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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES/AVM A INFLUÊNCIA DA FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL DA PROPRIEDADE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Orientador: Prof. Francisco Carrera Aluno: Jaques Antonio de Moura Vieira Petrópolis, Fevereiro de 2013 DOCUMENTO PROTEGIDO PELA LEI DE DIREITO AUTORAL

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES/AVM

A INFLUÊNCIA DA FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL DA

PROPRIEDADE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Orientador: Prof. Francisco Carrera

Aluno: Jaques Antonio de Moura Vieira

Petrópolis,

Fevereiro de 2013

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

AVM FACULDADE INTEGRADA

A INFLUÊNCIA DA FUNÇÃO SOCIO-AMBIENTAL DA

PROPRIEDADE NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Apresentação de monografia à AVM Faculdade Integrada

como requisito parcial para obtenção do grau de

especialista em Direito Ambiental.

Por: . Jaques Antonio de Moura Vieira.

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AGRADECIMENTOS

“A minha família, por todo apoio.

A meus professores, por me mostrarem um mundo um

pouco mais verde e cheio de vida.

A meus amigos, pela compreensão nos dias de

negligência.”

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“(…)Nosso planeta é uma mancha solitária em uma escuridão cósmica

envolvente.

Em nossa obscuridade, em toda essa vastidão, não há indícios de que virá

ajuda de algum outro lugar para nos salvar

de nós mesmos.

A Terra é o único planeta conhecido até agora a comportar vida. Não há outro

lugar, ao menos não no futuro próximo, para o qual nossa espécie possa migrar.

Visitar sim, colonizar, ainda não.

Goste ou não, no momento a Terra é onde resistimos.

Já foi dito que a astronomia é uma experiência de humildade e formação de

caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da frivolidade dos conceitos

humanos do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo.

Para mim, ela fortalece nossa responsabilidade de sermos mais gentis uns

com os outros e de preservar e estimar o ponto azul pálido.”

(Carl Sagan, sobre fotografia da Terra tirada pela sonda Voyager I - tradução

própria)

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RESUMO

O trabalho tem por objetivo estudar o surgimento da função social da

propriedade e de sua evolução com a eventual adoção da preocupação com o meio

ambiente como faceta dessa mesma função, analizando os processos históricos de

mundanças sociais e na mentalidade de várias épocas e o modo como a legislação veio

gradualmente adotando a função social e sua vertente sócio–ambiental como princípios

inerentes ao direito de propriedade para demonstrar a influência que esses princípios

exerceram sobre o Direito.

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METODOLOGIA

O presente trabalho foi realizado através de pesquisa em livros de doutrina, trabalhos

de pós-graduação no nível de mestrado de diversas instituições de ensino e na internet,

inclusive com a utilização da wikipédia, para pesquisa sobre termos específicos e de

menor relevância, e consultas à legislação, tanto vigente quanto revogada, brasileira e

estrangeira.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 09

Breve história da propriedade privada no Brasil 14

CAPÍTULO I - Função Social da Propriedade 17

1.1 -Evolução histórica da função social da propriedade 20

no Brasil

CAPÍTULO II - A Constituição de 1988 e a função 28

sócio-ambiental da propriedade

2.1 A função sócio-ambiental da propriedade urbana no 32

Estatuto das Cidades (lei 10257/01)

CAPÍTULO III- A função sócio ambiental da propriedade no 36

Código Civil

CONCLUSÃO 40

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INTRODUÇÃO

A origem do conceito de propriedade privada se perde no tempo e se confunde com a

criação das primeiras sociedades humanas:

“Sabe-se da existência de raças que nunca chegaram a instituir a

propriedade privada, e de outras que só o fizeram depois de muito custo e

esforço. De fato, não deve ter sido fácil, no início das sociedades, saber se

um indivíduo podia se apropriar do solo e estabelecer entre sua pessoa e

uma porção de terra um vínculo tão forte a ponto de poder afirmar: ‘Esta

terra é minha, esta terra é como que uma parte de mim mesmo’. Os tártaros

concebiam o direito de propriedade no que dizia respeito aos rebanhos, mas

não quando se tratava do solo. Segundo alguns autores, entre os antigos

germanos a terra não pertencia a ninguém; todos os anos a tribo destinava a

cada um de seus membros um lote para cultivar, e mudava-se de lote no ano

seguinte. O germano era proprietário da colheita, mas não da terra. Ainda é

assim em parte da raça semítica e entre alguns povos eslavos.”

(COULANGES,2012, p. 85)

Inicialmente, a base para a fundamentação da propriedade privada, assim como para

a formação dos grupos familiares e das comunidades, é a religião. Na Grécia antiga, a

propriedade privada da terra se ligava aos cultos às divindades familiares e aos

antepassados, que eram enterrados no terreno que pertencia não ao indivíduo mas sim à

família, compreendida aqui como formada tanto por aqueles parentes vivos como pelos

já falecidos e por aqueles que ainda viriam a nascer.

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A propriedade se desprendia de um simples caráter terreno, tornando-se um solo

sagrado, pertencente às divindades familiares, aos ancestrais ilustres e à família e não ao

indivíduo, que não poderia nunca se desfazer dela ou dela ser separado.1

“Fica bem evidente que a propriedade privada era uma

instituição da qual a religião doméstica não se podia prescindir.

Essa religião prescrevia que se isolasse o domicílio e também a

sepultura: assim, a vida em comum era impossível. A mesma

religião recomendava que se fixasse ao solo o fogo sagrado, que

não se destruisse nem se deslocasse o túmulo. Suprimindo-se a

propriedade o lar seria errante, as famílias se misturariam, os

mortos ficariam abandonados e sem culto. Através do lar inabalável

e da sepultura permanente a família tomou posse do solo; a terra foi

imbuída e penetrada pela religião do lar e dos ancestrais.Assim, o

homem dos tempos antigos viu-se dispensado de resolver

problemas extremamente difíceis. Sem discussão, sem dificuldade,

sem sombra de hesitação, de um só golpe e apenas graças às suas

crenças, esse homem concebeu o direito de propriedade, direito que

originou toda a civilização pois através dele o homem aprimorou a

terra e se tornou melhor” (COULANGES, 2012, p.92)

O conceito de propriedade fundamentado nos cultos familiares e aos mortos foi

absorvido pelo Império Romano que, além de manter as tradições gregas, introduziu o

conceito de demarcação de terras por meio da colocação de uma faixa de terra de alguns

pés de largura e de alguns marcos sagrados irremovíveis, denominados “termos”2, que

1 Há aqui uma única excessão. “A expropriação por utilidade pública era desconhecida entre os antigos. O

confisco só se praticava em consequência de uma sentença de exílio(…). A expropiriação por dívidas

também não é encontrada no antigo direito das cidades.” (COULANGES,2012, p.97) 2 “Uma vez fincado o termo conforme os ritos, nenhum poder do mundo seria capaz de deslocá-lo.Ele

deveria permanecer ali para toda eternidade. Em Roma, este princípio religioso se expressava por uma

lenda; Júpiter, querendo arranjar um lugar no Monte Capitolino para ali possuir um templo, não

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eram essencialmente troncos ou pedras largas colocadas sobre essa faixa de terra de

metros em metros.

Na verdade, uma vez que os termos eram sagrados, a violação ao direito de

propriedade pela alteração ou destruição dos termos era considerada como crime

gravíssimo pelo direito romano: “se um homem tocar o termo com o relho da sua

charrua que ele e os seus bois sejam lançados aos deuses infernais - isso significava que

o homem e os bois seriam imolados em expiação.” (COULANGES,2012, p.94).

Aos romanos pode se atribuir também a criação da propriedade quiritária, conceito

que amplia os poderes do proprietário permitindo, por exemplo, a alienação da

propriedade (salvo daqueles espaços em que se encontravam sepultados os antepassados

por serem considerados inalienáveis).

“Os romanos conheceram, relativamente cedo na história de suas

instituições, uma noção quase absoluta de propriedade: o domínio ex jure

Quiritium , a propriedade quiritária. Era o poder mais absoluto que uma

pessoa podia ter sobre uma coisa: o direito de a utilizar como quiser, de a

desfrutar e de receber seus frutos, de dispor dela livremente. No entanto,

não se tratava de poder ilimitado, mesmo na época da Lei das XII

Tábuas, o poder do proprietário estava limitado, sobretudo no que

respeita aos imóveis, quer no interesse dos vizinhos, quer no interesse

público.” (GILISSEN, 2003, p.638)

Após a queda do império romano veio o período das invasões bárbaras na Europa.

Essas invasões desconstituiram as propriedades familiares e deram início a um processo

conseguiu desalojar o deus Termo. Esta velha tradição mostra o quanto a propriedade era sagrada,

porque o termo imóvel significa propriedade inviolável. De fato, o deus Termo protegia e vigiava os limites do campo. O vizinho não ousava se aproximar

demais ‘porque então’, como dizia Ovídio, ‘o deus sentindo-se ferido pela relha do arado ou pelo

enxadão, gritava:’Pára, este campo é meu, o teu é alí’ ” (COULANGES, 2012, p.94)

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de acumulação de terras, por meio da ocupação3, nas mãos de um único proprietário.

Esse proprietário, por sua vez, “dividia suas terras em tenências precárias ou beneficiais

(tenure): a posse precária da terra que o proprietário concede a outro por um período

prolongado. O possuidor (ou tenente) exerce um poder real e imediato sobre as terras de

outrem.” (CARVALHO, 2006, p.22)

Assim, a propriedade era dividida entre posse direta da terra, aquela exercida pelo

senhor da terra, que ficava responsável pela distribuição das terras entre os tenentes

assim como pela manutenção da ordem e pela cobrança de impostos sobre a produção; e

posse útil, exercida pelos tenentes, vassalos dos senhores que possuiam as terras e nelas

constituiam moradia, produziam e exerciam dever de manutenção da propriedade.

“Na Idade Média, a manifestação do direito de propriedade foi

desmembrada em dois prismas: o directum e o utile. Neste sistema social, o

proprietário das terras - o suserano, titular do directum - cedia a posse de

parte de seu domínio ao vassalo, que exerceria o utile, e tornar-se-ia algo

que hoje, sob a lente lapidada por Ihering, chama-se possuidor direto. Por

sua vez, este poderia também transferir parte da sua a outro, conformando-

se, destarte, uma "complicada trama de interdependências jurídicas".

(BARRETO, 2005, p.2)

Apesar do aspecto de “colcha de retalhos” que a propriedade assumiu durante a Idade

Média, essa forma de aquisição e divisão de terras se manteve por séculos graças a

diversos instrumentos como “o direito de herança do primogênito,a inalienabilidade dos

imóveis pertencentes aos membros do clero sem a permissão do Bispo e do cabido que

evitavam a divisão da propriedade feudal e, de outra parte, acarretavam a imobilização

patrimonial (...)”. (CARVALHO, 2006, p.23)

3 “Quando os visigodos invadiram e se estabeleceram na Península Ibérica, tomaram para sí dois terços

das terras (...) e deixaram que os hispanos-romanos ficassem com o resto, a terça romana, tertia romana.

À origem da distribuição das terras, em Portugal, está ,pois, a invasão, e não o trabalho. Aliás, em toda a

Europa, pelo princípio o solo ao conquistador.” (PONTES DE MIRANDA in CARVALHO, 2006, p.35)

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Essa imobilização patrimonial continuaria até que fosse um dos alvos da Revolução

Francesa, em 1789, que resgataria o modelo romano de propriedade individual,

transferindo àqueles que detinham o domínio útil da terra o direito de propriedade

pleno.

“La lucha dirigida contra el dominio eminente condujo a la noche del 4

de agosto de 1789: a los nobles fueron obligados a renunciar, sin

idemnización, a sus privilegios (feudales) o sea, al dominio eminente. Como

há escrito Taine, la Revolucion Francesa fué así ‘una transmicion de la

propriedad’; la propriedad pasó del dominio eminente al dominio útil.Por

haber desaparecido la dualidad, los revolucionarios pudieron plegarse a la

‘concepcion romana’. Al proclamar la libertad individual, al afirmar los

derechos del hombre, tenián que hacer, con toda la naturalidad del derecho

de propriedad un derecho individual y absoluto.Cada un es dueño y

soberano de lo que lo pertenece”4 (HERNANDEZ, 1990,p.16)

A partir do século XIX, por influência da Revolução Francesa, o direito de

propriedade passa a constar em diversas constituições e declarações, como a Declaração

da Independência dos Estados Unidos e a Declaração Universal dos Direitos dos

Homens.

“O direito de propriedade foi tão exaltado no século XIX que, se não

na teoria, ao menos na prática, suplantou o direito de liberdade e até o

direito à vida, por absurdo. Tanto é isso verdade que os regimes

4 “A luta dirigida contra o domínio eminente conduziu à noite de 4 de agosto de 1789: os nobres foram

obrigados a renunciar, sem indenização, a seus privilégios (feudais) ou seja, ao domínio iminente. Como

escreveu Taine, a Revolução Francesa foi assim ‘uma transmissão da propriedade’; a propriedade

passou de domínio iminente a domínio útil. Por haver desaparecido a dualidade , os revolucionários

puderam adotar a ‘concepção romana. Ao proclamar a liberdade individual, ao afirmar os direitos do

homem, teriam que fazer, com toda naturalidade, do direito de propriedade um direito individual e

absoluto. Cada um é dono e soberano daquilo que lhe pertence.” (tradução própria)

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constituicionais daquele século admitiam a pena de morte e, nos países

recém-libertos do continente americano, admitiam a escravidão, que é a

negação absoluta dos direitos mais fundamentais do homem.” (

MILARÉ, 2011, p.654)

Breve história da propriedade privada no Brasil

Após a descoberta do Brasil em 1500, todo o território desbravado foi reclamado

em nome da coroa portuguesa e dividido em porções menores, administradas por

particulares por meio de um regime de concessão denominado sesmarias5.

As terras eram entregues a servidores da coroa, aos senhores de cabedais (nome dado

aos engenhos reais) e outros cidadãos com influência política e não aos fazendeiros e

lavradores. Dessa forma, o objetivo das sesmarias foi deturpado pois passou a se prestar

ao acúmulo de terras e expansão territorial e não ao cultivo e aproveitamento, por

conseguinte criando grandes propriedades. “Tantas foram as liberalidades que em 1822

já não haviam mais terras a distribuir”(CARVALHO, 2006, p.31).

Visto que o modo de transmissão de terras por concessão de terras não era mais

possível, em 1850 foi definitivamente abolido o regime de sesmarias e a terra que se

encontrava nas mãos da elite passou a ser transmitida por meio de herança ,doação e

pela compra enquanto que a posse passa a ser adquirida por compra.

5 “Sesmaria foi um instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à

produção. O Estado, recém-formado e sem capacidade para organizar a produção de alimentos, decide

legar a particulares essa função. Este sistema surgira em Portugal durante o século XIV, com a Lei das

Sesmarias de 1375, criada para combater a crise agrícola e econômica que atingia o país e a Europa, e

que a peste negra agravara. Quando a conquista do território brasileiro se efetivou a partir de 1530, o Estado português decidiu

utilizar o sistema sesmarial no além-mar, com algumas adaptações.” (retirado da Wikipédia. Disponível

em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sesmaria. Acesso em 02 de Janeiro de 2013)

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“Com a independência foi extinto o modelo das sesmarias, existindo

entre 1822 e 1850 (data da promulgação da Lei das Terras) um sistema

de ocupação livre da terra. A partir da Lei da Terra fica estabelecida que

a forma legal de posse da terra passa a ser a compra devidamente

registrada, implicando no reconhecimento do direito de propriedade

(distinto da posse) e a monetarização da terra enquanto mercadoria

(passou-se a compreender a terra como investimento).” (ROCHA,1999,

p.14)

O modelo de aquisição de propriedade imóvel da Lei de Terras permaneceu vigente

até a promulgação do Código Civil de 1916. Esse código trouxe nos art. 5246 e 5277

novos direitos para o proprietário , inspirados na definição de propriedade trazido pelo

art. 544 do Código Civil francês de 1804 (também conhecido como Código

Napoleônico ou da propriedade), aonde lê-se: “A propriedade é o direito de gozar e

dispor das coisas da maneira a mais absoluta, sem poder fazer o que a lei ou os

regulamentos proíbem.”

O exercício quase irrestrito do direito de propriedade no Código Civil brasileiro,

tendo como única limitação o direito de vizinhança, veio como um eco das lutas de

classe durante a Revolução Francesa e da eventual promulgação do Código

Napoleônico. Contudo, à época da publicação do Código de 1916 a doutrina liberal, que

inspirou a lei francesa e pregava uma autonomia quase total do particular perante o

Estado, já se encontrava superada.

“O conceito de direito de propriedade não foi definido pelo art. 524 do

Código Civil de 1916, bastando-se em indicar os direitos do proprietário:

usar, gozar, fruir e dispor e reavê-los do poder de quem quer que os

6 Art. 524 A lei assegura ao proprietário o direito de usar gozar, fruir e dispor de seus bens e de reavê-los

do poder de quem quer que injustamente os possua.

7 Art. 527 O domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário.

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injustamente possua. O próprio autor do projeto, Clóvis Bevilácqua,

rejeitou o conteúdo do artigo 524 da lei aprovada, porque, na alteração do

projeto pelo Congresso, foram retiradas as restrições legais ao direito de

propriedade que conduziam o instituto a uma concepção mais moderna,

referenciada pelo interesse social o que somente foi alcançado, no Brasil,

com a constituição de 1934.” (CARVALHO,2006, p.32)

Para que se possa compreender melhor o contexto histórico em que surge o Código

Civil de 1916:

“Ao tempo em que Clóvis Bevilácqua apresentou o projeto do Código

Civil brasileiro éramos, na precisa observação de Sílvio Romero, uma

nação embrionária, cuja indústria mais importante consistia em uma

lavoura rudimentar, extensiva, servida ontem por dois milhões de

escravos e, àquele tempo, abolida a escravatura, isto é, na última década

do século XIX, por trabalhadores nacionais e algumas dezenas de

milhares de colonos de procedência europeia (...). A estrutura agrária

mantinha o país no sistema colonial,que reduzia sua vida econômica ao

binômio da exportação de matérias primas e gêneros alimentares e

importação de artigos fabricados. A indústria nacional não ensaiara os

primeiros passos. Predominavam os interesses dos fazendeiros e dos

comerciantes, aqueles produzindo para o mercado internacional e estes

importando para o comércio interno.Esses interesses eram coincidentes.

Não havia, em consequência, descontentamentos que suscitassem grandes

agitações sociais.” (GOMES, 2003, p.24-25)

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CAPÍTULO I

1. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A idéia de que a propriedade deve ter servir uma função que beneficie a sociedade, e

não apenas aquela do simples uso e gozo pelo proprietário, é antiga. Como já foi dito na

introdução, os gregos foram um dos primeiros povos de que se tem notícia a estabelecer

um direito sobre a propriedade do solo. Foram também os primeiros a estabelecer uma

função para a propriedade privada que atendesse ao interesse público: toda a colheita

produzida nas propriedades privadas era repartida pela sociedade.

“Há mesmo um fato muito notável. Enquanto as raças que não

concedem ao indivíduo a propriedade concedem-lhe, ao menos, a dos

frutos de seu trabalho, ou seja, sua colheita, entre os gregos acontecia o

contrário. Em algumas cidades, os cidadãos eram forçados a ter em

comum as colheitas, ou pelo menos a maior parte delas, devendo

consumí-las em comum; portanto, o indivíduo não era absolutamente

dono do trigo que colhera mas, ao mesmo tempo, e por uma contradição

notável, era o proprietário absoluto do solo. A terra lhe pertencia mais do

que a colheita.” (COULANGES, 2012, p.86)

Na verdade, poderia se sustentar que a propriedade serviu a uma função social até

mesmo durante a Idade Média, uma vez que a proteção das terras pelos senhores feudais

teria por interesse manter a produtividade de suas terras.

“Será que é por demais ousado afirmar que o desenvolvimento dos

benefícios das situações de vassalagem narrado plena história nada mais

é do que uma busca de efetividade de utilização da terra, como forma de

torná-la produtiva e protegida? Ou seria protegida e produtiva? É

inegável a existência de um significado e uma funcionalidade no instituto

da propriedade.” (CARVALHO, 2006, p.23)

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A desvinculação da propriedade de sua função social parece ter ocorrido apenas

durante um “pequeno” período da história. Com a publicação do Código Civil francês

de 1804 em que, como já discutido, por influência da doutina liberal, o direito de

propriedade adquiriu uma faceta de direito absoluto, podendo o proprietário se utilizar

da maneira mais irrestrita de sua propriedade e até mesmo aliená-la livremente, o que

gerou uma característica de monetarização da propriedade.

O exercício irrestrito do direito de propriedade gerou uma grande desigualdade social

ao colocar na mão de um pequeno número de proprietários poderosos a maior parte das

terras e, por conseguinte, o domínio sobre a produção e ainda, mais importante, sobre o

modo de exploração do trabalho humano. Esse modelo liberalista sofreu inúmeras

críticas por parte de filósofos e políticos e ainda no século XIX, por força dessa reação

de descontentamento, surgiram as primeiras manifestações socialistas.

“(…) há muitos que , por não possuírem qualquer propriedade privada,

e por estarem sempre à beira da inanição completa, são compelidos a

fazer o trabalho de bestas de carga e fazerem um trabalho completamente

incompatível a sua índole, ao qual são forçados pelo compulsório,

absurdo e degradante jugo da privação. Estes são os pobres e entre eles

não há elegância de maneiras nem encanto no discurso, civilização,

cultura, refinamento nos prazeres ou alegria de viver. Da força coletiva

deles a humanidade ganha muito em prosperidade material. Mas o que

ela ganha é apenas o produto material, e o homem pobre não tem, em sí

mesmo, nenhuma importãncia. É apenas o átomo infinitesimal de uma

força que, longe de tê-lo em consideração, esmaga-o. Na verdade,

prefere-o esmagado, de vez que nesse caso ele é bem mais obediente.”

(WILDE, 2012, p.19-20)

Através de processos históricos impelidos por revoltas populares, a função social da

propriedade encontraria respaldo legal novamente com a Constituição de Weimar de

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1919, “marco do movimento constitucionalista que consagrou os direitos sociais de

segunda geração8 e reorganizou o Estado em função da sociedade e não mais do

indivíduo”9, através do princípio do “eigentum verplichtet” (a propriedade traz

obrigações) contido em seu art. 153, aonde se lê: “A propriedade obriga e seu uso e

exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social.”

Esse princípio contido na lei suprema alemã, na qual a propriedade impõe deveres ao

proprietário, constituiria a definição daquilo que compreeendemos atualmente como

função social da propriedade, conforme pode ser observado nos ensinamentos do

ministro Eros Grau :

“ O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da

função social da propriedade impõe ao proprietário –ou a quem detem o

poder de controle, na empresa- o dever de exercê-lo em benefício de

outrem, e não, apenas , de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso

significa que a função social da propriedade atua como fonte de

imposição de comportamentos positivos- prestação de fazer, portanto, e

não puramente de não fazer – ao detentor do poder que deflui da

propriedade.” (GRAU, 1997, p.255)

E também em:

“Tenha-se bem presente, porém – e de todo enfatizado – que o

princípio da função social da propriedade deve ser visualizado de uma

perspectiva muito mais ampla . Injustificável seja concebido apenas

8“(…)os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais)- que se identificam com as

liberdades positivas,reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade (…)” (Ministro Celso de

Mello in MORAES, 2008, p.31)

9 Trecho retirado da Wikipédia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Constituição_de_Weimar .

Acesso em: 29 de novembro de 2012.

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negativamente –isto é, como expressivo da imposição de um dever de

não fazer do proprietário. Correto fosse tal entendimento e estaríamos,

quando diante dele , singelamente em presença de uma designação

específica, atribuída à antiga noção de poder de polícia , herança da

ideologia de um Estado Liberal.

A função social da propriedade é qualitativamente distinta da noção de

poder de polícia. A integração dela – repita-se- no conceito de

propriedade de determinados bens importa a imposição, sobre os

proprietários dele, de deveres de ação.” (GRAU, 1983, p.71)

É interessante salientar que, posto que a Constituição de Weimar seja considerada

como o ponto inicial da moderna função social da propriedade, a Constituição mexicana

de 1917 já trazia a possibilidade de expropriação de terras, em caso de necessidade

pública e mediante indenização, em seu artigo 27, que dizia :

“La propriedad de las tierras y aguas compreendidas dentro de los

limites del territorio nacional, corresponden originariamente a la Nación,

la cual há tenido y tiene el derecho de transmitir el dominio de ellas a los

particulares, constituyendo la propriedad privada. Las expropiraciones

sólo podrán hacerse por causa de utilidad pública e mediante

indemnización.” 10

1.1- Evolução histórica da função social da propriedade no Brasil

A primeira limitação ao livre exercício da propriedade a surgir no país foi aquela, já

mencionada anteriormente, do direito de vizinhança. Surgida no Direito Romano, esta

10 “A propriedade das terras e águas compreeendidas dentro dos limites do território nacional,

correspondem originariamente à Nação, a qual teve e tem o direito de transmitir o domínio delas aos

particulares, constituindo a propriedade privada. As expropriações só poderão ser feitas por força de

utilidade pública e mediante indenização” (tradução própria)

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limitação à propriedade foi incorporada pelo direito brasileiro no Código Civil de 1916,

em seus artigos 554 a 588 11.

Diferentemente da natureza de obrigação positiva que a função social da propriedade

viria adotar, o direito de vizinhança se consubstancia sempre em uma obrigação

negativa entre particulares, na qual o proprietário evita ações que possam causar danos a

seus vizinhos e suas propriedades.

O Código Civil de 1916 introduziu também, no ordenamento brasileiro, “importantes

contribuições paro o amadurecimento do conceito de propriedade, estabelecendo

restrições aos poderes do proprietário, tais como as hipóteses de usucapião,

desapropriação, (…), posturas municipais, etc.” (PETRUCCI, 2008, p.74)

Em 1934 veio uma nova constituição brasileira, fortemente influenciada pelos ideais

socialistas e pelo texto da Constituição de Weimar e da Constituição espanhola de 1931.

Em seu artigo 113, item 17, a Constituição de 1934 trazia a garantia ao direito de

liberdade e suas limitações:

“ Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade,

à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos

seguintes:

17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido

contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A

11 Como dois exemplos do direito de vizinhança no Código Civil de 1916 temos os arts. 554, “o

proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha

possa prejudicar a segurança, o sonego e a saúde dos que o habitam” e 573 “O proprietário pode embargar

a construção de prédio que invada a área do seu, ou sobre este deite goteiras, bem como a daquele, em

que, a menos de metro e meio do seu, se abra janela, ou se faça eirado, terraço, ou varanda.”

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desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos

da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente,

como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes

usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado

o direito à indenização ulterior.”

Embora a Constituição de 1934 não traga expressamente o princípio da função social

da propriedade ela foi o primeiro texto legislativo a mencionar o interesse social e

coletivo como limitadores ao exercício da propriedade e, por isso, é considerada como a

precursora da função social da propriedade no Brasil.

Já a Constituição de 1937 (também conhecida como Polaca), outorgada pelo governo

da ditadura Vargas, não trouxe em seu texto qualquer limitação à propriedade privada,

relegando tais limitações à lei ordinária.12

“O caráter ditatorial do texto fica claro ao relegar a disciplina do direito

de propriedade à legislação infraconstitucional, legislação essa que, com

o fechamento do Congresso durante o Estado Novo, ficou concentrada

nas mãos do chefe do executivo. Como resume Adilson Abreu Dalali,

‘instrumento da ditadura de então, esse texto em todo seu conteúdo e

particularmente no referente ao direito de propriedade e à desapropriação,

não significava senão um retrocesso em relação à Constituição de 1934’.”

(PETRUCCI, 2008, p.76)

12 Conforme o artigo 112 caput e item 14 da Constituição de 1937 “A Constituição assegura aos

brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade,

nos termos seguintes:

(...)

14) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante

indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o

exercício;” (grifo próprio)

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Não obstante o retrocesso quanto às limitações ao direito de propriedade na

Constituição de 1937, a Constituição de 1946 trouxe todas as limitações contidas na

Constituição de 1934 e inovou ao criar a modalidade de desapropriação por interesse

social13 e condicionar o exercício do direito de propriedade ao bem estar social,

autorizando inclusive a criação de leis para a justa redistribuição de terras visando a

consecução da igualdade social14.

“O condicionamento do uso da propriedade ao bem estar social era

inegavelmente o reconhecimento explícito do princípio da função social

da propriedade. Inobstante o caráter pragmático do dispositivo, estava o

legislador autorizado a intervir no domínio privado em benefício de toda

sociedade e a condicionar o exercício do direito de propriedade a um fim

social.”(MORAES, José Diniz de in PETRUCCI, 2008, p. 77)

13 “ Art 141 da Contituição de 1946 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes

no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à

propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 16 - É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade

pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo

iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade

particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização

ulterior.” (grifo próprio)

14 Art 147 da Constituição de 1946 – “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A

lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade,

com igual oportunidade para todos.”

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A Constituição de 1946 também se preocupou com o aproveitamento do solo rural,

em seu artigo 156 15, criando inclusive uma hipótese de usucapião pro labore para a

fixação de trabalhadores ao campo, visando tornar produtivas essas terras.

“(No Brasil) o conceito de função social da propriedade se forma em

torno da questão agrária, tendo como causa histórica a existência de

latifúndios improdutivos de um lado e a necessidade social da produção

agrícola e da geração de possibilidade de trabalho

A legislação agrária incorporou o conceito, em 1960, gravando a

tributação do latifúndio improdutivo e permitindo sua desapropriação

mediante pagamento em títulos públicos, e não em dinheiro. Todavia, a

função social limitava-se curiosamente ao aspecto econômico da

produção agrária e ao aspecto social de gerar trabalho rural. ” (MILARÉ,

2011. p. 655)

O Estatuto da Terra, lei 4504 de 30 de novembro de 1964, criado durante a ditadura

militar mas ainda sob a vigência da Contituição de 46, incorporou, de forma expressa, o

conceito de função social da propriedade, em seu artigo 2º 16, gravando a tributação das

terras improdutivas e permitindo sua desapropriação, por meio de pagamento por títulos

15 “Art. 156 “ A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de

aproveitamento das terras pública. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes

das zonas empobrecidas e os desempregados.

(...)

§3ºTodo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem

oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior a vinte e cinco hectares,

tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante

sentença declaratória devidamente transcrita. ”

16 Art. 2º, caput, , lei 4504/64: “É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra,

condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.”(grifo próprio)

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públicos. Essa lei, como já mencionado acima, limitou-se apenas ao aspecto econômico

da produção agrária e ao aspecto social da geração de emprego no campo.

Talvez a maior importância do Estatuto da Terra de 64 foi a de ter sido a primeira lei

brasileira não só a fazer uma menção expressa à função social da propriedade , mas

também a indicar parâmetros para que essa função social seja cumprida pela

propriedade rural, inclusive levando em conta a conservação dos recursos naturais.

“ Art. 2º(...)

§ 1º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função

social quando, simultaneamente:

a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela

labutam, assim como de suas famílias;

b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;

c) assegura a conservação dos recursos naturais;

d) observa as disposições legais que regulam as justas relações

de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.” (grifo próprio)

No mesmo ano, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 10 que alterou a

Constituição de 64 para permitir o pagamento por indenização de desapropriação de

terras em títulos da dívida pública.

A Constituição de 1967, outorgada pelo governo do general Castelo Branco durante a

época da ditadura militar, trouxe quase as mesmas previsões contidas na Constituição de

46, após a Emenda Constitucional nº10, acerca do direito de propriedade17 mas com

17 Art 150, caput e §22 da Constituição de 1967 – “A Constituição assegura aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança

e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

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uma grande diferença: a função social da propriedade passou a constar como princípio

constitucional basilar à ordem econômica.

“ Art 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com

base nos seguintes princípios:

(...)

III - função social da propriedade;”

Sob a égide da Constituição de 1967 surgiriam várias outras leis que limitaram o

livre exercício da propriedade privada como, por exemplo, a lei 6766/79 (lei de

parcelamento de solo urbano), a lei 6602/78 (lei que alterou a redação do decreto lei

3365/41, que trata sobre desapropriação por utilidade pública) e, a mais relevante para o

presente trabalho, a lei 6938/81, que estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente.

Embora todas as Constituições vistas neste capítulo tenham trazido dispositivos para

a proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural18, nenhuma delas tratou da

questão ambiental (ou sequer conteve o termo “meio ambiente” em seu texto).

“Jamais se preocupou o legislador constitucional em proteger o meio

ambiente em forma específica e global, mas, sim, dele cuidou de maneira

diluída e mesmo casual, referindo-se separadamente a alguns de seus

elementos integrantes (água, florestas, minérios, caça, pesca) ou então

disciplinando matérias com ele indiretamente ligadas (mortalidade

infantil, saúde,propriedade)” (FERRAZ et al, 1986, p.157 e 158)

§ 22 - É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade

pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no

art. 157, § 1º. Em caso de perigo público iminente, as autoridades competentes poderão usar da

propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior.”

18 Na Constituição de 34, art. 10,III e art. 148; na Constituição de 37, art.16, XIV, art. 18, alíneas “a” e

“e” e art. 134 ; na Constituição de 46, art. 175; na Constituição de 67, art. 8º,XVII, alínea “b”, art. 172,

art. 180, § único.

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A função social da propriedade veio progredindo em todas elas, mas foi apenas a

partir da Constituição de 1988, a primeira a se preocupar com a proteção ao meio

ambiente, que a função social da propriedade ganhou uma dimensão ecológica,

protegendo efetivamente o patrimônio ambiental, dando a essa função social os

contornos do que se pode chamar de função sócio-ambiental da propriedade.

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CAPÍTULO 2

2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A FUNÇÃO SÓCIO-

AMBIENTAL DA PROPRIEDADE

“A Constituição de 1988 pode muito bem ser denominada ‘verde’ tal o

destaque (em boa hora) que dá à proteção ao meio ambiente.

Na verdade, o Texto Supremo captou com indisputável oportunidade

o que está na alma nacional – a consciência de que é preciso aprender a

conviver harmoniosamente com a natureza- traduzindo em vários

dispositivos aquilo que pode ser considerado um dos sistemas mais

abrangentes e atuais do mundo a tutela do ambiente. A dimensão

conferida ao tema não se resume , a bem ver, aos dispositivos

concetrados especialmente no capítulo VI do título VIII, dirigido à

Ordem Social19 – alcança da mesma forma inúmeros outros regramentos

191919 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso

comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

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insertos ao longo do texto nos mais diversos títulos e capítulos,

decorrentes do conteúdo multidisciplinar da matéria” (MILARÉ, 2011, p.

184)

A Constituição de 1988 elevou o conceito de função social da propriedade a garantia

fundamental ao inserí-lo no artigo 5º, inciso XXIII, em que se lê: “a propriedade

atenderá sua função social”.

A função social da propriedade volta a aparecer na Lei Suprema no artigo 170,III ,

contido no título VII, que trata “Da Ordem Econômica e Financeira”, em seu capítulo I,

“Dos Princípios Gerais da Atividade Econõmica”.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho

humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência

digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes

princípios:

(…)

III - função social da propriedade;

§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado,

de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

§ 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.

§ 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.”

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Nas palavras do professor Édis Milaré , essa inserção da questão ambiental como

parte da ordem social “revela o caráter de finalidade que reveste a saúde humana (sadia

qualidade de vida) em face de direitos fundamentais do cidadão ou da sociedade como

um todo.” Enquanto que a inserção da função social da propriedade na ordem

econômica parece assumir, diante dos direitos sociais, “certo caráter instrumental, uma

vez que não pode constituir uma finalidade em si mesmo, embora seja indispensável à

consecução do bem-estar da coletividade e à sustentabilidade do desenvolvimento

nacional.” (MILARÉ,2011, p.661-662)

Mas como determinar se a propriedade cumpre essa função social expressa na

Constituição? No capítulo anterior, vimos que os requisitos para que a propriedade rural

cumpra sua função social estão contidos no art. 2º da lei 4504/64, recepcionada pela

atual Constituição, e ainda no art. 186 da Carta Magna, onde há uma menção expressa à

função sócio-ambiental da propriedade rural:

“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,

simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em

lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” (grifo próprio)

A lei 8629/93, que veio para regulamentar as disposições constitucionais relativas à

reforma agrária prevê, em seu art. 2º, caput , que a pena para o descumprimento da

função social pela propriedade rural é a “desapropriação, nos termos da lei, respeitados

os dispositivos contitucionais.”

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Essa lei define também, em seu art. 9º, §§ 3º e 4º os parâmetros para a “utilização

adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”, requisitos

constitucionais para que a propriedade rural cumpra sua função social.

“Art. 9º (…)

§ 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das

características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos

ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da

propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.

§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho

implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de

trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de

arrendamento e parceria rurais.”

Quanto à propriedade urbana, a Constituição traz, em seu art. 182,§2º:

“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder

Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por

objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e

garantir o bem- estar de seus habitantes.

(…)

§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende

às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano

diretor.”

Na verdade, a função social da propriedade atingiu na Constituição de 88 uma

importância tamanha que sua inexistência poderá acarretar em uma série de sanções que

podem ser sucessivamente aplicadas pela administração pública, chegando até mesmo à

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perda do próprio direito de propriedade por meio de desapropriação, conforme o artigo

182, §4º da Constituição.

“Art. 182(...)

§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica

para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do

proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado,

que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente,

de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo

no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública

de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de

resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas,

assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”

2.1- A função sócio ambiental da propriedade urbana no Estatuto das Cidades (lei

10257/01)

O Estatuto das Cidades veio, conforme disposto em seu artigo 1º20, regulamentar os 21artigos 182 e 183 da Constituição, que tratam da política de desenvolvimento urbano,

20 “Art. 1o Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição

Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.

Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas

de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da

segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (grifo próprio)

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e traz, em seu artigo 2º as diretrizes gerais para ordenar o desenvolvimento das funções

sociais da cidade e da propriedade urbana,com destaque aqui para os incisos I; IV; VI, g

; XI e XII, devido ao escopo do presente trabalho:

“Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,

mediante as seguintes diretrizes gerais:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à

terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura

urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para

as presentes e futuras gerações;

(...)

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição

espacial da população e das atividades econômicas do Município e do

território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as

distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio

ambiente;

(...)

VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

(…)

g) a poluição e a degradação ambiental;

(...)

XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e

construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e

arqueológico;” (grifo próprio)

O Estatuto das Cidades não é uma lei auto-aplicável por sua própria natureza. Essas

diretrizes devem ser obedecidas quando da criação de Planos Diretores, definidos pelo

Estatuto (em seu artigo 40) como o instrumento básico da política de desenvolvimento e

expansão urbana no âmbito dos municípios. A efetividade do Estatuto da Cidade, e por

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conseguinte das diretrizes, dependerá da aprovação, por lei de competência municipal,

do Plano Diretor e das leis que dele decorram, já que o art. 30, incisos I e II da

Constituição Federal dispõe:

“Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;”

Quanto à definição de plano diretor:

“O CEPAM- Centro de Estudos e Pesquisas de Administração

Municipal- orgão do governo do Estado de São Paulo voltado para a

assessoria aos Municípios, define o plano diretor como um plano de

desenvolvimento municipal, devendo abranger todos os aspectos da

Administração Pública (inclusive o apoio ao desenvolvimento econõmico

e as políticas sociais). Nenhuma de suas recomendações é diretamente

aplicável. Aprovado por lei complementar, deve ser regulamentado por

leis ordinárias que terão de atender suas diretrizes. Na dimensão

urbanística, o plano diretor contemplaria os seguintes aspectos : traçado

do sistema viário principal; localização dos terminais do sistema de

transporte; densidades máximas e mínimas permitidas; sistema municipal

de drenagem de águas pluviais; elementos do meio ambiente natural e

cultural a serem preservados; localização preferencial das atividades

econômicas; padrões de utilização dos recursos naturais; áreas

preferenciais de ocupação e expanção urbana de parcelamneto ou

edificação compulsórios. Também para o IBAM- Instituto Brasileiro de

Administração Municipal – o plano diretor constitui-se de um plano de

desenvolvimento do Município. Seus principais componentes seriam:

anteprojetos executivos de fomento ao desenvolvimento e ações de

proteção ao meio ambiente. O plano conteria ainda diretrizes relativas à

estrutura organizacional da prefeitura e aos programas setoriais.

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Recomenda-se a aprovação do plano diretor por lei complementar.”

(PINTO, 2005, p.144)

Ainda sobre a função sócio-ambiental da propriedade no Plano Diretor, o artigo 39

da lei 10257/01 faz nova referência às diretrizes de seu artigo 2º para cumprimento da

função social da propriedade:

“A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às

exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano

diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto

à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades

econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei.”(grifo

próprio)

Para ressaltar ainda mais o significado do Plano Diretor como instrumento de gestão

ambiental, o artigo 52 do Estatuto das Cidades estabelece que os agentes públicos,

inclusive o próprio prefeito, poderão incorrer em improbidade administrativa em caso de

ofensas às normas para a criação e implementação do Plano Diretor , e serem punidos

em conformidade com a lei 8429/92.

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CAPÍTULO 3

3.A FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL DA

PROPRIEDADE NO CÓDIGO CIVIL

Como já tratado na introdução, o Código Civil de 1916 não trouxe grandes restrições

ao direito de propriedade. Seu texto sofreu grande influência do conservadorismo dos

legisladores, que resistiram às idéias socialistas que surgiam na Europa em prol da

doutrina do individualismo jurídico.22

“Verifica-se, pois, que no período de elaboração do Código Civil,

algumas tentativas de introduzir a legislação social foram feitas através

de projetos legislativos sobre a matéria de acidentes de trabalho, nos

quais perspassa o sopro das novas idéias que consquistavam terreno nos

países mais adiantados da Europa. Mas esse movimento não exerceu

qualquer influência no código que se elaborava simultaneamente. A

mentalidade dominante conservava-se fiel ao individualismo jurídico,

mais consentâneo, então, com o grau de desenvolvimento das forças

produtivas do país.” (GOMES, 2003, p.24)

A evolução das idéias socialistas dentro da seara legal da época, incorporadas inicialmente à Constituição de Weimar de 1919 e se espalhando por diversos textos

normativos da época, veio ganhando espaço, progressivamente, dentro do ordenamento

pátrio, assunto já tratado de forma mais extensa nos capítulos anteriores.

22 “ O individualismo jurídico significa que as relações de direitos e deveres têm como agente as pessoas

humanas. Coletividades não podem possuir direitos ou deveres a não ser pela coincidência desses com os

indivíduos que as compõem.” (Trecho retirado da Wikipédia. Disponível em:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Liberalismo. Acesso em: 20 de janeiro de 2013.)

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A função social da propriedade, incorporada primeiramente pela lei 4504/64, passou a

fazer parte do texto da carta magna a partir da Constituição de 1967 e posteriormente da

Constiituição de 1988, em que foi alçada à condição de garantia fundamental O conceito

de propriedade contido no Código Civil de 1916 foi, então, permeado pela função social

imposta a ele pela Constituição.

“No Brasil, o Código Civil de 1916 ainda espelhava a concepção clássica

da propriedade, fator que contribuiu para que muitas dessas limitações

ingressassem no ordenamento jurídico pela via constitucional.

Neste passo, a Constituição Federal de 1988 apresenta especial relevo

ao colmatar lacunas deixadas pelo Código Civil de 1916 disciplinando

matérias antes reguladas, exclusivamente, por este último diploma.

Figurando como verdadeiro instrumento de harmonização dos interesses

sociais.” (PEIXOTO, 2005, p.31)

Os doutrinadores e juristas, à época, se utilizaram ainda da interpretação do art. 5º do

Decreto-Lei 4657/4223 (antiga Lei de introdução ao Código Civil, renomeada em 2010

pela lei 12376 como Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro) para possibilitar

que os juizes, ao aplicarem a lei, pudessem fazer valer o princípio da função social da

propriedade contido na Constituição.

Outra inovação trazida pela Consituição de 1988 que viria a influenciar a lei civil seria

a preocupação com a questão ambiental. Não obstante o Código de 1916 não tratar

sequer de função social da propriedade ou de meio ambiente, alguns doutrinadores

percebem nele o aparecimento de “normas de colorido ecológico destinadas,

23 Art. 5º, lei 4657/42 - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às

exigências do bem comum.”

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fundamentalmente, à proteção de direitos privados na composição de conflitos de

vizinhança.” 24 (MILARÉ, 2011, p.1044)

Além das mudanças na mentalidade dos legisladores, que adotaram uma postura

mais próxima ao socialismo, dando foco maior à função social e ambiental da

propriedade, outros fatores responsáveis pelas alterações na lei civil foram a migração

da maior parte da população do campo para as cidades e o aumento da produção

industrial.

Em 2002 foi promulgado um novo Código Civil que melhor se adequa às

mudanças de paradigma e às necessidades contemporâneas.

“A propriedade não mais ostenta aquela concepção individualista do

Código Civil de 1916, direcionado a uma sociedade rural e agrária, com a

maior parte da população vivendo no campo. Hoje, com o predomínio de

uma sociedade urbana aberta aos imperativos da socialização do

progresso, ‘afirma-se cada vez mais forte o seu sentido social, tornando-

se assim, não instrumento de ambição e desunião dos homens, mas fator

de progresso, de desenvovlimento, de bem estar e união’.” (MILARÉ ,

2011, p. 1078)

A nova lei civil brasileira contemplou a função ambiental da propriedade como

requisito para o exercício do próprio direito de propriedade em seu artigo 1228, §1º,

dando ainda mais eficácia às disposições constitucionais.

“ Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da

coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a

possua ou detenha.

24 Como um bom exemplo, o art. 584 :”São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar para o

uso ordinário a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente.”

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§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as

suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados,

de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as

belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e

artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”(grifo próprio)

Quanto ao direito de propriedade no Código Civil atual, disse Miguel Reale: “não foi

mais considerada sem limites a fruição do próprio direito, reconhecendo-se que este

deve ser exercido em benefício da pessoa, mas sempre respeitados os fins ético-sociais

da comunidade a que o seu titular pertence”. (REALE, 2003. p.A-2)

O Código Civil também protege a função social da propriedade nos contratos

firmados anteriormente à sua vigência ao prever que “nenhuma convenção prevalecerá

se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código

para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”25. Seguindo essa linha de

raciocínio, é possível dizer que nenhuma convenção entre particulares anterior ao

Código Civil de 2002 que desrespeite a função ambiental da propriedade (já

exaustivamente estabelecida como parte integrante da função social) será válida.

25 Art. 2035, parágrafo único do Código Civil

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CONCLUSÃO

A Carta de Campos do Jordão, resultante do 1º Congresso do Meio Ambiente do

Ministério Público de São Paul, realizado em outubro de 1997, parece resumir bem a

nova situação do direito de propriedade na ordem jurídica pós Constituição de 88 no

país ao dizer :

“O conceito de propriedade sofreu alteração com a disposição do

necessário cumprimento da função social, agora também na sua forma de

função sócio-ambiental, perdendo seu caráter de instituição

exclusivamente de direito privado, para sê-lo também de direito público.

A função social da propriedade não se confunde com eventuais

restrições a esse direito mas, ao contrário, faz parte da sua estrutura.”

(SOUZA, 1997, p.3)

Diante de tudo o que foi exposto, é possível concluir que a função sócio-ambiental da

propriedade é um dos pilares de uma garantia fundamental, uma vez que para que a

função social da propriedade seja atendida a propriedade deve atender não só sua função

econômica e social mas também sua função ambiental, visando atender ao bem estar e à

saúde da coletividade.

O cumprimento razoável das regras ambientais, no entanto, está aquém daquele ideal

para um país que possui uma boa legislação ambiental e uma Constituição que se

preocupa com as questões ambientais. De acordo com o autor Édis Milaré, na raiz desse

problema “está o desajuste acentuado entre as estruturas formais (legislação,planos e

projetos governamentais, burocracia oficial,etc.) e as estruturas reais (concretização de

políticas públicas, alocação e administração de recursos, o fosso existente entre a

Adminstração Pública e os muitos segmentos da sociedade com sua cultura e

organização própria).”(MILARÉ, 2011, p.1052)

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As estruturas formais e reais do país são complexas mas a adequação entre elas é

fundamental para que se obtenha um mínimo de eficácia na solução dos problemas mais

urgentes pois sem meios adequados para a implementação das leis, toda a estrutura

normativa se desfaz. Como disse o filósofo e político Montesquieu “quando vou a um

país, não examino se são boas as leis, mas se são executadas as que há, pois boas leis

existem em toda parte”.

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ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 2

AGRADECIMENTO 3

CITAÇÃO 4

RESUMO 5

METODOLOGIA 6

SUMÁRIO 7

INTRODUÇÃO 9

Breve história da propriedade privada no Brasil 14

CAPÍTULO I - Função Social da Propriedade 17

1.2 -Evolução histórica da função social da propriedade 20

no Brasil

CAPÍTULO II - A Constituição de 1988 e a função 28

sócio-ambiental da propriedade

2.1 A função sócio-ambiental da propriedade urbana no 32

Estatuto das Cidades (lei 10257/01)

CAPÍTULO III- A função sócio ambiental da propriedade no 36

Código Civil

CONCLUSÃO 40

CONCLUSÃO 48

ANEXOS 49

BIBLIOGRAFIA 45

INDICE 46