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DOCUMENTÁRIO ITAÚ

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Este DVD apresenta depoimentos de produtores, realizadores e pesquisadores ligados ao cenário do documentário no Brasil.

Trata de questões relacionadas aos modos de fazer e pensar esta produção, suas particularidades regionais e o impacto das novas tecnologias.

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Este DVD apresenta depoimentos de produtores, realizadores e pesquisadores ligados ao cenário do documentário no Brasil.

Trata de questões relacionadas aos modos de fazer e pensar esta produção, suas particularidades regionais e o impacto das novas tecnologias.

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SOBRE FAZER DOCUMENTÁRIOS

São Paulo, 2007

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Apresentação

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no BrasilCláudia Mesquita

A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidadeJosé Carlos Avellar

Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivoSheila Schvarzman

Documentário expandido – Reinvenções do documentário na contemporaneidadeFrancisco Elinaldo Teixeira

O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneoConsuelo Lins

Tendências do documentário contemporâneoLiliana Sulzbach

A expressão cinematográfica no território do documentalLuiz Eduardo Jorge

Documentário e subjetividade – Uma rua de mão duplaCao Guimarães

O documentário como experiênciaÉrika Bauer

Filme livreCarlos Nader

Outros novos rumosPaschoal Samora

Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectivaRoberto Moreira S. Cruz

Relatório de viagemFlavia Celidônio

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Sumário

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Sobre fazer documentários / Vários autores. – São Paulo : Itaú Cultural, 2007.

124 p.

Acompanha 1 DVD

1. Audiovisual 2. Documentários 3. Técnica 4. Produção 5. Brasil I. Título

CDD 791.43

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Desde a retomada da produção cinematográfica no país, em meados da década de 1990, o documentário cada vez mais tem ocupado espaço nos festivais e salas exibidoras, despertando a atenção do público e gerando interesse pelas imagens do gênero. Em sincronia com essa tendência, o Itaú Cultural desenvolveu uma política de difusão e fomento à produção de documentários por meio do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo. Nos últimos dez anos foram realizadas atividades estimulando o pensamento crítico, criando ações de difusão, exibição e apoiando a realização de mais de 35 filmes e vídeos.

Sobre Fazer Documentários apresenta reflexões e opiniões de cineastas e pesquisadores, tratando dos processos de realização, tendências e modelos de linguagem e perspectivas históricas sobre essas produções. O livro é o resultado de uma série de palestras realizadas em 13 cidades durante o período de lançamento e apresentação da 5ª edição do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo.

Uma contribuição pontual para o leitor que se interessa pelos rumos do audiovisual no país, especialmente pelo documentário.

Apresentação

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Proponho com este artigo um panorama breve e sintético da produção documental brasileira a partir dos anos 1960, quando ganha força e relevância estética o documentário independente no país. A idéia é relacionar condições de produção

e opções estéticas e temáticas tendo como recorte a questão da alteridade, ou as representações do “outro de classe”1. O texto está estruturado segundo uma periodização da produção, dividida em três “momentos”: documentário moderno (1960-1984), tempos de vídeo (1984-1999) e documentário da “retomada” (1999 em diante). A demarcação desses períodos não é rigorosa ou exata, mas aproximada, guiando-se por marcos simbólicos2; eu a utilizo para apresentar características dominantes em cada “momento”, bem como para sugerir transformações no decorrer desse percurso histórico.

Documentário moderno (1960-1984): a emergência do “outro”

Sabemos que, no Brasil, o enfrentamento da alteridade ganhou especial interesse, expressão e atenção a partir da entrada dos anos 19603. Com a emergência do documentário independente, entram em pauta, sob olhares críticos, as histórias, os problemas e as experiências das classes populares. Nesse período, dominaram os curtas e os médias-metragens, produzidos com baixos orçamentos e com o apoio de instituições que detinham e emprestavam os equipamentos básicos. Quando se fala em documentário moderno brasileiro, portanto, deve-se pensar num contexto não profissionalizado e na circulação extremamente restrita das obras – rejeitadas pelo circuito comercial, elas circulavam em festivais, cineclubes ou organizações políticas e culturais (Bernardet, 1987: 169).

Em Cineastas e Imagens do Povo (1985), livro sobre o documentário moderno brasileiro que se tornou referência indispensável, Jean-Claude Bernardet estabeleceu como eixo para o entendimento de sua trajetória uma questão posta justamente pela relação de alteridade:

Cláudia MesquitaProfessora da Universidade Federal de Santa Catarina. Jornalista formada pela UFMG, mestre em cinema pela ECA/USP e doutoranda na mesma instituição, onde desenvolve pesquisa sobre representações da experiência religiosa pelo documentário brasileiro. Atuou como pesquisadora nos documentários Peões (Eduardo Coutinho, 2004) e Em Trânsito (Henri Gervaiseau, 2005), e como assistente de direção em Saudade do Futuro (Cesar e Marie-Clemence Paes, 2000). Realizou Terra da Lua (1992, com Anna Karina e Tania Caliari), A Folia de Adão (2001) e 5 Mulheres de Paraisópolis (2004).

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil

1 Como aponta Bernardet (1987: 168), dois filmes curtos realizados em 1959 es-boçam tendências iniciais para o moder-no documentário brasileiro: de um lado, O Poeta do Castelo (Joaquim Pedro de Andrade) propõe um retrato intimista de um indivíduo “especial”, o poeta Manuel Bandeira; de outro, Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni) se volta à abordagem crítica da problemática vivida por uma comunidade pobre de pescadores. É esse veio aberto pelo segundo filme que estará em pauta neste artigo.

2 Estou ciente das ilusões da “periodiza-ção”, tão bem expostas por Bernardet em Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro (2004). Será possível seccionar a história do documentário brasileiro em “fatias temporais que tenham uma significação dominante intrínseca, bem como uma significação para os diversos elementos que a compõem?” (2004: 59). Apesar dos limites do método, que certamente não dá conta da diversidade da produção em cada “momento”, opto pela periodização por sua eficácia didática. Aqui, o perío-do do “documentário moderno” inicia-se com Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) e se encerra com Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984). O do-cumentário da “retomada” inicia-se com Santo Forte (Eduardo Coutinho, 1999), situando-se o período dos “tempos de vídeo” entre os dois marcos (1984-1999).

3 Antes da emergência do cinema novo, a maioria dos documentários produzidos – mesmo aqueles sob muitos aspectos notáveis – estava vinculada ao Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) e, portanto, orientada ideologicamente no sentido de promover uma imagem favorável e harmoniosa do país. Sem falar nos curtas e matérias de cinejornais, es-timulados nos anos 1930 e 1940 pela exibição compulsória de complemen-tos nacionais nos cinemas (legislação de 1932), mas resultando, de modo geral, em propaganda paga por em-presas e instituições.

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10 Cláudia Mesquita Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil 11

“quem é o dono do discurso?” (Saraiva, 2004). Com base na análise pormenorizada de 23 filmes, o autor identificou diferentes modos de construção cinematográfica do “outro de classe” (“o modelo sociológico ou a voz do dono”, “a voz do documentarista”, “a voz do outro” etc.).

Para caracterizar o que chamou de “modelo sociológico”, dominante nos anos 1960, o autor toma Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, como exemplo paradigmático. Nesse filme, já são utilizadas entrevistas, possibilitadas pela emergência técnica de gravação de som direto. Mas esse uso ainda é bastante restrito, limitado pelas condições materiais de produção e pelo paradigma documental clássico, ainda dominante. A “voz do povo” já se faz presente, portanto, mas ela não é o elemento central, sendo mobilizada na obtenção de informações e ilustrações que apóiam o documentarista na estruturação de um argumento (via de regra elaborado de antemão) sobre a situação real focalizada. De maneira geral, os documentários desse período estão interessados em estabelecer diagnósticos sobre situações sociais abrangentes e candentes. Almeja-se a macroanálise: o homem singular, a situação particular e o local específico são transformados em “categorias”, pelas quais se tecem significações genéricas, com a pretensão de iluminar dinâmicas sociais que conformam a experiência (de modo geral problemática) de muitos brasileiros. A relação observada nesse “modelo” é clássica, centrada na intransponível “exterioridade” do sujeito que filma em relação aos objetos filmados, como problematizou Omar (1978: 407): “Para haver um documentário é preciso uma exterioridade do sujeito e do objeto. Cada qual de um lado da linha, sem se tocarem. Só se documenta aquilo de que não se participa”.

Segundo o julgamento implícito em Cineastas e Imagens do Povo, esse “modelo” resultaria em representações autoritárias do “outro de classe”, reduzido a objeto de uma interpre-tação exterior, erudita, unívoca. Em resposta aos limites desse “modelo”, Bernardet inves-tigou, em curtas documentais dos anos 1970, experimentos que buscavam “promover” o sujeito da experiência à posição de sujeito do discurso. Uma dessas vias se materializou no ímpeto de “dar a voz”, notável em curtas como Tarumã (1975), de Aloysio Raulino, em que se observa certa “magreza estética” ou “estilo pobre”, que reduz sua forma de expressão ao mínimo, para que “o outro de classe assuma o discurso e não seja abafado pela voz do cineasta” (1985: 110). Mas, como escreve Bernardet, “o olhar continua sendo o do cineasta” (p. 110); não se problematiza a contento o gesto de “dar a voz”, a natureza da mediação (ainda obviamente presente) entre o espectador e a experiência do “outro”.

Como adverte ao leitor, Bernardet finalizou seu livro antes de assistir a Cabra Marcado para Morrer. Lançado em 1984, o filme de Eduardo Coutinho foi saudado como um “divisor de águas”. Entre as primeiras filmagens (interrompidas pelo golpe militar de 1964) e o lançamento definitivo, 20 anos se passaram. Cresceu a influência da TV, notável na retomada do projeto, quando Coutinho incorpora a experiência da reportagem televisiva, treinada no Globo Repórter. Em 1964, tentou-se a ficção de matriz neo-realista, os camponeses como atores de suas histórias, roteirizadas em cenas e diálogos. Em 1984,

domina a entrevista como palco do encontro/desencontro (sem roteiro prévio) entre “desiguais”: o cineasta, os camponeses. A entrevista aqui não é simples “depoimento”, não é “dar a voz”. Assumida no filme como diálogo, ela é permanente negociação. Marcando sua voz e presença em cena, Coutinho abre caminho para uma reflexão mais amadurecida sobre a elaboração de sentidos pelo documentário, pondo em crise tanto as ilusões de conhecimento objetivo do “modelo sociológico” quanto a falsa neutralidade do “dar a voz”: tudo é negociação, mediação, elaboração de versões, de discursos. Além de realizar uma espécie de “balanço crítico” do período moderno, Cabra sonda o futuro, estabelecendo parâmetros de linguagem que se tornariam muito influentes – tanto em termos de estratégias de abordagem e estilística (domínio da entrevista, assumida como “palco”, desnaturalizada) quanto de temática (a experiência dos “homens ordinários” como foco privilegiado de interesse4).

Tempos de vídeo (1984-1999): discursos “de dentro”

A carreira de Coutinho é emblemática. Depois do sucesso de Cabra Marcado para Morrer, o cineasta levaria 15 anos para voltar a produzir documentários longos em formato 35 milímetros, destinados às salas de cinema5. Nesse período, produziu quase exclusivamente em vídeo. Com a crise do cinema brasileiro, a penetração progressiva da TV e a popularização dos aparelhos de vídeo, desenvolve-se uma significativa produção documental nesse formato no Brasil. Essa produção não chega ao cinema e se limita a circuitos exibidores específicos: festivais, associações, TVs comunitárias. Portanto, diferentemente do cinema ficcional (notadamente em longa-metragem), o documentário não “sucumbiu” à virada dos anos 1980 para os 1990. Seguiu seu destino de gênero “menor”, apartado do mercado de salas, situação que parece se modificar razoavelmente a partir da chamada “retomada” do cinema brasileiro, como veremos.

De um lado, a produção documental dos “tempos de vídeo” tem fortes relações com os movimentos sociais, que surgiram ou reconquistaram espaço com a redemocratização. Desde o começo dos anos 1980, desenvolve-se a realização de vídeos em que o exercício do “processo” de registro e discussão importa tanto quanto os produtos. No chamado “movimento do vídeo popular”, não vale a escalada da profissionalização em curso no mercado audiovisual brasileiro daquela época, observando-se uma notável imbricação entre produtores de vídeo e atores dos movimentos sociais. Não tematizarei aqui tal produção, que por suas particularidades mereceria um estudo à parte. Não poderia, entretanto, deixar de notar a grande influência (temática, estética e de produção) do vídeo popular sobre o documentário independente, num período em que os movimentos sociais davam o tom das representações.

É muito freqüente, por exemplo, o projeto de elaborar, “de dentro”, as identidades dos grupos sociais retratados, em oposição ao estigma; de dar-lhes visibilidade de uma

4 Sobre a noção de “homem ordinário” e sua presença no documentário brasileiro contemporâneo, ver o trabalho de César Guimarães (2005).

5 A exceção parcial é O Fio da Memória, longa em 16 milímetros lançado – de modo restrito – em 1991.

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perspectiva que se propõe “interna”. Em termos de abordagem, a entrevista é o carro-chefe, revelando o ímpeto de “dar a voz”, de abrir o microfone aos sujeitos da experiência, opção que tem como correspondente a ausência progressiva de voz over interpretativa ou totalizadora (numa espécie de continuação do cinema anti-retórico da “voz do outro”). É o caso de Santa Marta – Duas Semanas no Morro (1987) e Boca de Lixo (1992), de Eduardo Coutinho. Embora possam ser considerados trabalhos autorais, eles se vinculam (em termos de produção) a entidades relacionadas ao movimento do vídeo popular6. Em ambos, a estratégia de abordagem dominante é a entrevista, embora ainda estejamos distantes da radicalidade de seu uso na obra recente de Coutinho. Em Santa Marta, sobretudo, ainda se observa um esforço “contextualista”: o projeto de associar as experiências dos entrevistados às de um grupo maior, do qual fariam parte e ao qual dariam expressão (a “comunidade”). Visivelmente está em pauta a reconstrução do espaço público no Brasil, após 20 anos de regime autoritário, e os movimentos sociais organizados (notadamente as associações de moradores) são vistos como atores políticos fundamentais. Para além das relações formais de trabalho, outras formas de vínculo e de pertencimento entram em cena: a população carcerária, os moradores de favelas e de ruas, as prostitutas, os trabalhadores informais. Entram em cena outros “sujeitos” – que “buscam”, na nova conjuntura, sua identidade (Oliveira, 2001: 11). É, portanto, nos anos 1980, na esteira do vídeo popular, que se inicia a elaboração de “auto-representações” ou representações efetivamente “de dentro” – tal busca será uma das tônicas a partir dos anos 2000, como veremos adiante7.

O documentário da “retomada” (1999...): subjetividades e auto-representações

Convencionou-se falar em “retomada” do cinema brasileiro a partir de meados dos anos 1990. Será essa periodização aplicável à produção de documentários? Também se fala em boom do documentário. Mas boom em que sentido? Convém lembrar que o documentário continuou sendo produzido no Brasil nos anos 1980 e 1990, à margem do mercado de salas. Por outro lado, seria exagerado afirmar que o gênero conquistou na atual década um mercado sólido8. Mas, mesmo que o público não seja expressivo, há uma novidade considerável, como aponta Carlos Augusto Calil: o fato de o documentário ter “superado a barreira da tela grande” do cinema, “janela do mercado até então interditada a este gênero” (Calil, 2005: 159). Desde 1992, foram lançados comercialmente mais de 50 longas documentais (o formato tradicional até os anos 1990 eram os curtas e os médias-metragens, com raras exceções).

Essa intensificação da produção de documentários para o cinema tem razões objetivas. Há maior agilidade e barateamento da produção pela captação com câmeras digitais e montagem com equipamento não-linear. Também há estímulo objetivo à produção por meio de uma legislação de incentivo ancorada em mecanismos de renúncia fiscal, que atrai patrocinadores privados. Mas o incentivo à produção ainda esbarra no problema da distribuição. Muitos longas documentais são produzidos, poucos são distribuídos satisfatoriamente. Por outro lado, a produção documental independente mantém a

histórica dificuldade de acesso à televisão, embora alguns experimentos recentes sugiram, se não mudanças efetivas de rota, novos percursos possíveis9.

Anomalias e distorções de mercado à parte, creio que a “retomada” documental já merece um balanço estético, sendo possível levantar características marcantes e recorrentes. Entre elas, destacaria uma tendência à particularização do enfoque: em vez de almejarem grandes sínteses, os documentários atuais buscam seus temas pelo recorte mínimo, abordando histórias e expressões circunscritas a pequenos grupos10. Nesse sentido, é freqüente a abordagem de experiências estritamente individuais, a investigação de singularidades. Há uma valorização da subjetividade do homem comum, um investimento no que, para além das determinações e normatizações sociais, é expressão “autêntica”, singular (Senra, 2004).

Relacionada a essa investigação de subjetividades, há uma tônica de abordagem empírica das situações – via experiência, via “encontro” com os personagens, evitando interpretações prévias. As experiências focalizadas são, de modo geral, tratadas como irredutíveis. Nem tipos, nem exemplos, nem casos raros ou comuns, entre outros casos. O valor está no “registro” e no trato respeitoso com elas, expondo suas singularidades – e não no “olho” que vê mais longe, relacionando essas experiências à conjuntura ou à estrutura social. Como bem observou Ismail Xavier (2000: 104), “a vontade agora é explorar mais os sujeitos no que têm de singular (…) evitam-se generalizações, a busca dos porquês”.

Santo Forte (1999), que marcou a volta de Coutinho à tela grande, estabeleceu parâmetros de linguagem bastante influentes. O filme compõe-se da montagem de entrevistas com 11 moradores de uma favela na Zona Sul do Rio, que conversam com o cineasta sobre suas experiências religiosas. Optando pela circunscrição espacial, o cineasta evita a tipicidade na escolha dos personagens. Ênfase total é posta na entrevista (ou conversa) como forma de abordar suas subjetividades. Na montagem, há uma minimização dos recursos narrativos, bastante reduzidos (evita-se narração, música, imagens de cobertura etc.) para não impor (aos sujeitos da experiência) qualquer tipo de comentário externo. Investindo em seqüências individuais, o diretor evita tomar os entrevistados como casos “representativos” ou “tipos” portadores de características que poderiam ser estendidas a um grupo maior de indivíduos. Por meio da ênfase em expressões verbais, todo o poder é dado aos sujeitos na elaboração de sentidos e interpretações sobre sua própria e singular experiência.

Outro marco é O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-Retratos), de 2003, de Paulo Sacramento, principal longa da tendência de “auto-representações”, muito presente na produção audiovisual brasileira atual (ainda que nem sempre chegue à tela grande)11. O Prisioneiro é resultado de iniciativa independente que promoveu oficinas de vídeo com detentos do extinto Carandiru. Já por seu desenho de produção, como escreveu Saraiva (2004: 176), o filme “provoca reflexões cruciais para o cinema, em especial para o documentário”. A busca pela afirmação dos sujeitos da experiência (como “donos do discurso”) foi possibilitada, nesse caso, pelo uso de pequenas câmeras digitais, de fácil manuseio. Trata-se, portanto, de

9 O DOCTV, por exemplo, representa um esforço inédito de relacionamento entre a TV aberta e a produção independen-te. Parceria entre Ministério da Cultura, TV Cultura e Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), o programa, ba-seado em concursos estaduais, tem viabilizado a produção regional de do-cumentários e sua veiculação em rede nacional, sem a “obediência” a mode-los de conteúdo ou formatos prévios. 10 Karla Holanda (2004) diagnosticou uma tendência à particularização do enfoque no documentário contempo-râneo brasileiro – tendência que ela compara à metodologia da micro-his-tória, em oposição às macroanálises.

11 Há uma série de experimentos (via oficinas de formação) que visam à elabo-ração de representações pelos sujeitos da experiência, apartados dos meios de produção e difusão de imagens. Citaria, além do Vídeo nas Aldeias, as Oficinas Kinoforum, realizadas na periferia de São Paulo, desde 2001, pelo Festival Internacional de Curtas.

6 Santa Marta foi produzido pela ONG carioca Instituto de Estudos da Religião (Iser); Boca de Lixo teve apoio do Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip), uma das principais entidades respon-sáveis pela produção de vídeos para os movimentos sociais no Rio a partir de meados dos anos 1980.

7 Um dos mais interessantes experimen-tos surgiu nos anos 1980: o Vídeo nas Aldeias. Sua proposta inicial era oferecer aos índios instrumentos para criarem suas próprias imagens, usadas para troca de informações entre diferentes povos. Desde 1998, por meio de oficinas, o pro-jeto tem formado realizadores indígenas, que assinam seus próprios documentá-rios e são hoje “mestres” nos processos de formação.

8 Basta dizer que, de todo o montante arrecadado com filmes nacionais em 2003, 92% correspondeu a produções da Globo Filmes (todas elas ficcionais).

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“uma formulação criativa das potencialidades trazidas pela nova tecnologia” (Saraiva, 2004: 176). Ao final, é notável a desmistificação do espaço do Carandiru promovida por esses “auto-retratos”. O que aparece é um presídio bem menos violento e mais cotidiano do que se poderia imaginar: a prisão como uma imensa cidade feita e refeita de práticas variadas (artesanato, serviços, comércio), compondo “um tecido social que parece prescindir da instituição” (Xavier, 2004: 12).

Por fim, chamaria a atenção para Estamira (2005), de Marcos Prado, um longo retrato do personagem de mesmo nome, trabalhadora de um lixão na periferia do Grande Rio. O filme talvez possa ser visto como uma síntese entre a busca de formas mais plásticas (numa tendência documental contemporânea que dialoga com a videoarte12) e a atenção ao encontro praticada por Eduardo Coutinho. O resultado é surpreendente. Não apenas um trabalho de apreensão e expressão estética do ambiente e do contexto, mas de longo e denso relacionamento com o personagem, recorridas vezes visitado pela equipe de gravação. Com seu esforço de contaminação pela subjetividade arrebatada e irredutível de uma mulher socialmente à margem, Estamira diz muito sobre as questões e enfoques privilegiados pelo documentário brasileiro atual, em seu renovado enfrentamento da alteridade de classe e dos abismos sociais.

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12 Como se nota nos trabalhos de Marília Rocha (Aboio, 2005) e Cao Guimarães (O Fim do sem Fim, 2001, com Beto Magalhães e Lucas Bambozzi; A Alma do Osso, 2004; e Acidente, 2006, com Pablo Lobato).

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1No começo do século XIX, quase no mesmo instante em que Nicéphore Niépce inventava a fotografia comportando-se como um pintor, deixando-se ficar longo tempo diante da paisagem (exageremos um pouco: a objetiva da câmera ficou aberta

durante todo um dia de sol para que se pudesse gravar a imagem), John Constable pintava comportando-se como se fosse um fotógrafo (exageremos um pouco: fazendo um quadro numa fração de segundo), registrando instantâneos de nuvens. Óleo ou aquarela sobre papel, madeira ou tela, pouco mais que esboços para as paisagens que iria pintar mais tarde, quase fotos jornalísticas que traziam uma espécie de legenda com local, dia, mês, ano, hora e condições meteorológicas do instante registrado; estudo de nuvens com horizonte de árvores, meio-dia, depois da chuva, um pouco de vento (Cloud study with an horizon of trees: noon, September 27, 1821, after rain, wind). Dez da manhã, olhando para o sudeste, nuvens cinzas correndo rápidas sobre o leito de um céu tingido de amarelo (5th september, 1821, 10 o‘clock, morning, looking south-east, very bright and fresh greys clouds running fast over a yellow bed, about half way in the sky). Constable antecipava assim o que primeiro a fotografia, que ia sendo inventada então, e depois o cinema, a fotografia em movimento inventada no fim do século, iriam fazer adiante: documentário, um registro (objetivo subjetivo) do que se passa no instante em que se passa. O cinema, e em particular o filme documentário, nasceu como expressão desse desejo que se formulou primeiro na pintura.

Entre a pintura e o cinema existe uma relação semelhante à que se encontra entre as nuvens pintadas muito rapidamente por Constable para preparar as paisagens que ele iria produzir mais tarde – a pintura, de certo modo, esboçou o que o cinema iria fazer em seguida. Se examinarmos a questão do ponto de vista do cinema documentário, interessados em examinar a relação que se estabeleceu entre o filme documentário e o filme de ficção, encontraremos na experiência de Constable uma antecipação do que viria a ocorrer no cinema brasileiro (não apenas, mas especialmente no cinema brasileiro) no

José Carlos AvellarCrítico de cinema, autor de ensaios sobre cinema brasileiro e latino-americano, entre eles: Glauber Rocha, Madri, Editorial Cátedra, 2002; A Ponte Clandestina, Teorias de Cinema na América Latina, São Paulo, Editora 34, 1996; Deus e o Diabo na Terra do Sol, Rio de Janeiro, Rocco, 1995; O Chão da Palavra: Cinema e Literatura no Brasil, Editorial Prêmio, 1994. Foi diretor cultural da Embrafilme (1985-1987) e diretor-presidente da Riofilme (1994-2000). Atualmente é consultor de cinema do Programa Petrobras Cultural.

A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade

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18 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 19

começo da década de 1960: o documentário (como as rápidas anotações ao vivo das nuvens) como esboço necessário para a ficção (as paisagens pintadas em estúdio).

De certo modo, a fotografia e o cinema concretizaram o que já vinha sendo esboçado pela pintura desde o começo do século XIX. Francisco de Goya, por exemplo: a seqüência feita entre 1806 e 1807 (no acervo do Art Institute de Chicago), El Maragato Amenaza con el Fusil a Fray Pedro de Zaldivia, e as outras cinco telas que complementam a ação da primeira – frei desvia o fuzil; frei luta para desarmar o Maragato; frei golpeia o Maragato com o fuzil; frei dispara o fuzil; e frei amarra o Maragato. O que temos aqui é um filme documentário antes do cinema, tanto nesses seis quadros como nos dois pintados em 1814 (no acervo do Museu do Prado de Madri): El Dos de Mayo de 1808 en Madrid, la Lucha con los Mamelucos e El Tres de Mayo de 1808 en Madrid: los Fusiliamentos de la Montaña del Príncipe Pío. Documentário antes do cinema são também as gravuras que José Guadalupe Posada publicou da Gaceta Callejera do México no fim do século XIX, como Ballazos en Calle de San Hipolito, ou El Motín de los Estudiantes en Mayo de 1892, ou ainda Fusiliamento del Capitán Clodomiro Cota.

Outro exemplo de representação visual que tem algo a ver com o que se concretizaria na prática do cinema documentário é o quadro que J. M. W. Turner pintou em 1842 e que surpreende primeiro pela indicação precisa em seu longo título: Snow Storm – Steamboat off a Harbour’s Mouth Making Signals in Shallow Water, and Going to the Lead. The Author Was in this Storm on the Night the Ariel left Harwich. Algo que surpreende ainda mais quando o título se liga à imagem, pois a pintura parece contrariar a promessa de documentário contida no seu meio título, meio legenda. Nenhum detalhe da tempestade de neve imobilizado para uma observação minuciosa, nenhuma forma claramente identificável como o navio Ariel que sinaliza ao tentar deixar o porto. Somente manchas pouco precisas que compõem um ritmo nervoso. Talvez um traço fino no centro do quadro possa ser compreendido como o mastro de um navio, mas, de fato, nada do registro preciso que se poderia esperar do relato de alguém que esteve lá, na tempestade, amarrado no mastro do navio, como diz o pintor, que garante ter estado lá: “Pedi aos marinheiros que me amarrassem ao mastro do vapor para contemplar a tempestade. Fiquei amarrado durante quatro horas, cheguei a achar que não iria sobreviver; mas só pensava em registrar a tempestade se porventura saísse vivo dela”.

Registrar, documentar, sim, mas registrar de outro modo, documentar outra questão. A tempestade de neve em Harwich na noite em que o Ariel deixou o porto foi pintada no exato momento em que os franceses Nicéphore Niépce, Louis Daguèrre e Hippolyte Bayard, o alemão Peter Voitgländer e o inglês William Fox Talbot aperfeiçoavam os processos, as objetivas e os aparelhos fotográficos. Consciente ou não (pouco importa) do registro essencialmente objetivo da aparência das coisas por meio da fotografia, Turner pinta movido por uma vontade de documentar de um modo não (ou além do) fotográfico: “Não pintei a tempestade para que ela pudesse ser compreendida, mas porque queria mostrar

algo parecido com esse espetáculo. Queria mostrar o que se sente com um tal espetáculo”1.A questão levantada por Turner na metade do século XIX é, a rigor, a mesma que alimenta a discussão em torno da prática do cinema documentário desde a metade do século XX: como ir além do registro puramente (fotográfico? jornalístico?) da superfície, da aparência visual primeira das coisas? Como levar o espectador a sentir mais do que simplesmente ver o que se passa? Como fazer da imagem do documentário algo que mostre a realidade não exatamente como ela é, mas como foi percebida e sentida pelo realizador?

Talvez seja possível dizer que, em Rocha que Voa (2002), Eryk Rocha pinta sua imagem assim como Turner fotografou sua tempestade de neve. E que em Ônibus 174 (2002) José Padilha grava um incidente trágico da vida do Rio de Janeiro tal como Posada fotografou tiroteios, motins e fuzilamentos em sua gazeta de rua do fim do século XIX. Isto é, esses filmes não se apoiaram na pintura de Turner ou na gravura de Posada, mas lembrar imagens produzidas mais de um século antes permite situar melhor em que tradição de representação visual se insere o cinema documentário e reconhecer o que se faz hoje no cinema como a realização de um desejo sonhado muito antes da invenção dos meios técnicos para realizá-lo; e permite verificar que, de certo modo, o cinema documentário, hoje, parece voltar-se para o instante em que foi sonhado.

2. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1988, 13 horas, avenida 13 de maio: os 13 integrantes da Confraria do Garoto comemoram a seu modo o aniversário da confraria e o centenário da abolição – diz o narrador de O Fio da Memória sobre imagens que mostram um pequeno e animado grupo que se diverte ao som de Cidade Maravilhosa. Como parte da festa, prossegue o narrador, preparam a coroação da rainha do centenário da abolição em frente à Igreja do Rosário e de São Benedito. Surge então uma imagem que se move para todos os lados, que pega o espectador de assalto, que não deixa tempo para organizar a visão.

Em frente ao quadro, a festa da coroação: Fátima Ju – anos antes escolhida a mulata mais bonita do Brasil no programa do Chacrinha – recebe a faixa e a coroa de rainha do centenário da abolição. Por trás da coroação, outra festa na Igreja do Rosário, a da escrava Anastácia, que muita gente diz ser responsável por milagres e que, insiste um garoto entrevistado em sala de aula, foi quem de verdade libertou os escravos. Ela, porque ela é que brigou mesmo pela libertação, ela, a escrava Anastácia, num 13 de maio, seu dia, e não a Princesa Isabel, que apenas assinou a lei que pôs fim ao cativeiro.

Uma festa ruidosa em frente: alguém coloca nos braços de Fátima Ju um menino de pouco mais de 1 ano e tenta deslocar a coroa da cabeça dela para a da criança, que protesta e chora. Outra festa menos barulhenta lá atrás, na igreja. Tudo isso se mistura dentro da imagem, e de quando em quando algo que o enquadramento empurra para um canto ou para trás salta para o primeiro plano. É assim que, de repente, perdemos Fátima Ju de vista e nos encontramos diante de uma mulher negra que protesta com força e chama a

1 O relato de Turner nem sempre é acei-to como autêntico. Ele tinha 67 anos ao pintar a tempestade de neve, e não há informações de um navio Ariel deixando o porto de Harwich, nem de uma esta-da do pintor naquela região. O quadro pode ter sido uma livre invenção a par-tir da memória de uma tempestade de neve que ele atravessara nos Alpes 30 anos antes. Com base nela ele desenhou diversas notas para “fotografar” rapida-mente no papel o que via e pintou em 1812 Snow Storm: Hannibal and his Army Crossing the Alps. Esses esboços podem ter servido também para outra Snow Storm pintada em 1836 na Suíça. De qualquer modo, a pintura realizada com base em anotações, em esboços feitos ao vivo (como uma filmagem?) e depois organizados num quadro (como numa montagem?) que não reproduz objetiva, fiel, fotograficamente o acontecido, mas expressa a sensação sentida durante o acontecimento, aproxima sua pintura de certo modo de fazer cinema documen-tário hoje.

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atenção de todos: “está provado, a escravidão nunca que acabou!”. Ela fala com voz firme, se movimenta enquanto fala. A mistura indisciplinada – o riso da rainha, o choro do garoto com a coroa enfiada na cabeça, a música alegre, o vozeirão zangado da mulher negra, o sorriso de ironia de quem passa mais interessado na rainha meio nua do que na festa, a seriedade que passa com olhos só para a escrava Anastácia, o riso malandro de quem está só querendo ser filmado –, a aparente desordem da imagem segue sua ordem.

A mulher negra segue protestando: “o preconceito não vai acabar”; a rainha coroada, “magricela, parece mais homem que mulher”; ela “prova e reprova com toda a confiança do fundo da alma que o branco não gosta mesmo de preto”; e segue com frases que param na metade porque um homem branco entra na conversa, decidido a mostrar que não existe preconceito de cor no Brasil. Ele corta a fala da mulher negra, mas também não consegue concluir o que queria dizer. “Cinqüenta e um por cento da população brasileira...”, tenta uma primeira vez sem conseguir atenção. Tenta de novo, e de novo, e de novo, mas ninguém parece interessado em ouvi-lo. A mulher negra não lhe dá ouvidos, diz que não está falando com ele, que está falando com o repórter. As pessoas em volta entram na discussão, muita gente fala ao mesmo tempo, ninguém escuta nada. Num instante, aproveitando uma brecha na gritaria, o homem branco solta a voz e quase completa o que queria dizer: “Cinqüenta e um por cento da população brasileira tem a raça negra. Em qualquer companhia, quem tem 51% das ações controla a empresa. Se o negro não consegue controlar o país...” Ao que parece ele ia dizer algo como “é por falta de capacidade” ou “é por falta de organização”, ou um qualquer outro “por falta de”. Não consegue. Aí, sim, toda a gente em volta interfere ruidosamente. Adivinham a conclusão da frase e... exatamente aí, quando a ação começa a esquentar mesmo, a cena se interrompe, o filme muda de assunto.

Esse fragmento é insuficiente para dar uma idéia precisa do documentário que Eduardo Coutinho iniciou às vésperas do 13 de maio de 1988 e terminou três anos depois, mas é um bom exemplo da narração fragmentada e aberta para todos os lados de O Fio da Memória. Esse modo de narrar aparece como parte da coisa narrada, como uma representação do modo de viver imposto ao negro.

Primeiro sinal da fragmentação: dois diferentes narradores. Uma só narração, mas dois narradores. O primeiro – o texto é de Coutinho, a voz é de Ferreira Gullar – dá informações imediatas, introduz as diversas situações, como a festa da Confraria do Garoto. Diz, por exemplo, que com a abolição o negro, analfabeto, desaculturado, sem cidadania e sem família, teve de lutar contra a desagregação e reunir os estilhaços de sua identidade. Esse primeiro narrador volta mais tarde para anunciar a marcha de militantes do movimento negro do Rio de Janeiro, no dia 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi dos Palmares e Dia da Consciência Negra. Volta também, sempre como uma voz de poucas palavras, para apresentar brevemente os entrevistados, entre outros Manuel Deodoro Maciel, ex-escravo de 120 anos de idade; a família que criou o Cacique de Ramos, os

menores do centro de triagem de meninas abandonadas de Charitas, em Niterói; e, ainda, é ele que nos apresenta o segundo narrador, Gabriel Joaquim dos Santos, que viveu no distrito de Vinhadeiro, município de São Pedro d’Aldeia, quase divisa com Cabo Frio, a menos de 200 quilômetros do Rio de Janeiro, nasceu em 13 de maio de 1892 e morreu no começo de 1985, aos 92 anos. O primeiro narrador apresenta e praticamente cede o lugar ao segundo narrador. A voz é de Milton Gonçalves, o texto é de um depoimento gravado no fim dos anos 1970 e dos cadernos em que Gabriel anotava (como quem faz um documentário?) alternadamente fatos de seu cotidiano, da história da região e da história do Brasil.

Gabriel conta que, por volta de 1926, depois de entrar para a Igreja Batista, conheceu “um menino bem sabido” que ensinou “alguma coisa de leitura” para ele numa “cartilha de criança” e que desde então começou a anotar o que se passava num caderninho. Fala de tudo, e a informação mais importante não vem propriamente dos fatos narrados, mas de seu modo descontínuo de narrar, que salta de uma frase para outra e de um fato a outro por meio de um corte seco. É esse segundo narrador, Gabriel, quem determina o modelo de construção do filme e o sentimento que o comanda, porque, em algum momento do processo de realização, o homem com a câmera viu a vida de Gabriel, seu jeito de falar e de fazer as coisas, como uma imagem da condição do negro brasileiro que constrói seu espaço à margem do país, tal como Gabriel construiu sua Casa da Flor com pedaços de coisas apanhadas no lixo: “Quando acabei a obra da casinha, aí veio um pensamento para enfeitar essa casinha. Enfeitar de que maneira?, pensei. A gente não tinha dinheiro para comprar certas coisas, então imaginei de apanhar aqueles caquinhos de louça do lixo. Apanhar caco de vidro, fazer aquelas florzinhas de vidro para pregar na parede da casa para enfeitar. Veio aquela coisa na mente. Só apanhar os cacos, resto das grandes obras da cidade”.

A casa se impôs como exemplo da força do pobre, diz Gabriel: “Os moços do Rio chegam aqui e eu digo a eles: lá no Rio tem tanta coisa linda. Eles: não, aquilo não é lindo, nos conformemos com o Rio de Janeiro porque lá é a força da riqueza, é a força da engenharia – tem casa, tem palacete, mas é a coisa bem organizada da riqueza. Eles vêm aqui para ver a força da pobreza. Eu quero que eles admirem é a força da pobreza”.

Ele conta que começou a trabalhar na salina em 1912 e “saiu de lá no ano 1960, cansado e encostado pelo instituto”. Naquele tempo os operários ganhavam por dia: “no ano de 1912, dois cruzeiros; 1920, três cruzeiros; 1930, seis cruzeiros; 1940, sete cruzeiros; 1950, chegou a 60 cruzeiros”. Logo em seguida anota: “as leis do cativeiro no Brasil começou no tempo da colonização no ano de 1532”. E continua, somando outros fragmentos: “Guilherme me deu um vintém feito em 1869. Me deu em 30 de abril de 1955. O preço dos gêneros alimentícios em 1963: 1 quilo de carne, 700 cruzeiros; 1 quilo de feijão, 180 cruzeiros; 1 quilo de açúcar, 140 cruzeiros; 1 quilo de arroz, 200 cruzeiros; 1 quilo de farinha, 70 cruzeiros; um pão, 15 cruzeiros. No dia 17 de abril de 1963 começou a greve na salina. O papa de Roma morreu em 3 de julho de 1963”.

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Lembra, adiante, que “José de França amaziou-se com Almerinda em 12 de fevereiro de 1964. Santos Dumont fez o primeiro vôo em 1906. A reforma agrária foi assinada no dia 13 de março de 1964 pelo presidente da República. João Goulart assinou às quatro da tarde no Rio de Janeiro. A ordem é: quem não obedecer vai para a Ilha das Flores. O marechal Castelo Branco tomou posse em presidente da República em início de abril de 1964. Getúlio Vargas enviou as forças brasileiras para a guerra na Europa no dia 13 de novembro de 1943”.

O texto de Gabriel tem uma construção tão indisciplinada quanto a cena da coroação da rainha do centenário da abolição. Filme e texto obedecem a um mesmo princípio de composição e levam o espectador a sentir (não afirmam diretamente, não explicam, sugerem, levam o espectador a sentir sem se dar conta disso de forma consciente) que a desagregação imposta ao negro foi transformada por ele num diferente modo de se agregar e se expressar culturalmente. Ao selecionar uma fala em que Gabriel conta que é governado pelo sonho, O Fio da Memória abre espaço para se explicar por meio de Gabriel. O documentário está, como sempre, interessado em ouvir, mas está ao mesmo tempo falando, explicando sua dramaturgia: “Eu me deito muito cedo. Não para dormir, para pensar. Eu tenho um pensamento vivo. Meu pensamento é vivo, e quando chega meia-noite fico adormecido. Sonho toda noite. Sou governado para fazer essas coisas no pensamento e no sonho. Ninguém me ensinou, é coisa espiritual. A senhora pensa que eu tinha inteligência para fazer isso? Eu mesmo faço, eu mesmo me admiro”.

Imaginar um documentário (modo de fazer cinema que em princípio se pretende tão objetivo, direto e controlado pela razão quanto possível) como forma governada pelo sonho define a questão principal de O Fio da Memória: um diálogo entre seus dois narradores, o filme está mesmo interessado em conversar: com a câmera, com as pessoas diante dela no instante da filmagem, com o espectador na sala de projeção depois do filme pronto. Estamos todos (a expressão popular é o que melhor traduz o que se passa) jogando conversa fora. Os entrevistados estão à vontade na imagem, mas essa sensação o espectador só recebe porque a documentação se organiza com um rigor que parece mais coisa solta, contraditória, indisciplinada, que rigorosa. Assim, o espectador percebe cada depoimento como uma informação dupla, como uma representação do diálogo entre os dois narradores que orienta sua estrutura.

De quando em quando a imagem é longa, porque se trata de deixar que o entrevistado se revele na conversa: ele não apenas conta determinado episódio que viveu ou presenciou no passado: conta sua memória, conta o que ele próprio é, se revela nos gestos, nas expressões, no modo de falar. De quando em quando a conversa é curta, porque uma ou duas frases são o suficiente para levar o homem com a câmera a engolir em seco diante de gente de quem se tirou a possibilidade de se expressar, como as crianças abandonadas em centros de triagem: a menina que nem sabe como veio para o centro responde de cabeça baixa que não veio, está ali desde sempre; o menino que com o rosto escondido na

sombra diz que já fez “uma pá de coisas nessa vida”, já fez de tudo, roubou, matou, traficou. Longas ou breves, as conversas são sempre abertas, inconclusivas, um primeiro encontro. O entrevistado não repete para a câmera um depoimento previamente ensaiado. Ele não se encontrara antes com o diretor. Coutinho envia um assistente para combinar a conversa, mas só se encontra com a pessoa que vai filmar no instante da filmagem. E começa a filmar logo que chega, sem combinar previamente sobre o que vai ser a conversa. Entrevistador e entrevistado se surpreendem ao mesmo tempo um com o outro. Alguma coisa nova, única, imprevista, se dá então, alguma coisa aberta como a pequena confusão diante da Igreja do Rosário pouco depois das 13 horas do dia 13 de maio de 1988.

A arquitetura dramática desestruturada, porque inspirada na Casa da Flor e nos textos de Gabriel Joaquim dos Santos, porque preocupada em ser uma imagem viva do tema que a inspira, porque solta como uma conversa, não é o que primeiro aparece em O Fio da Memória. Enquanto o filme está na tela o que prende mesmo a atenção não é a câmera, mas as pessoas diante dela. O desenho do quadro e a forma de organização do filme só se percebem depois de terminada a projeção, quando volta à memória o texto de Gabriel que abre e encerra a narração: “O Brasil já foi mandado por Portugal. O Brasil já foi uma roça portuguesa. Aqui já foi tudo. Existiu aqui um cativeiro muito perigoso, os portugueses a carregar negros da costa da áfrica pra botar aqui pra trabalhar na enxada. E essas coisas tudo já passou. Aí o português entregou isso. D. Pedro I fez a independência. Botou o Brasil pra cá e Portugal pra lá. E ficou o Brasil por conta de nós próprio”.

3. Imaginemos que o cinema documentário se realize num espaço entre a pintura (o desejo de reproduzir o movimento se movimentando, Goya, Constable, Turner, por exemplo) e a pintura (a proibição de reproduzir, René Magritte e La Reproduction Interdite, por exemplo).

Numa tela de 1937, Magritte antecipa e resume a questão que os filmes documentários (os brasileiros, mas não só) começaram a se propor mais recentemente. A tela La Reproduction Interdite se propõe como um retrato de Edward James. Nela, um homem diante do espelho vê refletida não a imagem de seu rosto, mas aquela mesma figura que o espectador do quadro vê: no espelho ele aparece de costas, como se o essencial de sua imagem não pudesse se refletir no espelho. Magritte pinta quase como quem fotografa, reproduzindo tal e qual as costas de um homem diante do espelho – melhor, de uma pessoa em particular, Edward James, com seu penteado, seu porte físico e as dobras do paletó. Pinta como quem fotografa o livro sobre a bancada de mármore em que se apóia o espelho (e igualmente refletido no espelho como o vemos, do mesmo ângulo de visão). É evidente que Magritte não pintou La Reproduction Interdite para discutir o documentário (por mais que gostasse de cinema; por mais que tivesse, à margem de sua expressão visual, feito experiências com fotografia e cinema). Mas como tudo na imagem parece fotografar documentalmente o homem que diante do espelho vê não o seu rosto, mas as suas costas, o quadro pode ser

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tomado como uma representação do problema que o cinema documentário enfrenta agora: como revelar no quadro o espaço mais amplo fora de quadro? O assunto, o tema, a questão registrada são somente uma forma de compor um quadro que durante todo o tempo joga o olhar para fora dele, para documentar no que está ali, imediatamente visível, o que não se traduz para o olhar: reproduction interdite.

4.No começo de Passaporte Húngaro (2002), Sandra Kogut fala ao telefone. Ela pergunta ao consulado da Hungria se uma pessoa com um avô húngaro tem direito a um passaporte daquele país. Na verdade, são duas conversas, em francês, montadas como uma fala contínua, mas feitas em momentos e em telefones diferentes. A voz masculina que atende a uma das chamadas acha que não, que um neto de húngaro não tem direito a Passaporte Húngaro. A voz feminina que atende à outra chamada pergunta se ela poderia reunir documentos capazes de provar a origem húngara de seus avós.

No começo de 33 (2003), Kiko Goifman fala com o espectador. Diz que sempre gostou de contar que é filho adotivo em momentos inesperados e observar como as pessoas se sentem nessas ocasiões. Diz que tem 33 anos, que foi adotado por Berta, que nasceu em 1933, e que naquele dia, 9 de setembro de 2001, começava a remexer no passado, partindo em busca de sua mãe biológica por 33 dias e por “um caminho metódico e torto”. Decidira ir ao escritório de detetives para pedir dicas, usar as manhãs e tardes para as investigações e as noites para “a procura de imagens, nas poucas luzes e nos vazios“.

O que aproxima esses dois filmes não é apenas o começo, com imagens diferentes mas parecidas entre si: um breve discurso para apresentar uma busca e definir seus limites. São documentários próximos um do outro porque neles os realizadores estão no centro das histórias que contam; porque radicalizam algo presente em todo documentário de forma velada: o pedaço em que o documentário, filme voltado para o outro, até certo ponto determinado pelo outro, sem tirar os olhos do outro, se refere a si mesmo, fazendo do retrato do outro também um auto-retrato, como quem diz “ eu sou o outro”. A imagem aqui é um espelho como o de La Reproduction Interdite. Sandra e Kiko, no centro do filme desde o primeiro instante, aparecem como Edward James na pintura de Magritte: rostos invisíveis.

Em muitos planos de 33 vemos a câmera na mão de Kiko. Ele não filma a si mesmo num espelho, apenas deixa visível em qualquer superfície lisa capaz de refletir uma imagem a câmera com que (se) filma. Conscientemente ou não, define-se como um homem com uma câmera; reafirma a importância de seu instrumental sensível, o cinema; indica que manter a atenção voltada para a câmera, para o cinema, é aqui tão importante quanto observar as ações documentadas durante a busca de sua mãe biológica. O personagem que está em cena filma a cena. O Kiko diretor e o Kiko personagem em cena são ao mesmo tempo dois e um só, e reiteram: eu e meu eu/outro, antes de qualquer coisa, fazemos cinema. O Kiko diretor busca (busca talvez mais importante que a da mãe biológica efetuada pelo Kiko personagem) imagens para dizer o que ele sente e pensa durante a procura.

Também em Passaporte Húngaro a pessoa que filma participa da cena com a câmera na mão, age na cena que está filmando2. Usa um pequeno vídeo digital, e as pessoas que estão sendo filmadas nem percebem a câmera, ou, se percebem, acham natural que ela esteja ali, objeto semelhante a uma caneta, bolsa, livro ou caderneta. Em cena as pessoas filmadas conversam na presença de um terceiro olhar, pequenino, discreto, silencioso. Sem esse terceiro olhar, a cena seria diferente ou talvez nem viesse a existir. Na verdade, trata-se de um jogo em que a intervenção é de mão dupla. Sandra, a realizadora, age primeiro como um personagem de seu filme. Lida com a câmera como se estivesse também sendo observada pela objetiva. Vive o instante que filma como personagem da cena, não como quem a dirige. Não domina a cena nem sabe o que vai acontecer com ela. Busca Passaporte Húngaro e documenta o processo – que se estendeu por dois anos entre idas a consulados e arquivos, além de visitas a familiares, todos filmados. O mesmo ocorre com o projeto de Kiko Goifman: 33, tal como planejado, só teria sentido se ele mesmo se filmasse3. A idéia de procurar e filmar a procura da mãe biológica e a idéia de pedir e documentar o pedido de Passaporte Húngaro parecem ter surgido ao mesmo tempo, em fusão, uma dentro da outra. Observando a questão sob um ponto de vista exclusivamente cinematográfico, é possível supor, com algum exagero, que o fato de procurar a mãe biológica e o de pedir Passaporte Húngaro tenham surgido primeiro como idéia de filme.

Adotando a expressão com que Geraldo Sarno resumiu a questão4, o que um documentário documenta com veracidade não é o que está em quadro, e sim o modo de compor o quadro, a maneira de documentar do documentarista, seu modo de reagir às questões concretas que surgem durante a realização do filme, aquelas criadas pelo objeto a ser documentado e as provocadas pelo sistema de produção. Nos filmes de Sandra e de Kiko, além disso, mais do que se mostrar indiretamente no modo de estruturar o discurso, o documentarista documenta a si mesmo. Filma o seu outro eu. Filma sua família. É o que documenta e o que está sendo documentado. Está no centro da história, bem no centro – se aceitarmos a possibilidade de um centro excêntrico.

Nas imagens iniciais de Passaporte Húngaro vemos um telefone e logo um outro filmados, ao que tudo indica, sob o ponto de vista de quem fala ao telefone. A imagem que se produz então equivale à que se obtém com o gesto automático de riscar uma coisa qualquer no papel durante uma conversa telefônica. O espectador vê o telefone na tela assim como Sandra, no instante da filmagem, viu a imagem: ela foi construída para mostrar a conversa e não o aparelho. Olhamos o telefone e vemos Sandra, que fala aqui, e o homem e a mulher que respondem do outro lado da linha. O que vemos nesse momento não é o que está ao alcance dos olhos, mas o que se constrói pela estrutura de composição – porque num filme cada plano, quadro, fragmento é apreendido pelo espectador não somente como a expressão do que a imagem imediatamente revela, mas como um gesto da ordem expressiva que organiza a imagem. Não importa que Sandra não esteja ali; o que o documentário então documenta é Sandra, fora de quadro, refletida num falso espelho como o de Magritte. Kiko está igualmente fora de quadro no falso espelho de 33. A imagem apenas sugere um pouco

2 Em depoimento feito para o site de Passaporte Húngaro (http://www.repú-blicapureza.com.br/passaporte), Sandra Kogut conta por que não aparece na imagem do filme: “Foi uma decisão que tomei na hora da edição. Achei que, num filme sobre identidade, seria redutor ter uma imagem, um corpo... Ao mesmo tempo, não é um filme autobiográfico, acho mais importante estar presente com o olhar: o que me interessa é, atra-vés do meu olhar, mostrar outras pessoas [...] Não existe um motivo central. Se eu estivesse pedindo um passaporte por-que queria uma cidadania européia, acho que não faria um filme. Eu só quis fazer o filme porque era uma coisa complexa, porque não havia um único motivo”.

3 Sobre 33, de Kiko Goifman, ver também na internet a página do filme: http://www. uol.com.br/33.

4 SARNO, Geraldo. Quatro notas e um depoimento sobre o documentário. In: Cinemais, n. 25, set./out. 2000.

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do que está fora de quadro: Kiko aparece numa espécie de fusão conseguida graças ao ângulo da câmera diante da janela, meio vidro, meio espelho, que, enquanto deixa ver o lado de fora, reflete parte do lado de dentro, a televisão ligada iluminando o rosto de Kiko. Mostrar-se assim, fora do campo visual, é um modo de levar o espectador a se dar conta da composição como elemento essencial do documentário, que deixa de ser um simples registro visual e sonoro do fragmento da realidade diante dele. Um documentário não repete, não reapresenta a realidade: representa, pensa.

5.“Não há como negar, Nelson Freire é feito de lacunas.” João Moreira Salles definiu assim seu trabalho, depois de lembrar o que conseguiu registrar: “Nelson tocando o Segundo Concerto de Brahms no Municipal do Rio, tocando o mesmo concerto no sul da França com a Filarmônica de São Petersburgo, tocando a quatro mãos e dois pianos com sua grande amiga Martha Argerich, tocando a Fantasia de Schumann em pelo menos três ocasiões diferentes (todas elas de tirar o fôlego), tocando Villa-Lobos dentro de uma igreja barroca com vista para o Mediterrâneo. Porém, não há como negar”, conclui, “Nelson Freire (2003) também é feito de lacunas”. E essa é a primeira informação que se recebe do filme. No pedacinho inicial do que ainda vai ser a primeira imagem se anuncia com clareza: o filme se constrói como fragmento, pedaço, parte, estilhaço, intervalo, fora de quadro. O fragmento primeiro é uma unidade mínima de som logo cortada – mal começa, acaba. Um golpe seco, não se percebe nada além disso. A música acabou, a orquestra parou, a platéia aplaude. O pianista curva-se para agradecer e, ao lado do maestro, caminha na direção da câmera, que está no fundo do palco, por trás dos músicos, escondida nos bastidores. O quase-som que ouvimos dura pouco e é logo esquecido porque – sem intervalo algum, quase sem silêncio entre um e outro – novo som forte cobre a imagem: o aplauso da platéia. E, ao contrário da batida inicial, o som do aplauso se alonga, continua. Continua. E continua. Entusiasmado, mais forte e presente na imagem que a conversa entre o pianista e o maestro nos bastidores. Eles trocam poucas palavras. Comentam que tudo correu bem. O pianista diz que gostaria de um cigarro, mas, instado pelo maestro, volta ao palco para agradecer. A câmera o acompanha.

A longa duração dessa primeira imagem pode, à primeira vista, dar a sensação contrária, de que o filme não é assim como dissemos que ele é. Para fragmento, o plano de abertura parece grande demais. É um longo plano-seqüência. Quanto dura? Dois, três, quatro minutos? Parece mais. Não importa o tempo real, parece mais. Mas igualmente não importa aqui a duração real nem a sensação de que dura mais do que o que realmente dura. O plano se estica no tempo, mas estruturalmente é um fragmento, mostra só o intervalo entre duas apresentações do pianista.

Ele volta ao palco e a câmera sai dos bastidores, avança, esgueirando-se entre os músicos, para ver de perto o agradecimento e o entusiasmo da platéia. Os aplausos seguem, o pianista volta aos bastidores, e a câmera vem com ele. Bebe um pouco d’água, pede um cigarrinho, mas o maestro insiste: “cigarrinho, depois”. Antes, um extra, um brinde, “um

docinho de coco para o público”, para agradecer. Pianista e maestro voltam à cena, curvam-se diante dos aplausos, que não diminuem. De novo nos bastidores, o maestro insiste: um extra, um brinde. O pianista diz que não dá. Depois desse concerto, não seria possível. Pede ao maestro que o acompanhe ao palco para novo agradecimento – porque a platéia segue aplaudindo. Os dois cumprimentam os músicos. O maestro faz um gesto para que toda a orquestra se levante e volta para os bastidores com o pianista. O plano não acaba aí. Renova-se o apelo: uma peça pequenina, diz o maestro, um docinho de coco. Cigarrinho só depois. E nova entrada em cena para mais um agradecimento.

Um plano-seqüência mais intervalo que seqüência. Uma observação detalhada de um entreato. O concerto, que não vimos, acabou. Vai começar outra coisa que igualmente não veremos. Nessa nova entrada em cena o pianista senta-se ao piano para tocar algo, e o plano acaba. Vemos o vazio entre o último pedaço de som do concerto e o gesto de sentar-se ao piano – o gesto e só: agora nenhum som – para o extra. O que acabou importa pouco. O que vai começar não faz falta. Vemos o vazio entre uma coisa e outra e, graças a ele, percebemos melhor e mais acuradamente o que de fato importa.

“Documentaristas têm a estranha mania de achar que tudo, ou quase tudo, deve ser filmado. Não precisa ser necessariamente assim”, diz João Moreira Salles. “Uma boa parte do público de música erudita gosta de ver o seu pianista dando golpes de braço à direita e à esquerda, como se o teclado fosse um mar, e ele, um afogado. O problema desse destempero é que quase sempre a música acaba desaparecendo por trás da ginástica. Com Nelson isso nunca acontece. O seu piano é um mar calmíssimo. Acredito que essa elegância seja uma decisão estética; é como se ele dissesse: ‘Prestem atenção na música e não se deixem ludibriar pela performance’. E suspeito também que se trata de uma questão de recato [...] Num mundo cada vez mais exibido, esse recato é o traço mais belo de Nelson e, na minha opinião, a razão da extraordinária pureza de sua música”5.

Recato. Lacuna. Intervalo. Bem no instante em que a tecnologia digital aponta concretamente para a possibilidade de filmar tudo, e bem de perto, até invadir e vencer toda e qualquer intimidade, o que começa a aparecer nos filmes como construção mais refinada – Nelson Freire, 33 e Passaporte Húngaro, por exemplo – pode ser resumido nas palavras acima. O documentário, experiência em que o diretor quase se reduz a um espectador do filme que dirige, começa a ser pensado como uma expressão recatada, a se perguntar se, por acaso, em vez de ser o que mostra todas as coisas do mundo, não seria, de fato, o que mostra só o intervalo entre as coisas.

Intervalo, autoria. Quando, em O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), Paulo Sacramento entregou a câmera a detentos do presídio do Carandiru para que eles se filmassem, não estava renunciando à autoria de seu filme, mas passando a atuar como um espectador ativo da realidade ou do filme que produz para discuti-la. É um filme que se realiza estimulado por ele mas quase independente dele. Até certo ponto, todo documentário

5 Em “O elogio do recato”, entrevista a Daniel Schenker Wajnberg, Marcelo Ja-not e Maria Sílvia Camargo publicada na edição de 9 de maio de 2003 da revista criticos.com.br.

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28 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 29

é isso mesmo, filme feito por um espectador ativo, meio distante ou no centro da cena. Não é a primeira vez que isso ocorre num documentário, nem é tão incomum assim que um realizador construa seu filme montando imagens que não filmou. Aqui, ou porque os presos passaram antes por uma breve oficina sobre o uso de câmeras digitais, ou porque, como toda a gente hoje, foram “educados” visualmente pelo contato regular com cinema e televisão, ou ainda porque o manejo das câmeras de vídeo digital é relativamente fácil graças a controles automáticos, por qualquer uma dessas razões separar o que foi filmado por eles e o que foi registrado pelo realizador não é tão simples nem colabora para a melhor compreensão do projeto. O diretor não estava presente em boa parte da filmagem, mas em nenhum instante se ausentou da concepção do filme, porque de certo modo procurou se comportar como o outro, ser um deles, sentir a prisão como uma metáfora do mal-estar de nossa sociedade.

O Prisioneiro da Grade de Ferro remonta o cotidiano do presídio recém-destruído numa implosão, trabalha no eco do massacre de detentos ocorrido há pouco mais de dez anos. O que os presos filmam revela a prisão como um microcosmo da sociedade do lado de fora. Exagerando um pouco, corredores e celas do presídio não são muito diferentes dos corredores e apartamentos conjugados do Edifício Master, de Eduardo Coutinho. Nem as histórias contadas pelos presos do Carandiru são muito diferentes daquelas contadas pelos moradores do edifício de Copacabana. Uns e outros são excluídos, não são um desvio ou deformação dos ideais da sociedade.

Não é a primeira vez que o cinema sugere o cárcere como uma metáfora da sociedade, nem a primeira vez que a câmera procura pensar o mundo do ponto de vista de um prisioneiro – efetivamente preso ou em liberdade condicional, como os moradores de conjugados. O que importa é observar como os diferentes presos conversam entre si, confessando a meia-voz o sonho comum a todos os excluídos: mudar de vida.

6.Os documentários que fazemos hoje parecem abraçar uma construção cinematográfica que parte de idéias esboçadas entre nós na década de 1960: o cinema como busca/afirmação/invenção de uma identidade em permanente busca de si mesmo, o impulso documentário como forma de levar o cinema ao direto enfrentamento do presente. São filmes que partem do que se esboçou na década de 1960 e que passam pela experiência de Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, e de Di (1977)6, de Glauber Rocha. No primeiro, o realizador se situa no centro da história e fora de quadro (20 anos depois, no Nordeste, em busca dos companheiros de trabalho no filme interrompido pelo golpe militar de 1964). No segundo, o realizador começa gritando a apresentação do filme (que não tem letreiros e se anuncia pelo som): “Di Cavalcanti. Título do filme: ninguém assistirá ao formidável enterro de sua última quimera, somente a ingratidão, aquela pantera, foi sua companheira inseparável”. Em seguida, voz alta, exaltada, Glauber lê uma notícia de jornal sobre a filmagem: “Filmagem causa espanto e irrita família e amigos. Jornal do

Brasil, quinta-feira, 28 do 10 de 76, primeiro caderno, página 15: Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze... Corta! Agora dá um close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul-marinho, casaco azul-escuro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons, o cineasta Glauber Rocha está parado ao lado do caixão do pintor Di Cavalcanti no Museu de Arte Moderna...” .

Dominando a imagem com sua voz, entrando em cena e acompanhando o enterro, no centro do plano, à frente do caixão (e não com o jeito discreto e encolhido com o qual o diretor de um filme documentário costuma aparecer na imagem), Glauber filma a si mesmo para falar do pintor, para falar de cinema. Retomemos a possibilidade de que a idéia de pedir Passaporte Húngaro e buscar a mãe biológica tenha surgido para Sandra e para Kiko primeiro como idéia de filme. Ou seja: mais do que o pedaço de realidade que documentam, os filmes de Sandra e de Kiko, como os de Paulo e de Eryk, e antes deles todos os de Coutinho e Glauber, são filmes. Ao mesmo tempo em que nos revelam as buscas objetivas em que seus realizadores estão empenhados (e sem sair delas, pois elas é que dão corpo à idéia), expressam a busca subjetiva de seus diretores: discutir na realidade (o cinema então como um instrumento crítico dela) o cinema (a realidade então como instrumento crítico dele), discutir a condição do espectador durante a projeção quando (para melhor criticar uma coisa e outra) abre mão de sua identidade como passaporte necessário para melhor perceber o filme como expressão vizinha à de Constable, Turner, Goya ou Posada, vizinha, sobretudo, ao espelho de Magritte.

6 Di, Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes de 1977, foi um dos filmes debatidos por Roberto Rosselini no se-minário aberto que ele, presidente do júri, organizou para discutir o cinema de autor e os filmes em concurso naquele ano. Rosselini discutia a perda de potên-cia do cinema de autor (“o filme de autor virou uma espécie de gênero, os autores renunciam à invenção e se repetem ao infinito”), e identificou no filme de Glau-ber uma nova atitude autoral, em que o autor se inseria na história que narrava como parte inseparável dela.

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O documentário, gênero que nasce com o cinema, procura lançar a câmera para mostrar e desvendar o real. Isso significa conhecer as paisagens, a natureza, as práticas e os modos de viver dos homens. Significa também interrogar o próprio

exercício de documentar.

Sendo assim, questionar o documentário é interrogar a forma como se busca e se expressa o conhecimento, a empatia ou a rejeição do outro, que está diante da câmera. A questão central, portanto, é saber como o documentário fez e faz da alteridade o sujeito das imagens, sobretudo no Brasil, uma vez que o artista – o cineasta – depara com uma relação com o outro, que envolve, em geral, uma diferença social marcante. Esta não deixa de influir de forma significativa no resultado do seu trabalho.

Em busca de um objeto

Se iniciarmos nosso questionamento pelo documentário clássico brasileiro, produzido pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) entre os anos de 1936 e 1945, por exemplo, veremos que o que se enfoca ali são seres e situações edificantes, buscando criar modelos pedagógicos a ser seguidos numa sociedade autoritária.

São assim os grandes heróis cultos que o arqueólogo e diretor do Ince, Roquette Pinto, associado ao realizador Humberto Mauro, tratou de construir, forjando um panteão de homens exemplares por seus feitos e obras, que deveriam restar como modelos para as novas gerações: Machado de Assis, Castro Alves, Rui Barbosa, Princesa Isabel ou Barão do Rio Branco. Eles eram os grandes mortos, heróis românticos em que se deveria inspirar o Brasil extraordinário que aqueles filmes buscavam moldar.

Nesse mesmo momento histórico, as reportagens do Departamento de Imprensa e

Sheila SchvarzmanHistoriadora do Condephaat, professora do curso de audiovisual das Faculdades Senac, professora convidada do Departamento de Multimeios da Unicamp. Realizou pós-doutorado sobre a obra de Octávio Gabus Mendes. É autora de Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, São Paulo, Edunesp, 2004, e “Humberto Mauro e o Documentário”, no livro organizado por Francisco Elinaldo Teixeira Documentário no Brasil – Tradição e Transformação, São Paulo, Summus Editorial, 2004.

Tendências e perspectivas do documentário contemporâneo: um olhar histórico retrospectivo

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Propaganda (DIP) traziam para a tela homens vivos excepcionais – começando pelo presidente Getúlio Vargas, artistas como o pintor Pancetti, artesãos e trabalhadores de extração simples, que haviam se destacado em suas atividades. Mas o verdadeiro foco desses filmes, o sujeito dessas ações, era antes de tudo o Estado que, na figura do presidente, resguardava o cidadão, ou dava àqueles profissionais a chance de sobressair.

Tanto em um como em outro exemplo, era muito clara a separação total entre os personagens da tela e os da vida real. Na tela, todos eram parte da mesma ficção construída pelo regime por meio do cinema.

Nos anos 1950, finda a ditadura, e com novos tempos políticos e culturais, os heróis e as virtudes pedagógicas construídos pelo Ince se desfizeram. A forma documental se impôs sobre a pedagogia, e Humberto Mauro passou a registrar de forma sistemática os modos de vida tradicionais que o avanço da modernização pareceu ameaçar. São filmes como Fabricação da Rapadura (1958), Pedra Sabão (1957), ou canções populares românticas – as várias Brasilianas (1945-1958). Entretanto, em todas as obras o homem ainda não aparece como personagem importante. Ele é parte de um sistema no qual está imerso, junto com o Carro de Bois (1956) ou o engenho (Engenhos e Usinas, 1955); estes, verdadeiros sujeitos dos filmes que abordavam a cultura brasileira tradicional num momento de forte transformação, com a industrialização e a urbanização.

Em Aruanda, de Linduarte Noronha e Rucker Vieira (1960), o homem já tem consistência e existência própria, não é mais a entidade abstrata dos momentos anteriores. É nele que se edificam os traços do homem popular como depositário da verdadeira tradição e dos valores brasileiros. A construção romântica se transfere do grande homem para o homem simples. Ainda que pobre, ele é a verdadeira nacionalidade – sua inconsciente salvaguarda.

Em 5 Vezes Favela (Carlos Diegues e outros, 1962), a beleza e a poesia não escondem o viés romântico que permeia a abordagem dos tipos populares; viés cujo ponto de vista certamente era motivo de conflito entre os diretores cinema-novistas. Nesse sentido, Opinião Pública (1967), de Arnaldo Jabor, muda o tom e evita o romantismo, ao abordar a população de classe média de Copacabana, no Rio.

A magnificação do homem do povo é marcante nos filmes da Caravana Farkas, que procurou registrar o “verdadeiro homem brasileiro” a partir de meados dos anos 1960. Tratava-se, no dizer de Geraldo Sarno, um de seus realizadores, de mostrar a “nobreza intrínseca do ocupado e a sua competência”. Uma obrigação tão nobre que certamente não oculta, no tratamento da imagem e na eloqüência da narração, a culpa e a má consciência dos realizadores pelos débitos sociais que se explicitam nos filmes. Essa frase demonstra o grau de idealização em relação ao homem das camadas populares: num país de tanta desigualdade, é difícil tratar o outro de forma igualitária sem chamar para si – cineasta culto e bem alimentado do Sul – a responsabilidade pela mudança.

Em filmes como Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), apesar de as mudanças técnicas e de concepção cinematográfica do cinema direto terem permitido “dar voz ao povo”, deixando patentes as carências dos homens que ali se enfocavam, a “voz sociológica” se sobrepôs às novas vozes; falou por elas, falou no seu lugar1. Isso certamente falou com mais eloqüência da visão do realizador do que daquele que é alvo da câmera.

Esse viés persiste ainda nos anos 1970 e 1980. Mas essa tendência muda, e muito, em meados dos anos 1980 e 1990.

Os anos 1980, fortemente marcados pelo neoliberalismo, sepultaram as utopias socializantes que faziam do povo um objeto a ser salvo e amparado. Ao ruírem, essas crenças permitiram a livre manifestação da persistente linhagem conservadora de parte do pensamento nacional que, desde o final do Império, sempre viu o povo de forma negativa.

Se, até os anos 1980, o Nordeste era o objeto de interesse e os filmes documentavam um modo de vida tido como arcaico, pobre, miserável – mas respeitosamente tradicional, como se vê em A Bolandeira (Vladimir Carvalho, 1969), por exemplo –, a partir desse mo-mento o foco muda. O centro das atenções passam a ser os marginalizados urbanos, que os efeitos deletérios do “milagre brasileiro” só fizeram multiplicar. Assim, são documenta-dos a vida no morro, as favelas, o apego à religião, o tráfico de drogas, a delinqüência e, ao mesmo tempo, seus antídotos ou mecanismos de defesa como o rap etc. A imagem cruenta, ou intensa, como lembra Fernão Ramos, parece ser a forma de “tematizar, no documentário contemporâneo, a exclusão e a violência social que permeiam a sociedade brasileira.(...) um narcisismo às avessas”2.

Se mudou a geografia, se o urbano substituiu o rural, se o jovem substituiu os homens maduros envolvidos em profissões e atitudes tradicionais, é como se a própria humanidade tivesse se transformado na imagem. Depurado do viés romântico que alimentava no povo a idéia de raiz, de autenticidade, o elemento popular aparece desprovido de qualidades, imensamente carente. Como já observou Ramos, em alguns filmes da época3, “o espectador, através de uma postura auto-agressiva, aceita e se deleita com a crueldade narrativa, embutida na enunciação, na imagem do HORROR (imagens do grito, da morte, da miséria, da sordidez, do sofrimento, do dilaceramento corporal, do sangramento, da humilhação, da sujeira). A favela, os cortiços, a prisão, os lixões, os esgotos, o campo devastado são os cenários privilegiados dessa imagem. É a fratura de classes da sociedade brasileira que permite a representação desse ‘outro’ que denominamos ‘representação do popular’ ”4.

Por outro lado, persiste ainda como característica dessa fase – talvez pela urgência dessas questões – um olhar exterior que continua a permear a relação com o outro. Um olhar exterior e de classe, que denuncia, mas também revela, na maior parte das vezes, a má consciência em relação ao outro pobre. Mesmo nas formas cinematográficas mais despojadas – como no diálogo entre o cineasta e seu entrevistado – , é essa má consciência que se mostra quando se revelam os dispositivos de elaboração de um filme. É nessas

1 BERNARDET, Jean-Claude. O mode-lo sociológico ou a voz do dono. In: Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 15.

2 RAMOS, Fernão Pessoa. Três voltas do popular e a tradição escatológica do ci-nema brasileiro. In: Estudos de cinema Socine II e III. São Paulo: Annablume, 2004. p. 48.

3 Como Notícias de uma Guerra Particular (João Salles, 1999), Uma Avenida Chama-da Brasil (Octavio Bezerra, 1989), Boca de Lixo (Eduardo Coutinho, 1992), Os Car-voeiros (Nigle Noble, 1999), Mamazônia, a Última Floresta (Celso Lucas, Brasília Mascarenhas, 1996), O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (Paulo Caldas, Marcelo Luna, 2000), O Prisionei-ro da Grade de Ferro (Paulo Sacramento, 2003), Ônibus 174 (José Padilha, 2001), Falcão, Meninos do Tráfico (MV Bill, Celso Athayde, 2003).

4 RAMOS, Fernão Pessoa. As três voltas do popular e a tradição escatológica do cinema brasileiro. Op. cit.

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formas cinematográficas, como mostram os últimos planos de À Margem da Imagem (Evaldo Mocarzel, 2003), que as contradições dessa postura supostamente igualitária afloram. A cena final mostra o entrevistado, morador de rua, respondendo ao cineasta o que achou do filme, do qual participou e no qual se contam suas histórias. O que ele diz é revelador do dispositivo de filmagem e do abismo que a diferença social de classe e de educação põe entre os interlocutores: ele diz que, fora do âmbito da filmagem, se batesse à porta do diretor, pedindo um prato de comida, seria tão rejeitado quanto sempre foi em todos os outros lugares. Essa fala, excepcionalmente significativa, termina com um corte em que o diretor avisa que “valeu!”. Terminou o filme. Terminou, portanto, para o diretor, essa história toda! Jean-Claude Bernardet5, em seu artigo sobre a entrevista, cobra de Mocarzel uma posição diante do interlocutor, algo que não acontece. O entrevistado é sagrado, resta como um objeto de interesse exterior. Tudo o que diz vale para o filme, mas o interesse, tal como se revela nas imagens, se resume ao filme.

O documentário contemporâneo, portanto, incorporando a reflexibilidade que busca deixar transparentes as relações entre quem filma e quem é filmado, termina por engendrar outra interrogação: quem está no centro do filme? Quem é o verdadeiro alvo: o entrevistado ou o dispositivo empregado pelo diretor para ressaltar seu próprio cuidado com o “objeto”?

Em se tratando das questões da alteridade no documentário contemporâneo, é obrigatório falar de Eduardo Coutinho. Sua obra, desde Cabra Marcado para Morrer (1984), restará certamente como uma baliza na história do documentário que procuramos escrever. Ainda que a reflexibilidade não seja sua invenção, é a partir dos seus trabalhos que os vários contratos supostos no documentário se explicitam: o pagamento, o caráter encenado do rito da entrevista, a presença da equipe. Essa noção de uma obra conjunta que se explicita diante do espectador – do entrevistado e de Coutinho e sua equipe – parece ser uma das chaves que explicam a empatia do interlocutor, bem como o acolhimento que se dá a ele. É assim que esse pode se constituir como sujeito diante da câmera. Nesse cinema basicamente da palavra, da memória e da fabulação, a personalidade de Coutinho é o ponto essencial. Ainda que exista aí um dispositivo, ele parece basear-se, antes de tudo, inteiramente na postura generosa de interlocução do diretor. Assim, o objeto de interesse deixa de ser o filme em si mesmo, ou o dispositivo, e o entrevistado pode virar sujeito.

Mais do que a prevalência de um dispositivo há em Coutinho a consistência cinematográfica de uma prática oriunda dos anos 1960, e que tem seu traço principal na forma de tratar as pessoas, no espaço que lhes é dedicado, no desejo de se aproximar delas, de deixar que se mostrem diante da câmera. E isso parece corresponder, antes de tudo, a uma evolução de Coutinho que está vinculada à idealização do povo, comum nos anos 1960 e nos documentários da época.

Nesse sentido, é interessante observar o diálogo que se estabelece entre os recortes do morro nas lentes de Eduardo Coutinho, por um lado, e de João Salles, por outro. Deve-se

ressaltar, contudo, que eles partiam de olhares e questões infinitamente diversas. Salles nos fala da urgência de uma guerra cotidiana que permeia a sociedade brasileira, na cidade do Rio de Janeiro, onde exclusão, criminalidade, repressão, corrupção e impotência destroem o tecido social espraiando-se por toda a sociedade, configurando a guerra retratada nas imagens de Notícias de uma Guerra Particular (1999).

Já Santa Marta: Duas Semanas no Morro (1987), de Eduardo Coutinho, cujo foco central também é a vida na favela, acaba por tirar do interlocutor relatos totalmente distintos. Se no primeiro filme, o de João Salles, o morro é concreto e hostil, e corresponde ao imaginário que do exterior se elabora sobre ele – na mídia, na opinião pública que demoniza a favela como lugar da marginalidade –, no de Coutinho ele é lugar de vivências e de imaginação, construído a partir de dentro, por seus moradores. Com Salles, somos intimados a agir, a nos posicionar perante essa guerra da qual também somos parte. No documentário de Coutinho, a palavra está com o morador, que nos esclarece sobre o que é, afinal, esse morro Santa Marta, o lugar que ama e no qual vive.

Entretanto, essa forma de abordagem de Coutinho que parece aparentemente fácil induziu, e tem induzido, o documentário atual a repetir em grande parte esse sistema, sem o mesmo sucesso, levando a forma da entrevista a uma crise de saturação devido à sua aparente facilidade, ao baixo custo etc.6

Se a entrevista se torna uma das formas mais usadas e desgastadas dos filmes recentes, dela decorrem outras posturas. Uma delas é a idéia de dar aos depoentes a câmera, para que produzam a sua própria imagem.

Assim têm agido cineastas, antropólogos e outros especialistas que vêm colaborando na criação de filmes pelos índios, por exemplo, gênero extremamente fértil desde a obra do Major Thomaz Reis. Essa filmografia hoje é extensa, o que se deve, em grande parte, aos aportes de ONGs nacionais e internacionais. Neles, mostram-se temas caros aos índios a partir de seu próprio olhar.

Em Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), Paulo Sacramento entregou a câmera aos presos do Carandiru. Nessas imagens, o sujeito encarcerado se ergue e se idealiza. Redime-se e se mostra humano. A exclusão se dissolve numa nova identidade e atesta o princípio norteador do documentário de depoimento que estabeleceu, ao longo de sua história, a crença inabalável de que todo depoente fala sempre a verdade. Parece – parafraseando André Bazin – que a “ontologia da imagem documentária no Brasil” é o primado da verdade daquele que fala.

E, se o assunto é o depoimento como sinônimo de verdade, vamos nos voltar para o documentário mais constante nesse período, assim como em toda a história do documentário brasileiro, aquele que estabelece a ponte com os primórdios da produção e sua tradição pedagógica e exemplar: a biografia.

5 BERNARDET, Jean-Claude. A entre-vista (Casa de Cachorro, À Margem da Imagem). In: Cineastas e imagens do povo. Op. cit. p. 281.

6 BERNARDET, Jean-Claude. A entrevista (Casa de Cachorro, À Margem da Ima-gem). In: Cineastas e imagens do povo. Op. cit. p. 281.

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Grosso modo, se fossem usados os termos da historiografia para definir as produções documentais, veríamos que, na primeira fase do documentário nacional, filmaram-se os vencedores da história e os personagens caros à chamada “alta cultura”. A partir dos anos 1960, foram filmados os vencidos e a cultura popular. Navega-se atualmente por uma noção de cultura mais ampla, e os heróis de hoje são os perseguidos e os clandestinos de ontem. Apesar da mudança de foco, a reverência é a mesma, com outra roupagem, salvo algumas exceções, como em Barra 68, de Vladimir Carvalho (2000), sobre a ocupação da Universidade de Brasília. Ali, a presença instigante e anti-reverente de Darcy Ribeiro deixa no filme não um memorialismo celebratório comum a tantos outros desse gênero, mas antes de tudo a lembrança viva da fala, que pode ser partilhada.

Bem ao contrário disso, e ainda que em mostras de reflexibilidade ostensivas – a cadeira do diretor montada no meio da praça, a interlocução com o “povo” –, Vladimir Herzog é celebrado, lembrado, mas é antes de tudo um herói petrificado em Vlado 30 Anos Depois, de João Batista de Andrade (2005). Ainda que saibamos toda a sua história, suas lutas, até mesmo sua intimidade, ele segue sendo alguém de quem se fala com reverência: um mártir cujo sacrifício permitiu mudanças no país, mas cuja identidade se perde nos reiterados elogios dos depoentes, na câmera fechada em primeiríssimo plano – como se, ao fim, a distorção nas imagens do rabino Sobel, do jornalista Fernando Morais ou de Rodolfo Konder, de Clarice Herzog e de seu filho fossem a caução de verdade: lágrimas nos olhos nos momentos de emoção...

Por outro lado, e como já chamou atenção Jean-Claude Bernardet, os diretores pouco falaram de suas condições de vida. Pouco falaram daquilo que lhes é próprio. Como se a situação das classes médias e camadas pensantes e artísticas, de que os cineastas fazem parte, não fosse objeto de interesse do documentário. Claro, há filmes sobre artistas, ou sobre o próprio meio cinematográfico, mas talvez seja somente no documentário em primeira pessoa que possamos encontrar esses diretores, com suas questões que se mostram não apenas como indagações individuais, mas também humanas, históricas e universais. É o caso de 33, de Kiko Goiffman, que trata da busca de sua mãe biológica, e de Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. Neste último, através das malhas da burocracia e das mudanças da história, vemos a neta de uma senhora judia húngara, fugida de seu país, reconquistar a cidadania européia, representada pelo direito a Passaporte Húngaro. Há muita história incrustada nesses relatos: o nazismo, o anti-semitismo, a Segunda Guerra, a fuga para cá, o Brasil como terra prometida – agora não o é mais, porque é mais importante poder estar na Europa – e, por meio dessa história toda, sem falar de todos os meandros da burocracia, a neta faz com que a avó fugida reate com o passado de que fora banida. Um belo resgate.

Faltam-nos histórias e falta o olhar do documentarista sobre aquilo que lhe é próprio, próximo. A sua vida, as suas carências – ou será que, por pudor, o documentarista de classe média não poderá falar disso? Como se, de alguma forma, não fosse isso mesmo que, de um lado, pode nos esclarecer sobre a falta do outro.

Não pretendo com isso apontar um caminho ou perspectiva para o documentário nacional. Entretanto, procurei traçar aquilo que interpreto como suas principais tendências atuais, religando-as à nossa tradição e enfocando prioritariamente a questão do sujeito no documentário. Assistimos hoje a uma multiplicidade de tendências em desenvolvimento, mas em nenhuma delas – salvo no documentário em primeira pessoa, de matriz artística – o documentarista é capaz de falar de sua realidade mais próxima, desprovido de má consciência, como já se apontou largamente e como mostramos com alguns exemplos. É tempo de falar não apenas de sua individualidade – em primeira pessoa –, mas das questões que dizem respeito diretamente aos autores, como tem feito o documentário internacional prioritariamente.

Como escrevi no início deste artigo, a postura do documentarista brasileiro é muito pautada por suas questões ideológicas, culturais e de classe. Já é tempo de colocar-se como objeto.

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O que é o documentário? Essa questão vem sendo levantada ao longo da história das imagens técnicas há pelo menos 80 anos, a princípio no interior do cinema e depois, com o advento da televisão, do vídeo e da internet, não parou mais de reverberar a

cada mudança de paradigma técnico, com grandes ressonâncias no que hoje se denomina largamente cultura audiovisual.

Indagação ontológica a respeito do ser ou da natureza do documentário como um domínio ou território particular da imagem, originalmente em relação ao campo do cinema para em seguida vetorizar-se de modo transmidiático, sua recorrência em momentos distintos revestiu-se de propósitos também diversos. Nos anos 1920, quando o termo documentário foi estabelecido, a resposta sobre o que ele era decorria de uma necessidade de diferenciação em relação à reportagem cinematográfica (“atualidades”) e ao cinema de ficção, reclamando para si as prerrogativas da realidade. Nos anos 1960, da segunda vaga ou documentário moderno, com a transformação de sua base técnica (miniaturização dos equipamentos, maior sensibilidade da película fotoquímica, sincronização da imagem e do som), aliada às novas modalidades narrativas (irrupção da narrativa subjetiva indireta livre), introduziu-se um primeiro grande estranhamento a respeito de sua natureza mimética em relação a seu material de base, a realidade, quando então surgiram diversas denominações substitutivas (cinema-verdade, cinema direto, cinema do vivido, cinema espontâneo, cinema do comportamento etc.). Das três últimas décadas para cá, desde quando as tecnologias e estéticas videográficas irromperam no horizonte nos anos 1970, com a alternativa do suporte eletrônico analógico e digital em relação à longa duração do suporte fotoquímico da fotografia e do cinema, produziu-se uma espécie de voragem intra, inter e multimeios que parecia tender para uma total pulverização do território do documentário. Mas não foi isso que aconteceu, embora a questão sobre sua natureza tenha se tornado muito mais escorregadia, de difícil formulação e mais ainda de resposta, e por isso mesmo muito mais crucial na atualidade.

Francisco Elinaldo TeixeiraÉ mestre e doutor pela FFLCH-USP, pós-doutor em comunicação e semiótica pela PUC/SP e professor participante do Programa de Pós em Multimeios da Unicamp, com pesquisas em cinema experimental e cinema documentário. Autor dos livros: O Terceiro Olho – Ensaios de Cinema e Vídeo (Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane), São Paulo, Perspectiva, 2003; e organizador de Documentário no Brasil – Tradição e Transformação, São Paulo, Summus Editorial, 2004.

Documentário expandido – Reinvenções do documentário na contemporaneidade

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Uma nova denominação surgiu nesse meio-tempo, a de cinema de não-ficção. Ambivalente, se por um lado ela nos lança de volta aos debates dos anos 1920, que opunham o cinema de realidade ou documentário nascente ao cinema de ficção estabelecido, oposição hoje (e desde sempre) no mínimo problemática diante das trocas intensas entre ambos, por outro lado ela também inscreve dificuldades existentes no âmbito das definições, deixando-as em aberto pela negativa, pelo vácuo de uma não-definição que abre, o que não deixa de ser um modo de expor algo da consistência metamórfica, heteróclita, camaleônica, heterodoxa de que se reveste o documentário contemporâneo. Consistência essa que se põe em foco também em denominações como as de antidocumentário, contradocumentário, paradocumentário ou pós-documentário que, em vez de remeterem ao paradigma ficcional, detêm-se ludicamente no próprio substantivo ao lhe acrescentar prefixos que certamente inscrevem e ampliam muito de sua feição polifônica.

De todas essas terminologias que vieram desdobrar a questão ontológica de base – o que é o documentário? –, a mais recente é essa que sugere um patamar pós-documental para o momento em que nos situamos. O que seria a nossa época como uma era pós-documentário? Significaria que todo o burburinho em torno do documentário nas últimas três décadas, toda essa ruidosa produção de textos, de filmes, de vídeos, de peças audiovisuais as mais diversas que a ele remetem como um referente espesso e multifacetado, teria a ressonância de um canto de coruja de Minerva ao cair da tarde? Pura tagarelice em torno de algo que já passou, teve sua época áurea e agora se recolhe e se esfumaça sob a “luz polar” de nossa era informacional? Questão difícil, já que os fatos e artefatos culturais nos habituaram a um desenho com esse tipo de trajetória. Por outro lado, já tivemos toda uma seqüência de pós e pós-pós também nas últimas décadas, tendo atingido o risível e irônico limiar daquilo que o poeta concreto chamou de “pós-tudo” ou “postudo”, quando parecíamos querer deixar de ser contemporâneos de nós mesmos e mergulhar na eternidade.

A noção de pós-documentário pode ter outra envergadura. Em vez de um fim ou esgotamento, ela aponta para novos começos, para formas expandidas do documentário observáveis em larga escala nos diversos contextos audiovisuais da atualidade. Transmutemos-na, portanto, na noção de “documentário expandido”. Trata-se de uma série de operações postas em curso no domínio do documentário que visam à ampliação de suas fronteiras e que desmontam o senso comum, as idéias herdadas que dele se tinham até recentemente. Essa expansão de limites se dá, basicamente, em relação aos três grandes domínios da ficção, do experimental e do próprio documentário em suas feições clássica e moderna. Ou seja, ao mesmo tempo em que transforma sua própria tradição, a expansão do documentário desenha novas relações com os domínios ficcional e experimental. Circunstanciemos esses três deslocamentos.

Se tivéssemos de contornar e admitir que houve uma “essência” do documentário, sobretudo no período clássico, qual seria ela? Imediatamente nos ocorreria o grande rumor em torno do sentido de realidade que lá se produziu e que reivindicou uma

alteridade radical para o documentário em termos de um “estar ali”, operando com um registro do “tempo presente” numa dada situação da realidade, do concreto, do historicamente dado. Ou seja, estamos diante de uma “metafísica da presença” que desde a invenção da fotografia não parou mais de reivindicar o privilégio de um “eu estive lá, eis aqui a prova”, desdobrando-se no documentário no familiar reclamo “eis a vida como ela é”. O documentário adquiria, assim, em relação aos outros gêneros ou domínios do cinema, um charme peculiar análogo àquele da palavra oral concernente à escritura: diferentemente da mediação que a palavra escrita opera em relação ao pensamento, a palavra falada seria o suporte de um pensamento vivo, direto, sem mediação, portanto, portador das prerrogativas de autenticidade, verdade e objetividade do ser em sua imediata transparência.

Essa matriz da presença na/da realidade como aquilo que fundava o modo de ser do documentário, que por décadas o evocou e para muitos ainda hoje o evoca, foi um dos seus primeiros aspectos a ser desconstruído, já com o advento do documentário moderno. Não no âmbito do cinema direto, cuja atitude tendencialmente contemplativa dava a ver uma realidade que parecia escorrer sem cessar num eterno presente, mas no do cinema-verdade, que a pressionava de tal modo que a fazia se dobrar numa multiplicidade de aspectos que acabavam por transformá-la entre o que ela era antes e o que será depois do filme completo.

Com essa mística da realidade em presença se propondo a imprimir suas marcas no documentário, os códigos ou as regras que o estruturavam se cercaram de todo um discurso de sobriedade que por décadas funcionou como uma espécie de “abre-te, sésamo!”. O documentário, por essa via, requeria-se como uma peça minimalista marcada pelo despojamento de materiais, pela austeridade construtiva, pela depuração de formas, pela ausência de ornamentos, ou seja, todo um requisitório para contornar ou deixar de lado o que fosse da ordem da expressividade ou da subjetividade, da reflexividade ou da auto-reflexividade, tudo que pudesse abalar ou comprometer seus investimentos nos poderes de uma realidade que se queria comunicativa, paradoxalmente, quase sem nenhuma mediação. Não é preciso dizer quanto essa ordem comunicacional cedeu quase ponto por ponto os seus termos, num novo contexto de entropia da significação que veio transformar o aproveitamento do ruído na ponta-de-lança por excelência da criação de novos sentidos para o documentário.

Um segundo deslocamento deu-se em relação à ficção e aos seus códigos, objetos de recusa desde as fundações do documentário. Mas se num primeiro momento tal recusa, de princípios mais que de fatos, pois uma mínima ficção continuou irresistível, pôde se apoiar na reivindicação da realidade ou da naturalidade contra o sistema artificial de produção em estúdio e toda sua parafernália técnica, foi igualmente a partir dos anos 1960 que essas petições de princípios se viram totalmente abaladas. Primeiro, em função do lugar estratégico que a nova base técnica passou a ocupar, quase como um fetiche, quando então fazer documentários tornou-se sinônimo de ter equipamentos leves, som

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e imagem sincronizados, roteiro mínimo ou construído em campo com os personagens reais, todos esses elementos que foram sendo apropriados pelo cinema ficcional mais criativo do pós-guerra, do neo-realismo à nouvelle vague e cinemas novos. Segundo, com as mudanças operadas na estrutura narrativa, na construção dos relatos, quando o real e o ficcional se contaminaram numa tal escala de modo que impugnou o discurso anterior de demarcação de fronteiras. Essa instabilidade já tivera início com os primeiros filmes neo-realistas, que haviam lançado para fora dos estúdios suas equipes e as posicionado diante de cenários em ruínas, portanto, frente aos dados de uma realidade que de tão extraordinária parecia exceder toda faculdade de imaginação que alimentara o cinema ficcional. Curiosamente, uma das sugestões de nomeação do documentário nascente nos anos 1920 havia sido a de cinema neo-realista!

De modo que as trocas entre os domínios da ficção e do documentário aí processadas varreram de vez a noção de realismo no cinema ou da imagem como um mero naturalismo. Doravante, qualquer realismo documental passava por um crivo construtivista mínimo ou total, ou seja, pela idéia de que o realismo era uma construção estética como outra qualquer e não a operação direta de uma realidade que se expunha em sua integridade ou autenticidade. Esse desbloqueio veio repor um dado aparentemente banal, mas de grandes conseqüências: o de que, por mais que caminhasse tecnicamente na direção de uma mimese cada vez mais aperfeiçoada em relação à realidade (com a imagem em movimento, o som, a cor, a profundidade de campo etc.), o cinema continuava inscrito no paradigma perspectivista clássico, ou seja, continuava sendo uma simulação do olho humano diante do mundo, a simulação de um ponto de vista lançado sobre as coisas, uma máquina de visão com todos os seus defeitos ou anomalias (imagem plana, estática, bidimensional etc.), e não o mundo, as coisas, a realidade em si mesmos. Essa desnaturalização, desfamiliarização ou estranhamento do dispositivo imagético encontra-se no cerne das renovações que a imagem videográfica, depois do cinema, vem imprimindo no documentário desde os anos 1970.

E aqui chegamos ao nosso terceiro deslocamento, o das relações do documentário com o domínio do experimental. Talvez aqui se encontre um locus por excelência da expansão e renovação das formas documentárias na contemporaneidade. A vertente realista do cinema documental do período entre a Primeira e a Segunda Guerras (documentário griersoniano e quejandos) defrontou-se desde o início com uma vertente “formativista”, de vanguarda ou experimental, atenta às preocupações formais, estilísticas, expressivas, poéticas do documentário, que nos legou peças como Rien que les Heures (Alberto Cavalcanti, 1926), Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade (Walter Ruttman, 1927), O Homem da Câmera (Dziga Vertov, 1929), Chuva (Joris Ivens, 1929), A Propósito de Nice (Jean Vigo, 1929) etc. Essa vertente, embora retomada sob vários aspectos desde os anos 1950 e 1960, empalideceu diante da maior exposição da tendência realista hegemônica, do documentário oficial ou espetacular, permanecendo em circulação por uma via subterrânea que, no entanto, não parou de alimentá-lo e realimentá-lo de diversas maneiras e em diversos momentos.

Como esbocei anteriormente, o problema do cinema de vanguarda para o documentário era sua feição antiilusionista que, em vez de mergulhar no canto de cisne dos aprimoramentos técnicos como suplementos de mais realidade na imagem, tirava proveito justamente da precariedade do dispositivo, de seu artificialismo, fazendo disso uma base de lançamento de uma nova era de criação artística. Essa veia experimental do documentário, com grande relevo hoje para as concepções vertovianas de um “cine-olho” que contorna e ultrapassa a mera percepção e o alcance do sistema perceptivo e das máquinas sensórias que lhe servem de suporte, tornou-se crucial e estratégica para sua renovação quando do surgimento de novas máquinas além da do cinema e seus desdobramentos internos. Com a irrupção da imagem-vídeo na cultura audiovisual, a sensação que se tem é a de um completo desbloqueio da construção imagética que nos lança num novo tempo de investigação e experimentação, que não deixa de reverberar aquele das primeiras décadas do século XX com a efervescência de suas vanguardas artísticas, dispostas a lançar por terra tudo que fosse da ordem de uma “arte retiniana” que por séculos havia erigido a postura vertical humana como condicionante de nosso universo óptico e a imagem especular, primeiro pictórica, depois fotográfica e cinematográfica, como “janela aberta para o mundo”.

Esses três vetores de deslocamento do documentário – em relação a si, à ficção e ao experimental – constituem uma expansão de seus limites a princípio rígidos, mas que já há certo tempo se abriram à contaminação e à hibridização (conforme expressão hipertrofiada posta em circulação pelo espírito da época) de múltiplas maneiras, configurando-se ele, na atualidade, em geral segundo modalidades eminentemente ensaísticas.

A noção de ensaio é de enorme pertinência para situar essa turbulência metamórfica, transformacional, posta em curso nos últimos tempos. Não se trata de um formato específico de documentário, mas de tendências de estruturação dele, mesmo os mais sisudos e reticentes quanto à investigação formal e estilística, que operam com elementos como a diversidade de materiais, a fragmentação, a falta de univocidade e totalização, a subjetividade e a expressividade, as elipses, os deslocamentos e condensações, sem falar dos inúmeros traços de auto-reflexividade que têm marcado a produção em larga escala. Mas, sobretudo, de reflexividade no sentido de um trabalho de pensamento que se debruça sobre suas matérias para moldá-las e manipulá-las conforme propósitos que não estão dados nelas, que não são evidentes, que nascem da relação mesma do documentarista com os entornos que sua vista ou imaginação alcançam, com seus objetos, agentes ou personagens implicados, suas derivas, oscilações, dúvidas em relação ao processo de criação, que raramente se esgotam num resultado pronto e acabado.

Enfim, na distância que percorreu em relação aos primeiros tempos, o documentário se reinventa na contemporaneidade como uma forma de “escritura” que tem no ensaio suas orientações e estratégias mais criativas.

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Consuelo LinsDocumentarista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutorou-se pela Universidade de Paris 3 (Sorbonne Nouvelle) com tese sobre documentário centrada na obra do cineasta americano Robert Kramer. Realizou, em 1999, Chapéu Mangueira e Babilônia: Histórias do Morro e, em 2001, Jullius Bar. Atuou como pesquisadora e diretora de uma das equipes de filmagem dos documentários Babilônia 2000 e Edifício Master, de Eduardo Coutinho. Dirigiu Lectures em 2005, curta-metragem realizado em Paris com um telefone portátil, selecionado para vários festivais e premiado como melhor curta-metragem brasileiro no Festival de Curtas de Belo Horizonte (2006). Fez pós-doutorado na Universidade de Paris 3 (2005) sobre a produção documental mais marcadamente subjetiva. Escreve regularmente artigos sobre a criação audiovisual contemporânea e publicou em 2004 O Documentário de Eduardo Coutinho: Televisão, Cinema e Vídeo (Jorge Zahar).

O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo

Os filmes de Eduardo Coutinho, Cao Guimarães, João Salles, Sandra Kogut e Kiko Goifman são distintos entre si e expressam diferentes concepções de cinema, maneiras singulares de filmar, específicas relações com o mundo e os personagens.

No entanto, apesar das divergências, é possível identificar nos processos de trabalho desses cineastas ao menos uma prática em comum: eles fazem filmes que prescindem da feitura de um roteiro em favor de certas estratégias de filmagem que não têm mais por função refletir uma realidade preexistente, nem obedecer a um argumento construído antes da filmagem. Para esses diretores, o mundo não está pronto para ser filmado, mas em constante transformação; e a filmagem não apenas intensifica essa mudança, mas pode até mesmo provocar acontecimentos para serem especialmente capturados pela câmera. Para isso, eles constroem procedimentos de filmagem para filmar o mundo, o outro, a si próprios, assinalando ao espectador, nesse mesmo movimento, as circunstâncias em que os filmes foram construídos. São cineastas que filmam com base em “dispositivos” – o que não garante a realização dos documentários, nem a qualidade deles. Mas é um caminho.

O que é um dispositivo?

Precisemos um pouco mais essa noção cada vez mais recorrente no domínio do documentário e que se tornou central na crítica das artes audiovisuais contemporâneas. Deixemos claro, de imediato, que não nos referimos aqui à concepção do cinema como dispositivo segundo a formulação de parte da crítica francesa dos anos 1970. Estruturalismo e psicanálise são convocados por essa crítica totalizante que inclui tanto o dispositivo central de captação de imagens quanto o dispositivo de exibição. Trata-se, por um lado, de associar o cinema a um projeto ideológico: a câmera não é neutra e reproduz os códigos que definem a objetividade visual desde o Renascimento, estando assim impregnada da cultura dominante. Por outro, trata-se de explicitar as condições psíquicas de recepção inerentes ao dispositivo da sala escura, que imobiliza o espectador entre a imagem e o

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projetor, favorecendo a identificação dele com os heróis na tela e com o que produz o espetáculo, a própria câmera1.

O espectador, produto desse dispositivo, é um ser necessariamente alienado: naturaliza o que é artifício, negando a representação como representação; vive a ilusão de que é o centro do mundo e que dele emana o sentido das imagens, o que em tempos de desconstrução e de crítica às noções de sujeito e autoria é um ultraje. E o pior, para essa crítica, é que essa experiência alienante se repete a cada filme, por mais diferentes que sejam as histórias narradas, pois é de forma estrutural que o dispositivo cinematográfico define as condições e a natureza da experiência do espectador.

Tampouco nos deteremos, nos limites deste artigo, em instalações que utilizam vídeo, computador ou cinema em galerias ou museus, embora várias características desses dispositivos se assemelhem ao uso que fazemos deles aqui. Nesses dispositivos de criação e/ou exibição das obras, o espectador experimenta sensações físicas e mentais por meio da disposição de elementos (telas múltiplas, câmeras etc.) em uma determinada organização espacial. Imagens podem ser produzidas antes e/ou durante a exploração que o espectador faz da obra; em alguns casos, são imagens em circuito fechado, nas quais o que está em questão é o deslocamento perceptivo do espectador.

Contudo, a produção dessas imagens difere da das imagens criadas pelos dispositivos de filmagem de certos documentários, que são necessariamente anteriores ao momento de exibição dos filmes. De toda maneira, “dispositivo” é, nesses dois contextos, um procedimento produtor, ativo, criador – de realidades, imagens, mundos, sensações, percepções que não preexistiam a ele. Como enfatiza Anne-Marie Duguet, “todo dispositivo visa produzir efeitos específicos”2. O que acontece mesmo na teoria do cinema como dispositivo: a dimensão produtora está presente, só que o dispositivo cinematográfico produz, segundo seus críticos dos anos 1970, apenas um tipo de experiência. No caso dos dispositivos artísticos, trata-se de sistemas diferenciados que estruturam experiências sensíveis, a cada vez de modo específico.

É também de modo específico que os dispositivos documentais funcionam. Não é, em absoluto, algo que se dá em todo filme de forma semelhante, estrutural, no cinema como um todo, mas criado a cada obra, imanente, contingente às circunstâncias de filmagem, e submetido às pressões do real. Trata-se de um uso da noção de dispositivo que tem no crítico e cineasta Jean-Louis Comolli seu defensor mais inspirado. Para ele, diante da “crescente roteirização das relações sociais e intersubjetivas”, dos “roteiros que se instalam em todo lugar para agir (e pensar) em nosso lugar”, parte da produção documental tem a possibilidade de se ocupar do que resta, do que sobra, do que não interessa às versões fechadas do mundo que a mídia nos oferece. Ao contrário dos roteiros que temem o que neles provoca fissuras e afastam o que é acidental e aleatório, os dispositivos documentais extraem da precariedade, da incerteza e do risco de não se realizar sua vitalidade e condição de invenção3.

Em Eduardo Coutinho (Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master, O Fim e o Princípio), o dispositivo é, antes de qualquer coisa, relacional, uma máquina que provoca e permite filmar encontros. Relações que acontecem dentro de linhas espaciais, temporais, tecnológicas, acionadas por ele cada vez que se aproxima de um universo social. A dimensão espacial desse dispositivo – as filmagens em locações únicas – é a mais importante. Para Coutinho, pouco importa um tema ou uma idéia se não estiverem atravessados por um dispositivo, que não é a “forma” de um filme, tampouco sua estética, mas impõe determinadas linhas à captação do material. Em João Salles (Futebol, Santa Cruz, Entreatos), há uma opção por filmagens longas, mais observadoras do que interativas, inspiradas nas técnicas do cinema direto. É um dispositivo em que a dimensão temporal é crucial e produz efeitos no filme, diferente das intervenções curtas de Coutinho, em que o tempo de filmagem não conta especialmente para a narrativa4.

O tempo também é a principal linha do dispositivo de Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut, mas não se trata de um filme de observação, pois a ação que integra seu dispositivo – tirar um passaporte – obriga a diretora a muita conversa e negociação. É um filme em que o autor é ator, em que a escrita fílmica está ligada à noção de agir: o diretor age para criar suas histórias. O mesmo acontece com 33, de Kiko Goifman5, que também é resultado de um dispositivo fortemente temporal, mas com limitações no tempo de filmagem que inexistem nos documentários anteriores. Seus 33 anos de idade lhe deram o número de dias que ele tinha para encontrar sua mãe biológica.

Essa regra ortodoxa imprime ao filme uma tensão: ou ele consegue material suficiente nesses 33 dias de filmagem e investigação, ou não há filme.

“33 dias porque tenho 33 anos”: por mais arbitrário que o dispositivo de Kiko Goifman possa parecer, ele apenas revela, sem meias palavras, a arbitrariedade presente em todo e qualquer filme-dispositivo, com mais ou menos força, com mais ou menos sutileza. Não há qualquer fundamento “lógico” para esse número de dias. Da mesma maneira, não é nada “natural” que uma brasileira tire Passaporte Húngaro em Paris, já que no Brasil seria muito mais fácil, e provavelmente não daria filme. É também da ordem do artifício produzir encontros para ser filmados ou seguir personagens durante dois anos, e é bom que seja assim. Por que não seis meses? Por que esses personagens e não outros? Ora, porque documentários não brotam do coração do real, espontâneos, naturais, recheados de pessoas e situações autênticas, prontas para ser capturadas por seres sensíveis, cheios de idéias na cabeça e câmeras na mão; são, sim, gerados pelo mais “puro” artifício, na acepção literal da palavra: “processo ou meio através do qual se obtém um artefato ou um objeto artístico” (Dicionário Aurélio). Muitos deles, e talvez os melhores, são frutos de uma “maquinação”, de uma lógica, de um pensamento, que institui condições, regras, limites para que o filme aconteça; e de uma “maquinaria”6 que produz concretamente a obra.

4 Evidentemente não me refiro a Cabra Marcado para Morrer (1964-1984), mas aos filmes posteriores do diretor.

5 Jean-Claude Bernardet identifica no movimento dos filmes de Kogut e Goifman – em que “a documentação ten-de a se tornar o registro da busca” – um dos mais estimulantes do documentário recente. “Novos rumos do documentário brasileiro?”, in Catálogo do 7º Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Belo Horizonte, nov./dez. 2003.

6 Retomamos essas noções de Philippe Dubois, que as utiliza mais especifica-mente para falar de filmes com dimen-sões autobiográficas e relacionados à memória, mas que nos parecem férteis para pensar os filmes-dispositivos de uma forma mais ampla. “A foto-autobio-grafia” , in Revista Imagens. Campinas: Ed. Unicamp. p. 64-76. Dubois amplia o uso dessas noções em Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.

1 Retomo, aqui, de forma muitíssimo bre-ve, alguns argumentos da oportuna sínte-se e atualização do debate feita por Ismail Xavier em “As aventuras do dispositivo (1978-2004)”. Aconselho vivamente a lei-tura desse capítulo acrescentado à nova edição do livro O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e a Transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 175.

2 Dispositifs, in Déjouer l’image. Nîmes: Critiques d’Art, Editions Jacqueline Chambon, 2002. p. 21.

3 Sob o risco do real, in Catálogo do 5º Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Belo Horizonte, nov. 2001. p. 99, 111. Ver também Voir et Pouvoir. L’innocence Perdue: Cinema, Telévision, Fiction, Documentaire. Verdier, 2004.

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Dispositivo e jogo

Analisemos mais detidamente dois filmes do mineiro Cao Guimarães: Rua de Mão Dupla, concebido inicialmente como videoinstalação para a 25ª Bienal Internacional de São Paulo, em 2002, e Acidente (2005), realizado em parceria com Pablo Lobato. É como se nesses dois filmes a idéia de dispositivo se lapidasse, ganhasse em limpidez e incluísse uma dimensão lúdica, de jogo, de brincadeira com o real. Em Rua de Mão Dupla, Cao Guimarães convidou seis pessoas pertencentes às camadas médias da população de Belo Horizonte para participar de uma experiência inusitada: divididas em duplas, elas trocariam de casa por 24 horas e, munidas de uma pequena câmera digital, filmariam o que bem lhes aprouvesse na casa alheia, tentando “elaborar uma ‘imagem mental’ do outro(a) através da convivência com seus objetos pessoais e seu universo domiciliar”7. Ao final, dariam um depoimento para a câmera, contando como imaginaram esse ”outro”. Portanto, o diretor não filma nem dirige, mas concebe um jogo, distribui cartas, determina regras, escolhe jogadores, fornece câmeras, transporte, comida. Provê o necessário e sai de campo. Trata-se de uma maquinação que implica a ausência de controle do diretor sobre o material filmado, propiciando uma espécie de “retirada estética” não propriamente do filme – afinal, o dispositivo é dele, assim como a montagem do filme –, mas das imagens e dos sons que seu filme vai conter, atribuindo a seis outros indivíduos a tarefa de filmar e se autodirigir8.

O dispositivo que “dispara” a filmagem de Acidente é, de certa maneira, o mais conceitual de todos os que vimos até aqui. Não há inicialmente nenhum interesse particular dos cineastas por um aspecto concreto da realidade. É como se houvesse, antes de tudo, pairando no ar, uma questão imensa, questão de vida, em que os cineastas se perguntassem como se relacionar com o mundo diante de tantas possibilidades, de tantos filmes já feitos, de tantas imagens prontas, sem sucumbir nem ao caos nem aos clichês. Ou, como diria J. L. Comolli, “como fazer para que haja filme”9? Cao Guimarães e Pablo Lobato decidem se apegar às palavras: criam um dispositivo-poema e de posse dele começam a filmar. Mas não são palavras quaisquer retiradas do dicionário – poderiam ser, mas gerariam outro filme.

São nomes de cidades mineiras cuja lista eles pesquisaram no site do IBGE. Selecionaram 100 e as imprimiram. Espalharam os papéis sobre a mesa e começaram a brincar com as palavras. Sonoridades, sentidos, materialidades, ressonâncias: foi isso que contou para os cineastas, e não um conhecimento prévio da realidade das cidades, das quais, aliás, eles ignoravam tudo. Chegaram a um poema com 20 nomes que evoca uma fábula de amor e dor: “Heliodora, Virgem da Lapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’água, Entre Folhas, Ferros, Palma, Caldas, Vazante, Passos, Pai Pedro Abre Campo, Fervedouro Descoberto, Tiros, Tombos, Planura, águas Vermelhas, Dores de Campos”.

O dispositivo-poema torna-se, portanto, uma máquina de produzir imagem e adquire, como todos os dispositivos, certo poder sobre os cineastas. Decide por eles onde vão

filmar; retira deles o direito de recusar uma cidade caso não gostem dela, porque nesse caso o poema deixaria de funcionar. Reduz o excesso de intencionalidade. É um jogo que tem suas regras, às quais eles devem se submeter. Não se trata em absoluto de adaptar palavras às coisas, nomes às cidades, mas de construir uma forma de se confrontar com o caos do mundo sem submergir, de imprimir uma direção inicial, abrindo ao mesmo tempo o filme aos acasos, imprevistos e imponderáveis do real.

Mas os dispositivos, como já destacamos, não garantem filmes e podem ser abalados no confronto com o real. “O movimento do mundo não se interrompe para permitir ao documentarista polir seu sistema de escritura.”10 A segunda regra do jogo era buscar a origem dos nomes das cidades escolhidas, o que se verificou improdutivo já no início da filmagem. Se, para chegar a essas cidades anônimas, distantes da imagem de cartão-postal das cidades históricas mineiras, o poema foi fundamental – e respeitado até o fim –, a conexão para essa segunda etapa foi abandonada sem pena. Talvez porque fosse um caminho conhecido, cujo resultado colocaria o filme próximo do pitoresco, do que é curioso, do que pode ser turístico no interior mineiro – de tudo aquilo do qual os diretores queriam distância. O poema implicava uma abertura na relação com as cidades que essa temática da origem destruía. “Excluiu-se, portanto, o assunto, e o filme ficou sobre assunto nenhum”, diz Cao Guimarães.

Os documentários que resultaram desses dispositivos são profundamente distintos entre si: Acidente é um filme que reinventa a imagem-tempo em esplêndidos planos-seqüência, a maioria deles fixa ou com sutis movimentos de câmera, que capturam a duração, o tempo que passa, em várias camadas, nas pequenas cidades mineiras. Onde Acidente mais parece se aproximar da fotografia – em razão dos belíssimos recortes do mundo realizados pela câmera de vídeo ou em película super-8 – é justamente onde o filme mais se distancia da imagem estática, em razão da duração. Na cidade de Entre Folhas, por exemplo, vemos o cair da tarde do balcão de um bar onde praticamente nada acontece, a não ser os movimentos infra-ordinários de seu proprietário ou a rara circulação de carros e pessoas do lado de fora. Na cidade de Palma, o filme se atém a uma ladeira em que os tempos mortos se alternam com microacontecimentos.

São blocos de espaço-tempo que nos fazem ver e sentir “um pouco de tempo em estado puro”, à maneira de Ozu11. O filme inteiro é capturado por uma espécie de inação, que contamina personagens e cineastas, favorecendo uma atenção inédita e concentrada nas pequenas coisas do mundo, nos seres, nos movimentos, nos gestos, nos ruídos, nas conversas. O espectador também é envolvido nesse circuito em que as conexões entre palavras e coisas, nomes e cidades, acontecimentos e personagens são tênues, frágeis e, finalmente, de pouca importância. Trata-se de um filme em que a dimensão propositiva do dispositivo se mistura a uma dimensão mais plástica, contemplativa e formal, mesclando em um só tempo dois movimentos que Cao Guimarães identifica em sua trajetória, em trabalhos diferentes.

7 Cao Guimarães, no texto da contracapa do vídeo Rua de Mão Dupla.

8 Esse filme é analisado por mim mais longamente no artigo “Rua de Mão Dupla: documentário e arte contempo-rânea”, in Kátia Maciel. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006.

9 Idem, p. 99.

10 Idem, p. 106.

11 Expressão de Gilles Deleuze, referindo-se ao cineasta japonês, em A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006.

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Quanto a Rua de Mão Dupla, a grande invenção do filme, responsável pela solidez da proposta, é a solicitação do diretor de que os “outros” em questão, os participantes do filme, se interessem por outros e não por eles mesmos, atitude que redireciona o desejo da “besta da confissão” (Michel Foucault) em que nos transformamos a partir do momento em que uma câmera é postada diante de nós. Cao Guimarães não quer que eles se voltem para si, que falem de sua vida, que se revelem para a câmera; pede, antes, que falem de pessoas desconhecidas e filmem casas alheias. A mudança de foco do “eu” para o “outro” faz com que os personagens fiquem menos atentos a autocontroles, censuras e filtros que normalmente acionamos para oferecer a imagem que desejamos de nós mesmos. A maneira como se relacionam com o espaço alheio, o que escolhem filmar, o que dizem, como falam, as palavras, as sintaxes e as entonações que colocam em cena, tudo isso revela muito mais deles mesmos do que poderíamos esperar. São imagens do outro fortemente embebidas da visão de mundo e dos afetos daquele que filma.

O que o filme mostra de modo cristalino é quão encharcado de memórias e afecções corporais é nosso olhar sobre o mundo, quão arraigados somos a determinadas maneiras de ver e sentir, o tanto que ignoramos nossos preconceitos, o tanto de impossibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, de aceitá-lo em sua diferença e singularidade. Em suma, nos mostra que “estamos” onde menos esperamos, não especialmente no “conteúdo” do que dizemos ou pensamos de forma consciente, tampouco em uma “interioridade” prévia, já dada, mas em “toneladas de subjetividades”12 que se constituem e se expressam na nossa relação com o mundo e com o outro.

Por meio de um gesto à primeira vista pequeno – alterar a direção do que se solicita aos personagens em grande parte dos documentários baseados em conversas –, Cao Guimarães imprime um estrondoso deslocamento em relação a todas as querelas em torno da “voz do outro” que atravessam a história do documentário. Se a “eficácia” artística e política dos dispositivos artísticos é medida pelo potencial produtor e transformador do que é proposto, os filmes de Cao Guimarães respondem com vigor à possibilidade de deslocar visões estabelecidas, criar novas maneiras de ver, experimentar outras sensações, narrativas, espaços e temporalidades.

12 Expressão de Peter Pál Pelbart, in Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 20.

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Os filmes modernos, também chamados de filmes de tese ou expositivos, são mais evidentes nas décadas de 1960 e 1970. Neles encontramos características como a presença de um narrador que tem o poder de “deus” como idéia de

onisciência, em que a imagem está a serviço do argumento do realizador/narração, em que o “cineasta/intelectual se julga no papel de interpretar e resolver os problemas do povo” e no qual o realizador pretende dar conta de um tema com “T” maiúsculo.

Já o cinema contemporâneo, que se consolida a partir da década de 1990, em vez de almejar grandes sínteses, análises ou interpretações de situações sociais, busca seus temas “através do recorte mínimo, abordando histórias de indivíduos e a verdade de cada um” (Mesquita, 2006). “Geralmente trabalha com fragmentos de uma realidade, buscando a reflexão e a compreensão aprofundada da questão abordada, deixando para o espectador o papel de relacioná-la com seu contexto histórico, econômico, político, social e cultural” (Altafini, 1999).

Essa distinção, no entanto, não pressupõe uma preferência ou um juízo de valor sobre uma ou outra tendência, ou sobre os filmes que se encaixariam nesta ou naquela abordagem. Nem o fato de verificarmos uma nova tendência a partir da década de 1990 significa afirmar que as produções anteriores estariam ultrapassadas ou seriam filmes menores. Talvez, olhando com distanciamento os filmes chamados modernos, notemos uma certa “arrogância” nessa tentativa de realizar uma macroanálise. Como se fosse possível ao cineasta/realizador não só dar conta de temas complexos, mas apontar soluções e, além disso, falar em nome do povo ou do sujeito representado.

Essas tendências, no entanto, espelham e estão diretamente ligadas ao desenvolvimento das distintas manifestações da sociedade de cada período, à forma como a sociedade pensava e se expressava como um todo, não somente no cinema e no documentário.

Liliana SulzbachJornalista e mestre em ciência política pela UFRGS. Estudou ciências da comunicação na Freie Universität Berlin. Coordenadora de produção e do núcleo de Cinema e Televisão da Zeppelin Filmes desde 1996. Coordenadora nacional da International Public Television Conference (Input) de 2002 a 2004. Trabalhou como produtora independente para Hamburger Kino Kompanie/Hamburgo, M. Schmiedt Produções, Spiegel TV Alemanha, onde realizou diversos documentários. Como diretora, seus trabalhos mais recentes são O Continente de Erico (2005), O Cárcere e a Rua (2004), A Invenção da Infância e O Branco (2000).

Tendências do documentário contemporâneo

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Esses seriam, na melhor das hipóteses, os precursores e, na maioria dos casos, os porta-vozes dessa forma de interpretar a sociedade. Assim, apontar tendências não significa preferir uma à outra, mas detectar e realizar um retrato valioso da forma como as pessoas se expressam em determinado período, por razões que muitas vezes fogem às análises da obra cinematográfica propriamente dita. Eu diria que em ambas as tendências podemos encontrar filmes bons e ruins, realizações preciosas e outras medíocres. Essas tendências também não são estanques. Exemplos de filmes bem-sucedidos com características modernas foram realizados após os anos 1960 e 1970 e não são necessariamente considerados ultrapassados.

No que tange ao conteúdo/tema eleito pelos filmes de produção nacional, tanto os filmes considerados modernos como os considerados contemporâneos concentram-se em temas que representam o Brasil em seu aspecto cultural e simbólico (folclore, religião, linguagem, costumes etc.), socioeconômico (trabalhadores desfavorecidos, disputa de classes, miséria), mas pouco se ocupam do aspecto político. Certamente temos produções de documentários políticos, como o clássico de Eduardo Coutinho Cabra Marcado para Morrer (1984); os filmes de Silvio Tendler, entre eles Os Anos JK, uma Trajetória (1980), Jango (1984), Doutor Getúlio, Últimos Momentos (2002) e Marighella (2002); Jânio a 24 Quadros (1981), de Luis Alberto Pereira; Jânio, 20 Anos Depois (1981) e Revolução de 30 (1980), de Silvio Back; Em Nome da Segurança Nacional (1978), de Renato Tapajós; Barra 68 (2001) e Conterrâneos Velhos de Guerra (1992), de Vladimir Carvalho; e mais recentemente No Olho do Furacão (2003), de Renato Tapajós e Toni Venturi; Tempo de Resistência (2004), de André Ristum; e Entreatos (2004), de João Salles. Mas, curiosamente, e com algumas exceções, os filmes são mais biografias do que documentários sobre um determinado momento político, mais sobre políticos ou personagens do que sobre política.

É claro que, se tomamos o termo “político” num sentido mais amplo, podemos incluir vários filmes de cunho socioeconômico na esteira de filmes políticos. É impossível pensar o lado social sem esbarrar no político. Mas o que interessa aqui definir como político são os filmes que desvendam aspectos políticos presentes na agenda de determinado momento do Estado-nação ou mesmo a sua relação política com os demais países. Sem procurar valorar o aspecto formal, temos fartos exemplos em outros países, como Farenheit 9/11 (2004), no qual Michael Moore investiga como os Estados Unidos se tornaram alvo de terroristas com base nos eventos ocorridos no atentado de 11 de setembro de 2001. Os filmes produzidos e/ou dirigidos por Robert Greenwald, como Unprecedent: The 2000 Presidential Election (2002), e por Richard Pérez e Joan Sekler, como Iraq for Sale, quem Lucra com a Guerra (2006) e Outfoxed – A Guerra ao Jornalismo de Rupert Murdoch (2004), são exemplos claros de filmes políticos contrários à era George Bush. Também podem-se destacar Sob a Névoa da Guerra (2003), de Errol Morris, que narra a história militar recente dos Estados Unidos do ponto de vista do controvertido político norte-americano Robert S. McNamara, ex-secretário de Defesa nos governos Kennedy e Johnson; Why We Fight [Por que Lutamos?] (2005), de Eugene Jarecki, um olhar crítico sobre a tendência dos Estados Unidos de se envolver em conflitos armados; Black Box Germany (2001), de Andres Veil, que recorre ao passado recente da República Federativa da Alemanha nos anos 1970 e 1980 para retratar

a polarização do país entre a força do Estado e a força do Exército Vermelho, gerando uma série de conflitos que beiram a guerra civil. Na América Latina, Memórias Del Saqueo (2004), do argentino Fernando Solanas, investiga os fatos que levaram à fragilização econômica e à degradação da Argentina. Solanas também é realizador de La Hora de los Hornos (1968). Allende (2004), do chileno Patrício Guzmán, desvenda Salvador Allende, ao mesmo tempo em que defende seu legado para o Chile do século XXI. É também o diretor da estupenda série A Batalha do Chile (1975-1979). Nesses filmes, além do conteúdo claramente político, nota-se uma tendência a apresentar os fatos de forma investigativa, mostrando situações e reflexões novas sobre assuntos presentes na mídia e no jornalismo cotidiano.

Justamente essa tendência investigativa que busca trazer fatos novos a assuntos já pautados, ou que procura esclarecer questões no calor dos acontecimentos, é pouco trabalhada pelos documentaristas nacionais. Podemos citar ainda Who Betrayed Che Guevara [Quem Traiu Che Guevara] (2001), em que dois jovens realizadores, Erik Gandini e Tarik Saleh, vão desvendar, décadas depois, os fatos que levaram o argentino Ciro Bustos a ser injustamente acusado de trair Che, enquanto outro companheiro, Regis Debray, gozava na França de prestígio como grande amigo do líder revolucionário. Em Na Captura dos Friedmans (2003), de Andrew Jarecki, o professor Friedman e seu filho caçula são acusados e presos por molestar adolescentes. A família começa a entrar em colapso e o documentário não só registra, mas tenta agregar novos fatos ao assunto.

Quanto à forma, podemos perceber algumas tendências mundiais também presentes em documentários brasileiros. Uma delas seria o que Jean-Claude Bernardet chama de “documentário de busca”. Nesse sentido, podemos falar de Offspring, do canadense Barry Stevens, no qual um homem, que é o próprio diretor, foi fruto de uma inseminação artificial. O filme é um documentário de busca do realizador, que pesquisa bancos de esperma do mundo atrás do esperma original, para descobrir quem é seu pai e encontrar possíveis irmãos espalhados pelo mundo. No Brasil, alguns exemplos poderiam ser definidos como documentários de busca, como 33, de Kiko Goifman, e Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. “Os filmes partem de um projeto pessoal de seus realizadores. No caso de Kiko Goifman, é o filho adotivo que se propõe a encontrar a mãe biológica e, no caso de Sandra Kogut, (...) seu projeto é obter a nacionalidade e o passaporte húngaro” (Bernardet, 2005). Nesses casos, como bem coloca Bernardet, “a filmagem tende a se tornar a documentação do processo. Não há uma preparação do filme (a preparação é a própria filmagem), não há uma pesquisa prévia; a pesquisa, que freqüentemente no documentário é anterior à filmagem, é a própria filmagem” (Bernardet, 2005).

Não pretendo fazer uma análise mais profunda desses filmes, já muito bem realizada por Jean-Claude Bernardet, mas gostaria de salientar dois aspectos que envolvem ambos os filmes e que acho importante destacar porque nos conduzem e apresentam uma proposta de documentário que eu arriscaria chamar de uma tentativa de conferir plot ao documentário. Seriam os seguintes aspectos:1) Nesses filmes, mesmo não existindo um roteiro como base, já é possível “prever” a própria

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montagem durante a filmagem e se preparar para isso, criando situações que nos conduzam ao objetivo desejado. Como diz Sandra Kogut, no texto de Jean-Claude Bernardet, “no Passaporte Húngaro eu não sabia o que iria acontecer (...), mas isso não quer dizer que eu não tivesse, o tempo todo, consciência de que estava fazendo um filme e tivesse que construir as situações que iam aparecendo, mesmo sem preparação, em função do filme. Isso não quer dizer que havia menos construção do que num filme mais pré-roteirizado”.

2) Os filmes criam uma lógica narrativa, mesmo deslocando na montagem cenas que durante a filmagem ocorreram antes do momento em que foram adicionadas na edição. Portanto, ao inverter a ordem dos acontecimentos para conferir ao filme uma lógica narrativa, até que ponto esses filmes são documentários ou ficção?

Bernardet tende a dizer que seriam “filmes de ficção elaborados com materiais extraídos de situações reais” (Bernardet, 2005). Segundo ele, trata-se de uma espetacularização da vida pessoal, com duas facetas: como toda arte autobiográfica, é uma arte que expõe a pessoa, mas, ao mesmo tempo, a mascara. Além disso, essas pessoas-personagens obedecem a uma construção dramática: os personagens têm objetivos, enfrentam obstáculos (que eles superam ou não), alcançam seus objetivos ou não, exatamente como nos filmes de ficção, e tudo isso organizado numa narrativa. Seria uma ficção que coopta a vida pessoal. Bernardet conclui que esses filmes vivem uma tensão de documentário com desejos de ficção e uma ficção com desejos de realidade. Ainda segundo o autor, são filmes extremamente ricos porque expressam uma subjetividade tal como muitos de nós a vivenciamos atualmente.

Esse flerte com a ficção pressupõe, no mínimo, outra demanda de logística de produção e montagem. Mas, principalmente, outra forma de encarar o tempo no documentário. Como a narrativa pressupõe um avanço no tempo, e em documentário estamos tratando de fatos e pessoas reais, precisamos realizar um documentário de acompanhamento em diversas fases da vida do protagonista ou da etapa do acontecimento, o que também é evidente nos filmes que possuem um caráter investigativo.

Se num filme de ficção podemos alterar o tempo na medida em que construímos cenários, utilizamos atores de diferentes idades para interpretar os mesmos personagens justamente para conferir essa idéia de passagem do tempo, em documentário que não se propõe a fazer reconstituições é importante que se perceba a passagem do tempo real, mesmo que posteriormente esse tempo seja manipulado na montagem. E esse tempo precisa ser previsto na produção.

Nessa mesma perspectiva, surgem os filmes de acompanhamento, também capazes de criar uma lógica narrativa e conferir um plot ao documentário. Citaria como exemplo o filme alemão Adicted to Act [Viciados em Atuar] (2003), de Andres Veil, que acompanha um grupo de atores desde o momento em que entram na academia até o momento do ingresso no mercado de trabalho. Outro bom exemplo é Mai´s America

(2002), de Marlo Poras. É um filme que acompanha a vida de uma jovem vietnamita que vai concluir o colégio nos Estados Unidos. O filme segue sua vida, desde sua cidade natal, expondo suas expectativas perante esse novo mundo e o estilo de vida ocidental – estilo que exerce uma certa fascinação sobre ela. Mas as coisas não se dão da forma como ela esperava: a família que a “adota” mora no Mississipi rural e ela enfrenta uma realidade bem diferente daquilo que imaginava ser o modo de vida norte-americano. Acaba revendo seus valores, sua cultura, e se depara com situações que vão do absurdo ao sublime.

Não dá para deixar de dizer que o cinema digital é o grande responsável pela realização da quase totalidade desses filmes. E, dessa forma, se aproxima do cinema direto, que na época em que surgiu também se beneficiou de câmeras mais leves e da possibilidade de captar o som em sincronia com a imagem. O cinema digital permitiu maior mobilidade e reduziu muito os custos, propiciando ao realizador mais tempo e dedicação para seus trabalhos. Mas, se o cinema direto apresentava alguns dogmas, como a ausência de entrevistas e encenações e a restrição ao uso de tripés, lentes e luzes artificiais, evitando a intervenção nos fatos, o cinema digital, ao mesmo tempo em que flerta com o cinema direto, não necessariamente segue seus dogmas, podendo tanto utilizar entrevistas como reencenar situações.

Ao facilitar a produção de documentários de busca e de acompanhamento, a era digital propiciou uma série de documentários mais intimistas, histórias que giram em torno da própria vida do diretor. Podemos acrescentar ainda My African Family (2004), de Thomas Thümena, a história de um realizador suíço que casa com uma africana e vai até a áfrica encontrar seus parentes. Narra as dificuldades e diferenças culturais entre as duas famílias. Tarnation (2003), de Jonathan Caouette, é a história de um realizador que, desde a infância, aprende a lidar com a mãe esquizofrênica. Seria um dos expoentes da era digital por lançar mão de uma colagem de elementos que vão de filmes caseiros, super-8, fotos, a áudios de secretária eletrônica, formando um grande mosaico que percorre 19 anos da vida do diretor. Assim, 33, Passaporte Húngaro e Offspring, citados anteriormente como documentários de busca, também abordam a intimidade de seus realizadores.

Para terminar, pode-se falar de uma tendência apontada por Esther Hamburger de filmes que expressam diferentes formas de apropriação dos mecanismos de produção de representação. Os filmes “através dos quais ‘o outro’, a respeito do qual o filme fala, participa da feitura – atuando, emprestando sua ginga corporal, participando da roteirização, criando a trilha sonora etc. – e expressa diferentes formas de apropriação dos mecanismos de construção da representação” (Hamburger, 2005). A autora cita, entre outros exemplos, Notícias de uma Guerra Particular (1999) e Ônibus 174 (2002). Assim como em Notícias..., que busca um registro complexo de polícia, tráfico e moradores, Ônibus 174 introduz outro aspecto: a TV, as câmeras, o jornalismo. O protagonista apropria-se da própria imagem veiculada pela mídia que está registrando tudo. Segundo Esther Hamburger, “com

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estrutura semelhante ao documentário pioneiro Notícias de uma Guerra Particular (1999), de João Salles, (...) Ônibus 174 (2002) permite levantar questões interessantes sobre a relação entre performance, mídia, violência e pobreza. A análise sugere que tratamentos semelhantes para outros filmes podem ser produtivos no sentido de enriquecer o debate sobre como representar a violência e a pobreza no Brasil sem reproduzi-las”. O programa Revelando os Brasis seria uma possibilidade de passar a câmera ao outro, deixar que cada um construa a sua história ou a história que pretende contar.

Com base nisso, podemos detectar possibilidades e apontar alguns caminhos que seria interessante trilhar. São caminhos não necessariamente novos e, de certa forma, já abordados por documentaristas tanto estrangeiros como brasileiros. Mas, se muito já foi feito em termos de documentário independente no Brasil, ainda há muito a fazer e muitos temas e formatos a serem explorados. O programa Rumos é uma boa oportunidade de pôr em prática novas tendências e gêneros.

Referências bibliográficas

ALTAFINI, Thiago. Cinema documentário brasileiro. Evolução histórica da linguagem. 1999. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/Altafini-thiago-Cinema-Documentario-Brasileiro.pdf.BERNARDET, Jean-Claude. Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro. In: MOURÃO, M.D. e LABAKI, A. (Org.). O documentário do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.HAMBURGER, Esther. Políticas da representação: ficção e documentário em Ônibus 174. In: MOURÃO, M.D. e LABAKI, A. (Org.). O documentário do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.MESQUITA, Cláudia. Em palestra realizada dentro da programação do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo em 2006. Ver o texto “Outros retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil”, neste livro.REISZ, Karel e MILLAR, Gavin. Geschichte und Technik der Filmmontage. Augsburg: Filmlandpresse, 1988.

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Pavlovskoie, uma aldeia próxima a Moscou. Uma sessão de cinema. A pequena sala está repleta de camponeses, de camponesas e de operários de uma fábrica vizinha. O filme Kino Pravda se projeta na tela sem acompanhamento musical. Ouve-se o ruído do projetor. Um

trem aparece na tela. E depois uma menina que caminha até a câmera. De repente, na sala, soa um grito. Uma mulher corre até a tela, até a menina. Chora. Estende seus braços. Chama a menina pelo nome. Mas, esta desaparece. E o trem desfila novamente na tela. “O que ocorreu?”, pergunta o co-responsável operário. Um dos espectadores: “É o Cine-Olho. Filmaram a menina

quando estava viva. Há pouco adoeceu e morreu. A mulher que se lançou até a tela é sua mãe.” Dziga Vertov

Como cineasta posso inferir que o cinema documental, por sua vasta possibilidade de percorrer as essências do espírito humano, faz nascer, pelo seu caráter humanizante e por sua transversalidade, múltiplas e distintas formas de apresentar a realidade.

Significa dizer, entretanto, que esse gênero cinematográfico seguiu sua história desenvolvendo formas estéticas de olhares compartilhados nas idéias, no fazer e nas experiências específicas de inúmeros autores que investigaram, e continuam investigando, a vida humana nos mais diversos continentes da terra e nos mais diferentes territórios culturais pelo viés do mundo mítico, psicológico, histórico e antropológico. Uma busca incessante, direcionada à interiorização do espírito humano, da alma humana e de sua expressão artística, para ver como os seres humanos são e estão na vida real marcados pelas diferenças étnicas e sociais, sem, contudo, ficcionar, exotizar ou reinventar o mundo cotidiano e ritualístico. Enfim, como a textura do filme mostra a realidade por meio da forma estética do documental.

O cinema documental, desde sua origem, deslocou-se em direção ao outro, em busca do inusitado, do diferente. Uma ferramenta que serviu, e serve ainda, para revelar as diferentes

Luiz Eduardo JorgeCineasta (diretor e roteirista), historiador e antropólogo. Doutor em artes/cinema pela ECA/USP em 1995. Professor titular da Universidade Católica de Goiás, atuando na graduação e na pós-graduação. Dirigiu 15 filmes, entre eles Bubula, o Cara Vermelha (1999), Passageiros da Segunda Classe (2001) e o longa-metragem Ventos da História (2006). Nos últimos cinco anos, recebeu cerca de 30 prêmios em festivais nacionais e internacionais.

A expressão cinematográfica no território do documental

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culturas humanas e suas formas de organização social, política, econômica e religiosa. Uma necessidade de ir ao encontro da humanidade do homem para saber como ele percebe, pensa, representa e sente a realidade. Porque, assim procedendo, se pretende buscar expressões em nosso próprio ser, isto é, em nós mesmos, a fim de desvelar o sentido do nosso próprio mundo.

Na epígrafe deste texto, a descrição de um trecho do Cine-Olho do diretor russo Dziga Vertov é uma sinalização da importância do cinema documental como expressão da vida social. O referido realizador tornou-se uma referência clássica e, ao mesmo tempo, moderna no mundo do cinema como uma escola documental em razão de colocar em prática e teorizar sobre os princípios gramaticais do cinema-verdade. Por meio dessa expressão, Vertov desenvolveu suas idéias sobre a função do cinema documental influenciando uma geração de jovens cineastas do pós-guerra que, mais tarde, se tornaram também referências do documental em seus países: “na França com Jean Rouch (Moi un Noir, La Pyramide Humaine, Chronique d’un Étè), Mario Ruspoli (Lês Inconunus de la Terre, Regards sur la Folie), na Itália (especialmente com Baldi), na Grã-Bretanha com o Free Cinema, nos Estados Unidos com Rechard Leacock (Primary, Yanqui No), com Lionel Rogosin (On the Bowery, Come Back África) e diversos seguidores da Escola de Nova York” (Sadoul, 1971) Esse recenseamento realizado por Sadoul limita-se, como ele mesmo afirma, a citar alguns filmes apresentados em Paris ou em festivais internacionais nos anos 1960.

Ao chamar atenção para o cine-olho, Dziga Vertov defendia a tese de um cinema-verdade como forma de expressão não-ficcional, para, com base em um plano de trabalho, alcançar a realidade e apresentá-la no processo de montagem. A montagem, para Vertov, é um conceito, isto é, um exercício subjetivo de concatenação do fluxo dos acontecimentos por meio da razão. Para ele, entretanto, o conceito é uma relação entre teoria e prática: o pensar, o elaborar e o fazer.

O método de Vertov está baseado na sincronização do som e da imagem que ele denominou câmera-olho e rádio-orelha para filmar A Vida ao Improviso. A realidade da forma cinematográfica é uma representação do improviso indo ao encontro dos acontecimentos do cotidiano para apreendê-los, a fim de compô-los dentro de uma lógica dialética da montagem para serem afirmados ou negados. A vida representa-se por si mesma no cinema.

El método del cine-ojo el método de estúdio científico-experimental del mundo visible: a) basado en una fijación planificada de los hechos de la vida sobre la película; b) basado en una organización planificada de los cine-materiales documentales fijados sobre la película. (Vertov, 1927).

Ao utilizar o material de arquivo do Kino-Pravda, Vertov realiza, em 1928, com seu irmão Mikail Kaufman, o longa-metragem intitulado O Homem da Câmera, metafilme

científico-experimental no qual emprega o método aludido por meio de um ensaio dialético-pedagógico mostrando a vida cotidiana de uma grande cidade do amanhecer ao anoitecer. Fazendo uso de inúmeras técnicas de montagem, consagradas até os dias atuais, elabora o cinema documental como um cinema de idéias. E idéias que continuam revolucionárias.

O Homem da Câmera, um filme dentro do filme, que demonstra todo o processo de confecção do documental, indo da idéia ao produto final, coloca em cena o trabalho da equipe técnica – filmagem e montagem – como se fossem personagens que participam do filme no contexto do cenário e dos atores sociais documentados.

Vertov pesquisou as possibilidades estéticas e científicas do cinema documental a ponto de experimentar inúmeros conceitos e comportamentos de câmera, de montagem e de inserção da equipe de filmagem no processo de construção da peça cinematográfica. Além disso, teorizou, nos anos 1920, sobre preocupações ainda atuais correlatas ao cinema-verdade e ao cinema direto, às dicotomias verdade x falsidade, subjetividade x objetividade, objeto x sujeito e realidade x ficção, colocadas, ainda hoje, como temas dos debates sobre cinema documental e cinema ficcional.

Declara Vertov:

El campo visual es la vida;la materia de construcción para el montaje es la vida;los decorados es la vida;

los artistas es la vida.” (Vertov, 1927)

Partindo dos princípios técnicos e heurísticos de Vertov, Jean Rouch, em parceria com Edgar Morin, realizou, teorizou e desenvolveu estudos e produções cinematográficas com base em uma nova concepção do documental. Tomou para si a expressão cine-olho, transformando o cinema-verdade em um desdobramento de métodos e técnicas aliados a uma nova prática do cinema documental, balizado com o campo da antropologia.

Não é por acaso que Vertov se tornou uma matriz fundamental para Jean Rouch. Esse etnólogo-cineasta passou a praticar e a teorizar o cinema-verdade com vistas à produção de filmes antropológicos, numa combinação do método vertoviano e dos princípios da pesquisa etnográfica. Aliou, também, em muitos de seus filmes sobre o processo migratório dos camponeses nigerianos para a cidade, o método de observação fílmica de A Vida ao Improviso à “mise-en-scène documental” do irlandês Robert J. Flaherty. Deste último, tomou como ponto de partida a gramática do clássico Nanook of the North (1922) e também dos filmes de atores naturais como Moana (1926), Tabu (1931), realizado com Murnau, O Homem de Aran (1936). Histórias reais interpretadas por atores da cultura local dirigidos pelo diretor com base em um roteiro pré-elaborado. A respeito desse modelo de documentário etnoficcional de Rouch, pronunciou-se Sadoul:

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Rouch foi, pois, tocado pela autenticidade que atingiu suas pesquisas quando ele ‘deixou falar livremente o ator diante da imagem.’ Ao refletir sobre este sucesso, disse ainda, disse a mim mesmo que se poderia ir mais longe ainda na verdade, se ao lugar de tomar atores e de lhes fazer interpretar um papel, se pedisse a homens para representar suas próprias vidas. E este foi Eu um Negro.” (Sadoul, 1971)

Procedendo assim, Rouch elaborou um novo método do cinema-verdade e um novo conceito dos vetores essenciais do movimento para o cinema etnográfico na realização de filmes que tratam dos rituais mágico-religiosos do Níger, estabelecendo um comportamento da observação fílmica em plano-seqüência a fim de documentar, na íntegra, os movimentos do corpo das pessoas em transe. Denominou esse cinema documental de cine-transe. E, ao filmar a passagem da natureza à cultura e o universo de representação das etnias tradicionais do Níger, tornou-se o principal propulsor da escola do cinema etnográfico francês, influenciando, assim, gerações de novos realizadores de diversas referências culturais e países do mundo.

O cinema documental, o etnográfico em especial, sempre foi em busca da realidade do “outro” a fim de tornar visíveis as diferenças sociais e etno-históricas, pela compreensão da complexidade da cultura. São seus símbolos e seus signos culturais os fenômenos que estão à frente das lentes do cine-olho para o desenvolvimento de uma gramática do real.

As particularidades do documental e suas imensas possibilidades de expressão contribuíram para que cineastas clássicos da geração de Flaherty e Vertov desenvolvessem suas teorias, com base em suas próprias produções documentais, acerca de sua função educativa, estética, política, sociológica e antropológica. Entre eles, estão John Grierson, na Inglaterra, diretor do filme Drifters (1929); Jean Vigo, na França, com À Propos de Nice (1929); Aleksandr Ivanovithc Medvedkin, na Rússia, com O Trem Cinematográfico ou 294 Dias sobre Rodas (1932); Alberto Cavalcanti, realizador brasileiro com filmes produzidos na Inglaterra por Grierson e autor do livro Filme e Realidade (1957).

Os estudos e as pesquisas científicas realizados no território do outro, para a produção documental acerca da diversidade cultural, demonstraram a importância do cinema documental para o desvelamento do território do outro na relação com o eu. O cinema documental passa, então, a direcionar o seu olhar à complexidade das questões sociais relacionadas aos grupos humanos do campo e da cidade, seguindo, assim, o percurso das preocupações específicas e universais das ciências humanas e sociais. O outro passa a ser redescoberto no eu.

Com base nessa postura cinematográfica, há uma argumentação do olhar documental compartilhado no fazer e nas experiências dos autores que investigam a vida humana pelo viés do mundo social, psicológico, mítico e antropológico. Uma busca incessante de interiorização do espírito humano, da alma humana, na expressão poética da imagem.

O fundamento do cinema documental está localizado na forma de apresentar a realidade social e cultural na perspectiva imanente de suas experiências históricas como um fenômeno dialético que se manifesta em sua mais profunda essência, revelando-a.

Desde sua origem, o cinema documental, com suas referências empíricas espelhadas nos formatos fotográficos, escreve sob a ação da luz associada a suportes físicos, químicos e ópticos pesquisados por meio de métodos de pesquisa e técnicas instrumentais elaboradas como indicadores das novas experiências científicas. A ciência de Muybridge, Marey e Démeny, associada à construção do cinetoscópio Edison e do cinematógrafo Lumière, criou uma nova forma e um novo método para o homem olhar para o mundo e para si mesmo.

Por essa razão, o cinema nasce tecnicamente científico1 e documental. Nasce também sob as idéias disseminadas na forma poética de compor a perspectiva para falar do movimento do mundo, dos seres e das coisas por meio do registro do real. A realidade material e psicológica é apresentada no fenômeno do processo projetivo: imagens dadas aos sentidos da psique humana.

No tempo presente, o cinema é remissivo ao tempo passado, às suas origens, aos seus processos e procedimentos metodológicos, estéticos e filosóficos, antropológicos e históricos, cabendo, sempre, pensá-lo em sua dimensão subjetiva porque eleita pelo pensamento e pelo olhar lançado sobre o mundo observado.

Salvo raras exceções, notadamente Rituais e Festas Bororo (1917), de Luis Thomas Reis, a aurora do documental é marcada pelo registro puro e simples nos documentários de viagens, enfatizando o outro. Mais tarde, sob influência das reflexões estéticas, sociológicas e antropológicas, fundamenta-se em posturas críticas e arranjos narrativos combinados nos processos de construção de peças fortemente marcadas por tons poéticos e ideológicos questionadores, sobretudo por meio do cinema político e militante. Atualmente, o acesso aos novos recursos tecnológicos permite uma dilacerada “reinvenção” da forma de expressão e da gramática audiovisual com base em experiências individuais, que tornam o audiovisual uma prática educativa em razão das possibilidades que pode criar no exercício do aprofundamento do conhecimento específico e universal, especialmente no campo das ciências humanas e sociais.

Falo da produção audiovisual de caráter educativo, considerando somente filmes que abordam temas e questões de interesse educativo, fundamentados em pesquisa e produção do conhecimento científico e/ou estético. Obviamente que produções que inventam a realidade no extraordinário, no fantástico e no sensacionalismo não decorrem de tais propósitos e não decorrem de uma reflexão crítica, pois, como venho afirmando, a subjetividade e as idéias cinematográficas são formas artísticas de tratar a verdade por meio da expressão documental.

1 Em Palo Alto, Estados Unidos, 1872, em um cenário preparado para diversos tes-tes envolvendo estudos do movimento de um cavalo fotografado em alta velo-cidade, por meio de um dispositivo que permitiu inicialmente a interface de 12 e, posteriormente, de 24 câmeras liga-das em uma mesma bateria, Muybridge permitiu constatar que, no compasso do galope, o animal realmente fica com as quatro patas no ar. Com base nessa síntese fotográfica, o fotógrafo eviden-ciou um movimento impossível de ser percebido a simples vista. Essa síntese fotográfica possibilitou a Marey criar o fusil photographique e comprovar a tese do movimento pela obtenção de imagens a 24 quadros por segundo, de um pássaro filmado em pleno vôo (Mitry, 1967, p. 41).

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Assim, essa atitude evidenciada no percurso histórico da produção desse gênero cinematográfico é definidora de estilos e abordagens segundo posturas estéticas, políticas, científicas e ideológicas dos seus autores. A reflexão teórica em torno dos fenômenos escolhidos, pesquisados e selecionados para a realização documental consolida as escolas e as correntes teóricas do pensamento documental e as atuais formas artísticas de criação.

Portanto, posso concluir que o cinema é escola.

Essas minhas palavras sobre cinema documental deixam-me à vontade para não estabelecer linhas divisórias muito rígidas entre o exercício do pensamento científico e o do pensamento estético, até porque a escrita tende a interpretar e a imagem tende a representar. Pensando assim, sempre compreendi que ciência e arte na construção do documental se entrelaçam. Dessa forma, não sinto aqui aquela necessidade de formular problemas para realimentar e sistematizar as idéias guardadas nas gavetas a fim de comprová-las ou refutá-las, porque, assim procedendo, posso também correr o risco de pensar que o objeto não tem vida, que o objeto é do sujeito, isto é, o objeto pertence ao sujeito, é pensado pelo sujeito que o observa e dele tira conclusões, formulações teóricas, subjetivações, afirmações e julgamentos mantidos sob a mão única da ciência ou da arte. Não pretendi obedecer a um modelo, seja científico, seja estético, para apresentar a realidade como essência da forma do cinema documental, até porque ela pode ser tão variada e diversa quanto o número de filmes realizados. A realização de um filme documental obedece, assim, a critérios estéticos, científicos e humanos segundo a sua natureza histórica e antropológica. Um filme não é produzido, realizado e “feito” numa fôrma, e, sim, numa forma.

No cinema documental ao qual me refiro, o objeto – do latim obicere = algo lançado, algo posto adiante – não é pensado e constituído pelo olhar impregnante do sujeito da observação, e sim do realizador cinematográfico que, longe de apossar-se do objeto, procura expressar por meio da forma cinematográfica a relação humana que se coloca entre ele, o mundo circundante e os seres humanos documentados. Vejo e entendo o objeto como corpus do universo social, cultural e humano pensado nos recortes narrativos específicos e gerais articulados no pensamento documental. O objeto, pensado numa perspectiva subjetiva e em permanente movimento, portanto, dinâmico e não moldado, não acabado.

O cinema documental confunde-se com a idéia de originalidade, de identidade com a diversidade cultural em permanente construção. Culturas reinventando a cultura com base em novos códigos recolocados permanentemente por novas experiências interétnicas, também, temporariamente redefinidoras de um novo ethos.

Este artigo apresenta algumas indagações tecidas na seara das idéias semeadas no território do cinema documental, rondando duas matrizes cinematográficas já consagradas – Vertov e Flaherty, que impulsionaram a vasta produção de documentários, ora repousando o

olhar nos conceitos e teorias advindos de suas próprias reflexões, ora confirmando-os por meio das idéias experimentadas em suas produções propriamente ditas.

Vertov e Flaherty desenvolveram idéias genuínas e diferentes sobre o cinema documental. O primeiro experimentou o cinema-verdade baseado no improviso como forma de não-interferência no mundo documentado para evitar ficcionar e/ou alterar a realidade. O segundo “interfere” na realidade para propor a mise-em-scène documental visando a um tratamento mais fiel da realidade no cinema. Dessa forma, nota-se, finalmente, que essas idéias, após 80 anos, estão em pleno exercício, tanto no campo do cinema documental quanto no campo do cinema ficcional, ora tratando do cinema documental utilizando atores naturais, como é o caso da recente produção brasileira intitulada Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, ora tratando do cinema verdade à la Vertov, como faz Eduardo Coutinho nos documentários Santo Forte e Edifício Master.

Referências bibliográficas

MITRY, Jean. Histoire du Cinema (1895-1915). Paris: Éditions Universitaires, 1967.SADOUL, Georges. Dziga Vertov. Paris: Éditions Champ Libre, 1971.VERTOV, Dziga. Del cine-ojo al radio-ojo (La importancia del cine sin actores). 1927. In: ROMAGUERA, Joaquim e THEVENET, Homero Alsina. Fuentes y documentos del cine. Barcelona: Editorial Fontamara, 1980.

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1“Não é o escultor que esculpe a escultura, é a escultura que esculpe o escultor!” Existe nessa frase de Merleau-Ponty algo que fica no meio, como um canteiro entre duas avenidas. Chacoalha-se uma frase como chacoalha-se uma vida.

Uma inversão entre sujeito e predicado, entre sujeito e objeto que pode nos ajudar a entender um pouco a relação entre arte e vida, realidade e percepção, olhar e deixar-se olhar, entregar e receber.

Poderíamos, da mesma forma, dizer: não é o cineasta que faz o filme, mas o filme que faz o cineasta. Ao fazer um filme, algo está nos fazendo e algo está se fazendo para além de nosso fazer. O filme se faz e com ele me faço.

Se o meu assunto é a realidade, não estou isento dela e nem ela está isenta de mim. Nesse exercício da reciprocidade, da generosidade da entrega, vários graus de subjetividade estão interagindo entre si. A questão não é objetivar o olhar diante da realidade, mas mesclar sua subjetividade com a subjetividade do outro. Às vezes esvaziando-se no sentido zen-budista do termo, às vezes potencializando o seu “eu” até o total transbordamento. Não existem regras definitivas, tudo funciona como uma espécie de pacto fundamentado na cumplicidade recíproca.

A percepção dos acontecimentos reais sempre estará intimamente relacionada ao imaginário. Nenhum olhar é isento de si ao olhar para fora. Vejo e, ao ver, também me vejo. Vendo-me inserido nisso ou naquilo, aquilo inserido em mim, a coisa se forma, um algo mais, o inesperado. Imagino, ajo na direção do que imagino, depois salto para o lado de lá, para o lugar do desconhecido, que é muitas vezes mais forte e intenso do que o que antes eu imaginava. O cinema do real é a arte desse encontro, um encontro com o que você imagina e no entanto revela-se de outra forma. Nessa revelação, nesse susto, somos convocados diante de um espelho que mostra outro rosto. Qualquer realidade é a

Cao GuimarãesTrabalha com cinema e artes plásticas. Desde fins dos anos 1980 vem mostrando seus trabalhos em diferentes museus e galerias, como o Guggenhein Museum de Nova York (seu filme Sopro faz parte da coleção do museu); Mori Museum, em Tóquio; Galeria La Caja Negra, em Madri; e em bienais como a XXV Bienal Internacional de São Paulo, Insite Biennial 2005 (San Diego/Tijuana), entre outras. No fim da década de 1990 começou a fazer filmes, principalmente documentários experimentais, entre eles Rua de Mão Dupla, A Alma do Osso, O Fim do sem Fim, Da Janela do Meu Quarto e Andarilho.

Documentário e subjetividade – Uma rua de mão dupla

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extensão de você mesmo; e você, a extensão da realidade.Olhar o mundo através de um aparelho óptico, enquadrar a realidade, já possui em si uma dimensão subjetiva muito forte. É impossível destituir o documentário da subjetividade. É ontologicamente impossível.

Ao planejar um filme, ao escolher um assunto, você de certa forma começa um processo de múltiplos recortes, do macro ao micro, do todo às partes. Você objetiviza um espaço real, prepara a cama onde seu olhar vai poder se deitar. Encontra um lugar para se permitir estar perdido. Potencializa um descontrole necessário. Esse movimento dialético entre o que vem de dentro e o que vem de fora gera um espaço, onde o filme habita. O importante é não perder esse lugar de vista; lugar que é na verdade um fluxo no qual as coisas se embaralham, esvaziam-se de si e revelam-se outras por algum momento. Esse lugar é o lugar da câmera ligada diante de alguém ou de alguma coisa. Esse lugar é um momento, um dos muitos momentos mágicos do processo cinematográfico.

“Antes de estudar zen, um homem é um homem, uma montanha é uma montanha. Ao estudar zen, um homem é uma montanha e uma montanha é um homem. Depois de estudar zen, um homem é um homem, uma montanha é uma montanha. Só que você está com os pés um pouco fora do chão.”

Esse pensamento do doutor Suzuki, via John Cage, retrata bem o processo da feitura de um filme que lida com o real. Ao pensar no objeto de um filme, ao imaginar o universo de um determinado assunto, falsas certezas pululam em seu imaginário, você se sente um Deus criando um determinado mundo.

Ao ir de encontro ao objeto de seu filme, ao acionar o botão do descontrole, todas as coisas se transformam, suas certezas desvanecem, você troca o lugar deificado de um mundo imaginário pela crueza da realidade diante de seus olhos.

Você volta a brincar de Deus associando imagens e sons uns com os outros e esculpindo o tempo e o ritmo de seu filme na edição. Fundamental lugar do reencontro, onde o homem volta a ser homem, e a montanha, montanha. Olhar as coisas pela segunda vez, realinhar o caos, reinventar o mundo por meio da imagem e não apenas do imaginário. Finalmente, na sala de cinema, todos flutuam com os pés um pouco acima do chão.

A realidade é uma coisa híbrida, multifacetada pela incidência de olhares diversos, espelho sem fundo de um homem, uma cultura, um país. Se a pensarmos como uma lâmina reflexiva, que nos reflete e nos faz pensar, se a compararmos à superfície de um lago, poderemos nos relacionar com ela de pelo menos três maneiras:

– Poderemos ficar sentados no barranco contemplando sua superfície (e acho que a pele das coisas é um universo imenso que revela muito do que no fundo se esconde). Existe aí a possibilidade de um distanciamento, uma relação filtrada por um olhar distante, um olhar

passante, algo que incide e elege, no momento mesmo do encontro entre a imagem que é dada e os olhos que a percebem. Uma atitude, uma opção de posicionamento, como num campo de batalha, como a posição dos rifles em uma emboscada num faroeste americano, como as cenas iniciais de F for Fake, de Orson Welles – a câmera distante acompanha uma bela mulher que caminha pela rua sendo devorada pelos olhares desavergonhados dos homens pelos quais passa.

– Poderemos, ainda sentados no barranco ou em pé na margem do lago, lançar uma pedra na água para vê-la reverberar, gerar um movimento tectônico em sua superfície, embaralhar seus elementos, desorganizar o aparentemente organizado. Essa pedra como um conceito, um dispositivo, uma proposição. Os trabalhos oriundos desse método são fundamentados no princípio de ação e reação. Uma proposição qualquer aciona um movimento que produz uma reação. São trabalhos que jogam com a noção do esvaziamento da autoria ou, pelo menos, nutrem o desejo do compartilhamento desta. Um jogo não se joga sozinho, jogos são também fundamentados em uma ação que espera uma reação.

– E, finalmente, poderemos nos lançar a nós mesmos nesse lago. Afundarmo-nos inteiros nessas misteriosas águas e, de dentro, abrir os olhos e ver o que acontece. Essa atitude imersiva reflete um desejo de entrega e investigação, uma propensão ao embate, à mescla, a vivenciar um pouco mais de perto o que se esconde dentro do espelho, no fundo das águas, encarar o peixe nos olhos, deixar-se levar pela correnteza ou hipnotizar-se com a calmaria do lago.

Portanto, existe o lago e existe você. E no meio disso, na margem disso, ronronares de sapos dissonantes, balé da vegetação ao vento, metamorfoses de peixes em luz, bolhas de ar atravessando a água. Tudo participa dessa experiência e a autoriza. Tudo estimula, seduz, desorganiza, afeta sua percepção. Pois no espaço real uma folha que cai é tão expressiva quanto o vestido de Marilyn Monroe que voa e a sonoridade de um deserto tão intensa quanto uma cantora lírica no palco.

2.Um helicóptero sobrevoa uma favela lançando um facho de luz sobre seus casebres. Da pracinha um homem observa o belo movimento circular do helicóptero e o facho de luz cortando a noite escura. Eu observo o homem da pracinha observando o helicóptero. Alguém com um binóculo pode estar me observando observar o homem da pracinha observando o helicóptero. Enquanto observo o homem da pracinha observando o helicóptero imagino o que ele está vendo e imagino também o que o piloto ou o foquista da luz estão vendo lá de cima. De repente alguém grita no meio da favela. Movo meus olhos na direção do grito, por instinto, por curiosidade. Vejo apenas o facho de luz percorrendo os casebres apagados. O grito se cala, o helicóptero se vai, o homem da pracinha deita na grama e fecha os olhos. Uma rede de imagens se constrói em minha memória. O que realmente vi e o que imaginei ter visto? O que realmente aconteceu e o que imaginei ter

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acontecido? Nessa dúvida alguma coisa existe. O homem da pracinha faz seu filme em sua memória, eu faço o meu, da mesma forma o piloto, o foquista e a pessoa do binóculo. Existem diferentes filmes em cada um de nós para uma mesma realidade. Nisso consiste a beleza e a magia de lidar com a realidade. Ela nos faz pairar para além de nossas certezas e nos reinventarmos sempre diante das inúmeras possibilidades que se apresentam.

Somos todos espectadores privilegiados de inúmeros filmes que a realidade nos oferece. E felizmente nunca vemos a mesma coisa do mesmo jeito. Da mesma forma nunca saímos de uma sala de cinema com a mesma impressão de um filme que a pessoa ao lado. Pois arte não é ciência e os DNAs e os vetores de uma obra de arte são fundamentados na imprevisibilidade. A centopéia que habita sua cabeça ao sair de uma sala de cinema não tem necessariamente 100 patinhas. Tampouco será a mesma centopéia que existiu um dia na cabeça do diretor quando imaginou o filme. Ter a coragem de se entregar, saltar do plano deificado da imaginação para o plano real da imagem em ação, recodificar o transe e perceber o milagre da multiplicação dos sentidos no que se encontra para além de sua pessoa.

É necessário, de quando em vez, assassinar o sujeito para que a subjetividade exista. Pois é no lodo abissal de nossa existência que o sujeito real se move. Esse ser inominável que está dentro de nós, do qual sabemos tão pouco – é esse o outro rosto que se revela do outro lado do espelho quando nos propomos a encarar a realidade.

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Como é possível que o sofrimento que não é meu, nem de meu interesse, possa afetar-me imediatamente como se fosse meu, e com tamanha força que me impele à ação?…

Sobre o Fundamento da Moral, Arthur Schopenhauer

Diante das inúmeras possibilidades que as mídias hoje oferecem, colocando à disposição do homem um leque de serviços audiovisuais pelos quais possa manifestar suas opiniões e sintomas no mundo globalizado, me pergunto:

como se dá a construção de nossa identidade/verdade nos inúmeros diálogos que surgem espontaneamente através dos blogs, do Orkut, dos sites de relacionamento, dos messengers? É uma tentativa de construir a própria história, ou de desconstruí-la? Na internet, anônimos e não-anônimos criam diários e conversas a cada segundo, como um grito nesse imenso espaço virtual, numa tentativa de criar novas identidades. Tenho a impressão de que o importante nesses diálogos não é a permanência do que se diz, mas o esvaziamento dos sentimentos, da vida corrida, como as marcas deixadas por um meio que se acende e apaga, como passos na areia. Percebo uma necessidade de diferenciação misturada a um mergulho na massa globalizada, um medo de não se manter atualizado. Como a não-experiência com base nas imagens que nos chegam a todo instante pela TV, mas sem que as experimentemos, pois já chegam banalizadas e amortecidas pelo texto.

Sinto as notícias e as imagens do mundo amortizadas para que não as sintamos mais, para que não tenhamos atitudes de rebeldia. Mesmo que esteja tudo fora do lugar, está tudo “normal”.

Fazer documentário é um ato político, um posicionamento diante daquilo que se vê e sente. Um diálogo com o meio em que se vive. Uma demonstração de vigor diante da vida, uma manifestação do sentimento de estar vivo.

Érika BauerFormada na Escola de Cinema e Televisão de Munique, Alemanha, realizou pesquisas e dirigiu curtas entre 1987 e 1993. Realizou seu primeiro longa-metragem, Dom Helder Câmara, o Santo Rebelde, que ganhou, entre outros prêmios, o de melhor roteiro e montagem no Festival do Ceará, em 2004, e o Margarida de Prata, em 2005. É professora de cinema da Faculdade de Comunicação da UnB.

O documentário como experiência

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É importante também dizer que é um ato de extrema coragem se expor e desmistificar o conhecido, assumir diferenças e indiferenças. Lançar-se ao mundo para se diferenciar, mesmo sem buscar nada de novo na forma, se o conteúdo assim o exigir. Ser ou não ser.

É uma maneira, também, de juntar os pedaços, aqueles milhares de fragmentos dispersos e mal contados de nossa história coletiva, e nisso redescobrir algo de nossa história pessoal. Reunir episódios, desvelar a história oficial e reconstruir a “crônica dos vencedores”. As imagens de arquivo no Brasil são, em sua maioria, sobre aqueles que “deram certo”.

O documentário quer ser linguagem, quer se comunicar. E com tal força que influencia os filmes de ficção brasileiros. Assistindo ao maravilhoso Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, me lembrei do documentário de Wladimir Carvalho O País de São Saruê. A visceralidade das imagens, o sol do sertão convocando o espectador ao calor dos relatos dos sobreviventes. O preto no branco. Os galhos secos rasgando a tela. A verdade de quem desconhece banalidades.

A realidade chama, chacoalha, estremece. Precipita novos realizadores, e não tão novos, a responder àquilo que incomoda e/ou emociona. Faz-nos nos mover e entrar em choque com novos dilemas éticos, políticos e estéticos. A história não fala por si só. É preciso que a façamos falar!

Existe uma procura muito grande, por parte dos realizadores, por projetos de filmes documentários. Isso é gerado não só pelas facilidades dos meios, hoje mais acessíveis, mas também pelas políticas públicas de regionalização e por uma sempre presente necessidade de melhor compreender e apreender o mundo à sua volta.

Muitos universitários me procuram para apresentar temas como o primeiro bairro em Brasília, a colonização finlandesa em Penedo, a terceira idade nas cidades-satélites, a violência juvenil em Brasília, o rap em Ceilândia... Porém, mostrar não é mais preciso; um telejornal, qualquer dia, o fará. O que importa, para mim, é aproximar a lente, levantar novas questões, conviver com o seu objeto e se perguntar por quê.

Entender-se nesse processo de busca, buscar dialogar com seu tema, trabalhar o impacto social, ir ao fundo do poço das questões que serão levantadas numa pesquisa sobre o tema, tudo isso é que vai dar o verdadeiro sentido para o filme. Tudo isso, claro, aliado ao tempo, que amadurece tudo. Tanto o tema quanto o realizador, para entender realmente para onde será preciso ir.

O tempo dá e constrói, no amadurecimento desse diálogo, a dimensão humana aos filmes documentários. Como um embrião que vai crescendo até virar filme, lançando luz na história do ser humano, buscando lacunas e construindo outra história, não-oficial. E não-oficial

poderá ser o processo investigativo, conduzido de maneira independente, à luz de uma pesquisa insistente e impertinente. E muitos serão os obstáculos encontrados nessa busca.Não existe um modelo, e por isso a diversidade deve ser preservada, sem o dever de levar respostas e de ser utilitária.

Essa necessidade humana de se comunicar está profundamente associada à necessidade de conhecer, de se perguntar e participar. É o que nos move para novos olhares e para uma compreensão do mundo, nossa maneira de encontrar um lugar no mundo.

Antes das câmeras, microfones e tantos outros equipamentos, existiam as imagens pintadas, o teatro de sombras, a palavra falada e também a dança e o ritual. Tínhamos meios de expressão, da mesma forma que fazemos hoje com nossos filmes.

O documentário faz uso das mesmas possibilidades de que o filme de ficção dispõe para compor uma cena: plano aberto, plano fechado, travelling, panorâmica, flashback, sem falar daquilo que a montagem pode oferecer para um melhor arranjo entre as imagens. Mas existe um elemento básico que diferencia um do outro, que é a abordagem do tema, a maneira como um documentarista se aproxima de seu objeto, mais sujeito a surpresas, levando a um desnudamento, forçando aberturas para o indeterminado, e conseqüentemente à abundância inata daquilo que a realidade nos oferece.

Segundo Bill Nichols, professor da Universidade de Rochester, os documentários podem ser expositivos, observacionais, interativos e/ou reflexivos. O formato varia de acordo com o tema e a abordagem que se queira dar a ele.

Como no filme Estamira, cujo diretor, depois de intensa pesquisa, optou por uma linguagem mais experimental, ao utilizar os recursos visuais do filme para interagir com o personagem e sua loucura. O filme traz imagens quase bíblicas, quando a tempestade chega e entra o off de Estamira naquele lixão sob um forte vento. Fascinado pelas imagens e pelo carisma do personagem, um deslize: ao encontrar um vidro com palmitos (provavelmente estragados), Estamira fala dos almoços que faz, do macarrão, de como fica bom etc. No cinema, espectadores fazem cara de nojo. Em seguida, vemos os familiares na casa de Estamira comendo justamente o macarrão que ela comentara em cena poucos minutos atrás... Um pequeno rasgo na ética do filme. E, claro, provavelmente o palmito não estava lá, uma mentira.

Como uma criança diante de diferentes brinquedos, assim se inicia a jornada do documentarista – aberto, sem idéias fixas e com olhares ainda dispersos. Assim também poderia ser o seu amadurecimento, o seu processo de autoconhecimento na fase final da montagem – aberto às inúmeras possibilidades de interpretação do mesmo fato. E aí vem a questão fundamental: a ética.

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Chegar próximo da verdade de fato seria o mesmo que falar de conhecer a si mesmo. Somos tantos, somos tão diferentes em diferentes momentos, fazendo leituras diferentes das experiências que vivemos, que não existe a possibilidade de chegar a uma verdade final. Ela possui diferentes matizes, dependendo da luz em que for vista.

Personagens escolhidos por nós podem sugerir sentimentos diferentes daqueles que nos levaram a escolhê-los. Não existe unanimidade, e é isso que torna o trabalho do documentarista interessante e fundamental. Quando tentamos humanizar um ídolo, um ícone da sociedade, fazendo um plano de 360º sobre ele, nos aproximamos muito mais do que o enaltecendo ou contando fatos relevantes da história que ele ajudou a construir.

Poderia falar de minha experiência com o personagem de Dom Helder e minha pesquisa para o documentário O Santo Rebelde. A pesquisa teve várias etapas. Iniciou-se com a descoberta do tema, ou “o tema me descobriu”, depois de uma série de “coincidências”. Vi dom Helder numa entrevista sobre Josué de Castro, fiquei curiosa e em seguida deparei com uma biografia recém-lançada. Curiosidade e enamoramento pelo personagem. Quando procurei me afastar da biografia escrita para iniciar minha própria jornada, enfrentei uma nova crise: falta de material de arquivo no Brasil. Fui atrás de outras fontes, como coleções particulares, entrevistas com colegas, pessoas ligadas à Teologia da Libertação, movimentos iniciados por dom Helder. Também ouvi fontes do outro lado, críticos de seu trabalho etc. Seus críticos, no entanto, eram fracos, não valia a pena assumi-los dentro do filme, porque exporiam a fragilidade do próprio discurso. Fui percebendo a amplitude que o trabalho de dom Helder teve no mundo e parti para a busca de imagens e depoimentos fora do Brasil. Foi a fase mais importante, pois me deu a segurança e uma melhor percepção da dimensão do personagem. A partir daí, o filme cresceu, e pude pensar realmente que o documentário não seria apenas sobre um homem da Igreja, mas sobre um homem de seu tempo no Brasil e no mundo. E por que não dizer que me apaixonei por ele e que me exporia dessa forma na colocação das idéias do filme. Apaixonei-me por suas idéias, sua força, sua feiúra e sua beleza, seu humor e sua inteligência, e – por que não dizer? – suas contradições, como sua familiaridade com o poder.

Ao perceber, no processo da montagem, o personagem que construímos, vamos entendendo o tempo como aliado. Como o trabalho amadurece, e como criamos nossa subjetividade em relação ao personagem. E as descobertas profundas são inevitáveis.

Jung escreveu:

Experimentar o eu significa estar sempre consciente da própria identidade. Então você fica sabendo que nunca poderá ser outra coisa senão você mesmo, que nunca poderá perder-se e que nunca se alienará de si. Isto é assim porque você sabe que o eu é indestrutível, que é sempre um e o mesmo,

que não pode ser dissolvido nem trocado por nenhuma outra coisa. O eu lhe permite permanecer o mesmo em todas as condições de vida. Assumir o lugar no mundo, buscar idéias que formarão opiniões, analisar pontos de vista, composição de quadro, encontrar maneiras de expor um drama.

Diria, então, que o documentário é uma sujeição ao tempo. O documentarista precisa estar conectado com seu tempo, assumindo e criando necessidades que vão gerar novas invenções formais. Encontrar seu objeto, seu tema, é manter-se ligado aos acontecimentos do mundo e a suas conexões com o mundo interno. Colocar perguntas que vão desde a motivação do tema até as possibilidades de pesquisa, conflitos a ser levantados, conexões com a política, leituras diversas etc.

É importante perceber a complexidade do mundo hoje e as inúmeras possibilidades que um tema pode oferecer. E, fundamental, não se sujeitar à força do mercado, do neo-liberalismo ou da globalização, ou seja, tudo aquilo que limita, que esvazia conteúdos ou nos torna meros espectadores de algo maior do que nós. Não se deixar anestesiar diante da realidade. Temos de reagir, ir em busca de novas idéias, novos formatos, abraçar nossa subjetividade. Pessoalmente, sinto-me como um Dom Quixote, e são personagens assim que me inspiram!

Vargas Llosa escreveu:

El gran tema de Don Quijote de la Mancha es la ficción, su razón de ser, y la manera como ella, al infiltrarse en la vida, la va modelando, transformando...Al mismo tiempo que una novela sobre la ficción, el Quijote es un canto a la libertad. Conviene detenerse un momento a reflexionar sobre la famosísima frase de don Quijote a Sancho Panza:“La Libertad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieron los cielos; con ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra ni el mar encubre; por la libertad así como por la honra se puede y debe aventurar la vida, y, por el contrario, el cautiverio es el mayor mal que puede venir a los hombres” (Dom Quixote de La Mancha, Edición del IV Centenario, Alfaguara, II, 58, p. 984-985).

Como uma manifestação das novas necessidades dos documentaristas no mundo hoje, diante das novas tecnologias e da invasão constante das imagens, os filmes adquirem formas mais complexas. Documentários reflexivos misturam passagens observacionais com entrevistas, a voz sobreposta do diretor com intertítulos, deixando bem claro o que já era um pressuposto: “o documentário sempre foi uma forma de representação, e nunca uma janela aberta para a ‘realidade’ “ (Bill Nichols).

Assim, o cineasta se torna testemunha participante, criando e modificando o mundo enquadrado, desenquadrando preconceitos e inquietando com novas maneiras de percepção, para melhor compreensão das inúmeras faces e possibilidades que a realidade pode oferecer. E é interessante observar a inversão do político para o pessoal, que fabrica

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seu próprio discurso, efeitos, impressões e pontos de vista. É a voz do texto que ouvimos, que conduz todo o filme, mesmo quando essa voz tenta se apagar. Na vida fazemos uso de encenações; por que não as utilizar no filme documentário? Por exemplo, quando fazemos uso de entrevistas. A representação é parte do processo, não perguntamos o que não nos interessa, de certa forma conduzimos nossos personagens para o local do filme, daquilo que nos é importante. Interessante também é destacar o presente dos personagens. O que fazem, além de falar aquilo que o diretor pergunta, ou o que fariam, caso não estivéssemos lá.

A construção de uma estrutura de mosaicos, revelando a incompletude de uma verdade! A intensidade da vida no mundo – lembrando que vivemos num continente colonizado, com mentes colonizadas, com fortes raízes na injustiça, controlado por organizações políticas ainda confusas, tão próximos à nação mais rica do mundo.

Somos caóticos e a história que conhecemos – sempre a dos vencedores – foi contada com base em escolhas. Nossos olhares, no entanto, guardam o potencial de liberdade que Llosa apontou em Dom Quixote. Como a câmera-olho de Vertov, precisam ir onde ainda não enxergamos, reconstruindo a realidade, expondo outros paradigmas que suavizem velhas certezas, desvelando a ordem – freqüentemente estranha – por trás do caos. Quem sabe, como pessoas e nações, não nos reencontremos menos enquadrados?

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Quando comecei a fazer documentários, no começo dos anos 1990, o panorama das expressões artísticas de áudio e/ou vídeo brasileiras que se seguiu ao porrete collorido vivia um período preto-e-branco de apartheid. Cinema era cinema.

Artes plásticas eram artes plásticas. Música era música. E o que escapava desses grandes conceitos, alguns subgêneros como o documentário ou a videoarte, era exatamente aquilo que o nome indicava: subgêneros. Eram manifestações “menores”, relativamente esquecidas em algum limbo perdido entre as grandes correntes de expressão, sobretudo quando realizadas sobre suportes à época considerados menos nobres, como a imagem eletrônica. Havia uma espécie de cânon implícito, mas geralmente aceito, que não só separava as manifestações culturais, como também as hierarquizava.

O espaço daquele tempo ainda se definia por um apego a fronteiras bastante estritas. E em nome delas foram travadas grandes discussões que, ainda que depois tenham se revelado quase sempre putativas, mobilizavam ímpetos passionais. Lembro-me, por exemplo, do longo debate que se travou entre os defensores do vídeo e os advogados da película. Durante anos, questionou-se (e alguns poucos retardatários ainda questionam) a legitimidade da imagem eletrônica como suporte de uma obra de arte audiovisual. Felizmente, com o passar da própria matéria-prima central da obra audiovisual – ou seja, o tempo –, ficou claro que tal questionamento existia sobretudo para defender um corporativismo mal escondido. Tratava-se acima de tudo de uma tentativa institucional de proteger um meio estabelecido, o cinemão tradicional, da competição mais ágil e perigosa de uma nova tecnologia.

Essa competição, que se fosse exclusivamente estética poderia ter gerado um debate muito frutífero, escondia, assim, em seu bojo, outra competição, meramente financeira. E era provavelmente ela o principal combustível a motivar tanta celeuma, já que no universo

Carlos NaderEntretecendo linguagens que vão do documentário clássico à videoarte, Carlos Nader teve seus vídeos exibidos em centros culturais de mais de 20 países (como o MoMA, de Nova York, em 1999, e o Tate Modern, de Londres, em 2007) e veiculados em mais de uma dezena dos principais canais de TV do planeta (como o inglês Channel 4 e o franco-alemão Arte). Entre os prêmios que recebeu estão o Mondial de la Vídeo de Bruxelles (1993), o Internationaler Videokunstpreis da ZKM, na Alemanha, e o Grande Prêmio de Cinema Brasil (2000).

Filme livre

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cultural é, via de regra, do consenso estético entre grupos de influência que decorrem as decisões de alocação de verba, inclusão em leis de incentivo e julgamento de premiações. Em decorrência da reação corporativista do establishment cinematográfico, o cinema feito em vídeo, por exemplo, viveu durante algum tempo uma versão às avessas do célebre paradoxo de Tostines (aquele do “vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?”). Assim, o biscoito fino do audiovisual eletrônico passou um período considerável excluído dos critérios da Lei do Audiovisual, por ser eletrônico, e igualmente excluído dos mecanismos práticos de aprovação na Lei Rouanet, por ser audiovisual e supostamente já ter uma lei própria, a Lei do Audiovisual, que na verdade também o excluía. Felizmente, essas distorções foram corrigidas a tempo em ambas as pontas, e a imagem eletrônica foi paulatinamente sendo resgatada de seu limbo financeiro ao mesmo tempo em que era retirada do limbo estético.

No território de museus e galerias de arte, deu-se um processo semelhante ao ocorrido nas salas de projeção. É verdade que no princípio de tudo o vídeo foi usado por artistas mainstream, no melhor sentido da palavra, como Anna Bella Geiger no Brasil ou Nam June Paik na cena internacional. Mas um desvio de rota, iniciado nos anos 1980 e ainda não totalmente explicado, fez com que no começo dos anos 1990 a arte do vídeo acabasse por se encontrar bastante insulada. Nessa época, a chamada videoarte, apesar de já propor uma fusão efervescente entre cinema, música, mídia e outras artes plásticas ou temporais, tinha paradoxalmente um sistema de criação e exibição exclusivo, apartado e a princípio negligenciado pelos circuitos tradicionais das artes. Mas antes ainda que as salas de cinema aceitassem o vídeo em suas exibições, as galerias, os museus e os próprios artistas plásticos foram gradualmente abraçando o meio eletrônico. Foi um processo relativamente rápido, mas essa aceitação não aconteceu sem passar por algumas situações intermediárias esdrúxulas, como a da Bienal de São Paulo de 1994, em que todas as instalações de videoarte foram sintomaticamente colocadas sob uma construção efêmera de lona, uma tenda anexa ao prédio central. A tenda era uma espécie de apêndice inflável da exposição, alegoria involuntária que expressava muito bem a dificuldade que os cardeais da arte daquela época tinham em aceitar definitivamente um novo meio em seu panteão.

O estado das coisas hoje é bem outro. A incorporação dos meio eletrônicos por aquela arte chamada apenas de “arte” seguiu com rapidez as três etapas que Schopenhauer enxerga no surgimento de toda nova verdade. Primeiro, ela foi combatida. Depois, foi ridicularizada. E, por fim, foi aceita como se sempre tivesse sido a coisa mais óbvia do mundo. Em poucos anos, a eletrônica passou de penetra a vedete – tanto no circuito das artes internacionais quanto na palheta dos artistas contemporâneos. Mesmo que com a abertura definitiva da porteira do museu para a boiada do vídeo possa ter havido algum vale-tudo auto-indulgente, a quebra de qualquer barreira limitante, de qualquer reserva de mercado, é sempre muito salutar. E, hoje, com exceção daqueles poucos retardatários que mencionei, sempre literalmente de plantão, quase mais ninguém discute se o vídeo em particular ou qualquer outra tecnologia moderna em geral pode ou não carregar arte. O tempo, sempre ele, se encarregou de despertar definitivamente toda a exuberante irrelevância dessa

discussão. Irrelevância esta que já era latente no início dos anos 1990, período ao qual, aliás, eu terei brevemente de voltar para colocar outra discussão, correlata e igualmente irrelevante, mas central para mim e, acredito, para esta publicação: “E o documentário, especificamente, pode ou não ser considerado arte?”.

Foi no começo de 1992 que essa questão me apareceu pela primeira vez. Para ela, recebi basicamente duas respostas. Uma curta e uma longa. A curta foi: “Não”. E a longa foi: “O seu documentário não”. O meu primeiro trabalho não foi, a princípio, considerado “arte”. Eu havia acabado de terminá-lo. Era realmente um vídeo sem grandes efeitos, a não ser o de misturar verdades e mentiras sobre um personagem, José Alves de Moura, também conhecido como Beijoqueiro, que para mim era uma alegoria ambulante do Brasil daquela época, maníaco-depressivo entre a violência e o afeto. Durante os dois meses de filmagens, em que dividi o mesmo teto com meu personagem, a questão “documentário é arte” não teve tempo para me ocorrer. Mas logo depois, com o vídeo já pronto debaixo do braço, pude notar que a maioria dos responsáveis pelas principais instituições que exibiam vídeos na época acreditava que um documentário de formato relativamente televisivo sobre um homem que saía beijando pela rua não era exatamente arte. Por causa disso, o vídeo ficou um ano engavetado, sem espaço para lançamento. Em 1993, O Beijoqueiro teve sua première no World Wide Video Festival, do curador holandês Tom van Vliet, uma importante plataforma de lançamento da “arte do vídeo” da época. A partir dela, o filme correu não só boa parte daquele circuito internacional de videoarte que mencionei acima, mas também parte do circuito de festivais e canais de TV que exibiam documentários “de qualidade”. Durante essas exibições, notei que, mesmo que alguns espectadores vissem no vídeo apenas o coté do Brasil exotique et bizarre que o Primeiro Mundo cultua, muitos outros enxergavam nele uma experiência de contato legítima e profunda entre um autor genuinamente envolvido e um personagem excepcional. Ou seja, arte.

Meus quatro documentários seguintes – Trovada, de 1995; O Fim da Viagem, de 1996; Carlos Nader, de 1998; e Concepção, de 2001 – iniciaram trajetórias que pareciam, a princípio, menos esquizofrênicas. Eles de cara foram aceitos e mesmo premiados por instituições culturais importantes, como o Videobrasil por aqui e a ZKM na Europa. Assim, foram logo reconhecidos como “arte”. O que aconteceu, estranhamente, é que eles não foram reconhecidos como “documentários”. Não foram selecionados para nenhum festival do gênero, nem foram exibidos em nenhuma programação documentária de TV. De certo modo, era compreensível. Se, por um lado, eles têm várias características óbvias de uma linguagem “artística” e “experimental”, por outro, Trovoada, Carlos Nader e Concepção não têm algo que caracteriza a maioria dos documentários: uma estrutura concêntrica ao seu tema, seja esse tema um cantor, seja uma doença. Esses meus ensaios visuais são o que chamei de “documentários sobre uma sensação pessoal”, com uma estrutura associativa, como a do pensamento livre. Já O Fim da Viagem fugia um pouco à regra. O vídeo é uma mistura estranha de cinema direto e proto-reality show, em que a câmera e eu acompanhamos, falsamente ausentes, uma fatia da vida comum de um homem comum. Mesmo que a princípio esses pequenos filmes tenham causado algum

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estranhamento, talvez pela subjetividade excessiva de sua proposta, a aceitação do caráter documental deles também acabou vindo a tempo. Nesse sentido, dois eventos “oficializaram”, pelo menos para mim, esse processo. Em 2000, O Fim da Viagem foi um dos 25 trabalhos escolhidos para compor a New Documentary, uma mostra do MoMA de Nova York que apontava novas linguagens documentais para o milênio que se iniciava. E, em 2003, a Conferência Internacional de Documentários, vinculada ao festival É Tudo Verdade, apresentou, justamente com destaque positivo para a subjetividade no gênero documental, vídeos como Carlos Nader, Trovoada e Concepção.

Obviamente não fui o único realizador a participar da Conferência ou a viver essas questões. Artistas audiovisuais brasileiros tão diferentes como Arthur Omar, Cao Guimarães, Carlos Adriano, Eder Santos, Eduardo Coutinho, Fernando Meirelles, Francisco César Filho, Inês Cardoso, João Moreira Salles, Joel Pizzini, Karim Aïnouz, Kiko Goifman, Lucas Bambozzi, Lucila Meirelles, Luis Duva, Marcello Dantas, Marcelo Machado, Marcelo Gomes, Marcelo Tas, Piche Martirani, Roberto Moreira, Sandra Kogut, Tadeu Jungle, Tata Amaral, Walter Silveira, entre outros, também teriam histórias parecidas para contar. Num determinado momento histórico da criação audiovisual, inserido entre aquele fim dos anos 1980 e começo dos 1990, eles pegaram o bastão dos pioneiros do vídeo e transitaram deliberadamente pelos dois lados de uma fronteira arbitrária e caduca, contribuindo para apagá-la. Assim, ajudaram a transformar o que era um critério de exclusão num parâmetro de inclusão. Se, no meio das artes plásticas, a eletrônica é hoje um suporte desejado, no meio do cinema documental, aquilo a que se dá o nome ora de “subjetividade”, ora de “experimentalidade” é algo hoje recorrentemente incentivado na prática. Se nos debruçarmos sobre os últimos cinco ou seis anos do mais importante e tradicional festival de documentários brasileiros, o É Tudo Verdade, observaremos que os principais premiados são belos filmes que se encaixariam com facilidade nos rótulos de “experimental” ou “subjetivo”. É certamente o caso de Rocha que Voa (2002), O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), A Alma do Osso (2004) e Aboio (2005). Vale ressaltar, também, que critérios semelhantes parecem pautar a escolha de boa parte dos editais públicos de premiação e fomento à produção. Houve, no espaço de dez anos, uma efetiva e liberadora mudança de paradigmas. O tipo de experimentalismo audiovisual, pelo qual alegremente nos batemos no começo da década passada, tem hoje um grau de reconhecimento inédito pelas correntes culturais mais centrais.

Eu gostaria de estar aqui apenas festejando esse reconhecimento. Eu o festejo, claro, e muito, mas começo a enxergar na institucionalização dele alguns perigos. Para tentar explicá-los, terei de lançar mão, mais uma vez, de uma história pessoal. Afinal, não é de subjetividade que estamos tratando aqui? Passei quatro anos, de 2000 a 2004, envolvido num projeto sobre a questão racial brasileira. Foi um período de dedicação intensa em que intercalei leituras sobre o assunto, conversas com especialistas e acompanhamento de personagens que literalmente vivem a questão da raça na pele. O resultado desse mergulho, um documentário de longa-metragem chamado Preto e Branco, foi exibido pela primeira vez no É Tudo Verdade de 2004 e chegou a entrar em cartaz em um pequeno cinema comercial de São Paulo. A reação ao filme me surpreendeu, novamente pela

esquizofrenia com que se deu. Se o (pequeno) público em geral e a crítica de jornal viram no filme sobretudo qualidades, um determinado setor do meio cinematográfico – um grupo relativamente pequeno também, mas inteligente e influente – pareceu incomodado. Esse fato me surpreendeu especialmente por tratar-se de um grupo basicamente formado por pessoas que têm como bandeira, justamente, um cinema experimental, de que muitas vezes gosto e que sempre respeito. Ao perguntar a algumas dessas pessoas quais eram as restrições ao filme, recebi respostas muito parecidas às criticas feitas a O Beijoqueiro, mais de dez anos antes. Entre outros pecados, Preto e Branco fazia uso exagerado da música, usava uma linguagem parecida demais com a da TV ou a do cinema tradicionais e não colocava uma determinada “postura de autor” como protagonista ululante. E, ainda pior que O Beijoqueiro, Preto e Branco misturava histórias diferentes, não ia “fundo” em nenhuma delas, entrevistava “especialistas”, evitava cenas catárticas e não parecia contar com nenhum dispositivo ou personagem excepcional para abordar a questão.

Diante das críticas, eu tentei afirmar que tinha sido sempre absolutamente deliberada a decisão de que tanto a maioria das técnicas narrativas quanto a maioria das situações cênicas de P&B não se caracterizassem pela excepcionalidade. Em vários momentos da edição final, as emoções espetaculares que as câmeras costumam extrair de quem está à frente delas foram cortadas. Tudo que fosse “gestual” demais, de minha parte ou da parte dos personagens, acabou me parecendo sempre fora de lugar nesse filme. Por isso, além de buscar uma sobriedade técnica, não quis ver nele mendigos proféticos, nem presidentes da República, nem rappers raivosos, nem presidiários carismáticos, nem beijoqueiros. Não só porque esse tipo de personagem não garante experimentalidade nenhuma, nem porque a “documentografia” nacional recente já está bem servida deles. Minha decisão deu-se sobretudo em razão de uma fidelidade narrativa a meu tema, o racismo brasileiro, cujo modo de operação se caracteriza por um tom bem diverso: a conversa “pequena” entre personagens “pequenos”. E antes que algum defensor da moral documental se aflija, digo aqui apressadamente que eu também acredito que de perto nenhuma pessoa real é pequena. Mas digo ainda que essa minha opção por excluir personagens, técnicas ou gestos “grandiosos” se deu exatamente por uma motivação não moral, mas ética. Simplesmente a de tentar discutir um tema, se não com justiça, pelo menos com justeza. Por essa mesma razão, incluí no corte final as entrevistas com “especialistas”, afinal o embate teórico interminável é um protagonista histórico da questão racial brasileira, vivido de forma muito prática na criação de leis ou na formação de opiniões. Fato é que, apesar de não acreditar na existência de uma balança que necessariamente contraponha ética e estética, creio que minhas decisões em Preto e Branco se pautaram mais por uma tentativa objetiva de comunicabilidade e justeza em relação ao tema do que pelo desejo de expressão de uma subjetividade autoral. Não é o que eu proponho ou defendo para todos os documentários; mas é o que eu acredito que esse documentário específico, ao longo de seu processo de realização, tenha me pedido.

Não me passa pela cabeça, é claro, que Preto e Branco seja um filme livre de defeitos, tanto estéticos (dolosos) quanto éticos (culposos). E nem é isso que coloco em questão aqui.

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O que me preocupa de fato é que, ao reunir na cabeça a maioria das críticas, específicas, feitas ao filme, ocorreu-me a possibilidade de que no subsolo desta época mais liberta estivesse germinando, geral, uma espécie de catálogo implícito de regras e parâmetros com os quais seria possível aferir se determinado documentário é ou não experimental. Uma espécie de cânon do experimentalismo. Cheguei a essa consideração porque as críticas, tão uniformes, não questionavam a legitimidade com que tratei o tema racial, mas se referiam sobretudo às técnicas fílmicas que utilizei. Todas elas pelo visto tradicionais demais e experimentais de menos. Assim, a princípio fiquei confuso. Mas, se por um lado o conceito do que é um trabalho experimental para esses críticos me pareceu vago (apenas sinônimo de “artístico” ou mesmo de “bom”?), por outro, aquilo que faria de um trabalho algo experimental era bastante específico, que parecia seguir alguma cartilha preestabelecida. Como se o experimentalismo pudesse realmente estar contido num conjunto de ditames consensuais que devem ser seguidos a priori. E como se, de acordo com tais ditames, um documentário experimental, para ser experimental, devesse necessariamente lançar mão de técnicas bem particulares como, por exemplo, dispositivos de linguagem marcantes e/ou efeitos que realçassem uma subjetividade autoral ostensiva. Além disso, outro sintoma de que realmente se tratava de um cânon é que ele parecia ser ainda mais específico em relação aos seus tabus, ou seja, às técnicas que um documentário experimental não deve e/ou não pode usar, como, por exemplo, a realização de entrevistas em plano americano com especialistas e/ou a colocação de música que não faça referência explícita ao universo dos personagens.

Ao mesmo tempo em que eu percebia que Preto e Branco não cumpria as exigências dos defensores do Cânon do Experimentalismo, eu o via como um trabalho profundamente experimental. E experimental, no meu próprio canonzinho de uma regra só, é simplesmente todo trabalho que decorre de uma experiência legítima. Em sendo algo que decorre, a experimentalidade é necessariamente uma qualidade que se dá a posteriori, ou seja, depois da experiência, e não em função da escolha a priori de um conjunto de técnicas. Assim, a experimentalidade legítima, para mim, não só não é um conjunto de pressupostos que norteie a experiência relativa a uma obra, como também é seu oposto. A própria legitimidade a que me refiro está intimamente associada à liberdade, à abertura, à ausência de regras restritivas com que o ato de experimentar é encarado. É nesse sentido que eu via e vejo Preto e Branco como um trabalho experimental. Ele decorreu de quatro anos de imersão profunda e aberta na questão racial, uma experiência transformadora para mim, que acredito ter resultado, por meio do filme, numa experiência também relativamente transformadora para boa parte dos espectadores. Sobretudo aqueles para os quais as discussões sobre estilos entre cineastas é secundária. Ou aqueles que acreditam que o estilo, como disse Proust, não deve ser uma questão de técnica, mas uma questão de visão. Não vai aqui, é claro, nenhum tipo de ataque específico a qualquer filme que se utilize de uma ou mais das técnicas propostas pelo Cânon do Experimentalismo. Gosto de vários filmes, inclusive alguns dirigidos por mim mesmo, que se encaixariam perfeitamente nos ensinamentos experimentalistas do Cânon. Mas entre aquilo que me faz gostar desses filmes está

certamente o fato de que eles não parecem ter tido a preocupação fundamental de se enquadrar em cânon nenhum (a não ser que estivéssemos falando da marca japonesa da câmera utilizada).

Não estou dizendo aqui que o artista pode estar livre de toda intenção. Nem de todo princípio, nem mesmo de todo artifício. Claro que sempre há uma intenção inicial. Mas acredito ser fundamental que, durante a experiência da criação, o criador – e em particular o documentarista, que lida com um imponderável bastante externo a si próprio – esteja aberto a mudar cada uma de suas intenções iniciais, se a realidade pedir. Foi o que aconteceu com Preto e Branco. Em vários momentos da produção, experimentei efeitos mais ostensivos de linguagem. Mas o filme – esse ser que, como todo criador sabe, é dotado de certa vida própria – tratou de expelir alguns desses efeitos. E, se nem sempre rejeitou todos os efeitos em si, não aceitou em nenhum momento a ostensibilidade deles ou qualquer expressivismo objetivo demais de uma subjetividade “de autor”. Estou falando de um caso específico. O processo de realização de P&B ensinou-me que a linguagem expressiva não deveria estar entre os protagonistas e que, justamente por isso, ela serviria melhor à própria mensagem que naquele momento carregava. Além disso, repito, não é que o filme esteja livre de artifícios de linguagem. Nenhum filme existe sem artifícios de linguagem; um filme é, em si, um artifício de linguagem.

Que fique claro: tenho grande admiração por vários artistas que dedicam suas trajetórias a realizar experiências no campo da inovação da linguagem. É algo que especialmente me interessa e a que também dedico parte do meu trabalho. Mas, como Richard Rorty, acredito que “as linguagens não são tentativas de copiarmos o que existe, mas sim ferramentas para lidarmos com o que existe; assim não há como separar a ‘contribuição que o objeto traz ao nosso conhecimento’ da ‘contribuição dada por nossa subjetividade’ ”. As linguagens não são um espelho, subjetivo ou objetivo, apartado do mundo. São a rede de conexão do mundo. Não é possível dissociá-las nem dos autores, nem dos seus objetos. Mesmo no caso hipotético de uma obra que tenha a própria linguagem como fim ou como objeto principal, ela precisará também de linguagem para ter acesso a seu objeto, a linguagem. Linguagem sobre linguagem. Assim, um “experimentalismo de linguagem” – que é, em última instância, aquilo em que os que crêem no cânon vêem como deus único e que é também uma das divindades da minha cosmogonia – poderá resultar em trabalhos interessantíssimos ou jogos de espelhos vazios. Uma experiência artística de linguagem também terá de ser necessariamente uma experiência artística de vida e, a meu ver, também terá sua legitimidade diretamente ligada à liberdade com que se dá. Gosto de pensar o conjunto de linguagens que constituem a arte como um subgênero do conjunto de linguagens que constituem a vida.

Preto e Branco não tem entre suas propostas a de discutir ou inovar as linguagens. O filme quer apenas usá-las como ferramenta. Muitas vezes, a linguagem é como a tecnologia: torna-se mais eficiente à medida que se torna mais transparente, na medida em que deixa de aparecer. Aliviar o peso dos artifícios de linguagem, ou seja, eliminar a ostensibilidade

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com que a subjetividade se manifesta, não significa necessariamente eliminar a própria subjetividade. Às vezes, pode significar o contrário. Um olhar mais aberto ao P&B, como o da professora da UFRJ Andréa França, em artigo para a revista Contracampo, vê a subjetividade como definidora dele, “um filme que se ampara na presença do diretor e no tipo de relação que ele estabelece com seus personagens, estruturando os momentos de encenação entre eles como uma espécie de intimidade partilhada”. Outros olhares abertos veriam no filme, além dessa “encenação íntima” que não quer ser nem ostensiva nem escamoteada, vários momentos de intervenção explícita. Momentos em que a câmera é entregue aos próprios personagens, ou momentos em que a imagem é tratada como a de um reality show, ou ainda momentos em que ela, ao contrário, é tratada como uma imagem mais típica de videoarte. Talvez então o grande pecado de Preto e Branco, à vista do cânon, não seja o de dispensar artifícios experimentalistas, mas o de misturar vários deles sem afirmar um só. A crença em qualquer cânon geralmente implica um desejo de pureza mesmo que, como no caso do cânon do experimentalismo, essa crença esteja travestida de seu oposto, já que a experimentação geralmente coincide com a afirmação de uma mistura inusitada. Nesse caso, o pecado de Preto e Branco torna-se ainda mais mortal porque o filme realmente se contrapõe a qualquer desejo de pureza, misturando não só diferentes efeitos geralmente aceitos como “experimentais”, mas acrescentando ao caldo efeitos considerados “tradicionais”, como as referidas entrevistas com especialistas ou o uso “careta” da música. E, para piorar tudo ainda mais, o documentário não hierarquiza esses efeitos.

A cineasta Agnès Varda disse recentemente numa entrevista à Folha de S.Paulo: “Nos documentários, eu estou a serviço do tema, me transformo em serva das pessoas e das histórias, estou lá para ajudá-las, estimulá-las a se expressar. Já nas ficções, claro, eu ocupo o lugar de artista e reinvento de acordo com minha visão expressiva”. Gosto da idéia de Agnès, em termos. O artista, o escravo da obra, parece estar eternamente condenado a jogar uma capoeira metafísica entre esses dois senhores, irmãos de criação: o tema e sua própria autoralidade. Toda obra é resultado dessa dança-luta. Mas, diferentemente de Varda, a única coisa que faço é documentário. E eu poderia até dizer que alguns deles, como Trovoada, estão um pouco mais a serviço da autoralidade e alguns outros um pouco mais a serviço do tema, como é o caso de Preto e Branco. De todo modo, não é esse tipo de distinção o que mais me interessa. Em qualquer trabalho, existe um grau de amalgamamento entre o tema e o autor, o mundo e o autor. Na verdade, o trabalho é justamente esse amálgama. O que importa realmente, para mim, repito, é que ele seja, nos termos que mencionei, fruto de uma experiência legítima, livre, e que consiga ser uma boa tradução dessa experiência. E, se vejo com maus olhos um conjunto de conceitos que norteiam a experiência de uma obra, também só posso desconfiar ainda mais quando determinado cânon passa a nortear o julgamento de uma obra. Aí é que mora o perigo maior, ainda mais quando o cânon vem travestido de receita “libertária” ou “moderna” e é justamente o oposto disso. Um julgamento baseado em conceitos apriorísticos está sempre correndo o risco iminente de se transformar num julgamento baseado em preconceitos.

Claro que não existe um só ser humano sadio livre de conceitos, com os quais, inclusive, ele norteia sua própria experiência de mundo. O reconhecimento de padrões e a decorrente transformação deles em conceitos norteadores é algo que define a humanidade. Em razão disso, é inevitável que cânones de toda espécie pipoquem por aí, em toda época, em toda área humana. Mas, para a própria humanidade, não será o território das artes justamente o espaço fundamental em que determinada subjetividade pode questionar e reinventar esses conceitos, usando-os da maneira mais liberta possível? E não será esse justamente o sentido mais humano do experimentalismo? Acredito que sim. Por isso, acho que qualquer tentativa de canonização do experimental ou de institucionalização do subjetivo não são apenas grandes contradições em termos, mas também um inimigo interno que todo artista, documentarista ou não, deve combater.

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Judith Cortezão, uma sábia amiga, certo dia me disse: “O que o fotógrafo enfoca não deve ser propriamente a realidade, mas, sim, o impacto na sensibilidade e na mente dessa realidade, isso traz sempre uma imagem de sonho”.

Judith me disse isso em meio a uma espessa neblina, em que, mesmo lado a lado, mal podíamos nos enxergar. Estávamos próximos ao Chuí, na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, para a filmagem de um documentário, que, depois dessa frase dita num tom “primordial”, ganhou o título de Paisagens Invisíveis.

A angústia que senti, gerada pela impossibilidade de registrar a amplidão do vale que havia visitado dois meses antes, na pesquisa do filme, me colocava em busca de outro dispositivo, pois o imponderável redirecionava o filme a voltar-se para a única paisagem visível, uma paisagem interna, impressa na alma.

Pode parecer contraditório, mas, na “arte de documentar”, aquilo que nos desestabiliza é, muitas vezes, o fator que nos alimenta e aguça a criatividade, pois não há resposta mais sincera e “real” do que nossa postura e nossas atitudes diante dos fatos; enfim, a única certeza que podemos alimentar é a de nos prepararmos para algo que desconhecemos. O “real” no documentário, de fato, nada mais é do que a arte de lidar com esse imponderável.

Estamos constantemente em busca desse desconhecido, algo em geral não verbalizado ou ainda impossível de o ser, pois, ao longo de mais de um século, foram as reflexões acerca dos conflitos dos documentaristas que levaram o gênero a ser um meio de expressão em si. O documentário “auto-reflexivo” não é necessariamente algo objetivo ou decifrável a olho nu, pois o processo de sua linguagem criativa já é, em si, a própria linguagem.

A jornada do programa Rumos pôde me proporcionar uma espécie de “desvelamento” dos motivos pelos quais faço documentários, pois, ao compartilhar esse “pensar o filme” de muitos, na reflexão acerca das idéias em debate, nos encontros e reencontros com as pessoas e nos

Paschoal SamoraDocumentarista, realizou os filmes Confidências do Rio das Mortes (1999), a série de documentários Ao Sul da Paisagem (2000-2001), Rio de Fevereiro (2003) e Diário de Naná (2006).

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universos de cada projeto lido e falado, encontrei-me novamente diante dessa espessa neblina.Vieram à tona durante o ciclo de palestras realizadas em diversas capitais do país ao longo do programa Rumos questões inesgotáveis, longamente discutidas na história do documentário desde a sua invenção, que atribuem ao processo documental um caráter existencial por excelência, por situar-se nos limites entre o que é realidade e o que é invenção ou, ainda, pela transposição para filme de sua matéria-prima tão “concreta”, “palpável” e ao mesmo tempo tão “inconstante” e “volátil” – o real.

Com a mesma pertinência de questões capitais como essas, fui contemplado nesse processo com a convivência com grandes pensadores contemporâneos desse gênero, com reflexões novas e bastante instigantes acerca do filme documental.

Francisco Elinaldo Teixeira, realizador e teórico de cinema, autor do livro Documentário no Brasil, defende com muita propriedade o que ele chama de “cinema expandido”, partindo da idéia de que toda forma de experimentação no âmbito cinematográfico encontra no gênero documental um terreno fértil para o cruzamento dessas formas de expressão.

Seja pela linguagem, seja pela própria natureza aberta e visceral, o documentário tornou-se a ferramenta de investigação de artistas e profissionais de outras sintaxes, extrapolando os limites entre o documentário, as artes plásticas e a poesia.

Em sua argumentação, Teixeira reconstrói a história da linguagem no documentário, partindo de conflitos entre conceito e resultado na obra de Dziga Vertov e culminando numa rica discussão a respeito da produção audiovisual brasileira contemporânea, em que cita Arthur Omar e Cao Guimarães. Um autor imperdível.

José Carlos Avellar, professor e produtor, chama atenção para o fato de que a televisão no Brasil, que seria o espaço dos naturais (documentários), pertence aos posados (ficção), fato contraditório, mas possível, afinal, a televisão brasileira nasceu do rádio.

Avellar faz essa observação a fim de discutir os espaços do cinema documental na chamada “retomada do cinema brasileiro”, com o difícil objetivo de identificar esse “ser” invisível chamado “mercado”, num país onde a falta de políticas específicas para o gênero e onde a banalização diante de um modelo televisivo nivelador já seriam suficientes para empurrar o documentário para um abismo sem precedentes, condicionado a um modelo de produção medíocre, óbvio e maçante.

Eis a grande contradição: a televisão como espaço natural dos “naturais”, em regra geral, sempre representou o “túmulo do documentário” no Brasil.

Entretanto, Avellar sinaliza com muita fé e sabedoria para trabalhos recentes como Edifício Master, de Eduardo Coutinho, e Nelson Freire, de João Moreira Salles, que superaram a própria impossibilidade e se estabeleceram bem nas salas de cinema, espaço natural dos posados, sobretudo pela força e personalidade de sua abordagem.

Consuelo Lins investiga um mecanismo recorrente na produção documental brasileira, ao

qual se atribui o conceito de cinema-dispositivo, citando filmes como 33, de Kiko Goifman, e O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho, nos quais o realizador delimita principalmente o tempo e o espaço de seu recorte e, ao estabelecer esses limites na investigação, assume de antemão sua impossibilidade, que se converte automaticamente em liberdade de sustentar, ou quem sabe suportar, o seu propósito de realização do filme.

O conceito de cinema-dispositivo, de certa forma, liberta o realizador do terrível fardo do “real”, afinal, esse objeto de estudo, e de desejo, do documentarista é tão infinito, tão vasto, tão concreto, que pode ser uma grande armadilha ante o imponderável.

De fato, esse realizador talvez busque a si mesmo em cada personagem ou em cada paragem em que se encontre, e encontra-se, por fim, em busca de um lugar no mundo.

São fatores como esses que caracterizam o documentário hoje como “arte do documento”, porque se realimenta, ao longo de sua história, dessa postura de “construção em tempo real”, de reflexão sobre a natureza de sua sintaxe que confunde sujeito e objeto, de busca infinita de acesso a níveis sutis de realidade.

É justamente essa vocação existencial do documentário que ponho em questão: a natureza de construção, desconstrução e reconstrução de um filme.

De fato o documentarista é um ser em conflito, pois a busca desses níveis sutis de realidade se dá geralmente no meio de um turbilhão, a partir de fatos que ele cria ou nos quais interfere, utilizando-se da ferramenta do filme a fim de torná-los “fatos únicos”.

Paradoxalmente, o documentarista também é aquele que detém a ferramenta do registro, é o elemento mobilizador do ato documental, mas com o desejo de que, para além do esperado ou calculado, exista algo muitas vezes indizível a ser flagrado.

Nesse sentido, o documentarista passa a ser mais um personagem incondicional de seu próprio filme, e é nessa busca estética e ética de sua abordagem que o documentário “moderno” se apresenta. Um cinema de “descoberta”, em tempo real.

À idéia de documentário, hoje, soma-se a história de sua invenção e reinvenção ao longo de mais de um século e essa visceral natureza de busca e descoberta inerente a ele, ao advento do digital, uma espécie de “democratização” da ferramenta que traz certos poderes de expressão a nós, seres documentaristas e marginais por excelência.

Seja pela verdade, seja pela invenção ou, ainda, pela invenção da verdade que se faz urgente e acessível, de fato, o documentário descobriu na última década a possibilidade de ser e estar no mundo como meio de expressão, por tornar-se algo viável, possível, e que brinca e brinda a própria imprevisibilidade.

O resultado é nada menos que uma produção efervescente e multilateral que imprime a necessidade e a urgência desse meio em si.

O documentário carrega como seus maiores trunfos a dualidade, a imprevisibilidade, a criação e a impossibilidade, fatores esses naturais, comuns à vida e à existência.

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Quando, em 1997, foi criado o projeto Rumos Itaú Cultural1, já se vislumbrava a importância de fomentar a produção audiovisual brasileira, mais especificamente o gênero do documentário. Naquela época, várias iniciativas promoviam reflexões,

exibiam filmes inéditos, realizavam mostras itinerantes, dando início a um projeto permanente de fomento e difusão e colocando o documentário no foco dessas ações. O que se anunciava como uma aposta na renovação da produção artística e no estímulo aos valores emergentes se tornou um dos projetos mais importantes do Instituto Itaú Cultural e reconhecidamente um dos mais bem-sucedidos programas de abrangência nacional na área da cultura.

Uma breve panorâmica nessa quase uma década de atividades voltadas para o desenvolvimento da produção de documentários revela uma geografia de projetos que se concretizaram graças à credibilidade dada pelo Itaú Cultural a centenas de produtores, diretores, roteiristas, técnicos e pesquisadores que transformaram suas idéias em imagens e sons de nossa brasilidade. Ao todo foram 30 documentários finalizados e 13 projetos de pesquisa e roteiro desenvolvidos, com base em 1.359 propostas encaminhadas de todo o país, nas quatro edições realizadas até aqui.

Nesse cenário, é possível estabelecer um paralelo entre a retomada da produção cinematográfica do país a partir de meados da década de 1990 e a nítida efervescência documentarista nesse período, com a opção do Itaú Cultural de reconhecer e apoiar as produções desse gênero. O que se afirma aqui não é uma relação direta de causa e efeito entre a realidade do mercado e a lógica proposta pelo projeto – o que seria superestimar o alcance de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo –, mas, sim, o reconhecimento da assertiva dessa proposta, sua coerência conceitual e sua correlação direta com as perspectivas históricas desse contexto e os diagnósticos apurados na experiência de construir um projeto de fomento de acordo com a missão do Instituto e que atenda às demandas da área. Como reconhece Amir Labaki2:

Roberto Moreira S. Cruz

Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva

1 A arte e a produção intelectual brasi-leiras são a matéria-prima do programa Rumos Itaú Cultural. Por meio do apoio a projetos que se enquadrem nessas duas vertentes, o Instituto contribui para a reflexão sobre a realidade cultural e so-cial do país. O princípio do programa é a identificação de iniciativas tanto no ter-reno das artes (cênicas, visuais, musicais, interativas, audiovisuais, literárias) quan-to no do pensamento (pesquisa acadê-mica, educação, jornalismo). Projetos inéditos, em fase de produção ou que, já existentes, ainda não chegaram ao conhecimento do grande público rece-bem do Rumos o aporte financeiro e de infra-estrutura para se concretizar. O pas-so seguinte é a difusão, série de ações que amplificam a todo o país o conteú-do dessas iniciativas. O Rumos promove a circulação de trabalhos selecionados com a realização de exposições, exibi-ções, espetáculos, registros fonográficos e videográficos e publicações impressas e eletrônicas.

2 Amir Labaki é crítico de cinema e dire-tor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.

Gerente do Núcleo de Audiovisual/Itaú Cultural

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98 Roberto Moreira S. Cruz Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 99

O Itaú Cultural apostou no documentário, muito antes da hegemonia desse gênero no cenário. Um aprimoramento dessa iniciativa foi o Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo, voltado para a produção de documentários. Fui um dos membros da comissão de seleção da edição 2003, cuja participação foi longa, profunda e instigante. Desconheço qualquer processo similar de fomento qualificado à produção no Brasil.

Metodologias e resultados

As quatro edições de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo apresentaram mecânicas distintas. Essas mudanças foram em grande parte motivadas pelo próprio amadurecimento da proposta do programa e pela necessidade de adequação à política cultural que orientou a instituição nos últimos anos. Uma breve descrição de cada uma das edições ajudará na compreensão dos objetivos que estavam ali propostos, dos resultados obtidos e das perspectivas que se abrem para a continuidade do programa.

Com a crescente retomada da produção audiovisual no país, vários projetos de cinema e vídeo passaram a ser encaminhados ao Itaú Cultural em busca de apoio e parceria para sua realização. A qualidade dos projetos e a forte demanda do setor levaram à consolidação de uma política de apoio à produção voltada especificamente para o documentário, enfatizando temas relacionados à arte e à cultura brasileiras. Naquela época, entre os anos de 1997 e 1998, momento embrionário em que a instituição assinalava a necessidade de atuar como apoiadora de projetos audiovisuais, as propostas foram enviadas de maneira informal, sem necessariamente passar por um processo de prospecção – convocação por meio de um edital, por exemplo. Portanto, essa primeira safra de selecionados se deu por escolha direta, tendo estes sido analisados e escolhidos com base na viabilidade de produção e na pertinência do tema. Os projetos contemplados em 19983 foram:

Arte e Tecnologia, de Walter Silveira e Tamara KáPesquisa e roteiro de cinco documentários sobre a produção de arte e tecnologia no Brasil.

Santo Forte, de Eduardo CoutinhoDocumentário que discute a religião como elemento fundamental no cotidiano brasileiro para a compreensão da realidade e de suas contradições eminentes.

Geraldo de Barros – Trajetória de um Brasil Moderno, de Michel Favre e Fabiana de BarrosDesenvolvimento de roteiro sobre o artista, designer e fotógrafo Geraldo de Barros.

Peito Vazio, de Paulo Caldas, Lírio Ferreira e Hilton LacerdaDesenvolvimento de pesquisa e roteiro para documentário sobre Cartola e a cultura do samba.

Sebastianismo no Brasil, de Cláudio AssisPesquisa e roteiro para documentário sobre o movimento sebastianista no Brasil e suas várias formas de manifestação cultural e religiosa.

Hélices, de Carmela GrossVídeo experimental inspirado em objetos criados pela artista plástica Carmela Gross e expostos no MAM/RJ em 1993.

O Livro de Raul, de Arthur OmarDocumentário experimental realizado com base em imagens realizadas no Chile com o cineasta Raul Ruiz. Um diálogo entre o processo criativo do cineasta e o do diretor do documentário.

Nessa primeira edição do programa, o Itaú Cultural teve o privilégio de contribuir para a realização do documentário Santo Forte, de Eduardo Coutinho, filme que é um emblema da produção documentarista brasileira contemporânea. A marca estilística de seu diretor nos revela a religiosidade dos moradores da Favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro. Como afirma Consuelo Lins:

O que se dá no dia-a-dia dos personagens de Santo Forte está para além de qualquer tentativa de classificação, de qualquer conceito ou generalização. Esta é uma das grandezas do filme: nos dar a ver múltiplas formas de se apropriar das principais religiões praticadas no Brasil, seja umbanda, catolicismo ou evangélica; mostrar diferenças onde outros só vêem obediência e mesmice.4

Os resultados obtidos nessa primeira edição estimularam a continuidade do programa. Em 1999, um novo programa foi lançado, reformulado e ampliado para três modalidades de fomento:

Jovens Realizadores: destinou-se a projetos de jovens realizadores com até 25 anos de idade e vínculo universitário;

Desenvolvimento de Projetos: contemplou pesquisa, roteiro e confecção de orçamento e cronograma com o objetivo de permitir ao realizador formatar seu projeto para a produção e posterior veiculação;

Finalização: contemplou projetos que já tinham realizado a captação de imagens e necessitavam de um aporte para sua conclusão (pós-produção e edição).

Ao todo foram 449 projetos enviados de diversas regiões do Brasil, sendo 301 para Desenvolvimento de Projetos, 80 para Jovens Realizadores e 68 para Finalização. Submetidos à análise da comissão responsável pela premiação, formada por André Parente, Carlos Alberto de Mattos, Daniela Capelato, Francisco Cesar Filho e Roberto F. Moreira, os projetos selecionados foram:

3 Nesse ano, paralelamente ao progra-ma de apoio à pesquisa e realização de documentários, foi elaborada uma programação de mostras periódicas na sede do Itaú Cultural, em São Paulo. De setembro de 1998 a novembro de 1999, essa programação divulgou obras de re-ferência, exibindo a produção nacional e internacional em formatos e linguagens diversas.

4 Lins, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho – Televisão, cinema e vídeo. Rio e Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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Finalização:

Glauces, o Estudo de um Rosto, de Joel PizziniDocumentário sobre Glauce Rocha (1930-1971), uma das mais importantes atrizes brasileiras, com os principais registros de sua carreira no cinema e no teatro.

A Pessoa É para o que Nasce, de Roberto BerlinerDocumentário sobre três irmãs cegas cantadoras dos Cariris Velhos, na Paraíba.

Barra 68 – sem Perder a Ternura, de Vladimir CarvalhoMostra a invasão da Universidade de Brasília por tropas militares em 1968, seguida pela promulgação do AI-5 e pelo fechamento do Congresso.

No Rastro da Navilouca, de Ivan CardosoApresenta amplo painel audiovisual da produção udigrudi e de seus bastidores, no início dos anos 1970.

Desenvolvimento de Projetos:

No Olho do Furacão, de Renato Tapajós e Toni VenturiDocumentário sobre a história dos militantes da luta armada brasileira.

A Caravana do Brega, de Ursula VidalDois cantores dão fôlego a um ritmo cultuado nas festas de subúrbio da Amazônia: o brega. Nesse universo em que falta estrutura de mercado, sobram criatividade e extravagância.

Koellreutter: Experiência do Tempo, de Carlos AdrianoDocumentário sobre Hans-Joachim Koellreutter, um dos mais importantes compositores da música brasileira.

O Folclore Urbano nas Páginas do Notícias Populares, de Renata Druck e Janice D’AvilaInvestiga o significado de três lendas urbanas paulistanas: o Bebê Diabo do ABC, a Loira Fantasma e a Gangue do Palhaço.

Carranca de Acrílico Azul Piscina, de Marcelo Gomes e Karim AïnouzEnsaio poético sobre o sertão contemporâneo, traz uma reflexão sobre como a região marcada pela aridez, pelo isolamento e pela escassez tem convivido com agudos processos de globalização e modernização cultural.

Jovens Realizadores:

A Soltura do Louco, de Bernardo de Castro e Cristian CancinoA fronteira que separa a loucura da sanidade é confrontada com a fronteira que separa

a cidade dos sãos (Santos/SP) da cidade dos loucos (manicômio do Juquery, em Franco da Rocha/SP).

Cinema de Casa, de Marcos ToledoDocumentário sobre o uso doméstico do super-8 no Recife.

Filme da Família, de Maya PinskyDocumentário co-realizado por integrantes de uma mesma família que nunca tiveram experiência com cinema ou direção.

Tom Zé ou quem Irá Colocar uma Dinamite na Cabeça do Século?, de Carla GalloRetrato estético do cantor e compositor Tom Zé.

Terra-Mãe, de Andre FrancioliConta a experiência de transformar uma rádio comunitária em porta-voz de trabalhadores sem-terra.

Cemitério de Elefantes, de Rodrigo LorenzettiDocumentário sobre um ator (Kaio César) orientado por um diretor (Zé Carlos Machado) a sair à rua para construir seu personagem, observando mendigos bêbados.

Internos, de Luciana RochaDocumentário que retrata a produção cultural e artística em uma prisão.

Mais uma vez uma edição que teve como resultado filmes e projetos que se destacaram pela qualidade, originalidade temática e expressividade criativa. Barra 68 – sem Perder a Ternura, de Vladimir Carvalho, é um importante documento histórico sobre a determinação do antropólogo Darcy Ribeiro de criar a Universidade de Brasília, a interferência autoritária do governo sobre esse projeto universitário e a repressão sofrida pelos estudantes e professores nos anos da década de 1960. Em A Pessoa É para o que Nasce, o cineasta Roberto Berliner conta como sua vida cruzou com a das cantoras populares da Paraíba, três irmãs, todas cegas. O documentário acaba por transformar a vida das artistas, que viviam em estado de pobreza, desamparadas e sem perspectivas5.

Da mesma forma, os projetos das categorias Desenvolvimento de Projetos e Jovens Realizadores, uma novidade dessa edição, apresentaram pesquisas e roteiros de excelente qualidade e diretores iniciantes que tiveram por meio do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo a oportunidade de realizar seu primeiro documentário.A terceira edição do programa repetiu a mesma estratégia da edição anterior, incentivando a produção de documentários em três categorias. Na etapa de recebimento dos projetos, priorizou-se a divulgação do programa numa tentativa de promover a profissionalização na formatação dos projetos dos proponentes. Para isso foram realizadas palestras promovidas em cinco instituições parceiras, para anunciar o programa, apresentar e sugerir modelos

5 Esse filme foi definitivamente concluí-do em 2005 e exibido nacionalmente no circuito comercial. Mas vale ressaltar que o projeto teve em Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo o ponto de partida para a realização, cerca de quatro anos antes de sua finalização.

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de propostas e suas formatações mais adequadas. O resultado foram 540 projetos inscritos e um salto qualitativo das propostas.

Vale ressaltar o trabalho da comissão de seleção nessa terceira edição que, após uma primeira triagem6, analisou em conjunto 85 projetos de Produção, 39 de Jovens Realizadores e 39 de Desenvolvimento. Nessa etapa foi considerado o material complementar dos projetos (roteiro, currículo e portfólio). Para chegar à seleção final dos projetos de produção, foram utilizados critérios de orçamento, para que se atingisse o maior número possível de premiados. Foram eliminados projetos cujo orçamento não era coerente com o produto, que se aproximavam do teto de maneira artificial, bem como projetos que não se adequavam de maneira rígida aos critérios utilizados nas fases anteriores. Os ganhadores nessa edição foram:

Produção:

33, de Kiko GoifmanDocumentário em que o diretor Kiko Goifman procura sua mãe biológica com base em dicas de detetives de São Paulo e Belo Horizonte.

Nasceu o Bebê Diabo em São Paulo, de Renata DruckOriginadas em boatos, as lendas populares foram noticiadas pelo jornal Notícias Populares. Na busca da origem de cada uma, é revelado um universo no qual fantasia e realidade se confundem.

Na Garupa de Deus, de Rogério CorreaÉ uma reflexão sobre a vida na Grande São Paulo com base no perfil das pessoas que tiram da motocicleta sua sobrevivência: os motoboys.

Me Erra, de Paola Barreto“Me erra” é um jargão usado pelos boxeadores da Academia Nobre Arte, que funciona há 12 anos no Morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro, como uma iniciativa pioneira de boxe amador e trabalho comunitário.

O Atelier de Luzia, de Marcos JorgeDocumentário que propõe analisar os vestígios arqueológicos brasileiros contrapondo essa iconografia com as pichações urbanas.

O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo SacramentoO cotidiano no cárcere do Carandiru, sob o ponto de vista dos presidiários.

Desenvolvimento de Projeto:

Eu Vou de Volta, de Camilo Santos CavalcanteEssa pesquisa descreve o regresso de migrantes nordestinos à terra de origem.

Jardelina Silva e Sua Assinatura do Mundo, de Cristiane MesquitaÉ uma investigação sobre o vestuário surrealista da ex-costureira Jardelina Silva.

Linhas de Organdi, de Glauber FilhoEm Córrego dos Fernandes, município de Aracati (CE), existe um grupo de 12 rendeiras, de várias gerações, que ainda conservam as tradições de seus antepassados.

Tão Longe, Tão Perto, de Inês CardosoEsse projeto investiga as conseqüências deixadas pela extinção do trajeto ferroviário entre Crato (PE) e Maceió (AL), rota construída pelos ingleses no início do século XX.

Jovens Realizadores:

E Agora, José?, de Maya Da-RinNo alto da Mantiqueira, entre o céu e a terra, dois homens caminham por estradas reais e imaginárias.

Encomenda ao Ganso, de Pablo LobatoO cineasta faz uma proposta ao artista plástico marginal Paulo Pessoa, conhecido em Belo Horizonte como Ganso, para que este crie uma obra com três espaços vazios e passa a acompanhar o processo criativo.

Outras Amazonas, de Marina WeisO documentário procura uma aproximação com o mundo das mulheres da tribo indígena dos waiãpis, no Acre, para registrar seu cotidiano entre a floresta e a cidade.

Se Tu Fores, de Ilana Feldman e Guilherme CoelhoUm encontro com personalidades do samba tradicional carioca.

Tranca Abre, de Paula Siqueira e Ricardo CalaçaDocumentário sobre a possessão religiosa em Brasília, que destaca sua importância para os adeptos da umbanda, do neopentecostismo e da doutrina do Vale do Amanhecer.

Essa foi uma safra extraordinária, em que os filmes tiveram grande repercussão pública, sendo exibidos no circuito comercial e premiados em festivais e mostras internacionais. O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, é um bom exemplo disso. Foi gravado nas dependências do Carandiru, um presídio com mais de 9 mil detentos localizado na região metropolitana de São Paulo e desativado no ano em que o documentário foi concluído. Com imagens feitas, em boa parte, pelos próprios detentos em atividades e oficinas de

•6 A comissão de seleção recebeu separa-damente uma relação de projetos, assim dividida: Bruno Vianna e Francisco Cesar Filho – 116 projetos de Produção, 27 projetos de Desenvolvimento. Alexandre Veras – 51 projetos de Produção, 40 projetos de Jovens Realizadores e 43 projetos de Desenvolvimento. Roberto Moreira dos Santos Cruz – 57 projetos de Desenvolvimento e 85 projetos de Jovens Realizadores. Paulo Roberto Rego Barros Biscaia Filho – 51 projetos de Produção, 14 projetos de Desenvolvimento e 45 projetos de Jovens Realizadores.

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produção realizadas pelo diretor, esse filme desvenda a rotina dos protagonistas e revela as condições de vida no cárcere. Premiado na 60ª edição da Mostra Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza, no Festival Internacional de Leeds e no Tribeca Film Festival, Paulo Sacramento reconhece a importância do programa Rumos neste depoimento:

O Itaú Cultural viabilizou parcialmente a realização de O Prisioneiro da Grade de Ferro. O Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo foi pioneiro no apoio a documentários, sendo uma iniciativa que já alcançou extraordinários resultados, merecedor de incrementos para expandir a excelência de sua atuação.

Outro documentário que também teve uma repercussão muito positiva foi 33, de Kiko Goifman. Bastante original em sua proposta, o apoio a esse projeto viabilizou integralmente a produção executiva do filme e permitiu que o realizador se aventurasse na busca por sua mãe biológica. Como declara o próprio diretor, “a equipe do programa Rumos Cinema e Vídeo teve coragem de apostar no documentário 33 e apoiar um projeto nada convencional”. Kiko Goifman sempre soube que era filho adotivo e, aos 33 anos, num prazo de 33 dias, se aventurou numa experiência em que sua vida pessoal e a de seus familiares passaram a ser investigadas. Tendo como referência estética o filme noir americano e abordando a realidade sob um olhar detetivesco, o filme mescla elementos narrativos ficcionais elaborados com base no ponto de vista do narrador – o próprio diretor – e do clima de suspense e dramatização em que os protagonistas são envolvidos. Como observa Jean-Claude Bernardet:

Essas pessoas-personagens obedecem a uma construção dramática. Os personagens têm objetivos, os personagens enfrentam obstáculos (que eles superam ou não superam), alcançam seus objetivos ou não, exatamente como nos filmes de ficção, e tudo isso organizado numa narrativa.7

Em 2003, quando foi lançada a quarta edição de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo, uma nova estratégia de fomento foi adotada pela instituição. Visando a uma maior visibilidade dos documentários, o apoio foi direcionado a filmes de 26 minutos para compor uma série voltada para televisão e mostras itinerantes. Mais uma vez iniciou-se o processo de recebimento, análise e seleção de projetos, que culminou com a realização dos filmes. Da urbanidade ao sertão profundo, de distintos personagens a visões subjetivas da realidade, os cinco documentários apresentaram como fio condutor o conceito de contraste. Seja ele social, cultural ou étnico, a diversidade da cultura brasileira e suas mais distintas particularidades foram representadas nesses filmes. Lançados em um DVD, foram exibidos em rede nacional pela TV Cultura, tendo uma excelente receptividade, chegando a registrar 4 pontos no índice de aferição de recepção na Grande São Paulo – o que equivale a aproximadamente 350 mil espectadores. A qualidade dessas produções e o olhar vertical sobre a realidade brasileira valeram à série o convite para participar do Audiovisual E-platform, programa da Unesco para conteúdos criativos em meios audiovisuais. Nessa plataforma, que funciona como uma rede de informação via internet, o usuário acessa

informações sobre o projeto Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo, assiste on demand aos vídeos da série Brasil 3x4 e a alguns dos filmes produzidos nas edições anteriores.

Vale a pena lembrar aqui algumas das histórias narradas nos filmes da série. Em 1969, a cidade de Carrapateira, no interior da Paraíba, foi considerada uma das mais carentes do Brasil. Naquele mesmo ano a tripulação da Apolo 11 pisava o solo lunar pela primeira vez. Mais de 30 anos depois, o documentário Carrapateira não Tem Mais Ciúmes da Apolo 11, de Fabiano Maciel, mostra como vive o povo daquela cidade nos dias de hoje e relaciona a conquista da Lua com os sonhos pessoais de progresso e prosperidade no sertão nordestino. Em Garota Zona Sul, Luciano de Paiva Mello revela as diferentes realidades de duas garotas da mesma idade, mas de classes sociais distintas. Uma é carioca, mora com os pais numa casa confortável de classe média, no Leblon. A outra mora com a mãe e mais nove pessoas numa casa simples no bairro do Capão Redondo, periferia de São Paulo. Os cineastas Karim Aïnouz e Marcelo Gomes enveredam por uma viagem e um devaneio pelo sertão brasileiro. Em Sertão de Acrílico Azul Piscina, lugares remotos revelam tradições e costumes de uma paisagem brasileira que é ao mesmo tempo primitiva e contemporânea, regional e globalizada. Baseado em entrevistas e com uma rica iconografia da época, Aristocrata Clube, de Jasmin Pinho e Aza Pinho, traça um panorama histórico desse clube recreativo exclusivamente de negros, fundado na década de 1960 na cidade de São Paulo. O último filme da série é Invisíveis Prazeres Cotidianos, de Jorane Castro. Um retrato de Belém do Pará com base no relato de seus jovens moradores, que se expressam e se comunicam pelos blogs. Pelas distâncias geográfica e cultural, desenvolveu-se em torno de si mesma e da Amazônia uma cidade que desde sempre viveu afastada do mundo, quase uma autarquia.

Essa edição de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo também apresentou uma nova proposta no processo de seleção dos projetos. Para permitir uma coerência na seleção dos filmes e para que a instituição garantisse qualidade conceitual e técnica da série, a comissão de seleção atuou como commission editors. Como afirma Amir Labaki, um dos participantes da comissão ao lado de Carlos Nader e Renato Barbieri:

Cumprimos o papel de consciência crítica externa dos produtores e realizadores de cada obra, propondo mudanças de edição, novas filmagens, comentando opções estilísticas, tudo em nome do melhor desenvolvimento do documentário a partir dos rumos inicialmente traçados.

Os resultados de todo o processo foram muito favoráveis e aprovados inclusive pelos próprios realizadores. Fabiano Maciel, diretor de um dos filmes da série, declara que:

A maneira como foi conduzido o processo de seleção do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo é rara no Brasil e faz dele um modelo a ser seguido. A criação de uma comissão que acompanha o projeto do começo ao fim, com encontros com a comissão julgadora, aumenta a visão crítica e aprimora o resultado.

7 Bernardet, Jean-Claude. Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro. In: Mourão, Maria Dora; e Labaki. O Cinema do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 149.

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Em 2006, a proposta da quinta edição do programa, ampliada e com um aporte financeiro maior, destaca o Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo como o mais importante programa de apoio à produção de documentários, desenvolvido por um instituto cultural e com abrangência nacional. Além do objetivo primeiro desse programa, que é a viabilização da produção e a finalização dos filmes, todo o processo de lançamento, difusão, análise e desenvolvimento estimula o debate e possibilita a criação de uma rede de articulação entre o público interessado, produtores, pesquisadores e realizadores, dinamizando e estimulando a reflexão sobre o documentário brasileiro e o contexto de sua produção no cenário contemporâneo.

Com a participação de uma comissão de seleção mais integrada no processo de lançamento e na difusão do programa, amplificou-se a abrangência do programa e diversificou-se o plano de ação. Liliana Sulzbach, Paschoal Samora e Luís Eduardo Jorge acompanharam a equipe de coordenação do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo numa viagem por 13 cidades, nas quais foram realizados encontros, palestras e mostras com o intuito de informar o público interessado no programa e discutir com ele. Juntaram-se a esse grupo os realizadores e pesquisadores Cláudia Mesquita, Cao Guimarães, Érika Bauer, Francisco Elinaldo Teixeira, José Carlos Avellar, Consuelo Lins, Carlos Nader e Sheila Schvarzman, colaboradores notáveis no processo de reflexão e compreensão do cenário da produção de documentários no país.

Resultado: 375 projetos inscritos e a escolha de cinco projetos, que receberam um financiamento no valor de R$ 100 mil cada um para a produção do filme. Mais uma vez a diversidade da cultura brasileira foi compreendida em projetos que tratam de questões contemporâneas como fronteiras, migrações, cidadania e subjetividade. Os projetos contemplados foram:

Eu Vou de Volta, de Camilo Santos Cavalcante e Claudio Assis (PE)Um vídeo sobre a migração nordestina para São Paulo e o regresso à terra de origem.

Histórias de Morar e Demolições, de Andre Costa (SP)Quatro famílias paulistanas têm suas casas vendidas para um grande incorporador imobiliário que as demolirá.

Margem, de Maya Werneck Da-Rin (RJ)Uma viagem de barco através do Rio Amazanos e da fronteira tríplice entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, num espaço marginalizado e quase esquecido de nosso país, o fim ou o início do Brasil, lugar de interseção entre diversos povos, culturas, línguas e credos.

Procura-se Janaína, de Miriam Chnaiderman, São Paulo (SP)Por meio da busca de Janaína, criança órfã e com necessidades especiais, pretende registrar os processos históricos e a situação atual da criança em situação de abandono, e como se dá, atualmente, o atendimento a psicóticos em São Paulo.

Memórias de uma Mulher Impossível, de Marcia Derraik (RJ)

Um mosaico sobre a vida, a criação e as idéias da escritora e editora Rose Marie Muraro.

Nessa edição, foi concedido um prêmio especial para o projeto Diário de Sintra, de Paula Gaitán. Esse documentário se estrutura com base em registros pessoais do cotidiano do cineasta Glauber Rocha na cidade portuguesa, onde morou com sua esposa Paula Gaitán e seus dois filhos Eryk Rocha e Ava Patrya no ano de 1981, tempos que antecederam sua morte.

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Relatório de viagem

Flavia Celidônio

MANAUS6 de março de 2006

Um casarão antigo em Manaus, à beira do rio Negro, abrigou a primeira palestra de divulgação do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007. O encontro aconteceu no dia 6 de março, na Usina Chaminé, um centro cultural que já funcionou como usina de estação de tratamento de esgoto.

Kety Fernandes, do Núcleo de Audiovisual do Itaú Cultural, fez a abertura do evento e apresentou Cláudia Mesquita, jornalista, realizadora e pesquisadora de cinema, que ministrou a palestra “Panorama da Produção de Documentários no Brasil”. A mediação ficou a cargo da produtora e diretora Liliana Sulzbach, que realizou o documentário O Cárcere e a Rua, de 2005, e faz parte da comissão julgadora desta edição de Rumos.

Para fazer um retrato do documentário no Brasil, Cláudia apresentou trechos de Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, e de Santo Forte (1999), de Eduardo Coutinho – filme parcialmente realizado com apoio recebido na primeira edição de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo. A exibição foi seguida de comentários de Cláudia e Liliana, que apontaram as diferenças entre filmes de épocas tão distantes.

A principal delas: a abrangência do tema dos dois documentários. Enquanto um mapeia a espiritualidade apenas de uma pequena comunidade carioca (Santo Forte), o outro fala da saga de migrantes nordestinos na chegada a São Paulo, sem a preocupação de ater-se a individualidades. Para Liliana, essa busca pela particularização é reflexo da sociedade atual, que não acredita em uma única verdade, mas, sim, que tudo tem ângulos diversos.

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BELÉM8 de março de 2006

A segunda palestra de divulgação do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 aconteceu em Belém do Pará, no dia 8 de março. Cláudia Mesquita, jornalista e pesquisadora de cinema, e Liliana Sulzbach, produtora e diretora, autora de O Cárcere e a Rua, compuseram a mesa que discutiu o panorama da produção de documentários no Brasil.

Para fazer um retrato histórico da produção nacional, Cláudia destacou dois momentos importantes do documentário brasileiro. Um deles, os anos 1960, com o filme Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, reconhecido pelo uso, até então inédito, do som direto, que possibilitava a gravação de entrevistas, e o início da produção do documentário independente no Brasil. Ela apontou fortes características do documentário dessa época, como a abordagem de grandes temas, no caso a migração de nordestinos a São Paulo e a tentativa de tratar assuntos da atualidade. Mostrando trechos do filme, Cláudia abordou outros pontos que marcaram a produção desse período, como a utilização ainda tímida das entrevistas e a opção pela voz em off.

O contraponto a essa época é a década de 1990, que assistiu à retomada do cinema brasileiro. O filme escolhido por Cláudia para representar esse momento foi Santo Forte (1999), de Eduardo Coutinho. Nesse caso, as entrevistas constituem o ponto principal do filme, que não tem narração. Ao contrário de Viramundo, não existe manipulação da informação ou uma tentativa de corroborar a tese do realizador. Quem dá significado ao conteúdo do filme são os 11 integrantes de uma pequena comunidade carioca que contam suas experiências religiosas em longas entrevistas.

Liliana Sulzbach, membro da comissão julgadora desta edição do Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo, usou as informações de Cláudia para afirmar que hoje em dia há uma busca pela particularização, pelo recorte, uma tentativa de mostrar que não existe uma única verdade, o que acontece em Viramundo, em que os migrantes são tratados como categoria, sem individualidades. Todos eles saíram do Nordeste por causa de problemas com a terra e nem todos conseguem ser bem-sucedidos em São Paulo.

Liliana ainda deu dicas aos interessados em apresentar projetos ao Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007. Ela acha que existe uma carência de filmes mais políticos e documentários investigativos. Para ela, as temáticas social e cultural já foram bastante exploradas.

GOIÂNIA13 de março de 2006

A terceira palestra de divulgação do projeto Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 aconteceu em Goiânia.

Francisco Elinaldo Teixeira, professor de pós-graduação em multimeios da Unicamp e autor do livro Documentário no Brasil – Tradição e Transformação, foi o palestrante, com o tema “O Documentário e a Representação: Identidade e Brasilidade”.

Teixeira discorreu sobre os vários modelos de documentário no Brasil e apresentou a tese de que o nacional contemporâneo se utiliza de todos os modelos já conhecidos. Para ele, o da atualidade tem uma visão expandida em relação ao que já foi ao longo da história. Como argumentos para provar sua tese, o professor levantou modelos de documentário. Primeiro o clássico, que tem uma abordagem histórica dos fatos e é uma oposição à ficção. O segundo é o do cinema direto, que defende uma mínima intervenção do realizador, tanto na captação quanto na montagem, utilizando planos-seqüência e buscando o realismo da imagem. Por último o do cinema-verdade, de tradição européia, quando é introduzida a idéia da intervenção tendo em vista que a realidade não “está dada” e precisa ser construída, é um contraponto ao cinema direto, observacional. Na opinião do professor, esses conhecidos modelos de documentário, que foram se contrapondo aos já existentes, constroem o documentário da atualidade, o que ele chama de “docudiversidade”.

Paschoal Samora, documentarista autor de Confidências do Rio das Mortes (1999), Ao Sul da Paisagem (2000-2001), Rio de Fevereiro (2003) e Diário de Naná (2006) e membro da comissão julgadora de Rumos, compôs a mesa ao lado do professor Teixeira. Samora preferiu falar daquilo que para ele constitui a principal característica do documentário: a matéria-prima, a descoberta em tempo real dos fatos e o método da realização. Para ele, o documentarista deve estar sempre aberto ao que pode acontecer durante as filmagens. Ao mesmo tempo em que o documentarista é aquele que manipula o fato, o desejo essencial do realizador é o de perder o controle. Como dica para o público que assistiu à palestra, Samora diz que a “descoberta da invenção do documentário” é o que mais interessa.

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CAMPO GRANDE15 de março de 2006

Um rico bate-papo, considerado até como um laboratório para alguns participantes. Foi assim o encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 na capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande.

O documentarista Paschoal Samora, membro da comissão julgadora desta edição de Rumos, e Francisco Elinaldo Teixeira, professor de multimeios da Unicamp e autor de livros sobre documentário, iniciaram uma conversa, curiosos para saber o que se passava na capital quando o assunto é documentário.

O público presente ao encontro agradeceu a possibilidade de concorrer ao prêmio de Rumos e disse achar importante que existam iniciativas como essa. Também lamentaram a não-existência de cursos de cinema nas universidades do estado. A boa notícia é que o Festival de Cinema de Campo Grande já está em sua terceira edição, e há uma tentativa de criar uma cultura de produção cinematográfica, pelo menos do ponto de vista de jovens estudantes ou recém-formados em cursos ligados à comunicação, como jornalismo, e cheios de vontade de produzir em sua cidade.

Um público interessado e ávido por informações ouviu a palestra do professor Teixeira sobre o documentário contemporâneo. Ele, mais uma vez, apresentou sua tese do cinema expandido, da “docudiversidade”, nome dado por ele às produções documentais dos dias de hoje que abarcam todos os modelos de documentários na história, desde o clássico, com a abordagem histórica dos fatos e em oposição à ficção; passando pelo cinema direto, que defende uma mínima intervenção do realizador, tanto na captação quanto na montagem, buscando o realismo da imagem; até o modelo do cinema-verdade, de tradição européia, quando é introduzida a idéia da intervenção tendo em vista que a realidade não “está dada” e precisa ser construída, em contraponto ao cinema direto, observacional.

Ao perceber que existe certo desânimo com as poucas possibilidades de realizar filmes em geral na opinião dos participantes, os dois palestrantes deixaram clara a importância de se formular um projeto mesmo que ele não seja escolhido para receber o prêmio. Os dois frisaram que, ao formular e organizar as idéias, o projeto amadurece e pode ser aperfeiçoado.

A sugestão de Pachoal Samora: “criem um projeto de guerrilha”.

FORTALEZA20 de março de 2006

“Documentário como Gênero: Linguagens e Meios”. Esse foi o tema da palestra de divulgação de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 em Fortaleza, a quinta cidade a receber os encontros que marcam o início do projeto.

Érika Bauer, professora da Universidade de Brasília e realizadora, autora de Dom Helder Câmara, o Santo Rebelde, foi a palestrante e contemplou a platéia, formada por jovens estudantes de comunicação, com a sua própria experiência como realizadora. Humanizar o personagem, essa é a “tarefa” mais desafiadora para quem se propõe a fazer um documentário na opinião da professora. Foi realizando o filme sobre Dom Helder que a questão apareceu de forma mais clara para ela. Estudar a vida do personagem em questão e buscar elementos que o tornassem mais humano e menos mito é algo que, para Érika, deve ser sempre perseguido. A professora acredita que a linguagem e a forma como o documentário vai se dar chegam de maneira quase intuitiva. O importante é ter em mente que a construção da narrativa passa necessariamente pela forma como o realizador enxerga o personagem. A linha tênue que separa o documental da ficção também é algo que chama a atenção da realizadora. Para ela, a realidade é muito mais ficcional do que aparenta ser. Foi uma palestra bastante rica para um público ávido por produzir e encontrar suas próprias linguagens.

Érika também falou sobre o momento atual do cinema documental no Brasil, que, no seu entender, está se aperfeiçoando, acompanhando a maturação dos intelectuais brasileiros, interrompida pela ditadura militar e retomada nos anos 1980.

Luis Eduardo Jorge, realizador, antropólogo e membro da comissão julgadora desta edição de Rumos, também abordou a história do documentário e do cinema no Brasil. Ele lamentou que as universidades não sejam mais centros de formação voltados para a construção de cidadãos críticos e comprometidos com a sociedade. Eduardo Jorge frisou a importância de não se perder a visão crítica e questionadora. Para ele, o documentário deve ter uma função social, tem de provocar a reflexão.

Roberto Cruz, gerente do Núcleo de Audiovisual do Itaú Cultural, também presente no encontro, respondeu a dúvidas e questões sobre o edital e afirmou, diante de jovens céticos quanto às possibilidades de produção, que participar de um concurso como o Rumos é importante para ganhar maturidade e aperfeiçoar o projeto, mesmo que ele não seja contemplado.

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RECIFE22 de março de 2006

O encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, se transformou numa interessante conversa entre o público e os componentes da mesa: Érika Bauer, professora da Universidade de Brasília e realizadora, autora de Dom Helder Câmara, o Santo Rebelde, Luis Eduardo Jorge, realizador, antropólogo e membro da comissão julgadora desta edição de Rumos, e Roberto Cruz, gerente de Audiovisual do Itaú Cultural.

Érika Bauer falou sobre sua experiência como realizadora e o que a atrai no trabalho como diretora. Para ela, lidar com um tema pouco conhecido é o mais interessante para um documentarista. Procura sempre tratar assuntos ou personagens que lhe são “estranhos”, em vez de fazer um filme sobre algo familiar. Como professora, tenta sugerir aos alunos que busquem o desafio de pesquisar e mergulhar em um tema mais distante de sua realidade.

Usando o exemplo da produção de seu filme sobre Dom Helder, falou sobre a ética que deve estar sempre presente no tratamento dos personagens do documentário. Ética para não distorcer ou manipular a “fala” do entrevistado. Para ela, na montagem, por vezes é melhor abrir mão de certos trechos se não for possível incluir o contexto em que algo foi dito. O documentarista deve tratar com máximo respeito o objeto de seu filme. Como exemplo citou Eduardo Coutinho, em constante busca por essa ética.

Como sugestão para o público, que queria saber se existem temas mais interessantes a ser tratados em documentários, disse que qualquer tema pode ser um grande tema, tudo depende da maneira como o realizador trata o assunto. E avisou: sempre há mais por trás do que se imagina ou se enxerga, há que estar atento às descobertas que ocorrem no meio da produção de um filme. Um documentarista deve ter os olhos abertos ao que pode surgir durante a realização do documentário.

Provocar a reflexão no espectador, na sociedade. Esse deve ser o papel do documentarista na opinião de Luis Eduardo Jorge. Mas, para isso, é preciso consciência crítica, algo que ele acredita estar em falta na formação do brasileiro. Ele lamenta que as universidades não sejam mais centros de formação voltados para a construção de cidadãos críticos e comprometidos com a sociedade. “Da mesma forma que o brasileiro não lê, também não tem cultura audiovisual.” Eduardo Jorge defende que o cinema deveria fazer parte da grade curricular das escolas desde as primeiras séries do ensino fundamental.

Roberto Cruz falou sobre o período atual do documentário no Brasil, que é promissor, no seu entender. “Está surgindo uma geração nova de documentaristas que não necessariamente é ligada ao cinema e isso é saudável.” Para ele, há mais interesse em se retratar a realidade brasileira, o que só vem enriquecer a cultura do audiovisual. Como dica aos que são céticos em relação ao mercado dedicado ao documentário no país, diz que não se pode pensar em distribuição, é preciso pensar no antes, no “fazer” do filme, o resto vem depois. Mãos à massa.

SALVADOR27 de março de 2006

A professora Sheila Schvarzman e a jornalista Liliana Sulzbach participaram, no dia 27 de março, da sétima palestra de divulgação do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007, realizada em Salvador.

Sheila abordou as tendências do documentário no Brasil desde os primeiros filmes do gênero, produzidos pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince). A professora projetou cenas de O Despertar da Redentora para mostrar que os temas dos documentários nos anos 1940 não tratavam do homem simples, mas, sim, de ídolos e modelos a ser seguidos.

Nos anos 1950, com as Brasilianas e a Caravana Farkas, o documentário começou a se aproximar do modelo que conhecemos hoje. Ainda que de forma generalizada, sem individualidades, o “homem” brasileiro aparece.

Após o intervalo da produção no período da ditadura militar, a retomada do cinema no Brasil foi marcada por um negativismo na esteira da queda do Muro de Berlim, nos anos 1980. Esse negativismo marca a retratação do homem de forma radical. Começam a aparecer as favelas, a desigualdade social, a miséria. O tema urbano substitui o rural, retratando as mudanças que ocorreram no Brasil com a saída do homem do campo em busca das grandes cidades. Nas palavras da professora, “passamos do romantismo para a crueza”. Para Sheila, está na hora de os documentaristas voltarem os olhos para os seus iguais, ou seja, a classe média, mostrando que existe algo além dessa desigualdade social brasileira.

Liliana, membro da comissão julgadora de Rumos, concordou com a professora e sugeriu outros formatos que gostaria de ver produzidos no Brasil, como os documentários de busca, a exemplo de 33, de Kiko Goifman – contemplado em edição anterior de Rumos –, ou Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. Ela também sente falta de documentários investigativos, de acompanhamento, e diz que a produção documental brasileira poderia se aproximar mais da ficção, dando dramaticidade ao filme e fazendo com que o espectador se pergunte sobre o que vai acontecer.

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VITÓRIA29 de março de 2006

O encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 em Vitória contou com platéia formada por estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo. Uma mesa formada por Sheila Schvarzman, historiadora do Condephaat, professora do curso de audiovisual das Faculdades Senac e professora convidada do Departamento de Multimeios da Unicamp; Liliana Sulzbach, jornalista, realizadora (autora do premiado documentário O Cárcere e a Rua) e membro da comissão julgadora de Rumos; e Roberto Cruz, gerente do Núcleo de Audiovisual do Itaú Cultural. A palestra teve como tema “Tendências e Perspectivas do Documentário Contemporâneo”.

Sheila fez um recorte na história do documentário no Brasil. Escolheu falar sobre como o documental brasileiro fala do “outro”. A professora levantou exemplos para mostrar que o documentário como conhecemos hoje passou a ser realizado nos anos 1950, época das Brasilianas e da Caravana Farkas. É nessa época que o “homem” brasileiro, simples e rural, passa a estar presente nas produções. O tema rural foi predominante nessa fase do documentário conhecido como moderno. Antes dessa época, os personagens retratados eram ídolos, personalidades, exemplos. A era Getúlio Vargas acreditava que o cinema era uma forma de educar o povo.

Após o intervalo da produção no período da ditadura militar, a retomada do cinema no Brasil foi marcada por profundas mudanças. O tema urbano substituiu o rural. Favelas, desigualdade social e miséria passaram a ser retratadas no documentário dito contemporâneo. E Eduardo Coutinho aparece como um dos expoentes desse documentário interessado no “homem”, com suas individualidades, defeitos e qualidades. “Passamos do romantismo para a crueza”, nas palavras da professora. “Ou temos de salvar ou sermos salvos”, é assim que resume os dois momentos do documental no Brasil, na época moderna e na contemporânea. Falando em perspectivas, Sheila acredita estar na hora de os documentaristas voltarem os olhos para seus iguais, para a classe média, mostrando que existe outro lado nessa desigualdade social brasileira. Esse tópico provoca os alunos, que ainda acreditam nos temas de cunho social, em que se denuncia o desrespeito aos direitos humanos, a fome e as agruras do mundo contemporâneo.

Diante do debate, Liliana Sulzbach afirmou que o mais importante é fazer bons documentários, independentemente do conteúdo. O que importa é o formato. Ela acredita que a mudança de foco do documentário brasileiro acompanha uma mudança de como a sociedade olha para ela mesma. Preocupando-se mais com o formato, poderiam ser produzidos no Brasil mais documentários investigativos, ou de acompanhamento, ou se poderia ousar mais ao “conferir um plot narrativo ao filme”, inserindo dramaticidade e instigando o espectador a se perguntar o que vai acontecer no final.

Roberto Cruz e Sheila chamaram a atenção de todos para as portas que se abrem com as diversas formas de mídia que se tem hoje para a divulgação de trabalhos. Há que ser inventivo e, principalmente, fazer bons documentários.

RIO DE JANEIRO3 de abril de 2006

No dia 3 de abril, o Rio de Janeiro foi palco de uma descontraída conversa entre Paschoal Samora, documentarista e membro da comissão julgadora desta edição de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007, e José Carlos Avellar, crítico de cinema, ensaísta e consultor de cinema do Programa Petrobras Cultural.

As formas de exibição do cinema e do documentário estão se ampliando. Avellar acredita que em pouco tempo se produzirá especificamente para telas de celular e outras mídias. Algo como o que está acontecendo com o mercado fonográfico, em que é possível comprar apenas algumas faixas de determinado álbum.

Samora acredita que os modelos e formatos do documentário estão anos-luz à frente do mercado. Cabe aos realizadores pressionar o mercado a buscar novas maneiras de distribuição. O negócio é produzir, realizar e acreditar que bons produtos vão encontrar caminhos para ser exibidos e poderão cumprir seu papel de provocar a reflexão e instigar sentimentos, tanto na grande quanto na pequena tela.

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BELO HORIZONTE5 de abril de 2006

Realizada no dia 5 de abril, em Belo Horizonte, a palestra “O Documentário no Contexto da Retomada do Cinema Brasileiro: Existe Mercado?” teve a participação do crítico de cinema José Carlos Avellar e do documentarista Paschoal Samora. O encontro marcou o décimo evento de divulgação do programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 pelo Brasil.

Consultor de cinema do Programa Petrobras Cultural, Avellar fez uma analogia entre o documentário e a pintura do início do século XIX. Lembrou que o inglês John Constable rompeu com a tradição de retratar naturezas-mortas e personagens da aristocracia pintando paisagens e evidenciando nos quadros a data, a hora e as condições climáticas do momento. Uma forma de documentar, mesmo sem uma câmera. O crítico citou ainda a fotografia e o fotojornalismo para chegar ao documentário como conhecemos atualmente.

Para Avellar, o Brasil tem uma tradição oposta à européia ou norte-americana. Aqui a televisão faz ficção e o cinema bebe no modelo documental. Central do Brasil, Carandiru e Cidade de Deus têm uma veia documental, e a televisão fica a cargo de produzir ficção. O Brasil, acredita ele, produz muito mais documentários para a grande tela em comparação com o cinema europeu ou norte-americano. Avellar citou ainda o cinema novo como uma das primeiras formas de fazer cinema usando o modelo do documentário.

Membro da comissão de seleção do programa, Samora concorda, de certa forma, com Avellar. Ele acredita que o documentário, no Brasil, deixou de ser um “trampolim” para aqueles que desejam fazer ficção e firmou-se como uma forma de “fazer cinema”, um instrumento de reflexão da sociedade. Ele acredita que a projeção digital vai ampliar o mercado, não só para o documentário, mas para o cinema brasileiro em geral, contribuindo para facilitar a distribuição das produções nacionais.

CURITIBA24 de abril de 2006

A palestra de divulgação de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo em Curitiba começou com uma frase de efeito do realizador Cao Guimarães. “Não existe documentário sem subjetividade.” O tema do encontro foi “Documentário e Subjetividade: o Olhar do Autor”.Diretor premiado, autor de A Alma do Osso e Rua de Mão Dupla, Cao Guimarães dividiu a mesa com o diretor, roteirista e antropólogo Luiz Eduardo Jorge, membro da comissão de seleção desta edição de Rumos.

Para ilustrar o que estava dizendo, Cao projetou cenas de seus dois trabalhos. Em Rua de Mão Dupla duas pessoas passam 24 horas na casa de um estranho com uma câmera de vídeo e tentam, por meio dos objetos e da disposição da casa, descobrir quem vive naquele lugar. Para o diretor esse foi o trabalho no qual mais se aproximou de um documentário com pouca interferência do olhar do autor, mas a subjetividade está fortemente presente naquele que faz imagens de uma casa estranha, de objetivos e indícios da vida de alguém que não conhece, e imagina quem é.

Em Alma do Osso, filme em que tenta mostrar como vive um ermitão, a subjetividade do autor está em boa parte do filme. Por meio de imagens, sons e montagem, o diretor especula o que se passa na cabeça desse ermitão sem ter nenhum indicativo do que ele está realmente pensando. O que está no filme é a subjetividade do autor.

Com as diferenças colocadas, Cao Guimarães afirma que não lhe interessa a verdade, mas, sim, a expressividade do objeto ou do personagem retratado. Nem a palavra interessa ao diretor, que acredita que o cinema tem um vício em literatura e em teatro. Cao acredita que cinema é feito de imagens e sons. Para ele, não é o cineasta que faz o filme, mas o filme que faz o cineasta.

Luiz Eduardo Jorge representou bem o papel de mediador. Tentou saber de Cao Guimarães suas estratégias para montar um projeto e conseguir realizar seus trabalhos. Ouviu, junto com o público, que o projeto tem de expressar bem a idéia do filme, o objetivo que se quer com o documentário, e ter sempre em mente que tudo pode mudar durante a captação. Em vista disso, Cao diz ser um apaixonado pela edição do filme, que é quando o documentário acontece, o momento em que o realizador se dá conta realmente do que é o produto final de seu trabalho.

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PORTO ALEGRE26 de abril de 2006

“Documentário e Subjetividade: o Olhar do Autor”, esse foi o tema do encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo em Porto Alegre.

O diretor Cao Guimarães começou a conversa dizendo que não existe documentário sem subjetividade. Usou uma metáfora para ilustrar que tipos de documentários ele produz. Existem pelo menos três maneiras de estar na frente de um lago de água parada. Uma delas é contemplando de um barranco, onde não se tem interação com esse lago, apenas a visão – são filmes de contemplação, como Da Janela do Meu Quarto, em que ele gravou imagens de duas crianças brincando numa rua alagada no Pará, como se fosse uma coreografia e sem a interferência do autor. A outra forma é lançando uma pedra nesse lago, provocando ondas e mexendo com a água. Para ele um exemplo é Rua de Mão Dupla, em que há uma interferência do autor para que a realidade fique “bagunçada”. Nesse filme, Cao pediu a pessoas que não se conheciam que trocassem de casa por 24 horas com uma câmera de vídeo nas mãos e tentassem imaginar os moradores da casa estranha em que estavam. Uma realidade filtrada pelos olhos de quem está na casa e pode apenas fazer elucubrações. A terceira maneira é atirar-se no lago, mergulhando em suas águas. O exemplo é A Alma do Osso, filme que Cao fez sobre a vida de um ermitão de Minas Gerais. Com as imagens do ermitão e de seu cotidiano, Cao procura imaginar o que o personagem está pensando, o que se passa pela mente de alguém que vive sozinho num local distante. Para fazer esse documentário, o diretor passou dias e dias fazendo imagens e convivendo com o ermitão, colocando sua subjetividade no mergulho na personalidade da figura de seu filme.

O diretor, roteirista e antropólogo Luiz Eduardo Jorge, membro da comissão selecionadora de Rumos, também estava presente no encontro. Subjetividade para ele é algo inerente ao ser humano. “A partir do momento em que o homem transforma a natureza em cultura ele está criando uma subjetividade.” Para Luiz Eduardo, Cao Guimarães faz da subjetividade do outro a matéria-prima de seu trabalho, realizando assim uma leitura antropológica da relação que o homem tem com o mundo.

BRASÍLIA3 de maio de 2006

O último encontro de Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo 2006-2007 aconteceu com uma platéia formada quase inteiramente por estudantes de audiovisual de Brasília.

A dupla responsável pela palestra “Panorama da Produção de Documentários no Brasil” foi a mesma que esteve no primeiro encontro, em Manaus. Cláudia Mesquita, jornalista e pesquisadora de cinema, e Liliana Sulzbach, produtora e realizadora, integrante da comissão de seleção desta edição de Rumos.

A palestra reuniu um pouco de todos os outros encontros. Cláudia fez um histórico do cinema documental no Brasil desde os anos 1960, algo já abordado por ela mesma em Manaus. Viramundo, de Geraldo Sarno, marca a era do documentário moderno, com a temática urbana, as agruras do povo e a tentativa de estabelecer um diagnóstico dos problemas sociais no Brasil.

Cabra Marcado para Morrer é um divisor de águas. O documentário de Eduardo Coutinho, finalizado nos anos 1980, depois de ficar na gaveta durante a ditadura militar, inaugura a época contemporânea. Cláudia Mesquita classifica essa época, que vai dos anos 1980 ao início dos 1990, como sendo “tempos de vídeo”, o cinema com forte relação com os movimentos sociais, numa clara demonstração da necessidade de criar uma identidade do brasileiro. Uma busca por interiorizar o cinema, como Coutinho também fez em Santa Marta. Para Cláudia, os “tempos de vídeo” duraram até a retomada mais forte do cinema brasileiro em 1995, e daí para hoje há uma espécie de boom, com produção mais intensa de documentários que conseguem chegar a grandes telas, abrindo cada vez mais janelas para a produção documental no mercado.

Liliana também reiterou em parte o que havia dito em Manaus, Salvador e Vitória, onde esteve com os encontros de Rumos. Independentemente de tendências, ela acha que é o momento de mudar o foco dos documentários feitos no Brasil. Cita, por exemplo, os acontecimentos em Brasília, com escândalos de corrupção, e pergunta se há alguém registrando tudo para transformar em documentário. Liliana acredita que é preciso produzir mais com temas exclusivamente políticos. E voltar a câmera para outras camadas da população, no lugar de apenas mostrar miséria ou violência em favelas, afinal, deve existir uma elite que colabora para perpetuar as desigualdades no país.

Apesar das carências, o que a realizadora de O Cárcere e a Rua realmente acredita é que existem bons e maus documentários, e as boas idéias são sempre bem-vindas e bem recebidas.

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Rumos Cinema e Vídeo

PalestrantesCao GuimarãesCarlos NaderCláudia MesquitaConsuelo LinsÉrika BauerFrancisco Elinaldo TeixeiraJosé Carlos AvellarSheila Schvarzman

Comissão de seleção da 5ª edição de Rumos Itáu Cultural Cinema e VídeoLiliana SulzbachLuiz Eduardo JorgePaschoal Samora

Instituições parceirasAgência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira – Agepel (GO)Centro Cultural Dragão do Mar (CE)Centro Cultural Usina Chaminé (AM)Diretoria de Artes Visuais e Multimeios da Fundação Cultural da Bahia – Dimas (BA)Fundação Athos Bulcão (DF)Fundação Clóvis Salgado – Palácio das Artes (MG)Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (MS)Fundação Cultural de Curitiba (PR)Fundação Joaquim Nabuco (PE)Instituto de Artes do Pará (PA)Instituto Marlin Azul (ES)Paço Imperial (RJ)Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas (AM)Universidade Federal do Espírito Santo (ES)Usina do Gasômetro (RS)

AgradecimentosAlexandre FigueiroaAlexandre VerasAna AzevedoAndressa OliveiraBeatriz Lindenberg

Belchior CabralBernardo José de SouzaBya CabralCarlos MagalhãesCarolina FerreiraCarolina PortoDaniel QueirosDaniela CapelatoDulcinéia GilEudaldo GuimarãesFernando SegtowickFrancisco de A. Assumpção NetoFrancisco LiberatoGlauber FilhoGlênio Nicola PóvoasJanine de Souza MalanskiJoão DumansJoão JúniorKléber Mendonça FilhoMarcelo ArmosMarcelo PedrosoMárcia MacedoPaulo BragantiniVera AdamiVerônica Maia

Participantes do Laboratório de ProjetosAroe Jari: Trilogia BororoCláudio de Oliveira Alves

Biografia das Casas ElásticoAlexandre Veras

História na GeralAnna Azevedo

Meninas de PlásticoTatiana Toffoli e Marta Nehring

RefugiadosIvan Canabrava e Souza

Sub.UrbanosRubens Miranda Júnior

Projetos premiados e que compõem a série Cinco sobre Cinco

MargemMaya Werneck Da-RinEu Vou de VoltaCamilo Santos Cavalcante e Claudio Assis

Histórias de Morar e DemoliçõesAndré Costa

Memórias de uma Mulher ImpossívelMarcia Derraik

Procura-se JanaínaMiriam Chnaiderman

Prêmio especial

Diário de SintraPaula Gaitán

SOBRE FAZER DOCUMENTáRIOS

Identidade visual e projeto gráficoHelga Vaz

Este livro foi organizado, editado, revisado e diagramado pela equipe do Instituto Itaú Cultural.

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Este DVD apresenta depoimentos de produtores, realizadores e pesquisadores ligados ao cenário do documentário no Brasil.

Trata de questões relacionadas aos modos de fazer e pensar esta produção, suas particularidades regionais e o impacto das novas tecnologias.

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Este DVD apresenta depoimentos de produtores, realizadores e pesquisadores ligados ao cenário do documentário no Brasil.

Trata de questões relacionadas aos modos de fazer e pensar esta produção, suas particularidades regionais e o impacto das novas tecnologias.