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SIMONE PETRAGLIA KROPF
Doena de Chagas, doena do Brasil: cincia, sade e nao (1909-1962)
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Histria. rea de Concentrao: Histria Social.
Orientador: Prof . Dr. Andr Luiz Vieira de Campos
Niteri
2006
SIMONE PETRAGLIA KROPF
Doena de Chagas, doena do Brasil: cincia, sade e nao (1909-1962)
Aprovada em junho de 2006
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de Doutor em Histria. rea de Concentrao: Histria Social.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________ Prof. Dr. Andr Luiz Vieira de Campos (orientador)
Departamento de Histria/Universidade Federal Fluminense
________________________________________________________ Prof Dr Silvia F.M. Figueira
Instituto de Geocincias/Universidade de Campinas
________________________________________________________ Prof. Dr. Jaime L. Benchimol
Casa de Oswaldo Cruz/Fundao Oswaldo Cruz
________________________________________________________ Prof Dr ngela M. de Castro Gomes
Departamento de Histria/Universidade Federal Fluminense
________________________________________________________ Prof. Dr Magali Engel
Departamento de Histria/Universidade Federal Fluminense
_______________________________________________________ Prof Dr Nsia Trindade Lima (suplente)
Casa de Oswaldo Cruz/Fundao Oswaldo Cruz
________________________________________________________ Prof. Dr. Ronald Raminelli (suplente)
Departamento de Histria/Universidade Federal Fluminense
K93d Kropf, Simone Petraglia Doena de Chagas, doena do Brasil: cincia, sade e nao (1909-1962) /
Simone Petraglia Kropf.--- Niteri, 2006. 2 V. Tese (Doutorado em Histria Social) Universidade Federal Fluminense, 2006.
Bibliografia: f. 497-513.
1. Doena de Chagas. 2. Histria 3. Trypanosoma Cruzi
4. Histria das Cincias 5. Histria da Medicina 6.Sade Publica 7. Brasil. CDD 616.9363
Para Gilberto e Ana Clara
RESUMO O objetivo deste estudo analisar o processo pelo qual a doena de Chagas ou tripanossomase americana (descoberta em 1909, em Minas Gerais, por Carlos Chagas, mdico e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz/IOC) foi estabelecida e reconhecida como um fato cientfico e uma questo de sade pblica no Brasil. Para isso, focalizamos dois momentos deste processo, no qual a definio da nova doena tropical como entidade nosolgica especfica deu-se de modo indissociado de sua caracterizao como fato social, a representar uma dada viso da cincia e da sociedade brasileiras. Numa primeira fase, abordamos as pesquisas realizadas por Chagas e seus colaboradores, no IOC, desde 1909 at o seu falecimento, em 1934. Desde 1910, os enunciados sobre o quadro clnico e a importncia mdico-social da nova enfermidade ensejaram o debate sobre as condies do atraso das regies do interior do pas, a relao entre endemias rurais e identidade nacional e o papel social da cincia. Tal debate culminaria no chamado movimento pelo saneamento dos sertes, entre 1916 e 1920. Ao mesmo tempo, tais enunciados foram objeto de crticas, formuladas inicialmente na Argentina, entre 1915 e 1916, e aprofundadas no campo mdico brasileiro, entre 1919 e 1923. Estes questionamentos marcaram de modo decisivo o encaminhamento dos estudos sobre a doena. Um segundo momento de nossas anlise diz respeito s pesquisas realizadas, aps 1934, por dois discpulos de Carlos Chagas em Manguinhos: Evandro Chagas, seu filho mais velho e criador do Servio de Estudo das Grandes Endemias (SEGE), e, principalmente, Emmanuel Dias, que dirigiu o Centro de Estudos e Profilaxia da Molstia de Chagas (CEPMC), posto do IOC na cidade de Bambu, Minas Gerais, desde sua criao, em 1943, at seu falecimento em 1962. Nesta fase, foram estabelecidos um novo enquadramento para a fisionomia clnica da doena e os recursos tcnicos para a sua profilaxia, mediante aplicao de inseticidas. Tal processo transcorreu sob as condies histricas especficas da sociedade brasileira ps-1930 e sob os significados particulares conferidos relao entre sade e desenvolvimento nos cenrios internacional e nacional, especialmente a partir da II Guerra Mundial. Mediante intensa mobilizao dos cientistas para difundir os conhecimentos sobre a doena e conquistar o interesse de distintos grupos sociais, foram produzidos os meios para que, durante a dcada de 1950, a tripanossomase americana fosse reconhecida publicamente e se institucionalizasse como objeto cientfico e tema inscrito nas polticas sanitrias do Estado brasileiro.
ABSTRACT This study analyzes the process by which Chagas disease, or American trypanosomiasis, was established and recognized as a scientific fact and a public health issue in Brazil. This tropical disease was discovered in 1909, in the state of Minas Gerais, by Carlos Chagas, physician and researcher at the Oswaldo Cruz Institute (IOC). The process of its definition as a specific nosological entity was something that occurred concomitantly with its characterization as a social fact, representing a specific outlook of Brazilian science and society. Focusing on two moments in the process, I first address the research conducted by Chagas and his collaborators at the Institute from 1909 until his death in 1934. Starting in 1910, statements concerning the new diseases clinical presentation and its medical and social importance stirred a debate encompassing basically three questions: the backward conditions characterizing the serto (Brazilian hinterlands), the relationship between diseases endemic to rural areas and national identity, and the social role of science. The debate was to culminate in the 1916-20 rural sanitation movement. Furthermore, these statements were the object of criticisms raised first in Argentina (1914-16) and then expanded within the Brazilian medical field (1919-23), coming to have a decisive impact on the direction of research into the disease and on public recognition of it as a social issue. My second point of analysis focuses on the post-1934 research conducted by two disciples of Carlos Chagas at Manguinhos: Evandro Chagas, his elder son and founder of the Servio de Estudo das Grandes Endemias (SEGE, or Bureau for Studies on Major Endemic Diseases), and, chiefly, Emmanuel Dias, who directed the Centro de Estudos e Profilaxia da Molstia de Chagas (CEPMC, or Center for Studies and Prophylaxis on Chagas Disease, an IOC post in the city of Bambu, Minas Gerais) from its creation in 1943 until his death in 1962. This period saw a reframing of the diseases clinical physiognomy and the development of technical methods for preventing it, through the use of insecticides. Forming the backdrop of this process were the unique historical circumstances of post-1930 Brazilian society and, further, the specific meanings assigned to relations between health and development on the international and national fronts, particularly as of World War II. Scientists mobilized their forces to disseminate knowledge of the disease and to interest various social groups in the topic. During the 1950s, these efforts fostered public recognition and the institutionalization of Chagas disease as a scientific object and an issue on the roster of the Brazilian governments sanitary policies.
NDICE
VOLUME 1
AGRADECIMENTOS p.01
INTRODUO p. 05
CAPTULO 1 - MEDICINA TROPICAL E CINCIA NACIONAL: CARLOS CHAGAS E A DESCOBERTA DE UMA NOVA TRIPANOSSOMASE HUMANA
p. 31
1.1 - Medicina nos trpicos antes de Pasteur, Manson e Oswaldo Cruz p. 35
1.2 - Carlos Chagas e um bando de idias novas: formao mdica,
microbiologia e medicina tropical p. 48
1.3 - A tese de doutoramento: o primado do laboratrio (1902-1903) p. 66
1.4 - Chagas e as campanhas de profilaxia da malria: a ida ao campo e a
expanso de Manguinhos p. 73
1.5 - O Instituto Oswaldo Cruz e a medicina tropical p. 81
1.6 - Descoberta no interior de Minas: um vetor, um parasito e uma nova
doena tropical (1908-09) p. 87
1.7 - Os sentidos da descoberta p. 95
CAPTULO 2 - MOLSTIA TROPICAL, ENDEMIA DOS SERTES: O DESENHO DA DOENA DO BRASIL (1910-1913)
p. 107
2.1 O primeiro quadro clnico: a tireoidite parasitria e o selo da doena p. 110
2.2 - O encontro da Academia com o serto: o espetculo da doena p. 123
2.3 - Endemias rurais, obstculo ao progresso: a tripanossomase brasileira p. 141
CAPTULO 3 - ENTRE DVIDAS E GLRIAS: A TRIPANOSSOMASE AMERICANA NO FOCO DA CINCIA E DA POLTICA (1914-1918)
p. 156
3.1 - Bociosos, vinchucas e nenhum caso da tripanossomase: controvrsia
na Argentina (1914-1916) p. 157
3.2 - A resposta de Chagas aos argentinos p. 165
3.3 - A reviso de Chagas: um novo desenho clnico para a tripanossomase
americana p. 172
3.4 - A doena do Brasil e o movimento pelo saneamento dos sertes: trs
milhes de idiotas e papudos (1916-1918) p. 176
3.5 - Carlos Chagas na cena pblica p. 194
CAPTULO 4 - CALAMIDADE NACIONAL OU MAL DE LASSANCE? A DOENA DO BRASIL EM QUESTO (1919-1934)
p. 198
4.1 - Os primeiros movimentos da contenda (1919-1920) p. 199
4.2 - A polmica na Academia Nacional de Medicina (1922-1923) p. 207
4.3 - A sentena: mrito reconhecido, questes em aberto p. 218
4.4 - Uma polmica para a histria p. 228
4.5 - Os caminhos de Chagas e da doena aps a polmica (1923-1934) p. 239
4.6 - Uma doena a ser procurada pelos clnicos p. 248
VOLUME 2
CAPTULO 5 - MANGUINHOS E A SADE PBLICA A PARTIR DE 1930: NOVOS CAMINHOS PARA O ESTUDO DAS ENDEMIAS RURAIS
p. 255
5.1 - O Instituto Oswaldo Cruz e as novas estruturas da sade pblica ps-1930
p. 255
5.2 - Evandro Chagas e o Servio de Estudo das Grandes Endemias (SEGE) p. 264
5.3 - Uma guerra mundial contra as doenas: o otimismo da era DDT p. 272
5.4 - O Instituto Oswaldo Cruz entre dois projetos p.
282
5.5 - Manguinhos vai guerra: o reencontro com a sade pblica p. 288
5.6 - Uma nova agenda para o saneamento do interior p. 295
5.7 - Combatendo endemias em Minas Gerais: as preocupaes com a
superao do atraso econmico p. 299
CAPTULO 6 - DE VOLTA ARGENTINA E AO SERTO MINEIRO: OS ESTUDOS SOBRE A DOENA APS CARLOS CHAGAS (1935-1943)
p. 303
6.1 - Novo encontro com os argentinos: um sinal clnico para os mdicos do
interior
p. 304
6.2 - O SEGE e as pesquisas sobre a tripanossomase americana p. 316
6.3 - Um front para a luta: a criao do Centro de Estudos e Profilaxia da
Molstia de Chagas (CEPMC) p. 324
CAPTULO 7 - IDENTIFICANDO O INIMIGO E AS ARMAS: AS PESQUISAS DO INSTITUTO OSWALDO CRUZ EM BAMBU, MINAS GERAIS (1943-1949)
p. 331
7.1 - Guerra aos vetores: testando estratgias p. 331
7.2 - A arma qumica contra os barbeiros p. 340
7.3 O primado da clnica: o olhar da cardiologia p. 342
7.4 - O eletrocardiograma e os novos traados para a doena: a cardiopatia
chagsica crnica p. 349
7.5 - Convencendo os que ainda queriam ver o parasito p. 358
7.6 - Provando os enunciados do mestre: novo enquadramento para a
tradio p. 362
CAPTULO 8 - PARA ALM DO LABORATRIO: ARREGIMENTANDO ALIADOS NA GUERRA CONTRA A DOENA DO CORAO DO BRASIL (1942-1950)
p. 371
8.1 - O apelo aos mdicos p. 372
8.2 - A divulgao nos fruns mdico-cientficos p. 382
8.3 - Ampliando as associaes para conquistar as agncias sanitrias p. 387
8.4 - Os mdicos do Brasil Central e a doena do serto p. 393
8.5 - A primeira campanha (1950) p. 399
8.6 - O otimismo do ps-guerra: um mundo confiante no desenvolvimento p. 407
8.7 - Sade e desenvolvimento na democratizao brasileira p. 411
8.8 A recuperao econmica do celeiro do Brasil p. 415
CAPTULO 9 - A DOENA DE CHAGAS EM TEMPOS DE DESENVOLVIMENTO (1951-1962)
p. 422
9.1 Sade, desenvolvimento e endemias rurais na dcada de 1950: o
crculo vicioso da doena e da pobreza p. 422
9.2 A tripanossomase americana em destaque nos eventos mdico-
sanitrios
p. 428
9.3 Pedidos ao Doutor Dias: a doena vista pela populao p. 435
9.4 Novos espaos de pesquisa p. 438
9.5 A doena do Brasil Central na era JK p. 443
9.6 Divergncias na guerra aos barbeiros p. 451
9.7 A busca de novos aliados: doena de Chagas como problema
continental
p. 454
9.8 Um fato da cincia e da sade pblica: novas perspectivas e desafios p. 460
CONSIDERAES FINAIS p. 466
FONTES ARQUIVSTICAS p. 479
FONTES IMPRESSAS p.481
FONTES ORAIS p. 499
BIBLIOGRAFIA p. 500
ANEXO IMAGENS p. 517
1
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeo a meu orientador, Andr Luiz Vieira de Campos, cujo
compromisso com o ofcio da orientao eu muito admiro, pela ateno sempre presente, pela
leitura cuidadosa das minhas muitas pginas, por todas as sugestes e comentrios e pelo
carinho e a confiana com que me acolheu durante estes anos, ao final dos quais chego no
apenas com uma tese, mas com um novo e querido amigo.
Ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense,
agradeo as condies para a realizao deste trabalho, entre as quais a disciplina Viagens
cientficas e colonialismo, ministrada pelo Prof. Ronald Raminelli, que me proporcionou,
alm de amplas discusses sobre cincia, a oportunidade de aprofundar minhas leituras de
Bruno Latour.
s professoras Silvia Figueira e ngela de Castro Gomes, que compuseram minha
banca de qualificao, sou muito grata pelos comentrios e sugestes, e pela oportunidade de
t-las, junto aos professores Jaime Benchimol e Magali Engel, em minha banca de defesa.
Casa de Oswaldo Cruz instituio em que, desde 1991, quando fui bolsista de
iniciao cientfica, venho trilhando minha vida profissional agradeo pelas amplas
condies proporcionadas para que eu desenvolvesse este estudo, condies preciosas e raras
no cenrio acadmico brasileiro. A COC e seus profissionais permitiram-me realizar esta tese
no como um esforo solitrio, mas como caudatria de um empreendimento que, em vinte
anos comemorados a partir deste ms de maio, conformou no apenas uma equipe de
trabalho, mas um campo de pensamento no domnio da histria.
Foi no mbito do Programa de Ps-Graduao em Histria das Cincias e da Sade da
COC que cursei a disciplina Histria e historiografia da sade pblica. Ministrada por
Jaime Benchimol e Gilberto Hochman, ela foi fundamental, pela bibliografia e pelas questes
discutidas, para alguns encaminhamentos tericos seguidos na tese. Como ouvinte, cursei no
mesmo programa, a disciplina Sociologia da cincia, oferecida por Nara Azevedo e Luiz
Otvio Ferreira, que igualmente constituiu uma ocasio de grande importncia para alinhavar
a perspectiva terica que adoto neste trabalho.
Agradeo a meus colegas do Departamento de Pesquisa da COC, que por tanto tempo
me ouviram falar de Carlos Chagas, doena de Chagas e assuntos correlatos, e que
compartilharam, nos corredores e almoos, os passos desta longa trilha. A Maria Rachel Fres
da Fonseca, pelos muitos envelopes de seu arquivo de biografados do precioso Dicionrio
Histrico e Biogrfico da Sade Pblica e das Cincias Biomdicas. A Flvio Edler, pelas
2
conversas sobre assuntos mdicos e pela leitura crtica que fez da seo deste trabalho relativa
medicina no sculo XIX. A minha mais nova companheira de trabalho, Magali Romero S,
a quem recorri muitas vezes para esclarecer dvidas e discutir questes relativas medicina
tropical. A Cristina Fonseca, pelo carinho sempre presente e por importantes referncias e
informaes que me forneceu sobre sade pblica na era Vargas. A Ana Teresa Venncio, por
indicaes bibliogrficas acerca do debate em torno das patologias mentais no incio do
sculo XX. A Nsia Trindade Lima, com quem compartilho do encanto pelos caminhos dos
sertes, agradeo pelas conversas que, desde o centenrio do clssico de Euclides da Cunha,
temos tido sobre os personagens que habitam este mundo, conversas estas que, mais
recentemente, vm gerando agradveis trocas tambm com Dominichi Miranda de S. A estes
e a todos os outros colegas, como Marcos Chor Maio, Robert Wegner, Anna Beatriz de S
Almeida, Laurinda Maciel e ngela Porto, sou grata pelo apoio e pelo carinho.
Luiz Otvio Ferreira, meu professor e orientador de graduao no Departamento de
Sociologia da PUC/RJ, no apenas despertou meu interesse pela histria dos intelectuais e da
cincia, mas, ao fazer-me reescrever por duas vezes um captulo de minha monografia,
ensinou-me que o trabalho intelectual para ser feito e refeito, tantas vezes quantas forem
necessrias, com persistncia e dedicao.
A Nara Azevedo e a Luiz Otvio, com quem trabalhei, inicialmente como bolsista de
aperfeioamento, no projeto que coordenavam sobre a histria da doena de Chagas, agradeo
muitas coisas. Em primeiro lugar, o encontro com este tema, que abracei desde 1998, quando,
com Fernando Pires Alves, coordenei o projeto da Biblioteca Virtual Carlos Chagas. Alm
disso, a grande amizade, compartilhada tambm com Wanda Hamilton, que se juntou ao
grupo em outros projetos, entre os quais o que abordou a trajetria do IOC nas dcadas de
1940 e 1950. Com Luiz Otvio e Nara, que leram tantos textos meus sobre doena de Chagas
alm deste trabalho, e com quem publiquei artigos que aguaram ainda mais meu desejo de
realizar esta tese, aprendi, na prtica, o princpio terico que a orienta: o conhecimento um
processo coletivo. Nas incontveis horas em que, com Nara, conversei sobre a cincia de
Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, muitas vezes fora das salas da COC, reafirmei que o lema de
Vinicius de Morais vale tambm para o trabalho intelectual: s sei que preciso paixo!
Foi no espao deste grupo, por sua vez inscrito no grupo maior que o Departamento
de Pesquisa da COC, que me formei como pesquisadora e recebi os instrumentos tericos e as
condies materiais para realizar o meu trabalho. E, privilgio ainda maior, este grupo legou-
me os referenciais afetivos para que ele pudesse ser feito como uma tessitura que se cria no
3
tempo, alinhavada pelo prazer. J que se falar em Thomas Kuhn, este o paradigma mais
slido do qual sou seguidora, com muito orgulho.
A outros profissionais da COC, tambm registro meus agradecimentos. A Claudia
Costa, Sheyla Lacerda e Rogrio da Silva Brum, da Secretaria do Departamento de Pesquisa,
que nos auxiliam, de distintas maneiras, no encaminhamento da vida institucional. A Jean
Maciel e, em especial, a Rose Oliveira, arquivistas da Sala de Consulta do Departamento de
Arquivo e Documentao, que com competncia, ateno e presteza me auxiliaram no acesso
s dezenas de caixas de documentos nas quais mergulhei durante estes anos. equipe da
Biblioteca, particularmente a Wanda Weltman, sempre solcita na busca de livros e
publicaes diversas, muitas vezes em bibliotecas fora do Rio de Janeiro, e equipe do
Arquivo Iconogrfico da COC, em especial a Roberto Jesus Oscar, que digitalizou as imagens
que compem o Anexo.
Agradeo ainda a Rita de Cssia Marques, historiadora do Programa de Ps-
Graduao em Enfermagem da UFMG, que gentilmente enviou-me de Belo Horizonte alguns
documentos e textos.
Entre os muitos mdicos que entrevistei sobre a histria da pesquisa sobre a doena de
Chagas no Brasil, agradeo particularmente ao Dr. Joo Carlos Pinto Dias, doador do arquivo
constitudo por seu pai, Emmanuel Dias, no Centro de Estudos e Profilaxia de Molstia de
Chagas em Bambu, Minas Gerais, precioso e vasto material de pesquisa que utilizei neste
trabalho. Foi uma honra ouvi-lo, em seu logo e valioso depoimento e em outras conversas,
sobre Carlos Chagas e seus seguidores.
Ao Dr. Anis Rassi, que pacientemente e com muita solicitude, deu-me uma aula de
cardiologia e de doena de Chagas, agradeo o esclarecimento das muitas dvidas que
enfrentei ao aventurar-me neste fascinante campo do conhecimento mdico.
E, muito especialmente, ao Dr. Joffre Rezende, que com sua gentileza bem-humorada
disse-me, em uma das muitas mensagens que trocamos entre o interior e o litoral, que eu
havia sido inoculada com a paixo que a histria de Carlos Chagas desperta e que, para este
mal, no h cura... com o maior respeito e admirao que agradeo ao meu caro Dr. Joffre
que, depois de tantas conversas, considero um amigo pela enorme disponibilidade em
responder minhas muitas perguntas e em orientar-me. A ele, que tem um papel to importante
na histria da medicina brasileira, sou grata por me ajudar a compreender os vrios sentidos
da tradio que uniu Manguinhos aos mdicos do Brasil Central.
A estes mdicos, zelosos guardies da memria de Carlos Chagas e que fazem parte
desta histria, manifesto a expectativa de que compreendam que a perspectiva da historiadora,
4
ao refletir sobre os caminhos da consagrao de Carlos Chagas e tambm sobre seus
percalos, controvrsias e sobre suas idias que foram abandonadas, a de compreender que a
cincia, inclusive a dos grandes nomes, feita de trilhas complexas, numa composio de
acertos e desacertos, idas e vindas, como qualquer atividade humana.
Registro ainda meus agradecimentos aos que, fora do domnio profissional, trouxeram
apoios fundamentais no percurso que me trouxe at aqui.
Minha amiga Ktia Lerner, companheira desde os tempos da graduao e que, como
eu, viveu nos ltimos trs anos a experincia de ser me fazendo tese, compartilhou
comigo, como ningum, os sentimentos, medos e alegrias que isso significa.
Meu av Francisco Petraglia, minha av Rene, minha tia-av Nadyr, apesar de j
terem partido h alguns anos, acompanham-me na memria, como parte especial de minha
prpria histria. Com eles aprendi, desde cedo, o gosto pelos relatos dos tempos passados.
Minha prima-av Neusa Feital Wrhle, pioneira da educao no Brasil, nos seus 90 anos,
conta com a minha profunda admirao. prima Neusa, agradeo o apoio para que eu
seguisse, da graduao ao doutorado, esse caminho do saber que ela prpria trilhou, numa
poca em que eram poucas as mulheres que a isso se aventuravam.
A meus pais e meu irmo, agradeo pelo carinho de sempre e pela experincia de ter, a
partir do nascimento de Ana Clara, re-aprendido o sentido de famlia e recomposto, sob um
afeto renovado, os laos que nos unem.
A Gilberto Hochman, meu querido Gil, que leu com tanta ateno cada parte deste
trabalho, um registro mais do que especial. Companheiro de muitas e intensas travessias, que
esteve ao meu lado a cada minuto destes ltimos seis anos, em todos os sentidos, com quem
dividi no apenas meus afetos, mas todos os passos deste caminho profissional, minhas
questes, minhas dvidas, meu entusiasmo, e de quem eu recebi preciosos apoios, no sentido
intelectual, no sentido afetivo e tambm nos sentidos mais corriqueiros de uma vida
compartilhada. A voc, o meu amor. E a feliz constatao de que, mesmo sem termos subido
ao altar, temos honrado o juramento de fazer com que nosso casamento seja para sempre, na
sade e na doena ... de Chagas.
E, acima de tudo, agradeo minha filha, que, ao longo destes dois anos e sete meses,
trouxe um sentido absolutamente novo para minha vida, ao me mostrar que o afeto
sobretudo este que to especial permite-nos enfrentar todos os desafios e seguir nossa vida
com prazer. Graas minha to amada Aninha, apesar das tenses, das angstias e do cansao
inerentes a um trabalho como este, eu pude realiz-lo entre cantigas de roda, brinquedos e
programas do Discovery Kids com muita alegria.
5
INTRODUO
Em 1958, quando o trao de arquitetos modernistas riscava, no Brasil Central, os
contornos do que se esperava ser a nova capital do desenvolvimento, um mdico goiano
lamentava a triste sorte dos trabalhadores do interior do pas, acometidos pela doena de
Chagas ou tripanossomase americana, descoberta quase cinqenta anos antes, nos sertes de
Minas Gerais.
Vis insetos, prias do campo, Dizimadores em srie do meu povo. Apetrechos que no desintegram o ncleo Mas bombardeiam impiedosamente Aqueles que mais trabalham. Claudica a enxada que mal se erguia; As pernas bambas cruzam com os caules tenros Para que uma safra de cruzes Preceda a colheita do trabalho. Quando a lavoura encurta sem miopia E o ar que falta no se renova, As noites sucedem em pleno dia Nas vrias fugas da conscincia. Bate no peito, lenta revolta, Na luta pelo po que estanca. O avexume agonia eterna Nascido no sereno desejo de viver. Oh! Deus do Brasil, do mundo ou de Gois! Atentai ao crime perpetrado E fazei nascer nos semi-mortos A esperana de sol e de tratores!1
Em abril de 1909, na pequena cidade de Lassance, Carlos Chagas, mdico e
pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC ou Instituto de Manguinhos), descrevera uma
nova doena humana, o protozorio que a causava (uma nova espcie de tripanossoma,
batizado ento de Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz) e o inseto que a
transmitia, um percevejo popularmente conhecido como barbeiro, muito comum no interior
das casas de pau-a-pique tpicas das reas rurais do Brasil. A tripla descoberta realizada, nos
marcos da medicina tropical, sob a seqncia incomum de se partir do encontro do vetor e do
parasito para, em seguida, identificar a patologia foi comemorada como uma das maiores
6
proezas da cincia nacional. Ela tornou-se a principal vitrine do projeto de Oswaldo Cruz para
criar um centro de excelncia de medicina experimental nos trpicos. definio de seus
elementos clnicos, entre outros aspectos, Chagas e outros pesquisadores de Manguinhos
dedicariam suas carreiras profissionais.
Nos versos citados de Omar Carneiro, esta uma enfermidade que ataca o corao dos
trabalhadores rurais. Avexume era o termo popular usado para expressar diversas sensaes
de distrbios cardacos. Numa evoluo lenta, silenciosa e progressiva, esgota a capacidade
produtiva de suas vtimas e as leva morte, muitas vezes subitamente. Num pas que, na
dcada de 1950, estava em plena marcha para o interior, as metforas associadas quele
rgo vital faziam-se particularmente eloqentes e reforavam a dimenso simblica de uma
doena cardaca que sintetizava a nao. No diagnstico de suas mazelas as pernas
bambas do homem do campo e no receiturio de sua redeno: uma esperana de
tratores, para a colheita do trabalho.
Em 1918, num outro contexto em que o interior do Brasil projetou-se na cena pblica,
Monteiro Lobato igualmente denunciou o monstruoso quadro patolgico que [Carlos
Chagas] entrevira na paisagem rude dos sertes guisa de um crculo indito de Dante,
como o emblema de um pas que se constitua como um vasto hospital. Tambm ele
clamava pela recuperao dos braos aleijados da lavoura brasileira e apontava a cincia e o
saneamento como solues. Contudo, conforme os primeiros estudos de seu descobridor, esta
era uma doena caracterizada, fundamentalmente, por distrbios endcrinos e neurolgicos.
Apesar de se apontarem aspectos cardacos, reconhecia-se como seus principais sinais clnicos
o aumento anormal da tireide (bcio ou papeira), paralisias, retardo no desenvolvimento
fsico e uma escala de depresses mentais oscilantes entre o simples aparvalhamento e o
cretinismo completo. As vtimas da doena de Chagas eram, nas palavras do criador do Jeca
Tatu, idiotas e papudos.2
Se as citaes de Omar Carneiro e de Lobato expressam diferenas na definio dos
sinais clnicos da enfermidade, elas se aproximam na sua caracterizao enquanto problema
sanitrio de dimenso nacional, por prejudicar a produtividade do trabalho agrcola e,
conseqentemente, o progresso do pas. Entretanto, tambm neste aspecto, nem sempre houve
1 Carneiro, Omar. Ode aos chagsicos, Revista Goiana de Medicina, v. 4, n.2, abril/junho de 1958, p. 196. 2 Lobato, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital. So Paulo, Brasiliense, 1957, 7. edio, [1918], p. 240, 242, 239.
7
acordo. Chegou-se a afirmar que se tratava de um mal menor, restrito a um punhado de
doentes na regio em que fora descoberta.3
Como se deu o percurso pelo qual a nova entidade mrbida de Carlos Chagas foi
estabelecida e aceita como um fato cientfico, uma entidade nosolgica definida e
individualizada por certas caractersticas clnicas e patognicas peculiares?4 Como se
produziu o reconhecimento pblico de que se tratava de uma questo de relevncia para a
sade pblica? Em que medida se pode considerar esta doena um produto da histria? Estas
so as perguntas que nos motivaram a realizar o presente estudo, que tem como argumento
mais geral o de que, desde o incio daquele percurso, a doena de Chagas foi sendo
construda, ao mesmo tempo, como fato cientfico e fato social.
No plano terico, tais questes esto referidas questo central que inspirou as novas
abordagens propostas para a sociologia e a histria da cincia, a partir da dcada de 1970,
pelo chamado Programa Forte da Sociologia do Conhecimento: possvel analisar a dimenso
histrico-social dos fatos cientficos no apenas no que diz respeito s circunstncias que
envolveram sua produo (ou aos significados que lhes foram atribudos), mas tambm no
que se refere aos contedos dos conhecimentos que os definiram enquanto tal? Qual a
dimenso social dos processos pelos quais o conhecimento cientfico produzido,
transmitido, se estabiliza e muda ao longo do tempo?5
Criado em Edimburgo por David Bloor e Barry Barnes, o Programa Forte filiava-se
perspectiva pioneira de Ludwig Fleck (que, em 1935, afirmou que os fatos da cincia no
eram meros construtos formais mas sim produtos de pensamentos e prticas coletivas) e, mais
3 Segundo informaes da Organizao Mundial da Sade, a doena de Chagas ou tripanossomase americana atinge entre 16 e 18 milhes de indivduos neste continente. Depois de uma fase aguda de curta durao (cujos sintomas so febre, engurgitamento dos gnglios linfticos, aumento do bao e do fgado e inflamao no local de entrada do parasito no organismo), que pode provocar a morte especialmente em crianas de baixa idade, os indivduos, em geral, entram numa fase assintomtica (fase indeterminada), que pode durar muitos anos. Os que vm a manifestar a doena crnica sofrem de progressivos distrbios cardacos e digestivos, podendo falecer, em geral por insuficincia cardaca. Existem formas de tratamento especfico e sintomtico para a doena e, em alguns casos, possvel considerar-se o paciente curado. Ver World Health Organization, Chagas disease, http://www.who.int/ctd/chagas/burdens.htm; World Health Organization. Tropical Diseases Research. Chagas disease, http://www.who.int/tdr/diseases/chagas/default.htm, acesso em 04 de abril de 2006. Para informaes gerais sobre a doena no Brasil, ver: Dias, Joo Carlos Pinto; Coura, Jos Rodrigues (orgs.). Clnica e teraput ica da doena de Chagas: uma abordagem prtica para o clnico geral. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1997; Brasil. Ministrio da Sade. Consenso Brasileiro em doena de Chagas, Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 38, suplemento III, 2005. 4 Uma primeira aproximao deste tema deu origem s seguintes publicaes: Kropf, Simone; Azevedo, Nara; Ferreira, Luiz Otvio. Doena de Chagas: a construo de um fato cientfico e de um problema de sade pblica no Brasil. Cincia e Sade Coletiva, Rio de Janeiro, v.5, n.2, 2000, pp. 347-365; Kropf, Simone; Azevedo, Nara; Ferreira, Luiz Otvio. Biomedical research and public health in Brazil: the case of Chagas disease (1909-1950), Social History of Medicine, v. 16, n. 1, 2003, pp.111-129. 5 Bloor, David, Knowledge and social imagery. Chicago/ London, The University of Chicago Press, 1991, 2nd edition, p. 5.
8
diretamente, nova amplitude que esta perspectiva viria a encontrar nas formulaes de
Thomas Kuhn. O livro A estrutura das revolues cientficas, publicado em 1962, tornou-se
um marco na histria das cincias ao postular, com base no conceito de paradigma, a natureza
convencional do conhecimento cientfico e que a cincia uma atividade indissociavelmente
scio-cognitiva, produzida por coletividades concretas e historicamente situadas, tanto do
ponto de vista de sua organizao social, quanto no que diz respeito aos esquemas
intrepretativos compartilhados para dar sentido ao mundo e natureza. Nesse sentido, a
chamada Escola de Edimburgo pretendia estender para o domnio da cincia a tese proposta
por Karl Mannheim, com base em mille Durkheim, segundo a qual o conhecimento um
produto historicamente e socialmente determinado.6
O ponto de partida desta nova sociologia do conhecimento cientfico (por muitos
designada como estudos sociais da cincia) a idia de que, como outras formas de produo
e representao simblica, os produtos intelectuais da cincia constituem um sistema de
crenas socialmente produzido e sustentado. Fruto dos acordos resultantes de um processo
coletivo de negociao, no qual os atores se comportam em funo dos interesses que os
constituem como diferentes grupos sociais, a prtica e, sobretudo, os contedos da cincia
passaram a ser tratados como objetos legtimos para a investigao sociolgica.7
O objetivo era superar os limites da sociologia de Robert Merton, que, analisando a
cincia em termos das caractersticas e normas peculiares de sua organizao institucional,
considerava seus produtos intelectuais como objetos no para os socilogos, mas para os
epistemlogos.8 O Programa Forte corroborava as crticas feitas por Kuhn concepo da
filosofia da cincia, segundo a qual este seria um saber epistemologicamente superior, cuja
certificao se dava como resultado da aplicao correta de um mtodo racional, ou seja, da
lgica interna de seus contedos, sendo, portanto, independente de fatores histricos ou 6 Idem; Barnes, Barry. Scientific knowledge and sociological theory, London: Routledge & Keagan Paul, 1974; Fleck, Ludwig. La gnesis y el desarrollo de um hecho cientfico. Madrid, Alianza Editorial, 1986; Kuhn, Thomas, A estrutura das revolues cientficas. So Paulo, Perspectiva, 3 ed., 1989; Mannheim, Karl, Sociologia da Cultura. So Paulo, Perspectiva, 1974. 7 Segundo David Bloor, o estudo sociolgico da cincia deveria se pautar por quatro princpios metodolgicos fundamentais. O princpio da causalidade estabelece que o objetivo no apenas descrever o processo de produo do conhecimento, mas explic-lo, ou seja, identificar as condies que o determinam. O princpio da imparcialidade significa que tanto os conhecimentos considerados verdadeiros, como aqueles abandonados como falsos, devem ser explicados, ou seja, h que se buscar meios de se explicar as crenas independentemente da maneira pela qual elas so avaliadas. Conforme o princpio da simetria, para que a sociologia do conhecimento seja capaz de produzir teorias generalizadoras, deve-se recorrer ao mesmo tipo de causa para explicar crenas verdadeiras e crenas falsas. Questiona-se assim frontalmente a concepo tradicional de que causas sociais interferem somente no que diz respeito ao erro, e no ao conhecimento tido como verdadeiro. Finalmente, as anlises devem se pautar pelo princpio da reflexividade, que estabelece que os padres de explanao utilizados pela sociologia do conhecimento devem ser aplicveis prpria sociologia, para ser coerente com sua pretenso generalizadora. Bloor, D., Knowledge and social immagery, op. cit., p. 7.
9
sociais.9 Buscava-se, em suma, transcender as fronteiras que limitavam o acesso dos
socilogos e historiadores aos aspectos ditos externos cincia, reservando seus elementos
internos para inquiries no mbito da lgica e da epistemologia.10
Estas novas diretrizes tericas provocaram uma importante reconfigurao no campo
dos estudos histricos e sociolgicos da cincia, tendo como uma de suas principais
implicaes o estmulo s investigaes empricas sobre como se produzem concretamente os
conhecimentos cientficos, por grupos sociais especficos, em determinados contextos
histricos. Foi a partir desta orientao que surgiram as abordagens do chamado
construtivismo social da cincia, como as etnografias de laboratrio e os estudos sobre
controvrsias cientficas produzidos, entre outros, por Karin Knorr-Cetina, Bruno Latour,
Steve Woolgar e Harry Collins.11 Os trabalhos de Steven Shapin, por sua vez, exemplificam a
fecundidade do dilogo estabelecido, no campo da histria da cincia, com a perspectiva
sociolgica do Programa Forte, que veio a reforar a perspectiva mais geral de que a
reconstruo histrica deve ser pautada por conceitos e teorias capazes de imprimir narrativa
uma dimenso explicativa, que confira aos objetos situados em outras temporalidades uma
inteligibilidade para alm de sua dimenso contingente.12 Por outro lado, afirma Shapin, a
anlise emprica dos casos histricos constitui uma dimenso fundamental compreenso
sociolgica da cincia, pois, se partimos do postulado terico geral de que ela est relacionada
8 Merton, Robert K. La Sociologia de la Ciencia. Madrid, Alianza Editorial, 1985, 2 vols. 9 Ver Lakatos, Imre; Musgrave, Alan (orgs.), A Crtica e o Desenvolvimento do Conhecimento Cientfico. So Paulo, Editora Cultrix / Editora da Universidade de So Paulo, 1979. 10 Para coletneas e textos que traam um panorama do campo dos estudos sociais da cincia, ver: Callon, Michel; Latour, Bruno (eds.), La science telle quelle se fait. Paris, La Dcouverte, 1991; Pickering, Andrew, (ed.). Science as practice and culture. Chicago, London, The University of Chicago Press, 1992; Woolgar, Steve. Ciencia: abriendo la caja negra. Barcelona, Anthropos, 1991; Shapin, Steven. History of science and its sociological reconstructions, History of Science, v. 20, n. 49, september 1982, pp. 157-211; Shapin, Steven, Discipline and bounding: the history and sociology of science as seen through the externalism-internalism debate, History of Science, v. 30, 1982, pp.333-369; Portocarrero, Vera (org.), Filosofia, histria e sociologia das cincias. Abordagens contemporneas. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1994; Pestre, Dominique, Por uma nova histria social e cultural das cincias: novas definies, novos objetos, novas abordagens, Cadernos IG/Unicamp, v. 6, n. 1, 1996, pp. 3-56; Kreimer, Pablo, De probetas, computadoras y ratones. La construccin de una mirada sociolgica sobre la cincia, Quilmes: Universidad Nacional de Quilmes, 1999. 11 Knorr-Cetina, Karin, Scientific communities or transepistemic arenas of research? A critique of quasi-economic models of science, Social Studies of Science, v. 12, 1982, pp. 101-30; Latour, Bruno; Woolgar, Steve. A vida de laboratrio. A construo dos fatos cientficos. Rio de Janeiro, Relume-Dumar, 1997; Latour, Bruno. Cincia em ao. Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. So Paulo, Unesp, 2000; Collins, Harry, The seven sexes: a study in the sociology of a phenomenon or the replication of the experiment in physics, Sociology, v. 9, n. 2, 1975, pp. 205-24. 12 Ver, entre outros, Shapin, Steven. La revolucin cientfica. Una interpretacin alternativa. Barcelona/ Buenos Aires/ Mxico, Paids, 2000. O prprio trabalho de Bloor, que aplica seu modelo terico anlise da matemtica na Grcia antiga, expressa a proximidade entre histria e sociologia da cincia nesta nova chave interpretativa. Para uma avaliao dos benefcios e desafios deste dilogo, ver Jasanoff, Sheila, Reconstructing the past, constructing the present: can science studies and the history of science live hapilly after ever?, Social Studies of Science, v. 30, n. 4, 2000, pp.621-31.
10
sociedade na qual praticada, o desafio mostrar como e porqu esta relao acontece e
assume formatos especficos em diferentes temporalidades e espacialidades.13
No domnio especfico da histria da medicina, a discusso sobre a construo social
das doenas assumiu grande projeo nas ltimas dcadas, ainda que nem sempre referida
diretamente aos princpios do construtivismo formulados no mbito dos estudos sociais da
cincia. Utilizando perspectivas tericas diversas, tanto da histria social e cultural quanto de
outros campos disciplinares, como a antropologia e a sociologia, muitos autores vm se
debruando sobre os processos pelos quais, num dado contexto histrico-social, indivduos e
grupos atribuem sentidos particulares experincia da doena, e sobre como esta experincia
gera conseqncias sobre a organizao e a percepo do mundo social.14
O pressuposto destes trabalhos a crtica concepo tradicional de que as doenas
so eventos essencialmente biolgicos, isentos de determinaes culturais ou atributos sociais,
constituindo-se como fatos do mundo da natureza que caberia medicina desvendar,
explicar e desenvolver meios eficazes para seu tratamento e preveno. O corolrio imediato
desta crtica a afirmao das doenas como objetos historicamente situados. Os significados
pelas quais elas so reconhecidas, bem como suas implicaes na vida dos indivduos e da
sociedade, devem ser compreendidos a partir de mltiplos fatores relacionados ao contexto
scio-cultural especfico no qual ocorrem. Segundo Allan Brandt,
Disease is not a merely biological phenomenon: it is shaped by powerful behavioral, social and political forces. Social values affect both the way we come to see and understand a particular disease and the interventions we undertake.15
Ou, como afirma Claudine Herzlich,
[...] illness, health and death are highly natural, physical and objective subjects, so that they seem at first to fall outside the realm of social reality; [...] but they are indissolubly linked to social reality in many ways. Illness is first of all a social fact.16
13 Como diz Shapin, An empirical sociology of knowledge has [] to go on to show why particular accounts were produced and why particular evaluations were rendered; and it has to do this by displaying the historically contingent connections between knowledge and the concerns of various social groups in their intellectual and social settings. Shapin, S., History of science and its sociological reconstructions, op. cit., p. 164. 14 Ver Hochman, Gilberto; Armus, Diego. Cuidar, controlar, curar em perspectiva histrica: uma introduo, in: Hochman, Gilberto; Armus, Diego (orgs.). Cuidar, controlar, curar. Ensaios histricos sobre sade e doena na Amrica Latina e Caribe. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2004, pp. 11-27; Silveira, Anny J.Torres; Nascimento, Dilene R. A doena revelando a histria. Uma historiografia das doenas, in: Nascimento, Dilene Raimundo do; Carvalho, Diana Maul de (orgs.), Uma histria brasileira das doenas, Braslia, Paralelo 15, 2004, pp. 13-30. 15 Brandt, Allan. AIDS and metaphor: toward the social meaning of epidemic disease, in Mack, Arien (ed.). In time of plague. The history and social consequences of lethal epidemic disease. New York/London, New York University Press, 1991, pp. 91-110, p. 93.
11
Partindo deste pressuposto, muitos trabalhos vm abordando os sentidos sociais
atribudos s doenas em distintos momentos histricos. As epidemias tm sido
particularmente privilegiadas, por constiturem situaes percebidas como de grande
gravidade e impacto na vida social. Assim, so recorrentes as anlises que apontam como os
significados e estigmas atribudos s doenas epidmicas derivam da associao com
comportamentos ou prticas socialmente qualificados como desviantes ou das
conseqncias que produzem como fatores de desarticulao da ordem econmica, poltica e
cultural mais ampla.17
Uma noo bastante utilizada para caracterizar a doena como construto social tem
sido a de que ela se configura como forma de representao da sociedade. Esta , por
exemplo, a perspectiva seguida no livro organizado por Jacques le Goff, para quem
a doena pertence no s histria superficial dos progressos cientficos e tecnolgicos, mas tambm histria profunda dos saberes e das prticas ligadas s estruturas sociais, s instituies, s representaes, s mentalidades.18
Segundo Herzlich, constituindo-se como fenmeno que requer interpretao, a
doena se apresenta como um significante, cujo significado a relao do indivduo com a
ordem social.19 nesse sentido que funciona como metfora, como acentuou Susan Sontag.20
Ou seja, atravs dela, fala-se de outras coisas: as normas sociais e as maneiras como os
indivduos so vistos em sua relao com estas normas.
Contudo, ao se enfatizar a dimenso simblica das enfermidades, sua dimenso como
evento biolgico via de regra considerada um terreno natural, previamente dado, sobre o
qual incidem os significados e as representaes sociais. Sob tal perspectiva, se a sociedade
16 Herzlich, Claudine. Modern medicine and the quest for meaning. Illness as a social signifier, in: Aug, Marc; Herzlich, Claudine (eds.). The meaning of illness. Anthropology, history and sociology of illness. Harwood Academic Publishers, 1995, pp. 151-73, p. 151. 17 Ver, por exemplo, Rosenberg, Charles. Explaning epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge, Cambridge University Press, 1992; Evans, Richard J., Epidemics and revolutions: cholera in nineteenth-century Europe, in: Ranger, Terence; Slack, Paul (eds.). Epidemics and ideas. Essays on the historical perception of pestilence. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, pp. 149-173. 18 Le Goff, Jacques. Uma histria dramtica, in: L Goff, Jacques (org.). As doenas tm histria. Lisboa, Terramar, 1991, p. 7-8, p.8. 19 Herzlich, C., op. cit., p. 161. 20 Sontag, Susan. A Aids e suas metforas. So Paulo, Cia. Das Letras, 1989. Devemos observar que a autora, amplamente reconhecida por esta proposio, destacou-se pela militncia poltica visando denunciar as conseqncias profundamente negativas que as metforas e significados associados Aids e a outras enfermidades geram nas vidas dos doentes, em termos de estigmatizao e isolamento. Marcada pela experincia pessoal com o cncer, reivindicava que as doenas deixassem de ser tratadas como metforas, sendo encaradas enquanto fenmenos orgnicos aos quais se deve responder com esforos teraputicos precisos e no com condenaes morais ou sociais. Tal formulao despertou muita polmica entre os historiadores. Ver, por exemplo, Brandt, A., op. cit., p. 94.
12
est implicada na construo das doenas, isso acontece essencialmente no que diz respeito ao
em torno de uma realidade orgnica j definida.
Com base nas diretrizes tericas dos estudos sociais da cincia, acreditamos ser
possvel ampliar estas fronteiras e afirmar que as doenas constituem objetos histrica e
socialmente construdos no que diz respeito s maneiras pelas quais os indivduos ou grupos
as percebem ou respondem a elas em termos de valores e prticas, e tambm no que concerne
sua prpria conceituao como entidades biolgicas especficas. Em outras palavras, o
desafio analisar como os fatores sociais interferem no somente na maneira de se
representar, atribuir significados e enfrentar concretamente um fenmeno da natureza, j
definido enquanto tal, mas inclusive no processo de definio e aceitao deste fenmeno
como realidade orgnica, dotada de caractersticas especficas. Trata-se, em suma, da
perspectiva de analisar a dimenso social das doenas em seu estatuto de fatos produzidos
pela cincia mdica.21
Acreditamos que a aproximao entre a histria social da medicina e a histria social
da cincia associada s perspectivas lanadas pelo Programa Forte constitui um caminho
promissor para que possamos, mediante o estudo do caso da doena de Chagas, seguir tal
perspectiva.22 Como eixo para tal aproximao, recorreremos s formulaes propostas por
Charles Rosenberg.
Segundo este historiador da medicina, a noo de que os fenmenos patolgicos
constituem entidades conceitualmente especficas e ontologicamente reais, tipos-ideais que
existem para alm da natureza idiossincrtica dos distrbios que se manifestam em indivduos
particulares, vem assumindo, desde o sculo XIX (especialmente aps a chamada revoluo
pasteuriana), cada vez maior centralidade na maneira pela qual a prpria categoria de doena
faz sentido e se justifica, cientfica e socialmente. Trata-se de um processo histrico que se
intensificou, sobretudo, no incio do sculo XX. Diz o autor: In our culture, its existence as
21 Como sublinha Paula Treichler, to call AIDS cultural may mean simply that like any great event or crisis AIDS significantly affects social life and symbolic expression. But to call it culturally constructed invokes long-standing debates about human knowledge and the nature of the world.. Treichler, Paula, AIDS, HIV and the cultural construction of reality, in: Treichler, Paula. How to have theory in an epidemic. Cultural chronicles of AIDS. Durham/London, Duke University Press, 1999, pp. 149-175, p. 149. 22 Por outro lado, seguindo uma concepo que articula os estudos histricos da sade pblica s questes mais gerais da histria social, o estudo que pretendemos realizar converge tambm com uma vertente de investigao que, conforme assinala Dorothy Porter, focaliza a relao, historicamente circunscrita, entre atuao dos cientistas no campo biomdico e a formulao de polticas pblicas, prticas e valores para a sade. Fee, Elizabeth, Public health, past and present: a shares vision, in: Rosen, George. A history of public health. Baltimore/London, The Johns Hopkins University Press, 1993, p. xxxviii. Porter, Dorothy. The history of public health: current themes and approaches, Hygea Internationalis, v. 1, n.1, 1999, pp.9-21.
13
specific entity is a fundamental aspect of intellectual and moral legitimacy of disease. If it is
not specific, it is not a disease.23
exatamente neste processo, pelo qual as categorias do conhecimento mdico
definem a materialidade e a especificidade destas entidades, que se pode dizer, que elas so
histrica e socialmente constitudas. Como chave conceitual para apreender este movimento,
o autor utiliza a noo de framing.24 Trata-se da idia de que uma doena, concebida e aceita
como entidade especfica, produto de um enquadramento a partir de determinados
esquemas interpretativos e classificatrios, referidos a contextos histrico-sociais particulares.
Ao mesmo tempo em que emoldurada, assinala Rosenberg, a doena tambm gera aes
especficas sobre o mundo, constituindo-se ela mesma um frame, um fator estruturante para
diversas situaes da vida social. Nesse sentido, funciona como uma fora social concreta que
orienta o comportamento e a prtica dos atores humanos em complexas redes de negociaes
sociais.25
Nas duas direes deste movimento, pelos quais a doena emoldurada como
entidade particular e se torna ela prpria uma moldura da vida social, existe uma intricada
articulao entre fatores de ordem cognitiva e social. O processo de enquadramento , como
aponta Rosenberg, resultado de um acordo coletivamente produzido: in some ways disease
does not exist until we have agreed that it does, by perceiving, naming and responding to it.26
Ou seja, os esquemas pelos quais a doena compreendida e explicada, bem como o papel
que desempenha como fora social, implicam, ao mesmo tempo, maneiras socialmente
partilhadas de se conceber as caractersticas do evento biolgico ao qual ela referida e certas
formas e esforos coletivos de se lidar com este evento. Cabe aos historiadores estabelecer
como se articulam, em distintos marcos temporais e espaciais, as dimenses biolgica e social
desta realidade, acentua o autor.27
23 Rosenberg, Charles. Framing disease: Illness, society and history, in: Rosenberg, Charles. Explaning epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, pp. 305-18, p. 310, grifo do autor. Este texto tambm foi publicado como introduo a uma coletnea organizada pelo autor. Rosenberg, Charles; Golden, Janet (eds.). Framing disease. Studies in Cultural History. New Brunswick/New Jersey, Rutgers University Press, 1992. 24 De difcil traduo para o portugus, o substantivo frame tem o sentido material de uma estrutura, armao que d forma e sustenta algo (a moldura de um quadro, uma porta, etc.) e um sentido figurado, enquanto ordem ou sistema geral que origina e estrutura alguma coisa. Como verbo, poderia ser traduzido como moldar, emoldurar, enquadrar. Ao longo do presente trabalho, usaremos tais verbos (e os substantivos associados) remetendo-nos noo de Rosenberg. Oxford Advanced Learners Dictionary. Oxford, Oxford University Press, 1991. 25 Rosenberg, C., Framing disease, op. cit., p. 312. 26 Idem, p. 305. 27 Rosenberg reuniu, na coletnea acima citada, uma srie de estudos de caso bastante interessantes como exemplos de operacionalizao desta perspectiva. Rosenberg, Charles E.; Golden, Janet (eds.), Framing disease, op. cit.
14
Considerando-se que, a partir de um determinado momento histrico, o saber mdico
se institucionalizou e se legitimou socialmente como responsvel por definir as verdadeiras
caractersticas biolgicas das doenas, uma questo central acompanhar como este saber
atua na construo social das enfermidades. Para Rosenberg, o pensamento e a prtica mdica
constrem socialmente as doenas no apenas porque, ao aplicarem certos esquemas
conceituais que as classificam como realidades biolgicas (como o paradigma da
microbiologia, por exemplo), sancionam determinadas condutas e valores. Isso acontece
tambm no que diz respeito prpria formulao destes frames. Ou seja, se a utilizao das
teorias e modelos mdicos socialmente negociada, tambm o so os contedos que
conformam tais esquemas interpretativos, mediante os quais determinadas ocorrncias fsicas
so classificadas como sinais de uma dada entidade nosolgica.
no mbito deste processo, assinala Rosenberg, que o ato do diagnstico assume um
papel fundamental, como instrumento que nomeia e garante especificidade s doenas. Pondo
em ao um conjunto de procedimentos, aparelhos e registros tcnico-cientficos tidos como
objetivos e inquestionveis, o diagnstico materializa a crena coletiva e a aprovao social
indispensveis para que tais entidades existam, bem como a autoridade daqueles que
produzem os conhecimentos que as desenham.
Diagnosis is central to the definition and management of the social phenomenon that we call disease. It constitutes an indispensable point of articulation between the general and the particular, between agreed-upon knowledge and its application. [...] Diagnosis labels, defines, and predicts and, in doing so, helps constitute and legitimate the reality that it discerns.28
Ao enfatizar a dimenso scio-cognitiva dos processos pelos quais o conhecimento
mdico produz o enquadramento das doenas, a perspectiva terica de Rosenberg converge
com as diretrizes terico-metodolgicos dos estudos sociais da cincia, especialmente com as
perspectivas construtivistas.
Segundo Ludmilia Jordanova, um dos fatores que dificultou uma utilizao mais
consciente e sistemtica, por parte dos historiadores da medicina, das ferramentas conceituais
do construtivismo social foi a tendncia, que apontamos acima, de considerar como sujeitos
influncia de fatores sociais apenas os aspectos externos da medicina (em geral associados
prtica mdica) e no o seu ncleo interno, ou seja, as idias e teorias constitutivas do
conhecimento mdico. Segundo a autora, somente transcendendo-se a distino entre fatores
28 Rosenberg, Charles. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience, The Milbank Quaterly, v. 80, n.2, 2002, pp. 237-260, p. 240.
15
internos e externos, contedos e contextos, aspectos cognitivos e sociais da medicina, que
possvel trat-la como atividade social em todas as suas facetas.29
Outra fonte de reservas, por parte dos historiadores da medicina, em relao s teses
construtivistas , aponta Jordanova, a preocupao quanto s implicaes relativistas destas
abordagens. A questo que, muitas vezes, se coloca : como pensar a realidade dos
fenmenos naturais no caso, a materialidade biolgica doenas uma vez que se considere
que os contedos do conhecimento mdico so determinados socialmente? Ou seja, como
evitar uma posio relativista ou idealista radical segundo a qual a noo de construo
equivaleria a tratar as doenas como invenes arbitrrias das categorias de pensamento?
No caso de Rosenberg, a preocupao em no incorrer neste tipo de relativismo, que,
segundo ele, marcou uma certa vertente historiogrfica influenciada sobretudo pelas
formulaes de Michel Foucault, foi um dos motivos que o levou a evitar o termo construo
social e optar pela noo de framing, para analisar os processos sociais de conceituao e
reconhecimento das doenas.30 Segundo este autor, os historiadores da medicina das dcadas
de 1960 e 1970, politicamente comprometidos com a crtica s, at ento, inquestionveis
legitimidade e autoridade social da profisso mdica, foram particularmente eficazes no
questionamento da concepo positivista que tomava as doenas como entidades objetivas,
neutras e naturais, afirmando que, ao contrrio, tratava-se de objetos socialmente
negociados. Contudo, representando, muitas vezes, mais uma posio poltica do que
epistemolgica, estes argumentos relativistas foram a partir de ento, acentua Rosenberg,
utilizados para negar a efetividade do conhecimento mdico e a prpria existncia concreta e
material das doenas. O surgimento da AIDS na dcada de 1980 reforou as crticas s
posies positivistas, mas tambm colocou a necessidade de se rever este tipo de argumento
relativista.
Aids could hardly be dismissed as an exercise in stigmatizating the deviant; it obviously had a strong biological component. It was not simply a construction, even if it had been constructed [...] Aids has, in fact, helped to create a new consensus in regard to disease, one that finds a place for both biological and social factors and emphasizes their interaction.31
29 Jordanova, Ludmilla. The social construction of medical knowledge, Social History of Medicine, v. 8, n.3, 1995, pp. 361-81. Embora conceda especial importncia, nesta anlise, s abordagens filiadas aos estudos sociais da cincia ps-1970, a autora refere-se a outras correntes intelectuais que partilham de uma perspectiva construtivista, como certas abordagens da antropologia cultural e da filosofia da cincia e alguns autores filiados ao marxismo. 30 Rosenberg manifesta sua crtica perspectiva construtivista dirigindo-se aos que, recorrendo a Foucault, reduzem os sujeitos do conhecimento mdico a meros agentes legitimadores de uma ordem social opressiva, no curso da chamada medicalizao da sociedade. Rosenberg, C., Framing disese, op. cit., p. 307. 31 Rosenberg, Charles. Disease and social order in America: perceptions and expectations, in Rosenberg, Charles. Explaning epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, pp. 258-77, p. 258, 260, grifo nosso.
16
Em suma, reivindica o autor, no devemos incorrer nem no reducionismo biolgico
positivista nem em um construtivismo social exclusivo.32
Ainda que algumas verses do construtivismo possam sugerir ou afirmar a posio a
que Rosenberg se refere, cabe destacar que esta no uma conseqncia necessria dos
princpios do construtivismo social. Como afirma Jordanona:
On the contrary, material world is constantly shaped and interpreted through human actions and consciousness. Social constructionism takes this as one of its main tenets and without the dynamic relationship just described it would have no meaning. It is not a form of idealism. But it does insist that there is a room for a variety of interpretations and meanings, that behind consensus or knowledge lie social processes, and that such processes involve negotiations and conflict, both overt and implicit. It follows that forms of knowledge and the social processes whereby they are created are given intellectual priority. I does not follow that materiality and physical embodiment are denied.33
Este um ponto fundamental para se compreender o que significa dizer que uma
doena no apenas como fenmeno social, mas tambm como entidade biolgica
socialmente construda ou emoldurada. Vejamos como o prprio David Bloor esclarece as
fronteiras que distinguem a abordagem relativista da sociologia do conhecimento cientfico do
relativismo em sua verso radical. Segundo o criador do Programa Forte, o conhecimento
deve ser compreendido nos termos de uma interao entre o objeto do conhecimento e o
sujeito conhecedor, a partir de determinados princpios de receptividade poderamos aqui
nos referir aos frames conceituais classificatrios de que fala Rosenberg. Respondendo s
crticas de que tal programa incorreria no subjetivismo ou idealismo por pretender explicar a
natureza concentrando-se nos sujeitos sociais do conhecimento e rejeitando a importncia dos
fatos da natureza, Bloor afirma:
[...] the aim isnt to explain nature, but explain shared beliefs about nature. The enquiry is into the character and causes of knowledge, or what passes as knowledge, and not (in general) into the objects which the knowledge is meant to be about.34
32 Rosenberg, C., Framing disease: Illness, society and history, op. cit., p. 307. 33 Jordanova, Ludmila, op. cit., p. 368. 34 Bloor, David. Anti-Latour, Studies in History and Philosophy, v. 30, n.1, 1999, pp.81-112, p. 87. Neste trabalho, entre outros aspectos, Bloor defende os princpios do Programa Forte diante da proposta de simetria generalizada de Latour, segundo a qual as categorias sociolgicas usadas para explicar a cincia deveriam ser postas em suspeio tanto quanto as categorias utilizadas pelos cientistas que constituem objeto de anlise. O texto provocou um interessante debate. Ver Latour, Bruno. For David Bloor... and beyond: a reply do David Bloors Anti-Latour, Studies in History and Philosophy of Science, v. 30, n. 1, 1999, pp.113-129; Bloor, David. Reply to Bruno Latour, Studies in History and Philosophy of Science, v. 30, n. 1, 1999, pp.131-136.
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Segundo Bloor, o relativismo deve ser um princpio acionado em oposio ao
absolutismo, funcionando como uma relativismo metodolgico. Da mesma maneira que a
moral, apesar de sua natureza compulsria e inquestionvel, a verdade lgica no absoluta,
mas relativa. O Programa Forte no considera a objetividade ilusria, mas atribui este efeito
de realidade aos acordos coletivos que a sustentam. Adotando uma abordagem derivada da
tradio empirista, o objetivo deste programa compreender como sujeitos do conhecimento
descrevem e respondem ao mundo e como estas descries e respostas so viabilizadas graas
a padres de compreenso coletivos, com suas convenes e tradies compartilhadas.
somente mediante esta separao entre objeto do conhecimento e sujeito cognoscente, ou seja,
entre a natureza e as descries que os atores sociais fazem dela, que se pode apontar como
estas duas instncias interagem na produo destas descries, assinalando o carter relativo,
varivel, socialmente negociado do conhecimento.
Portanto, tanto a natureza quanto a sociedade esto implicadas na formao das
crenas coletivas, tanto a experincia do mundo das coisas, quanto a experincia do mundo
das pessoas. Os sistemas de crenas, referidos ao mundo da cultura, so o meio pelo qual os
indivduos e grupos co-ordenam e do sentido, a partir de recursos cognitivos e sociais
especficos, situados histrica e culturalmente, a suas interaes com os objetos da natureza.
Assim, Bloor deixa claro que nunca houve nenhuma tendncia no Programa Forte de negar a
existncia da natureza e dos objetos que os cientistas observam, ou de negar que tais objetos
desempenhem um papel na formulao e sustentao das crenas sobre eles. Contudo, embora
os cientistas estejam sempre reagindo e observando a natureza, eles o fazem coletivamente
mediante conceitos compartilhados e institucionalizados. nessa medida que o conhecimento
socialmente construdo. A observao e a formulao de enunciados sobre os objetos da
natureza so sempre processos de filtragem, de modo a apropri-la, conforme determinados
esquemas conceituais.
It is because complexity must be reduced to relative simplicity that different ways of representing nature are always possible. How we simplify it, how we chose to make approximations and selections, is not dictated by (non-social) nature itself. These processes, which are collective achievements, must ultimately be referred to properties of the knowing subjetc. This is where the sociologist comes into the picture. [...]. The sorts of question that can be asked, and to whose answer the sociologist can contribute, concern the range of interpretations that might have been put on Pasteurs observations, the way his questions were framed, and his techniques for dealing with the uncertainties and unresolved problem in his data. Why did he bring these particular interpretatives resources to bear, and why did he employ them in this precise way?35
35 Bloor, D., Anti-Latour, op. cit., pp. 90-1.
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Aplicando estas formulaes s noes de Rosenberg sobre como o conhecimento
mdico-cientfico enquadra socialmente as doenas, poderamos dizer que cabe ao
historiador ou ao socilogo analisar os procedimentos pelos quais os fenmenos orgnicos, ao
serem descritos mediante determinados recursos interpretativos, ganham o estatuto de
entidades biolgicas (doenas) definidas e explicadas mediante certas caractersticas.
porque tais recursos (frames) pelos quais se produz o conhecimento no so necessrios, do
ponto de vista de uma racionalidade interna que estabelea uma correspondncia com a
realidade a ser conhecida, mas ao contrrio se constituem como sistemas de convenes e
crenas socialmente negociados e legitimados, que se pode afirmar a natureza social dos
produtos deste conhecimento. No se trata, portanto, de negar a existncia da dimenso
biolgica da doena, mas de afirmar que tal dimenso s se transforma em realidade,
nomeada e classificada como doena especfica, mediante os procedimentos e esquemas
particulares postos em ao no ato de conhecer.
Poderamos lidar com a questo do realismo/relativismo, e evidenciar a proximidade
entre as concepes de Rosenberg e os postulados da nova sociologia do conhecimento
cientfico, aprofundando a prpria metfora do frame. Ela nos permite evitar o risco do
relativismo radical na medida em que se considere que qualquer moldura pressupe um
contedo, um objeto a ser emoldurado (dimenso biolgica). Por outro lado, a imagem nega
tambm a postura positivista do realismo, uma vez que se considere que este objeto no est
dado, mas s adquire forma especfica transformando-se na entidade doena pelos
contornos particulares que lhe impe a moldura. E, devemos ressaltar, os contornos desta
moldura no so prvios nem necessrios, ou seja, no correspondem ou se encaixam em
fronteiras previamente delimitadas pelo objeto, mas so arbitrados, selecionados, negociados
pelos sujeitos que realizam o ato de enquadramento. Assim, a possibilidade do quadro
pressupe contedo e moldura e ele s se completa enquanto realidade distinta, recortada da
natureza, pela interao entre estas duas dimenses ambas variveis , estabelecida de
maneira contextual por aqueles que a implementam. nesse sentido que podemos afirmar que
o que se v neste quadro um produto social. O potencial das formulaes construtivistas
expresso, ao nosso ver, ainda que implicitamente, na abordagem que Rosenberg prope para a
anlise histrica das doenas bem mais promissor do que este autor reconhece, ao
prevenir-se contra os riscos do relativismo. Pretendemos, portanto, recorrer noo de
enquadramento como meio de operacionalizar, no estudo especfico sobre a doena de
Chagas, os postulados e conceitos do construtivismo social da cincia derivados do Programa
Forte da Sociologia do Conhecimento Cientfico.
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Alm das formulaes gerais de Bloor, consideramos pertinentes ao tratamento de
nosso objeto algumas noes propostas por Bruno Latour a respeito da produo e da
validao dos fatos cientficos, enquanto processos que envolvem no apenas o mundo do
laboratrio, mas outras esferas e atores da vida social. Para este autor, o destino dos
enunciados formulados pelos cientistas se eles vo permanecer como artefatos, isto ,
objetos instveis, ou se estabilizar como fatos, tidos como inquestionveis e naturais dado,
fundamentalmente, pelo uso concreto que outras pessoas, cientistas e no cientistas, fazem
deles.36 Assim, a certificao do conhecimento cientfico depende de uma srie de
procedimentos e estratgias por parte dos cientistas para convencerem outros indivduos e
grupos a aceitarem e utilizarem as afirmaes e objetos por ele produzidos. Para analisar a
cincia em ao, ou seja, os processos efetivos pelos quais se estabilizam os fatos cientficos,
preciso, diz Latour, seguir os cientistas sociedade afora e examinar os recursos de que
estes lanam mo para mobilizar o mundo e produzir concretamente, em circunstncias
especficas, o consenso necessrio ao fechamento das caixas-pretas da cincia.37
No estudo etnogrfico de laboratrio que desenvolveu com Steve Woolgar, Latour
analisou pormenorizadamente os mecanismos e estratgias persuasivas pelos quais os
enunciados cientficos so formulados e negociados nos espaos particulares do mundo da
cincia, como a literatura cientfica e os instrumentos prprios aos laboratrios.38 Esta uma
dimenso essencial do itinerrio em direo estabilizao dos fatos da cincia. Contudo,
salienta o autor, ele se completa na medida em que o cientista ultrapassa as fronteiras deste
mundo, imprimindo a seus enunciados a capacidade de se propagarem no tempo e no
espao. Para isso, deve recrutar aliados os mais diversos, que vejam algum sentido em
utilizar tais enunciados e lhes imprimam a fora para que se transformem em fatos.39
A noo-chave para analisar esse processo a de traduo de interesses.40 Os
cientistas, segundo Latour, devem construir uma associao de interesses em torno de seus
enunciados, reunindo atores e elementos heterogneos, em esferas diversificadas da vida
social. ao longo desse processo associativo que o conhecimento cientfico construdo e
endossado como expresso da natureza e nesse sentido que se pode afirmar que a cincia
uma atividade scio-cognitiva. Ao descrever as mltiplas estratgias e recursos de persuaso
36 Latour, B., Cincia em ao..., op. cit., p. 52. 37 Latour utiliza a expresso caixas-pretas para designar os conhecimentos consensualmente aceitos como naturais, no-problemticos, sobre os quais no paira nenhuma dvida. Idem, p. 14. 38 Woolgar, S.; Latour, B., op. cit. 39 Latour, B., Cincia em ao..., op. cit., p.177. 40 Segundo Latour, a palavra exata seria translao, na medida em que indica um deslocamento ao mesmo tempo semntico e espacial. Idem, p. 194.
20
utilizados pelos cientistas, o autor aponta o sentido poltico da atividade cientfica: esta no
meramente influenciada pela poltica ou pelas relaes de poder, mas , em si prpria, uma
forma de se fazer poltica, de se estabelecer tais relaes e, assim, de agir sobre o mundo.41
Ao recorrermos a estas formulaes de Latour, estamos conscientes, entretanto, de
alguns limites de sua abordagem, j apontados por crticos e comentadores.42 O principal
destes limites reside em que, ao tratar o cientista como um ator que se movimenta
intencionalmente em busca da maximizao de seus interesses, Latour considera que no
existe nenhuma condio prvia seja ela de natureza social, institucional, cultural,
econmica ou poltica prpria ao, no sentido de explic-la. O comportamento dos atores
referido unicamente ao momento contingente, circunstancial, da interao que estabelecem a
partir de um objetivo comum.
No compartilhamos desta concepo, na medida em que consideramos que as aes e
a movimentao dos cientistas, inclusive nos sentidos em que Latour as descreve, s podem
ser compreendidas a partir das caractersticas especficas do contexto institucional e social
mais amplo que lhes confere sentido e viabilidade num dado momento histrico.43 A
importncia da dimenso institucional, no caso que analisaremos, decisiva e pretendemos
destac-la, considerando, como sugere Silvia Figueira, o seu sentido sociolgico, como
espao agregador e normatizador de valores e prticas compartilhados por uma dada
coletividade. Este o espao que estabelece, como afirma esta autora, as mediaes e
interfaces entre a produo cientfica e as demandas e interesses sociais, materializando o
carter scio-cognitivo desta atividade.44
41 Em sua anlise histria sobre a chamada revoluo da microbiologia, Latour mostra que, mediante o apoio conquistado junto a diversos grupos e interesses sociais, as idias cientficas de Louis Pasteur tiveram um impacto transformador no apenas na cincia mdica, mas sobre a prpria sociedade francesa. Latour, Bruno, Les microbes. Guerre et paix, suivi de Irrductions. Paris, ditions A.M. Mtaili, 1984; Latour, Bruno, Give me a laboratory and I will raise the world, in: Biagioli, Mario (ed.). The Science Studies Reader. New York, Routledge, 1999, pp. 258-275. Este aspecto da contribuio de Latour salientado por Steven Shapin em resenha do livro Cincia em ao. Shapin, Steven. Following scientists around, Social Studies of Science, v. 18, 1988, pp.533-550. 42 Bloor, David. Anti-Latour, op. cit.; Collins, H. M.; Yearley, Steven. Epistemological chicken, in: Pickering, Andrew (ed.). Science as practice and culture. Chicago, London, The University of Chicago Press, pp. 301-326, 1992; Gieryn, Thomas. Relativism/constructivism programmes in the sociology of science: redundances and retreat, Social Studies of Science, Beverly Hills/London, v. 12, n. 2, 1982, pp. 279-98; Pickering, Andrew. From science as knowledge to science as practice, in: Pickering, Andrew (ed.). Science as practice and culture. Chicago, London, The University of Chicago Press, 1992, pp. 1-26; Shapin, Steven. Following scientists around, op. cit. 43 Para uma anlise crtica das formulaes de Latour e Woolgar, em A vida de laboratrio, quanto ao carter circunstancial da ao e dos clculos dos cientistas, num contraponto com os conceitos de capital e campo cientfico de Pierre Bourdieu e com a perspectiva mertoniana sobre a organizao institucional da cincia, ver Kropf, Simone; Ferreira, Luiz Otvio. A prtica da cincia: uma etnografia no laboratrio, Histria, Cincia e Sade - Manguinhos, v. 4, n.3, 1998, pp. 589-597. 44 Figueira, Silvia, As cincias geolgicas no Brasil: uma histria social e institucional, 1875-1934. So Paulo, Hucitec, 1997, pp. 24-5. Para um panorama das abordagens historiogrficas da cincia que focalizam a dimenso
21
Tendo por base tais reflexes tericas, nosso argumento geral o de que a doena de
Chagas foi instituda, emoldurada, ao mesmo tempo como fato cientfico e fato social, num
processo longo, que envolveu negociaes e acordos e que articulou diversos atores e
instncias da vida social. Sua configurao como entidade nosolgica especfica, derivada das
pesquisas de Carlos Chagas e seus colaboradores e seguidores, deu-se de modo indissociado
do processo pelo qual a ela se atribuiu o papel de representar e dar sentido a uma certa viso
da sociedade brasileira, de seus problemas e, sobretudo, do papel da cincia nesta sociedade.
Ou seja, os enunciados pelos quais a doena foi definida em seu quadro clnico e tambm as
crticas e revises destes enunciados, no processo de sua estabilizao como fato cientfico
foram estabelecidos em estreita associao com os significados que a enquadraram como
doena do Brasil, em vrios sentidos, alm da dimenso geogrfica: a imagem de um pas
doente, cujo progresso se inviabilizava por conta das endemias rurais que prejudicavam a
produtividade de seus trabalhadores, e, ao mesmo tempo, o smbolo da cincia que descobria
este Brasil desconhecido do interior e apontava os meios para sua incorporao marcha do
progresso nacional.
Emoldurada pelos esquemas conceituais das novas teorias mdicas emergentes no
cenrio internacional, na passagem do sculo XIX ao XX, em especial a medicina tropical, e
pelo projeto institucional de cincia que Oswaldo Cruz buscava implementar em Manguinhos
uma cincia que articulasse aplicabilidade social e excelncia acadmica , a doena de
Chagas funcionou, por sua vez, como moldura para um dado recorte da sociedade brasileira,
conforme tal projeto. Ela materializava o compromisso pblico da cincia com os destinos da
nao no apenas na resposta a demandas sociais concretas, mas pela prpria capacidade de
descortinar seus problemas e indicar caminhos para super-los. Nesse sentido, se o desenho
deste objeto expressou as especificidades do processo de institucionalizao da cincia no
Brasil, ele constituiu um importante elemento conformador deste processo. Em suma, esta foi
uma doena construda e legitimada a partir dos mltiplos significados, valores e interesses
que associavam cincia, sade pblica e nao no Brasil. Tanto as diferenas, como os
elementos de continuidade que marcaram, em termos cognitivos e sociais, os distintos
arranjos que ela assumiu ao longo do perodo em questo, estiveram referidos a esta
associao, igualmente marcada por transformaes e permanncias.
institucional, ver Dantes, Maria Amlia M., Introduo: uma histria institucional das cincias no Brasil, in: Dantes, Maria Amlia M. (ed.). Espaos da cincia no Brasil (1800-1930). Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2001, pp. 13-22.
22
Algumas particularidades deste objeto o tornam particularmente interessantes do ponto
de vista dos desafios enfrentados para o seu reconhecimento, em termos de sua definio
como entidade clnica e da idia de que se tratava de um problema de vasta proporo e
gravidade no pas e no continente. A doena de Chagas foi descrita num momento em que,
diferentemente de uma tradio mdica que definia as enfermidades sobretudo por suas
manifestaes clnicas e sintomas, a idia de especificidade do agente causal era um elemento
fundamental para o reconhecimento e a definio das doenas infecciosas como entidades
patolgicas particulares. Conseqentemente, este era o critrio fundamental para o seu
diagnstico. Contudo, no decorrer das pesquisas, verificou-se que, na grande maioria dos
casos de infeco pelo T. cruzi, a deteco do parasito no organismo do indivduo era bastante
difcil. Assim, o desafio que se colocou para os cientistas foi produzir o convencimento no
apenas em relao aos elementos clnicos que definiam a doena, mas quanto prpria
possibilidade de se garantir a convico do diagnstico com base nestes elementos. Produzida
como um smbolo da chamada medicina de laboratrio consagrada com a teoria dos germes
e a medicina tropical, a nova tripanossomase foi desenhada clinicamente a partir dos traos
imputados ao do parasito que a causava, mas o seu reconhecimento enquanto entidade
nosolgica especfica dependeria de elementos clnicos que fossem persuasivos o suficiente
para suplantar a exigncia da demonstrao do parasito. Outro desafio peculiar enfrentado por
Chagas era convencer sobre a importncia mdico-social de uma doena endmica,
fundamentalmente crnica, que no tinha, como as doenas epidmicas, sua existncia e
dramaticidade social materializada em surtos que atingiam, e muitas vezes levavam morte,
grandes quantidades de indivduos.
A produo dos enunciados sobre a doena de Chagas constitui, ao nosso ver, um
objeto particularmente frtil para se refletir sobre as vrias dimenses da relao entre cincia
e sociedade, em contextos histricos particulares. O percurso pelo qual esta doena foi
configurada como nova patologia tropical, endemia rural e doena do Brasil faz deste um
caso especialmente revelador de como os cientistas brasileiros se referenciaram a esquemas
tericos produzidos fora do pas no caso, a medicina tropical europia , no apenas no
sentido de uma insero ativa no movimento de produo e de afirmao destes esquemas,
mas sobretudo no sentido de conferir-lhes significados e sentidos peculiares a partir dos
contextos especficos tanto da cincia quanto da sociedade brasileira.45
45 Para um panorama das discusses, no mbito da historiografia das cincias latino-americana, sobre a relao entre cincia e contextos culturais e nacionais especficos, ver Saldaa, Juan Jos. Cincia e identidade cultural: a histria da cincia na Amrica Latina, in: Figueira, Silvia (org.). Um olhar sobre o passado: histria das cincias na Amrica Latina. Campinas/So Paulo, Editora da Unicamp/Imprensa Oficial, 2000, pp. 11-27.
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Nosso objetivo focalizar dois momentos na trajetria de construo e
reconhecimento cientfico e social da doena de Chagas. Em primeiro lugar, as pesquisas
realizadas por Carlos Chagas e seus colaboradores, no IOC, desde a identificao da nova
doena, em 1909, at o falecimento de seu descobridor, em 1934. Ao longo deste perodo, em
que Chagas alcanou grande proeminncia cientfica e poltica no Brasil e no exterior (foi
diretor do IOC e dos servios federais de sade pblica), os enunciados sobre a definio
clnica e a importncia mdico-social da nova doena ensejaram um intenso debate sobre as
condies do atraso das reas rurais, a relao entre doena e identidade nacional e o papel
social da cincia, debate este que culminou com o chamado movimento pelo saneamento dos
sertes, entre 1916 e 1920. Ao mesmo tempo, tais enunciados foram objeto de intensas
crticas e questionamentos, iniciados na Argentina, entre 1914 e 1916, e aprofundados no
campo mdico brasileiro entre 1919 e 1923.
Um segundo momento desta trajetria diz respeito aos estudos sobre a doena
liderados por dois discpulos de Carlos Chagas em Manguinhos, aps 1934: Evandro Chagas,
seu filho mais velho e diretor do Servio de Estudo das Grandes Endemias (SEGE), e,
principalmente, Emmanuel Dias, que dirigiu o Centro de Estudos e Profilaxia da Molstia de
Chagas (CEPMC), posto do IOC na pequena cidade de Bambu, Minas Gerais, desde sua
criao, em 1943, at seu falecimento em 1962. Nesta fase, foi produzido um novo acordo
sobre a caracterizao clnica e social da doena, bem como os meios tcnicos para a sua
profilaxia. Mediante uma intensa mobilizao poltica em torno do tema, viabilizou-se seu
reconhecimento pblico tanto como realidade mdico-cientfica, quanto como questo de
sade pblica e objeto das polticas sanitrias do pas. Assim, o marco cronolgico final de
nossa anlise se justifica no apenas pelo encerramento da atuao de Dias no CEPMC, mas
porque, naquele momento, se completaria, ao nosso ver, uma fase essencial de estabilizao e
institucionalizao deste fato cientfico. Pretendemos encaminhar a anlise deste itinerrio a
partir dos seguintes captulos.
No primeiro, sob uma perspectiva que considera as descobertas cientficas eventos
socialmente circunscritos e endossados, nosso objetivo ser analisar as condies tericas,
institucionais e sociais que propiciaram a descoberta da nova tripanossomase humana e os
sentidos que lhe foram conferidos como grande feito da cincia nacional. Aps um breve
panorama dos estudos sobre a patologia tropical no Brasil durante o sculo XIX,
Marcos Cueto um dos vrios autores que publicou importantes trabalhos referidos a esta questo. Ver, entre outros: Cueto, Marcos. Nacionalismo y cincias mdicas: los incios de la investigacin biomdica en el Per: 1900-1950, Quipu, v. 4, n.3, 1987, pp. 327-55.
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acompanharemos a formao mdica de Carlos Chagas, entre 1897 e 1903, num perodo que
foi vivido, no cenrio internacional e no Brasil, como divisor de guas no pensamento
mdico, em funo dos novos modelos da microbiologia e da medicina tropical, que
ganharam significados e implicaes particulares no contexto sanitrio e poltico da capital
federal. Procuraremos, assim, identificar os parmetros e recursos tericos e a viso a
respeito da cincia que norteariam Chagas em seus primeiros trabalhos e seriam
determinantes tanto para a descoberta, quanto para a produo dos conhecimentos sobre a
nova doena. Por outro lad