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LIVRE ARBÍTRIO …ou como conciliar o determinismo com a liberdade da vontade Proposta de John Searle

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LIVRE ARBÍTRIO …ou como conciliar o determinismo com a liberdade da vontade

Proposta de John Searle

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Searle, J. - A liberdade da Vontade

SEARLE, J. [1984] (1987). Mente, Cérebro e Ciência, Capítulo VI.

Lisboa: ed. 70. Tradução de Artur Morão. Os números a meio das pgs. correspondem à paginação da tradução em português. O índice, as palavras-chave, o resumo e os subtítulos são da responsabilidade do organizador.

A LIBERDADE DA VONTADE Índice 1. O PROBLEMA: a natureza do livre arbítrio ou como conciliar o determinismo com a liberdade da vontade ............. 1

2. Argumento a favor do determinismo ................................................................................................................... 2 3. Argumento a favor da liberdade da vontade ........................................................................................................ 2 1ª Solução: A tese do compatibilismo determinista ................................................................................................... 3

Refutação do compatibilismo determinista ....................................................................................................... 3 2ª Solução: A tese do compatibilismo possibilista ..................................................................................................... 3

1ª Razão para rejeitar a tese do compatibilismo possibilista: a existência duma liberdade ilusória .................... 4 2ª Razão para rejeitar o compatibilismo possibilista: a existência da vontade livre ............................................... 5

3ª Solução: A tese da redução a microelementos ..................................................................................................... 6 4. Argumentos a favor de uma NOVA POSIÇÃO: O LIBERTARISMO .............................................................................. 6

A relação entre a liberdade da vontade e a consciência ..................................................................................... 6 A natureza intencional da liberdade.................................................................................................................. . 7 Provas do carácter intencional da liberdade: As experiências de Penfield e as experiências imaginárias .............. 8

5. SÍNTESE DOS ARGUMENTOS APRESENTADOS ..................................................................................................... 9 Compatibilismo determinista .............................................................................................................................. 9 Compatibilismo possibilista .............................................................................................................................. 9 Crítica às teses anteriores ................................................................................................................................. 9 A tese aceitável: A liberdade da vontade ........................................................................................................... 9 Conclusão: A tese do autor ou a defesa da liberdade e a autonomia da consciência ......................................... 10

Palavras-chave

Acção humana, liberdade, livre arbítrio, vontade, consciência, determinismo, reducionismo, compatibilismo, possibilismo, libertarismo, intencionalidade

Resumo

O problema que Searle aborda neste texto é o de saber se é possível conciliar a liberdade com o determinismo. Sabendo nós que o determinismo tem sido apresentado como um monismo, i.e. como redução a explicações de estruturas elementares, a investigação do autor é a de procurar se é possível reduzir a natureza humana a uma explicação puramente física. Para tal apresenta várias hipóteses: A tese compatibilista - uma espécie de determinismo moderado, a tese compatibilista possibilista - uma explicação é baseada em factores internos de ordem psicológica e, finalmente, a tese microelementarista - onde o macro depende do micro. Depois de analisar os argumentos a favor e contra estas teses, o autor conclui por uma quarta posição, alternativa, que consiste na defesa do libertarismo. O fundamento desta defesa baseia-se no facto de a acção humana, embora sustentada em sistemas físicos, eles próprios deterministas, não encontra nessa base um impedimento para o exercício do livre arbítrio, reserva fundamental da vontade, conclusão e consequência inegável da autonomia da consciência e na intencionalidade que todo o homem possui.

1. O PROBLEMA: a natureza do livre arbítrio ou como conciliar o determinismo com a liberdade da vontade

Nestas páginas, tentei responder ao que para mim constitui algumas das questões mais incómodas sobre o modo

como nós, enquanto seres humanos, nos harmonizamos com o resto do Universo. A concepção de nós mesmos

como agentes livres é fundamental para toda a nossa autoconcepção. Ora, idealmente, eu gostaria de ser capaz

de conservar tanto as minhas concepções de sentido comum como as minhas crenças científicas. No caso da

relação entre mente e o corpo, por exemplo, consegui fazer isso, mas ao abordar se a questão da liberdade e do

determinismo, sou incapaz como muitos outros filósofos de reconciliar as duas.

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Searle, J. - A liberdade da Vontade

Alguém pensará que, após mais de dois mil anos de preocupação a este respeito, o problema da liberdade da

vontade estaria agora finalmente resolvido. Bem, na realidade, a maior parte dos filósofos pensa que ele já foi

resolvido. Pensam que foi resolvido por Thomas Hobbes e David Hume e por outros filósofos de inclinação

empírica, cujas soluções têm sido repetidas e melhoradas em

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pleno século XX. Pessoalmente, penso que não foi solucionado. Nesta lição, quero fornecer lhes uma explicação

do que o problema é e porque é que a solução contemporânea não constitui uma solução e, em seguida, concluir

tentando explicar porque é que o problema certamente continuará connosco.

2. Argumento a favor do determinismo

Por outro lado, sentimo-nos inclinados a dizer que, uma vez que a natureza consiste em partículas e nas suas

relações recíprocas e, dado que tudo se pode explicar em termos dessas partículas e das suas relações, não há

simplesmente espaço para a liberdade da vontade. Tanto quanto à liberdade humana diz respeito, não interessa

se a física é determinada, como era a física newtoniana, ou se ela permite uma indeterminação ao nível da física

de partículas, como o faz a mecânica quântica contemporânea. O indeterminismo ao nível das partículas na física

não é, efectivamente, um apoio para qualquer doutrina da liberdade da vontade; porque, em primeiro lugar, a

indeterminação estatística ao nível das partículas não mostra qualquer indeterminação ao nível dos objectos que

nos afectam corpos humanos, por exemplo. E, em segundo lugar, mesmo se existe um elemento de

indeterminação no comportamento das partículas físicas mesmo se elas são previsíveis só estatisticamente

apesar de tudo, isso não dá por si mesmo livre curso à liberdade humana da vontade; pois, do facto de as

partículas serem determinadas apenas estatisticamente não se segue que a mente humana possa forçar as

partículas estatisticamente determinadas a desviarem se do seu caminho. O indeterminismo não constitui

evidência alguma de que existe ou poderia existir alguma energia mental da liberdade humana, que pode mover

as moléculas para direcções em que de outro modo elas não se iriam mover. Assim, parece realmente como se

tudo o que sabemos acerca da física nos forçasse a alguma forma de negação da liberdade humana.

A imagem mais forte para transmitir esta concepção de determinismo é ainda a que foi formulada por Laplace:

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«Se um observador ideal conhecesse as posições de todas as partículas num dado instante e conhecesse todas as

leis que governam os seus movimentos, poderia predizer e retrodizer toda a história do Universo». As predições

de um Laplace perito em mecânica quântica contemporânea podem ser estatísticas, mas apesar de tudo não

permitiriam espaço para a liberdade da vontade.

3. Argumento a favor da liberdade da vontade

Chega já de referência ao determinismo. Voltemos agora ao argumento a favor da liberdade da vontade. Como

muitos filósofos salientaram, se existe um facto da experiência com que todos somos familiarizados, é o facto

simples de que as nossas próprias escolhas, decisões, raciocínios e cogitações diferem do nosso comportamento

efectivo. Há toda uma série de experiências que temos da vida em que parece ser um facto da nossa experiência

que, embora tenhamos feito uma coisa, temos a certeza de sabermos perfeitamente bem que poderíamos ter

feito alguma coisa mais. Sabemos que poderíamos ter feito alguma coisa mais, porque escolhemos algo em

virtude de determinadas razões. Mas tínhamos consciência de que havia também razões para escolher outra

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coisa e, na verdade, podíamos ter exigido por essas razões e escolhido essa outra coisa. Uma outra maneira de

apresentar este ponto é dizer: constitui um facto empírico evidente que o nosso comportamento não é previsível

da mesma maneira que é predizível o comportamento dos objectos rolando por um plano inclinado. E a razão por

que não é predizível dessa maneira é porque, muitas vezes, poderíamos ter agido de um modo diferente de como

agimos efectivamente. A liberdade humana é precisamente um facto de experiência. Se desejarmos alguma prova

empírica de tal facto, podemos sem mais aludir à possibilidade que sempre nos cabe de falsificarmos quaisquer

predições que alguém possa ter feito acerca do nosso comportamento. Se alguém prediz que eu vou fazer alguma

coisa, posso muito bem não fazer essa coisa. Ora bem, este tipo de opção não está à disposição dos glaciares que

se movem pelas montanhas

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abaixo ou das bolas que rolam em planos inclinados, ou dos planetas que se movem em torno das suas órbitas

elípticas.

Estamos perante um enigma filosófico característico. Por um lado, um conjunto de argumentos muito poderosos

força nos à conclusão de que a vontade livre não existe no Universo. Por outro, uma série de argumentos

poderosos baseados em factos da nossa própria experiência inclina-nos para a conclusão de que deve haver

alguma liberdade da vontade, porque aí todos a experimentamos em todo o tempo.

1ª Solução: A tese do compatibilismo determinista

Há uma solução corrente para este enigma filosófico. Segundo essa solução, a vontade livre e o determinismo são

perfeitamente compatíveis entre si. Naturalmente, tudo no Mundo é determinado mas,

apesar de tudo, algumas acções humanas são livres. Dizer que são livres não é negar que sejam determinadas; é

afirmar que não são constrangidas. Não somos forçados a fazê las: assim, por exemplo, se um homem é forçado a

fazer alguma coisa porque lhe apontam uma arma, ou se sofre de alguma compulsão psicológica, então, a sua

conduta é genuinamente não livre. Mas se, por outro lado, ele age livremente, se age, como dizemos, por sua

livre vontade, então, o seu comportamento é livre. Claro está, é também completamente determinado, uma vez

que cada aspecto do seu comportamento é determinado pelas forças físicas que operam sobre as partículas que

compõem o seu corpo, tal como operam sobre todos os corpos no universo. Assim, a conduta livre existe, mas é

apenas um cantinho do Mundo determinado – é este canto do comportamento humano determinado onde

certos tipos de força e de compulsão estão ausentes.

Ora bem, porque esta concepção afirma a compatibilidade da vontade livre e do determinismo recebe

habitualmente o nome de «compatibilismo». Penso que é inadequada como solução para o problema e eis

porquê.

Refutação do compatibilismo determinista

O problema em torno da liberdade da vontade não se põe a

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propósito da existência ou não existência de razões psicológicas internas que nos levam a fazer coisas, ou

também de existência de causas físicas externas e de compulsões internas. Põe se antes a propósito de se ou não

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as causas da nossa conduta, sejam elas quais forem, são suficientes para determinar a conduta de maneira que as

coisas têm de acontecer da maneira como acontecem.

2ª Solução: A tese do compatibilismo possibilista

Existe outra maneira de apresentar este problema. Será sempre verdadeiro afirmar de outra pessoa que ela

poderia ter agido de outro modo, permanecendo idênticas todas as outras condições? Por exemplo, admitindo

que uma certa pessoa decidiu votar nos Conservadores, poderia ela ter escolhido votar num dos outros partidos,

permanecendo idênticas todas as outras condições? Ora, o compatibilismo não responde a esta questão de uma

maneira que permita e conceda espaço para a noção corrente da liberdade da vontade. O que ele afirma é que

todo o comportamento é determinado de uma maneira tal que não poderia ter ocorrido de outro modo,

permanecendo idênticas todas as outras condições. Tudo o que aconteceu foi efectivamente determinado. Houve

coisas que foram determinadas por certos tipos de causas psicológicas internas (as que nós chamamos as nossas

«razões de actuar») e não por forças externas ou convenções psicológicas. Assim, ficamos ainda com um

problema. É sempre verdadeiro afirmar de um ser humano que ele poderia ter agido de outra maneira?

A dificuldade que se põe acerca do compatibilismo, pois, é que ele não responde à questão «poderíamos nós ter

agido de outro modo, permanecendo idênticas todas as condições?» de uma maneira que é consistente com a

nossa crença na nossa própria livre vontade. Em suma, o compatibilismo nega a existência da vontade livre,

embora mantenha a sua concha verbal.

Tentemos então recomeçar de novo. Afirmei que temos uma convicção da nossa vontade livre simplesmente

baseada nos factos da experiência humana. Mas, até que ponto são fidedignas essas experiências? Como antes

afir-

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mei, o caso típico, muitas vezes descrito pelos filósofos, que nos inclina a acreditar na nossa própria vontade livre,

é um caso em que defrontamos um feixe de escolhas, raciocinamos acerca da melhor coisa que há a fazer,

tomamos uma resolução e, em seguida, fazemos a coisa que decidimos fazer.

1ª Razão para a rejeição da tese do compatibilismo possibilista: a existência de uma liberdade ilusória

Mas talvez a crença de que tais experiências apoiam a doutrina da liberdade humana seja ilusória. Consideremos

o exemplo seguinte. Uma experiência de hipnose típica tem a seguinte forma. Sob a acção da hipnose, o paciente

recebe uma sugestão pós hipnótica. Pode dizer se lhe, por exemplo, para fazer uma coisa absolutamente trivial e

inócua como, digamos, rastejar pelo soalho. Depois do paciente sair da hipnose, pode entrar em conversação,

sentar se, beber café e então, subitamente, afirmar uma coisa como: «que soalho fascinante existe nesta sala»,

ou «quero examinar este tapete», ou «estou a pensar investir em coberturas de soalho e gostaria de investigar

este soalho». E, em seguida, põe se a rastejar pelo soalho. Ora, o interesse destes casos é que o paciente fornece

sempre alguma razão mais ou menos adequada para fazer o que faz. Isto é, perante si mesmo, parece comportar

se livremente. Nós, por outro lado, temos boas razões para crer que o seu comportamento de nenhum modo é

livre, que as razões que ele aduz para a sua decisão aparente de rastejar pelo soalho são irrelevantes, que o seu

comportamento foi previamente determinado, que efectivamente está enredado numa sugestão pós hipnótica.

Quem quer que conhecesse os factos a respeito dele podia ter predito de antemão o seu comportamento. Ora,

um modo de pôr o problema do determinismo ou, pelo menos, um aspecto do problema do determinismo, é:

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«todo o comportamento humano é assim?» Todo o comportamento humano se assemelha ao homem que age

sob uma sugestão pós-hipnótica?Mas, se tomarmos o exemplo a sério, parece demonstrar ser um argumento a

favor da liberdade da vontade

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e não contra ela. O agente pensava que agia livremente, embora na verdade o seu comportamento fosse

determinado. Mas, no plano empírico, parece me muito improvável que todo o comportamento humano seja

assim. Por vezes, as pessoas sofrem sob os efeitos da hipnose e, por vezes, sabemos que se encontram sob a

influência de impulsos inconscientes que não podem controlar. Mas serão elas sempre assim? É todo o

comportamento determinado por tais compulsões psicológicas? Se tentarmos tratar o determinismo psicológico

como uma afirmação factual acerca da nossa conduta, então, parece ser inteiramente falso. A tese do

determinismo psicológico é que as causas psicológicas prévias determinam todo o nosso comportamento da

maneira como determinam o comportamento do sujeito sob hipnose ou o viciado em heroína. Para esta

concepção, todo o comportamento, de um ou de outro modo, é psicologicamente compulsivo. Mas, as provas

disponíveis sugerem que uma tal tese é falsa. Na realidade, agimos normalmente com base nos nossos estados

intencionais as nossas crenças, esperanças, temores, desejos, etc. e, nesse sentido, os nossos estados mentais

funcionam causalmente. Mas esta forma de causa e efeito não é determinística. Poderíamos ter tido exactamente

esses estados mentais e, apesar de tudo, não termos feito o que fizemos. Tanto quanto às causas psicológicas diz

respeito, poderíamos ter agido de outra maneira. Por outro lado, os exemplos de hipnose e de comportamento

psicologicamente compulsivo são habitualmente patológicos e facilmente distinguíveis da acção livre normal.

Assim, psicologicamente falando, existe espaço para a liberdade humana.

2ª Razão para rejeitar o compatibilismo possibilista: a existência da vontade livre

Mas é esta solução um avanço sobre o compatibilismo? Não estamos justamente a dizer, mais uma vez, que sim,

todo o comportamento é determinado, mas o que chamamos comportamento livre é o tipo determinado por

processos racionais de pensamento? Por vezes os processos conscientes e racionais de pensamento não

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fazem diferença alguma, como no caso da hipnose e, por vezes, fazem, como no caso normal. Os casos normais

são aqueles em que dizemos que o agente é realmente livre. Mas, naturalmente, esses processos racionais e

normais de pensamento são tão determinados como tudo o mais. Assim, mais uma vez, não teremos nós o

resultado de que tudo o que fazemos estava inteiramente escrito num livro de história biliões de anos antes de

termos nascido e, por conseguinte, nada do que fazemos é livre em qualquer sentido filosoficamente

interessante? Se decidimos chamar livre ao nosso comportamento, isso é apenas uma questão de adoptar uma

terminologia tradicional. Assim como continuamos a falar de «pôr do Sol», embora saibamos que o Sol

literalmente não se põe, assim também continuamos a falar de «agir por livre vontade», embora não exista tal

fenómeno.

Uma maneira de examinar uma tese filosófica ou qualquer outra espécie de tese para este assunto é perguntar

«que diferença faria? Quão diferente seria o Mundo, se esta tese fosse verdadeira enquanto oposta ao que seria

o Mundo, se a mesma fosse falsa?» Parte da atracção do determinismo, creio eu, provém de ele parecer

consistente com a maneira como o Mundo funciona realmente, pelo menos, tanto quanto conhecemos algo

acerca dele pela física. Isto é, se o determinismo fosse verdadeiro, então, o Mundo actuaria da mesmíssima

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maneira como actua, e a única diferença seria que algumas das nossas crenças a propósito do seu funcionamento

seriam falsas. Essas crenças são importantes para nós, porque têm a ver com a crença de que poderíamos ter

feito coisas diferentemente da maneira como efectivamente as fizemos. E, por seu turno, esta crença liga se com

crenças acerca da responsabilidade moral e da nossa própria natureza como pessoas. Mas se o libertarismo, que

é a tese da vontade livre, fosse verdadeiro, parece que teríamos de fazer algumas mudanças realmente radicais

nas nossas crenças acerca do Mundo. Para termos uma liberdade radical, parece

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que deveríamos postular a existência, dentro de cada um de nós, de um si mesmo que fosse capaz de interferir

com a ordem causal da natureza, isto é, parece que de certa maneira deveríamos conter alguma entidade que

fosse capaz de desviar as moléculas das suas trajectórias. Não sei se uma tal concepção é sequer inteligível, mas

decerto não se harmoniza com o que sabemos pela física acerca do modo como funciona o Mundo. E não existe a

mínima prova para supormos que deveríamos abandonar a teoria física em favor de uma tal concepção.

Até agora, pois, parece que não chegámos a lado nenhum no nosso esforço para resolver o conflito entre

determinismo e a crença na liberdade da vontade. A ciência não deixa espaço para a liberdade da vontade e o

indeterminismo na física não oferece para ela qualquer apoio. Por outro lado, somos incapazes de abandonar a

crença na liberdade da vontade. Investiguemos ainda um pouco mais estes dois pontos.

3ª Solução: A tese da redução a microelementos

Por que é que não há espaço para a liberdade da vontade na concepção científica contemporânea? Na física, os

nossos mecanismos explanatórios básicos funcionam debaixo para cima. Isto é, explicamos o comportamento das

características de superfície de um fenómeno, como a transparência do vidro ou a liquidez da água, em termos do

comportamento de micropartículas como as moléculas. E a relação da mente com o cérebro é um exemplo de

uma tal relação. As características mentais são causadas e realizadas em fenómenos neurofsiológicos, como

discuti no primeiro capítulo. Mas deparamos com a causação da mente para o corpo, isto é, deparamos com a

causação de cima para baixo, durante uma passagem de tempo; e deparamos com a causação de cima para baixo

durante um certo tempo, porque o nível de cima e o nível inferior ocorrem simultaneamente. Assim, por

exemplo, suponhamos que eu quero causar a libertação da acetilcolina neurotransmissora nas placas terminais

do axónio dos meus neurónios motores; posso fazer isso mediante a simples

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decisão de levantar o meu braço e, em seguida, de o levantar. Aqui, o acontecimento mental, a intenção de

levantar o meu braço causa o acontecimento físico, a libertação da acetilcolina – um caso de causação de cima

para baixo, se é que alguma vez houve algum. Mas a causação de cima para baixo opera unicamente porque os

acontecimentos mentais se baseiam na neurofisiologia para se iniciarem. Assim, em correspondência com a

descrição das relações causais que vão de cima para baixo, há uma outra descrição da mesma série de

acontecimentos, onde as relações causais ocorrem inteiramente no fundo, isto é, constituem totalmente uma

questão de neurónios e de excitações neuronais nas sinapses, etc. Enquanto aceitarmos esta concepção do modo

como a natureza opera, então não parece haver qualquer espaço para a liberdade da vontade, porque, nesta

concepção, a mente pode apenas afectar a natureza enquanto é uma parte da natureza. Mas, se assim é, então,

tal como o resto da natureza, as suas características são determinadas nos microníveis básicos da Física.

Eis um ponto absolutamente fundamental deste capítulo, deixem me repetir. A forma de determinismo que, em

última análise, é incómoda não é o determinismo psicológico. A ideia de que os nossos estados da mente são

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suficientes para determinar tudo o que fazemos é provavelmente falso. A forma incómoda de determinismo é

mais básica e fundamental. Visto que todas as características de superfície do Mundo são inteiramente causadas

por e realizadas em sistemas de microelementos, o comportamento dos microelementos é suficiente para

determinar tudo o que acontece. Uma tal imagem de «pernas para o ar» do Mundo admite a causação de cima

para baixo (as nossas mentes, por exemplo, podem afectar os corpos). Mas a causação de cima para baixo

funciona apenas porque o nível superior já está causado por e realizado nos níveis inferiores.

4. Argumentos a favor de uma NOVA POSIÇÃO: O LIBERTARISMO

(a) A relação entre a liberdade da vontade e a consciência

Muito bem, abordemos a seguinte questão óbvia. O que é que na nossa experiência nos impossibilita aban-

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donar a crença na liberdade da vontade? Se a liberdade é uma ilusão, por que é que é uma ilusão que,

aparentemente, somos incapazes de abandonar? A primeira coisa a observar a propósito da concepção da

liberdade humana é que ela está essencialmente ligada à consciência. Apenas atribuímos liberdade aos seres

conscientes. Se, por exemplo, alguém construir um robot que cremos ser totalmente inconsciente, nunca

sentiríamos qualquer inclinação e dizer que ele é livre. Mesmo se achássemos o seu comportamento aleatório e

impredizível, não diríamos que actua livremente no sentido em que nos pensamos a nós mesmos como agindo

livremente. Se, por outro lado, alguém construir um robot acerca do qual nos convencemos de que tem

consciência, tal como nós temos então, seria, pelo menos, uma questão aberta de se ou não este robot tinha

liberdade da vontade.

O segundo ponto a observar é que não é qualquer estado da consciência que nos fornece a convicção da

liberdade humana. Se a vida consistisse inteiramente na recepção de percepções passivas, então, parece me que

nunca conseguiríamos formar a ideia da liberdade humana. Se nos imaginássemos a nós mesmos totalmente

imóveis, totalmente incapazes de nos movermos e incapazes até de determinarmos o curso dos próprios

pensamentos, mas, apesar de tudo, recebendo estímulos, por exemplo, suaves sensações dolorosas periódicas,

não haveria a menor inclinação para concluirmos que temos liberdade da vontade.

(b) A natureza intencional da liberdade

Disse antes que a maior parte dos filósofos pensam que a convicção da liberdade humana está essencialmente

ligada ao processo da decisão racional. Mas penso que isso é só parcialmente verdadeiro. De facto, ponderar

razões é apenas um caso muito especial da experiência que nos fornece a convicção da liberdade. A experiência

característica que nos dá a convicção da liberdade humana, é uma experiência da qual somos incapazes de

arrancar a convicção da liberdade, é a experiência de nos empenharmos em acções humanas voluntárias e

intencionais.

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Na nossa discussão da intencionalidade, concentrámo-nos naquela forma de intencionalidade que consistia em

intenções conscientes na acção, intencionalidade que é causal da maneira como a descrevi, e cujas condições de

satisfação são que certos movimentos corporais ocorram e que ocorram como causados por aquela genuína

intenção na acção. É esta experiência a pedra basilar da nossa crença na liberdade da vontade. Porquê?

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Reflictamos com todo o cuidado no carácter das experiências que temos, quando nos empenhamos nas acções

humanas normais da vida de cada dia. Veremos a possibilidade de cursos alternativos de acção incrustados

nessas experiências. Levantemos o braço ou, atravessemos a rua, ou bebamos um copo de água e veremos que

em qualquer ponto da experiência teremos um sentido de cursos alternativos de acção para nós disponíveis.

Se alguém tentar expressar em palavras a diferença entre a experiência de percepcionar e a experiência de agir é

que, na percepção, se tem esta sensação: «Isto está a acontecer me», e, na acção, a sensação é a seguinte: «Faço

isto acontecer.» Mas a sensação de que «faço isto acontecer» traz consigo a sensação de que «poderia fazer

alguma coisa mais». No comportamento normal, cada coisa que fazemos suscita a convicção válida ou inválida de

que poderíamos fazer alguma coisa mais, aqui e agora, isto é, permanecendo idênticas todas as outras condições.

Eis, permito me afirmar, a fonte da nossa inabalável convicção na nossa vontade livre. É talvez importante

salientar que estou a discutir a acção humana normal. Se alguém está a braços com uma grande paixão, se

alguém se encontra numa cólera imensa, por exemplo, perde esse sentido da liberdade e pode mesmo

surpreender se ao descobrir o que está a fazer.

Desde que atentemos nesta característica da experiência do agir, muitos dos fenómenos intrigantes que antes

mencionei facilmente se explicam. Por que é que, por exemplo, o homem no caso da sugestão pós hipnótica não

está a

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agir livremente no sentido em que nós somos livres, mesmo que ele possa pensar que está a agir livremente? A

razão é que, rum sentido importante, ele não sabe o que está a fazer. A sua efectiva intenção na acção é

totalmente inconsciente. As opções que ele vê disponíveis para si são irrelevantes para a motivação efectiva da

sua acção. Note-se também que os exemplos compatibilistas do comportamento «forçado» implicam ainda, em

muitos casos, a experiência da liberdade. Se alguém me diz para fazer algo apontando me uma arma, mesmo em

tal caso eu tenho uma experiência que tem o sentido dos cursos alternativos da acção nela incrustados. Se, por

exemplo, recebo ordens para atravessar a rua com a arma a mim apontada, parte ainda da experiência é que eu

sinto que literalmente me é facultado em qualquer passo fazer alguma coisa mais. Assim, a experiência da

liberdade é uma componente essencial de qualquer caso do agir com uma intenção.

(c) Provas do carácter intencional da liberdade: As experiências de Penfield e as experiências imaginárias

Mais uma vez, podemos ver isto se contrastarmos o caso normal da acção com os casos de Penfield, onde a

estimulação do córtex motor produz um movimento involuntário do braço ou da perna. Em tal caso, o paciente

experimenta o movimento passivamente, como experimentaríamos um som ou uma sensação de dor.

Diversamente das acções intencionais, aqui não há opções inseridas na experiência. Para vermos com clareza este

ponto, tentemos imaginar que uma parte da nossa vida se assemelhava às experiências de Penfield em grande

escala. Em vez de caminharmos pela sala, sentiríamos simplesmente que o nosso corpo se move através da sala;

em vez de falarmos, simplesmente ouviríamos e sentiríamos que saem da nossa boca. Imaginemos que as nossas

experiências são as de uma boneca puramente passiva, mas consciente, teremos imaginado a remoção da

experiência da liberdade. Mas, no caso típico da acção intencional, não existe modo

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algum de erradicarmos a experiência da liberdade. Ela é uma parte essencial da experiência do agir.

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Isto explica também, creio eu, porque é que não podemos abandonar a nossa convicção de liberdade. Achamos

fácil abandonar a convicção de que a Terra é plana, logo que compreendemos a prova para a teoria heliocêntrica

do sistema solar. De modo semelhante, quando olhamos para o pôr do Sol, apesar das aparências, não nos

sentimos compelidos a crer que o Sol está a pôr se por detrás da Terra. Cremos que a aparência do pôr do Sol é

simplesmente uma ilusão criada pela rotação da Terra. Em cada caso, é possível abandonar uma convicção de

sentido comum, porque a hipótese que a substitui explica as experiências que levaram a essa convicção em

primeiro lugar e explica igualmente um vasto conjunto de outros factos que a concepção de senso comum é

incapaz de explanar. Eis porque deixámos de lado a crença numa terra chata e o «pôr do Sol» literal em favor da

concepção copernicana do sistema solar. Mas não podemos de modo semelhante abandonar a convicção de

liberdade, porque esta convicção está inserida em toda a acção intencional normal e consciente. E usamos esta

convicção para identificarmos e explicarmos as acções. Esse sentido de liberdade não é apenas uma característica

de deliberação, mas é parte de qualquer acção, seja premeditada ou espontânea. O ponto nuclear nada tem

essencialmente a ver com a deliberação. A deliberação é apenas um caso especial.

Não navegamos na Terra com base na suposição numa terra chata, mesmo se a Terra parece chata, mas agimos

no pressuposto da liberdade. Efectivamente, não podemos agir de outra maneira senão com base na suposição

da liberdade, pouco importando o que aprendemos acerca do modo como o Mundo funciona enquanto sistema

físico determinado.

5. SÍNTESE DOS ARGUMNTOS APRESENTADOS

(a) Compatibilismo determinista

Podemos agora tirar as conclusões que estão implícitas nesta discussão. Primeiro se a preocupação a propósito

do determinismo é uma preocupação por que todo o nosso

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comportamento é de facto psicologicamente compulsivo, então, parece que tal preocupação é injustificável. Na

medida em que o determinismo psicológico é uma hipótese empírica como qualquer outra, então as provas que

presentemente temos disponíveis sugerem que ela é falsa. Assim, isto fornece nos uma forma modificada de

compatibilismo. Fornece nos a convicção de que o libertarismo psicológico é compatível com o determinismo

físico.

(b) Compatibilismo possibilista

m segundo lugar, fornece nos mesmo um sentido do «poderia ter» em que o comportamento das pessoas,

embora determinado, é tal que nesse sentido elas poderiam ter agido de outra maneira: o sentido é

simplesmente que, tanto quanto aos factores psicológicos diz respeito, elas poderiam ter agido de outra maneira.

As noções de capacidade, do que somos capazes de fazer e do que poderíamos ter feito, são muitas vezes

relativas a algum conjunto semelhante de critérios. Por exemplo, eu poderia ter votado em Carter nas eleições

americanas em 1980, mesmo se o não fiz; mas não poderia ter votado em George Washington. Ele não foi um

candidato. Assim, há um sentido do «poderia ter», em que há para mim disponível um conjunto de escolhas e

nesse sentido já muitas coisas que eu poderia ter feito, permanecendo iguais todas as outras coisas que eu não

fiz. De modo semelhante, porque os factores psicológicos que operam em mim nem sempre ou mesmo em geral,

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não me impelem a comportar me de uma maneira particular, muitas vezes eu, falando em termos psicológicos

poderia, ter feito algo de diferente daquilo que efectivamente fiz.

(c) Crítica às teses do compatibilismo

Mas, em terceiro lugar, esta forma de compatibilismo ainda não nos fornece nada que se assemelhe à resolução

do conflito entre liberdade e determinismo que o nosso impulso para o libertarismo radical -efectivamente exige.

Enquanto aceitarmos a concepção de pernas para o ar da explicação física, e é uma concepção em que se

baseiam os trezentos anos passados da ciência, então os factos acerca de nós, como quaisquer outros factos de

níveis superiores,

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são inteiramente e causalmente explicáveis em termos inteiramente realizáveis em sistemas de elementos ao

nível microfísico fundamental. A nossa concepção da realidade física não oferece espaço à liberdade radical.

(d) A tese aceitável: A liberdade da vontade

Em quarto e último lugar, por razões que efectivamente não compreendo, a evolução deu nos uma forma de

experiência da acção voluntária onde a experiência da liberdade, isto é, a experiência do sentido de possibilidades

alternativas, está inserida na genuína estrutura do comportamento humano consciente, voluntário e intencional.

Por essa razão, creio, nem esta discussão nem qualquer outra alguma vez nos convencerá de que o nosso

comportamento não é livre.

e) Conclusão: A tese do autor ou a defesa da liberdade e a autonomia da consciência

O meu objectivo neste livro foi tentar caracterizar as relações entre a concepção que temos de nós mesmos como

agentes racionais, livres, conscientes, atentos, a uma concepção que temos do Mundo como consistindo de

partículas físicas sem mente, sem significado. É tentador pensar que, assim como descobrimos que largas porções

do sentido comum não representam adequadamente o modo como o Mundo realmente funciona, assim

poderíamos descobrir que a concepção de nós mesmos e do nosso comportamento é inteiramente falsa. Mas há

limites para esta possibilidade. A distinção entre realidade e aparência não pode aplicar se à genuína existência

da consciência, pois, se aparentemente sou consciente, sou consciente. Poderemos descobrir toda a espécie de

coisas surpreendentes acerca de nós mesmos e do nosso comportamento; mas não podemos descobrir que não

temos mentes, que elas não contêm estados mentais conscientes, subjectivos, intencionalísticos; nem

poderíamos descobrir que não tentamos, pelo menos, empenharmo-nos em acções voluntárias, livres e

intencionais. O problema que a mim mesmo pus não foi provar a existência dessas coisas, mas examinar o seu

estatuto e as suas implicações para as nossas concepções do resto da natureza. O meu tema geral foi que, com

certas

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excepções importantes, a concepção mentalística de sentido comum de nós mesmos é perfeitamente consistente

com a nossa concepção da natureza enquanto sistema físico.

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