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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos), Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
DOCNCIA NA EDUCAO INFANTIL E ANOS INICIAIS:
O CUIDAR/EDUCAR NA PERSPECTIVA DO MASCULINO
Tamara Piazzetta
RESUMO
Este estudo tem como objetivo compreender as implicaes para o masculino que atua na docncia da Educao Infantil
e Anos Iniciais, espao de predominncia da feminizao. Atualmente tende-se a ter um nmero reduzido de docentes
do sexo masculino, principalmente no que se refere aos nveis da Educao Infantil e Anos Iniciais, o que desperta para
a relevncia da anlise do masculino que busca atuar nesse espao. Pretendeu-se abordar a temtica do masculino e sua
relao com o cuidar/educar, aspectos que orientam a atuao docente junto infncia. O masculino nesse contexto, ao
exercer uma profisso considerada feminina, personifica o conflito da expectativa social. Quando escolhe a docncia, o
masculino passa a ser questionado pelo social, principalmente em dois aspectos: sua capacidade profissional e sua
orientao sexual. O docente masculino atravessado pelas polarizaes (feminino/masculino;
heterossexual/homossexual) e, ocupando um dos polos, tende a ser julgado como incapaz para atuar na docncia.
Utiliza-se como metodologia de pesquisa a narrativa autobiogrfica de docentes que atuam na Educao Infantil e Anos
Iniciais em municpios da Serra Gacha, Brasil. A pesquisa permite considerar que h lacunas entre o reconhecimento
das questes de gnero que atravessam a atuao docente do masculino e as alternativas para transformar essa realidade.
Palavras-chave: Educao. Cuidar/Educar. Masculino. Relaes de Gnero.
1 INTRODUO
Historicamente, a passagem da hegemonia masculina para a feminina na docncia relaciona-
se a aspectos econmicos, culturais e sociais. Entretanto, a Educao Infantil e os Anos Iniciais
seguem trajetrias diferentes dos demais nveis de ensino, pois desde o surgimento so entendidos
como espao do feminino. Diante disso, este estudo tem como objetivo refletir sobre as implicaes
para o masculino que atua na docncia da Educao Infantil e/ou Anos Iniciais, espao de
predominncia da feminizao.
Atualmente tende-se a ter um nmero reduzido de docentes do sexo masculino,
principalmente no que se refere aos nveis da Educao Infantil e Anos Iniciais, o que desperta para
a relevncia de se analisar as implicaes para o masculino que busca atuar nesse espao. Neste
estudo pretendeu-se abordar a temtica do masculino e sua relao com o cuidado, aspecto que
orienta a atuao assistencialista da Educao Infantil em seus primrdios.
Partindo do pressuposto de que as formas de fazer educao so to mltiplas quanto so os
sujeitos nelas envolvidos, entende-se como necessrio problematizar a polarizao
feminino/masculino na educao para que, como refere Sayo (2005, p. 60), possamos dar
visibilidade pluralidade no interior de cada um dos plos.
A partir destas perspectivas, o estudo pretende abordar as questes vinculadas ao masculino
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na docncia na Educao Infantil e nos Anos Iniciais, retomando um breve histrico do surgimento
dessa modalidade escolar e suas relaes com o feminino e o masculino, e posteriormente, trazendo
alguns aspectos relacionados escolha e a permanncia do masculino na sala de aula.
2 EDUCAO INFANTIL E ANOS INICIAIS COMO ESPAO DA DOCNCIA
FEMININA
Conforme Carvalho (1998, p. 77), a escola transita entre o espao masculino do saber
cientfico tcnico-racionalista e a docilizao materna. Neste contexto de circulao de saberes,
seria esperado que houvesse ampla e aberta discusso sobre as relaes de gnero, mas o que
acontece na maioria das situaes a repetio de modelos socialmente postos.
A escola, enquanto espao do social, replica seus modelos e preconceitos. Numa sociedade
na qual as profisses so divididas entre masculinas e femininas, parece natural o lugar que a
mulher ocupa na docncia, principalmente quela ligada s crianas pequenas.
A mudana da predominncia masculina para a feminina ocorre em todos os nveis da
educao a partir do sculo XIX, devido s condies de trabalho precrias, baixos salrios e a
estratificao sexual da carreira docente (VIANNA, 2002). Outros aspectos que favorecem essa
mudana so discursos que apontam os homens como moralmente inadequados para educar as
meninas, ou ento como incapazes de ter a sensibilidade feminina necessria para cuidar das
crianas (CUNHA, 2012).
Entretanto, no que se refere feminizao da docncia, a Educao Infantil segue trajetria
diferente dos demais nveis de ensino, pois desde o seu surgimento entendida como espao do
feminino (CAMPOS, 1994). A Educao Infantil surge como um meio assistencialista de garantir
que as mulheres estivessem disponveis para o mercado de trabalho. Dessa forma, a instituio
deveria oferecer, aos filhos das trabalhadoras, cuidados semelhantes aos maternos (SOUZA, 2010).
O enfoque da Educao Infantil no cuidar/educar4 surge como alternativa para suprimir as
desigualdades sociais que tambm se apresentavam no contexto escolar. As diferenas entre o foco
assistencialista (voltado s camadas mais pobres) e a funo pedaggica da creche (no caso das
classes mais ricas) estariam implicitamente resolvidas a partir da nova abordagem (CAMPOS,
1994; SAYO, 2005).
Para Vianna (2002) atividades profissionais vinculadas ao cuidado, so implicitamente
atreladas ao feminino, seja pela viso de uma responsabilidade natural ou como resultado da
4 O termo (utilizado desta forma por Sayo, 2005) refere-se a uma das diretrizes da Poltica Nacional de Educao Infantil. O documento descreve que as particularidades desta etapa de desenvolvimento exigem que a Educao
Infantil cumpra duas funes complementares e indissociveis: cuidar e educar, complementando os cuidados e a
educao realizados na famlia ou no crculo da famlia. (MEC, 1994, p. 17)
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socializao das mulheres. Diante disso, o universo escolar permanece atrelado ao feminino, tendo
na mulher e na maternagem seu ponto de ancoragem (CARVALHO, 1998, p. 71). A associao
quase que obrigatria entre o feminino e o materno acaba por embaralhar tambm a influncia do
feminino na docncia, por vezes fazendo com que o discurso pedaggico seja um espelhamento do
discurso materno (FRANCO, 2010, p. 68). Para a autora, este movimento surge da necessidade de
validar o lugar e o saber do materno, restringindo a educao ao que vem do feminino.
3 O MASCULINO E A DOCNCIA
De acordo com as reflexes de Louro (1997), por um lado, a escola pode ser vista como
feminina pelo seu carter relacional afetivo semelhante ao familiar; por outro, ela tambm
masculina, pois mesmo que as educadoras possam ser mulheres, elas reproduzem o conhecimento
historicamente oriundo do masculino.
Em seus primrdios, a educao surge como um espao do/para o masculino, pois os
primeiros educadores eram homens que tinham a funo de educar os meninos sobre o
conhecimento construdo por outros homens. Segundo Louro (1997, p. 92) o mestre que inaugura a
instituio escolar moderna sempre um homem; na verdade um religioso. Essa condio d
origem viso da docncia como um caminho vocacional, combinado ao papel de paternidade que
os religiosos s poderiam exercer por meio da docncia.
A partir da imagem de um mestre exemplar, que era referncia tanto por seus saberes,
quanto por ser um modelo a ser seguido (LOURO, 1997, p. 92), que se constituem as bases da
escola moderna. Neste contexto, iniciam-se os movimentos para a igualdade de instruo para
meninos e meninas, mesmo que no princpio houvesse a segregao por gnero: homens ensinavam
os meninos; mulheres ensinavam as meninas; currculos, objetivos e avaliaes eram distintos para
eles e elas.
Com as transformaes econmicas, culturais e sociais, o masculino vai gradualmente
migrando para outros espaos, deixando uma lacuna que passa a ser ocupada pelas mulheres, seja
pela escassez de alternativas de trabalho ou pela possibilidade de ascenso que o ambiente escolar
poderia proporcionar ao feminino na poca. Eugnio (2010, p. 01) refere que a feminizao docente
no somente a presena macia das mulheres nos quadros docentes, mas a adequao do
magistrio s caractersticas como cuidado, associadas historicamente ao feminino.
No contexto atual, conforme refere Rabelo (2013, p. 909), o professor homem torna-se um
corpo estranho nas sries iniciais do ensino fundamental, o que no se apresenta de forma distinta
na Educao Infantil, pois a chegada de um homem num espao dominado por mulheres e
supostamente feminino produz uma sensao de deslocamento, desconfiana e incmodo
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(SAYO, 2005, p. 66). O masculino nesse contexto, ao exercer uma profisso considerada
feminina, personifica o conflito da expectativa social, alm de indicar as excees aos padres de
gnero ou tentativas de reafirmao de sua masculinidade (RABELO, 2013, p. 911).
Quando escolhe a docncia, o masculino passa a ser questionado pelo social, principalmente
em dois aspectos: sua capacidade profissional e sua orientao sexual. Ao contrrio das professoras,
o docente masculino atravessado pelas polarizaes (feminino/masculino;
heterossexual/homossexual) e, ocupando um dos polos, tende a ser julgado como incapaz para atuar
na docncia.
Rabelo (2013, p. 916) refere que os professores so assinalados pelo preconceito, quando
demonstram caractersticas femininas e so considerados homossexuais (logo, maus exemplos que
no podem dar aulas para crianas) e quando se questiona sua capacidade, por apresentarem
caractersticas masculinas (que no so boas para o ofcio).
Para Sayo (2005, p. 216) no magistrio, especialmente na docncia com crianas
pequenas, o ideal de ser reconhecido como homem pressupe certas provas e contra provas. Neste
quadro, caractersticas socialmente consideradas femininas como afeto, sensibilidade, pacincia,
entre outras no podem ser apresentadas pelo masculino, sob o risco de se questionar a prpria
masculinidade.
Alm disso, o masculino demarcado no espao escolar pelo medo de uma sexualidade que
no pode ser exposta no ambiente pblico que a escola. Essa crena faz com que se evite que o
homem, entendido como sexualizado, seja inserido neste locus, e a mulher seja a escolhida, por ser
considerada como assexuada, assim como as crianas (RABELO, 2013).
Carvalho (1998, p. 423) assinala que a presena do masculino na escola pode despertar para
a ampliao e quebra de paradigmas, entretanto s vezes parece que seu comportamento acaba por
reforar, ao menos em parte, esteretipos a respeito da masculinidade e do professor homem. De
qualquer forma, a masculinidade presente (ou ausente) no contexto escolar tende a repercutir tanto
nos profissionais, quanto nas crianas e seus familiares, pois a possibilidade de provocar
mudanas nas experincias por eles vivenciadas (SAYO, 2005).
Ao apontar estudos sobre a questo de gnero na docncia, Souza (2010, p. 29) refere que
os discursos so consensuais ao defenderem a participao masculina na educao infantil. A
autora questiona, entre outras coisas, se o homem deve modificar-se para adaptar-se ao universo da
docncia feminina ou se a prpria docncia que precisa rever seus modelos, considerando que o
modo como o masculino se insere no espao pode trazer limitaes, ao mesmo tempo em que novas
perspectivas so possveis quando ele se faz presente neste contexto (SOUZA, 2010).
De acordo com Tardif (2014, p. 244), seremos reconhecidos socialmente como sujeitos do
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conhecimento e verdadeiros atores sociais quando comearmos a reconhecer-nos uns aos outros
como pessoas competentes, pares iguais que podem aprender uns com os outros, ou seja, as
mudanas se tornam possveis a partir do reconhecimento pessoal acerca da prpria atuao
profissional, e por consequncia, da valorizao do lugar do outro em sua atuao.
4 TRANSITORIEDADES ENTRE O MASCULINO E O FEMININO
Sayo (2005, p. 07) aponta que a concepo de profisso feminina precisa ser repensada
porque qualquer noo sobre as mulheres implica necessariamente suas relaes com os homens.
Compreendendo as questes de gnero como a relao entre os diversos atores, suas crenas e seus
contextos, torna-se imprescindvel questionar o lugar que o masculino ocupa ou aparentemente
deixa de ocupar no que se refere Educao Infantil e aos Anos Iniciais.
No que se refere ao papel do masculino nos cuidados parentais, em geral nota-se o
distanciamento da figura paterna, que se torna coadjuvante s funes primordialmente exercidas
pelas mes. Soma-se a isso o contexto social e poltico do Brasil, que no favorece sua participao:
por exemplo, s mes destinada a licena maternidade de seis meses, enquanto aos pais oferecem-
se meros cinco dias de licena paternidade. Em outros pases5, as polticas de licena
maternidade/paternidade so diferenciadas, mas na maior parte deles ainda favorecem as mes em
detrimento dos pais (SOUZA, 2010).
Carvalho (1998, p. 417) refere que a feminilidade e atitudes maternais e de cuidado tm
sido tomadas como opostos de disciplina, controle e masculinidade. na contrariedade que
distancia o masculino do cuidado que se encontram os sujeitos alvo deste estudo, homens que
assumem o papel de cuidado associado educao.
Conforme aponta Sayo (2005), o cuidado pode apresentar duas perspectivas opostas: o
sagrado atrelado a valores universais de sobrevivncia da espcie e o profano vinculado
ao corpo e ao afeto. Segundo a autora, a segunda perspectiva que confere ao cuidado o carter de
tabu, gerando supostos impedimentos para que o mesmo seja executado pelo masculino,
considerado como ameaador.
O cuidado, entendido no seu sentido amplo, envolve as questes corporais/fsicas, afetivas e
sociais, sendo requisito primordial para a existncia sadia de qualquer ser humano, e por isso no
pode estar dissociado da educao (CAMPOS, 1994; GIBIM; LESSA, 2001). Em funo disso, o
cuidado no necessariamente uma atribuio inata do feminino, mas um processo que pode e deve
ser aprendido por todos, pois assim como as mulheres, no s os homens aprendem a cuidar, mas
5 De acordo com Faria (2002), o primeiro pas do mundo a transformar a licena maternidade em um modelo em que
me e pai fossem beneficiados, foi a Sucia em 1974. Desde ento, vrios pases tm adotado a licena compartilhada,
auxiliando no combate discriminao sexual aps o parto.
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homens diferentes cuidam de formas diferentes e mulheres diferentes cuidam de formas diversas
(SAYO, 2005, p. 167).
A autora ainda refere que o gnero no o nico demarcador das prticas, sejam elas
concebidas como cuidado ou como educao (SAYO, 2005, p. 183) e que neste processo surgem
as diferenas entre concepes de criana, infncia e papel da Educao Infantil como definidora
de posturas e aes pedaggicas na instituio (idem). Pode-se inferir que, a partir dos valores
socialmente construdos, que determinam aos sujeitos o que adequado ou no, tende-se a restringir
ou ignorar outras possibilidades de atuao.
5 MATERIAIS E MTODOS
Por meio do delineamento qualitativo, utilizou-se a pesquisa exploratria sobre a temtica,
visando identificar as repercusses para o masculino que atua na Educao Infantil e Anos Iniciais
do Ensino Fundamental.
Num primeiro momento, procedeu-se a busca pelos sujeitos da pesquisa em instituies de
ensino localizadas na regio da Serra Gacha, contatando as Secretarias Municipais de Educao e
solicitando que indicassem escolas que possuem homens atuando junto Educao Infantil ou Anos
Iniciais.
Foram identificados dois sujeitos, um Auxiliar de Educao Infantil e um Pedagogo atuando
na regio. Os sujeitos tm faixa etria mdia de 35 anos e ambos trabalham em mais de um local e
funo. Foi realizado o contato com os mesmos, informando sobre o estudo e convidando-os a
participar da pesquisa. Agendou-se com cada sujeito individualmente, em horrio que julgasse mais
adequado, para a apresentao do questionamento.
A coleta de dados ocorreu por meio de narrativa autobiogrfica (SCHTZE, 2011), na qual
os sujeitos foram convidados a descrever, em forma de autobiografia, o que os levou a escolher a
profisso e como se percebem na profisso atualmente. A narrativa foi coletada por escrito, e para
tal foi disponibilizado duas folhas de ofcio e uma caneta. Tambm foi solicitado que atribussem
um ttulo e assinassem ao final da autobiografia. Cada participante assinou o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido.
Optou-se pelas narrativas, pois elas permitem ao pesquisador abordar o mundo emprico at
ento estruturado do entrevistado, de um modo abrangente (FLICK, 2009, p. 164). Alm disso,
conforme Schtze (2011), as narrativas biogrficas so uma boa forma de coletar dados em
Cincias Sociais, pois podem trazer dados de ciclo de vida dos grupos de interesse da pesquisa.
6 ANLISE DOS DADOS
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Para fins da anlise de dados, sero apresentadas as narrativas autobiogrficas dos dois
pesquisados, num primeiro momento de forma individual, de modo a apontar as reflexes
desencadeadas por cada uma delas e, posteriormente, a comparao contrastiva entre as narrativas,
demonstrando as aproximaes e as discrepncias entre os resultados encontrados.
6.1 Um Estranho no Ninho
Jack6 descreve em sua autobiografia alguns dos motivos pelos quais optou por trabalhar com
crianas. Conforme ele, o fato de no ter filhos e o tempo disponvel foram os principais motivos
para esta escolha. O pesquisado tambm descreve que uma vivncia de estgio7 anterior ao cargo
exercido despertou seu interesse pela rea, pois se percebeu aceito pelo contexto. Ele relata que,
aps ter atuado nas diferentes faixas-etrias da Educao Infantil, prefere atuar no Berrio I, onde
est atualmente.
O primeiro ponto de anlise trata-se do ttulo atribudo a autobiografia, Um Estranho no
Ninho, expresso popular que descreve uma pessoa ou coisa que se encontra em um local ao qual
no pertence. Supe-se que a expresso tenha origem no comportamento de algumas espcies de
pssaros, como os cucos, que depositam seus ovos em ninhos de outras espcies, sendo o filhote
criado por outra famlia, numa forma de parasitismo.
A utilizao desta expresso carrega significados mltiplos, que podem ser relacionados ao
foco do estudo. Pensando no masculino atuando na Educao Infantil, pode-se entender que o
sujeito se reconhece como o estranho no ninho, aquele que se encontra em um espao ao qual no
pertence, j que a predominncia do feminino.
Por outro lado, ao ocupar esta posio, atua como o pssaro que cuida de filhotes que no
so seus, como um pai adotivo, ao invs de ser o filhote intruso. Essa suposio tem
consonncia com o que Jack articula como um dos indicadores (sic) da sua opo pelo trabalho
na Educao Infantil, que vem da necessidade natural de lidar com crianas, pelo fato de eu ainda
no ter filhos, pois eu e minha esposa temos problemas patolgicos de infertilidade (sic).
Pode-se cogitar que o desejo de ter filhos, a expectativa social para tornar-se pai e pertencer
ao grupo dos homens com filhos o conduzem a uma resoluo para superar (integral ou
parcialmente) suas dificuldades com as questes biopsicossociais relacionadas infertilidade. Outro
trecho da autobiografia refora esta ideia: me equilibro com os bebezinhos, tanto pela minha
necessidade e sonho de poder ter um, e ser chamado de pai (sic). O papel profissional atrelado
paternidade retoma a atuao dos religiosos que, impedidos moralmente de gerarem descendentes,
6 Nome fictcio, escolhido em referncia ao ator Jack Nicholson, que interpretou o personagem principal no filme norte-americano One Flew Over the Cuckoo's Nest (1975), cujo ttulo no Brasil Um Estranho no Ninho. 7 O pesquisado cursava Pedagogia, curso que no concluiu at o momento.
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exerciam a docncia como uma viso paternalista (LOURO, 1997).
Jack refere que uma experincia como estagirio foi importante para despertar seu interesse
pela atuao na Educao Infantil: fiz um estgio de dois anos num CEACRI centro de
atendimento a crianas de baixa renda, e a vi que fui aceito pelas crianas e direo e colegas da
entidade (sic). Ao que parece, Jack partiu de uma expectativa de no aceitao do masculino no
espao educacional, mas deparou-se com o oposto disso, o que alimentou ainda mais seu desejo por
atuar neste contexto. A aceitao social do masculino na Educao Infantil um ponto reforado
por Jack, sobre o qual refere que atualmente se percebe como uma pessoa socialmente aceita (...)
para esta atividade (sic).
Por fim, o fato de Jack optar pela Educao Infantil, principalmente com atuao junto ao
Berrio I pode estar associado crena de assexualismo da criana pequena: vejo os recm-
nascidos mais puros e menos contaminados pelo meio (pais e sociedade) (sic), salienta ele. Outra
reflexo possvel a partir desta fala est ligada aos pr-conceitos vindos do contexto social, pois
mesmo sem ter relatado uma experincia discriminatria, o pesquisado supe que poderia ser
julgado ou discriminado pelas crianas maiores.
6.2 Minha Vida Feliz
Para Mark8, a escolha da carreira docente reflete realizao pessoal e profissional, pois tudo
o que tenho hoje, eu conquistei dando aula (sic). Sua trajetria profissional iniciou pelo
Magistrio, na busca concomitante por duas licenciaturas (Pedagogia e Educao Fsica), e
continuou em especializaes e no Mestrado em Educao. No momento Mark encontra-se em
seleo para o Doutorado, o que reflete o desejo de contnuo aperfeioamento.
Sobre a escolha profissional, Mark relata que houve influncia do contexto familiar: a
docncia permeou a minha infncia uma vez que sou filho de professora e a minha irm mais velha
divide comigo a misso de educar (sic). Para ele, as vivncias da me e da irm despertaram a
curiosidade pela profisso. Observa-se que o interesse provm de vivncias femininas da profisso,
o que no impediu que Mark desejasse e construsse suas prprias vivncias enquanto masculino na
carreira docente.
Outro ponto evidenciado pelo pesquisado a ideia de educar como uma misso, o que se
pode relacionar origem religiosa da escola moderna e ao lugar do professor com carter
vocacional (LOURO, 1997).
Para Mark foi o contato com a Educao Infantil, na qual atuou por 10 anos, que o tornou
8 Nome fictcio, escolhido em referncia ao professor Mark Thackeray, personagem principal no filme britnico To Sir, with Love (1967), cujo ttulo no Brasil Ao Mestre com Carinho.
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de fato um homem com sentido (que deu sentido a minha profisso) (sic). Ele relata essa
experincia como essencial, apesar de ao longo da trajetria ter vivenciado um momento de
desconforto por estar atuando nesta faixa escolar. Sobre isso, ele apenas refere que foi um momento
pontual, e que ao retornar entendeu que precisava do contato com as crianas: estar com as
crianas me traz vida (sic).
Atualmente, o pesquisado concilia diferentes trabalhos, entretanto todos ligados carreira
docente. Ele leciona para o 4 ano, professor de Educao Fsica e tambm docente em curso de
Graduao. Sobre essa variedade, ele diz que as atividades profissionais se contemplam, me
complementam (sic). Mais uma vez demonstra o movimento de aperfeioamento e de autodesafio.
6.3 Caminhos que se cruzam: a comparao contrastiva
Jack inicia sua escrita elencando os motivos que o levaram a trabalhar com crianas, relata
vivncias na educao anteriores ao cargo que ocupa, as percepes sobre a profisso atualmente,
alm de apontar a preferncia pelo trabalho com os bebs, relatando que tambm trabalhou com os
demais nveis da Educao Infantil.
Mark, por sua vez, inicia sua autobiografia por sua infncia, apresentando as influncias
familiares para a escolha da profisso, sua extensa trajetria de formao, do magistrio ao
doutorado, e as diferentes experincias profissionais que possui, desde a Educao Infantil at o
Ensino Superior. Finaliza apresentando suas percepes e sentimentos sobre a profisso que
escolheu.
Em ambas narrativas se percebem docentes otimistas e realizados com a carreira, o que se
evidencia na satisfao por estar na profisso atualmente. Este foi um dos diferenciais deste
trabalho com relao aos estudos apresentados por Carvalho (1998), Eugnio (2010) e Rabelo
(2010), nos quais se observam discursos mais pessimistas e descontentes com relao profisso.
Os termos utilizados nas autobiografias tambm representam a viso que cada sujeito tem
sobre seu lugar na profisso. Enquanto Jack faz referncia ao lugar profissional e nomeia sua ao
simplesmente como o ato de trabalhar, Mark utiliza diversas nomenclaturas como atuar, ser
professor, estar com as crianas, lecionar e dar aula, demonstrando os distintos papis que o
docente ocupa no espao escolar. A utilizao destes termos tambm evidencia as diferenas entre
os pesquisados, com relao ao nvel de formao e trajetria profissional.
Como justificativas para a escolha profissional, os pesquisados tambm apresentam
trajetrias diferentes. Mark relata a influncia familiar das vivncias da me e da irm que o
instigaram a optar pela misso da carreira docente. Por outro lado, para Jack a escolha parte de
um interesse laboral, aliado a vivncia de paternidade. Existe aqui um contraponto entre a influncia
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e o interesse pela carreira docente. Entretanto, em ambos os casos, se atravessa a origem vocacional
atribuda ao masculino na carreira docente.
Pode-se inferir que, nestes casos, o masculino que atua junto Educao Infantil ou Anos
Iniciais busca realizao pessoal e/ou profissional neste espao e, de certa forma, suporte s
questes biopsicossociais relacionadas s suas vivncias anteriores e atuais. Atrelado a isso, fica
evidente o desejo que surge de interao com o universo infantil, exemplificado na busca por atuar
neste espao, na profissionalizao e na vivncia afetiva evidenciada pelos relatos.
As questes de gnero so apontadas sutilmente, na forma de estranhamento, dvida ou
desconforto perante o lugar que ocupam, o que pode indicar certa discriminao camuflada do
contexto. O esforo para reforar a ideia de aceitao social do profissional pode ser entendido
como mais um indicador desta hiptese. Entretanto, ambos relatam que esto felizes com suas
escolhas profissionais, indicando que o impacto de uma possvel discriminao pode no ser
significativo nestes casos.
7 CONSIDERAES FINAIS
Observa-se que, para os sujeitos pesquisados, a docncia foi, alm de uma escolha
profissional, uma escolha de vida. A realizao na profisso evidencia principalmente a satisfao
que ambos tm em atuar na profisso, especialmente no que se refere aos nveis da Educao
Infantil e Anos Iniciais.
A pesquisa demonstrou-se efetiva por apresentar reflexes sobre as percepes dos docentes
sobre sua prpria atuao profissional. Alm disso, permite considerar que h lacunas entre o
reconhecimento das questes de gnero que atravessam a atuao docente do masculino e as
alternativas para transformar essa realidade.
Entende-se que as implicaes para o masculino que atua na docncia da Educao Infantil e
Anos Iniciais presentes nos relatos tendem a apontar para vivncias do prprio sujeito, mas que no
se distanciam de expectativas sociais relacionadas ao masculino de maneira geral, como pode ser o
caso da paternidade e por consequncia, do papel de cuidador.
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TEACHING IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION AND EARLY YEARS: CARING
FOR AND EDUCATING IN THE PERSPECTIVE OF THE MALE
ABSTRACT
This study aims to understand the implications for the male who works in the teaching of Early
Childhood Education and Early Years, a predominance of feminization. Currently, there is a
tendency to have a small number of male teachers, especially regarding the levels of Early
Childhood Education and Initial Years, which awakens to the relevance of the masculine analysis
that seeks to act in this space. The aim was to address the issue of the masculine and its relationship
with the caring / educating, aspects that guide the teaching performance with the childhood. The
masculine in this context, when exercising a profession considered feminine, personifies the conflict
of the social expectation. When he chooses teaching, the masculine becomes questioned by the
social, mainly in two aspects: his professional capacity and his sexual orientation. The male teacher
is crossed by polarizations (female / male, heterosexual / homosexual) and, occupying one of the
poles, tends to be judged as incapable of teaching. The autobiographical narrative of teachers who
work in Early Childhood Education and Early Years in municipalities of Serra Gacha, Brazil, is
used as research methodology. The research allows to consider that there are gaps between the
recognition of the gender issues that cross the teaching performance of the masculine and the
alternatives to transform this reality.
Keywords: Education, Caring / Educating, Male, Gender Relations