17
DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital MOURA FILHA, MARIA BERTHILDE (1) 1. UFPB. Departamento de Arquitetura / PPGAU Rua Juiz Ovídio Gouveia 18 João Pessoa PB CEP. 58031-030 [email protected] RESUMO O produto aqui apresentado constitui desdobramento de pesquisas realizadas ao longo de três anos, no âmbito do programa de iniciação científica, com vinculação ao Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM), do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba. O objeto trabalhado nessa investigação foi a arquitetura residencial produzida e/ou ainda existente em João Pessoa, vista em perspectiva histórica, uma vez que percorrendo as ruas da cidade há edificações que documentam a transformação do modo de morar, entre os séculos XVIII e XX. Concluída tal pesquisa, os resultados obtidos permitiram avançar com o presente estudo, o qual tem por foco uma leitura sistematizada e didática sobre o conjunto da arquitetura residencial em foco, priorizando uma síntese gráfica que seguiu dois caminhos. O primeiro resultou na associação entre mapas da cidade, referentes ao período do século XVIII à década de 1940, e um levantamento da arquitetura residencial ainda remanescente na cidade, produzida no mesmo recorte temporal. Como recurso para localizar essa arquitetura, as ruas foram percorridas utilizando o Google Street view, de onde foram capturadas imagens sistematizadas a partir da datação de cada um dos referidos mapas, de modo a conseguir uma leitura da relação entre o urbano, a arquitetura e a organização espacial da sociedade, entendida através da localização dessas residências. O segundo produto obtido é uma síntese gráfica sobre as próprias residências, estudando através de maquetes 3D as transformações verificadas, ao longo do tempo, no modo de organizar o espaço de moradia considerando aspectos como: implantação no lote, programa de necessidades, organização espacial, volumetria, linguagem decorativa, etc. Trata-se, portanto, de um trabalho que alia os métodos tradicionais de investigação bibliográfica, documental e de campo, aos recursos da modelagem digital, gerando maquetes utilizadas para documentação e estudo dessas residências, bastante dilapidadas pelo tempo e precário estado de conservação. Não sendo possível apresentar aqui todo o resultado da pesquisa, opta-se por tratar neste artigo sobre os procedimentos metodológicos de documentação e representação gráfica dessa arquitetura e, entre os modelos produzidos, explana-se a construção da casa térrea característica do período colonial, tendo por referência alguns exíguos exemplares que, embora muito alterados, ainda subsistem em João Pessoa. Palavras-chave: Arquitetura residencial; Modelagem 3D; João Pessoa; História da Cidade.

DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

  • Upload
    vothien

  • View
    222

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital

MOURA FILHA, MARIA BERTHILDE (1)

1. UFPB. Departamento de Arquitetura / PPGAU

Rua Juiz Ovídio Gouveia 18 – João Pessoa – PB – CEP. 58031-030 [email protected]

RESUMO

O produto aqui apresentado constitui desdobramento de pesquisas realizadas ao longo de três anos, no âmbito do programa de iniciação científica, com vinculação ao Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM), do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba. O objeto trabalhado nessa investigação foi a arquitetura residencial produzida e/ou ainda existente em João Pessoa, vista em perspectiva histórica, uma vez que percorrendo as ruas da cidade há edificações que documentam a transformação do modo de morar, entre os séculos XVIII e XX. Concluída tal pesquisa, os resultados obtidos permitiram avançar com o presente estudo, o qual tem por foco uma leitura sistematizada e didática sobre o conjunto da arquitetura residencial em foco, priorizando uma síntese gráfica que seguiu dois caminhos. O primeiro resultou na associação entre mapas da cidade, referentes ao período do século XVIII à década de 1940, e um levantamento da arquitetura residencial ainda remanescente na cidade, produzida no mesmo recorte temporal. Como recurso para localizar essa arquitetura, as ruas foram percorridas utilizando o Google Street view, de onde foram capturadas imagens sistematizadas a partir da datação de cada um dos referidos mapas, de modo a conseguir uma leitura da relação entre o urbano, a arquitetura e a organização espacial da sociedade, entendida através da localização dessas residências. O segundo produto obtido é uma síntese gráfica sobre as próprias residências, estudando através de maquetes 3D as transformações verificadas, ao longo do tempo, no modo de organizar o espaço de moradia considerando aspectos como: implantação no lote, programa de necessidades, organização espacial, volumetria, linguagem decorativa, etc. Trata-se, portanto, de um trabalho que alia os métodos tradicionais de investigação – bibliográfica, documental e de campo, aos recursos da modelagem digital, gerando maquetes utilizadas para documentação e estudo dessas residências, bastante dilapidadas pelo tempo e precário estado de conservação. Não sendo possível apresentar aqui todo o resultado da pesquisa, opta-se por tratar neste artigo sobre os procedimentos metodológicos de documentação e representação gráfica dessa arquitetura e, entre os modelos produzidos, explana-se a construção da casa térrea característica do período colonial, tendo por referência alguns exíguos exemplares que, embora muito alterados, ainda subsistem em João Pessoa.

Palavras-chave: Arquitetura residencial; Modelagem 3D; João Pessoa; História da Cidade.

Page 2: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Documentando a arquitetura residencial da cidade de João Pessoa: entre o real e o digital

O produto aqui apresentado é um pequeno recorte dos resultados obtidos com a

investigação proposta para o pós-doutorado em curso no âmbito do Programa

PNPD/CAPES, junto ao PPGAU/UFRN. Esta investigação, por sua vez, constitui um

desdobramento de pesquisa bem mais ampla, realizada durante três anos através do

programa de iniciação científica, com vinculação ao Laboratório de Pesquisa Projeto e

Memória (LPPM) do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da

Universidade Federal da Paraíba. O objeto trabalhado ao longo deste percurso é a

arquitetura residencial produzida e/ou ainda existente em João Pessoa, vista em perspectiva

histórica, uma vez que percorrendo as ruas da cidade vêem-se edificações que

documentam a transformação do modo de morar, desde a casa colonial até o século XX.

Concluída a pesquisa inicial, os resultados obtidos permitiram avançar com o projeto sobre o

qual se investe no momento, o qual tem por meta fazer uma leitura sistematizada e gráfica

do conjunto da arquitetura residencial em foco, priorizando dois caminhos. O primeiro, na

escala do urbano, identificando a localização da arquitetura residencial ainda existente

através da produção de mapas da cidade, referentes ao período do século XVIII à década

de 1940. Com estes mapas, o objetivo é associar a expansão e formação da cidade à

transformação das casas e, como recurso para localizar essa arquitetura, as ruas foram

percorridas utilizando o Google Street view, capturando imagens que foram sistematizadas

considerando a datação de cada um dos referidos mapas. Com o segundo caminho se

explora através de maquetes 3D as transformações verificadas, ao longo do tempo, no

modo de organizar o espaço de moradia observando aspectos como: implantação no lote,

programa de necessidades, organização espacial, volumetria, linguagem decorativa, etc.

Não sendo possível apresentar aqui todo o resultado da pesquisa, delimitou-se como

objetivo do presente artigo tratar sobre os procedimentos metodológicos adotados para

documentação e representação gráfica dessa arquitetura, exemplificando em particular

como se deu a apreensão da cidade no século XVIII e do correspondente modo de morar

em casas térreas características daquele tempo, reconstruídas com o recurso da

modelagem digital. Cumprindo tal objetivo, o artigo está ordenado de modo a explanar como

foram obtidos os resultados aqui apresentados quanto à: forma da cidade, mapeamento dos

exemplares arquitetônicos remanescentes na atualidade, reconstrução e análise do objeto

arquitetônico.

Page 3: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

O objeto urbano sob análise: a forma da cidade no século XVIII

Sendo a estrutura urbana o suporte físico no qual está inserido o objeto arquitetônico aqui

em estudo: a residência, uma primeira etapa a cumprir foi a compreensão da morfologia da

cidade ao longo do seu processo de expansão, no recorte temporal trabalhado.

Metodologicamente, produzindo e analisando mapas de tempos distintos, pôde-se identificar

onde estavam sendo implantadas as residências, como estas se distribuíam no espaço,

permitindo conhecer os tempos de ocupação das diversas áreas da cidade.

Tratando especificamente do século XVIII, um obstáculo se apresentou para o

desenvolvimento do estudo na escala do urbano: a escassez de cartografia, o que dificulta a

apreensão da sua estrutura física. Diante deste impasse, se decidiu construir um mapa

conjectural da cidade, reunindo informações recolhidas na pouca cartografia e documentos

manuscritos de época, adotando o procedimento a seguir explanado.

Da cartografia mais antiga, datada do início do século XVII, pouco se extrai sobre a

morfologia da cidade, por nesta predominarem as informações acerca da ocupação do

território da capitania, motivo que levava a representar o núcleo urbano de forma

esquemática. Informações mais aproximadas sobre o desenho da cidade vão constar na

cartografia produzida durante o período da ocupação holandesa na Paraíba e, por isso, esta

é a principal base de estudo, permitindo situar as vias, quadras, edifícios representativos.

Posteriormente, há um único registro gráfico de parte da cidade, na verdade um esboço

executado em 1692, pelo Capitão Manuel Francisco Grangeiro, em função da demarcação

de terras do Mosteiro de São Bento. Inexistindo qualquer outra cartografia do século XVIII,

se abre uma enorme lacuna nas fontes disponíveis para subsidiar o estudo da configuração

do espaço urbano, uma vez que somente em 1858 a cidade foi mapeada, por ordem do

presidente da Província da Paraíba, Henrique de Beaurepaire Rohan (SOUSA e VIDAL,

2010, p. 13).

A esta cartografia se somam alguns manuscritos que possibilitam acrescentar informações

sobre a cidade do século XVIII, embora sejam estes escassos, uma vez que tais

documentos tinham foco nas questões administrativas. Ao final, para construção do mapa

conjectural proposto, todos os dados coletados foram transferidos para o redesenho digital

do mapa de 1858, o qual foi trabalhado visando ocultar a cidade do século XIX e ressaltar,

de modo aproximado, o traçado do fim do século XVIII. A princípio, este longo tempo parece

comprometer o resultado obtido, mas esta ideia se dissipa perante o limitado crescimento

que a cidade teve até aquele tempo.

Page 4: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Apresentando o passo a passo seguido para a composição deste mapa, se passa a relatar

como ocorreu a formação da malha urbana mais antiga da cidade buscando observar, em

particular, onde estavam as residências, cuja arquitetura será apresentada a seguir.

A atual cidade de João Pessoa foi o núcleo inicial da Capitania da Paraíba, fundada por

determinação da Coroa portuguesa. Surgiu sob a designação de Nossa Senhora das Neves,

sendo-lhe acrescido o nome de Filipéia devido ao período de união das coroas ibéricas,

quando teve início sua história. Um relato daquela época informa que seus conquistadores

escolheram um platô elevado, junto ao Rio Sanhauá, para implantar a cidade que ficou

beneficiada pela proximidade de um bom porto, fonte de água doce, e uma pedreira

(SUMMARIO, 1848, p. 66-67). Foram a presença do rio e a conformação do sítio que

imprimiram à forma do aglomerado urbano duas características próprias da tradição urbana

portuguesa: a cidade colocada em posição elevada e a definição de dois setores

segmentados pela topografia, hoje referidos como cidade alta e baixa.

A cidade baixa, também denominada Varadouro, foi caracterizada na historiografia por sua

função portuária e comercial, a princípio mais restrita à exportação do açúcar produzido na

capitania, embora documentos registrem a existência de residências ali, desde os

primórdios da cidade, quando em 1587, um lote de cinquenta braças de terra foi dado “no

Varadouro para cazas e quintal”1. No entanto, a cartografia mais antiga pouco esclarece

sobre a ocupação dessa área, provavelmente, por ter uma ocupação tão esparsa que não

foi representada nem mesmo sob a forma esquemática utilizada em tais registros para

demarcar a cidade alta (Figura 1).

Figura 1: Recorte da cartografia da cidade, datada de 1609, contida na “Relação das praças fortes e

coisas de importância que Sua Majestade tem na costa do Brasil por Diogo de Campos Moreno”.

Fonte: Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo. Ministério do Reino. Coleção de plantas,

mapas e outros documentos iconográficos.

1 Sesmaria de 50 braças de terra no Varadouro, dada a Francisco Gonçalves. 1587. Livro do Tombo do Mosteyro

de Sam Bento da Parahyba. Livro 2. 1948, p. 13-15.

Page 5: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Deixando a área do Varadouro e vencendo o desnível da encosta se tinha acesso à cidade

que, como entendiam seus fundadores, era o núcleo situado no alto. Esta ligação se dava

por uma via referida na documentação sob diversos termos: em 1604, era o “caminho de pé

que vay para o Varadouro”2 e, em 1612, “rua publica que vay para o Varadouro”3. Esta

alternância de termos, entre rua e caminho, deixa dúvidas quanto à ocupação das margens

deste eixo.

Por sua vez, o núcleo da cidade alta foi estruturado a partir das ruas Nova e Direita. Sendo

paralelas, estas duas ruas eram conectadas por vias transversais que definiram os primeiros

quarteirões da cidade, observando uma ortogonalidade já constatada em outras

experiências urbanas do universo português daquela época. Este conjunto urbano foi mais

bem representado na cartografia produzida pelos holandeses, dando maior relevância à

presença das residências na cidade alta (Figura 2).

Figura 2: Recorte da gravura intitulada Frederice Stadt (c.1640), dando destaque ao núcleo urbano.

Sobre esta estão marcados os edifícios religiosos e principais ruas: (A) Beco da Misericórdia; (B) Rua

Nova; (C) Rua Direita; (D) Travessa do Carmo.

Fonte: REIS FILHO, 2000.

Observa-se que este traçado mantinha intrínseca relação com as igrejas e mosteiros ali

edificados, os quais foram registrados pelo sargento-mor Diogo de Campos Moreno, em

1609: a sé, “mais pobre que todas”; a Igreja da Misericórdia “muy ben lavrada”; e os

mosteiros dos franciscanos “que bastava muy ben acabado”, do Carmo “que se vay fazendo

2 Confirmação de datas de terras nos arrabaldes da cidade, pertencentes ao Mosteiro da Ordem de São Bento.

1604. Livro do Tombo do Mosteyro de Sam Bento da Parahyba. Livro 3. 1949, p. 93-97.

Page 6: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

e hu de São Bento que se fabrica”.4 Tais vias transversais, por estarem atreladas à

localização de alguns desses edifícios religiosos tiveram as seguintes denominações: Beco

da Misericórdia e Travessa do Carmo.

Documentos referentes a “datas de chãos” guardam informações relevantes sobre a

ocupação e formação da Rua Nova, entre o final do século XVI e os primeiros anos do XVII.

Um destes trata de lote concedido, em 1588, “no lugar onde diz que he no cabo da rua

Nova”, juntando-se aos “maiz vizinhoz” ali instalados5. Este e outros documentos permitem

constatar que, no início do século XVII, a Rua Nova já se encontrava com um considerável

índice de ocupação, mas como registrou a cartografia holandesa, a rua encerrava à altura

da sua intersessão com o Beco da Misericórdia.

Quanto à Rua Direita, era balizada ao norte pelo convento dos franciscanos e, ao sul, pela

Igreja da Santa Casa da Misericórdia. A partir dali havia apenas um caminho em direção ao

sítio onde estavam os jesuítas, instalados mais afastados do núcleo povoado e próximo à

aldeia dos índios Tabajaras, por lhes caber a princípio a catequese desses. Pouco se sabe

sobre o início da ocupação da Rua Direita, mas valendo-se de uma documentação posterior

é possível constatar que nas primeiras décadas do século XVII havia ali muitas casas,

sendo diversas edificadas em alvenaria de pedra. A utilização dessa técnica construtiva

demonstrava, por um lado, a disponibilidade de pedra para construção na região, mas

também certa estabilidade e desenvolvimento da cidade, consequência do crescimento da

produção açucareira da Capitania da Paraíba.

Estando a cidade em construção os holandeses dominaram a Capitania da Paraíba entre

1634 e 1654. A cidade edificada até as primeiras décadas do século XVII ficou registrada na

cartografia produzida sob o governo holandês, mas as guerras que caracterizaram este

tempo resultaram em uma ‘desconstrução’ do que havia anteriormente. Por isso, não se

sabe ao certo o que pode ter permanecido da arquitetura residencial erguida nas primeiras

décadas de sua fundação, pois os relatos do pós-guerra dão um quadro de devastação.

Quando João Fernandes Vieira chegou, em 1655, para restabelecer o governo português na

Paraíba, encontrou a capitania “completamente devastada pela guerra, pelo incêndio e pela

seca dos últimos anos” (MACHADO, 1977, p. 263). Em 1671, o capitão-mor Inácio Coelho

da Silva disse ter achado “so ruinas do que foy cidade, luzindo pouco sua milhora, em tantos

3 Escritura de venda de chãos na Rua Nova, comprados pelo Mosteiro da Ordem de São Bento.1612. Livro do

Tombo do Mosteyro de Sam Bento da Parahyba. Livro 3. 1949, p. 21-24. 4 Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo. Ministério do Reino. Coleção de plantas, mapas e outros

documentos iconográficos. Relação das praças fortes e coisas de importância que Sua Majestade tem na costa do Brasil por Diogo de Campos Moreno. 1609, fl. 10. 5 Carta de data de chãos na Rua Nova concedida a Gaspar Gonçalves. 1588. Livro do Tombo do Mosteyro de

Sam Bento da Parahyba. Livro 2. 1948, p. 30-33.

Page 7: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

annos que ha foy restaurada dos innimigos”6. Isto se confirma através da seguinte descrição

do capitão engenheiro de Pernambuco, José Pais Esteves, enviado à Paraíba, em 1691:

“Tem sento e setenta vizinhos, e a mayor parte das cazas terreas fabricadas de madeira, e

barro; poucas de pedra e cal, e muitas menos de sobrado tãobem feitas da mesma materia.

As que avia nobres de pedra e cal ficarão queimadas do tempo dos olandezes”7.

Percebe-se que quase quarenta anos após a retomada da Paraíba aos holandeses, as

condições da cidade eram muito precárias e as cicatrizes do passado ainda estavam

presentes. Um ano depois, em 1692, parte da cidade foi representada pelo Capitão Manuel

Francisco Grangeiro, abrangendo a área compreendida entre o Rio Sanhauá e a Rua Nova.

Através desse mapa é possível visualizar, parcialmente, como estava a cidade nessa época,

se observando que três novas vias foram representadas, como indicado na Figura 3.

Figura 3: Planta da Cidade da Paraíba, feita pelo Capitão Manuel Francisco Grangeiro, em 1692.

Entre as informações registradas pelo autor destacamos: (A) Rua do Varadouro para as cacimbas e

portinho; (B) Capelinha de São Pedro Gonçalves; (C) Estrada das cacimbas até a porta da igreja do

Rosário dos Pretos; (D) Estrada ou caminho do carro para a cidade e da cidade para o Varadouro; (E)

Igreja e mosteiro dos beneditinos; (F) Igreja Matriz.

Fonte: LINS, 2002.

O que se pode apreender neste desenho é que tais vias não resultavam de qualquer

planejamento da malha urbana e, tudo indica, eram os percursos cotidianos da população

que as definia. Também registrou o Capitão Grangeiro, serem estas vias ainda pouco

6 Arquivo Histórico Ultramarino. ACL_CU_014, Cx. 1, Doc. 80.

7 Arquivo Histórico Militar de Lisboa – 2ª Divisão – 1ª Secção – Nº 7.

Page 8: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

habitadas, havendo apenas algumas sequências de casas representadas nas imediações

do Varadouro e da cidade alta, estando os trajetos, em grande parte, sem edificações.

A estes dados cartográficos se somam alguns poucos manuscritos que acrescentam

informações sobre o traçado da cidade. Como exemplo, em 1693, em uma documentação

que trata sobre a reconstrução da casa de câmara e cadeia, foi sugerido fazer nova cadeia

na área “onde chamão a baixa”, a qual ficava “quasi no meyo da rua principal que tem essa

cidade”, se referindo à Rua Direita8. No entanto, tal proposta não foi acatada por ser o local

escolhido muito “afastado da povoação dessa cidade e impróprio para o intento”9. Da

mesma forma, o processo de transferência do edifício da alfândega permite entender um

pouco mais as limitações espaciais da cidade por volta de 1696. A ideia era construir um

novo edifício no Varadouro “por ser este o mais conveniente a respeito de ficar em menos

distancia para a carga e descarga dos navios”, reduzindo a possibilidade de “descaminho” das

mercadorias conduzidas à cidade “por matos, e despovoado”10. Portanto, dessa exígua

documentação pode-se extrair as seguintes cogitações: a cidade alta continuava restrita

àquelas poucas ruas iniciais e o Varadouro permanecia uma área distante e pouco povoada.

Outros documentos indicam que muitos lotes situados nas ruas Nova, Direita e na Travessa

do Carmo, só voltaram a ser reocupados quando decorridos, em média, cinquenta anos da

expulsão dos holandeses. Em paralelo, ocorria a formação e ocupação de novas ruas. Há

referência que, em 1713, o fim da Rua Nova, à altura da confluência com a Travessa da

Misericórdia, marcava o “principio da rua da ladeira, que corre para o Sul”, na qual foi dado

um lote de seis braças de terras “para fazer cazas”11. A estrada que ligava as cacimbas até a

Igreja do Rosário dos Pretos, representada na planta do Capitão Grangeiro, voltou a ser

citada em 1715, em carta de doação de lote para construção de uma “morada”, visando

promover o “augmento desta Cidade”12. Essa igreja foi, também, um dos elementos de

referência para a formação da Rua da Baixa que dava continuidade à Rua Direita seguindo

para o sul.

A presença dos jesuítas foi outro fator do crescimento da cidade em direção ao sul. Entre

1676 e 1759, quando foram definitivamente expulsos do Brasil, estes padres construíram no

mesmo sítio da antiga ermida de São Gonçalo, um imponente conjunto arquitetônico

formado pela casa e colégio da Companhia, a Igreja de São Gonçalo e o seminário, cuja

8 Arquivo Histórico Ultramarino. ACL_CU - Códice 256, fl. 202v. e ACL_CU_014, Cx. 3, Doc. 210.

9 Arquivo Histórico Ultramarino. ACL_CU - Códice 257, fl. 14. e ACL_CU - Códice 256, fl. 274v.-275.

10 Arquivo Histórico Ultramarino. ACL_CU_014, Cx. 3, Doc. 236.

11 Arquivo Público do Estado da Paraíba. Período Colonial. Documentos Manuscritos. Sesmarias. Livro 6 109, fl.

111v.-114. 12

Arquivo Público do Estado da Paraíba. Período Colonial. Documentos Manuscritos. Sesmarias. Livro 6 108, fl.

8v-10.

Page 9: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

função religiosa e de ensino constituiu um fator de atração da população naquela direção.

Isto, possivelmente, também favoreceu a ocupação da antiga “estrada que vai para os

engenhos”, a qual já constava na cartografia holandesa, mas agora se tem notícias de

doação de lotes para residência.

Outro espaço significativo surgiu em função da construção da igreja da Irmandade de Nossa

Senhora das Mercês, sagrada em 1741 (PINTO, 1977, p. 127). Esta foi um dos referenciais

da cidade do século XVIII, pois definiu um espaço urbano próprio, o Largo das Mercês, no

qual tinha fim a rua que, partindo do convento do Carmo, corria paralela à Rua Direita e

vinha dar à porta dessa igreja. É relevante atentar que as irmandades de leigos e suas

igrejas, somando-se à arquitetura monástica e secular, passavam a balizar a formação de

ruas e a definir eixos de crescimento. Isso vai se verificar com a “rua que vai de Sam

Francisco para o caminho do Tambiá”, o qual levava em direção ao sítio denominado de

Tambiá Grande e à bica de água ali existente, sendo também procurado pelos fiéis da

irmandade da Mãe dos Homens, cuja igreja estava em construção em 1767 (AGUIAR, 1992,

p.134).

Este relato permite perceber, aproximadamente, como se configurava a cidade até o final do

século XVIII, estando uma simulação de tal realidade representada no mapa conjectural

elaborado como resultado desta pesquisa (Figura 4).

Figura 4: Mapa conjectural da cidade, ao final do século XVIII, elaborado sobre a planta de 1858.

Fonte: Elaboração Maria Berthilde Moura Filha e Filipe Valentim Afonso, sobre base CAD fornecida

por Wylnna Vidal.

Page 10: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Através do mesmo se depreende que poucas ruas estavam consolidadas na cidade alta, e

que o crescimento da malha urbana foi muito lento e pouco expressivo, certamente reflexo

do contexto da capitania, anexada à Pernambuco desde 1756, retardando ainda mais o seu

desenvolvimento. Em decorrência dessa ação, os melhoramentos urbanos eram raros,

embora a documentação de época utilize repetitivamente os termos “augmento e ornato” da

cidade revelando o desejo de seus governantes.

Cumprindo a segunda etapa da pesquisa, este mapa guiou um passeio pelas ruas

existentes na cidade, no final do século XVIII, buscando identificar na arquitetura ainda

presente os registros físicos das residências daquela época.

O objeto arquitetônico na cidade: mapeando remanescentes do século XVIII

Compreendida a estrutura urbana, optou-se por somar este produto a uma pesquisa

realizada sobre a cidade atual de modo a identificar: onde estavam implantadas as

residências que guardam características arquitetônicas do período colonial; como estas se

distribuíam no espaço urbano quanto a padrões construtivos, permitindo conhecer a

estratificação social e espacial daquela época e ter uma leitura aproximada dos tempos de

ocupação dessas diversas ruas. Com isso, o objetivo foi confirmar onde estavam os

exemplares passíveis de algum estudo.

Sendo difícil, por motivos de tempo e segurança, percorrer todas as ruas da cidade no

recorte cronológico da ampla pesquisa, que abrange até a década de 1940, se decidiu tirar

partido dos recursos disponibilizados na internet, utilizando o Google Street View como

ferramenta para este passeio virtual, capturando imagens que foram sistematizadas

considerando a datação de cada um dos mapas produzidos no conjunto da pesquisa.

Tratando especificamente do mapa conjectural da cidade, no final do século XVIII, este

levantamento da realidade atual permitiu acrescentar algumas informações relevantes e

ratificar dados fornecidos pelo estudo da formação urbana. Assim se percebeu que as ruas

principais da cidade alta detêm o maior número de exemplares com características definidas

pela literatura como o modo de ordenar as residências do período colonial, confirmando

serem as ruas mais consolidadas àquela época. Na cidade baixa, poucos são os

exemplares identificados, indicando que, certamente, seriam mais precárias e menos

duradouras as residências naquela área. As ruas e espaços urbanos em processo de

formação no século XVIII parecem ter tido, também, residências menos duradouras, pois

nada permaneceu que remeta àquele período. Neste caso, se enquadram eixos como as

Page 11: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

futuras ruas de Trincheiras e Tambiá, que eram então simples caminhos que levavam para

fora da cidade.

Obtendo esta visão da cidade e dos remanescentes arquitetônicos do passado, se tornou

possível escolher os exemplares que pautaram o desenvolvimento do modelo 3D. Feita a

seleção, foram realizadas visitas aos mesmos para coletar as informações que tais edifícios

ainda podem fornecer quanto à volumetria, organização espacial, materiais e sistemas

construtivos. Com isso, se elaborou o modelo apresentado aqui, em grande parte subsidiado

pela revisão bibliográfica de títulos sobre a arquitetura residencial brasileira, de modo a

sanar lacunas que os edifícios já não têm matéria para relatar.

O objeto arquitetônico sob análise: idealizando modelos

Tratando das casas mais antigas da cidade, o desafio de reconstituí-las pode ser

comparado a compor uma colcha de retalhos. Sobre as moradias existentes na cidade, em

1609, registrou Diogo de Campos Moreno que já se via formada “hua rua de muy boas

cazas de pedra e cal que se vão acabando e outras de taipa”13. Após o período da

dominação holandesa, muitas foram as cartas de doação de lotes urbanos, datadas dos

séculos XVII e XVIII que traziam observações como esta: “não consta que houvesse

senhorio dos chãos que os Supplicantes tratão mas parece que o tiveram porque n’elles se

veem algumas paredes arruinadas de pedra e cal”14.

Fica evidente a dificuldade de estudar esta arquitetura reunindo esparsas informações de

tempos diversos e com imensas lacunas: dados documentais que antecedem a invasão

holandesa; edifícios reconstruídos após o período holandês e registros físicos que hoje

subsistem na cidade, mas em geral muito alterados. Diante disso o estudo seguiu o único

caminho que se apresentou viável: selecionar exemplares existentes na cidade que ainda

guardam características da arquitetura residencial dos séculos XVII a XVIII e analisá-los a

luz das informações extraídas de escassa documentação de época e da historiografia da

arquitetura brasileira, gerando modelos hipotéticos, mas fundamentados em informações

consistentes.

13

Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo. Ministério do Reino. Coleção de plantas, mapas e outros

documentos iconográficos. Relação das praças fortes e coisas de importância que Sua Majestade tem na costa do Brasil por Diogo de Campos Moreno. 1609, fl. 10. 14

Arquivo Público do Estado da Paraíba. Período Colonial. Documentos Manuscritos. Sesmarias. Livro 6 109, fl.

79-82 e Sesmarias. Livro 6 109, fl. 82-84v.

Page 12: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Assim, para analisar a casa térrea que a historiografia caracterizou para o período colonial,

foi escolhida uma sequência de antigas residências localizadas na Rua General Osório e

reunidos os dados para elaboração do modelo: a composição das fachadas obtida pelo

levantamento gráfico e fotográfico; a dimensão dos lotes dada pela planta cadastral da

cidade disponibilizada pela Prefeitura Municipal; a disposição das cobertas ainda existente,

etc.

A construção do modelo teve início observando os lotes nos quais as residências estão

inseridas. Segundo Reis Filho (1987, p. 22), na cidade colonial estes possuíam "cerca de

dez metros de frente e grande profundidade". Vauthier (1981, p. 33), reportando-se ao caso

do Recife afirma que “cada casa ocupa sobre a rua apenas uma largura de 5 a 8 metros; as

que ultrapassam essa dimensão constituem fenômenos”. Ao observar a planta cadastral

levantada pela Prefeitura Municipal de João Pessoa, verifica-se que naqueles quarteirões

que margeiam as ruas mais antigas da cidade, Nova e Direita, (atuais General Osório e

Duque de Caxias) as dimensões das testadas dos lotes não diferem muito do que registra a

historiografia.

Nestas mesmas ruas as antigas residências ainda se mantém construídas “sobre o

alinhamento do terreno, com suas empenas laterais coladas nos limites dos lotes vizinhos”

(MENDES; VERÍSSIMO; BITTAR, 2009, p. 141). Também se conserva a volumetria e

organização da coberta em duas águas, com a cumeeira paralela à fachada (Figuras 5 e 6).

Figuras 5 e 6: Conjunto de residências situadas na Rua General Osório e o modelo 3D que simula a implantação, volumetria e coberta da casa térrea do período colonial.

Fonte: Fotografia Maria Berthilde Moura Filha. Modelo idealizado por Maria Berthilde Moura Filha e produzido por Alexandre Magno Nascimento e Gilson Ferreira. 2015.

Page 13: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Uma vez que estas residências tiveram suas cobertas alteradas para inserção da

platibanda, uma inovação de finais do século XIX, no modelo foi feita a substituição por

soluções de beirais típicos das casas coloniais: os cachorros de madeira, as cimalhas e a

beira-sobeira que, segundo Corona e Lemos (1989, p. 75), foi largamente adotada nas

edificações do litoral brasileiro “pelo fato de ali predominarem as construções de pedra e

cal”. Para os antigos quintais continuam vertendo as águas posteriores das cobertas que ali

despejavam parte da chuva que caía sobre os telhados, evitando "o emprego de calhas ou

quaisquer sistema de captação e condução de águas pluviais, os quais constituíam

verdadeira raridade" (REIS FILHO, 1987, p.26).

Para elaboração das fachadas, as informações foram recolhidas em fotografias antigas da

Rua General Osório, bem como nos exemplares ainda existentes, mas nos dois casos fica

evidente que muitos elementos já surgem alterados. Assim, o que resta é a marcação dos

vãos, sobre os quais destacou Lúcio Costa (1937, p. 36 – 37): “Nas casas mais antigas,

presumivelmente nas do século XVI e durante todo o século XVII, os cheios teriam

predominado [...] já no século XVIII cheios e vazios se equilibram [...]”. Essa leitura da

relação de cheios e vazios leva a questionar quanto permaneceu da arquitetura residencial

anterior ao período holandês, uma vez que as fachadas hoje existentes têm um equilíbrio

que indica datarem da segunda metade do século XVII, ou do século XVIII, quando a cidade

foi reconstruída após a retomada da capitania pelos portugueses.

Nos vãos de portas e janelas ainda existentes nas residências da Rua General Osório, se

observa a presença de vergas retas, formando cercaduras retangulares, sendo raro o uso

das vergas em arco abatido, solução apontada como mais tardia na realidade brasileira. No

modelo foi resgatado um elemento característico dessas fachadas: o tratamento das

vedações, que podia ter alguma variação. Vauthier (1981, p. 66) faz referência às esteiras,

"espécie de trançado de palha em uma peça única, seguras por cima", provavelmente

incorporada à casa por influência dos nativos. Talvez ainda mais marcante tenha sido a

utilização das folhas em gelosias ou rótulas que eram os “caixilhos, de portas ou janelas,

cujo vão é preenchido por uma grade composta de pequenas tiras de madeira que se

cruzam diagonalmente” (CORONA e LEMOS, 1989, p. 415). A considerar as informações

absorvidas da historiografia as janelas de rótulas requeriam uma folha interna, em madeira

corrida, de modo a resguardar os ambientes da casa, quando convinha (VAUTHIER, 1981;

RODRIGUES, 1979). Por fim, sobre a pintura dessas rótulas registrou Vauthier (1981; p.

173) a utilização da cor verde, nas casas do Recife (Figuras 7 e 8).

Page 14: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Figuras 7 e 8: Conjunto de residências situadas na Rua General Osório e o modelo 3D que simula como

podem ter sido as fachadas destas casas no período colonial.

Fonte: Fotografia Maria Berthilde Moura Filha. Modelo idealizado por Maria Berthilde Moura Filha e

produzido por Alexandre Magno Nascimento e Gilson Ferreira. 2015.

Partindo para a disposição interna da residência, o imóvel que serviu de modelo pouco teve

a informar por estar muito alterado. Por isso, se fez necessário tomar por referência a leitura

das fachadas, somada aos dados da historiografia sobre a planta da casa térrea colonial e

esboçar como podem ter sido as casas da antiga Rua Nova.

Percebemos que em João Pessoa a maior parte das casas térreas que ainda subsistem têm

na fachada uma porta e duas janelas, correspondendo ao tipo de planta onde havia um

corredor que se desenvolvia ao longo de uma das paredes laterais. Eram, portanto, do tipo

denominado pela historiografia como “meia morada”, na qual todos os cômodos “são

lateralmente ligados por um corredor” (CORONA e LEMOS, 1989, p. 318).

Quanto aos referidos cômodos, compunham um programa de necessidade muito reduzido,

limitando-se em geral a sala principal, as alcovas, a sala dos fundos e a cozinha.

Historiadores da arquitetura brasileira são unânimes ao atestar que como as construções

eram geminadas e levantadas em terrenos estreitos e profundos a disposição dos cômodos

não podia variar muito e “as plantas, deixadas ao gosto dos proprietários, apresentavam

sempre uma surpreendente monotonia” (REIS FILHO, 1987, p. 24). Talvez por isso tenha o

engenheiro francês Vauthier (1981, p. 37) feito a seguinte observação sobre as residências

do Recife "Assim, quem viu uma casa brasileira, viu quase todas".

A partir dessas informações e de esquemas de plantas elaborados para o estudo da

arquitetura residencial em outras realidades do Brasil, fazemos uma associação com os

Page 15: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

poucos registros físicos que dispomos a partir da casa em estudo em João Pessoa. Sua

sala da frente, destinada ao homem e suas visitas, aproveitava as janelas que abriam para a

rua. Resta a dúvida se em alguns destes imóveis remanescentes em João Pessoa as salas

de frente abrigaram “alguma oficina de artesanato ou mesmo uma loja" (LEMOS, 1996,

p.32). As alcovas viriam em seguida, abrindo certamente para o corredor, ou quem sabe

comunicando entre elas nas casas com maior número destes cômodos. Por fim, deveria

estar outro ambiente fundamental da vida cotidiana da família, a varanda alpendrada ou sala

de fundos que abria para o quintal, recebendo iluminação e ventilação natural. Era este o

lugar onde as mulheres permaneciam a maior parte do tempo em seus afazeres domésticos,

na companhia de seus filhos e serviçais. No mais, era o “puxado” com a cozinha e outros

espaços de serviços, também voltados para o quintal (Figuras 9 e 10).

De forma geral, os quintais foram de fundamental importância para o cotidiano da população

no período colonial, pois eram destinados à criação de animais e cultivo de produtos para a

subsistência nas hortas e pomares que forneciam muitos dos alimentos básicos para seus

habitantes.

Figura 9 e 10: Planta baixa e corte longitudinal do modelo 3D das casas no período colonial.

Fonte: Modelo idealizado por Maria Berthilde Moura Filha e produzido por Alexandre Magno

Nascimento e Gilson Ferreira. 2015.

Page 16: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Através deste modelo, construído sobre informações disponíveis in loco, pesquisa

documental e bibliográfica, somadas a conjecturas sobre uma casa que já perdeu muito do

que foi no passado, se buscou reconstituir o tipo de residência que, certamente, foi mais

recorrente na cidade, ao tempo da colônia. Não se pode afirmar a veracidade deste modelo,

mas utilizá-lo como uma aproximação àquela realidade distante no tempo e um exercício de

reflexão sobre o espaço edificado pretérito, o qual pode ter a função didática de explicar um

objeto arquitetônico hoje praticamente desaparecido nas cidades brasileiras.

Sendo exposto aqui apenas este modelo, cabe lembrar que a pesquisa, quando concluída,

estará reproduzindo o mesmo tipo de procedimento sobre residências que, entre o período

colonial e a década de 1940, ainda registram com sua presença a mudança no modo de

morar na cidade de João Pessoa.

Referências Bibliográficas

AGUIAR, Wellington. Cidade de João Pessoa: a memória do tempo. João Pessoa: Gráfica e

Editora Persona, 1992.

BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Recife: Fundação

Joaquim Nabuco / Ed. Massangana, 1997.

CORONA, Eduardo; LEMOS, Carlos. Dicionário da Arquitetura Brasileira. 2. ed. São Paulo:

Artshow Books, 1989.

COSTA, Lúcio. Documentação necessária. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional. Rio de Janeiro, n. 1, p. 31 – 39, 1937.

LEMOS, Carlos. História da Casa Brasileira. São Paulo: Contexto, 1996.

LINS, Eugênio de Ávila. Arquitectura dos Mosteiros Beneditinos no Brasil: século XVI a XIX.

2002. Tese (Doutoramento em História da Arte) – Faculdade de Letras, Universidade do

Porto, Porto, 2002.

LIVRO do Tombo do Mosteyro de Sam Bento da Parahyba. Liv. 2. Revista do Arquivo

Público Estadual de Pernambuco. Ano II, n. III. Recife: Imprensa Oficial, 1948.

LIVRO do Tombo do Mosteyro de Sam Bento da Parahyba. Liv. 3. Revista do Arquivo

Público Estadual de Pernambuco. Ano II. n. IV. Recife: Imprensa Oficial, 1949.

MACHADO, Maximiano Lopes. História da Província da Paraíba. Vol I. João Pessoa: Editora

Universitária/UFPB, 1977.

Page 17: DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE … · DOCUMENTANDO A ARQUITETURA RESIDENCIAL DA CIDADE DE JOÃO PESSOA: entre o real e o digital ... programa de necessidades,

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

MENDES, Chico; VERÍSSIMO, Chico; BITTAR, Willian. Arquitetura no Brasil: de Cabral a

Dom João VI. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2009.

MOURA FILHA, Maria Berthilde. De Filipéia à Paraíba: uma cidade na estratégia de

colonização do Brasil (Séculos XVI – XVII). João Pessoa: IPHAN/Superintendência na

Paraíba, 2010.

PINTO, Irineu Ferreira. Datas e Notas para a História da Paraíba.Vol. 1. João Pessoa: Ed.

da Universidade Federal da Paraíba, 1977.

REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. 6ª ed. São Paulo:

Perspectiva, 1987.

______ Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Ed. da Universidade de

São Paulo/Imprensa Oficial do Estado/Fapesp, 2000.

RODRIGUES, José Wasth. Documentário Arquitetônico. Belo Horizonte: Ed Itatiaia; São

Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979.

SOUSA, Alberto; VIDAL, Wylnna. Sete Plantas da Capital Paraibana, 1858 – 1940. João

Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2010.

SUMMARIO das armadas que se fizeram, e guerras que se deram na conquista do rio

Parayba; escripto e feito por mandado do muito reverendo padre em Christo, o padre

Chistovam de Gouveia, visitador da Companhia de Jesus, de toda a provincia do Brasil. Iris.

Vol I. Rio de Janeiro, 1848. p. 19-102.

VAUTHIER, L. L. Casas de residência no Brasil. In. Arquitetura Civil I. São Paulo: MEC /

IPHAN / FAU-USP, 1981. p. 1-94.