do o Estado Novo

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REFERNCIA BIBLIOGRFICA :

REPENSANDO o Estado Novo. Organizadora: Dulce Pandolfi. Rio de Janeiro: Ed. Fundao Getulio Vargas, 1999. 345 p.

Disponibilizado em: http://www.cpdoc.fgv.br

Sumrio

9

Apresentao Dulce PandolfiPARTE I

15

O legado institucionalCAPTULO 1

17

O Estado Novo no contexto internacional Boris FaustoCAPTULO 2

21

Engenharia institucional e polticas pblicas: dos conselhos tcnicos s cmaras setoriais Eli DinizCAPTULO 3

39

Do federalismo oligrquico ao federalismo democrtico Aspsia CamargoPARTE II

51

Trabalho, previdncia e sindicalismo Vargas e os trabalhadores do BrasilCAPTULO 4

53

Ideologia e trabalho no Estado Novo Angela de Castro Gomes

6

R EPENSANDO O EST ADO NOVO

CAPTULO 5

73

O que h de novo? Polticas de sade pblica e previdncia, 1937-45 Gilberto Hochman e Cristina M. O. Fonseca

CAPTULO 6

95

Justia do Trabalho: produto do Estado Novo Arion Sayo Romita

PARTE III

113

Indstria, bancos e seguros

CAPTULO 7

115

Estratgias de ao empresarial em conjunturas de mudana poltica Maria Antonieta P. Leopoldi

PARTE IV

135

Intelectuais, cultura e educaoCAPTULO 8

137

Trs decretos e um ministrio: a propsito da educao no Estado Novo Helena M. B. Bomeny

CAPTULO 9

167

Propaganda poltica e controle dos meios de comunicao Maria Helena Capelato

C A P T U L O 10

179

Modernistas, arquitetura e patrimnio Lauro Cavalcanti

C A P T U L O 11

191

A poltica cultural Srgio Miceli

GILBERTO HOCHMAN E CRIST INA F ONS ECA

7

PARTE V

197

Imigrao e minorias tnicasC A P T U L O 12

199

Os imigrantes e a campanha de nacionalizao do Estado Novo Giralda SeyferthC A P T U L O 13

229

Qual anti-semitismo? Relativizando a questo judaica no Brasil dos anos 30 Marcos Chor MaioC A P T U L O 14

257

Sua alma em sua palma: identificando a raa e inventando a nao Olvia Maria Gomes da Cunha

PARTE VI

289

Militares, polcia e repressoC A P T U L O 15

291

A doutrina Gis: sntese do pensamento militar no Estado Novo Srgio Murillo PintoC A P T U L O 16

309

Ao e represso policial num circuito integrado internacionalmente Elizabeth CancelliC A P T U L O 17

327

O Estado Novo, o Dops e a ideologia da segurana nacional Maria Luiza Tucci CarneiroC A P T U L O 18

341

Vargas e os militares Jos Murilo de Carvalho

Apresentao

Poucas fases da histria do Brasil produziram um legado to extenso e duradouro como o Estado Novo. Em funo das transformaes ocorridas no pas, o perodo tornou-se referncia obrigatria quando se trata de refletir sobre estruturas, atores e instituies presentes no Brasil de hoje. Na realidade, durante o Estado Novo o regime autoritrio implantado com o golpe de novembro de 1937 , Getlio Vargas consolidou propostas em pauta desde outubro de 1930, quando, pelas armas, assumiu a presidncia da Repblica. Como da Revoluo de 30 haviam participado foras polticas bastante diversificadas, distintas eram as vises a respeito da conduo do processo revolucionrio. Enquanto uns defendiam medidas mais centralizadoras e autoritrias, insistindo na necessidade de um regime forte e apartidrio, outros pregavam medidas mais liberais e lutavam por maior autonomia regional. Por isso, entre a revoluo e o golpe, as disputas foram intensas. Ao longo desse tumultuado percurso, segmentos importantes das elites civis e militares foram sendo alijados do poder. Em 1932, So Paulo, em armas, rebelou-se contra o governo central, exigindo o fim do regime ditatorial. Derrotados militarmente, os paulistas tiveram ganhos polticos. Em junho de 1934, parlamentares escolhidos pelo voto direto promulgaram uma Constituio e elegeram o ento chefe do governo provisrio Getlio Vargas para a presidncia da Repblica. Grosso modo, a nova carta representava uma vitria de setores mais liberais. Ao mesmo tempo em que assegurava o predomnio do Legislativo e ampliava a capacidade intervencionista do Estado, buscava evitar que essa ampliao do poder intervencionista do Estado fosse confundida com um aumento do poder do presidente da Repblica. De acordo com as regras do jogo, o mandato presidencial teria a durao de quatro anos, no sendo possvel a reeleio. Ou seja, em 1938, Getlio Vargas teria que sair da presidncia. Com a instalao de um governo constitucional, o clima poltico do pas radicalizou-se. Dois importantes movimentos de massas, com conotaes ideolgicas bem distintas, mobilizaram a populao: a Ao Integralista Bra-

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sileira (AIB), nacionalista e antiliberal, e a Aliana Nacional Libertadora (ANL), nitidamente de oposio a Vargas e que congregava socialistas, comunistas, catlicos e nacionalistas. Em novembro de 1935, levantes comunistas eclodiram em Natal, Recife e Rio de Janeiro. As revoltas foram debeladas rapidamente, mas o perigo comunista passou a ser utilizado como justificativa para o governo intensificar e aprimorar mecanismos de represso e de controle da sociedade. Abrindo mo de suas prerrogativas, o Legislativo aprovou medidas que implicaram o fortalecimento do Executivo e que conduziram a um gradativo fechamento do regime. A escalada repressiva iniciada em 1935 teve como desfecho o golpe de 10 de novembro de 1937, que deu origem ao Estado Novo. Naquele dia, alegando que a Constituio promulgada em 1934 estava antedatada em relao ao esprito do tempo, Vargas apresentou Nao nova carta constitucional, baseada na centralizao poltica, no intervencionismo estatal e num modelo antiliberal de organizao da sociedade. No mesmo perodo, experincias semelhantes estavam em curso na Europa: Hitler estava no poder na Alemanha, Mussolini na Itlia e Salazar em Portugal. Alis, desde o final da I Guerra Mundial, o modelo liberal clssico de organizao da sociedade vinha sendo questionado em detrimento de concepes totalitrias, autoritrias, nacionalistas, estatizantes e corporativistas. Com a implantao do Estado Novo, Vargas cercou-se de poderes excepcionais. As liberdades civis foram suspensas, o Parlamento dissolvido, os partidos polticos extintos. O comunismo transformou-se no inimigo pblico nmero um do regime, e a represso policial instalou-se por toda parte. Mas, ao lado da violenta represso, o regime adotou uma srie de medidas que iriam provocar modificaes substantivas no pas. O Brasil, at ento, basicamente agrrio e exportador, foi-se transformando numa nao urbana e industrial. Promotor da industrializao e interventor nas diversas esferas da vida social, o Estado voltou-se para a consolidao de uma indstria de base e passou a ser o agente fundamental da modernizao econmica. O investimento em atividades estratgicas, percebido como forma de garantir a soberania do pas, tornou-se questo de segurana nacional. Fiadoras do regime ditatorial, as Foras Armadas se fortaleceram, pois, alm de guardis da ordem interna, passaram a ser um dos principais suportes do processo de industrializao. Com medidas centralizadoras, Vargas procurou diminuir a autonomia dos estados, exercendo assim maior controle sobre as tradicionais oligarquias regionais. Buscando forjar um forte sentimento de identidade nacional, condio essencial para o fortalecimento do Estado nacional, o regime investiu na cultura e na educao. A preocupao com a construo de uma nova idia de nacionalidade atraiu para o projeto estado-novista um grupo significativo de intelectuais. Na rea social, o Estado Novo elaborou leis especficas e implantou uma estrutura corporativista, atrelando os sindicatos esfera estatal. Aboliu a pluralidade sindical e criou o imposto sindical, contribuio anual obrigatria, paga por todo empregado, sindicalizado ou no.

DULCE PANDOLFI

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O salrio mnimo foi institucionalizado. Para mediar as relaes entre patro e empregado, o governo regulamentou a Justia do Trabalho. Atravs da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), sistematizou a legislao trabalhista. Em nome da valorizao do trabalhador nacional, o Estado Novo adotou uma poltica de restrio imigrao. Atravs do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que, alm de exercer a censura sobre todos os meios de comunicao, investia maciamente na propaganda do regime, Getlio Vargas conseguia reforar sua imagem de protetor da classe trabalhadora. No entanto, a partir de 1942 teve incio o processo de desarticulao do Estado Novo. Certamente o envolvimento do Brasil na II Guerra Mundial, aliando-se por razes de ordem econmica aos Estados Unidos e rompendo com a Alemanha nazista, contribuiu para o enfraquecimento do regime. Como justificar a manuteno da ditadura, se soldados brasileiros lutavam na Europa em prol da democracia? Em novembro de 1945, Getlio foi deposto da presidncia da Repblica. Extinto, o Estado Novo deixava uma forte herana histrica e matria-prima para pesquisa e reflexo nas dcadas seguintes. Analisar esse perodo em todas as suas dimenses significa apreender paradoxos e afastar tentaes maniquestas. Afinal, a despeito da ausncia dos direitos polticos e da precariedade das liberdades civis, o regime ditatorial consolidou a idia do Estado como agente fundamental do desenvolvimento econmico e do bem-estar social. Se a poltica trabalhista de Vargas permaneceu praticamente intacta at os dias de hoje, se a discusso sobre o formato do Estado e a reforma da previdncia social so temas que continuam mobilizando a sociedade, no se pode negar que o Estado Novo contribuiu para reforar a fragilidade de nossas instituies poltico-partidrias, para produzir um descaso pelos direitos civis e polticos e para disseminar a ideologia do anticomunismo. A crena na dicotomia entre democracia social e democracia poltica, na supremacia do Executivo sobre o Legislativo e da tcnica sobre a poltica so algumas das heranas do Estado Novo que comprometem at hoje a consolidao da nossa democracia. Questes como essas motivaram o Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil da Fundao Getulio Vargas (CPDOC/ FGV), em parceria com o Departamento de Cincia Poltica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os departamentos de Histria e de Cincia Poltica da Universidade Federal Fluminense (UFF), a Casa de Oswaldo Cruz da Fundao Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e o Ncleo de Estudos Estratgicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a organizar o seminrio Estado Novo: 60 anos, realizado no Rio de Janeiro, entre os dias 3 e 6 de novembro de 1997. A proposta era registrar a passagem dos 60 anos do incio do Estado Novo com uma reflexo multidisciplinar que ajudasse a compreender os debates sobre as reformas em curso no pas. Assim, historiadores, antroplogos, socilogos, cientistas polticos, economistas e juristas reuniram-se para analisar o Estado Novo luz no s de suas inovaes e permanncias

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em relao ao passado, mas sobretudo de suas rupturas e continuidades em relao ao Brasil de hoje. Neste livro, resultante do seminrio, o leitor entrar em contato com dimenses diversas do Estado Novo. Os personagens, as instituies, as questes e as abordagens aqui presentes so os mais variados. O volume se compe de 18 captulos, agrupados em seis partes. Cabe ressaltar que alguns textos so transcries das exposies feitas no seminrio, enquanto outros, a grande maioria, so verses mais elaboradas, embora mantenham o contedo do que foi ali exposto. A coletnea inaugurada por Boris Fausto, que tece consideraes sobre os aspectos do contexto internacional que contriburam para a montagem do Estado Novo e sobre as doutrinas de diferentes matizes que emergiram no Brasil na dcada de 20. Em seguida, Eli Diniz arrola as principais mudanas de natureza poltico-institucional vividas pelo pas no ps-30. As transformaes ocorridas dentro do Estado e em sua relao com a sociedade possibilitaram a institucionalizao de uma estrutura corporativa, vertical e hierarquizada, abrindo espao representao de interesses dos novos atores ligados ordem industrial emergente. Entretanto, segundo a autora, ao incluir os empresrios industriais e excluir os trabalhadores urbanos do acesso aos ncleos decisrios de poder, o novo sistema consagrou a assimetria e consolidou um corporativismo setorial bipartite, criando, em torno de polticas especficas, arenas de negociao entre elites econmicas e estatais. No terceiro e ltimo texto dessa primeira parte, Aspsia Camargo examina as tenses entre o federalismo e o processo de centralizao poltica, chamando a ateno para a questo regional, um dos pilares mais importantes para a compreenso dos conflitos e dos arranjos verificados ao longo de nossa histria. Iniciando a segunda parte do livro, Angela de Castro Gomes, preocupada com a relao que se estabeleceu entre Vargas e a classe trabalhadadora, centra o foco de sua anlise na estruturao de uma ideologia poltica surgida no Brasil a partir dos anos 30, a qual procurou valorizar a questo do trabalho e redefinir o papel e o lugar do trabalhador na sociedade brasileira. O segundo texto dessa parte de autoria de Gilberto Hochman e de Cristina Fonseca, que analisam a poltica de sade pblica implantada durante o regime Vargas, mostrando as continuidades e as inovaes em relao Repblica Velha e o impacto dessa poltica nas dcadas posteriores. A criao, no Brasil, da Justia do Trabalho, sua estrutura e seu funcionamento so os pontos abordados no texto do jurista Arion Romita, que faz uma avaliao crtica sobre a atuao da Justia do Trabalho ao longo de mais de meio sculo, apresentando em seguida as argumentaes favorveis e contrrias permanncia dessa instituio nos dias de hoje. Aps reunir reflexes de vrios estudos que analisaram as polticas econmicas do governo Vargas, em especial aquelas voltadas para a industrializao e a criao de um setor nacional de bancos e de seguros, Maria Anto-

DULCE PANDOLFI

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nieta Leopoldi, autora da terceira parte deste volume, infere que a ao do Estado no ps-30 responde em conjunto aos constrangimentos da conjuntura internacional e s presses diferenciadas dos setores empresariais urbanos: indstria, bancos e seguros. Mostra, igualmente, que no se trata apenas de um Estado que responde a presses internas e externas, uma vez que se aparelha tecnicamente para enfrentar os desafios macroeconmicos e constri um referencial nacional-desenvolvimentista que se traduz em objetivos estratgicos prprios. Intelectuais, cultura e educao so temas que compem a quarta parte do livro. Tomando como objeto de anlise trs decretos exemplares do ministrio Gustavo Capanema, Helena Bomeny analisa a questo da educao, uma das principais dimenses estratgicas para viabilizar o projeto nacionalizador do Estado Novo. Maria Helena Capelato discorre sobre o papel da propaganda poltica e o controle que o regime ditatorial de Vargas, atravs do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), exercia sobre os meios de comunicao. Lauro Cavalcanti, concentrando-se nas reas de arquitetura e patrimnio, apresenta os embates travados entre modernistas e tradicionalistas ao longo da dcada de 30, sobretudo entre 1935 e 1937. O ltimo texto dessa parte de Srgio Miceli, que, preocupado com o processo de construo de identidade da elite brasileira, levanta algumas questes sobre as negociaes que se estabeleciam entre os pintores e as pessoas por eles retratadas. A quinta parte deste livro voltada para o problema da imigrao e das minorias tnicas. A tenso entre cidadania nacional e identidade tnica se faz presente nos trs textos deste bloco. Quais as motivaes da campanha de nacionalizao planejada e executada durante o Estado Novo e qual o seu impacto sobre diferentes grupos organizados como comunidades tnicas? Segundo Giralda Seyferth, a incorporao dos imigrantes e seus descendentes sociedade nacional, tema presente na discusso sobre a poltica imigratria e a formao (racial/tnica) brasileira desde meados do sculo XIX, torna-se, a partir de 1937, uma questo urgente de segurana nacional. Em nome de uma tradio de assimilao e de mestiagem demarcadoras da nossa nacionalidade, o regime estado-novista tomou medidas coercitivas visando atingir as organizaes comunitrias tnicas produzidas pela imigrao. A relao que o regime Vargas estabeleceu com os judeus radicados no Brasil objeto da anlise de Marcos Chor Maio, que, dialogando com a produo acadmica sobre o tema, procura relativizar a importncia atribuda por essa literatura ao que comumente se considera a questo judaica no Brasil. No ltimo texto desse bloco, Olvia Gomes da Cunha confronta dois projetos veiculados nos anos 30 que tomaram o negro como objeto de interveno e de anlise. O primeiro, de natureza intelectual, tentou configurar uma rea de estudos sobre o negro, e o segundo, de carter institucional, voltou-se para a implantao de uma poltica de identificao civil/criminal que pretendia descrever etnolgica e biotipologicamente os indivduos.

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Finalmente os militares, a polcia e a represso so os temas presentes na sexta e ltima parte do livro. Srgio Murillo Pinto discorre sobre o pensamento poltico-militar do general Gis Monteiro, considerado o principal estrategista e formulador da poltica militar do Brasil no ps-30. Elizabeth Cancelli procura mostrar a ligao direta entre Vargas e o aparato policial. Segundo a autora, a polcia do Distrito Federal, formalmente atrelada ao Ministrio da Justia, estava sujeita ingerncia direta da presidncia da Repblica, que buscou no s federalizar, mas tambm internacionalizar a polcia brasileira. Maria Luiza Tucci Carneiro examina os aspectos repressivos do regime e o papel controlador que o Departamento de Ordem Poltica e social (DOPS) exercia sobre a cultura. O ltimo texto do livro de Jos Murilo de Carvalho, que analisa o processo de construo das Foras Armadas. Emergindo da Revoluo de 30 fracas e divididas, inadequadas para sustentar o processo de centralizao e nacionalizao do poder, as FFAA vo-se transformando num ator forte, unificado poltica e ideologicamente, capaz de secundar a ao centralizadora e nacionalizante de Vargas. Sem dvida, a qualidade e a diversidade dos trabalhos aqui publicados cumpriram o objetivo de oferecer ao leitor um vasto painel que articula mltiplas facetas do Estado Novo. Certamente o livro no esgota o assunto, mas contribui tanto para a compreenso da histria do presente quanto para o surgimento de iniciativas similares. Nesta iniciativa contei com participao generosa dos autores, com a contribuio financeira da Capes e da Faperj, e com o trabalho e o entusiasmo de Angela de Castro Gomes, Celso Castro, Charles Pessanha, Gilberto Hochman, Helena Bomeny, Lcia Lippi Oliveira, Marcos Chor Maio, Maria Antonieta Leopoldi, Mario Grynszpan e Monica Velloso. A todos os meus agradecimentos. Dulce Pandolfi pesquisadora do CPDOC/FGV

PARTE I

O legado institucional

CAPTULO 1

O Estado Novo no contexto internacional*Boris Fausto**

Vou falar de improviso, com as vantagens da no-leitura, mas tambm com as desvantagens de uma fala descosida, feita de forma semi-espontnea. Espero dizer alguma coisa sobre o contexto internacional europeu que tem conexo com o Estado Novo. Para tratar do tema, parece-me necessrio recuar poca da I Guerra Mundial. Vou tentar percorrer um caminho um pouco diverso do usual, falando menos das influncias mais bvias de determinados regimes autoritrios e totalitrios na emergncia do Estado Novo. Desse modo, vou tratar de abordar, ainda que brevemente, alguns aspectos menos conhecidos dessas influncias. Do ponto de vista histrico, podemos dizer que o sculo XX no comea propriamente em 1900. Na realidade, ele comea com a guerra, essa grande conflagrao que, em si mesma, introduz rupturas e novidades, desde as tcnicas de confronto at a amplitude do envolvimento das Foras Armadas dos vrios pases envolvidos. Como vocs no ignoram, j no curso da I Guerra Mundial ocorre uma ruptura, ou seja, o triunfo da revoluo russa de outubro (novembro, em nosso calendrio) de 1997. Aps o conflito, no correr dos anos 20, emerge na Europa uma nova direita, que poderamos chamar de revolucionria, ou contra-revolucionria, se a expresso direita revolucionria provocar arrepios. Quem chamou a ateno, de forma convincente, para essa nova configurao poltica foi Franois Furet, em seu livro O fim de uma iluso, apontando para o fato de a direita que surge no ps-guerra ser muito diferente da direita tradicional, conservadora, infensa a mobilizaes sociais, preservadora de valores clssicos. Pelo contrrio, ela se prope utilizar o arsenal ideolgico revolucionrio, mobilizar as massas, chocando-se muitas vezes com a direita tradicional. Obviamente, estou falando, entre outros exemplos, de regimes como o fascista, que triunfa na Itlia em 1922, e o nazista, que ascende ao poder na Alemanha em 1933.

* Transcrio de exposio oral, revista pelo autor. ** Professor aposentado do Departamento de Cincia Poltica da USP .

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Esses acontecimentos ocorrem no mbito do avano das ideologias antiliberais, antidemocrticas, que podemos constatar em quase todo o mundo europeu, incluindo a Frana, onde se afirma a Action Franaise, movimento que vinha de antes da guerra de 1914. A rigor, dentre os pases mais importantes da Europa, apenas a Inglaterra fica imune. Ela ter, nos anos 30, um movimento fascista, cujo lder foi Mosley, mas sem maior expresso. Alis, diga-se de passagem, a Inglaterra ser um bastio da liberaldemocracia e uma pedra no sapato de muitos autoritrios, inclusive do nosso autoritrio mais ilustre, Oliveira Viana, que, quando fala da falncia da democracia liberal, tem de fazer algumas piruetas intelectuais para explicar por que o constitucionalismo britnico funciona, apresentando a Inglaterra como uma grande mas isolada exceo. Nesse quadro geral de emergncia de regimes totalitrios e autoritrios, tanto na Europa do Leste como na Europa ocidental, possvel apontar alguns regimes com direta influncia na organizao do Estado Novo e na construo de sua ideologia. Chovendo no molhado, lembro, por exemplo, que a moldura sindical do Estado Novo teve forte influncia da Carta del Lavoro, vigente na Itlia de Mussolini, e que as tcnicas de propaganda estado-novistas foram muito influenciadas pelo exemplo nazi-fascista. Queria chamar a ateno, porm, para certas influncias na formao do autoritarismo brasileiro que vm de reas perifricas da Europa e at de um pas na confluncia entre o mundo europeu e o mundo islmico. Essas influncias so menos repisadas, menos conhecidas, qui menos importantes, mas no deixam de ter significado e introduzem um elemento comparativo novo entre pases que hoje chamamos de emergentes. Seleciono, dentre as muitas possibilidades, duas figuras autoritrias, embora bastante diversas, que foram uma referncia significativa no Brasil dos anos 20 e 30. Uma delas foi Manoilescu, autor romeno, ou melhor, mais do que um autor, um homem que participou da vida poltica da Romnia e cujas idias foram uma espcie de Bblia para boa parte dos industriais brasileiros, sobretudo paulistas. H vrios anos, Warren Dean apontou essa circunstncia em seu livro A industrializao de So Paulo; mais recentemente, surgiu um minucioso estudo de Joseph Love, Crafting the Third World; theorizing underdevelopment in Rumania and Brazil, fazendo uma comparao aparentemente estranha, mas s aparentemente, entre as teorias econmicas dominantes no Brasil e na Romnia. Por que Manoilescu foi importante? Foi importante por suas concepes polticas conservadoras, autoritrias e corporativas e porque, do ponto de vista econmico, esposava uma doutrina do agrado dos industriais brasileiros, tendo como um de seus itens principais a defesa do protecionismo como forma de desenvolver a economia nas reas perifricas. Da seus trabalhos terem sido referncia obrigatria nos crculos industriais brasileiros na dcada de 20 e no incio dos anos 30. Manoilescu influenciou tambm intelectuais ligados ao Estado Novo, como Oliveira Viana e Azevedo Amaral. Este ltimo traduziu para o portugus o livro O sculo do corporativismo, publicado em 1934. Outra figura que constitui um ponto de referncia entre os autoritrios brasileiros especialmente os integrantes das Foras Armadas Kemal Ataturk, modernizador da Turquia, no comando daquele pas por anos e anos. O

BORIS FAUSTO

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general Gis Monteiro refere-se a ele em seus escritos e especialmente no depoimento prestado ao jornalista Lourival Coutinho, que se converteu no livro O general Gis depe. Gis vislumbra em Ataturk um exemplo a ser seguido, como construtor da nao turca, colocando-o ao lado de outras figuras como Mussolini e mesmo Lenin, apesar de sua crtica implacvel ao comunismo. Essa referncia a Ataturk curiosa, na medida em que guarda relao com outra, sugerindo que a modernizao pelo alto, realizada na Turquia, esteve muitas vezes presente no imaginrio e no iderio da elite militar brasileira. Refiro-me denominao dada aos defensores da reforma do Exrcito nos anos 10, conhecidos como jovens turcos. Dito isso, tento lidar, simplificada e muito brevemente, com alguns aspectos do quadro poltico brasileiro, a partir dos anos 20, destacando a emergncia de doutrinas de diferentes matizes. A emergncia dessas doutrinas no se explica apenas por uma corrente que vem de fora para dentro, no s um vento que vem de fora, mas sem dvida esse vento teve muita importncia na elaborao de uma ideologia no pas. Lembremos grupos bastante diversos entre si, como a direita catlica e os tenentes, que conheo um pouco melhor do que a direita catlica. Como tpico dos integrantes das Foras Armadas, os tenentes mais fizeram, ou mais caminharam, do que falaram, mas no pouco que falaram esto presentes as concepes autoritrias. So idias associadas ao reforo da unidade nacional, via centralizao dos poderes, so idias de crtica ao sistema de representao individual em favor da representao de classes, so idias que insistem na sobreposio das necessidades coletivas aos direitos individuais, consistindo em toda uma crtica aos princpios da democracia liberal. A rigor, a defesa dos valores democrticos no Brasil dos anos 20 e primeiros anos da dcada de 30 concentra-se nos partidos democrticos estaduais, vindo em primeiro lugar o de So Paulo. Olhando retrospectivamente o PD paulista, podemos continuar criticando, como sempre se fez, suas limitaes, seu elitismo, sua incapacidade de compreender o fenmeno da emergncia das massas urbanas. Mas penso que necessrio, por outro lado, valorizar sua insistncia no direito de representao, no combate fraude eleitoral, contrapondo-se embora mais na teoria do que na prtica s concepes autoritrias. Alm disso, lembremos as concepes autoritrias. Lembremos tambm a nfase colocada na educao e na necessidade da reforma educacional, temas que hoje esto na ordem do dia, mas que em certas pocas, como nos anos 60, pareciam menores, diante da suposta iminente transformao revolucionria. Na passagem dos anos 20 para a dcada de 30, h um fator crucial que empurra o Brasil para o caminho autoritrio, ou seja, a crise mundial aberta em 1929. Por seu impacto, a crise desmonta uma srie de pressupostos do capitalismo liberal, que j no era to liberal, e fornece uma boa justificativa, no plano poltico, para a crtica liberdade de expresso, para a crtica ao dissenso, expresso na liberdade partidria, tidos como elementos que conduziriam o pas desordem e ao caos. H a um tema que mereceria maiores pesquisas, no sentido de se verificar em que medida existia um projeto autoritrio para o Brasil, por parte de

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Getlio Vargas e sua equipe, desde o incio dos anos 30. Ou se, ao contrrio, esse projeto foi sendo formulado, ao longo dos anos, por fora da crise mundial e dos embates polticos. Inclino-me, meio intuitivamente, pela primeira alternativa, tendo em vista, entre outras coisas, medidas adotadas muito cedo pelo Governo Provisrio no sentido de estabelecer canais de propaganda governamental e reforar os instrumentos de represso poltica. Isso no quer dizer que em 1930 j estava dado, inexoravelmente, o desfecho de 1937. Parece-me ter existido, porm, desde logo, um projeto poltico centralizador, unitrio, antiparlamentar, forjado por Getlio e sua entourage civil e por alguns nomes da cpula do Exrcito, dentre os quais se destaca o general Gis Monteiro. Como se sabe, para chegar ao desfecho do Estado Novo, o pas passou pela irradiao do movimento integralista, de corte fascista, do qual o Estado Novo tratou sempre de guardar distncia, no plano ideolgico. significativo assinalar os esforos que os formuladores tericos do regime de 37 fazem no sentido de demarcar suas diferenas no s com o integralismo, como tambm com o nazi-fascismo. Para serem conseqentes, eles no podiam admitir que recebiam forte influncia das idias autoritrias vigentes no mundo, pois criticavam o liberalismo por ser um decalque de idias importadas, cuja aplicao no Brasil era artificial e contraproducente. O exemplo mais expressivo o de Azevedo Amaral, que faz uma excelente distino sem que o adjetivo implique juzo de valor entre autoritarismo e totalitarismo em O Estado autoritrio e a realidade nacional. Por sua vez, Oliveira Viana, aps repudiar o pluripartidarismo, repudia tambm o conceito totalitrio de partido nico numa frase sinttica: nosso partido o presidente. Por ltimo, saindo do tema central, gostaria de fazer uma breve referncia a respeito de certa fascinao que o Estado Novo exerce at hoje. Ele no um espcime morto, sobre o qual se possa debruar com um olhar zoolgico. Uma das razes que, a meu ver, explicam esse sentimento h outras ligadas s controvrsias polticas atuais o fato de o Estado Novo apresentar facetas bastante variadas. No acho que devamos ter um olhar frio sobre ele, mas trata-se de buscar entender, com a objetividade possvel, que diabo esse regime que gera essencialmente uma srie de males e, ao mesmo tempo, tem facetas de progresso. Os homens do regime encarecem, censuram, em alguns casos torturam, promovem e tambm enquadram os sindicatos, assim como promovem o desenvolvimento econmico e os melhores nomes da cultura da poca. Comparado com o nazismo, o Estado Novo tem uma poltica no campo esttico que nada tem a ver com aquele. Enquanto o nazismo acaba com a chamada arte degenerada, o regime estado-novista convoca tratando de cooptar, por certo a vanguarda modernista, que representa um ponto alto e muitas vezes irreverente da cultura do pas. Em resumo, as questes que emergem do Estado Novo no so frias e se abrem a muitas discusses. Espero que essas discusses possam ser feitas num ambiente social e poltico em que no exista lugar para o autoritarismo, condio relevante para que as controvrsias se explicitem e o conhecimento avance.

CAPTULO 2

Engenharia institucional e polticas pblicas: dos conselhos tcnicos s cmaras setoriaisEli Diniz*

A figura de Getlio Vargas , certamente, uma das mais controvertidas da histria do Brasil republicano. A partir dos anos 30, quando comea a projetar-se na poltica nacional como chefe da revoluo que ps fim repblica oligrquica, as imagens progressivamente associadas a Vargas so as mais contraditrias possveis. Tal controvrsia no se restringe s suas caractersticas de personalidade enquanto lder poltico, mas adquire maior alcance, ao envolver questes mais amplas, tais como seu real papel histrico, o significado poltico de seus dois governos (1935-45; 1951-54) ou ainda o teor e a consistncia de suas polticas nas diferentes reas econmica, social, poltica e cultural. Hoje a polmica retomada, discutindo-se intensamente o legado da chamada era Vargas. Eis que a ascenso do projeto neoliberal reacende, radicalizando-o, o debate em torno da necessidade de uma ruptura com a herana de Vargas. Contrastando as vises polares acerca do lder poltico, de um lado h as que o exaltam como personalidade conciliadora, com alta capacidade de dilogo e de articulao poltica, destacando sua grande habilidade para construir consensos e harmonizar interesses. Por outro lado, no menos freqente a imagem oposta, que retrata Vargas como um lder autoritrio, centralizador, avesso consulta e sobretudo a dividir o poder. Nessa linha, apresenta-se aos nossos olhos a figura do poltico maquiavlico, especialista na arte de dissimular, de esconder suas reais intenes e manipular as situaes a seu favor, enfim, um mestre no emprego da astcia e da fora ao sabor de suas convenincias polticas. O Vargas do Estado Novo aparece como um poltico dominador e voluntarista, dotado de forte ambio de mando, capaz de usar sem vacilar os instrumentos da represso e da coero para manter-se no poder, levando tal

* Professora titular do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisadora associada do Iuperj.

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comportamento s ltimas conseqncias, no hesitando mesmo em eliminar de seu caminho os amigos de ontem, os aliados de outrora. J o Vargas dos anos 50, presidente eleito para governar o pas numa nova fase poltica, tende a ser visto numa tica distinta. Aqui o que se enfatiza a capacidade de comunicao direta com os setores populares, a sintonia com uma sociedade caracterizada cada vez mais pela presena das massas urbanas na poltica, ou ainda o papel do lder trabalhista frente de um movimento nacionalista e popular que busca afirmar-se diante de uma elite arredia e conservadora, num contexto democrtico e competitivo. Igualmente contraditrias so as imagens associadas ao papel histrico desempenhado por Vargas no perodo ps-30. Enquanto algumas realam seu teor progressista de lder afinado com o movimento de seu prprio tempo, representante das novas foras que despontavam na sociedade brasileira, tentando abrir caminho em meio resistncia da ordem oligrquica, outras o descrevem como uma fora retrgrada. Nessa tica, Vargas seria identificado como um tpico representante da antiga ordem, nada alm de um estancieiro, ligado por suas origens familiares oligarquia rural gacha, um poltico tradicional que cresceu, fortaleceu-se e consolidou seu prestgio a partir da primazia da grande propriedade rural, sendo, portanto, mais um representante do passado do que um lder dos novos tempos, de quem se exige antes de tudo a capacidade de antever o futuro. Outro ponto controverso, como vimos, refere-se ao significado poltico da era Vargas. Aqui uma primeira dificuldade consiste em definir o que vem a ser a chamada era Vargas. Ser ela um somatrio das realizaes dos dois momentos em que Vargas governou o pas? Entretanto, na literatura especializada, no h dvida de que se trata de dois momentos histricos absolutamente distintos. Alm disso, mesmo o primeiro governo Vargas (1930-45) pode ser subdividido em pelo menos trs fases, cada uma com sua identidade prpria. Portanto, o governo Vargas no forma um todo uniforme. Ademais, em suas vrias fases, tem sido interpretado luz de vises to diversas quanto contraditrias. Em sua primeira fase, a do governo provisrio, que se estende de 1930 a 1934, Vargas projeta-se como lder de uma revoluo vitoriosa, a qual, a despeito de sua heterogeneidade ideolgica e poltica, tinha uma bandeira reformista. Essa bandeira estava relacionada com a temtica da justia social, com a questo da igualdade e das liberdades polticas, com o desafio de suprimir as grandes disparidades sociais que marcavam a sociedade brasileira e eliminar as barreiras sociais que tolhiam o desenvolvimento da cidadania poltica. Tratava-se, enfim, de instaurar um novo padro de relacionamento entre classes possuidoras e classes subalternas, de forma a atenuar a opresso excessiva ento exercida pelas elites dominantes, impondo limites institucionais ao seu poder e expandindo os direitos civis e polticos para novos segmentos da sociedade. Expresso dos ideais libertrios dos anos 30,

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esse foi o momento da realizao das grandes reformas polticas representadas pela introduo do voto secreto, pela criao do tribunal eleitoral, pelo reconhecimento do direito de voto para as mulheres, pelas medidas destinadas a combater a fraude eleitoral, enfim, pela aprovao do novo cdigo eleitoral, sob cujas regras se realizariam as eleies de 1933 para a Assemblia Constituinte. A segunda fase, que se desenrola de 1934 a 1937, corresponde ao governo constitucional, quando Vargas eleito presidente por via indireta. Nesse momento, vem tona a figura do chefe de um governo comprometido com um projeto liberal-democrtico, respaldado pela Constituio de 1934, que, apesar de conter um captulo de teor claramente intervencionista sobre a ordem econmica e social, consagrava os princpios liberais embutidos no movimento de 1930. Este, como ressaltado, foi um movimento bastante heterogneo, marcado pelo entrechoque de tendncias distintas e mesmo contraditrias, comportando tanto valores liberais quanto autoritrios. Assim, as metamorfoses do primeiro governo Vargas estavam de alguma forma relacionadas com as tenses presentes no iderio poltico da revoluo de 1930. Finalmente, o perodo subseqente, 1937-45, caracteriza-se por uma virada francamente autoritria. Nesse momento, a figura do Vargas ditador que assume o primeiro plano, a imagem do homem que, atravs de um golpe de Estado, com o auxlio das Foras Armadas, instaura a ditadura, pondo fim breve e turbulenta experincia democrtica de 1934-37, traindo assim os ideais da revoluo de que fora um dos principais lderes. Nesse momento, domina a cena o Vargas identificado com o iderio autoritrio. Cabe ressaltar, alis, que os grandes idelogos do autoritarismo tiveram o seu apogeu nessa fase. Lembremos Oliveira Viana, Francisco Campos e Azevedo Amaral, expoentes do pensamento autoritrio, cujas idias lanaram os fundamentos de uma srie de mudanas poltico-institucionais que viriam a concretizar-se plenamente com o Vargas do perodo estado-novista. Durante esse perodo, d-se continuidade produo da extensa legislao trabalhista e previdenciria, que regularia o trabalho urbano durante as vrias dcadas de desenvolvimento da industrializao por substituio de importaes. Segundo os princpios corporativistas, o status de trabalhador com carteira de trabalho assinada e reconhecida pelo Ministrio do Trabalho (criado em 1930) permitiria o acesso aos benefcios dessa legislao, configurando o que Santos (1979:75) designaria pelo termo cidadania regulada. A partir dessas consideraes, cabe retomar a pergunta inicial relativa ao significado do legado varguista. S uma viso muito superficial e simplificadora pode responder de forma categrica e unvoca a tal indagao. Como caracterizar essa herana? Trata-se de um legado identificado com o atraso ou com a renovao? Produziu um impacto de reforo da tradio oligrquico-conservadora ou significou uma ruptura com esse passado? Representou a continuidade ou, ao contrrio, impulsionou a mudana pela abertura de um

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espao para a verbalizao dos interesses emergentes ligados ascenso da ordem urbano-industrial?

Os anos 30 como marco da transio para uma nova ordemComo explicar as discrepncias assinaladas? Por que a figura de Vargas como homem pblico suscita imagens to desencontradas e mesmo to antagnicas? S possvel entender interpretaes to dspares quando se considera que esses 15 anos, de 1930 a 1945, representam na verdade uma dcada e meia de transio. O que explica as metamorfoses de Vargas enquanto lder poltico e as mutaes que marcam seu primeiro governo o entendimento de todo esse perodo como um longo processo de transio. Como toda fase de transio, trata-se de momento particularmente rico, que encerra mltiplas possibilidades, j que nele esto presentes foras muito contraditrias, movimentos que tendem para direes no necessariamente convergentes, dinmicas que se negam ou se reforam, numa sucesso de fatos e processos marcados por certo grau de indeterminao e incerteza. dentro desse leque de opes que tem lugar a interveno do lder, numa no-previsvel combinao de fortuna e virt, como diria Maquiavel. Qual foi a marca desse perodo de transio? Creio que a mudana principal desse momento est representada pela passagem de um sistema de base agroexportadora para uma sociedade de base urbano-industrial. No se trata de afirmar que a construo do capitalismo industrial no Brasil se deu nos anos 30. Como sabido, a consolidao da ordem industrial ocorrer algumas dcadas depois, sobretudo com a expanso impulsionada pelas polticas do governo Kubitschek. Porm, os pressupostos, as bases, os fundamentos necessrios para o desenvolvimento dessa nova ordem econmico-social foram lanados durante o primeiro governo Vargas. Eis por que esse momento pode ser considerado um marco, j que possibilitou o trnsito de uma sociedade com perfil agrrio, nitidamente subordinada clssica diviso internacional do trabalho caracterizada pelo desequilbrio entre os pases exportadores de produtos industrializados, por um lado, e os exportadores de bens primrios e matrias-primas, por outro , para uma sociedade mais complexa e diferenciada. Observa-se, portanto, uma ruptura, um corte com esse passado e a passagem para outro patamar histrico, mediante a introduo de mudanas significativas. no perodo que se estende de 1933 a 1939 que efetivamente se desencadeia o processo de industrializao no Brasil. Assim, comparando a expanso industrial dos anos 30 com os surtos industriais anteriores, Baer e Villela (1972) ressaltam que o processo de industrializao s veio a ocorrer na dcada de 30, tendo havido apenas crescimento industrial no perodo situado entre o incio da Repblica e o final da dcada de 20. A importncia da distino consiste em que um perodo de simples crescimento industrial, apesar da rpida expanso de algumas indstrias, no acarreta

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modificaes estruturais profundas na economia, enquanto a industrializao, ao contrrio, implica mudanas desse tipo, tornando-se a indstria o setor lder do crescimento da economia. Esse tipo de interpretao situa, portanto, os anos 30 como importante etapa na definio dos rumos do desenvolvimento econmico do pas. No plano da economia, a principal mudana foi o deslocamento do seu eixo do plo agroexportador para o plo urbano-industrial. No plano poltico, verificou-se o esvaziamento do poder dos grupos interessados em manter a preponderncia do setor externo no conjunto da economia, paralelamente ascenso dos interesses ligados produo para o mercado interno. Em outros termos, configurou-se uma mudana na coalizo de poder mediante o ingresso de novos atores, as elites industriais emergentes, ainda que as antigas elites no tenham sido desalojadas. Coube ao primeiro governo Vargas administrar esse processo de transio.

A primazia das mudanas poltico-institucionaisNessa linha de consideraes, cabe ressaltar que as principais mudanas verificadas foram as de natureza poltico-institucional. Se o primeiro governo Vargas teve impacto reformador, foi no plano institucional que essa face reformadora revelou-se de forma particularmente clara, atingindo no s a estrutura do Estado, mas tambm suas relaes com a sociedade. Construiuse de fato um novo arcabouo poltico-institucional que permitiu aumentar o poder interventor do Estado e expandir a capacidade de incorporao do sistema poltico, abrindo espao para a representao dos interesses dos novos atores ligados ordem industrial emergente e quebrando a rigidez da estrutura de poder preexistente. Esta, pela incluso de novos segmentos de elites, torna-se menos monoltica e mais diferenciada internamente. A nova engenharia poltico-institucional foi o resultado de uma srie de mudanas introduzidas ao longo da dcada de 30, no contexto de um processo de fechamento crescente do sistema poltico. Entre essas mudanas, cabe ressaltar, desde logo, o fortalecimento do poder do Estado em face das oligarquias regionais.1 Esse esforo de centralizao e concentrao do poder na esfera nacional, que teve na criao do sistema de interventorias um de seus suportes, teria implicaes profundas do ponto de vista das relaes entre os diferentes grupos dominantes e o Estado. Em primeiro lugar, resultou na subordinao ao comando do governo central dos executivos estaduais mediante sua insero numa complexa engrenagem, envolvendo as interventorias, as elites locais e os representantes do governo federal. Em segundo lugar, desarticulou os mecanismos de in1

Ver Gomes, 1989.

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fluncia das elites tradicionais, em virtude da expanso da capacidade decisria do Executivo federal, deslocando para essa instncia as decises estratgicas para o desenvolvimento econmico e social do pas. Em terceiro lugar, o aperfeioamento e a diversificao dos instrumentos de interveno do Estado nas diferentes esferas da vida social e poltica viabilizaram a implementao de um projeto nacional por cima da rivalidade entre as elites. Esse conjunto de mudanas foi aprofundado com a experincia da reforma do Estado, que, iniciada durante o governo constitucional, tem seu pice com a instaurao do regime autoritrio. Essa reforma resultou de um conjunto de medidas voltadas para a desarticulao do Estado oligrquico, como a introduo da estabilidade para os funcionrios pblicos, a instituio do concurso pblico para o ingresso no funcionalismo de carreira, em 1934, a criao do Departamento Administrativo do Servio Pblico (Dasp), em 1938, a elaborao do estatuto dos funcionrios pblicos, em 1939, entre outras. Apesar de a reforma administrativa ter dado passos importantes no sentido da racionalizao da administrao pblica pela introduo do recrutamento com base no sistema de mrito e pela nfase no critrio da competncia tcnica no desempenho das funes burocrticas, o padro clientelista de expanso da mquina estatal no foi eliminado. O resultado foi a evoluo para um sistema estatal hbrido, marcado pela interpenetrao entre os aspectos do modelo racional-legal e a dinmica clientelista. Finalmente, o padro de articulao Estado-sociedade sofreu profunda alterao com a instaurao do corporativismo estatal, que possibilitou a incorporao poltica de empresrios e trabalhadores urbanos, sob a tutela do Estado, o que resultaria na montagem de uma rede de organizaes de representao de interesses, reguladas e controladas pelo poder pblico. Esse desenho institucional, imposto pelo alto, tolheu a evoluo para formas mais autnomas de organizao dos interesses que se diferenciavam com o avano da industrializao. A insero em categorias ocupacionais especficas seria o princpio ordenador do novo sistema, servindo ainda de base para a extenso do conjunto de direitos definidores do status de cidado. Consagrou-se um conceito de cidadania calcado no num cdigo de valores polticos, mas num sistema de estratificao ocupacional definido por norma legal. Nas palavras de Santos (1979:75), a ordem regulada caracterizaria um contexto em que a extenso da cidadania se faz (...) via regulamentao de novas profisses e/ ou ocupaes, em primeiro lugar, e mediante ampliao do escopo dos direitos associados a estas profisses, antes que por extenso dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. Levando em conta esse conjunto de modificaes, pode-se afirmar que a nova arquitetura poltico-institucional representou efetivamente um remanejamento dos recursos de poder disposio dos diferentes segmentos das elites dominantes, fechando alguns canais, abrindo outros ou, ainda, criando

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novas arenas de negociao sob a gide do Estado, de acordo com os princpios corporativos que nortearam as reformas implementadas. Concluindo, cabe insistir ainda uma vez, as mudanas institucionais representaram as inovaes decisivas dessa poca. A modernizao da ordem institucional foi o passo mais audacioso dado pela coalizo que assumiu o poder em 1930. O autoritarismo foi o custo poltico dessa modalidade de modernizao.

Os conselhos tcnicos como peas bsicas da nova engenharia institucionalUm dos aspectos envolvidos no reordenamento institucional do perodo considerado foi, como vimos, a nacionalizao da poltica para diferentes reas. Assim, as principais decises relativas s polticas cafeeira, industrial, trabalhista e social passariam a depender de articulaes e acordos efetuados dentro da alta burocracia estatal. Esse tipo de evoluo refletiu a conjugao de alguns fatores. Em primeiro lugar, deve-se lembrar o esforo de centralizao e fortalecimento da burocracia estatal, processo que culminou com a instaurao do monoplio burocrtico sobre as decises. Em segundo lugar, observou-se uma acentuada expanso dos poderes legislativos do Executivo, evoluindo-se para um modelo de presidencialismo forte, levado s ltimas conseqncias com a implantao da ditadura estado-novista que resultou no fechamento do Congresso e na eliminao dos partidos polticos. Finalmente, a montagem da estrutura corporativa de intermediao de interesses introduziu o sistema de representao direta dos interesses no interior do Estado, sem a mediao partidria. Consolidou-se um modelo que atribui ao Estado papel primordial no s nas decises relativas s principais polticas pblicas, como tambm na administrao do conflito distributivo, na definio das identidades coletivas dos setores sociais em processo de incorporao, bem como na representao dos interesses patronais e sindicais. A engenharia institucional assim instituda implicou, na verdade, uma nova forma de formular e implementar polticas pblicas, deslocando-as para instncias enclausuradas na alta burocracia governamental, protegidas de interferncias externas. Desta maneira, ao situar o processo de formao das polticas num espao insulado e, portanto, fora do controle direto das oligarquias estaduais, eliminou-se paralelamente qualquer forma de manifestao autnoma dos interesses. Tais consideraes colocam em evidncia uma especificidade dessa experincia de construo institucional, j que a nacionalizao e a burocratizao do processo decisrio apresentam-se como duas faces da mesma moeda dentro de um processo mais geral de centralizao e de concentrao do poder do Estado. A ideologia autoritria forneceria os valores legitimadores do novo modelo, ressaltando o papel integrador e regenerador do Estado forte e, sobretudo, a supremacia da tcnica em relao po-

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ltica, esta ltima vista como fonte de distores e fator de irracionalidade na conduo dos negcios pblicos. Evidentemente, a autonomia do Estado assim alcanada no produziu o Estado neutro, imparcial, equidistante dos conflitos e comprometido com o interesse pblico, enfatizado pelo discurso ideolgico. O que se teve, na verdade, foi uma nova modalidade de articulao entre o mundo dos interesses e a esfera estatal pela institucionalizao da estrutura corporativa. Foi por meio dessa estrutura vertical e hierarquizada, diretamente subordinada ao Estado, que se procedeu, como foi ressaltado, incorporao dos atores emergentes trabalhadores urbanos e empresrios industriais ao sistema poltico. O novo sistema, entretanto, consagrou a assimetria entre empresrios e trabalhadores no que diz respeito ao acesso aos ncleos decisrios centrais. Admitindo os primeiros e excluindo os segundos, o que se consolidou foi um corporativismo setorial bipartite, criando-se arenas de negociao entre elites econmicas e estatais em torno de polticas especficas. Em contraste com o modelo tripartite do corporativismo liberal europeu, que implicava a incluso dos trabalhadores nos acordos negociados, institucionalizou-se no Brasil uma prtica de negociao de teor restrito, excludente e fechado, agravada pela marginalizao dos partidos, que jamais tiveram participao nesse processo. A criao dos conselhos tcnicos foi uma pea importante nessa engrenagem que viabilizou um sistema decisrio mais aberto aos interesses econmicos, sem subverter a primazia da elite tcnica. A partir do incio dos anos 30, criaram-se inmeros conselhos desse tipo, sobretudo na rea da poltica econmica. Previstos pela Constituio de 1934, em seu art. 103, tinham por funo assessorar o Estado na formulao de polticas e na tomada de decises referentes a diversas reas. Alguns eram dotados de poderes normativos e deliberativos, outros exerciam apenas funes de natureza consultiva. Entre os principais, podem ser destacados o Conselho Nacional do Caf (1931), depois substitudo pelo Departamento Nacional do Caf; o Conselho Federal de Comrcio Exterior (1934); o Conselho Tcnico de Economia e Finanas (1934); o Conselho Federal de Servios Pblicos (1936), depois substitudo pelo Departamento Administrativo do Servio Pblico (1938); o Conselho Nacional de guas e Energia Eltrica (1939); o Conselho Nacional de Poltica Industrial e Comercial (1943) e a Comisso de Planejamento Econmico (1994), tendo sido os dois ltimos palco da clebre polmica entre o lder industrial Roberto Simonsen e o professor Eugnio Gudin em torno da estratgia de desenvolvimento mais adequada ao pas no mundo do ps-guerra, o primeiro defendendo o protecionismo e o planejamento econmico e o segundo, uma maior abertura externa da economia.22

Ver Diniz, 1978:201-20; e Simonsen, 1945.

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A persistncia do legado institucional varguistaO legado institucional varguista, j descrito em seus aspectos essenciais, no foi desmontado com a queda do Estado Novo. preciso lembrar que a redemocratizao do pas, no perodo ps-45, no afetou de forma substancial o centralismo administrativo e o estilo de gesto introduzidos por Vargas. Ao contrrio, preservou-se, em grande parte, o arcabouo institucional do governo deposto.3 Executivo forte, controle do processo decisrio pela alta burocracia, subordinao dos sindicatos ao Ministrio do Trabalho, desenvolvimento de uma classe empresarial atrelada aos favores do Estado e marginalizao poltica dos trabalhadores rurais persistiriam como elementos centrais do novo regime. Na verdade, a experincia democrtica dessa fase (1945-64) conduziu instaurao de um sistema poltico semicompetitivo, caracterizado pela reduzida autonomia dos mecanismos de representao poltica e pelo papel secundrio da instncia parlamentar no processo de formao de polticas. Este permaneceria enclausurado no interior da burocracia governamental, observando-se a consolidao da tendncia anterior formao de arenas de negociao entre elites dos setores pblico e privado, como ocorreu com o Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI), a Carteira de Comrcio Exterior do Banco do Brasil (Cacex) e o Conselho de Poltica Aduaneira (CPA), como ressalta Leopoldi (1992). O golpe de 1964 reintroduz o regime autoritrio no pas. Durante os 21 anos de ditadura militar, alguns dos aspectos centrais desse modelo foram acentuados, notadamente a centralizao do poder do Estado, o fortalecimento do Executivo paralelamente ao debilitamento do Legislativo e dos partidos, a representao dos interesses pela via do corporativismo estatal e o reforo do padro insulado e fragmentado de negociao entre as elites empresariais e estatais. Expandiu-se consideravelmente o nmero de conselhos tcnicos com representao empresarial. No Conselho Monetrio Nacional (CMN), no Conselho Interministerial de Preos (CIP), no Conselho de Desenvolvimento Econmico (CDE), no Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI), no Conselho de Poltica Aduaneira (CPA) e no Conselho de Desenvolvimento Comercial (CDC), entre outros, o modelo bipartite de negociao prevaleceria.4 Essa estreita associao entre corporativismo estatal, Estado intervencionista e debilidade da estrutura representativa foi acentuada pelo tipo de presidencialismo que se configurou historicamente. No decorrer do tempo, sobretudo sob o impacto das longas fases de autoritarismo, construiu-se um sistema fortemente concentrador das prerrogativas da autoridade presidencial, consagrando o desequilbrio entre um Executivo sobredimensionado e3 4

Ver Souza, 1976. Ver Boschi, 1979; e Diniz, 1994a.

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um Legislativo crescentemente esvaziado em seus poderes. A falta de freios institucionais e a ineficcia do sistema de cheques exacerbaram o arbtrio do Executivo, o que veio a constituir-se num dos principais fatores da instabilidade institucional do pas. O isolamento da esfera presidencial, seu fechamento ao escrutnio pblico, a falta de espao institucional para a interferncia das foras polticas e a inoperncia dos mecanismos de controles mtuos gerariam dificuldades adicionais para a articulao entre os poderes e a comunicao com a sociedade, que se diferenciava com o avano da modernizao. O regime de 1964 levou esse processo s ltimas conseqncias, implantando um ultrapresidencialismo e reeditando a figura do decreto-lei, instrumento amplamente utilizado por Vargas entre 1933 e 1945. Esse conjunto de fatores levaria subverso do princpio da separao dos poderes e reduziria o Congresso condio de rgo legitimador das decises emanadas do Executivo.5 Finalmente, a ditadura militar do perodo 1964-85 representou um momento decisivo na constituio de dois outros traos fundamentais da poltica brasileira. Um deles, o estilo tecnocrtico de gesto da economia, fechado e excludente, reforaria a concepo acerca da supremacia da abordagem tcnica, abrindo caminho para a ascenso dos economistas notveis s instncias decisrias estratgicas para a definio dos rumos do capitalismo industrial.6 O segundo, responsvel pela primazia dos valores voluntaristas, forneceu elementos para a consolidao de uma cultura poltica deslegitimadora da ao dos partidos e do Congresso na promoo do desenvolvimento. Retomou-se a tendncia, impulsionada pelo pensamento autoritrio hegemnico nos anos 30, para idealizar o Executivo enquanto agente das transformaes necessrias modernizao do pas. Assim, a idia de reforma e de mudana seria associada ao modelo de Executivo forte, sendo o Legislativo, ao contrrio, percebido como fora aliada ao atraso e defesa de interesses particularistas e tradicionais. luz dessas consideraes, torna-se claro que a herana de Vargas na esfera institucional revelou alta capacidade de sobrevivncia. Aps o longo processo de transio que se desenrola entre 1974 e 1985, tendo em vista a meta da instaurao da democracia no pas, o novo governo civil inicia o desmonte da legislao, dos mecanismos e demais componentes do arsenal autoritrio do antigo regime. Entretanto, inmeros aspectos do arcabouo institucional varguista desafiariam as propostas de mudana, inclusive durante os debates que marcaram o processo da Constituinte. Entre os traos de maior persistncia, cabe mencionar a estrutura corporativa de intermediao de interesses, cujos elementos centrais foram preservados, embora tenham sido desativados os principais mecanismos de coero sobre os sindicatos.5 6

Ver Diniz, 1992. Ver Loureiro, 1992.

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Outro aspecto, que no s persistiu, mas se acentuou, diz respeito ao modelo de presidencialismo forte, dotado de vastas prerrogativas e ampla margem de arbtrio. Cabe lembrar que o aguamento da crise durante toda a dcada de 80 forneceu os argumentos e as condies para o reforo da concentrao decisria no Executivo, reeditando a tradicional assimetria entre a burocracia governamental e a arena parlamentar-partidria. Dada a centralidade assumida pelos planos de estabilizao econmica, o confinamento burocrtico das decises se acentuou, prevalecendo o estilo tecnocrtico de gesto da economia. Atravs da ampla utilizao dos decretos-leis, herana do regime autoritrio, num primeiro momento, e das medidas provisrias, aps a elaborao da Constituio de 1988, o Executivo preservaria sua independncia de ao. Nesse quadro, os economistas integrantes da rede transnacional de conexes manteriam sua posio de verdadeiros mentores e gestores da poltica governamental.

A inovao institucional representada pelas cmaras setoriaisEssa longa linha de continuidade quanto aos mecanismos institucionais de articulao Estado-sociedade sofrer mudanas expressivas no decorrer da dcada de 90. Sob o impacto da crise em escala mundial dos anos 80 e da configurao de uma nova ordem internacional, observou-se o esgotamento da estratgia da industrializao por substituio de importaes, paralelamente a uma forte presso externa para redefinio da agenda pblica. Temas como o recuo do Estado, a privatizao, a abertura externa da economia, a desregulamentao, a reinsero no sistema internacional tornaram-se preponderantes. Ao lado dos programas de estabilizao, as reformas orientadas para o mercado passaram a dominar a agenda pblica nos diferentes pases latino-americanos, embora a ordem de prioridades e o ritmo de execuo tenham variado caso a caso. No Brasil, o marco desse processo ser o governo Collor, quando se observa uma clara identificao com as diretrizes do chamado Consenso de Washington. Nesse momento, verifica-se uma drstica redefinio de rumos, determinando o estreitamento e o enrijecimento da agenda pblica, com a centralidade atribuda aos programas de estabilizao e reformas estruturais. Em conseqncia, as reformas sociais perdem prioridade, sendo de fato descartadas da agenda. Por outro lado, a reforma do Estado ganha destaque, sendo incorporada ao programa do governo, logo aps a posse do presidente. Sob a gide das diretrizes neoliberais, o que prevaleceu foi uma concepo minimalista de reforma do Estado. luz do enfoque reducionista dominante, os reformadores privilegiariam as metas de corte de gastos e reduo do dficit pblico, o que se traduziu num esforo de enxugamento da mquina estatal. Cortes de pessoal e extino de rgos sem critrios implicaram

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de fato a mutilao do aparelho burocrtico, agravando os problemas de irracionalidade e ineficincia. Observou-se o predomnio de uma agenda negativa de desmantelamento do legado do passado, em franco descompasso com relao complexidade das tarefas a serem desempenhadas pelo Estado num mundo globalizado, em que competitividade e capacidade de insero estratgica transformaram-se na chave do sucesso. Uma viso mais pertinente implicaria deslocar a nfase para a redefinio do papel e a reestruturao do aparelho estatal, restringindo em alguns setores e ampliando em outros a participao do Estado, tendo em vista sobretudo a melhoria da qualidade da administrao pblica. O segundo aspecto da reforma empreendida nesse perodo foi a radicalizao da centralizao do poder na cpula tecnocrtica, com a criao do Ministrio da Economia, um superministrio, que englobou trs antigos ministrios e algumas secretarias da administrao anterior. Na esteira desse processo, verificou-se o fechamento de grande parte das arenas corporativas, que at o governo anterior ainda funcionavam dentro da burocracia governamental. No mbito da poltica industrial, por exemplo, foram extintos o CDI e diversos outros rgos anteriormente encarregados da deciso e implementao dessa poltica setorial, alm de inmeros conselhos e comisses voltados para decises especficas na rea de fomento produo industrial.7 De acordo com a primazia atribuda s metas de estabilizao e ajuste, para muitos dos novos decisores a poltica industrial seria, alis, irrelevante. Foi nesse contexto de insulamento burocrtico e de predomnio do estilo tecnocrtico de gesto que se criaram, no incio dos anos 90, as cmaras setoriais, arena de negociao voltada para a articulao de acordos em torno de polticas setoriais. Reunindo representantes empresariais e lideranas sindicais, ao lado de tcnicos e decisores governamentais, as cmaras setoriais inauguraram um padro tripartite de negociao, consagrado internacionalmente pelo corporativismo europeu. Essa caracterstica levou autores que se dedicaram ao estudo da mais expressiva dessas cmaras, a da indstria automotiva, a afirmarem que se tratava da introduo do neocorporativismo no Brasil. Em outros trabalhos,8 tive a oportunidade de refutar amplamente esse tipo de interpretao, razo pela qual farei apenas uma breve aluso ao tema, abordando alguns pontos que me parecem essenciais. Como foi salientado, a construo do capitalismo industrial no pas teve como pano de fundo uma engenharia poltico-institucional que agregaria os interesses em categorias hierarquizadas e no-competitivas, observando-se a articulao direta entre os setores pblico e privado pela via do corporativismo sem a mediao partidria. Institucionalizou-se uma sistemtica de negociao de carter setorial e bipartite entre representantes do empresariado7 8

Ver Diniz, 1997:146. Ver Diniz, 1994b:296-303, e 1997:160-87.

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e integrantes dos altos escales burocrticos, dando origem, em alguns casos, chamada privatizao do Estado. A participao dos trabalhadores em arenas de negociao ficou restrita presena dos sindicatos operrios, representando os interesses de suas respectivas categorias, ao lado das elites empresariais e de tcnicos governamentais na discusso de questes muito especficas na rea trabalhista. nesse sentido que se pode apontar o impacto inovador das prticas inauguradas pelas cmaras setoriais, j que consagraram uma sistemtica de negociao tripartite em que os trabalhadores aparecem como interlocutores legtimos, determinando, portanto, a ruptura da relao didica e excludente da tradio corporativa no Brasil. Trata-se, na verdade, do pleno aproveitamento das virtualidades do modelo corporativo que, na variante que predominou entre as dcadas de 30 e 70, tornaram-se subutilizadas. Em primeiro lugar, o padro de tutela e de ingerncia do Estado inviabilizou a resoluo do conflito distributivo pela negociao autnoma entre as partes interessadas. Segundo, a marginalizao da representao dos trabalhadores conteve a negociao tpica desse sistema dentro de parmetros demasiado restritos. Finalmente, o carter tpico e localizado dos acordos obstaculizou a evoluo para uma ampla parceria com o Estado, em virtude da reduzida representatividade dos interesses envolvidos, do peso dos nexos clientelistas e do alcance limitado das questes negociadas. Ao legitimar o trabalhador sindicalizado como interlocutor, o mecanismo em que se baseiam as cmaras setoriais permite certamente alargar o mbito das negociaes, mas no leva automaticamente ruptura com a setorizao dos interesses induzida pela configurao monopolista do mercado, tpica do sistema corporativo brasileiro. No garante, portanto, a prevalncia da tica do interesse pblico e a subordinao das negociaes a critrios de teor abrangente e alcance global. Pode ser certamente eficaz para eliminar os acertos diretos entre grandes empresrios e governo, abalando a prtica do Estado atrelado aos interesses de clientelas privadas, mas no impede a continuidade do antigo padro do Estado a servio de interesses corporativos organizados. preciso lembrar que a estratgia empresarial de enfrentamento da crise que se abateu sobre a economia brasileira nos anos 80, provocando forte reduo do seu ritmo de crescimento, no tratou de reverter a fragmentao e a setorizao dos interesses, caractersticas do corporativismo brasileiro. Ao contrrio, a evoluo recente acentuou a diferenciao e a disperso. Criaram-se novas organizaes, justapostas s antigas, que representaram canais adicionais de participao, tornando ainda mais complexa a estrutura dual de representao historicamente consolidada.9 O maior pluralismo dos rgos9

Ver Diniz & Boschi, 1993.

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de representao empresarial aumentou a diversidade e o conflito, sem a contrapartida da criao de uma entidade de cpula de carter abrangente e transetorial, capaz de atenuar os efeitos combinados das clivagens setoriais, regionais ou relativas ao porte das empresas. Esse foi, alis, um dos fatores responsveis pela inviabilidade dos pactos em torno dos programas de estabilizao econmica ensaiados pelos dois primeiros governos da Nova Repblica.10 A ausncia de interlocutores reconhecidos pelo conjunto das classes empresariais e trabalhadoras como seus porta-vozes legtimos criaria expectativas negativas quanto probabilidade de serem acatados os pactos eventualmente articulados pelas lideranas. O conjunto de traos aqui resumidos inviabilizaria, no caso brasileiro, o modelo do neocorporativismo, caracterstico dos pases da social-democracia europia, que se revelou capaz de operar no plano macropoltico, em arenas multissetoriais, produzindo acordos de ampla envergadura e cobrindo um vasto espectro de polticas. Por outro lado, embora no tenham alterado radicalmente o alcance do corporativismo brasileiro, as cmaras setoriais, que tiveram funcionamento intermitente e transitrio entre 1991 e 1995, constituram importante instrumento de poltica industrial, representando uma experincia de economic governance numa burocracia cada vez mais afeita ao estilo tecnocrtico de gesto. A expresso, introduzida recentemente pela literatura internacional, refere-se a uma nova forma de abordar a questo da eficcia da ao estatal, com nfase na sustentabilidade poltica das decises. Nesse sentido, governana significa a capacidade de o governo resolver aspectos da pauta de problemas do pas atravs da formulao e da implementao das polticas pertinentes, ou seja, tomar e executar decises, garantindo sua continuidade no tempo e seu efetivo acatamento pelos segmentos afetados.11 Em outros termos, a noo de governana econmica envolve no s a capacidade de o governo tomar decises com presteza, mas tambm sua habilidade de criar coalizes de apoio para suas polticas, gerando adeses e condies para prticas cooperativas. Essa experincia de criao de um espao institucional destinado a integrar processos de formulao de polticas e de articulao de interesses mostrou-se relativamente eficaz no caso dos acordos da indstria automotiva (maro de 1992 e fevereiro de 1993), viabilizando um ajuste criativo em face da crise acirrada pela abertura comercial.12 Conjugando a reduo dos preos e da carga fiscal sobre os automveis consecuo de certas metas bsicas, como a retomada dos investimentos, a manuteno do nvel do emprego e a reestruturao produtiva do setor, as negociaes possibilitaram o reergui10 11

Ver Diniz, 1997:94-104. Ver Cohen & Rogers, 1995; Hollingsworth, Schmitter & Streeck, 1994; Conaghan & Malloy, 1994; e Locke, 1995. 12 Ver Diniz, 1997:169-70.

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mento e a melhoria do desempenho do complexo automotivo como um todo. Recuperaram-se os nveis de emprego e da produo, e desencadeou-se uma discusso sobre formas de parceria entre capital, trabalho e governo, tendo em vista a implementao das polticas setoriais concertadas. Os efeitos foram, porm, limitados, j que as condies institucionais e polticas do momento no foram favorveis a esse tipo de experimento, que acabou por configurar-se como um esforo localizado, com fraco poder de reproduo, despertando fortes resistncias no interior da prpria equipe econmica do governo, bastante identificada com o estilo centralizado de gesto econmica. A postura das elites tecnocrticas, francamente contrria abertura de espaos de negociao no aparelho estatal para a discusso da poltica econmica, seria, alis, um dos fatores responsveis pelo esvaziamento das cmaras setoriais nos governos subseqentes.

Consideraes finaisA partir sobretudo de meados dos anos 80, a superposio dos efeitos das crises externa e interna ps em xeque a estratgia de industrializao por substituio de importaes que por mais de cinco dcadas marcou o padro de desenvolvimento do Brasil e dos demais pases latino-americanos. Essa mudana se fez acompanhar da reafirmao dos valores neoliberais. No espao de uma dcada, tornou-se generalizada a crena de que a sada para a crise de amplas propores que atingiu essas sociedades exigiria o rompimento com as prticas desenvolvimentistas do passado, fortemente tributrias da interveno do Estado nos diferentes domnios da vida econmica e social. De agente promotor do desenvolvimento, o Estado passou a ser encarado como o principal entrave ao desencadeamento de um novo ciclo de crescimento. A reativao do mercado e o refluxo do Estado, como num jogo de soma zero, seriam as idias-fora de uma nova era que se impunha em escala mundial. Paralelamente, observa-se um movimento de uniformizao ideolgica em torno de valores legitimadores da nova ordem. O antiestatismo e o repdio do nacionalismo simbolizariam essa postura de rejeio do passado em nome da construo do futuro, num clima marcado pela ideologizao crescente do debate. Aprisionados por polaridades e por posies extremas, os termos desse debate ficariam circunscritos a frmulas genricas, traduzindo-se, no plo liberal, pela primazia de uma agenda padronizada e minimalista, centrada num nmero restrito de prioridades, como a desestatizao, a privatizao, a abertura da economia e a desregulamentao, tendo em vista os imperativos da reinsero no sistema internacional. no contexto marcado pela revivescncia desse iderio que vem tona o tema do fim da era Vargas. A rejeio em bloco da herana de Vargas, como se esta constitusse um todo harmnico e homogneo, contrasta fortemente com as nuanas e contradies associadas sua imagem, indicativas de uma

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figura poltica multifacetada e de uma poca marcada pela complexidade tpica de uma fase de transio. Contrasta ainda com a longa capacidade de sobrevivncia denotada pelo arcabouo institucional varguista, revelador de um grau considervel de enraizamento social. Um olhar mais objetivo permite desvendar o significado profundo desse poder de sobrevivncia. Para tanto, preciso examinar o legado de Vargas em suas vrias dimenses. Tendo em vista os pontos aqui enfatizados, cabe destacar dois aspectos relacionados respectivamente ao sistema de representao de interesses e estrutura do Estado. O primeiro, o surto desenvolvimentista verificado entre fins dos anos 60 e os anos 70, desencadeou profundas mudanas de natureza econmica e social, esvaziando a fora do corporativismo e dando origem a um sistema hbrido, que se caracterizaria pela coexistncia de antigas e novas configuraes organizacionais e institucionais.13 Observou-se de fato a extenuao do Estado como fator de conteno de uma sociedade que se expandiu e se diferenciou de forma acelerada, ao longo das duas primeiras dcadas do regime militar, adquirindo crescente densidade organizacional. Instaurou-se um sistema diversificado e multipolar de representao de interesses, atravs do qual a sociedade extravasou do arcabouo institucional vigente, erodindo o monoplio da representao corporativa. Combinando formatos corporativos, clientelistas e pluralistas, esse sistema reflete um profundo processo de reordenamento social e institucional, que ainda est em curso, porm j revela seu carter irreversvel.14 Portanto, no que se refere a essa dimenso, o legado varguista j est em mutao. Trata-se apenas de reconhecer uma realidade, e no propriamente de desmontar os elementos de determinado padro. Por outro lado, sob a primazia do modelo corporativo, a contrapartida da tutela do Estado sobre os interesses organizados seria a criao de uma ampla constelao de direitos reconhecidos pelas esferas pblicas como parte de um processo mais abrangente que representou, historicamente, uma forma de incorporao poltica de atores previamente excludos. A rejeio pura e simples desse passado pode significar no um passo frente em direo modernidade, mas um retrocesso e um distanciamento cada vez maior do pleno exerccio dos direitos de cidadania. Deslocando o foco para a estrutura do Estado, preciso considerar dois aspectos. O primeiro refere-se s arenas de representao de interesses no interior do aparelho estatal, que marcaram o padro corporativo de articulao Estado-sociedade, atravs dos conselhos tcnicos, no decorrer das principais fases da industrializao substitutiva, e das cmaras setoriais, mais recentemente. O enxugamento do Estado promovido pelo presidente Collor, ao eliminar os conselhos ainda existentes, extinguiu esses espaos de negociao.13 14

Ver Diniz & Boschi, 1991:24-5. Ver Diniz, 1997:178-9.

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O esvaziamento das cmaras setoriais acentuou a tendncia eliminao dos canais de articulao entre o mundo dos interesses e a esfera estatal. O segundo ponto a ser examinado diz respeito ao padro de ao estatal, s relaes entre os poderes e s caractersticas do processo decisrio. Aqui, o que se observou foi um alto grau de continuidade pelo reforo do estilo tecnocrtico de deciso, pela assimetria Executivo-Legislativo, pela falta de capacidade governativa dos partidos e pelo predomnio de formas coercitivas de implementao de polticas. Concluindo, decretar o fim da era Vargas pode ser apenas mais um recurso ideolgico a ocultar a persistncia de alguns de seus aspectos menos afinados com a meta da modernidade, se considerarmos que um de seus componentes essenciais a consolidao da democracia, em consonncia com a realizao de um projeto coletivo.

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CAPTULO 3

Do federalismo oligrquico ao federalismo democrtico*Aspsia Camargo**

O grande desafio, ontem e hoje, num pas continental como o Brasil continua sendo a modernizao e o desenvolvimento econmico, social e poltico, com descentralizao. Globalizao e descentralizao agora caminham juntas. E juntas representam fortes tenses para o sistema poltico e a nacionalidade, para a sobrevivncia mesma do conceito de nao. Em pases como o nosso, considero que a dimenso institucional do federalismo, hoje, s pode ser examinada luz da relevncia geopoltica e histrica do regionalismo, um dos pilares mais importantes e mais decisivos para a compreenso dos conflitos e dos arranjos polticos que marcaram o Brasil entre 1930 e 1937; e que marcam o Brasil ainda hoje. Quem duvida que as reformas constitucionais sofrem o crivo direto das negociaes regionais, sempre em busca do suprimento de recursos de que carece a Federao brasileira? Estendendo um pouco mais o vo, possvel constatar que esse legado de 1937 ainda est muito presente, muito vivo. Algumas coisas mudaram muito pouco ou praticamente nada, outras mudaram muito, e, como diz o velho ditado, plus a change, plus a devient le mme. Quanto mais se muda, mais tudo fica na mesma. O provrbio se aplica bem ao Brasil e serve para designar as poderosas linhas de continuidade que sempre marcaram a poltica tradicional, a despeito das mudanas importantes que se processaram nos anos 30 e ao longo deste sculo. Nosso desafio , portanto, lidar com a ruptura e a continuidade ao mesmo tempo. E constatar que, a cada onda de grandes mudanas, os velhos interesses esto presentes, sempre dispostos a ceder terreno em troca de alguns benefcios imediatos ou para o futuro. Na negociao global incluem-se tanto emendas individuais de congressistas quanto os portos de Suape e de Sepetiba, vitais* Transcrio de exposio oral, revista pela autora. ** Pesquisadora da FGV .

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para garantir a competitividade de regies economicamente marginalizadas, como Pernambuco e Rio de Janeiro. Os arranjos do nosso federalismo mudaram com excessiva freqncia. Mas a continuidade e a importncia dos pactos regionais no quadro poltico permanecem as mesmas. Vou comear pela continuidade, dando aqui um exemplo que considero significativo e interessante. Quando fui convidada para organizar o Setor de Pesquisa do CPDOC, eu estava ainda em Paris, terminando minha tese sobre as elites agrrias e o movimento campons no Nordeste. E comecei a imaginar o que seria organizar um grupo de pesquisa em torno da era Vargas e da correspondncia dos principais colaboradores que o ajudaram a conduzir a Revoluo de 1930 e a implantar o Estado Novo. J naquele momento a imaginao comeou a funcionar. Era bvio que eu, de Paris, achava que os arquivos privados iriam registrar como o grande tema poltico os problemas sociais e a legislao trabalhista. Todos ns achvamos isso. Era o fascnio natural da universidade pela questo social que alimentava a expectativa de encontrar fartssimo material de correspondncia, de reflexes, de angstias existenciais da elite brasileira sobre aquilo que foi, sem dvida, uma das maiores contribuies da era Vargas: a legislao trabalhista. Quando comeamos a decifrar a correspondncia do presidente e de seus lderes, praticamente no havia nada sobre o tema. Nem em extenso ou volume, nem em relevncia. A grande surpresa foi a meno exaustiva, nessa mesma correspondncia, dos conflitos regionais e das disputas polticas no duro processo de reconstruo institucional que tornou possvel a modernizao do Estado, da sociedade e da economia brasileira. Os principais atores polticos desse grande teatro no eram nem partidrios nem sociais. A cena era ocupada por Flores da Cunha e o grupo gacho, e pelo inner circle de lideranas regionais, informantes e conselheiros presidenciais. As pessoas falavam em nome de seus estados, e os estados se encarnavam nessas pessoas. Minas Gerais era uma pessoa, o Rio Grande do Sul era uma superpessoa. Era um grande personagem aquele Rio Grande do Sul, com vrias peas disputando umas com as outras a ateno especial do presidente, mas tambm tentando confin-lo realidade gacha. Fazendo o desconto das grandes mudanas que o pas sofreu de l para c e dos avanos substanciais da democracia, eu diria que o presidente Fernando Henrique, vindo de um grande estado hegemnico como So Paulo, tem tido com o seu estado de origem dificuldades semelhantes s de Vargas em seu domnio gacho. a hegemonia, de um lado, mas o controle dos pares e antigos companheiros, de outro. Em 1930, havia, portanto, toda uma teia de relaes e de comunicaes em torno de pessoas e de estados. Podemos dizer o seguinte: no Brasil dos anos 30, o grande ator poltico que nos explica a evoluo de 1930 para 1937 de maneira absolutamente fundamental eram os estados. E, evidentemente, os militares centralistas, que podiam ser reformistas radicais ou reformistas moderados e que se situavam no mesmo eixo, mas no extremo contrrio, contrabalanando as tendncias

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regionais, puramente polticas e descentralizadas. No estudo sobre A Federao acorrentada, procurei fazer um grfico que posicionava no eixo central a tenso entre os militares e os polticos regionais; noutro eixo, os intelectuais e a Igreja; e num terceiro, os empresrios e os sindicatos. Porque, na verdade, todo o balano das composies e das coalizes foi em torno disso. A grande estratgia foi fragmentar ao mximo as velhas e as novas lideranas emergentes dos estados para fortalecer o poder central, usando como escudo os militares, mas infiltrando aos poucos lideranas mais fiis e dceis ao Estado centralizado, s suas novas regras e s suas novas composies econmicas e sociais. Resumindo, houve estratgias centrais em torno de atores regionais manipulados e de atores militares; e estratgias de apoio, de alargamento das alianas, que Eli Diniz descreveu aqui muito bem, e que significaram a incorporao de atores novos. Atores novos so sempre mais manipulveis porque esto ansiosos por insero e por institucionalizao, mas sem a fora e as resistncias cristalizadas dos velhos atores na defesa de seus interesses e no controle de seus domnios. Porque o grande problema das transies, tanto a de 1930 quanto a dos anos 90, que preciso destruir a velha mquina, mas sem descurar de min-la aos poucos, lenta e imperceptivelmente. E sem deixar de construir, simultaneamente, as novas alianas que sero a ponte para o futuro. O grande risco produzir o vcuo poltico, semelhante ao drama do trapezista que se projeta no ar, sem nenhuma rede para proteg-lo embaixo e sem ter a certeza de que outro companheiro vir ao seu encontro para estender-lhe as mos. Foi o erro que cometeram Jnio Quadros, nos anos 60, e depois Collor, nos 90, contando apenas com sua imagem original e com as manipulaes de marketing e de mdia. Quer dizer, se voc exagerar na dose de mudancismo, sem controlar seus impactos traumticos imediatos, os fantasmas invisveis do velho sistema viro puxar-lhe a perna de noite, e voc cair da cama. Eis por que so necessrias novas alianas, as mais difusas possveis. Vargas e os trabalhadores desorganizados, que fizeram dele o pai dos pobres. Fernando Henrique e os filhos do real, antes excludos pelo jogo perverso da inflao. No entanto, convm no descurar o papel dos atores emergentes; em geral, emergentes e frgeis; e s vezes apenas virtuais. O grande desafio criar condies para que se fortaleam os novos atores, os novos segmentos das classes dirigentes. Em 1930, havia a polarizao capital versus trabalho, que propiciou a emergncia de um empresariado e de um sindicalismo nacionais, com a mediao estatal do Welfare State. Vargas implantou o sistema no Brasil, com os limites e as dificuldades bvias de um pas rural, pobre, sem infra-estrutura, de populao rarefeita e mal distribuda, e politicamente oligrquico. O preo desse enclave modernizante, implantado fora em 1930 e 1937, foi a instabilidade poltica crnica que nos acometeu da para a frente, com sucessivas mudanas constitucionais e no sistema partidrio, e surtos de autoritarismo duradouro.

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Em nossos dias, os atores emergentes no esto mais polarizados em duas metades conflitantes. O jogo de oposioes e contrastes mais fragmentado e disperso, como ocorre no mundo inteiro. Os segmentos emergentes se dispem em distintas lideranas de uma sociedade pluralista, mais diversificada, que luta por melhor organizao, mais capacidade gerencial e mais participao civil, por mais cidadania. Esse modelo participativo o nico que poder eliminar as desigualdades sociais e civilizar o Brasil em suas bases e grotes, de baixo para cima. A estrutura j em curso so os conselhos comunitrios, espalhados pelo Brasil inteiro, na sade, na educao, nos recursos humanos, incluindo a infncia e o adolescente, alm das diferentes formas de organizao civil, de carter religioso e voluntrio, como as ONGs. Enquanto os espaos regionais forem de domnio tradicional ou oligrquico, a democracia ser apenas nominal, e seus rgos representativos, o Congresso, as assemblias, os tribunais do Poder Judicirio, poderes pela metade, sem vida. Outra diferena importante que o Estado nacional que em 1930 era a fora racionalizadora emergente, livre das presses diretas de um mercado internacional em crise e capaz de frear, em nome da coisa pblica, os conflitos entre o capital e o trabalho hoje se encontra fragilizado pelas presses cruzadas da globalizao e da descentralizao. A fragmentao poltica, que sempre foi a marca registrada da poltica brasileira, em funo da continentalidade do pas e de suas desigualdades espaciais, continua sendo o grande desafio da unidade nacional em regime democrtico, ainda muito dependente das qualidades pessoais de um rbitro, o presidente da Repblica, diante de uma estrutura poltica desarticulada em feudos regionais e em poderes autnomos. A ordem legal, nem sempre democrtica e ainda muito marcada pelo