prin­cipalmente pelo fato de que nela o conteúdo constitui por si mesmo a relação, vale dizer, é uma relação determinada. Ao contrário, o juízo transfere o conteúdo ao predicado, como determinação universal, que existe por si, e é diferente de sua relação, isto é, da simples cópula

Essa sutil distinção, que escapou aos aristotélicos e to­mistas, de modo geral, comporta graves conseqüências lógi­cas. Para que se transmude em juízo, a proposição deve dis­criminar a determinação e sua relação com um sujeito. Hic Rhodus, hic saltai Se se exprime por um verbo, há que se recorrer a um participio — observa Hegel. Mas na proposi­ção já se definem as determinações reflexivas, com um sujeito, que é o Ser ou Algo, expresso no “todo” : e o que dele se afirma como existente, como qualidade, se clausura na iden­tidade — e não a ultrapassa ou transpõe dialeticamente. Pa­rece que se cortou e proscreveu a mobilidade que flui das vin- culações negativas das determinações entre si, que eviden­ciam a identidade, a diferença, a antítese, porque se “deter­minam umas às outras”, no processo do transpassar-se e do contrariar-se intrínseco. “Se tudo é idêntico comigo mesmo— anota Hegel — então não é diferente, não está em oposi­ção, não tem fundamento — Grund. Ou bem se se admite que não há duas coisas iguais, a saber, todas são diferentes umas das outras, então A não é igual a A, e por fim A não está tão pouco em oposição etc.”. Tudo ficará na mais estéril imobi­lidade formal. Será a “razão”, por conseguinte, o deus ex ma­china que tecerá o conhecimento, a interpretação do mundo, compondo o quadro maravilhoso das determinações. Tal dua­

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lismo foi atacado por Hegel na fonte primípara da gnosiolo­gía, como estamos tentando explicar neste ensaio.

6. A vacuidade do princípio da identidade.Por essa via hegeliana, evidencia-se o enunciado tauto­

lógico “A = A ”, que se considerou longamente a lei fundamen­tal do pensamento. Não sendo um juízo, reduz-se a uma pro­posição sem conteúdo, identidade abstrata, que não gera qual­quer conseqüência. Mas desde que não permaneçamos nessa identidade abstrata, imovelmente castrada na sua pureza, per­cebemos que ela expressa apenas uma verdade formal, isto é, uma determinação universal, mutilada: porque há, pela refle­xão, a determinação negadora, inabluível no jogo das deter­minações na esfera do Ser — a diferença, que, com ela, é a unidade; então se atinge a consciência do movimento íntimo, a negatividade interna, que nos dá a identidade da identidade e da diferença. O apreender da identidade não se faria sem a diferença, mesmo não formulada pelo pensamento, pois este cresce no mundo da praxis, onde a vitalidade dos contrários insinua profundamente suas raízes no paleo-psiquismo.

Se se traduz o A — A numa frase corrente, surpreende-se trivialidade da lei fundamental apresentada na lógica tradi­cional: um livro é um livro. Ao enunciar o sujeito, a mente espera que surja, como predicado, algo que não seja idêntico, mas diferente. Que seja movimento da negatividade inerente ao processo de pensar. A determinação a ser enunciada deve, portanto, comunicar uma diferença: e o dizer a mesma coisa significa não dizer nada. Logo, o enunciado nada enunciou; carente da contradição interna, aboliu-se por uma negação externa. “A identidade, em vez de ser em si mesma a verdade, e a verdade absoluta, é, por conseqüência, o contrário dela; em vez de ser a simplicidade imóvel, é o sobrepassar-se para fora de si mesma, na sua própria dissolução.” 16

Sob forma negativa do princípio da contradição — A não pode ser ao mesmo tempo A e não-A — está a mesma

(16) Hegel, Wiss. d. Logik, II, Die Identitaet.

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tautología da identidade abstrata, porque o não-A já é, ini­cialmente, o outro de A , cuja diferença se afirma como rela­ção. Para Hegel, desapareceu, não só a natureza analítica do princípio, como também o principio como lei do pensamento: há apenas o puro movimento da reflexão, no pousar a dife­rença da essência. Porque não se trata de diferença entre este ser determinado e aquele ser determinado, separados, cujas cono­tações os diferenciam, cada qual ser-por-si, mas o “outro da essência”, o outro-em-si e por-si, a simples determinação em- si — a. reflexão simples. Todavia, a diferença considerada como simples é a identidade, momento da diferença, que a envolve e supera, mas da qual também pode ser momento, na unidade dos contrários.

Do conceito de identidade, pois, Hegel alcança dialeti- camente o conceito de diferença (Unterschied). Mas se atente que ao referir-se ao “outro da essência”, nesse movimento puro da reflexão, Hegel insiste na sua simplicidade, como diferença essencial, o que não leva à conceituação de relação explicitada. Assim, um todo ofereceu momentos próprios, que são distintos na mesma identidade. A diferença seria o pri­meiro passo para positar a diversidade: nesta, já a reflexão será movimento externo', as coisas diversas têm propriedades (determinações) que são indiferentes entre si. Da mera “di­versidade” ( Verschiedenheit) é que se transita para a po­sição polar, que define a contradição.

A correlatividade dos conceitos — diferença e identidade— mostra que, posto um deles, sua positação (Setzung) 17 exige o outro para aclaração recíproca. Na igualdade temos a identidade extrínseca, na desigualdade, a diferença extrínseca. Estamos no plano da diversidade. Por que se diz externa a re­flexão? Porque, sendo coisas diversas, as propriedades do ser de cada qual, como tais, são indiferentes entre si. Nessa esfe­ra é que se definem a igualdade e a desigualdade. Mais sutil é, pois, o que tentamos interpretar como reflexão da essência. A determinação ou conotação da “diversidade” não está ape­

(17) Temos de recorrer ao neologismo para fixar-lhe o matiz semântico, que escaparia se escrevêssemos meramente "posição", "postulação" ou "postação".

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nas na abstrata pluralidade numérica, onde a alteridade não se distingue por determinação qualitativa. “Não há duas coi­sas iguais entre si” : esta proposição se opõe a de identidade. “A é diferente: quer dizer, A é diferente de um outro; não é A em geral, mas um A determinado. Em vez de A , no prin­cípio da identidade, pode positar-se qualquer outro substrato; todavia, A , como diferente, não pode ser trocado por qual­quer outro. Na realidade, tem que ser algo diverso, não de si, mas somente de outro; porém esta diversidade é sua própria determinação”. Ora, a determinação de A ser A, de A ser idêntico a si mesmo, é uma indeterminação, pois só na diver­sidade se verificaria a proposição, com a negatividade de A ser A.

Objeta-se: A é A , A tem o predicado A , o sujeito é predicado. Tal é o sentido da proposição que enuncia o prin­cípio da identidade. “Sujeito” e “predicado” são, por sua vez, determinações do juízo e só mediante o juízo são determina­ções: não se poderá considerá-los insuladamente. Di-lo genial­mente Hegel: “O sujeito sem predicado é o que, no fenômeno, é a coisa sem propriedades, a coisa-em-si, isto é, um funda­mento vazio e indeterminado; assim, se representa o conceito em si mesmo, que só no predicado alcança uma determinação diferente e uma indeterminação”. 18

Na oposição, os contrários polarizam-se como extremo das diferenças na identidade: é o positivo e o negativo, que se positam independentes. Cuidado, porém, no exame dessa “independência” : é precisamente o ponto em que a cons­ciência vulgar mergulha em equívocos. A determinação do negativo como tal só pode ser conferida pelo positivo, e vice- versa. Mas o negativo não deixa de ter sua determinação po­sitiva para que seja negativo e o positivo sua determinação negativa para ser positivo. “Cada qual é “si-mesmo” e seu outro; portanto, cada qual tem sua determinação, não em um outro, mas em si mesmo”. 19 Cada um é o oposto do outro, ambos são, reciprocamente, negativos —• como argui Hegel— “cada qual existe assim em geral, em primeiro lugar, na

(18) Hegel, Wiss. d. Logik, ibidem, "Die Urtheil".(19) Hegel, wiss. d. Logik, ibidem, "Der Gegensaetz".

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medida em que o outro existe; é o que é por meio do outro; vale dizer, por meio de seu próprio não-ser; é só um ser- posto (positado); em segundo lugar, existe na medida em que o outro não existe; vale dizer, é a reflexão em si”.

7 . A subversão do pensar dialético.A determinação, que faz do negativo, negativo e do po­

sitivo, positivo, reside em cada um deles — e não emana, como ensina a lógica formal aristotélica e tomista, da rela­ção mesma, que lhes conferiria a positividade ou negatividade, como determinação exterior. Assim, na análise hegeliana, a interpenetração dos contrários se aprofunda, mediante a “re­flexão”, que não é laço positado entre eles, compondo uni­dade mecânica de opostos. A dificuldade de explicar a natu­reza íntima da oposição no seio da identidade seria intrans­ponível sem a interpretação do que Hegel denominou reflexão, onde reside o próprio núcleo do pensar dialético, capaz de absorver os processos reais na sua íntima natureza e exprimir a interação psicogenética entre mente e mundo. Não proce­deria daí a riqueza dialética que se oculta na linguagem e nos processos idiomáticos?

“O positivo tem em si mesmo a relação com o outro, no que consiste a determinação do positivo; da mesma maneira o negativo não é negativo só pelo confronto a um outro, sim que possui em si mesmo a determinação mercê da qual se converte em negativo”. É exatamente por isso que cada qual é positivo ou negativo por si mesmo: referindo-se cada qual a seu contrário, refere-se cada qual a si próprio. Daí a dupli­cidade: relação com seu não-ser como momento de si mesmo; o “outro”, que cada um implica na sua identidade, existe como seu oposto. Hegel exemplifica a oposição, com a toma­do positivamente (-(- a) e negativamente (— a), sendo o opos­to tanto um como outro; é indiferente qual se designaria co­mo negativo. Prossegue: a hora de itinerário para leste não é caminho positivo em-si, nem a hora para oeste o negativo em-si. “As duas direções são indiferentes quanto à determi­

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nação da oposição. Só uma terceira referência, que reside fora delas, faz com que uma seja positiva e outra negativa”. 20

Era já o que dizia, espantosamente, o pensador que, dois milênios atrás, desvendara a unidade dos contrários. Herá- clito ensinara que o caminho que sobe e o que desce é o mes­mo caminho.21 Noutros termos, o positivo e o negativo são (é) a mesma coisa (das Positive und N\egative ist dasdelbe), proposição em que se comparam extrínsecamente as duas de­terminações (ãussern Reflexión). Hegel, porém, perquire-as em-si-mesmas, intrínsecamente (ihre eigene Reflexión) e nes­ta, cada qual delas revela o “aparecer de si mesma na outra e o positar-se a si como outro” (das Scheinen seiner im An­dem und selbst das Setzen seiner ais des Andem is t) . 22 Só a apreensão de algo como positivo converte-o em negativo, pois é nessa condição que é positivo, e vice-versa: e a argúcia do positar-se como positivo (ou como negativo), escapando a grande parte dos estudiosos, indu-los a considerar “erro sub­jetivo” (subjektiven Fehler) essa íntima natureza dialética da oposição.

Observe-se que a prefixação do oppositio trai a cisão espacializante, a separação insulante em que esbarram os dua­lismos, vícios perpetuados no pensamento e na linguagem como irredutíveis resíduos da ontologia aristotélica consagra­dos na herança do ocidente. Herança bem simpática à tradi­ção religiosa que estabeleceu a hegemonia do Aquinatense. A operação consiste no seguinte: apreende-se o positivo co­mo um idêntico a si mesmo, momento que se desvincula da unidade dos opostos; faz-se a mesma operação ao negativo; depois, colocam-se em presença exterior, na relação bi-polar, compondO-se a fictícia unidade de opostos: e todo o sentido passa a concentrar-se inevitavelmente na relação. Tal a inter­pretação mecanicista da dialética, que muitos marxistas ofe­recem pensando ingenuamente captarem a essência materialis­ta da relação. Abusam mesmo da exemplificação com apelo a “reflexão extrínseca” onde as determinações se confrontam

(20) Hegel, Wiss. d. Logik, ibidem, Anmerkung 1.(21) Heraclito, hodòs ano kató káto mia kai hóté.(22) Hegel, Wiss. d. Logik, ibidem, Anmerkung 1.

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na unidade morta. Então, por resvaladia conseqüência, o ne­gativo se torna exterior e subjetivo. Baseado nesta frivolida­de, Engels ofereceu exemplos do processo dialético no mundo natural, no Anti-Dühring (obra revista por Marx, que lhe es­creveu um capítulo). É ponto que não resiste à crítica hege­liana, tal a sua inconsistência.

Hegel ilustra sua argumentação. A obscuridade seria a privação pura da luz, o negativo absoluto. O bem, cujo opos­to absoluto seria o mal; a verdade, cujo contrário absoluto seria o erro. Entretanto, estes negativos assim extrínsecos se­rão a negatividade positiva, olvidando-se que cada qual, em seu próprio conceito, contém o outro-de-si-mesmo; e é nisso que está a sua verdade. Então conclui Hegel: “sem esse co­nhecimento não é possível, na realidade, dar nenhum passo na Filosofia”.

Da “identidade”, passa-se à “diversidade”, ascendendo- se à “contradição”. Nesta, Hegel encontra a determinação essencial das coisas — e nesta afirmação situa-se o point tour- nant da sua especulação, como ninguém ignora. Poucos, en­tretanto, meditam no seu grande alcance. Enquanto a deter­minação da “identidade”, erigida em lei fundamental, nada exprime na sua vacuidade tautológica, palpita na “contração” todo um processo autogenético de vida: é o movimento, por­tanto, o desenvolvimento: “apenas algo, contendo uma con­tradição em si mesmo, move-se, tem impulso e atividade”. 28 Como faz o pensar tradicional? O contrário: a profilaxia da contradição, evitada como algo formalmente maléfico à legi­timidade do pensamento. O dualismo mata a contradição no berço, o lógico vai-lhe às raízes do pensar, que é instrumento operativo. É o inimigo diabólico que se caçaria por todos os arraiais, decretando as leis eternas de sua imutabilidade. Pou­co importam os paradoxos que irrompem por toda parte. Ze­non é o contrabandista armando as suas aporias. A flecha de Aquiles fica imóvel na cabeça teórica do filósofo. O maior corredor da Grécia, o homem de pés aligeros e alados de Ho­

(23) Hegel, Wiss. d. Logik, ibidem, Das wesen der Reflexión, Anmerkung; ". . . nur insofem etwas in sich Selbst ienen Widers-pruch hat, bewegt es sich, hat Trieb und Tátigkeit”.

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mero, não alcançará a tartaruga — porque não se ouve a voz do Efésio, herética e solitária. Esse pensamento vegetaría à margem, abrindo-se em pequenas veredas suspeitas, onde pas­sam sombras (Boécio, Scoto, Guilherme de Ockam. . . ) ao lado das estradas reais do augustinianismo, do tomismo, do suarezismo. Há, entretanto, uma revivescência periódica, mar­ginal, nos surtos endêmicos da especulação herética, bloquea­dos pelos cordões sanitários dos ortodoxos do aristotelismo vigilante e docente. Hegel é a grande erupção: rebenta im­placavelmente.

8. Quando se esvai a “reflexão”E instala a vitalidade da contradição no centro do pen­

samento filosófico: “algo é vivo somente quando contém em si a contradição e é precisamente a força de conter e suster em si a contradição (und zwar diese kraft ist, den Wieders- pruch in sich zu fassen und auszuhalten) 24. Se, todavia, algo existente não pode englobar em sua determinação positiva também a sua determinação negativa, mantendo firme uma e outra, isto é, se não pode conservar em si mesmo a con­tradição, então não é esta a própria unidade viva, não é fundamento, mas sucumbe na contradição”. O que é funda­mento da coisa não é aquela abstração formal do id quod est, determinação esclerosada do tomismo aristotélico, mas o mo­vimento íntimo, que se revela na contradição, como o concre­to apreensível. É no movimento que desaparece a correlativi- dade das determinações dos contrários, evidenciadas nos exem­plos vulgares (positivo e negativo, verso e reverso, direita e esquerda, alto e baixo, norte e sul, etc.) A oposição tende a cristalizar-se ou concentrar-se num dos termos. Quando di­zemos direita, temos a determinação de que não ê esquerda, embora saibamos que é direita porque há wna\ esqvúerda a que se refere (lembremo-nos da reflexão). Atrás comenta­mos: a determinação “positivo” contém em si o negativo co­mo seu “outro” e vice-versa; cada qual subsiste só, indife-

(24) Hegel, Wiss. d. Logik, ibidem, "Der Widersprucht”.

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rente à relação de oposição: e “direita” é apenas “posição”, “alto” o lugar, “reverso” a face de algo, “norte” um ponto cardeal, etc. esvaindo-se a determinação opositora. Apagou-se a “reflexão”, ficou algo-em-si. A unidade dos contrários mor­reu no momento em que as determinações não determinam: a “direita” — argumenta Hegel — já não é “direita”, o “alto” já não é “alto”, etc. A representação privou-se da consciência da reciprocidade reflexiva, que é a contradição, embora fique com as duas determinações que passam a ex­primir uma reflexão externa; vale dizer, uma oposição meca- nicista, se tanto. Só aprofundando racionalmente, o espírito pode apreender as determinações na mobilidade dialética, isto é, saindo do campo do Entendimento para o da Razão. Porque só a Razão capta a reflexão intrínseca, atinge a contradictio oppositorum na identidade, como “pulsação imánente da au- todinâmica e da vitalidade” (die inwohnende Pulsation der Selbsbewegung und Lebendigkeit) 25.

9 . O FundamentoMais ampla e abrangente que a categoria de causalidade,

examinada mais adiante, é a categoría do Fundamento (das Grund), em que nos deteremos agora para assentar premis­sas indispensáveis. Abrindo essa parte da Lógica, diz Hegel: “A essência determina-se a si mesma como fundamento” 2e. Considerando-o como uma das determinações reflexivas da essência, esta, como reflexão pura é pura negatividade. O “fundamento” como negação que se supera — “essência que, mediante seu não-ser, volve a si e se posita” — adquire, nesse retorno, a seguinte determinação: a identidade da es­sência consigo mesma. Para esclarecer esse movimento su­mamente abstrato, Hegel parte do princípio leibniziano: “tudo

(25) Hegel, Wiss. d. Logik, ibidem, Anmerkung 3.(26) A tradução francesa de Jankelevitch falseia o pensamen­

to hegeliano; "1'Essence peut être definie comme étant le fond ou fondement des choses” — Science de la Logique, vol. II, p. 73, Au- bier, Paris, 1949.

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tem sua razão suficiente” 27, o qual também pode ser enun­ciado — “tudo que existe pode ser considerado, não como imediato existente, mas como algo positadó” 28. Ora, se tudo tem sua razão de ser, o fato de ser já implica a razão sufi­ciente — argui Hegel. Desnecessário perquirir algo extrínse­co, que positaria a coisa, como sua razão de ser. Enfocando assim o problema, Leibniz descortinava a via aberta pela causalidade mecânica, definida numa relação externa e aci­dental. Tais causas, com a extraneação das determinações, que não compõem a unidade, pois excluem os fins, que ficam alienados do processo autogenético. Quando, porém, a essên­cia é configurada como fundamento, aparece, simultanea­mente, como fundamento em face do ser-positado, tornando- se, negativamente, como essência, o ser não-positado.

O ser-determinado é o ser-positado; pressupondo um “fundamento”, que não foi positado, nega-se: dai dizer Hegel que a essência é a negatividade idêntica a si mesma. O ser como determinação imediata é o ser ainda indistinto de sua indeterminação, quer dizer, como algo existente, algo-que-

(27) ". . . en vertu duquel nous considerons qu'aucum fait ne sauroit se trouver vrai, ou existent, aucune Enonciation vérita- ble, sans qu’il y ait une raison suffisante pour quoi il en soit aussi et non pas autrement" — Leibniz, Monadologie, § 32.

(28) Leibniz, Príncipes de la Nation et de la grace. Príncipes de la Philosophie ou Monadologia, Presses Universitaires de Fran- ce, Paris, 1954, §§ 32,33. Na Monodologia, Leibniz distinguirá o âm­bito de vigência do princípio da razão suficiente: "as verdades do raciocínio são necessárias e seu oposto é impossível, e as de fato são contigentes e seu oposto é possível. Quando uma verdade é necessária, pode-se descobrir-lhe a razão pela análise, resolvendo-a em idéias e em verdades mais simples até o que se encontra nas primitivas".

O termo Grund oferece conotações que discordam da ratio la­tina. No antigo alemão, empregava-se no sentido de "profundida­de", de "abismo" e de "fim" (Grimm). No léxico místico, signi­ficou "intimidade", "forças profundas da alma", "origens aními­cas", como se lê em Meister Eckhart (Innersichkeit, Ursprung, Wesenskrait, Seelengrund). Em Jacob Boehme, que teve grande influência em Hegel, encontramos Ungrund, Urgrund; e em Schel- ling, mais racionalizada na significação, como innergottlichen Lé- bensprozess, e outras variantes.

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está-positado. Considerada como fundamento, a essência pos­sui imediatidade, que é seu substrato e recebe as determina­ções da forma, que lhe são inerentes. Ela é a base indetermi­nada daquelas indeterminações, cujos momentos são a identi­dade e a diferença, culminando na diversidade e oposição.

É necessário não perder de vista que as coisas são dife­rentes ou idênticas em suas conexões mútuas. Nesse caso, con­sideram-se as coisas como primariamente relacionadas e esse nexus rerum delas entre si é a parte fundamental que lhes constitui a natureza. Porque Hegel jamais pensa a “identida­de” sem que ela seja a “unidade da identidade e da diferen­ça”, nem a “diferença” que não seja a “unidade da diferen­ça e da identidade”. Noutros termos, a “identidade” e seus momentos: e os contrários se interpenetram.

Se refiro que A é diferente de B, reconheço que B é não-A, negação de A; mas, como não-A é também positivo, porque é refletido em si mesmo, como B, do qual não-B seria A , que é, por sua vez o seu negativo. Já se insisitu, pá­ginas atrás, no sentido profundo que tem essa ação negativa da refletividade e nunca é demais meditar, não na exteriori- dade da negação, mas na sua interioridade, que é a essência da própria dialética.

Começaremos então a compreender que a essência da “coisa” não é o tranqüilo id quod est, que nos impingiu a filosofia escolástica, e onde assentaria a identidade, nóan aquela diversidade entre positivo e negativo; mas é o ser-em- seu-outro, como contrários que se identificam: e o princípio do fundamento (Grund) exprime “que uma coisa é indepen­dente e essencial mesmo quando, em transição para algo diferente, isto é, o fundado ( Grunded) e que o último tem sempre sua essência no primeiro e é inteiramente dependente dele” 20. Daí conforme infere Findley, “a categoria do1 fun­damento não é a serena união da identidade e da diferença, mas uma unidade de ambos”.

Para o estudo da causalidade, é importante a análise do princípio do fundamento e do fundado: porque se extende

(29) Findley, Hegel: A re-examination, George Alien & Unwin, London, 1958, p. 194.

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mais além do que classicamente se compreende no princípio de causalidade. O conceito de Grund envolve e ultrapassa o de Causação. Pelo exposto, vimos que a riqueza de conota­ções da “identidade’ e da “contradição”, que se desentranham das conjecturas do filósofo, dão inesperada perspectiva ao pro­blema, cujas conseqüências ainda não foram exploradas nas suas várias direções especulativas. E está bem longe daque­las simplificações em que se comprimiu o formalismo tradi­cional, mamando sempre nas tetas aristotélico-tomistas.

10. Leis TautológicasA relação entre “fundamento’ e “forma” reclamaria a

atenção para a reciprocidade dialética. A essência é, sob esse ângulo, a unidade simples do fundamento e do fundado: pre­cisam-se as determinações da forma, da qual a essência apa­rece como negativo; e todos os momentos da reflexão inte­gram-se na forma. Abstratamente, a essência opõe-se à forma como sua determinação. Mas o vigor verdadeiro da negativi­dade posita a essência como forma absoluta; e a essência se identifica a si mesmo. “A forma — diz Hegel — determina a essência: isto quer dizer que a forma, diferenciando-se de­la, suprime ela mesma a diferenciação e torna-se identidade de si; tal identidade sendo a essência como permanência da determinação, ela é 'a contradição para ser suprimida em seu ser-positado (Gesetzsein) e possuir permanência apesar de suprimidas: o fundamento é destarte a essência que, determi­nada ou negada, persiste idêntica a si mesma” 30.

A essência se manifesta numa identidade sem forma: a matéria.

“A matéria é a identidade simples, indiferenciada, que é a essência (einfache unterschiedlose Identitat, welche das We­sen ist) mas com a determinação de ser o “outro” da forma (mit der Bestimmung, das Andere der Form zu sein). Ela é assim a base propriamente dita ou o substrato da forma

(30) Hegel, Wiss. d. Logik, II, ibidem.

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( Grundlage oder Substrat der Form) ” 31. De fato, como se conceitua a matéria? Abstraindo-se de algo todas as suas de­terminações. A matéria é o abstrato por excelência ( ein sch- lechthin Abstraktes). Por que? porque não se toca, não se cheira, não se ouve, não se vê, não se saboreia; eliminaram-se todas as notações sensoriais capazes de “configurá-la”. Essa amorfía nega, por sua vez, a própria matéria, que a forma pressuporia, e é, concomitantemente, pressuposta. Do con­trário, seria essência, reflexão da negatividade, como previa­mente discutiu-se. Portanto, nessa reciprocidade do que ma­téria implica forma e vice-versa, a matéria não se opõe como fundo ou fundamento da forma: torna-se apenas uma iden­tidade abstrata das determinações eliminadas, suprimidas da forma, embora cada qual se ponha por suas próprias deter­minações conceituais. Resume Hegel, a arguição: a matéria é algo formado, a forma é algo materializado, determinándo­se mutuamente. Mas enquanto a matéria é idêntica a si, co­mo positividade, a forma é negação, contradição viva e su­prime-se na matéria, que se torna forma em si mesma, “ma­nifestando susceptibilidade absoluta para a forma”: e é a forma que determina a matéria, que, por sua vez, é determi­nada pela forma. A unidade dialética de essência e fenômeno se transfigura agora na unidade dialética de matéria e forma. A supressão da forma, como negativo da matéria, acarreta, simultaneamente, a indeterminação de seu oposto, — a ma­téria se elimina como positivo. Evitemos, porém, a interpre­tação mecanicista, ouvindo a advertência hegeliana: a ativi­dade da forma é, ao mesmo tempo, o movimento próprio da matéria (Dies, w¿is ais Taetigkeit der Form erscheint, ist ferrter ebendosehr die eigne Bewegung der Materie selbst) 32.

Essa contradição viva é que nos revela: a matéria não se opõe à forma como seu outro, como exterioridade, porque a forma não é o oposto mecânico da inferioridade, mas insi­nua-se, torna-se íntima da matéria, que se desentranha em formas sucessivas participantes de forma primitiva, onde se integravam. A outra distinção será relativamente ao “conteú-

(31) Hegel, Wiss. d. Logik, II, ibidem.(32) Hegel, Wiss. d. Logik, II, ibidem.

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do”, que é identidade de forma e matéria: é determinado co­mo matéria formada. Para melhor compreensão, antecipemos um exemplo que permite precisar claramente os conceitos de fundamento e fundado, de forma e conteúdo. Enuncia e lei de Newton que os planetas descrevem órbitas em torno do sol por causa da atração reciproca entre teas corpos. Qual o fundamento do fato a ser explicado? O movimento em tor­no do sol: este é o conteúdo do fenómeno. Como se mani­festa? Nas relações recíprocas entre os corpos considerados. Que nos aponta como causal Uma “força de atração”, isto é, uma determinação refletida em si mesma. E que força é essa? A que se traduz nas relações recíprocas entre os referidos cor­pos. O fundamento, a razão buscada como explicação do fe­nômeno, é o fundado. No caso, o próprio fenômeno.

Outro exemplo. A primeira lei de Kepler reza: “Os pla­netas descrevem órbitas elípticas de que o sol ocupa um dos focos”. Aí temos a descrição de meras relações entre corpos celestes — e mais nada. Medem-se velocidades — espaços percorridos e tempos decorridos. Idem, na lei da queda dos graves (Galileu). Em todas elas, o fundamento e o fundado são uma mesma coisa.

Leibniz recordava que Newton repusera, com sua “força de atração”, no cenário científico, as qualidades ocultas da Escolástica: “Mais se haveria de reprovar por ser o contrário— acrescentou — a saber, que se invocam qualidade muito conhecida; com efeito, não tem outro conteúdo que o próprio fenômeno. O motivo pelo qual se recomenda tal maneira de explicação consiste em sua grande claridade e compreensibili- dade (ihre grõsse Deutlichkeit und Begreiflichkeit), pois nada é mais claro e compreensível que dizer, por exemplo, que a planta tem seu fundamento em uma “força vegetativa”, isto é, uma “força” que produz plantas” 88.

A tautología facilmente surge à luz da razão dialética. De fato, a explicação de uma “coisa” começa no descobrir, dialeticamente, que aquilo que se deseja explicar é algo que lhe é estranho, que é distinto, e constitui “fundamento”. Este lhe é diferente e não se inclui no seu enunciado. Do contrá-

(33) Hegel, Wiss. d. Logik, II, ibidem.

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rio, tratar-se-á de pura tautología, enunciado vazio e vicioso de etiologías ilusorias, que aliás são correntes no terreno cien­tífico34. O que se apresenta muitas vezes, como fundamento, instituido a modo de ponto de partida do conhecimento, é, nalgumas ciências chamadas “dedutivas”, o derivado; isso se descobre depois, não no conhecimento in fieri, mas no conhe­cimento feito. E aqui cumpre reconhecer que está no forma­lismo lógico um dos fatores desse qui-pro-quo desvendado pela análise dialética.

11. O “Ser-mediato” e cs determinações reflexivasO “imediato existente”, na linguagem hegeliana, passa,

inversamente, à categoria de ser-mediato, de ser-refletido, de­duzindo-se a existência de seu “fundamento”, que surge do positado (Gesetze). O fundamento é ajustado segundo o fe­nômeno, que fornece as determinações. Nada mais curial, en­tão, de que flua tautológicamente o fenômeno daquele funda­mento 33,. sem que nada resulte de novo. O deduzido (funda­do) é o fundamento sob outra forma, por simples jogo das determinações; o ulterius é o prius manipulado noutra com­binação de determinações refletidas. Avisa-nos o filósofo de que a confusão cresce quando se misturam essas determina­ções refletidas, com as determinações imediatas do próprio fenômeno ( . . . reflektierte und bloss hypothetische Besíimmun- gen mit urimittelbaren Bestimmungen des Phenomens selbst vermischt werden). Destarte parecem derivar da experiência imediata, captadas na atividade perceptiva (electrons, protons, ondas magnéticas, etc) como se fossem realidades diretamente

(34) Hegel, Wiss. d . Logik, II, p. 79: "Die Wissenschaften, vor- nehmlich die physikalischen, sind mit den Tautologien, dieser Art angefüllt, welche gleichsam ein Vorrecht der Wissenschaften aus- machen". E adiante: In "gewohnnlichen Leben gelten diese Aetio logien, auf welche die Wissen schaften das Privilegium naben, für das, was sie sind, für ein tautologischen, leeren Gerede".

(35) Hegel traduz imaginosamente essa lisa fluência: ". . . so fliesst dieses freilich ganz glatt und mit günstigen Winde aus sei- nem Grund aus." — Wiss. d. Logik, II, p. 80.

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accessíveis aos sentidos3C. Deve-se» portanto, distinguir entre as “determinações de existência”, compreendidas no conheci­mento perceptivo, e as “determinações reflexivas”, compreen­didas no conhecimento conceituai, sem, contudo, cindir dois planos cognoscitivos, mas dentro da mobilidade dialética de sua interpenetração recíproca. Mesmo porque as, determina­ções reflexivas do fundamento e as de existência do fundado levariam ao impasse formalista do mecanicismo simplista e vulgar, só aparentemente dialético. Conteúdo absorve em si o fundamento no fundado, o fundado no fundamento, na iden­tidade de um só todo, embora tenham sentido diferente no seio da relação fundamental (Grundbeziehung). Essa diferen­ça mostra-nos que tal relação fundamental é real, não sim­plesmente formal. Por conseqüência, não se trata de uma tau­tología: “o retorno ao fundamento e sua emergência para o positado não é tautología (der Rueckgang in den Grund das Hervorgehen aus ihm zum Gesetzten ist nicht mehr die Tau- tologie); o fundamento realizou-se” 37.

De onde se conclui: para que o conhecimento progrida e não se encerre no círculo de piru das mesmas determina­ções, devem se perquirir novas determinações de conteúdo que não sejam as mesmas do fundamento. Foi isso que a es­peculação kantiana jamais conseguiu descobrir.

Recorramos a exemplos, seguindo a pista hegeliana. A trajetória de um projétil tem várias determinações: a curva parabólica descrita, o alcance, o projétil em si, seu peso, a força de propulsão, a força de gravidade, etc, Tais determi­nações são distintas entre si. O projétil é um grave; isso, po­rém, nada tem a ver com o fato de ser fabricado deste ou daquele metal, propulsionado a pólvora ou outro explosivo, situação do alvo, etc. O “fundamento” da explicação da tra­jetória será a gravidade, que atua sobre o projétil. Todas as demais determinações citadas e outras que se colham, são determinações extrínsecas, que poderão vir a modificar aci­dentalmente a trajetória. Destarte, a diversidade das deter-

(36) Hegel, Wiss. d. Logik, II, p. 81.(37) Hegel, Wiss. d. Logik, II, p. 83.

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minações, com fundamento na gravidade, pode permitir a es­colha de qualquer determinação essencial como fundamento.

Vamos a outro exemplo: a moeda. Determinações: meio de pagamento, meio de conservação do valor, meio de men- suração do valor, instrumento de troca, poder aquisitivo, or­ganização crediticia, etc. Que fazem os economistas? Buscam uma determinação essencial para dali retirar a explicação de sua “natureza” e constituírem nela seu “fundamento”. E toda o cipoal onde se erredam resulta desse equívoco lógico, que consiste na confusão das determinações.

“O que Sócrates e Platão chamam de sofisticaria — dis­corre Hegel — não é mais do que o raciocinar baseando-se sobre o fundamento”. E como as “coisas” podem oferecer de­terminações retiradas de aspectos, relações, conteúdos, para servirem de “fundamento”, obtêm-se explicações de toda sor­te. Só a “coisa” integra todas as determinações — e o seu “fundamento” é o conceito. Isso mostra a originalidade e a diferença do conceito hegeliano de “conceito”.

Portanto, repassando o que foi dito, podemos concluir que o princípio do fundamento se estuda nesses “momentos” :

a ) como fundamento e fundado (entre conteúdo e con­seqüência, entre explicandum e explicatum: o movSmienío dos planetas à volta do sol é dado como força atrativa que os faz “moverem-se à volta do sol”; o poder aquisitivo da moe­da é dado como fenômeno da quantidade dos símbolos emi­tidos);

b) como fundamento real, o “conteúdo” é diferente da “conseqüência”, as determinações do “fundamento real” são distintas das determinações do “fundado” ou do que é “posi- tado” (Gesetze)\ devendo ser momento inessencial no conse­quente, qualquer determinação pode ser tomada como funda­mento, mas sendo inessencial considerada essencial é inade­quado;

c ) enfim, como fundamento completo, que integra o es­sencial e o inessencial na unidade contraditória. Então o fun­damento, enquanto essencial é formal (tautológico) e só é real quando inessencial e externo.

Nesta altura da interpretação hegeliana se começa a dis­cernir a fisionomia do problema da causalidade dialética: o

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“fundamento completo” ( vollstaendige Grund). Essa dialéti­ca do fundamento é, na verdade, difícil de elucidar, suscitan­do exegeses cheias de incertezas. O pensamento de Hegel ta­teou e vacilou. Na Enciclopedia, em vez das categorias de iden­tidade, diversidade, diferença, que se aguçam na oposição e contradição, — a tese é a diversidade onde se anunciam o positivo e o negativo, onde se revela a contradição; é um pre­lúdio sintético. Hegel reelabora essas categorias na Wissens- chaft der Logik\ a última revisão que nos deu foi em 1830, ano anterior à sua morte. Teve de forjar a linguagem para expressar seu pensamento in fieri, buscando a forma adequa­da, no esforço genésico de comunicar o que ainda não se ha­via dito com plena consciência do conteúdo.

A luta para conceituar o Grund na sua plenitude é o ponto de partida para análise do “princípio fundamental do Conhe­cimento” — o da Causalidade dialética, de que as outras for­mas de causalidade são aproximações empobrecidas e esque­máticas ou meros enunciados tautológicos. Por isso, conside­rando tal princípio como a própria estrutura do que se con­vencionou chamar “Razão”, — sua longa e laboriosa autogê- nese histórica nos leva, neste ensaio, a contrapor à “Razão pura”, fantasma da especulação kantiana, a “Razão impura”, legado vital do hegelianismo38. Os detritos historicamente sobreviventes, depurados através da metafísica dualista, eram destroços da “Razão” desligada do processo que a gerou, na evolução do Espírito humano.

A causalidade dialética é a Razão efetiva no seio da praxis histórica. Razão impura, humana na sua plenitude vi­tal e vitalizante. Hegel reintegrou-a, e, sob aparências teológi­cas com que se eximiu da gritaria dos beócios, deskantiani- zou-a, desaristotelizou-a, na maior operação filosófica reali­zada por uma só cabeça na história do Pensamento.

(38) Djacir Menezes, Teses quase hegelianas, Editorial Grijabo, São Paulo, 1972; “Na história da Filosofia, foi a primeira vez que se trouxe, à plena luz, a problemática da lógica em categorias on- tológicas: a dialética é o processo real de uma Teoria no Conheci­mento de uma Waltanschaaungslehre.” (p. 62).

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VIII

SHAKESPEARE NAS LIÇÕES DE HEGEL

1. A “colisão”. 2. A mesquinhês da tragédia moderna. 3. A “interioridade” shakespearia- na.

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I — A “ colisão”

Dentre algumas intuições geniais de Hegel acerca do de­senvolvimento histórico da Arte, destacarei, nas suas Vorle- sungen ueber die Aesthetik, as reflexões sobre a situação, que é a ambiência ou premissa para exteriorização (Sichãussern) e efetivação do que existe ainda latente e inevoluído (unent- wickelt), isto é, em estado potencial. No seio dessa fase ge­ral prévia, crescem, as oposições, configurando a “colisão”, que é o núcleo da obra de arte. Por isso, esta representa a “exteriorização consciente de forças espirituais em conflito, revelando-se nas maneiras de pensar e sentir, englobados no comportamento humano.”

A ação é drama na voz grega. E é na “situação” onde residem os elementos que, diferenciando-se, definem a “coli­são”, para continuar usando o léxico hegeliano. “A colisão não é ainda ação, mas oferece o embrião (Anfânge) e o co­meço da ação”, quer dizer, contém sua possibilidade. Resume Hegel esplendidamente: “dada uma colisão, que exige solu­ção mediante luta de contrários, é a situação grávida do con­flito que constitui o objeto por excelência da arte dramática. Só esta arte pode engenhar a representação do Belo em sua evolução mais profunda e plena. A escultura, por exemplo, não tem meios de representar uma ação onde grandes forças espirituais surjam em luta e conciliação e a própria pintura, embora dispondo de mais amplitude, somente nos oferece aos olhos um momento da ação”.

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O que se concentra como ação dramática são os inte­resses humanoss, que se tornaram conscientes: a “colisão” é sua essência. Hegel discemiu-a vigorosamente em Shakes­peare. Só à luz de tal argumentação se compreende que tenha escrito que é das cumiadas de Esquilo, Sófocles e Euripedes que se avista o perfil de Shakespeare. Entre ele e os gregos, através dos tempos intercalados, empinam-se numerosos picos duma orografía que não tocam aqueles níveis supremos. Que marca, segundo Hegel, a diferença espantosa entre Shakespea­re e Corneille, por exemplo? A natureza da “colisão” : os con­flitos se armam, na obra daquela tetrarquia de gênios, quase fora dos quadros sociais. Através do simbolismo mítico, são os antagonismos de caracteres humanos que deflagram os acon­tecimentos, quase estranhos às motivações sociais e políticas: é o incesto, o parricídio, o matricidio, o deicídio, o ultrage religioso, são as situações conflituais que Freud viu como projeções da psique profunda, desabotoar de pulsões primitivas da vida anímica dotadas de alta carga emocional, anterior às pautas dos normativismos jurídicos e morais da sociedade onde se vieram organizando os interesses miúdos dos grupos e das classes. Aquelas teses não são de uma tribo, de uma cas­ta, de uma classe, de um povo: transcendem, aberram, des- bordam por cima das legislações e dos regramentos variáveis. São de todos os tempos.

2 . A mesquinhês da tragédia modernaHegel, depois de examinar os tipos shakespereanos, ob­

serva que “o contraste com os pequeninos caracteres moder­nos, como os desenhados por Kotzebue, por exemplo, pare­cendo tão nobres, tão grandes, tão perfeitos, não passam de maltrapilhos (Lumpen) .” Pigmeus gagos, gaguejando a ga­gueira de criaturas nati-mortas, em conflitos mesquinhos. Que conflitos? dissidências entre convenções e conveniências de castas e grupos, que vão se desfazendo na torrente do tempo. Engasgam-se com coisas minúsculas, agigantadas na reflexão interna de consciências acalcanhadas no mais estreito subjeti­vismo. “O caráter heróico — ensina Hegel — desconhece as172

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inconsequências do arrependimento: o que fez, está feito. Ores- te não sente o menor remorso pelo assassínio da mãe; é exato que as furias o perseguem, mas as Eumenides representam po­tências gerais e não apenas as áspides internas de sua cons­ciência subjetiva.” 1. As categorías moráis criadas pela religião ulterior são estranhas à consciência helénica ao tempo de Só­focles. E Sófocles — pondera Hegel — não cometeria o ana­cronismo contra o Espírito, infinitamente pior que os anacro­nismos exteriores de pormenores históricos que distraem a mediocridade dos críticos.

Decerto que a maioria dos homens está cativa no interior de sua época histórica. Raros conseguem romper o casulo; mesmo absorvendo grande soma de conhecimentos, não assi­milam cultura, que é formação orgânica do espírito. Esta “fal­ta de cultura de almas cerradas em si mesmas” (diese Bil- dungslosigkeit lãsst verschlossene Gemüte) produz, no dizer do filósofo, a monotonia de indivíduos engarrafados, privados de comunicação profunda com os semelhantes (Eintonigkeit in sich wordos zuàamméngefasster Menschen) 2, volvidos para as dissenções chinfrins e pluriformes do cotidiano, mas intei­ramente insensíveis às perspectivas espirituais do drama de seu tempo integrado no Tempo universal.

Os caracteres shakespereanos, como os esquilianos, não sofrem o enquadramento numa hora particular da civilização: estão fora dos regimes, feudal, capitalista ou socialista, mau grado o que possa resmungar a ortodoxia marxista. Fora do tempo? Não: através dos regimes há a permanente substância das relações humanas que escapam às conotações das con­tingências históricas.

“Uma das determinações fundamentais da arte dramática— discorre Hegel — como já vimos, consiste na espirituali­dade, na alma refletida em si própria como num todo” e é nesse sentido que indica: “Os fins particulares das persona-

(1) Hegel, Aesthetik, Aufbau-Verlag, Berlin, 1955 (edição Lukàcs) p. 228.

(2) Idem, ibidem, p. 550.

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gens de Shakespeare tem sua fonte e a raiz de sua força em sua própria individualidade”. Os caracteres vulgares, no seu drama, — Falstaff, Trinculo, Stefano, etc. — “realçam pela inteligência vulgar e tem grandeza na vulgaridade. . . Ao con­trário, mesmo os maiores e melhores personagens dos trági­cos franceses, vistos de perto, não passam de bestas malignas ( bõse Bestieri) que buscam sofísticamente justificar seu com­portamento. Em Shakespeare, não há justificativas nem con­denações, — apenas considerações sobre o destino: a neces­sidade dispõe dos indivíduos sem queixumes nem pesares, recai sobre eles, indiferentemente, como algo exterior” 3.

As condições de nascimento e de privilégio, nas socieda­des em mudança, são grande pábulo do trabalho artístico. Mas Hegel considera alimento de segunda ordem: “as diferenças existentes entre classes sociais, entre governantes e governa­dos, etc., são, sobretudo, diferenças sociais e racionais, pois têm seu fundamento na organização do conjunto da vida pú­blica”, mas, não sendo diferenças naturais, a elas se atribui uma grande força determinante (der hochsten bestimmenden Macht”) 4. A ação, que pulsa nos trágicos gregos, é síntese do “movimento total composto de ação, reação e solução dum conflito”. Estes momentos, somente a poesia dramática os capta e exprime no seu devenir vivo. As outras artes apa­nham o “flash” de cada momento isolado. A totalidade ati­va revela o pathos (palavra de tradução difícil, adverte He­gel), pois não é apenas “paixão”, mas “legítima potência da alma, conteúdo essencial de racionalidade e vontade livre”.

3 . A “ interioridade” shakespereanaShakespeare apresenta a indecisão de Hamlet, incapa­

cidade máxima de agir em circunstâncias que exigem máxi­ma ação, na sua contradição viva. Comenta: “Pergunta-se então: como indivíduos tão robustamente dotados se compor­tam de maneira tão estapafúrdia ( Tõlpelhaftigkeit) ? É que o

(3) Idem, ibidem, p. 551.(4) Idem, ibidem, p. 228.

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entendimento ( Verstand) destaca um aspecto abstrato do tipo humano, dali decalca (stempeln) uma regra única para a per­sonalidade total. O que contradiz tal unilateralidade é, para o entendimento, uma inconsequência. Para a racionalidade do vivo e do total, porém, tais inconsequências são conseqüências e exatidão. Porque o homem é isso: não é apenas portador da contradição do múltiplo, mas suporta-a e conserva-se des­tarte igual a si mesmo”. O entendimento, diferindo da razão, não pode integrar as inconsequências no todo consequente da contradição; então falseia-a, tornando poliscópica a unilatera­lidade.

Note-se que a “interioridade” shakespeareana não se con­funde com a subjetividade moderna, aparência flébil de idea- lidade abstrata, que “não tem coragem de enfrentar o mundo exterior”. Assim, as potências exteriores que pretendem go­vernar a conduta, sob forma de bruxas, ditam a sorte de Macbeth. Analisa Hegel: “o que elas predizem entretanto são seus próprios desejos secretos da personagem, que por tal maneira lhe são revelados” Os tormentos de Hamlet são objetivados pelo mesmo teor. Seus sentimentos obscuros envolvem dúvidas monstruosas, é isso que lhe desvenda o espírito paterno. A vingança, todavia, é paralisada na reticên­cia da abulia congênita.

The Spirit, íhat I have seen,May be a devil. . .

A indecisão incide sobre o modo porque deve fazer, não sobre o que deve jazer, acentua Hegel: “Goethe dissera que Shakespeare quisera pintar uma grande ação imposta a uma alma que não a comporta”. Goethe dizia poeticamente: seria como plantar um carvalho num vaso precioso destinado a re­ceber rosas: crescendo, as raízes racharão o vaso ®. O tema sugere ensaio aos competentes. Nas opulentas páginas de Aesthetik, a colheita de notas sobre o dramaturgo inglês é grande. Publicado em 1835, quatro anos após a morte de

(5) Idem, ibidem, p. 247.(6) Idem, ibidem, p. 247.

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Hegel, sob cuidado de H. G. Hotho, o livro foi melhorado na edição de 1842, que consultei comparando-a a de 1955, com introdução de G. Lukács. A obra resultou de organização e coordenação de cadernos utilizados e desenvolvidos na expo­sição oral da cátedra, acrescidos das notas tomadas pelos dis­cípulos que ouviam o filósofo. A cada passo, surgem exem­plos tirados de Macbeth, de Hamlet, de Otelo, de Julio Cesar, de Ricardo II e III, de Romeu e Julieta, da Tempestade, de Antonio e Cleopatra, de Timón de Aténav, de parelha com os grandes trágicos gregos. Desses píncaros, povoados de evo­cações quase sagradas, os horizontes se desmesuram quando visto através de Hegel. . . Lembrei-me que Flaubert dizia que, se encontrasse Shakespeare, arrebentaria de pura admiração.

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IX

VON MARTIUS

1. O balanço científico. 2. A historia social do povo. 3. Como escrever a Historia do Brasil. 4. As conexões com a historia mer­cantil européia. 5. Intuições de um precursor.

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1. O balanço científicoÉ sem dúvida um dos cimos iluminados do nosso calen­

dário de cultura: Karl Friedrich Philipp von Martius. Seria veleidade querer dar, em brçves páginas, a notícia fiel e inte­gral da profundidade de seu gênio e da latitude de sua obra, que se projeta nos mais variados domínios científicos: na botânica, na geologia, na antropologia, na etnografía, na lin­güistica, na sociologia, na história. Ele, na plenitude da palavra, não foi um especialista: foi um sábio. Toda vez que sua inteligência fixou um problema da nacionalidade nascen­te, deixou o sinete pioneiro, que orientaria daí por diante os estudiosos.

Durante mais de vinte anos, aventurando-se pelos sertões oede mal se rasgavam as audaciosas veredas da penetração colonial, Spix e Martius, fraternalmente ligados nas vicissitu- des de uma obra de pesquisa que tinha um campo gigantesco de interrogações virgens, realizaram itinerário que espanta: percorrem as províncias do Rio e S. Paulo, o vale do S. Fran­cisco, as regiões mineiras ainda selváticas do Rio Doce e Jequitinhonha; varam os sertões baianos e nordestinos; che­gam ao Maranhão através de Pernambuco e Piauí; e alcan­çam a foz do Amazonas. Mais ainda: fazem a viagem até as fronteiras remotas, subindo o Japurá. E as pupilas deslum­bradas e atentas dos dois alemães contemplam ainda a ca­choeira de Araraquara.. .

Dessas viagens no interior desconhecido do país resul­tou o incomparável balanço científico que o mundo podia

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esperar: e foi para todos nós o mais vibrante apelo aos estu­dos científicos no madrugar do processo civilizador. Quando a corte de Viena decidiu indicar aquela comissão de natura­listas, onde se contavam os nomes do entomologista Johann Christian Mikau, do botânico Emmanuel Pohl, do zoólogo Von Matterer, dos pintores Ender e Buchberger, — o grão-duque de Toscana acrescentou-lhes os dois nomes excepcionais. O tio-avô de Martius, Henrique von Martius, fora autor da Flora de Moscou; seu pai fundara a Sociedade Botânica de Ratisbona. O jovem seria o autor da Flora Brasiliensis, onde se classificariam 850 famílias, com mais de 8 .00 0 espécies, em mais de mil estampas. Porém estas ricas áreas das ciências naturais não nos são familiares. Será no plano histórico e social de sua obra imensa que nos deteremos particularmente: as de Beitrãge zur Ethnogiiaphie und Sprachenkunde Amerikas zumáls Brasiliens e o Glossaria Linguarum Btasiliensium repre­sentam ainda, pelo vigor da análise e do método, uma das melhores fontes de estudos nacionais, genialmente antecipa­dos pelo sábio.

Reconheça-se que distava pouco tempo do pesado obs­curantismo que a metrópole instalara e que um decênio antes ainda durava. O medo de perder os mananciais da riaueza colonial, de onde saia o ouro com que o carolismo reinol pagou os maiores badalos de sinos à indústria inglesa, no dizer de Ramalho, inspirara aquela ignara política bragantina de proibir tipografias, que eram o veículo diabólico das idéias que o liberalismo espalhava pelo mundo. Os anos em que o barão de Humboldt perlustrata as regiões equinociais, ao abrir do século XIX tinham ficado para trás. Aqueles idos em que as monarquias ibéricas, apavoradas com os perigos da ma- conaria e do republicanismo, assopradores de sedições, arro- lhavam os respiráculos. O nosso tão decantado rei D. João VI, que abriria depois os portos a todas às nações (isto é, a Inglaterra) e fundaria imprensa, biblioteca, faculdades, — dez anos antes mandava prender um “tal sujeito chamado Hum­boldt” que lhe cheirava a carbónarismo francês. E o ouvidor do Ceará, muito árdego no cumprimento das ordens, prome­teu a recompensa de 200 mil réis pela captura do natura­lista na capitania e 100 mil réis no caso de o filarem pelas180

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imediações. Humboldt escapuliu mesmo lá do Rio Negro pelo Cassiquiare e ganhou o Oceano, que mais do que nunca lem­braria a liberdade. É o que ainda recordo de algumas leituras antigas.

2 . A História Social do PovoTempora mutantur: a presença da corte no novo Impé­

rio de um rei foragido, o casamento de um príncipe bragan- tino com urna arquiduquesa austríaca, uma comissão de sábios cercados de aprovações reais, anunciavam a mudança. Des­tarte, coube a Martius iniciativas pioneiras, que admiravel­mente realizou. Não pôde, é verdade, contar com os nota­bilissimos trabalhos de Antônio Rodrigues Ferreira, misera­velmente frustrados na sua divulgação, — uma espécie de presságio mau, que acompanharia sempre entre nós o esforço generoso dos que se dedicam às atividades desinteressadas. O mecenato do imperador D. Pedro II foi um parêntese iso­lado e um tanto intercadente no seio de seu benigno patriar- calismo coroado. Não procedia de ação sistemática, mas de uma vontade generosamente movida por nobres sentimentos, peiada nos limites convencionais do meio político. Entre nós, o poder sempre seria hesitante no seu apoio e nas suas ver­bas ao pioneirismo científico e filosófico.

Martius rendeu sua homenagem ao Imperador, que de­pois, em momentos difíceis, acudiria, solícito, em socorro das publicações ameaçadas de interrupção e fracasso.

Depois de refletir que Martius aqui aportara com o sin­gelo título de assistente do Museu Botânico de Munich e re­gressaria para alcançar universal renome, escreveu Roquete Pinto: “Finalmente, nestes artigos publicados na Revista do Instituto e nos manuscritos que aí estão, vêde como requintou a preocupação amiga do sábio, que não era um taxonomista vulgar, só interessado em dar nomes latinos a plantas resse­cadas, mas verdadeiro cientista ocidental, mesclando a todas as suas cogitações um cuidado humano pelo futuro núcleo da cultura que encontrou aqui em 1817”. Entre os manuscritos que- o Instituto recolheu, Roquete menciona comovido pela

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singeleza, a lista de livros que Martius compilou “para servir de guia aos que pretendessem escrever a nossa história”, é tocante, para nós brasileiros, o amor que esse homem inex- cedível dedicou ao Brasil. Numa expansão afetiva, manifes­tada em carta a Paulo Barbosa da Silva, “seu mais velho e fiel amigo”, chamou a esta térra de “sua segunda pátria”. Aqui pisara a 15 de julho de 1817, tinha vinte e três anos de ida- de. E no fim da vida aos 74 anos, recordava-a sempre com carinho enternecido e compreensivo. Penso, todavia, não exa­gerar dizendo que foi esse amor ao povo e às coisas nacionais que lhe alargou e aprofundou a compreensão do Brasil. Afiou- lhe a intuição de como sistematizar a nossa história, resumi­da nas páginas publicadas no sexto número da “Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, em 1844. João Ribeiro utilizou a lição magistral como incomparável lucidez— e Varrihagen, nela inspirado, revolveu os arquivos da Eu­ropa paria a documentação enorme que acumulou. Não era mais a história como relato ou cronologia de episódios políti­cos e façanhas militares: Martius abria caminho para a his­tória social do povo, que se integrava no ecúmeno variado e desigual, onde se ajustavam três raças distantes. Ele observou, por assim dizer, experimentalmente.

3. Como escrever a História do BrasilO breve ensaio, que intitulou Como se deve escrever a

História do Brasil, pelo seu alcance e densidade, exige mais atenção no seu exame.

“Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país que tanto promete — discorre Martius — jamais deverá perder de vista quais os elementos que aí concorreram para o desenvolvimento do homem”. Desta premissa, onde se pressente a intuição da moderna metodologia, deriva uma vi­são mais profunda: a de que cada etnia iria reagir “segundo sua índole ináta, segundo as circunstâncias, sob as quais ela vive e se deseiiVolve, um movimento histórico característico e particular”. Ponho em grifo para assinalar como Martius an­tecipava a interpretação sociológica — e, por esse tempo,182

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Comte ainda não cortara o cordão umbilical com Saint-Simon e se preparava para escrever seus primeiros opúsculos. Como se faria a evolução de raças tão díspares? Martius, tentando elucidar, entra em terreno totalmente virgem: a sua história “deverá se desenvolver segundo uma lei particular das forças diagonais”. Curiosa forma de exprimir o que tem na mente. Martius pretendia enunciar que o fato histórico global, que no caso, era o encontro das raças, tinha símile no paralelo­grama de forças da mecânica: dele resultaria um vetor. Daí a menção àquela lei de forças diagonais.

Logo a seguir, prevê o rumor daqueles brancos ciosos de sua hegemonia no processo do desenvolvimento. Isso, en­tretanto, a seu ver, será também um “novo estímulo para o historiador humano e profundo”. Ele não se dirige aos que escrevem a história apologética do poder, ao sabor dos gru­pos de dominação, — mas aos investigadores das forças reais que configuram a sociedade em formação: “em todos os paí­ses se formam as classes superiores dos elementos das inferio­res e por meio delas se vivificam e fortalecem, assim se pre­para atualmente, na última classe da população brasileira essa mescla de raças que daí a séculos influirá poderosamente so­bre as classes elevadas e lhes comunicará aquela atividade histórica para a qual o Império do Brasil é chamado”.

O movimento histórico não é para Martius, senão o pro­cesso de participação das classes que estão à base da nacio­nalidade — e o “autor filosófico, penetrado das doutrinas da verdadeira humanidade e de um cristianismo esclarecido nada achará nessa opinião que possa ofender a susceptibilidade dos brasileiros”.

Destarte, em vez de deduzir, como fariam depois Le Bon, Lapouge, Lilienfeld, toda a equipe de racistas politizantes (até o grande José Ingenieros, tão claro nos horizontes de­vassados, alegou pureza étnica para vaticinar a hegemonia ar­gentina!) — Martius afirma que essa “reciprocidade de ra­ças” afiançaria na “história da formação da população brasi- leora em geral, o quadro de umá vida orgânica”. Apelando para a necessidade de proteger essas raças, deixou cair esta sentença impressionante: “um historiador que mostre descon­fiar da perfectibilidade de uma parte do gênero humano au­

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toriza o leitor a desconfiar que ele não sabe colocar-se acima das vistas parciais ou odiosas”. Em suma: que ele é um sec­tário, cego pelos preconceitos de seu tempo.

4 . A s conexões com as correntes mercantis européiasPara o estudo preliminar de nossa história, Martius assi­

nalou: “como documento mais geral e significativo deve ser considerado a língua dos: índios”. Nesse sentido, deu passo gigantesco: aí está o seu Glossaria Linguarum Brasiliensis. Julga Martius que no estudo da língua está excelente rota para a compreensão das teogonias e mitologias primitivas. De fato, linguagem é pensamento, como ensinou Hegel, e nela se refletem as formas arcaicas da praxis, o processo protohis- tórico entre o homem e a natureza, o esboçar das primeiras técnicas do direito e da moral, a institucionalização dos esti­los convivenciais até a diferenciação do homem como perso­nalidade. Os contactos raciais são fenômenos aculturativos de gjrande complexidade — e ainda correriam muitos anos de estudo para que o tema fosse bem definido. Em Martius, po­rém, já desabrocha a regra metódica, que se formularia mui­to depois nó domínio das ciências da cultura. Nesse passo, a respeito dos contingentes que buscavam melhor vida na Amé­rica, quase sempre agricultores e artistas e raramente nobres, depara-se a seguinte consideração:

“Mas assim não aconteceu nos primeiros tempos da co­lonização do Brasil. Elas eram uma combinação dessas em­presas afeitadas e grandiosas, dirigidas para a India e execu­tadas ao mesmo tempo por príncipes nobres e povo; dessas empresas que tornaram a nação portuguesa tão famosa quanto rica”. Martius tem a visão econômica da expansão das cor­rentes comerciais do ocidente europeu. Na Inglaterra os emi­grantes fugiam das ameaças religiosas à liberdade. No Brasil, “era uma conseqüência das grandes descobertas e empresas comerciais dos portugueses sobre a costa ocidental da África, do Cabo de Moçambique e índia”. Um século depois, o his­toriador João Lúcio de Azevedo escreveria páginas clássicas no assunto, ampliando o que o alemão condensara em lanços184

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como este: “o período da descoberta e colonização primitiva do Brasil não pode ser compreendido senão em seu nexo com as façanhas marítimas, comerciais e guerreiras dos portugueses, que de modo algum pode ser considerado como fato isolado na história desse povo ativo e que sua importância e relações com o resto da Europa está na mesma linha com as empresas dos portugueses”.

Esse nexo é o ponto vital de toda uma nova perspectiva. As descobertas entram no processo geral do movimento eco­nômico europeu. Di-lo Martius com vigor: “o historiógrafo do Brasil ver-se-á arrastado por tais observações, a jamais perder de vista, na história da colonização do Brasil e de seu desenvolvimento civil e legislativo, os movimentos do comér­cio universal de então e a incorporá-los mais ou menos in­tensamente à sua história”.

Este movimento mercantil determinava a concentração dos capitais privados, comandados pelos capitais régios (o rei era um sócio eminente nas empresas aventurosas do oceano), que se conluiavam à busca das especiarias, das pedras e metais preciosos. Tudo isso — anota Martius — “tem as mais estrei­tas relações com a história do Brasil”, acrescentando: “e fi­nalmente, a das plantas tropicais úteis, conhecidas na Europa depois da descoberta do novo mundo, jamais poderá ser sepa­rado da história colonial do Brasil”.

Tais teses, nitidamente enunciadas por Martius, seriam repetidas com entono de grande novidade por alguns entusias­tas de um marxismo impúbere, assombrados da própria inte­ligência na percepção da trivialidade.

5. IntuiçÕes de um precursorTambém não escapou a Martius o lado político e social

mais vivo do desenvolvimento colonial. Marcou-o agudamen­te: as instituições municipais transplantadas do meio lusitano tendiam, no Brasil, para o robustecimento do sentido da liber­dade, em virtude da mais fraca influência do velho direito quiritário, que os reis espanhóis haviam incentivado no perío­do de dominação filipina, na península e colônias. Para com­

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pletar o quadro, Martius aconselhava a coleta de dados sobre as ordens religiosas (franciscanos, jesuítas, capuchinhos, agos- tinianos), que exerciam missões no país e cujas informações dormiam nos arquivos europeus, excelente material para o estudo etnográfico e cultural dos habitantes.

“A oposição dos colonos para com estas em geral filan­trópicas ordens muitas vezes nascia do conflito dos interesses sociais, nos quais aqueles se consideravam ligados por estas”. De modo que a proibição de fundar convento, a vigilanda das missões religiosas originavam-se dos interesses econômicos da metrópole, assustada com as organizações privadas embo­ra fossem invocado outros motivos menos terrestres.

Martius reclamou o exame dos estilos de vida colonial, dos sistemas de lavouras, da vida doméstica, das escolas, dos métodos de instrução, do recrutamento militar, do serviço das armas, do serviço administrativo, — todas as atividades fundamentais da “sociedade civil”, como se dizia outrora, destacando-a da “sociedade política”. Sugeria mais: que o quadro levantado fosse posto em cotejo com as feitorias lusi­tanas de África, a fim de analisar “a influência exercida pelo tráfego de negros e suas diferentes fases sobre o caráter por­tuguês no próprio Portugal”.

A diversidade do ecúmeno não permitiria um critério de enfoque uniforme. Daí Martius sugerir o estudo das variações regionais da nossa história explicada mediante a delimitação dos “complexos” que integram as diferentes áreas do país. Tais histórias não são provinciais mas expressões regionais ditadas pelas condições ecológicas, diríamos hoje, e não pe­las conotações das fronteiras politicamente traçadas. “Portan­to — esclarece Martius — deviam ser tratadas conjuntamente aquelas porções do país que, por analogia física, pertencem umas as outras. Assim, por exemplo, converge a Mstória de São Paulo, Minas e Mato Grosso; a do Maranhão se liga a do Pará, e, à roda dos acontecimentos de Pernambuco, formam um grupo natural os do Ceará, Rio Grande do Norte e Pa­raíba. Enfim, a história de Sergipe, Alagoas e Porto-Seguro não serão senão a da Bahia”. Culturalmente, a autonomiza- ção seria rápida nalgumas regiões. Tal trabalho exigiria pre­liminarmente o estudo demográfico e ecológico de cada região186

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cultural onde surgem características típicas: o que Martius disse em 1845, somente há alguns anos começou a ser ado­tado pelos pesquisadores como lição recente da antropologia cultural e da sociologia. Quase todos ignoram o remo-to pre­cursor. Que dizer da novel orientação? Suspeitou-se de algum perigo ideológico, a julgar pelas palavras de Martius, quando considera a história como fonte de amor à pátria e dcs sen­timentos cívicos. Há muitas “idéias políticas imaturas” circu­lando no ar, “republicanos de todas as cores, ideólogos de todas as qualidades”. Não está o leitor atual a pensar nos so­cialistas, nos comunistas, nos fascistas? Mas deixemos o ana­cronismo. Que aconselharia um homem prudente, receioso das “idéias perigosas”? Propunha logo meios que vedassem a pro­pagação delas. Alvitraria os métodos de censura e policiamen­to para impedir a contaminação dos espíritos. Martius ainda aqui revela a sua alta e nobre estatura moral. Sua opinião é a de franquear a todos estudiosos os livros condensados para que estudem e compreendam a sua inadequação, inconveniên­cia e utopismo! — “para convencê-los, por uma maneira des­tra, da inexequibilidade de seus projetos utópicos, da incon­veniência das discussões licenciosas de negócios públicos, por uma imprensa desenfreada e da necessidade de uma Monar­quia onde há um tão grande número de escravos”. Assim a tática para desmascarar a esquizofrenia ideológica não é em­bargar-lhe o passo com as baionetas da ordem, — mas abrir- lhe os órgãos para a discussão livre.

Verifica-se, através dos exemplos citados, que Roquete Pinto tinha razão quando exaltava a independência de espíri­to de Martius. Foi o primeiro a assinalar diretrizes de liber­dade e a pedir o reconhecimento do sacrifício obscuro e hu­milde das raças submetidas. Não que enxergasse nelas quali­dades excepcionais ou virtudes indómitas, de que sempre fez praça o nativismo empenachado de certa literatice. Ao con­trário, viu raças tristes, já se desagregando nas primeiras fa­ses do processo deculturativo, que prosseguiria inapelavel- mente futuro a dentro. “Falando aos descendentes de portu­gueses e escravocratas do meado do século XIX, ousou dizer aos senhores que a História pátria havia de levar em conta o esforço dos cativos como elemento civilizador do país”.

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Ao regressar da Europa, recheiado de documentação so­bre tão variados domínios científicos, publicou as obras que lhe asseguraram o respeito do mundo. Era, pois, inevitável que Goethe, sempre atento ao movimento das idéias, o convi­dasse à recepção . em Weimar. Eckermann conta a palestra memorável. Mas, naquele encontro, não é Martius que repre­senta o largo horizonte do pensamento, é Goethe. Ante o poeta, não é o pesquisador que se mostra com a intuição que nasoe da força filosófica. As escrituras limitam-lhe o espírito na éstreiteza do creacionismo bíblico, enquanto Goethe já vi- siona o evolucionismo. Assistia-se aos primeiros lances do duelo entre o barão de Cuvier, que escorava o dógma da imu­tabilidade, e Saint-Hilaire, que defenderia o princípio biológi­co da evolução humana.

Consoante se pode concluir desses comentários bordados um tanto désalinhavadamente à margem do pensamento de Martius, há boas sugestões de metodologia histórica e social, que não foram exploradas no seu largo alcance. E nelas há, in nuce, intuição clara de princípios gerais de investigação vi­gentes nas ciências sociais. Clemens Brandenburger chegou a ver na obra de Martius — “a descoberta científica do país”. E quando, em 1847, o Instituto Histórico e Geográfico Bra­sileiro, a mais veneranda e conspicua instituição de que nos podemos orgulhar, conferiu-lhe a medalha de ouro laureando a dissertação magistral da nossa história, falou, naquele ano remoto, em nome da posteridade.

Os estudiosos do Brasil de hoje ratificam aquele gesto com a emoção que dá uma perspectiva de cento e vinte um anos; e agora no seio deste órgão evocando a figura do sábio Erlangen, no centenário de sua morte, aqui estamos para ates­tar que nunca o clarão de glória tão pura iluminou tanto o coração de uma nacionalidade.

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UM LIVRO SOBRE A LEI FUNDAMENTAL DEBONN

1. A propósito da obra do prof. O. Bitar.2. O direito nacional-socialista.3 . Os perigos da teia ideológica.

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Seria injustificável que a obra do prof. Orlando Bitar, a ser reeditada por decisão do Conselho Federal de Cultura, ficasse sufocada nos limites das edições provincianas, bene­ficiando pequeno círculo de estudiosos. Por sua profundidade erudita e por seu alcance crítico no campo da filosofia jurí­dica e do direito constitucional moderno, não hesitamos em reconhecer no autor paraense um dos mais abalisados e ilus­tres publicistas que versam a matéria neste país. Logo às pri­meiras páginas do admirável trabalho — A Lei Fundamental de Bonn e o sistema parlamentar da\ República Federal Ale- mã — o leitor pressente encontrar-se di ante de um espirito inquisitivo, que estudou com porfiada aplicação o que de me­lhor se produziu na Alemanha. De fato, é a seriedade inte­lectual da obra que lhe marca a personalidade docente.

Vimos a conhecer essa inteligência essencialmente crítica e analítica quando o prof. Sílvio Meira, seu amigo de adoles­cência e dos idos acadêmicos, nos pôs às mãos os trabalhos que serão reunidos nos três volumes editandos. Quem folhear suas páginas não irá deslisar na amenidade de leitura das ho­ras de folga, porque exigem elas a responsabilidade das horas de reflexão e estudo. Até no estilo, que não afina com o fluir literário: seu discorrer é sempre pespontado de indicações, eri- çado de referências bibliográficas, repassado de reflexão, em cerrado diálogo com autores de alto vigor no cenário mundial.

Desta maneira, constantemente salta-lhe da pena a cita­ção oportuna das maiores autoridades na matéria. Não o faz

1. A propósito da obra do prof. Orlando Bitar

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por um golpe de erudição ostensiva, mas por necessidade do debate. Sua inteligência tritura e digere, mobiliza a massa de documentação lida, e, no meio turbulento das idéias alheias, faz a sua guerra por conta própria.

Começamos a lê-lo (dizendo melhor, a estudá-lo) pelo vigoroso ensaio sobre a Lei Fundamental de Bonn. O prof. Orlando Bitar vem se colocar ao lado dos que foram e dos que são influenciados no Brasil pelo pensamento filosófico e jurí­dico alemão. Razão porque, julgando aquele livro o seu últi­mo e mais sério trabalho, o fruto mais representativo de sua experiência madura, foi o em que mais nos detivemos. A nos­so ver, merece abrir a coletânea. Talvez também porque o assunto mais lindeiro fosse de nossas preocupações na exten­sa áre ada filosofia política.

São, entretanto, as numerosas notas apensas ao texto que dimensionam a pesquisa e o alcance do estudo de Orlando Bitar. Ali pôs material de primeira qualidade para o desen­volvimento do ensaio excepcional, que será reconhecido pelo grande relevo em nossa literatura jurídica. O autor, entretan­to, condensou a riqueza informativa no cabedal precioso das notas; e entremeou-as sucintamente de observações valiosas. Nesse derivar de citações passam, aos olhos do que saibam ver, problemas de todo naipe: quorum presumido, formas de votar, prescrições no processo penal, organização partidária, textura dos órgãos federais, a lealdade federal (Bundestreue), a validez da Grundgesetz, a liberdade e a reunificação (Frei- heit und Wiedervereinigung) no atual processo político, a con­textura dos órgãos federais, a lealdade federal (Bundestreue), a partilha das competências entre entidades de direito público, o Fuehrerprinzip e a fonte de legitimidade do poder, a Besch- werde como protogênese do agravo (evolução da simplex querela do direito germânico, recordando o antigo querimas de cepa lusitana!), etc. Eis aí apenas um punhado de refe­rências ao acaso da pena.

2 . O direito nacionalsocialistaDiz, inicialmente, o prof. Orlando Bitar que o estudo

da Lei Fundamental de Bonn, “dogmática e positivamente arti-192

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culado ao nosso vigente ordenamento constitucional, oferece direto interesse a nós, brasileiros”, em virtude de “seu siste­ma parlamentar de governo”. Em nota é que nos esclarece- seu pensamento: a tecitura do constitucionalismo moderno é feita dos mais diferentes fios: da Magna Carta, da declara­ção da Independência, da declaração dos direitos do homem e do cidadão, das dez emendas do Bill of Rights, do due process of Law, dos afluentes da common law, todos esses fios que, vindos de pontos díspares, compuseram a urdidura mais pro­funda do pensamento jurídico, presentes nas estruturas cons­titucionais modernas. O que Orlando Bitar aponta na Lei Fundamental de Bonn é a continuação desses mesmos fios aprimorados através do pensamento alemão, mas legados de conquistas universais.

O III Reich rompera brutalmente essa laboriosa e resis­tente urdidura ético-jurídica: o Fuehrerprinzip, como fonte de legitimidade do poder, fora uma espantosa regressão a for­mas primitivas do poder. Tal ocorreu no seio do povo de mais' alto nível cultural, onde se procurou juridicizar a liderança implacável. Com a derrocada do regime, puderam os juristas- alemães iniciar a reconquista da tradição jurídica que se in­terceptara. Se a Constituição de Weimar não soubera encon­trar o caminho do futuro na linha dos valores universais, a Bonner Grundgesetz veio reatar, entre os maroiços de pos­guerra, o ritmo perdido.

Em nome de que princípios condenar os promotores da regressão? A coisa não foi, no campo da teoria jurídica e da filosofia política, tão desligada do passado. O que é subitáneo' na história, tem sua gestação invisível nos espíritos. Assim, sem o prever, sem a consciência profunda das raízes, o posi­tivismo jurídico, reduzindo o direito ao sistema de normativi- dade editada pelo Estado, aperfeiçoou, ideologicamente, o ins­trumento legal a ser esgrimido, na área especulativa, pelo to­talitarismo 1. Arma de dois gumes! Tanto assim que a dou­trina foi também aproveitada pelos medíocres juristas soviéti­cos. Não se precisa perder tempo à cata de provas: lembrem-

(1) Djacir Menezes, Filosofia do Direito, Editora Rio, 1975, p.133.

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se dos nomes de Goichbarg, de Timaschev, de Pasukhanis, de Stucka, que se guerreiam para saber quem menos se arreda da ortodoxia marxista, ajeitando-lhe o positivismo legal e apavorados com as dentadas do cão de fila Vishinski.

Em relação ao direito nacional-socialista, remetemos o leitor às primeiras notas da primeira parte do livro de Bitar. O certo é que os temas aludidos cresceram no debate atual. Durante a fase pos-Nuremberg, assistiu-se mais um renasci^ mento do Direito natural, que vinha vegetando em silêncio nos círculos aditos do tomismo e adjacências teológicas. Também o direito natural era faca de dois gumes, sucessivamente amo­lada ora no fio conservador, ora no fio rebelde, pelos juris­tas inclinados ao autoritarismo ou ao revolucionarismo. Ante as duas faces do Janus jusnaturalista, Orlando Bitar convergiu sua atenção mais para as conseqüências do legalismo positi­vista, não se perdendo em divagações doutrinárias. Sempre amigo da objetividade das fontes germânicas de informação, apresenta a Lei Fundamental de Bonn como etapa antecipa- dora da futura Constituição, que será fruto de uma Alemanha restabelecida no exercício de sua soberania integral, — die deutsche Souvetaênitaet in ausieichendem Masse 'wieder hers- gestellt ist — o que ainda parece distante se observarmos o painel europeu dentro dos meridianos ideológicos que seccio- nam o mundo.

3. Os perigos da teia ideológicaNa esfera educacional, a grande tarefa que enfrentaram

os juristas na reconstrução das instituições consistiu em des­prender o espírito adolescente da teia ideológica fabricada pelos legistas do nazismo. A gíria nazista modelara a Ge- meinschaft como “realidade” talhada no racismo — e o ra­cismo era apenas o anti-semitismo colorido de uma antropo­logia mítica. Pretendia ressuscitar emocionalmente comunida­des tribais germânicas, os instintos agressivos embebidos dos mitos de Sangue e Honra nórdicos. Tais caracteres, como teo­rizaram, no terreno do direito, Koelreutter, Stuckart, Richten, Hoehn, Maunz, entre outros, não permitiram a personalização194

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jurídica da Gemeinschaft, que sugava alento espiritual em fon­tes remotas estranhas ao liberalismo individualista inoculado naquela técnica jurídica. Hitler — e sem malícia semítica o digo — era o Moisés à frente das hordas nórdicas; a Volks­gemeinschaft converte-se na Gefolgschaft, séquito fiel que lhe palmilha os rastros. A Fuehrung não é uma “direção” (Lei- tung), nem um “governo” (Regierung), é mais uma Herrschaft (dominação), que senhoreia o instrumento chamado Estado— uma forma autocrática do mais puro absolutismo. Quod placuit Duci leges habet vigorem.

Ora, dizíamos, a personalização é a individualização que cinde a Volksgemeinschaft, segmenta a hegemonia da totalida­de nacional onde se investe a essência do Fuehrerprinzip. Nes­te passo é que está a encruzilhada: o abandono do positivismo jurídico para seguir a trilha das metas totalitárias. Primeiro, a supressão da premissa que corta o umbigo que liga o mundo fático ao mundo axiológico, o Sein ao Sollen, básico do po­sitivismo jurídico. Segundo, a tese do direito como ordena­mento vital da Volksgemeinschaft: através da normatividade, o povo se organiza em comunidade. Elimina-se a cisão kel- seniana: o fato desbrocha em norma, jurigenicamente. O di­reito é o que é útil ao povo — Recht ist was dem volksnuetzt. Mediante a ação autocrática, o Sollen exprime vitalmente o Sein. Unidade aceitável, se a conceituamos dialeticamente. Mas a especulação nazista reconhece como órgão supremo da revelação do direito, o Fuehrerprinzip'. a personalidade comu­nitária do “Chefe”. Define-se destarte o tumor carismático. O direito é o fato normativo editado por ele, incarnação e voz da Gemeinschaft. Os mitos semipre valeram muito na condução dos povos. Soberania de direito divino ou soberania popular são mitos de eficácia histórica. As crises daqueles mitos anun­ciam as interferências da razão. As épocas revolucionárias são momentos de efervescência dos mitos.

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