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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011 Do Príncipe aos Discorsi: Algumas Considerações sobre o Pensamento Político de Maquiavel Du Principe à les Discorsi: Quelques considerations sur la pensée politique de Machiavel Felipe Fernandes Santana 1 - Universidade Federal de São João del Rei Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a aparente contradição entre duas obras de Maquiavel, O Príncipe e os Discorsi. A história do pensamento comumente associa o nome de Maquiavel à ação interesseira e desleal baseada unicamente no livreto O Príncipe, deixando de lado a grande defesa que Maquiavel faz do republicanismo em os Discorsi. Buscaremos demonstrar que tal contradição é uma falácia e não se sustenta quando se procede à uma análise atenta do pensamento de Maquiavel. Palavras-chave: Estado, Política, Sociedade. Résumé: Cet article vise à analyser la contradiction apparente entre deux œuvres de Machiavel, les Discorsi et Le Prince. L'histoire de la pensée associe communément le nom de Machiavel à l'action auto-intéressée et injuste fondée uniquement sur le livret Le Prince, laissant de côté la grande défense du républicanisme que Machiavel fait dans les Discorsi. Nous chercherons à démontrer que cette contradiction est un sophisme et ne tient pas, si on fait une analyse minutieuse de la pensée de Machiavel. Mots-clés: Etat, Politique, Société. em dúvida, Maquiavel é quase sempre muito mais citado do que lido. É possível falarmos de uma ruptura entre a política e a moral realizada por Maquiavel? Seria o caso de nos perguntarmos também por que Maquiavel causou tanto alvoroço na cultura ocidental, chegando a gerar o que se considera “o problema Maquiavel”. O que não resta dúvida é que o século XX se abre com uma recusa a toda espécie de idealismo. Chevallier nos diz: Quanto ao século XX, votado às guerras gigantescas, o mundo liberal se vê assaltado, de todos os lados, pela maré autoritária, em breve totalitária, o idealismo político perde terreno diante dos “realismos”, que se valem, mais ou menos abertamente, de Maquiavel e de O Príncipe (CHEVALLIER, 1990, p. 48). 1 Graduando em filosofia pela UFSJ. Orientador: Prof. Dr. Adelmo José da Silva. E-mail: [email protected]. Agência Financiadora: CNPq S

Do principe aos discorsi Algumas consideracoes sobre o ... · Maquiavel realmente que tanto a fundação de uma nação, de um Estado, quanto a reforma de uma cidade corrupta requeriam

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Do Príncipe aos Discorsi: Algumas Considerações sobre o Pensamento Político de Maquiavel

Du Principe à les Discorsi: Quelques considerations sur

la pensée politique de Machiavel

Felipe Fernandes Santana1 - Universidade Federal de São João del Rei Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a aparente contradição entre duas obras de Maquiavel, O Príncipe e os Discorsi. A história do pensamento comumente associa o nome de Maquiavel à ação interesseira e desleal baseada unicamente no livreto O Príncipe, deixando de lado a grande defesa que Maquiavel faz do republicanismo em os Discorsi. Buscaremos demonstrar que tal contradição é uma falácia e não se sustenta quando se procede à uma análise atenta do pensamento de Maquiavel. Palavras-chave: Estado, Política, Sociedade. Résumé: Cet article vise à analyser la contradiction apparente entre deux œuvres de Machiavel, les Discorsi et Le Prince. L'histoire de la pensée associe communément le nom de Machiavel à l'action auto-intéressée et injuste fondée uniquement sur le livret Le Prince, laissant de côté la grande défense du républicanisme que Machiavel fait dans les Discorsi. Nous chercherons à démontrer que cette contradiction est un sophisme et ne tient pas, si on fait une analyse minutieuse de la pensée de Machiavel. Mots-clés: Etat, Politique, Société.

em dúvida, Maquiavel é quase sempre muito mais citado do que lido. É

possível falarmos de uma ruptura entre a política e a moral realizada por Maquiavel? Seria o

caso de nos perguntarmos também por que Maquiavel causou tanto alvoroço na cultura

ocidental, chegando a gerar o que se considera “o problema Maquiavel”. O que não resta

dúvida é que o século XX se abre com uma recusa a toda espécie de idealismo. Chevallier nos

diz:

Quanto ao século XX, votado às guerras gigantescas, o mundo liberal se vê assaltado, de todos os lados, pela maré autoritária, em breve totalitária, o idealismo político perde terreno diante dos “realismos”, que se valem, mais ou menos abertamente, de Maquiavel e de O Príncipe (CHEVALLIER, 1990, p. 48).

1 Graduando em filosofia pela UFSJ. Orientador: Prof. Dr. Adelmo José da Silva. E-mail: [email protected]. Agência Financiadora: CNPq

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O pensamento inovador de Maquiavel se inscreve dentro de uma virada

epistemológica que a Renascença vinha sofrendo há algum tempo. Bem antes de Maquiavel,

com Copérnico e Galileu, já evidenciamos um movimento de ruptura de nível ontológico nas

bases paradigmáticas do pensamento ocidental.

A partir da imensa literatura maquiaveliana, podemos tirar uma primeira conclusão

muito elementar: a obra do nosso autor está longe de inserir-se num campo de reflexão em

que se possa trabalhar com tranquilidade. Acreditamos, conforme Bignotto e Croce, que a

obra maquiaveliana é habitada por um certo mistério, qual seja, afinal Maquiavel operou a

cisão definitiva entre a ética e a política ou estaria apenas em busca da verdade efetiva dos

fatos?

Lefort (1972, p. 10), alude ao fato de o nome de Maquiavel ter ganhado tal significado

que o utilizamos mesmo sem jamais ter contato com sua obra:

Estranha aventura, e que intriga, pois basta a mais rápida iniciação a história da sociedade em que viveu Maquiavel, e de uma leitura mesmo superficial de suas obras para se persuadir que ele não foi nem o praticante nem o autor dessa perversão política que se nomeia maquiavelismo [...] (LEFORT, 1971, p. 23, tradução nossa).2

Uma primeira leitura da obra maquiaveliana poderia parecer que há um autor para o

Príncipe e outro para os Discorsi. Na primeira obra encontramos um autor focado no papel do

governante, na segunda um autor buscando firmar as bases do poder dos governandos. Para

Bignotto, o Maquiavel mais extenso é republicano, enquanto o Maquiavel mais curto é

monárquico. Em relação ao Príncipe, Lefort argumenta:

Se a primeira questão da obra parece indicar um retrato do pensamento no limite do conhecimento das operações necessárias à conquista e à conservação do poder, com o alargamento de seu objeto, pouco a pouco vemos que é todo o edifício de representações construídos sobre a base de concepções clássicas e cristãs que se encontra arruinado e uma nova relação com a política se instaura (LEFORT, 1971, p. 453, tradução nossa).3

Se tínhamos a impressão de que o Príncipe respondia todas as nossas questões sobre a

2 Étrange aventure, et qui intrigue, car il suffit de l'initiation la plus rapide à l'histoire de la société où vivait Machiavel, et d'une lecture, si superficielle soit-elle, de ses ouvrages, pour se persuader qu'il ne fui ni le pratiquant, ni l'auteur de cette perversion politique qu'on nomme machiavélisme [...]. 3 Si la première question de l`ouvrage semble indiquer un retrait de la pensée aux limites de la connaissance des opérations nécessaires à la conquête et à la conservation du povoir, avec le déplacement de son objet, c'est peu à peu tout l´édifice de représentations construit sur la base des concptions classiques et chrétiennes qui se trouve ruiné et un rapport neuf à la politique qui s´instaure.

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ação política, o que vemos, e o que Lefort nos indica, é que na verdade o Príncipe abre uma

série de discussões que nascem exatamente onde esse edifício teórico solidamente construído

desaba. Para Lefort (1972, p. 453), o Príncipe nos coloca questões como “o que é o poder, a

divisão do Estado e da sociedade, a divisão de classes e os desejos das classes”. Para

responder tais questões, devemos observar a obra que se segue ao Príncipe, os Discorsi. A

questão, levantada por Lefort (1972, p. 453) é: “Devemos supor que essa segunda obra

prossegue o trabalho começado, desenvolvendo suas consequências olhando de uma nova

maneira ou se ela marca um novo começo distante do primeiro, ou apagando-o?” Como

demonstraremos mais adiante, Maquiavel mesmo nos oferece a resposta para tal questão.

Porém o que intriga é que Maquiavel não tenha dito isso nos Discorsi, uma vez que está claro

que o Príncipe está em evidente contraste com os Discorsi. Embora, como diz Escorel (1984,

p.24), entre ambos se possa estabelecer vários pontos de contato.

Escorel (1984, p. 24) esclarece que, se repetidas vezes Maquiavel foi acusado de

despotismo, isso se deve a que o Príncipe foi seu livro mais difundido e não poucas vezes a

única obra utilizada para fundamentar essa crítica. Para Escorel:

Hoje em dia, entretanto, ninguém mais ousaria definir o pensamento político de Maquiavel sem ter presentes as considerações apologéticas que nos deixou sobre a República romana, as quais colocam na devida perspectiva histórica sua defesa do absolutismo. Quer-nos parecer, porém, injustificável exaltar o republicanismo de Maquiavel a ponto de, como faz J. W. Allen, qualificar O Príncipe de simples livro de circunstância, apenas parcialmente sincero. Porque, na verdade, no pensamento maquiavélico, a apologia da monarquia absoluta, uma vez bem compreendida, pode legitimamente coexistir, sem que por isso seu autor deva ser acoimado de insincero, com as manifestas simpatias que os Comentários revelam pela forma republicana de governo (1984, p.24).

Antes de mais nada devemos ter em mente que o Príncipe foi escrito dentro de um

determinado contexto político, qual seja: a desestruturação provocada pela corrupção e pela

anarquia que reinava nos Estados italianos. Maquiavel apontava como solução para essa

situação a intervenção de um governante absoluto cheio de virtù, visando a unificação e a

libertação da Itália do domínio estrangeiro. Como analisa Escorel (1984, p.24), “acreditava

Maquiavel realmente que tanto a fundação de uma nação, de um Estado, quanto a reforma de

uma cidade corrupta requeriam a intervenção da vontade absoluta de um legislador”. Desta

forma, para aquele momento específico, para aquela Itália debilitada por conflitos, atacada por

forças estrangeiras, Maquiavel propunha a intervenção de um poder forte que catalisasse as

forças italianas e reconduzisse a Itália para o caminho da glória. Portanto, conforme Escorel

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(1984, p.24), “o absolutismo régio se coloca, destarte, como um recurso necessário em

determinadas situações históricas, particularmente em momentos de reforma ou criação de um

Estado, como era o caso do século XVI”. Daí se segue, na reflexão maquiaveliana, que um

Estado que se pretenda duradouro, não deve ter por base apenas a virtù de um governante. É

necessária uma base constitucional que lhe sustente, e que ofereça garantias que a excelência

de seu governo prossiga mesmo após o governo desse príncipe virtuoso. Conforme Maquiavel

mesmo no diz: “Se um só homem é capaz de estabelecer normas para um Estado, este durará

bem pouco tempo, se um só homem continuar a suportar todo o peso. Não acontece o mesmo,

quando uma guarda é confiada a um grande número de pessoas” (Discorsi L. I, c. II, X e XI).

Para Escorel (1984, p.24), esse “segundo momento de vida do Estado que Maquiavel

se dedicou nos Discorsi”, representa uma evolução especulativa em relação à doutrina

formulada no Príncipe, “pois nele se efetua a passagem da concepção do Estado como obra de

engenharia do indivíduo de exceção à teoria do Estado-Civilização, do Estado força ao

Estado-Regime, cujo protótipo será para Maquiavel a República romana”.

Constatamos desta forma que os Discorsi não representam uma incoerência no

pensamento de Maquiavel. Didaticamente e fiel à sua teoria, Maquiavel desenvolve uma

reflexão monárquica absolutista que crie bases para uma república. Citando Luigi Russo,

Escorel nos oferece uma interpretação chave do pensamento maquiaveliano:

Russo, a quem devemos páginas extremamente agudas sobre Maquiavel, observa ainda que se O Príncipe é um libelo de política militante que “esgota as exigências da prática política do Renascimento, os Comentários são uma construção ideal, uma obra de educação política, uma sistematização mais refletida uma projeção na história passada e futura das ‘lezioni delle cose del mondo’, um acolhimento menos polêmico de alguns motivos da ética tradicional, por demais impetuosamente negados ou transcurados em O Príncipe” (1984, p. 25).

Como humanista que era, Maquiavel acreditava que o passado, mais precisamente um

passado clássico romano, guardava as chaves para o bom governo. Desta forma, já na leitura

do proêmio dos Discorsi Maquiavel deixa bem claro a tarefa a que se propõe, qual seja:

estabelecer um paralelo entre os grandes feitos e a degradação cada vez maior de Florença.

Estudando a história de Roma, Maquiavel queria evidenciar o desenvolvimento do Estado,

desde seu nascimento até sua morte. Maquiavel acreditava poder encontrar na história de

Roma a resposta para suas questões. Ele via na virtù e na prudência romana os elementos

básicos que contribuiriam para fazer dela um Estado tão poderoso. Ressaltamos porém, como

se era entendida por Maquiavel essa imitação da antiguidade que ele vai propor no proêmio

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dos Discorsi. Aqui nos servimos da explicação que Lefort nos dá:

O artista não é aquele que copia servilmente um fragmento de estátua; se ele imita, é porque o objeto lhe devolve o poder da vida e que, convertido em modelo, ele se torna, como coisa do passado, mais presente que todo que povoa o universo imediato dado como presente. Entretanto a diferença do presente e do passado é apreendida pela política em uma experiência singular. A estátua antiga pode facilmente continuar, animando a criação moderna, um monumento e um emblema da Antiguidade; mas a República romana não é nem um monumento e um emblema; com ela o passado retoma o presente, a história revela que não é nem antiga nem moderna; a diferença de tempo não se abole, mas ela se acaba, pois a verdade antiga é assujeitada pela experiência Florentina (1972, p. 463, tradução nossa).4

Os Discorsi estão divididos em três livros. No primeiro livro encontramos um estudo

detalhado dos diversos modos utilizados para se fundar os Estados, as diversas modalidades

de governo e a organização dos mesmos. No segundo livro, Maquiavel analisa como se

engrandecem os Estados e como se conquistam novos. No terceiro livro ele reflete sobre

como acontece a decadência dos Estados. Entretanto, alerta Escorel, não devemos crer que

esses temas estejam assim didaticamente expostos, ao contrário, “seria mesmo difícil

determinar com rigor o tema central da obra, escrita evidentemente ao sabor das leituras e das

preocupações de momento do autor, que esteve longe de ser um pensador temático” (1984, p.

25). De qualquer forma, por mais que Maquiavel faça grandes digressões, jamais perde de

vista o seu foco: a fonte da sabedoria se encontra na República romana.

O trabalho de Maquiavel surge de uma constatação indignada: os artistas buscam

inspiração nos antigos, os médicos também a buscam, mas os juristas, os encarregados da

ação política não a buscam. Maquiavel constata que:

Para fundar uma República, manter os Estados; para governar um reino, organizar um exército, conduzir uma guerra, dispensar a justiça, não encontramos nenhum príncipe, nenhuma república, nenhum capitão, nem cidadão que recorra ao exemplo dos antigos. (Discorsi L. II, c. II, IX).

Segundo Lefort (1972, p. 477) a força da tarefa que Maquiavel quer impor aos seus

4 L'artiste n'est pas celui qui copie servilement un fragment de statue; s'il imite, c'est que l'objet s'est par lui rendu à sa puissance de vie et que, converti en modèle, el devient, em tant que chose du passé, plus présent que tout ce qui peuple l'univers immédiatement donné comme présent. Pourtant la defférence du présent et du passé est appréhendée par le politique dans une expérience signulière. La estatuaire antique peut bien demeurer, en animant la création des modernes, un monument et un emblème de l'Antiquité; mais la République romaine n'est ni monument ni emblème; avec elle le passé se saisit du présent, l'histoire se dévoile qui n'est ni antique ni moderne; la différenc des temps ne s'abolit pas, mais elle se brouie puisque l'vérité de l'ancien est assujettie à l'expérience du Floretin.

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contemporâneos está em afirmar que nenhum chefe civil, ignorando os antigos, não quer

imitá-los, Maquiavel faz parecer que quer subverter a tradição guardiã da tradição antiga. “En

suggérante que l'amour porté à Rome par tant Florentins a pour fonction de couvrir leur

impuissance à affronter les tâches du présent, il avertit sans doute que son interprétation de

Tite-Leve et de l'histoire romaine a la portée d'une démystification”.

Maquiavel quer corrigir esse erro. Ele está seguro de que a imitação da Antiguidade é

a saída para os problemas enfrentados em seu tempo. E essa ideia tanto mais se afirmou em

ele quanto mais ele percebia, conforme demonstra Escorel (1984, p. 26), que os mesmos

acidentes se repetem na história, “num momento de permanente retorno histórico”.

Maquiavel tinha uma fé ingênua na história. Para Escorel, sua concepção de história

era a seguinte:

Todas as coisas do mundo, em todos os tempos, dizia ele, encontram seu paralelo nos tempos antigos. O que resulta do fato de serem elas dirigidas pelos homens, que têm e sempre tiveram as mesmas paixões, de tal modo que necessariamente os efeitos são os mesmos. Tinha Maquiavel, como de resto seus contemporâneos, uma concepção ingênua e dogmática da história, a qual o levava a julgar esta última um depositário de exemplos universalmente válidos, ignorando o caráter particular da experiência histórica. Villari adverte que Maquiavel não abordou a história de Roma com espírito crítico, mas aceitou-a indiscriminadamente, sem fazer mesmo qualquer distinção entre os fatos históricos e a tradição legendária, sobretudo em torno da origem de Roma (1984, p. 26).

Villari, citado por Escorel (1984, p. 26), conclui daí que Maquiavel não via a

possibilidade de um melhoramento nos costumes políticos, já que partia da ideia de que os

homens são sempre os mesmos e de que a história se repete. Prosseguindo, Escorel

argumenta:

Faltando-lhe, ainda, como à sua época em geral, uma concepção do devenir histórico – que, de resto, esboçada por Vico, só entrou na ciência e na cultura ocidentais depois da revolução filosófica iniciada por Kant, como observa Villari – Maquiavel não dispunha de critérios relativos para julgar diversamente as ações e a conduta política, segundo a variedade dos tempos, as diferentes sociedades e modalidades dos povos, considerando que aquilo fora oportuno, necessário e útil numa determinada época estava logicamente justificado para sempre (1984, p. 26).

Porém, como bem explica Escorel (1984), Maquiavel não era de forma nenhuma um

fatalista. Certamente Maquiavel não possuía a noção que hoje temos de devir histórico, porém

isso não nos autoriza a daí concluir que ele se fiava piamente à repetição dos fatos. Está

presente na obra de Maquiavel um certo relativismo, a partir do qual em Maquiavel sempre há

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espaço para a adequação entre a forma de governo e o meio. Daí, conclui Escorel, (1984)

Maquiavel não foi nem um apologista exclusivo do absolutismo nem um puro defensor do

ideal republicano, nem tampouco um meio termo entre essas duas posições, só podendo ser

entendido se considerarmos como um pensamento que antes de tudo dá a cada caso seu

devido tratamento.

O fato é que Maquiavel rompe com o modelo platônico para o qual a política se

regulava a partir de um modelo perfeito. A Maquiavel vai interessar a ação pura, se é que

assim podemos dizer. Sabemos que para os gregos a sociedade era fundada na ordem da

physis, e as leis (nómos) de uma cidade deveriam corresponder a essa physis. Aristóteles foi o

grande articulador dessa forma de pensar.

A ideia aristotélica de cosmos é de um todo organizado em que cada parte possui seu

exato lugar no mundo. É exatamente esse modo de pensar que o homem renascentista irá

abandonar em favor de uma concepção de mundo, como dirá Maquiavel, mais condizente

com os fatos. Não é difícil imaginar o nível da mudança que se deu na mentalidade do homem

renascentista. Copérnico havia acabado de demonstrar que a terra não era o centro do

universo, e isso trouxe grandes consequências também para a posição do homem na terra. O

homem se vê questionado naquilo que ele tem de mais profundo, seu próprio ser no mundo. A

physis deixa de fazer parte do universo conceptual do homem, doravante o que há é apenas

um espaço no qual todas as ações estão por serem tomadas. Como alerta Gomes, é importante

termos em mente que “se o Renascimento é a porta de entrada da modernidade, ela não se

confunde com esta” (1992, p.14). O Renascimento é um período incerto, quase experimental,

no qual não se sabe bem ao certo onde tudo vai dar. Para Gomes, “o que temos é um universo

que tenta se constituir ao preço da destruição de um outro que se funda na concepção

aristotélico-medieval de um mundo ordenado e hierarquizado (1992, p. 15)”.

Diante desse quadro, o homem renascentista se encontra mesmo em sérios apuros, pois

se antes a physis fundava a cidade, dando-lhe uma coesão uma finalidade, e agora, o que

orientaria o homem?

O homem, antes hierarquicamente fixo numa determinada posição, agora tem a

liberdade de escolher o lugar em que quer ficar. O homem não se encontra mais diante de um

mundo imutável, a partir de agora ele pode interferir no mundo e mesmo conduzir-lhe os

movimentos. O mundo é um espaço de possibilidades.

Para Maquiavel não há modelos que possam guiar minha ação política, pois está na

pura iminência do seu desenvolvimento e envolta numa bruma de incertezas. E seu sucesso

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dependerá em grande parte da virtù dos personagens que se dispõem a jogar o jogo da

política. Conforme Escorel:

Maquiavel entendeu que os Estados não são uniformes, mas variam segundo circunstâncias históricas, condições de tempo, de clima e de espaço, nascendo e se desenvolvendo em diferentes ambientes físicos, econômicos e sociais – circunstâncias, condições e ambientes que imprimem uma particular estrutura e uma individualidade própria a cada um -, Maquiavel não erigiu nenhuma forma de governo em ideal político aplicável indistintamente os povos (1984, p. 31).

Francisco Ercole, que segundo Escorel (1984) nos deu uma importante contribuição ao

pensamento fragmentado de Maquiavel, nos mostra que o Republicanismo de Maquiavel foi

um tanto quanto relativo, uma vez que a possibilidade da república está condicionada por uma

série de fatores (virtudes morais, por exemplo), sendo muito mais o ápice de um processo

político do que seu começo. Da mesma forma para Maquiavel, uma monarquia não se adapta

num povo acostumado com a igualdade social e política.

O elogio que Maquiavel faz da República romana se centra principalmente na

capacidade que esta teve de lidar com seus conflitos. Para ele, a estabilidade e a força política

que Roma atingiu estavam principalmente centradas paradoxalmente na tensão que havia

entre a força do povo e a dos poderosos. Os conflitos, dentro da ótica maquiaveliana, não são

algo que se deva eliminar numa sociedade, mas administrados de forma que a tensão que eles

geram possa estar sempre presente. Pois acreditava Maquiavel que o desejo do povo

raramente é pernicioso à liberdade, porque tudo que eles querem é não serem oprimidos, ao

passo que os governantes sempre querem aumentar o seu poder. A manutenção de uma e

outra disposição é o que gera um bom estado social.

Em várias passagens dos Discorsi podemos evidenciar o quanto Maquiavel atribui ao

povo o papel decisivo no desenvolvimento saudável do corpo social. Escorel nos explica que

o capítulo LVIII dos Discorsi

Não deixa dúvida quanto à convicção de Maquiavel de que a participação popular é o fator decisivo da vida e força de um Estado, e de que a função do soberano, seja a de organizar um Estado, seja a de reformar uma sociedade corrupta, corresponde apenas a um momento determinado da trajetória política de um povo (1984, p. 40).

Voltemos agora ao nosso objetivo, qual seja, o de situar o Príncipe e os Discorsi,

obras aparentemente contrastantes, dentro do pensamento de Maquiavel. Inicialmente, como

escreve Lefort (1972), os Discorsi parecem ser mais limitados se comparados com o Príncipe,

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pois aqueles circunscrevem seu esforço a análise de textos antigos. Porém o diferencial

certamente desconcertante está em que os Discorsi clamam por uma imitação, num

movimento que completa o percurso iniciado com o Príncipe, a saber, romper com o antigo

paradigma estabelecido por Aristóteles e Cícero. Lefort chega a afirmar que “a audácia das

fórmulas sugere desta vez que os Discorsi são aos olhos do seu autor a obra da fundação, da

qual o Príncipe foi apenas uma primeira tentativa de descoberta” (1972, p. 455).

Maquiavel dedicou os Discorsi a dois jovens republicanos com os quais discutia

política e literatura nos jardins de Rucellai. Provavelmente, segundo Bignotto (1991, p. 74),

Maquiavel estaria querendo, ao dedicar seu livro a dois jovens republicanos, mudar a imagem

que sua dedicatória do Príncipe teria deixado. “Se a prudência é a marca da dedicatória, a

audácia será a do proêmio. Logo nas primeiras linhas, Maquiavel anuncia a intenção de se

distanciar do passado” (BIGNOTTO, 1991, p. 77).

O contraste mais importante desse primeiro capítulo não é, no entanto, entre Maquiavel e os humanistas, mas entre Roma e Florença. Ao apelar para a diferença das fundações, e ao fazer de Roma o modelo da república livre, nosso autor nos convida não só a compreender seu tempo através do confronto com a Antiguidade, mas a compreender a política através do estudo de suas formas mais perfeitas (1991, p. 79).

O historiador inglês Quentin Skiner (1988, p. 61) vê na ausência de impedimentos no

momento da fundação, tal como descreve Maquiavel a fundação romana, a definição formal

da liberdade. Segundo Skiner, ser livre significaria, para o secretário florentino, poder agir

sem depender do concurso de outros agentes, para tomar suas decisões partindo apenas de sua

própria vontade. Bignotto argumenta:

Dois novos pontos de partida para nossa pesquisa parecem, no entanto, surgir da leitura do segundo capítulo. Em primeiro lugar, aprendemos que a liberdade pode existir em “germe” em qualquer forma constitucional: a monarquia romana é a demonstração. Em segundo lugar, aprendemos que Roma deve ser considerada modelo não porque tenha tido uma fundação perfeita, mas, ao contrário, porque foi capaz de operar transformações que sabemos extremamente difíceis de serem levadas a bom termo. (1991, p. 82).

Pelo que foi dito, afirmamos que o pensamento de Maquiavel não se contradiz ao

propor duas etapas distintas no percurso de construção de uma sociedade. Há momentos

distintos, atitudes distintas. É certo que Maquiavel era um republicano, não sendo a tirania

uma forma de governo desejada em si mesma, mas um passo rumo ao republicanismo, à

liberdade.

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Referências BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano. São Paulo: Loyola, 1991. CHAVALLIER, Jean-Jacques. O Príncipe, de Maquiavel. In: CHAVALLIER, Jean-Jacques. As Grandes Obras Políticas: de Maquiavel aos Nossos Dias. Tradução de Lydia Christina. 5. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1990, p. 15-48. ESCOREL, Lauro. O Pensamento político de Maquiavel. In: Humanidades. Brasília, n. 8, p. 18-52, jul./set. 1984. GOMES, João Carlos Lino. Maquiavel: o poder e instauração da ordem política. 1992. 121f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. LEFORT, Claude. Le travail de l’ouevre: Machiavel. Paris: Gallimard, 1972. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe/Escritos políticos. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores). SKINNER, Quentin. Maquiavel. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Submetido em: 26/09/2011 Aceito em: 24/11/2011