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Do ponto de vista científico, o estudo dos gêmeos que não foram criados juntos tem causado problemas aos pesquisadores. Esses gêmeos se apresentam voluntariamente para participar das pesquisas ou tornam-se conhecidos dos estudiosos por intermédio da mídia, mais inclinada a cobrir histórias de gêmeos idênticos incrivelmente parecidos, que se casaram com mulheres de mesmo nome e depois se divorciaram, ou que escolheram como hobby uma mesma atividade incomum. Para começar, é claro, gêmeos idênticos não tão parecidos têm menos chances de serem identificados e reunidos. E poucos estudos com gêmeos, criados juntos ou não, reuniram irmãos de procedências fundamentalmente diversas. “Todo estudo vai ter seus críticos”, afirma Nancy Segal, titular da Universidade do Estado da Califórnia em Fullerton, que trabalhou com Bouchard de 1982 a 1991. “Mas estudar gêmeos criados separadamente distingue melhor os efeitos da genética e do ambiente sobre o comportamento.” Segal vem estudando gêmeos chineses desde 2003 (fraternos e idênticos, criados juntos ou não). Em seus livros, a pesquisadora mistura ciência com histórias de interesse humano, comprovações estatísticas com detalhes anedóticos: as gêmeas idênticas criadas uma longe da outra que usavam, cada uma delas, sete anéis; ou as irmãs criadas em separado que coçavam o nariz exatamente da mesma maneira e davam o mesmo nome àquele cacoete. Em outubro passado, Yesika Montoya, uma psicóloga colombiana que hoje trabalha como assistente social na Universidade Columbia, viu no Facebook um vídeo de um programa da televisão colombiana (Séptimo Día) que confirmava, mediante testes de DNA, que os quatro rapazes de Bogotá compunham dois pares de gêmeos idênticos. Montoya entrou em contato com Segal, a quem só conhecia de nome e reputação. Depois, abordou os rapazes, que concordaram em ser objeto de uma pesquisa. Não importa o fascínio que exerçam, os dois pares de gêmeos representam uma amostra de não mais que dois. Para Segal,

Do Ponto de Vista Científico

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Do Ponto de Vista Científico

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Do ponto de vista científico, o estudo dos gêmeos que não foram criados juntos tem causado problemas aos pesquisadores. Esses gêmeos se apresentam voluntariamente para participar das pesquisas ou tornam-se conhecidos dos estudiosos por intermédio da mídia, mais inclinada a cobrir histórias de gêmeos idênticos incrivelmente parecidos, que se casaram com mulheres de mesmo nome e depois se divorciaram, ou que escolheram como hobby uma mesma atividade incomum. Para começar, é claro, gêmeos idênticos não tão parecidos têm menos chances de serem identificados e reunidos. E poucos estudos com gêmeos, criados juntos ou não, reuniram irmãos de procedências fundamentalmente diversas.

“Todo estudo vai ter seus críticos”, afirma Nancy Segal, titular da Universidade do Estado da Califórnia em Fullerton, que trabalhou com Bouchard de 1982 a 1991. “Mas estudar gêmeos criados separadamente distingue melhor os efeitos da genética e do ambiente sobre o comportamento.”

Segal vem estudando gêmeos chineses desde 2003 (fraternos e idênticos, criados juntos ou não). Em seus livros, a pesquisadora mistura ciência com histórias de interesse humano, comprovações estatísticas com detalhes anedóticos: as gêmeas idênticas criadas uma longe da outra que usavam, cada uma delas, sete anéis; ou as irmãs criadas em separado que coçavam o nariz exatamente da mesma maneira e davam o mesmo nome àquele cacoete.

 

Em outubro passado, Yesika Montoya, uma psicóloga colombiana que hoje trabalha como assistente social na Universidade Columbia, viu no Facebook um vídeo de um programa da televisão colombiana (Séptimo Día) que confirmava, mediante testes de DNA, que os quatro rapazes de Bogotá compunham dois pares de gêmeos idênticos. Montoya entrou em contato com Segal, a quem só conhecia de nome e reputação. Depois, abordou os rapazes, que concordaram em ser objeto de uma pesquisa.

Não importa o fascínio que exerçam, os dois pares de gêmeos representam uma amostra de não mais que dois. Para Segal, porém, as possibilidades eram fantásticas, únicas. Ela não tinha notícia de que houvesse nenhuma outra família com tantas possibilidades de combinar pares de gêmeos para análise e comparação: Jorge e Carlos, Jorge e William, Jorge e Wilber, e assim por diante. “É um experimento dentro de um experimento”, disse, comparando-o a matrioskas russas: você abre uma, tem outra dentro, e outra, e outra.

Os gêmeos sabiam que o estudo exigiria que eles se submetessem, ao longo de toda uma semana de março, a entrevistas diversas, individuais e em dupla, assim como a horas enfurnados numa sala, respondendo a questionários. Haveria perguntas sobre seus lares, suas vidas, sua educação, bem como testes de personalidade e de inteligência. Segal contou-lhes que estava interessada em escrever um livro sobre eles (mais tarde, Montoya colaboraria nesse projeto), e os rapazes se mostraram entusiasmados.

William impôs uma única condição para participar: insistiu que as pesquisadoras visitassem a casa onde ele havia crescido, em Santander. Sem isso, jamais entenderiam de fato quem ele era. Preocupou-o, no entanto, um problema: se lhes dissesse quanto tempo levariam para chegar lá, elas desistiriam de ir. Assim, enrolava e desconversava

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toda vez que surgia o assunto “tempo de viagem”. Quatro ou cinco horas, William dizia, acrescentando então, como quem não quer nada, que, se a estrada os impedisse de chegar a seu destino, eles deveriam caminhar. Por quanto tempo? Por um tempinho, respondia – talvez precisassem enfrentar um pouco de lama também. Quanta lama? Bom, podia ser que fosse mais fácil, a partir de certo ponto, seguir viagem a cavalo. E perguntava a Segal se, por acaso, ela preferia fazer aquele trecho a cavalo. Segal, uma mulher de 60 e poucos anos que crescera no Bronx, em Nova York, a princípio declinou.

 

No dia 29 de março, às nove e meia da manhã, três carros entraram em La Paz, uma cidadezinha empoeirada cujas poucas vielas ofereciam vistas espetaculares dos Andes. O grupo – formado por Segal, Montoya, os dois pares de gêmeos, intérpretes, amigos diversos e alguns familiares – játinha passado por seis horas de estrada. Pararam num bar para um café da manhã tradicional, composto de caldo de costela e chocolate quente. Jorge e William sentaram-se lado a lado à mesa; Carlos se posicionou defronte deles, e Wilber se acomodou com as pesquisadoras. Enquanto todos comiam, Carlos apanhou seu celular para exibir uma foto dele e de Jorge. “Eu amo meu irmão, embora só demonstre isso quando estou bêbado”, disse. “Estão vendo?” Na foto, Carlos dava um beijo no rosto de Jorge, com os lábios formando biquinho.

Aborrecido, William observava Carlos. Wilber, ele notou muitas vezes, era igual: sabia que podia contar com o irmão e só demonstrava afeto em raras ocasiões – quando, por exemplo, achava que um dos dois podia morrer. No Exército, ambos haviam servido no mesmo batalhão, e quando deviam entrar em alguma zona especialmente perigosa, Wilber, pálido, dizia a William: “Que Deus te proteja, meu irmão. Eu te amo.”

William sabia que Wilber o amava. Mas, tanto Jorge como William gostariam que os irmãos com os quais haviam crescido – Carlos e Wilber – lhes tivessem dado mais apoio, que tivessem demonstrado mais sensibilidade, como acontecia agora entre William e Jorge, que com frequência se telefonavam antes de dormir, só para dar boa-noite.

A essa altura, os quatro rapazes se conheciam bem. Ao longo dos seis meses anteriores, haviam saído juntos, compartilhado refeições, conversado sobre mulheres, família, dinheiro, valores. Mesmo semanas depois de se conhecerem, ainda olhavam nervosos e espantados nos olhos do irmão idêntico. Haviam se medido, avaliado e inspecionado. De costas um para o outro, compararam suas alturas – os que haviam sido criados na cidade eram mais altos que os do campo. Carlos derrotara Wilber numa competição para ver quem comia mais. William ganhara de todos eles no braço de ferro. Nas arquibancadas de um jogo de futebol, Carlos, fascinado, vira William enfiar a mão na calça jeans para coçar o traseiro: Jorge fazia o mesmo. Certa noite, à mesa do jantar, Jorge notou que Carlos e Wilber se debruçavam no mesmo ângulo estranho sobre seus pratos. Jorge sentia-se à vontade para corrigir gentilmente a gramática de seu gêmeo idêntico; Carlos levava a sério responsabilidades como ensinar Wilber a abordar uma mulher atraente num bar de Bogotá, ou como beber de um só trago uma dose de tequila. Os gêmeos de Santander ficaram espantados com o fato de os irmãos da cidade jamais terem disparado uma arma de fogo, falha que se apressaram em corrigir num passeio pelo campo.

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De fato, Carlos logo se sentiu à vontade com seu irmão gêmeo recém-descoberto – isso ele tinha de admitir. Wilber, ao contrário de Jorge, não lhe dizia o que fazer quando ele lhe falava sobre sua vida amorosa: apenas ouvia e dava apoio. Sim, entendiam um ao outro – o orgulho masculino quando estavam com mulheres, a reação furiosa às provocações incessantes dos respectivos irmãos. Mas era também enervante para Carlos o que Wilber tinha dele. A própria existência do irmão gêmeo punha em questão um conceito que lhe era caro: o senso de sua singularidade.

 

Tendo desenvolvido características tão diferentes do resto da família, Carlos sentia orgulho de seu individualismo. Agora, porém, como gêmeo idêntico, integrava um raro subconjunto de seres humanos cuja replicabilidade estava embaraçosamente à mostra. Certa ocasião, Wilber postou no Facebook uma antiga foto dele em Santander, de peito nu à beira de um rio, segurando triunfante duas galinhas que havia acabado de matar. Carlos, ao deparar com aquele jeca com os cabelos molhados e penteados para trás como os dele, sentiu-se incomodado. “Tire esse troço daí”, ele disse a Wilber. “As pessoas vão pensar que sou eu.”

Longe de acreditar que havia encontrado sua metade perfeita, Carlos sentia-se mais sozinho que nunca. Por mais que Jorge negasse, sua aproximação de William era evidente. Agora os dois usavam o mesmo modelo de tênis e aparavam o cavanhaque de forma idêntica. Nos fins de semana, Jorge ia com frequência ao açougue de William e se punha atrás do balcão, esperando pela clientela, só para passar mais tempo com seu gêmeo. Por vezes dormia no apartamento minúsculo de Wilber e William, enquanto Carlos ficava sozinho em casa. Às vezes Carlos se consolava com um argumento estranho e perverso: ainda bem que a mãe não estava mais ali para presenciar os acontecimentos, pois ele não teria sido capaz de suportar o ciúme que teria sentido, caso ela acolhesse William do jeito como Jorge fizera.

Carlos sabia que Jorge estava ciente daquela tristeza e que até procurava ajudar. Mas, sempre que tentavam conversar sobre o assunto, recaíam no velho cacoete de irritar um ao outro. Para Carlos, era como se Jorge ignorasse suas preocupações; Jorge, por sua vez, sentia-se frustrado, porque nada do que dizia era capaz de mitigar a sensação de isolamento do irmão. Mas Jorge insistia. Cerca de seis semanas após o primeiro encontro com William e Wilber, ele pediu uma foto a Carlos. Naquele sábado, foi a um tatuador. Já trazia no peito uma tatuagem da mãe, do lado do coração. Agora, submetia-se a quatro horas de dor para ter o rosto do irmão desenhado em seu corpo, a centímetros da imagem da mãe. Ao voltar para casa, levantou a camisa e mostrou a Carlos seu retrato, sobre a pele ainda ensanguentada e inchada por causa da violência da agulha. Carlos diria mais tarde, com lágrimas nos olhos, que fora o maior presente que havia recebido na vida. Aquilo lhe devolveu algum conforto.

Contudo, no café da manhã em La Paz, Carlos sentiu-se mais uma vez provocado. Logo depois de exibir a foto em que aparecia bêbado, ensaiando um beijo em Jorge, este começou a falar de um assunto delicado, uma questão que os dois já haviam discutido em muitas conversas noturnas: o que seria de Carlos hoje, caso tivesse sido criado em Santander? “Olhe em volta”, disse Jorge. “Você acha mesmo que, se tivesse sido criado aqui, teria se tornado contador ou mesmo um profissional qualquer?”

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Carlos não dava o braço a torcer. Quem poderia garantir que ele não teria dado um jeito de frequentar a escola, de se formar e de conseguir um emprego na mesma empresa que, ainda recentemente, o promovera?

 

William não disse nada, mas seu semblante se endureceu. Carlos não tinha ideia de até onde a força de vontade podia levar uma pessoa. Ele, William, era dotado daquela mesma força de vontade e procurara exercê-la de todas as maneiras possíveis em sua busca pela formação como suboficial. Em primeiro lugar, mudara-se para Bogotá, para tirar o diploma do ensino médio. Passou no exame, mas com uma nota baixa – oito meses se matando de estudar em meio período não foram o bastante para compensar todos os anos fora da escola. Embora só tenha se classificado para a lista de espera do curso de suboficiais, não esmoreceu. Fez as malas e viajou até o quartel que oferecia o curso. Ao chegar, um comandante o reconheceu. “Com paciência e perseverança, tudo se alcança”, disse-lhe o oficial.

O comandante mexeu os pauzinhos para ajudar William, mas, ao tratarem da papelada, descobriram que William já tinha dado baixa e fora indenizado por uma enfermidade contraída à época em que servira. A indenização não permitia que ele se realistasse. Era o fim, não havia mais o que fazer. Ele jamais poderia ser um suboficial, teria de bater em retirada. Mas o comandante não lhe dissera que quem perseverava conseguia? William ainda permaneceu cinco dias por ali, se escondendo e se misturando entre os soldados. Esperava que, de alguma maneira, as coisas pudessem se resolver. Mais do que isso, não conseguia ir embora: partir significava desistir. No sexto dia, um oficial simpático, mas armado da cabeça aos pés, o acompanhou até a rodoviária e o embarcou pessoalmente no ônibus para Bogotá.

William sabia que Carlos não conhecia aquela parte de sua história – ele certamente ignorava que, aos 6 anos de idade, William costumava caminhar cinco horas com a mãe até aquela cidade, La Paz, só para comprar mantimentos. Dormiam na casa de uma mulher, e depois retomavam a estrada, carregando os mantimentos nas costas. E Carlos não tinha como saber, nem jamais saberia, quantas horas William, na adolescência, passara cortando cana, a pele ardendo do sol, os talos de cana-de-açúcar pinicando no corpo. Depois, carregava 25 quilos de cana por vez, um trabalho bruto, doloroso, árduo. Carlos vivera aqueles mesmos anos, William sabia, flertando com garotas numa excelente escola pública, jogando basquete e acumulando pontos em algum tipo de videogame que ele não conhecia nem de nome.

Carlos estava errado, William tinha certeza. Às vezes, força de vontade não basta. Se tivesse crescido em Santander, hoje não seria um contador em ascensão. E a insistência de Carlos em afirmar o contrário soava como um insulto a tudo que William tivera de suportar – àquela vida que ele, a bem da verdade, suportara no lugar de Carlos.