Do Outro Lado dos Muros: a Criminalidade Feminina

Mnemosine Vol.5, n2, p. 174-188 (2009) Artigos

Departamento de Psicologia Social e Institucional/ UERJ

Do Outro Lado dos Muros: a Criminalidade Feminina

On the Other Side of the Walls: the Feminine Criminality

Maricy Beda Siqueira dos Santos; Heloneida Ferreira Nri; Maria Fernanda Leite Oliveira; Byanka Quitete; Adriane Sabroza

Secretaria de Estado de Administrao Penitenciria

RESUMO:

Este artigo sintetiza algumas reflexes, observaes e experincias de psiclogas atuantes em Unidades Prisionais Femininas do Estado do Rio de Janeiro. Ressalta que embora a criminalidade feminina venha aumentando significativamente, ainda objeto de poucos estudos, sendo estes construdos sob marcos conceituais distintos, referenciados em variadas concepes sobre os papis da mulher na sociedade. Apresenta algumas propostas de interveno e destaca a importncia da elaborao de polticas pblicas que atendam as especificidades da populao carcerria feminina.

Palavras-chave: criminalidade; mulheres; prises.

ABSTRACT: This article synthesizes some reflections, observations and experiences of active psychologists in Feminine Prisons in Rio de Janeiro State. It emphasizes that, although the feminine criminality is increasing significantly, it is still object of few studies, built under different conceptual marks, referenced on varied conceptions about woman's roles in the society. Some proposals of intervention are introduced and the importance of public politics elaboration that assists the feminine prison population specificities is detached.

Key-words: criminality; women; prisons

De gente, a gente s tem o nome...

M.S.C.1

Nossa experincia em unidades prisionais femininas da Secretaria de Estado de Administrao Penitenciria do Estado do Rio de Janeiro nos levou a refletir sobre

Do outro lado dos muros: a criminalidade feminina. 175


vrias questes relativas ao envolvimento das mulheres2 com o crime. Por que esta escolha? Por que a reincidncia? Como essas mulheres lidam com a experincia do aprisionamento, com o afastamento dos familiares e, principalmente, dos filhos? Como se constri e se mantm o relacionamento entre as internas e destas com os distintos profissionais ligados execuo penal? Como possvel para as apenadas construrem novos projetos de vida que evitem seu retorno prtica de delitos? Como ns, profissionais da rea de sade, podemos contribuir para este fim? Como esta mudana pode ser instrumentalizada com aes que se construam no mbito da execuo penal?

Estas e muitas outras indagaes advindas de nossa prtica profissional sempre permearam nossas atuaes junto s mulheres encarceradas. Muito embora esse tipo de questionamento perpasse a prtica de muitos dos que atuam no sistema penal, estvamos cansadas de tantas perguntas. Queramos algumas respostas e foi com este intuito que criamos, em agosto de 2005, o Grupo de Trabalho Feminino e Criminalidade, cuja proposta era discutir a criminalidade feminina e, quem sabe, apontar caminhos e alternativas de interveno que levassem em conta a especificidade da populao carcerria feminina.

Portanto, o presente artigo busca sintetizar os dilogos, questionamentos, angstias e principalmente as muitas reflexes construdas durante a trajetria desse Grupo de Trabalho, no somente no que se refere prtica profissional do psiclogo em unidades prisionais femininas, mas conseqente implicao com uma questo to complexa e pouco valorizada.

A criminalidade feminina No Brasil, poucos so os estudos que tratam da criminalidade feminina em

relao criminalidade em geral. Consequentemente, os dados so escassos e pouco reveladores da real dimenso deste fenmeno social (FRINHANI, 2005), mantendo a criminalidade feminina como tema pouco explorado e sem estudos consistentes que expliquem a pequena participao da mulher nas estatsticas criminais e prisionais. De acordo com dados da Subsecretaria Adjunta de Tratamento Penitencirio do Estado do Rio de Janeiro, em setembro de 2009 a populao carcerria no Estado era de 23.426 homens e de 1.253 mulheres.

Dados penitencirios nos revelam que a proporo da populao carcerria feminina se mantm em torno de 5% da populao carcerria total (BRASIL, 1995, 2002), sendo estatisticamente bem menor que o nmero de homens encarcerados, fato

176 Maricy Beda Siqueira dos Santos; Heloneida Ferreira Nri; Maria Fernanda Leite Oliveira; Byanka Quitete; Adriane Sabroza.


que se verifica em vrios pases (LEMGRUBER, 1997). Por outro lado, acredita-se que as cifras negras3 em relao criminalidade feminina podem ser bem maiores do que as divulgadas pela mdia, o que reduziria a diferena que existe entre a criminalidade feminina e masculina. A partir dos nossos estudos e da nossa prtica, podemos afirmar que, historicamente, a relao da mulher com a criminalidade apresenta algumas especificidades.

Podemos observar que foram produzidos estudos sobre a mulher criminosa, os quais lhe atribuem caractersticas que refletem uma viso preconceituosa e biologicamente determinista sobre o gnero feminino. Por sua vez, a criminologia positivista, ao se ocupar da mulher criminosa, pressupe uma imagem da mulher como um ser fraco em corpo e em inteligncia, resultado de falhas genticas. Segundo Espinoza (2004),

um dos primeiros estudos sobre a criminalidade feminina foi elaborado por Cesare Lombroso e Giovanni Ferrero na obra La donna delinqente. Neste livro defendem que a mulher tem imobilidade e passividade particulares, determinadas fisiologicamente. Por isso, ela apresenta maior adaptabilidade e obedece mais lei que os homens. No entanto, ela potencialmente amoral, quer dizer, enganosa, fria, calculista, sedutora e malvola.(p.55)

Assis e Constantino (2001) descrevem a existncia de um imaginrio social construdo em torno da criminalidade feminina, que uma viso muito comum inclusive entre operadores do direito. Acredita-se, segundo esta perspectiva, que as mulheres so influenciadas por estados fisiolgicos e que seus crimes so, em grande nmero, cometidos no espao privado, j que o acesso ao espao pblico ainda lhes restrito.

Todavia, alguns autores vm demonstrando uma viso mais crtica ao analisarem o envolvimento de mulheres com os crimes que cometem. Podemos citar como exemplo Buglione (1998), em seu estudo sobre a relao entre as mulheres e o discurso jurdico-penal. Segundo a autora, historicamente, coube a elas o papel de guardi do mundo privado, uma metfora do tratamento concedido pelo sistema prisional diferena, uma vez que este foi concebido por e para homens. Buglione (1998):8) considera que

a anlise da criminalidade feminina sempre se limitou ao que se pode chamar de delitos de gnero, como infanticdio (art. 123 Cdigo Penal), aborto (art. 124 CP), homicdios passionais (art.121 CP), exposio ou abandono de recm-nascido para ocultar desonra prpria (art. 134 CP), furto (art. 155 CP), alm da ideia de que a conduta criminosa estivesse estritamente relacionada com os delitos dos



companheiros ou maridos, ou seja, h poucos estudos, referncias e polticas criminais direcionadas s mulheres (p.8).

Buglione aborda outra questo importante, que a desestruturao da famlia das apenadas, posto que estas, muito constantemente, so as nicas responsveis pelo sustento da casa e pela criao dos filhos, constituindo-se em seu referencial de cuidados e de proteo familiar. Com freqncia se observa que o aprisionamento das mes implica o abandono de seus filhos nas ruas, podendo ser seguido do ingresso destas crianas e jovens na criminalidade, desamparados pelas famlias e pelas polticas pblicas.

Almeida (2001), em seu estudo sobre mulheres que cometeram assassinatos, tambm enfatiza como a sociedade historicamente determinou s mulheres o espao privado, impedindo seu acesso esfera pblica, domnio dos homens. Observa que o Direito partilha desta imagem da mulher como essencialmente domstica, dada aos sentimentos e emoo (p.129). Todavia, nos discursos dos operadores do Direito, costumam-se excluir desta concepo as prostitutas e as homossexuais. Almeida (2001) ressalta que ao se referirem s lsbicas e prostitutas, alguns operadores do Direito identificaram-nas, tal como os criminlogos do sculo XIX, como sendo mais parecidas com homens, mais machonas e mais habituadas rua e delinqncia e, por isso, mais aptas a matar(p.139). Ainda segundo o mesmo autor, as caractersticas de gnero atreladas questo da criminalidade acabam por dificultar a aceitao social da insero da mulher no universo do crime. A mulher, quando identificada como autora de um crime, geralmente considerada como cmplice de homens, como aquela que se envolve em crimes passionais, ou ainda como aquela que maltrata crianas. Tal identificao parece, muitas vezes, ser fruto de esteretipos e da viso de menos valia da mulher (SOARES E ILGENFRITZ, 2002).

No entanto, o crime feminino parece estar paulatinamente sendo menos associado ao esteretipo do homicdio passional, com forte contedo de amor ou cime, sendo cada vez maior a presena da mulher em outros atos delituosos, como o trfico de entorpecentes, roubos seguidos ou no de morte e sequestros. Esta mudana no panorama geral da criminalidade feminina fica ainda mais evidente se observarmos sua crescente insero no trfico de entorpecentes. Todavia, predominantemente, reservado a elas um papel menor dentro do esquema do trfico, revelado pela ocupao de posies subalternas e vulnerveis, o que facilita sua priso pela polcia e, por consequncia, sua punio. Nossa experincia de atendimento nos revela que o



envolvimento de mulheres com o trfico seria decorrente, prioritariamente, do envolvimento amoroso com traficantes.

Fatores como o desemprego, o baixo nvel de instruo e a precariedade nas condies financeiras tambm estariam cada vez mais associados aos crimes cometidos por mulheres. Ou seja, a condio socioeconmica, evidenciada atravs da necessidade de obteno de renda, apareceria como uma das principais causas de ingresso das mulheres no crime, pois cada vez mais caberia a elas o papel de mantenedoras da famlia.

Tais estudos propem uma reflexo crtica sobre construes discursivas que norteiam prticas jurdicas voltadas para as mulheres. Suscitam, tambm, a possibilidade de entendermos melhor como so construdas e percebidas as relaes entre as mulheres e a criminalidade e de revermos nossas prticas no mbito da execuo penal.

As Mulheres e a Execuo Penal A priso feminina foi criada no Brasil no incio dos anos 1940, no mesmo

momento em que acontecia a reforma penal. Os juristas da poca defendiam a idia de que a reduo da desigualdade entre os sexos, no mbito da sociedade ocidental, implicaria uma maior presena da mulher no apenas na rea do trabalho fora de casa, mas seria responsvel tambm pela insero da mulher no mundo do crime.

No entanto, ao contrrio do que se previa, as mulheres continuam at hoje apresentando uma participao muito pequena nas estatsticas criminais e prisionais, mesmo depois de terem ocupado mais expressivamente o espao pblico.

Guedes (2006) conclui em seu trabalho com a populao encarcerada que, em muitos casos, a busca por reconhecimento, a incluso e a visibilidade social desses sujeitos se fazem pela afirmao de poder via criminalidade. Se falarmos especificamente da questo do trfico de entorpecentes, delito predominante entre o efetivo carcerrio feminino atual no Estado do Rio de Janeiro, concordamos com Guedes quando cita Tavares & Menandro (apud GUEDES, 2006) que indicam que o trfico de drogas produz a sensao do ganhar dinheiro fcil, da "autoridade de bandido" com poder absoluto sobre o outro e, por fim, a sensao da no-subjugao s regras sociais, alm de reafirmar um ideal de consumo e acesso a bens materiais to difundido pelo modelo neoliberal.



A maioria das mulheres condenadas por trfico justifica seu envolvimento com este delito inicialmente alegando necessidades materiais, mas no raro retifica seu discurso admitindo que foi motivada pelo dinheiro fcil, que ampliava sua possibilidade de consumo.

Penas cumpridas, vidas perdidas No sistema penitencirio do estado do Rio de Janeiro, existem cinco unidades

prisionais femininas: Penitenciria Talavera Bruce, Presdio Nelson Hungria, Penitenciria Joaquim Ferreira de Souza, Unidade Materno-Infantil e Penitenciria Carlos Tinoco da Fonseca, em Campos dos Goytacazes.

Soares e Ilgenfritz (2002) tambm verificaram, entre as mulheres encarceradas, um baixo grau de escolaridade, o que normalmente associado a baixas condies socioeconmicas. Observamos que tal situao ainda predominante nas unidades prisionais femininas, o que refora a necessidade de aes especficas visando a sua reinsero social e que propiciem o rompimento de dois processos que se interrelacionam: omisso da sociedade civil quanto ao aumento da criminalidade e criminalizao da pobreza.

Poucas mulheres em situao de privao de liberdade conseguem manter os vnculos familiares aps a priso e outras viviam nas ruas, carecendo de noes mnimas de higiene e cuidados com a prpria sade. Muitas possuem uma histria prvia de maus-tratos e/ou abuso de drogas. Outras so estrangeiras e cumprem penas, basicamente, por trfico internacional de entorpecentes.

A experincia de confinamento penal revela-se particularmente dramtica para as mulheres, sendo mais freqentes as queixas de solido, tristeza, abandono e revolta. As situaes de isolamento em decorrncia de sanes disciplinares so vividas de forma diferente no caso dos homens. Apesar de reclamarem das condies das celas de isolamento, eles costumam suportar o confinamento sem dirigirem a si mesmos atos agressivos como autoferimentos e queimaduras no corpo, o que comum entre as mulheres. Trabalhar, fazer artesanato, participar de grupos de apoio e oficinas diversas so algumas das estratgias utilizadas para suportar o encarceramento, alm da demanda de atendimento individual ao servio de psicologia.

No que se refere s condies das Unidades Prisionais femininas e masculinas, verifica-se que, nas femininas, h uma tendncia maior de acesso a oportunidades de



trabalho intramuros, a sofrer menos violncia dos funcionrios e dispor de mais apoio material. As mulheres demonstram maior cuidado pessoal e com o ambiente, sendo visvel a tentativa de transformar as celas da penitenciria em algo o mais semelhante possvel a um lar. Este cuidado com a aparncia e com o local sinaliza caractersticas de gnero, que definitivamente diferenciam o universo prisional feminino do universo prisional masculino.

O aumento do encarceramento das mulheres produz consequncias de diversas ordens, entre as quais se destaca a perda ou fragilizao das relaes familiares, principalmente no universo filhos e mes presas. Alteraes nos lares so

frequentemente mencionadas pelas mulheres aprisionadas, dentre elas: o aumento da responsabilidade dos filhos mais velhos, que passam a cuidar da casa e dos irmos mais novos; a preocupao com a entrada ou permanncia no crime de filhos ou familiares; a quebra do vnculo com os familiares em funo do sofrimento e constrangimento causados aos mesmos; o abandono por parte de seus maridos ou companheiros.

Percebemos que a relao me-filho dilacerada de forma perversa. Muitas vezes sem uma justificativa em relao ausncia da me, este filho fica sem resposta, entregue a uma experincia de abandono. As internas relatam ser muito doloroso o cumprimento da pena sem interao com os filhos e familiares, sem notcias ou visitas. Assim, o cumprimento de pena acaba por ser um momento solitrio e, devido a estes distanciamentos, a perspectiva de retorno breve ao convvio em sociedade torna-se uma fonte de angstia.

Um grande nmero de mulheres relata que o convvio com a famlia adquire mais valor aps a sua priso, pois a experincia do sofrimento no crcere revela o quanto o apoio familiar importante. Afirmam tambm que os familiares aparecem como uma ponte para o mundo externo.

O dia-a-dia no crcere A vida prisional da maioria das mulheres que cumprem pena nas unidades

prisionais femininas do Estado do Rio de Janeiro costuma caracterizar-se por uma vivncia de abandono e de perda dos referenciais pessoais. Tem-se uma rotina caracterizada por procedimentos repetitivos, rgidos e monitorados por uma permanente vigilncia, sendo que as tentativas de ruptura do assujeitamento a esta dinmica institucional, forjadas pelas mulheres presas, habitualmente caracterizam-se pelo risco e



pela transgresso com componentes auto e heteroagressivos, raramente por um

movimento de criao ou por uma transgresso crtica e construtiva. Constantemente escutamos, por parte das apenadas, aluses a uma imobilidade

temporal angustiante e dificuldade em lidar com imposies da rotina institucional. Isto reforado a partir da fixao do horrio das refeies, do fato de morar em alojamentos com pessoas que tm hbitos distintos, bem como da dificuldade de contato com os familiares, entre outros aspectos. Assim, elas traduzem, com muita clareza, os efeitos deletrios to bem enunciados por Goffman (2001) quanto aos estabelecimentos totais: despersonalizao, assujeitamento das individualidades a uma rotina estereotipada e repleta de regras inegociveis. Este o tempo da cadeia, imobilizado nas permanentes repeties, ao se acordar e dormir sem que nada de novo acontea.

Ainda segundo esse autor, as prises so locais de segregao, onde a celularizao, a vigilncia e a regulao do tempo e das atividades auxiliam na implantao e manuteno de um controle quase que absoluto dos indivduos. Muitos relatos e atitudes destrutivas nos revelam o quanto a auto-estima destas mulheres encontra-se aviltada e massacrada, no s pelas agruras da vida em um estabelecimento total, como tambm por toda uma histria de vida construda sem referenciais de cuidado e de ateno.

Soares e Ilgenfritz (2002:126) sinalizam, em relao priso, que na melhor das hipteses, ela no favorece em nada a interrupo da violncia e da criminalidade. Na pior, ela refora e contribui para que a violncia se consolide como a linguagem predominante na vida das presas e daqueles que as cercam. O ciclo da violncia, que se inicia na famlia e nas instituies para crianas e adolescentes, perpetua-se no casamento, desdobra-se na ao tradicional das polcias e se completa na penitenciria, para recomear, provavelmente, na vida das futuras egressas (p.126).

Ainda que tentemos manter uma escuta atenta e um relacionamento que se caracterize pelo acolhimento ao sofrimento psquico, sabemos que no coletivo4 se desenrola um mundo paralelo, ao qual no temos acesso. Vemos peles cortadas e olhos roxos, expresses de medo e de angstia. Nos discursos, foram brigas sem maior importncia, tombos de escadas e de camas. Costumamos escutar com muita freqncia eu sou presa, e no eu estou presa. O estar presa como uma circunstncia

provisria substituda pelo ser presa, que soa como um forte referencial de identidade. A ausncia dos namorados e maridos constantemente relatada como um

sofrimento a mais durante a permanncia no crcere. At recentemente, apenas uma das



unidades femininas no Rio de Janeiro garantia a regalia da visita ntima para as detentas. Observamos que a dificuldade de relacionamentos afetivos e sexuais, agravada, principalmente, pelos entraves institucionais relativos s visitas ntimas favorece envolvimentos afetivos e sexuais entre as detentas. Segundo Guedes (2006), a maioria das mulheres iniciou tais experincias durante o perodo de encarceramento. Todavia, algumas detentas relatam que j possuam tal orientao sexual antes de serem presas. Segundo Assis & Constantino (2001), "o homossexualismo de internato" uma construo institucional frequente em espaos de recluso, sendo utilizado como estratgia de enfrentamento do crcere no sentido da preservao dos afetos.

Em muitas mulheres, observamos modificaes em sua aparncia e no seu comportamento com a proximidade da sada da penitenciria. Retomam seu visual feminino, pois estaro voltando para a famlia, amigos e filhos: Pederastia coisa de cadeia. L fora eu sou outra pessoa, costumam dizer. Tambm muito comum nas Unidades femininas a construo de relaes afetivas maternais que envolvem cuidados, proteo, acolhimento e aconselhamento das mulheres mais velhas para com as mais jovens. Dessa forma, com relativa frequncia so forjados os papis de mes, pais e filhas de cadeia.

Sabemos que um excepcional comportamento carcerrio5 no significa exatamente um bom comportamento social. Inclusive, conforme podemos observar e de acordo com o conceito de desprogramao do indivduo (GOFFMAN, 2001), quanto mais tempo algum passa no crcere, menos condio ter para a vida socializada. As polticas pblicas pouco tm contribudo para evitar ou combater o crime. Temos graves problemas sociais nas reas de sade, educao, moradia e trabalho, e acrescentar punies, em quantidade ou severidade, efetivamente no compensa essas falhas histricas ou contribui construtivamente para mudanas subjetivas.

Todavia, algumas internas percebem que a vida em uma unidade prisional, mesmo apresentando muitas restries e arbitrariedades, representa tambm uma proteo contra as incertezas da vida futura ou uma forma de proteo contra a vida que tinham antes de serem encarceradas sobretudo para aquelas envolvidas com o crime organizado. Observa-se, em algumas mulheres, que o medo de serem soltas to grande quanto era o medo de serem presas. Percebemos, claramente, que mediante a proximidade da liberdade, algumas internas, mesmo que inconscientemente, buscam



prolongar seu tempo de encarceramento ao cometerem sistematicamente infraes s regras institucionais.

Em relao s expectativas futuras, algumas mulheres, principalmente aquelas

que contaram com o apoio familiar no transcurso de sua pena, mostram-se esperanosas quanto ao futuro. A maioria, no entanto, demonstra medo, ansiedade e dvidas quanto s possibilidades efetivas de se integrarem sociedade. Expressam o desejo de reconstruir a vida, cuidar dos filhos e estudar, permanecer longe do mundo das drogas e trabalhar. Consideram que tero dificuldades em encontrar um trabalho devido ao estigma de ex-presidirias. Segundo algumas, a pena que a sociedade lhes impe perptua.

Algumas aes possveis nas Unidades Prisionais E o que fazer neste cenrio institucional to difcil e desafiador? O que dizer,

mais especificamente, sobre o trabalho em uma Unidade Prisional Feminina? H alguma particularidade neste contexto que o diferencia das Unidades masculinas? Consideramos que sim, principalmente por uma nica caracterstica, que nos chama a ateno em especial. No s os psiclogos, mas tambm os assistentes sociais, mdicos, enfermeiros, agentes penitencirios so consensuais em relao a um ponto: as mulheres

falam muito mais que os homens. H quem diga que uma Unidade com 1500 homens mais silenciosa do que outra, com 300 mulheres.

E qual seria a composio deste ambiente especialmente ruidoso? natural da mulher falar muito? So apenas fofocas, brigas, discursos estreis para evitar o silncio? Quando nos procuram, no Servio de Psicologia, percebemos que a resposta a estas perguntas no. Ao menos, no necessariamente. Histrias tristes, alegres,

engraadas, dramticas, nos revelam a intimidade de vivncias, de pensamentos, de sentimentos e do desejo de compartilh-los. Procuram-nos porque consideram que podemos ouvi-las. Precisam de uma escuta atenta, generosa, e reconhecem que ela no advm necessariamente da quantidade. O encontro entre falante e ouvinte deve ser acolhedor, cuidadoso, sigiloso, confivel.

Em nossa experincia, alm do atendimento clnico individual, reunimos grupos de gestantes, grupo de ingressas, de familiares, e acompanhamos aquelas que se encontram em situao de isolamento como punio por indisciplina. A partir da experincia com o grupo de gestantes na Penitenciria Talavera Bruce, pudemos observar que, em sua maioria, so jovens, frequentemente presas no incio da gravidez.



Algumas no mantm vnculos com o pai da criana, possuem outros filhos e apresentam dificuldades materiais de subsistncia. Devido a este ltimo fator, que tambm se estende aos familiares, poucas recebem visitas. Entre elas comum fantasiar que seu filho j nascer preso inocentemente e sofrer por isso. Momentos de rejeio se alternam com uma preocupao angustiante sobre os possveis traumas que a priso ocasionaria no beb.

A insistncia nesse trabalho fez com que o mesmo conquistasse um lugar institucional e a resistncia inicial cedeu lugar a um novo significante: o grupo das grvidas. As internas grvidas no possuem privilgios diante das outras, mas assumiram um novo status: agora esto sendo escutadas. Um dos efeitos deste trabalho foi muito bem sintetizado no discurso de uma interna: Depois que eu vim aqui no grupo, eu percebi que eu estou presa neste lugar, mas eu posso me sentir livre para ser uma boa me para o meu filho.

O atendimento individual ou em grupo s mulheres que estavam na tranca6

tambm gerou algumas consequncias que consideramos positivas. A tranca um lugar escuro, silencioso, longe do convvio e neste perodo as visitas so suspensas. Parece o inferno, elas dizem. Dentro desta situao de privao de liberdade, o isolamento insuportvel para muitas delas e, diferentemente das unidades masculinas, so frequentes as ocorrncias de autoferimentos atravs de cortes nos braos e pernas e queima de colches que resultam em queimaduras no corpo. Pudemos constatar que, durante o perodo em que realizamos esse trabalho de atendimento semanal, cessaram as ocorrncias de autoagresso. As mulheres passaram a ter um lugar de fala e algumas encontraram outras possibilidades de expresso de angstia, abrindo mo do confronto direto com os funcionrios, o que gerava frequentes sanes disciplinares. Em certos casos, ao sarem do isolamento, elas demandam o atendimento individual. Tal modalidade de atendimento fica sujeito s diretrizes impostas pelo esquema de segurana, uma vez que alguns responsveis entendem que o isolamento um castigo e no comporta nenhuma regalia. De nossa parte, entendemos que o atendimento no uma regalia e sim um direito.

Os grupos direcionados s recm-ingressas, que so fruto de um projeto conjunto dos Servios Social e de Psicologia chamado de Porta de Entrada, tambm apresentam boa receptividade. Temas como a separao da famlia, as regras institucionais, a guarda dos filhos, a situao jurdica, entre outros, so levantados pelas



participantes e, conforme suas demandas, tratados individualmente em encontros posteriores.

Cabe ressaltar ainda uma importante consequncia do trabalho realizado no sentido da no-acomodao s precariedades da instituio. A equipe, inquieta com as dificuldades da estrutura fsica da rea tcnica e particularmente com a ociosidade das internas em uma determinada unidade penal, encaminhou essas questes s instncias hierrquicas superiores e pde ser acolhida pelo ento Subsecretrio Adjunto de Tratamento Penitencirio, o que resultou na construo de uma padaria e de uma escola, incluindo uma sala de leitura, e a implantao de um curso tcnico de manicura e cabeleireiro. O espao fsico da rea tcnica tambm foi modificado, visando atender s condies bsicas para a sua utilizao.

Por fim, para alm dessas iniciativas implementadas nas Unidades Penais, buscamos expandir a discusso sobre a criminalidade feminina e realizamos um encontro denominado Reflexes sobre Gnero Feminino e Criminalidade, durante o Frum Permanente dos Psiclogos do Sistema Penitencirio, em setembro de 2007 no auditrio do CEDIM (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher). O evento contou com a participao de convidados do meio acadmico7 e das psiclogas das unidades prisionais femininas. Tratou-se, naquela ocasio, de uma experincia importante para o nosso Grupo de Trabalho que possibilitou a ampliao do debate acerca do tema e a produo de intersees entre discursos sobre gnero feminino, violncia contra a mulher e sobre a relao desta com a criminalidade e o Sistema Penal. Este encontro tambm se configurou como uma fonte consistente de subsdios para que retornssemos nossa prtica quotidiana com idias revigoradas quanto criao de possibilidades mais concretas visando integrao social destas mulheres e a construo, por e para elas, de novos projetos de vida.

Por uma luz no fim do tnel Esta populao demanda com urgncia a implementao de aes voltadas para

sua integrao social, a fim de se tentar criar junto a elas projetos de vida viveis que as distanciem efetivamente da opo pela criminalidade como estratgia de sustento e de sobrevivncia.

Como bem aponta o Conselho Federal de Psicologia sobre a atuao dos psiclogos na sua interface com as polticas de assistncia social, tendo em vista as



urgncias que nossa sociedade demanda no que tange efetivao de prticas engajadas e criativas, entende-se que

atuar na valorizao da experincia subjetiva do sujeito contribui para faz-lo reconhecer sua identidade. Operar no campo simblico da expressividade e da interpretao com vistas ao fortalecimento pessoal pode propiciar o desenvolvimento das condies subjetivas de insero social. Assim, a oferta de apoio psicolgico de forma a intervir no movimento dos sujeitos e no desenvolvimento da sua capacidade de interveno e transformao do meio social onde vive uma possibilidade importante (CFP, 2005:23).

Especificamente, no campo da execuo penal, importante a existncia de espaos nas unidades prisionais para implementar oficinas de trabalho e realizar atendimento psicossocial voltados integrao social das internas. Entendemos ainda que a criao de bibliotecas, salas de leitura e espaos multimdia configuram-se como uma possibilidade de acesso cultura, contribuindo para o desenvolvimento do raciocnio, do conhecimento e de novas possibilidades de subjetivao.

Tambm fundamental ampliar a oferta de cursos de capacitao, que cumpram uma agenda escolar de educao bsica e qualificao profissional, selecionando as presas com melhor desempenho para serem multiplicadoras de conhecimentos, visto que tais ferramentas tambm abrem novos horizontes para vida extramuros. inegvel que a profissionalizao uma ferramenta fundamental na promoo da reintegrao das apenadas sociedade. Um dos maiores anseios por elas expresso retornar sociedade de forma produtiva. O desejo de incluso social maior do que o de permanecer no mundo do crime. Logo, preciso viabilizar prticas de incentivo ao trabalho penal e ao trabalho extramuros, visando a um efetivo ingresso das ex-internas no mercado de trabalho.

Consideramos, assim, que a reintegrao social destas mulheres no se d afirmando seus erros ou aprisionando-as em uma cela em permanente cio. Acreditamos que esta reintegrao ocorrer ao se apresentarem oportunidades reais de mudana, de novas perspectivas, e da possibilidade de desenvolver uma viso crtica sobre as razes que levaram transgresso. As polticas re - ressocializao, reintegrao, reeducao etc. - mostram-se incuas quando no privilegiam a implicao do sujeito nos seus atos e na sua responsabilidade desejante.

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Maricy Beda Siqueira dos Santos, Heloneida Ferreira Nri, Maria Fernanda Leite Oliveira, Byanka Quitete, Adriane Sabroza

Psiclogas da Secretaria de Estado de Administrao Penitenciria E-mails: [email protected]: [email protected];

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1 Palavras de uma interna.

2 Mulher encarcerada, interna, apenada ou simplesmente mulher. Tais denominaes se alternam no decorrer do texto, fato que para ns no designa qualquer alterao valorativa ou semntica.

3 Trata-se dos casos de crimes que no chegam ao conhecimento do Sistema Judicirio e no figuram das estatsticas e na mdia. Nos casos que envolvem as mulheres com a criminalidade, essas estatsticas so ainda menos precisas.

4 Termo utilizado para nomear a populao carcerria nas unidades.

5 Os internos so classificados pelos nveis de comportamento, durante o cumprimento da pena: Neutro, Bom, timo, Excelente e Excepcional. Uma falta disciplinar considerada grave implica regresso do nvel de comportamento por at 180 dias, inclusive para o Negativo, dependendo da deciso da Comisso Tcnica de Classificao.

6 Nas penitencirias, a tranca (ou surda, ou Buck) um lugar de isolamento para onde so levadas as internas que cometem transgresso disciplinar. Tal medida aplicada pelas mais diversas razes: por desrespeito ao funcionrio, usar uma roupa inadequada, porte de drogas ou celular, brigas com outra interna etc.

7 Na primeira mesa, coordenada por Heloneida Neri, o tema A Face Feminina da Violncia foi apresentado pelas palestrantes: Mariana Barcinski, pesquisadora do CLAVES/FIOCRUZ; Iara Ilgenfritz, mestre em cincias criminais e professora de Direito Penal e Criminologia; Regina Neri, psicanalista e doutora em psicologia e Ceclia Soares, Superintendente de Direitos da Mulher e Presidente do CEDIM. Na segunda mesa, coordenada por Maria Fernanda L. Oliveira, As Prticas Psicolgicas em Unidades Prisionais Femininas foi o tema apresentado por Adriane Sabroza, psicloga da SEAPHF; Maricy Beda, psicloga da SEAPTB; Mrcia Badar e Jacqueline Lima, psiclogas da SEAPJFS; Elisabeth Romano, psicloga da SEAPNH e Jussara Cerqueira, psicloga da SEAPTPMI.

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Do Outro Lado dos Muros: a Criminalidade Feminina