20
ROMAN JAKOBSON L L I I N N G G Ü Ü Í Í S S T T I I C C A A E E C C O O M M U U N N I I C C A A Ç Ç Ã Ã O O Prefácio de IZIDORO BLIKSTEIN (da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e da Escola de Comunicações e Artes da USP) Tradução de IZIDORO BLIKSTEIN e JOSÉ PAULO PAES EDITORA CULTRIX SÃO PAULO

Dois Aspectos Da Linguagem e Dois Tipos de Afasia (JAKOBSON, R.)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Capítulo de Roman Jakobson

Citation preview

  • ROMAN JAKOBSON

    LLIINNGGSSTTIICCAA EE

    CCOOMMUUNNIICCAAOO

    Prefcio de

    IZIDORO BLIKSTEIN

    (da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas e da Escola de Comunicaes e Artes da USP)

    Traduo de

    IZIDORO BLIKSTEIN e JOS PAULO PAES

    EDITORA CULTRIX

    SO PAULO

  • D O IS ASPE C T OS D A L IN G U A G E M E D O IS T IPOS D E A F ASI A

    I A A F ASI A C O M O PR O B L E M A L IN G ST I C O

    Se a afasia uma perturbao da linguagem, como o prprio termo sugere, segue-se da que toda descrio e classificao das perturbaes afsicas deve comear pela questo de saber quais aspectos da linguagem so prejudicados nas diferentes espcies de tal desordem. Esse problema. abordado h j muito tempo por Hughlings Jackson.1 no pode ser resolvido sem a participao de lingistas profissionais familiarizados com a estrutura e o funcionamento da linguagem.

    Para estudar, de modo adequado, qualquer ruptura nas comunicaes, devemos, primeiro, compreender a natureza e a estrutura do modo particular de comunicao que cessou de funcionar. A Lingstica interessa-se pela linguagem em todos os seus aspectos pela linguagem em ato, pela linguagem em evoluo,2 pela linguagem em estado nascente, pela linguagem em dissoluo.

    Atualmente, h psicopatologistas que do grande importncia aos problemas lingsticos relacionados com o estudo [pg.34] das perturbaes de linguagem;3 algumas dessas questes foram versadas nos melhores tratados recentemente publicados acerca da afasia.4 Entretanto, na maioria dos casos, essa legtima insistncia na contribuio dos lingistas s pesquisas sobre a afasia ainda ignorada. Um livro recente, por exemplo, que trata extensamente das complexas e mltiplas implicaes da afasia infantil, faz um apelo em prol da coordenao de vrias disciplinas e reclama a cooperao de otorrinolaringologistas, pediatras, audilogos, psiquiatras e educadores; todavia, a cincia da linguagem passa em silncio como se as perturbaes da percepo da fala no tivessem nada a ver com a linguagem.5 Esta omisso tanto mais deplorvel quanto o autor o Diretor da Clnica de Audio e Afasia Infantil, na North Western University, que conta, entre

    1 Hughlings Jackson, "Papers on affections of speech" (republicados e comentados por H. Head), Brain, XXXVIII (1915). 2 E. Sapir, Language (NovaIorque,1921),CaptuloVII:Languageasahistoricalproductdrift." 3 Ver, por exemplo, a discusso sobre afasia nos "Nederlandsche Vereeniging voor Phonetische Wetenschappen", com artigos do lingista J. van Ginneken e de dois psiquiatras, F. Grewel e V. W. D. Schenk, Psychiatrische en Neurologische Bladen, XLV (1941), p. 103 ss. cf., outrossim, F. Grewel, "Aphasie en linguistiek", Nederlandsch Tiddschrift voor Geneeskunde, XCIII (1949), p. 726 ss. 4 A. R. Luria, Travrmatieskajaafazija (Moscou, 1947); Kurt Goldstein, Language and Language Disturbances (Nova Iorque, 1948); Andr Ombredane, Laphasie et llaboration de la penseexplicite (Paris, 1951). 5 H. Myklebust, Auditory Disorders in Children (Nova Iorque, 1954).

  • seus lingistas, Werner F. Leopold, sem dvida o melhor especialista norte-americano em linguagem infantil.

    Os lingistas tm sua parte de responsabilidade no atraso em empreender uma pesquisa conjunta sobre afasia. Nada de comparvel s minuciosas observaes lingsticas feitas em crianas de diferentes pases foi realizado no que concerne aos afsicos. Tampouco houve qualquer tentativa de reinterpretar e sistematizar, do ponto de vista da Lingstica, os mltiplos dados clnicos referentes aos diversos tipos de afasia. Esse estado de coisas bastante surpreendente, pois, de um lado, os espantosos progressos da Lingstica estrutural dotaram os pesquisadores de instrumentos e mtodos eficazes para o estudo da regresso verbal e, de outro lado, a desintegrao afsica das estruturas verbais pode abrir, [pg.35] para o lingista, perspectivas novas no tocante s leis gerais da linguagem.

    A aplicao de critrios puramente lingsticos interpretao e classificao dos fatos da afasia pode contribuir, de modo substancial, para a cincia da linguagem e das perturbaes da linguagem, desde que os lingistas procedam com o mesmo cuidado e precauo ao examinar os dados psicolgicos e neurolgicos como quando tratam de seu domnio habitual. Primeiramente, devem familiarizar-se com os termos e procedimentos tcnicos das disciplinas mdicas que tratam da afasia; em seguida, devem submeter os relatrios de casos clnicos a uma anlise lingstica completa; ademais, eles prprios deveriam trabalhar com os pacientes afsicos a fim de abordar os casos diretamente e no somente atravs de uma reinterpretao das observaes j feitas, concebidas e elaboradas dentro de um esprito total mente diferente.

    H um nvel de fenmenos afsicos cru que notvel acordo foi alcanado durante os ltimos vinte anos entre os psiquiatras e os lingistas que tm tratado dessas questes a saber, a desintegrao do sistema fnico.6 Essa dissoluo apresenta uma ordem temporal de grande regularidade. A regresso afsica se revelou um espelho da aquisio de sons da fala pela criana; ela nos mostra o desenvolvimento da criana ao inverso, Mais ainda, a comparao entre a linguagem infantil e a afasia nos permite estabelecer diversas leis de implicao. A pesquisa sobre a ordem das aquisies e das perdas e sobre as leis gerais de implicao no pode [pg.36] ser limitada ao sistema fonolgico mas deve estender-se tambm ao sistema gramatical. Fizeram-se apenas alguns ensaios preliminares nesse sentido, e tais esforos merecem ser continuados.7 6 O empobrecimento afsico do sistema fnico foi observado e discutido pela lingista Marguerite Durand em colaborao com os psicopatologistas Th. Alajouanine e A. Ombredane (em sua obra conjunta Le syndromededsintgrationphontiquedanslaphase, Paris, 1939) e por R. Jakobson (o primeiro esboo, apresentado ao Congresso Internacional de Lingistas reunido em 1939 em Bruxelas ver N. Trubetzkoy, Principes de phonologie, Paris, 1949, pp. 367-79 foi posteriormente desenvolvido em "Kindersprache, Aphasie und allgemeine Lautgesetze", Uppsala Unirersitets Arsskrift 1942: 9; ver Selected Wrtings, Haia, 1962, 328-401); foi estudado mais amplamente em sua obra Sound and Meaning (a ser publicada por Wiley and Sons, em colaborao com The Technology Press). Cf. K. Goldstein p. 32 ss. 7 Uma investigao conjunta de certas perturbaes gramaticais foi levada a cabo na Clnica da Universidade de Bonn pelo lingista G. Kandler e dois mdicos, F. Panse e A. Leischner; ver seu

  • I I O DUPL O C A R T E R D A L IN G U A G E M

    Falar implica a seleo de certas entidades lingsticas e sua combinao em

    unidades lingsticas de mais alto grau de complexidade. Isto se evidencia imediatamente ao nvel lexical quem fala seleciona palavras e as combina em frases, de acordo com o sistema sinttico da lngua que utiliza; as frases, por sua vez, so combinadas em enuncia dos. Mas o que fala no de modo algum um agente completamente livre na sua escolha de palavras: a seleo (exceto nos raros casos de efetivo neologismo) deve ser feita a partir do repertrio lexical que ele prprio e o destinatrio da mensagem possuem em comum. O engenheiro de comunicaes aproxima-se de modo mais adequado da essncia do ato da fala quando sustenta que, na troca tima de informao, o que fala e o que ouve tm a sua disposio mais ou menos o mesmo "fichrio de representaes pr-fabricadas": o destinatrio da mensagem verbal escolhe uma destas "possibilidades preconcebidas" e impe-se que o destinatrio faa uma escolha idntica no mesmo repertrio de "possibilidades j previstas e preparadas".8 Assim, para ser eficiente, o ato da fala exige o uso de um cdigo comum por seus participantes.

    "Voc disse porco ou porto?" perguntou o Gato. "Eu disse porco, respondeu Alice".9 Dentro deste enunciado [pg.37] especfico, o destinatrio felino se esfora por captar uma escolha lingstica feita pelo remetente. No cdigo comum do Gato e de Alice, em portugus corrente, a diferena entre uma oclusiva velar e uma oclusiva dental, mesmo se todo o restante for igual. pode modificar a significao da mensagem. Alice usou o trao distintivo "velar/ dental" rejeitando o segundo para escolher o primeiro dos dois termos opostos. e no mesmo ato de fala ela combinou essa soluo com alguns outros traos simultneos, pois /k/ surdo por oposio a /g/ sonoro, e oclusivo por oposio a /r/ vibrante velar. Assim, todos esses atributos foram combinados em um feixe de traos distintivos: no que se chama um fonema. O fonema /k/ precedido e seguido pelos fonemas /p/, /o/, /r/ e /o/, os quais so, eles prprios, feixes de traos distintivos produzidos simultaneamente. Pode-se dizer que a concorrncia de entidades simultneas e a concatenao de entidades sucessivas so os dois modos segundo os quais ns, que falamos, combinamos os constituinteslingsticos.

    Nem feixes de traos como /k/ ou /t/. nem seqncias de feixes como /porku/ ou /portu/ so inventados pela pessoa que os utiliza. Tampouco pode o trao distintivo velar/dental, ou o fonema /k/, aparecer fora do contexto. O trao velar aparece em combinao com outros traos concomitantes e o repertrio de informe, Klinische und sprachwissenschaftliche Untersuchungen zum Agrammatismus (Stuttgart, 1952). 8 D. M. Mackay, "In search of basic symbols", Cybernetics, Transactions of the Eighth Conference (Nova Iorque, 1952), p. 183. 9 Lewis Carroll, AlicesAdventuresinWonderland, Captulo VI.

  • combinaes desses traos em fonemas como /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /g/ etc., limitado pelo cdigo da lngua dada. O cdigo impe limitaes s possveis combinaes do fonema /k/ com os fonemas subseqentes e/ou precedentes, e somente uma parte das seqncias de fonemas permissveis realmente utilizada no estoque lexical de uma lngua dada. Mesmo quando outras combinaes de fonemas so te possveis, o que fala, via de regra, apenas um usurio, no um criador de palavras. Diante de palavras individuais, esperamos que elas sejam unidades codificadas. Assim, para compreender a palavra nylon, devemos saber o significado atribudo a esse vocbulo no cdigo lexical do ingls moderno.

    Em toda lngua, existem tambm grupos de palavras codificadas chamados palavras-frases. O significado da frmula [pg.38] como vai voc no pode ser inferido da adio dos significados de seus constituintes lexicais; o todo no igual soma de suas partes. Grupos de palavras, que, neste particular, se comportam como palavras nicas, representam um caso comum, mas no obstante marginal. Para compreender a esmagadora maioria dos grupos de palavras, basta estarmos familiarizados com as palavras constituintes e com as regras sintticas de suas combinaes. Dentro desses limites, temos liberdade de ordenar as palavras em, contextos novos. Evidentemente, tal liberdade relativa e a presso dos chaves usuais sobre nossa escolha de combinaes considervel. Mas a liberdade de compor contextos totalmente novos inegvel, apesar da probabilidade estatstica relativamente baixa de sua ocorrncia.

    Existe pois, na combinao de unidades lingsticas. uma escala ascendente de liberdade. Na combinao de traos distintivos em fonemas, a liberdade individual do que fala nula; o cdigo j estabeleceu todas as possibilidades que podem ser utilizadas na lngua em questo. A liberdade de combinar fonemas em palavras est circunscrita; est limitada situao marginal da criao de palavras. Ao formar frases com palavras, o que fala sofre menor coao. E, finalmente, na combinao de frases em enunciados, cessa a ao das regras coercivas da sintaxe e a liberdade de qual quer indivduo para criar novos contextos cresce substancial- mente, embora no se deva subestimar o nmero de enuncia dos estereotipados.

    Todo signo lingstico implica dois modos de arranjo: 1) A combinao. Todo signo composto de signos constituintes e/ou aparece em

    combinao com outros signos, Isso significa que qualquer unidade lingstica serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu prprio contexto em uma unidade lingstica mais complexa. Segue-se da que todo agrupamento efetivo de unidades lingsticas liga-as numa unidade superior: combinao e contextura so as duas faces de uma mesma operao. [pg.39]

    2) A seleo. Uma seleo entre termos alternativos implica a possibilidade de

    substituir um pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em

  • outro. De fato, seleo e substituio so as duas faces de uma mesma operao.

    O papel principal que estas duas operaes desempenham na linguagem foi

    claramente percebido por Ferdinand de Saussure. Entretanto, das duas variedades de combinao concorrncia e concatenao somente a segunda, a seqncia temporal, foi reconhecida pelo lingista genebrino. Mal grado sua prpria intuio do fonema como um conjunto de elementos diferenciais, o mestre sucumbiu tradicional crena no carter linear da linguagem "qui exclut la possibilit de prononcer deux lments la fois".10

    A fim de delimitar os dois modos de arranjo, que descrevemos como sendo a combinao e a seleo, F. de Saussure estabeleceu que o primeiro "aparece in praesentia: baseia-se em dois ou vrios termos igualmente presentes dentro de uma srie efetiva", enquanto o segundo "une os termos in absentia como membros de uma srie mnemnica virtual". Isto quer dizer: a seleo (e, correlativamente, a substituio) concerne s entidades associadas no cdigo mas no na mensagem dada, ao passo que, no caso de combinao, as entidades esto associadas em ambos ou somente na mensagem efetiva. O destinatrio percebe que o enunciado dado (mensagem) uma combinao d partes constituintes (frases, palavras, fonemas etc.) selecionadas do repertrio de todas as partes constituintes possveis (cdigo) Os constituintes de um contexto tm um estatuto de contigidade, enquanto num grupo de substituio os signos esto ligados entre si por diferentes graus de similaridade, que oscilam entre a equivalncia dos sinnimos e o fundo comum (common core) dos antnimos. Essas duas operaes fornecem a cada signo lingstico dois grupos de interpretantes, para retomar o til conceito [pg.40] introduzido por Charles Sanders Peirce11: duas referncias servem para interpretar o signo uma ao cdigo e outra ao contexto, seja ele codificado ou livre; em cada um desses casos, o signo est relacionado com outro conjunto de signos lingsticos, por uma relao de alternao no primeiro caso e de justaposio no segundo. Uma dada unidade significativa pode ser substituda por outros signos mais explcitos do mesmo cdigo, por via de que seu significado geral se revela, ao passo que seu sentido contextual determinado por sua conexo com outros signos no interior da mesma seqncia.

    Os constituintes de qualquer mensagem esto necessariamente ligados ao cdigo por uma relao interna e mensagem por uma relao externa. A linguagem, em seus diferentes aspectos, utiliza os dois modos de relao. Quer mensagens sejam trocadas ou a comunicao proceda de modo unilateral do remetente ao destinatrio, preciso que, de um modo ou de outro, uma forma de contigidade exista entre os protagonistas do ato da fala para que a transmisso da mensagem seja assegurada. A separao no espao, e muitas vezes no tempo, de dois indivduos, o remetente e o 10 F. de Saussure, Cours de linguistique gnrale, 2. ed. (Paris, 1922), pp. 68 s. e 170 s. 11 C. S. Peirce, Collected Papers, II e IV (Cambridge, Mass., 1932, 1934) ver ndice de assuntos.

  • destinatrio, franqueada graas a uma relao interna: deve haver certa equivalncia entre os smbolos utilizados pelo remetente e os que o destinatrio conhece e interpreta. Sem tal equivalncia, a mensagem se torna infrutfera mesmo quando atinge o receptor, no o afeta.

    I I I O D IST RBI O D A SI M I L A RID A D E

    claro que os distrbios da fala podem afetar, em graus diversos, a capacidade que o indivduo tem de combinar e selecionar as unidades lingsticas e, de fato, a questo de saber qual das duas operaes principalmente afetada se revela ser de primordial importncia para a descrio, anlise e classificao das diferentes formas de afasia. [pg.41] Essa dicotomia talvez at mais sugestiva ainda que a distino clssica (no discutida neste artigo) entre a afasia de emisso e de recepo, que indica qual das duas funes, no intercmbio verbal, na codificao ou na decodificao de mensagens verbais, particularmente afetada.

    Head tentou classificar os casos de afasia em grupos definidos12 e atribuir a cada uma dessas variedades "um nome escolhido para assinalar a deficincia mais saliente no manejo e compreenso das palavras e das frases" (p. 412). Distinguimos, seguindo essa direo, dois tipos fundamentais de afasia conforme a deficincia principal resida na seleo e substituio, enquanto a combinao e a contextura ficam relativamente estveis; ou, ao contrrio, resida na combinao e contextura, com uma reteno relativa das operaes de seleo e substituio normais. Ao traar as grandes linhas desses dois padres opostos de afasia, utilizarei principalmente os materiais fornecidos por Goldstein.

    Para os afsicos de primeiro tipo (deficincia de seleo), o contexto constitui fator indispensvel e decisivo. Quando se apresentam, a um doente que tal, fragmentos de palavras ou frases, ele as completa com muita facilidade. Sua linguagem meramente reativa: ele continua facilmente uma conversa, mas tem dificuldades em comear um dilogo; capaz de responder a um interlocutor real ou imaginrio quando ele prprio , ou imagina ser, o destinatrio da mensagem. -lhe particularmente difcil empreender ou at mesmo compreender um discurso fechado como o monlogo. Quanto mais seus enunciados dependam do contexto, melhor se haver ele em sua tarefa verbal. Sente-se incapaz de emitir uma frase que no responda ou a uma rplica do interlocutor ou a uma situao efetivamente presente. A frase "chove" s poder ser dita se o que a pronuncia perceber que realmente chove. Quanto mais profundamente estiver o enunciado embutido no contexto verbal ou no verbalizado, maiores sero as probabilidades de ser levado a cabo com xito por tal categoria de pacientes. [pg.42]

    De igual maneira, quanto mais uma palavra depender de outras da mesma frase e quanto mais se relacionar com o contexto sinttico, menos afetada ser pelo 12 H. Head, Aphasia and Kindred Disorders of Speech, I (Nova Iorque, 1926).

  • distrbio da fala. por isso que as palavras sintaticamente subordinadas por concordncia ou regncia gramatical so mais resistentes. ao passo que o principal agente subordinante da frase, isto , o sujeito, tende a ser omitido. Na medida em que o incio for a principal dificuldade do paciente, evidente que malograr precisamente no ponto de partida, a pedra angular na estrutura da frase. Nesse tipo de distrbio da linguagem, as frases so concebidas como seqncias elpticas, a serem completadas a partir de frases anteriormente ditas, quando no imaginadas, pelo prprio afsico ou recebidas por ele de um interlocutor real ou imaginrio. Palavras-chaves podem ser eliminadas ou trocadas por substitutos anafricos abstratos13. Como observou Freud, um substantivo especfico substitudo por um termo muito genrico, como, por exemplo, machin, chose, na linguagem dos afsicos franceses14. Num caso de "afasia amnsica" observado por Goldstein (p. 246 ss.), Ding, "coisa", ou Stckle, "pedao", eram usados como substitutos para todos os nomes inanimados, e berfahren, "realizar", substitua verbos identificveis a partir do contexto ou situao e que por isso pareciam suprfluos ao paciente.

    As palavras que comportam uma referncia inerente ao contexto, tais como pronomes e advrbios pronominais. e as palavras que servem apenas para construir o contexto tais como conectivos e auxiliares, esto particularmente propensas a sobreviver. Um enunciado tpico de um doente alemo, referido por Quensel e citada por Goldestein (p. 302), vai servir-nos de ilustrao.

    " Ich bin doch hier untem, na wenn ich gewesen bin ich wees nicht, we das, nu wenn ich, ob das num doch, noch, ja. Was Sie her, wenn ich, och ich weess nicht, we das hier war ja... " [pg.43]

    Assim. somente a estrutura, os elos de conexo da comunicao so poupados nesse tipo de afasia em seu estgio crtico.

    Na teoria da linguagem, desde a alta Idade Mdia, afirmou-se, repetidas vezes, que a palavra, fora do contexto, no tem significado. A validade dessa afirmao est, entre tanto, limitada afasia ou, mais exatamente, a um tipo de afasia. Nos casos patolgicos em discusso, uma palavra isolada no significa, de fato, nada mais que simples tagarelice. Como numerosas provas o mostraram, para doentes desse tipo, duas ocorrncias da mesma palavra em contextos diferentes constituem simples homnimos. J que vocbulos distintos trazem uma quantidade de informao maior que os homnimos, alguns afsicos deste tipo tm tendncia a substituir as variantes contextuais de uma mesma palavra por termos diferentes, cada um dos quais especfico para as circunstncias dadas. Assim, o paciente de Goldstein no proferia jamais a palavra faca sozinha, mas, conforme seu uso e circunstncias, designava a faca respectivamente como apontador, cortador-de-ma, faca-de-po e talher (garfo e faca) (p. 62); desse modo a palavra faca era mudada, de uma forma livre, capaz de ocorrer isolada, para uma forma vinculada.

    13 Cf. L. Bloomfield, Language (Nova Iorque, 1933), Captulo XV: Substituio. 14 S. Freud, On aphasia (Londres 1953), p. 22.

  • "Tenho um bom apartamento, hall de entrada, dormi trio, cozinha", diz um paciente de Goldstein. "H tambm apartamentos grandes, s que no fundo vivem solteiros." Uma forma mais explcita, o grupo de palavras pessoas no-casadas, poderia ter substitudo solteiros, mas foi esse termo universal o escolhido pelo paciente. Instado a dizer o que era um solteiro, o doente no respondeu e ficou "aparentemente angustiado" (p. 270). Uma resposta como "solteiro um homem no-casado" ou "um homem no-casado solteiro" teria constitudo uma predicao equacional e assim uma projeo de um grupo de substituio, do cdigo lexical da lngua portuguesa. no contexto da mensagem em questo. Os termos equivalentes tornam-se duas partes correlativas da frase e por conseguinte se unem por um lao de contigidade. O paciente era capaz de escolher [pg.44] o termo apropriado solteiro, quando era apoiado pelo contexto de uma conversa habitual sobre "os apartamentos de solteiro", mas mostrou-se incapaz de utilizar o grupo de substituio solteiro = homem no-casado como tema de uma frase porque a capacidade de seleo e substituio autnoma tinha sido afetada. A frase equacional pedida, sem xito, ao paciente, veicula como sua nica informao: "solteiro significa um homem no-casado" ou "um homem no-casado chamado de solteiro".

    A mesma dificuldade surge quando se pede ao paciente que diga o nome de um objeto indicado ou manipulado pelo observador. O afsico que sofre de distrbio da funo de substituio no completar o gesto do observador de indicao ou manipulao comonomedoobjetoindicado.Emvezdedizerissochamado lpis", acrescentar simplesmente uma observao elptica acerca do seu uso: "Para escrever". Se um dos signos sinonmicos estiver presente (como, por exemplo, a palavra solteiro ou o mostrar o lpis com o dedo), ento o outro signo (como o grupo de palavras homem no-casado ou a palavra lpis) se tornar redundante, e conseqentemente suprfluo. Para os afsicos, ambos os signos se encontram em uma distribuio complementar: se um for apresentado pelo observador, o paciente evitar seu sinnimo: "Compreendo tudo" ou "Ich weiss es schon" ser sua reao tpica. Assim tambm, o desenho de um objeto ocasionar a perda do seu nome: um signo verbal substitudo por um signo pictural. Quando se apresentou a um paciente de Lotmar o desenho de uma bssola. ele respondeu: "Sim, um ... sei de que se trata mas no consigo lembrar-me da expresso tcnica ... Sim direo ... para indicar direo ... uma agulha imantada indica o Norte.15 Esses doentes, como diria Peirce, no chegam a passar de um ndice ou de um cone ao smbolo verbal correspondente16." [pg.45]

    At mesmo a simples repetio de uma palavra enunciada pelo observador parece inutilmente redundante ao paciente e, apesar das instrues recebidas, ele incapaz de repeti-la. Instado a repetir a palavra "no", o paciente de Head respondeu: "No, no sei como faz-lo." Embora utilizasse espontaneamente a palavra no

    15 F. Lotmar, "Zur Pathophysiologie der erschwerten Wortifindung bei Aphasischen", Schweiz. Archiv fr Neurologie und Psychiatrie, XXXV (1933), p. 104. 16 C. S. Peirce, "The icon, index and symbol", Collected Papers. II (Cambridge, Mass,, 1932).

  • contexto de sua resposta ("No, eu no ..."), no pde produzir a forma mais pura de predicao equacional, a tautologia a = a: "no" "no".

    Uma das grandes contribuies da lgica simblica para a cincia da linguagem a nfase dada distino entre linguagem-objeto e metalinguagem. Como diz Carnap, "para falar sobre qualquer linguagem-objeto, precisamos de uma metalinguagem17. Nesses dois nveis diferentes da linguagem, o mesmo estoque lingstico pode ser utilizado; assim, podemos falar em portugus (como metalinguagem) a respeito do portugus (como linguagem-objeto) e interpretar as palavras e as frases do portugus por meios de sinnimos, circunlocues e parfrases portuguesas. evidente que operaes desse tipo, qualificadas de metalingsticas pelos lgicos, no so de sua inveno: longe de se confinarem esfera da Cincia,. elas demonstram ser parte integrante de nossas atividades lingsticas habituais. Muitas vezes. em um dilogo, os interlocutores cuidam de verificar se , de fato, o mesmo cdigo que esto utilizando. "Est me ou vindo? Entendeu o que eu quero dizer?", pergunta o que fala, quando no o prprio ouvinte que interrompe a conversa com um "O que que voc quer dizer?" A ento. com substituir o signo que causa problema por outro signo. que pertena no mesmo cdigo lingstico ou por todo um grupo do signos do cdigo, o emissor da mensagem procura torn-la mais acessvel ao decodificador. [pg.46]

    A interpretao de um signo lingstico por meio de outros signos da mesma lngua, sob certo aspecto homogneos, uma operao metalingstica que desempenha papel essencial na aprendizagem da linguagem pela criana. Observaes recentes mostraram o considervel lugar ocupado por conversas sobre a linguagem no comportamento verbal das crianas em idade pr-escolar18. O recurso metalinguagem necessrio tanto para a aquisio da linguagem como para seu funcionamento normal. A carncia afsica da "capacidade de denominar" constitui propriamente uma perda de metalinguagem. Em verdade, os exemplos de predicao equacional in solicitado aos pacientes acima citados so proposies metalingsticas que se referem a lngua portuguesa. Sua formulao explcita seria: "Dentro do cdigo que utilizamos, o nome do objeto indicado lpis" ou "Dentro do cdigo de que nos servimos, a palavra solteiro e a circunlocuo homem no-casado so equivalentes".

    Um afsico deste tipo no pode passar de sua palavra aos seus sinnimos ou circunlocues equivalentes, nem a seus heternimos, isto , expresses equivalentes em outras lnguas. A perda da aptido bilnge e a limitao a uma nica variedade dialetal de uma s lngua constitui manifestao sintomtica dessa desordem.

    17 R. Carnap, Meaning and Necessity (Chicago, 1947), p. 4. 18 Ver os notveis estudos de A. Gvozdev: "Nabljudenija nad Jazykommalenkixdetej",Russkij jazyk v sovetskoj ko1e (1929); Usvoenic rebenkom zvukovoj storony russkogo jazyka (Moscou, 1948); e Formirovanicurebenkagrarnatieskogostrojarusskogojazyka (Moscou, 1949).

  • De acordo com um preconceito antigo, mas que renasce periodicamente, o modo de falar especfico de um indivduo num dado momento, batizado de idioleto, tem sido considerado a nica realidade lingstica concreta. Na discusso desse conceito, foram levantadas as seguintes objees:

    "Quando fala a um novo interlocutor, toda pessoa procura deliberada ou involuntariamente, encontrar um vocabulrio comum: utiliza os termos dele, seja para agradar o interlocutor, seja simplesmente para ser compreendida ou, enfim, para livrar-se dele. A propriedade [pg.47] privada, no domnio da linguagem, no existe: tudo socializado. O intercmbio verbal, como qualquer forma de relao humana, requer dois interlocutores pelo menos, e o idioleto demonstra ser uma fico algo perversa.19

    Esta afirmao, entretanto, exige uma reserva: para um afsico que perdeu a

    capacidade de "mudana de cdigo" (code switching), o "idioleto" torna-se, na verdade, a nica realidade lingstica. Enquanto no considerar o discurso de outrem como uma mensagem que lhe dirigida em seus prprios modelos verbais, ele experimentar sentimentos que um paciente de Hemphil e Stengel assim exprimia: "Estou ouvindo perfeitamente, mas no posso compreender o que voc diz (... ) Ouo sua voz mas no as palavras. (...) No pronuncivel"20. Ele considera o discurso do outro uma algaravia, ou, pelo menos, algo enunciado numa lngua desconhecida.

    Como j se observou acima, a relao externa de contigidade que une os constituintes de um contexto e a relao interna de similaridade que serve de base para a substituio. Por isso, no caso de um afsico cuja funo de substituio foi alterada e a de contexto permaneceu intacta, as operaes que implicam similitude cedem s fundadas na contigidade. Pode-se prever que, nessas condies, qualquer agrupamento semntico ser antes guiado pela contigidade espacial ou temporal do que pela similitude. E os textos de Goldstein justificam, de fato, essa expectativa: uma paciente desse tipo, a quem se pediu que enumerasse alguns nomes de animais, enunciava-os na ordem em que os tinha visto no zoolgico; assim tambm, malgrado instrues que recebera de dispor certos objetos segundo a cor, dimenso e forma, ela os classificava em funo de sua [pg.48] contigidade espacial, como objetos domsticos, material de escritrio etc., e justificava essa disposio referindo-se a uma vitrina, onde "pouco importa o que sejam as coisas", isto , elas no tm de ser semelhantes (pp. 61 ss., 263 ss.). A mesma paciente queria dar nome s cores fundamentais vermelho, amarelo, verde e azul mas se recusava a estender esses nomes aos tons intermedirios (p. 268 ss.), pois, para ela, as palavras no tinham

    19 "Results of the Conference of Anthropologists and Linguists", Indiana University Publications in Anthropology and Linguistics, VIII (1953), p. 15. 20 R. E. Hemphil e E. Stengel, "Pure word deafness", Journal of Neurology and Psychiatry, III (1940) pp. 251-62.

  • capacidade de assumir significados adicionais, deslocados, associados por similaridade a seu significado primeiro.

    Devemos concordar com Goldstein quando observa que os doentes desse tipo "captam as palavras em seu significado literal. mas no chegam a compreender-lhes o carter metafsico" (p. 270). Seria, entretanto, uma injustificvel generalizao afirmar que o discurso figurado lhes totalmente incompreensvel. Das duas figuras polares de estilo, a metfora e a metonmia, esta ltima, baseada na contigidade, muito empregada pelos afsicos cujas capacidades de seleo foram afetadas. Garfo substitudo por faca, mesa por lmpada, fumaa por cachimbo, comer por torradeira. Um caso tpico relatado por Head:

    "Quando ele no conseguia lembrar-se da palavra designativa de "preto", descrevia a coisa como "Aquilo que se faz para um morto"; isso ele abreviava para "morto" (I, p. 198)."

    Tais metonmias podem ser caracterizadas como projees da linha de um

    contexto habitual sobre a linha de substituio e seleo; um signo (garfo, por exemplo), que aparece ordinariamente ao mesmo tempo que outro signo (faca, por exemplo) pode ser utilizado no lugar desse signo. Grupos de palavras como "garfo e faca", "lmpada de mesa", "fumar um cachimbo" suscitaram as metonmias garfo, mesa, fumaa; a relao entre o uso de um objeto (torrada) e os meios de sua produo subjazem metonmia comer por torradeira. "Quando que a gente se veste de preto?" "Quando se pe luto por um morto"; em vez de dar nome cor, designa-se a causa de seu [pg.49] uso tradicional. A evaso da igualdade para a contigidade particularmente impressionante em casos como o do paciente de Goldstein, que responderia por uma metonmia quando se lhe pedia que repetisse uma determinada palavra; ele dizia, por exemplo, vidro por janela e cu por Deus (p. 280).

    Quando a capacidade de seleo fortemente afetada e o poder de combinao pelo menos parcialmente preservado, a contigidade determina todo o comportamento verbal do doente e ns podemos designar esse tipo de afasia como distrbio da similaridade.

    I V O D IST RBI O D A C O N T IG ID A D E

    De 1864 em diante, foi repetidamente assinalado, nas contribuies pioneiras de Hughlings Jackson para o estudo moderno da linguagem e dos distrbios da linguagem:

    "No suficiente dizer que o discurso consiste de palavras. Consiste de palavras que se relacionam umas com as outras de maneira particular; e. falta de uma inter-relao especfica de seus membros, um enunciado verbal seria

  • uma simples sucesso de nomes que no englobam nenhuma proposio (p. 66)21."

    "A perda do discurso a perda do poder de construir proposies ...) A inaptido para o discurso no significa uma ausncia total de palavras (p. 114)22" A deteriorao da capacidade de construir proposies ou, em termos mais

    gerais, de combinar entidades lingsticas mais simples em unidades mais complexas, est, na realidade, limitada a um s tipo de afasia, que o oposto do tipo discutido no captulo anterior. No h perda total [pg.50] da palavra, porque a entidade preservada na maior parte dos casos que tais a palavra, que pode ser definida como a mais alta entre as unidades lingsticas obrigatoriamente codificadas , o que quer dizer que construmos nossas prprias frases e enunciados a partir do estoque de palavras fornecidas pelo cdigo.

    Nesse tipo de afasia, deficiente quanto ao contexto, e que poderia ser chamada de distrbio da contigidade, a extenso e a variedade das frases diminuem. As regras sintticas, que organizam as palavras em unidades mais altas, perdem-se; esta perda, chamada de agramatismo, tem por resultado fazer a frase degenerar num simples "monte de palavras", para usar a imagem de Jackson23. A ordem das palavras se torna catica; os vnculos de coordenao e subordinao gramatical, quer de concordncia, quer de regncias dissolvem-se. Como seria de esperar, as palavras dotadas de funes puramente gramaticais, como por exemplo as conjunes, preposies, pronomes e artigos, desaparecem em primeiro lugar para serem substitudas pelo estilo chamado "telegrfico", ao passo que, no caso de desordem da similaridade, so as mais resistentes. Quanto menos uma palavra depender gramaticalmente do contexto, tanto mais forte ser a sua persistncia no discurso dos afsicos com distrbio da funo de contigidade, e tanto mais rapidamente ser eliminada pelos pacientes que sofrem de distrbios da similaridade. Assim, o sujeito, "palavra-ncleo", o primeiro a desaparecer da frase no caso de distrbios da similaridade e, inversamente, o menos destrutvel no tipo oposto de afasia.

    A afasia na qual afetada a funo do contexto tende a reduzir o discurso a pueris enunciados de frases, e at mesmo a frases de uma s palavra. Apenas algumas frases mais longas, esteriotipadas, "feitas", conseguem sobreviver. Nos casos adiantados de tal distrbio, cada enunciado reduzido a uma frase de uma s palavra. medida que o [pg.51] contexto se desagrega, as operaes de seleo prosseguem. "Dizer o que uma coisa, dizer a que se assemelha", faz notar Jackson (p. 125). O doente limitado ao grupo de substituio (quando o contexto falho) usa as 21 H. Jackson, "Notes on the physology and pathology of the nervous system" (1868), Brain, XXXVIII (1915), pp. 65-71. 22 H.Jackson,"Onaffectionsofspeechfromdiscaseofthebrain(1879),Brain, XXXVIII (1915), pp. 107-29. 23 H. Jackson, "Notes on the physiology and pathology of Language" (1866), Brain, XXXVIII (1915), pp. 48-58.

  • similitudes, e suas identificaes aproximadas so de natureza metafrica, em oposio s identificaes metonmicas familiares aos afsicos do tipo oposto. culo de alcance por microscpio, fogo em vez de luz de gs so exemplos tpicos de semelhantes expresses quase metafricas, como as batizou Jackson, uma vez que, em oposio s metforas retricas ou poticas, elas no apresentam nenhuma transferncia deliberada de sentido.

    Na linguagem normal, a palavra ao mesmo tempo parte integrante de um contexto superior, a frase, e por si mesma um contexto de constituintes menores, os morfemas (unidades mnimas dotadas de significao) e os fonemas. Falamos dos efeitos da desordem da contigidade na combinao de palavras em unidades superiores. A relao entre a palavra e seus constituintes reflete a mesma desordem, ainda que de maneira um pouco diferente. Um trao tpico do agramatismo a abolio da flexo: aparecem categorias no-marcadas, como o infinito no lugar das diferentes formas conjugadas, e nas lnguas dotadas de declinao, o nominativo no lugar de todos os casos oblquos. Esses defeitos so devidos em parte eliminao da regncia e da concordncia e em parte perda da capacidade de decompor as palavras em radical e desinncia. Finalmente, um paradigma (em particular, a srie dos casos gramaticais exemplificados pelo ingls he, his, him ou por tempos como ele vota, ele votou) oferece o mesmo contedo semntico de diferentes pontos de vista associados entre si por contigidade; dessarte, h uma razo a mais, para os afsicos que sofrem de distrbio da contigidade, de rejeitar tais sries.

    Outrossim, via de regra, as palavras derivadas da mesma raiz, como grande-grandeza-grandioso etc., esto ligadas entre si, semanticamente por contigidade. Os pacientes dos quais estamos falando tendem a abandonar as palavras derivadas, ou ento a combinao de uma raiz com um [pg.52] sufixo de derivao e mesmo um composto de duas palavras torna-se indecomponvel para eles. Tm sido citados freqentemente casos de doentes que compreendiam e enunciavam espontaneamente palavras compostas como Cascadura ou Ilhabela mas que eram incapazes de entender ou, dizer casca e dura ou ilha e bela. Enquanto o sentido da derivao se mantm intacto, de modo que esse processo continua sendo usado para introduzir inovaes no cdigo, pode-se observar uma tendncia simplificao abusiva e ao automatismo: se a palavra derivada constituir uma unidade semntica cujo sentido no possa ser inferido inteiramente a partir do de seus elementos, a Gestalt ser mal compreendida. Assim, a palavra russa mokr-ca significa "bicho de conta", mas um afsico russo a interpretou como "algo mido", especialmente "tempo mido", porque a raiz mokr- significa "mido" e o sufixo -ica indica o portador de uma qualidade determinada, como em nelpca, "algo absurdo", svetlca, "quarto claro", temnca, "calabouo" (literalmente "quarto escuro").

    Antes da Segunda Guerra Mundial, quando a Fonologia era o campo mais controvertido da cincia lingstica, certos lingistas levantaram dvidas quanto a se os fonemas desempenham realmente um papel autnomo em nosso comportamento verbal. Chegou-se mesmo a sugerir que as unidades significativas do cdigo lingstico, como os morfemas, ou melhor, as palavras, so as menores entidades com

  • as quais efetivamente nos havemos no ato da fala, ao passo que as entidades puramente distintivas, tais como os fonemas, no passariam de uma construo artificial, destinada a facilitar a descrio e a anlise cientficas de uma lngua. Esse ponto de vista, denunciado por Sapir como "contrrio ao realismo"24, mantm-se contudo perfeitamente vlido no que concerne a um certo tipo patolgico: numa das variedades da afasia, designada s vezes pelo rtulo de "atxica", a palavra a nica realidade lingstica preservada. [pg.53] O paciente guarda somente uma imagem integral, indissolvel, das palavras familiares; quanto a todas as demais seqncias fnicas, ou lhe parecem estranhas e inescrutveis. ou ele as funde com as palavras familiares, desprezando as diferena fonticas. Um dos pacientes de Goldstein "percebia certas palavras, mas no percebia as vogais e consoantes de que se compunham" (p. 218). Um afsico francs reconhecia, compreendia, repetia e enunciava espontaneamente as palavras caf e pav, mas era incapaz de entender, distinguir ou repetir seqncias desprovidas de sentido como fca, fak, kfa, paf. Nenhuma dessas dificuldades existe para um ouvinte normal de lngua francesa, na medida em que as seqncias fnicas e seus elementos se conformem ao sistema fonolgico francs. Tal ouvinte pode mesmo apreender essas seqncias como palavras que lhe so desconhecidas, mas que pertencem plausivelmente ao vocabulrio francs e cujos significados so provavelmente diferentes, pois elas diferem umas das outras quer pela ordem dos fonemas, quer pelos prprios fonemas.

    Se um afsico se torna incapaz de decompor a palavra em seus elementos fonolgicos, seu domnio da construo da palavra se enfraquece e desordens perceptveis afetam em pouco os fonemas e suas combinaes. A regresso gradativa do sistema fonolgico nos afsicos mostra regularmente, sob forma inversa, a ordem das aquisies fonolgicas da criana. Essa regresso acarreta uma inflao de homnimos e um empobrecimento do vocabulrio. Quando essa dupla incapacidade fonolgica e lxica se acentua ainda mais, os ltimos resduos de fala so enunciados reduzidos a uma s frase, uma s palavra, um s fonema: o paciente recai nas fases iniciais do desenvolvimento lingstico da criana ou mesmo no estgio pr-lingstico ento a afasia universal, a perda total do poder de utilizar ou de apreender a fala.

    A separao das duas funes uma distintiva e a outra significativa constitui um aspecto peculiar da linguagem, comparativamente a outros sistemas semiticos. Surge um conflito entre esses dois nveis da linguagem quando [pg.54] a carncia do contexto, no afsico, revela uma tendncia para abolir a hierarquia das unidades lingsticas e a reduzir sua gama a um s nvel. O ltimo nvel conservado ou a classe dos valores significativos, a palavra, como nos casos que acabamos de ver, ora a classe dos valores distintivos, o fonema. Neste ltimo caso, o paciente ainda capaz de distinguir, identificar e reproduzir os fonemas, mas no tem mais a capacidade de fazer o mesmo com as palavras. Num caso intermedirio, as palavras 24 E. Sapir, "The psychological reality of phonemes", Selected Writings (Berkeley and Los Angeles, 1949), p. 46 ss.

  • so identificadas, distinguidas e reproduzidas; mas, segundo a aguda frmula de Goldstein, elas "podem ser apreendidas como conhecidas, mas no compreendidas" (p. 90). Em tal caso, a palavra perde sua funo significativa normal e assume a funo puramente distintiva que pertence normalmente ao fonema.

    V - OS P L OS M E T A F RI C O e M E T O N M I C O

    As variedades de afasia so numerosas e diversas, mas todas oscilam entre os dois tipos polares que acabamos de descrever. Toda forma de distrbio afsico consiste em alguma deteriorao, mais ou menos grave, da faculdade de seleo e substituio, ou da faculdade de combinao e contexto. A primeira afeco envolve deteriorao das operaes metalingsticas, ao passo que a segunda altera o poder de preservar a hierarquia das unidades lingsticas. A relao de similaridade suprimida no primeiro tipo, a de contigidade no segundo. A metfora incompatvel com o distrbio da similaridade e a metonmia com o distrbio da contigidade.

    O desenvolvimento de um discurso pode ocorrer segundo duas linhas semnticas diferentes: um tema (topic) pode levar a outro quer por similaridade, quer por contigidade. O mais acertado seria talvez falar de processo metafrico no primeiro caso, e de processo metonmico no segundo, de vez que eles encontram sua expresso mais condensada na metfora e na metonmia respectivamente. Na afasia, um ou outro desses dois processos reduzido ou totalmente bloqueado fato que, em si, torna o estudo [pg.55] da afasia particularmente esclarecedor para o lingista. No comportamento verbal normal, ambos os processos esto constantemente em ao, mas uma observao atenta mostra que, sob a influncia dos modelos culturais, da personalidade e do estilo verbal, ora um, ora outro processo goza de preferncia.

    Num teste psicolgico bem conhecido, crianas so colocadas diante de um nome e pede-se a elas que exprimam as primeiras reaes verbais que se lhes apresentam ao esprito. Nessa experincia, duas predilees lingsticas opostas se manifestam invariavelmente: a resposta dada ou como substituto ou como complemento do estmulo. No segundo caso, estmulo e resposta formam, juntos, uma construo sinttica prpria, geralmente uma frase. Esses dois tipos de reaes foram chamados de substitutivo e predicativo.

    Uma das respostas dadas ao estmulo choupana foi queimou; outra, uma pobre casinha. As duas reaes so predicativas; mas a primeira cria um contexto puramente narrativo, ao passo que na segunda h uma dupla conexo com o sujeito choupana: de um lado, uma contigidade posicional (vale dizer, sinttica); de outro, uma similaridade semntica.

    O mesmo estmulo produziu tambm as reaes substitutivas que seguem: a tautologia choupana; os sinnimos cabana e choa; o antnimo palcio e as metforas toca e antro. A capacidade que tm duas palavras de se substiturem uma outra um exemplo de similaridade posicional, e, alm disso, todas as respostas esto ligadas ao estmulo por similaridade (ou oposio) semntica. Respostas metonmicas

  • ao mesmo estmulo, tais como palha ou pobreza, combinam e contrastam a similaridade posicional com a contigidade semntica.

    Manipulando esses dois tipos de conexo (similaridade e contigidade) em seus dois aspectos (posicional e semntico) por seleo, combinao e hierarquizao , um indivduo revela seu estilo pessoal, seus gostos e preferncias verbais. [pg.56]

    Na arte da linguagem, a interao desses dois elementos particularmente marcante. Uma rica matria para o estudo dessa relao pode ser encontrada nas formas de versificao em que o paralelismo entre versos sucessivos obrigatrio, como por exemplo na poesia bblica ou nas tradies orais da Finlndia ocidental e, at certo ponto, da Rssia. Isso fornece um critrio objetivo para julgar aquilo que, numa dada comunidade lingstica, vale como correspondncia. Uma vez que a todo nvel verbal morfolgico, lxico, sinttico e fraseolgico uma ou outra dessas duas relaes (similaridade e contigidade) pode aparecer e cada qual num ou noutro de seus aspectos uma gama impressionante de configuraes possveis se cria. Um ou outro desses dois plos cardeais pode prevalecer. Nas canes lricas russas, por exemplo, predominam as construes metafricas, ao passo que na epopia herica o processo metonmico preponderante.

    Na poesia. diferentes razes podem determinar a escolha entre esses dois tropos. O primado do processo metafrico nas escolas romntica e simbolista foi sublinhado vrias vezes, mas ainda no se compreendeu suficientemente que a predominncia da metonmia que governa e define efetivamente a corrente literria chamada de "realista", que pertence a um perodo intermedirio entre o declnio do Romantismo e o aparecimento do Simbolismo, e que se ope a ambos. Seguindo a linha das relaes de contigidade, o autor realista realiza digresses metonmicas, indo da intriga atmosfera e das personagens ao quadro espacio-temporal. Mostra-se vido de pormenores sinedquicos. Na cena do suicdio de Anna Karenina, a ateno artstica de Tolstoi se concentra na bolsa da herona; e em Guerra e Paz, as sindoques "buo no lbio superior" e "ombros nus" so utilizadas pelo mesmo escritor para designar as personagens femininas s quais esses traos pertencem.

    A predominncia alternativa de um ou outro desses dois processos no de modo algum exclusivo da arte verbal. A mesma oscilao aparece em outros sistemas de signos [pg.57] que no a linguagem.25 Como exemplo marcante, tirado da histria da pintura, pode-se notar a orientao manifestamente metonmica do Cubismo, que transforma o objeto numa srie de sindoques; os pintores surrealistas reagiram com uma concepo visivelmente metafrica. A partir das produes de D. W. Griffith, a arte do cinema, com sua capacidade altamente desenvolvida de variar o 25 Aventurei-me a fazer algumas observaes sumrias acerca do torneio metonmico na arte verbal (Pro realizm u mystectvi", Vaplite, Kharkov. 1927, n 2; "Randbemerkungen zur Prosa des Dichters Pasternak", Slavische Rundschau, VII, 1935), na pintura ("Futurizm", Iskussivo, Moscou, 2 de agosto, 1919) e no cinema (padek filmu", Listy pro umni akritiku, I, Praga, 1933), mas o problema crucial dos dois processos polares aguarda ainda uma investigao pormenorizada.

  • ngulo, a perspectiva e o foco das tomadas, rompeu com a tradio do teatro e empregou uma gama sem precedentes de grandes planos sinedquicos e de montagens metonmicas em geral. Em filmes como os de Charlie Chaplin e Eisenstein26 esses procedimentos foram suplantados por um novo tipo metafrico de montagem, com suas "fuses superpostas" verdadeiras comparaes flmicas.27

    A estrutura bipolar da linguagem (ou de outros sistemas semiolgicos) e, no caso da afasia, a fixao num desses plos com excluso do outro, esto a exigir um estado comparativo sistemtico. A permanncia de um ou do outro desses plos nos dois tipos de afasia deve ser relacionado com a predominncia do mesmo plo em certos estilos, hbitos pessoais, modas correntes etc. Uma anlise atenta e uma comparao desses fenmenos com o sndrome completo do tipo correspondente de afasia constitui uma tarefa imperiosa para uma pesquisa conjunta de especialistas em Psicopatologia, Psicologia, Lingstica, Potica e Semitica, a cincia geral dos signos. A dicotomia aqui discutida revela-se de uma significao e de um alcance [pg.58] primordiais para a compreenso do comportamento verbal e do comportamento humano em geral.28

    Para mostrar as possibilidades que descortina a pesquisa comparativa de que falamos, escolhemos um exemplo tirado de um conto popular russo que emprega o paralelismo como procedimento cmico: "Toms solteiro; Jeremias no casado" (Fom xlost Erjma neent). Os dois predicados esto associados, nas duas oraes paralelas, por similares: so, alis, sinnimos. Os sujeitos de ambas as oraes so nomes prprios masculinos e portanto morfologicamente semelhantes, enquanto, por outro lado, designam dois heris contguos do mesmo conto, criados para cumprir aes idnticas e justificar assim a utilizao de pares de predicados sinnimos. Uma verso algo modificada da mesma construo aparece numa familiar cano de bodas, na qual cada um dos convidados do banquete interpelado ora pelo seu nome, ora pelo seu patronmico: "Gleb solteiro; Ivanovi no casado".Aopasso que os dois predicados so, mais uma vez, sinnimos, a relao entre os dois sujeitos mudou: ambos so nomes prprios designativos da mesma pessoa e usados normalmente em posio contgua, como saudao polida.

    Na citao extrada do conto popular, as duas proposies paralelas referem-se a fatos distintos, a situao de casado de Toms e a situao semelhante de Jeremias. Mas nos versos da cano de bodas, as duas proposies so sinnimas: repetem, de maneira redundante, o celibato do mesmo heri, partindo-o em duas hipostases verbais. 26 Cf,seuimpressionanteensaioDickens,GriffitheNs":SEisenstein,Izbrannyestati (Moscou, 1950), p. 153 ss. 27 Cf, B, Balazs, Theory of the F ilm (Londres, 1952). 28 No tocante ao aspectos psicolgicos e sociolgicos desta dicotomia, ver as concepes de "integrao progressiva" e "seletiva", de Bateson, e as de Parsons acerca da "dicotomia conjuno-disjuno" no desenvolvimento da criana: J. Ruesch e G. Bateson, Communication, the Social Matrix of Psychiatry (Nova Iorque, 1951), pp. 183 ss.; T. Parsons e R. F. Bales, Fami1y Socialization and Interaction Process (Glencoe, 1955), pp. 119 ss.

  • O romancista russo Gleb IvanoviUspenskij(1840-1902) sofreu, nos ltimos anos de vida, de uma doena mental acompanhada de distrbios da fala. Seu nome e seu patronmico, [pg.59] Gleb Ivanovi tradicionalmente juntos na conversaopolida, haviam-se cindido, a seus olhos, em dois nomes distintos, que designavam doisseresseparados.Gleberadotadodetodasasvirtudes,aopassoque Ivanovionome que ligava o filho ao pai, tornou-se a encarnao de todos os vcios de Uspenskij. O aspecto lingstico desse desdobramento de personalidade aparece na incapacidade do doente de utilizar dois smbolos para a mesma coisa, o que constitui um exemplo de desordem da similaridade. Como o distrbio da similaridade se liga tendncia para a metonmia, particularmente interessante examinar a maneira literria de Uspenskij durante a juventude. O estudo de Anatolij Kamegulov, que analisou o estilo de Uspenskij, confirma nossa expectativa terica. Mostra que Uspenskij tinha uma tendncia marcada para a metonmia, especialmente para a sindoque, e que a levou to longe que "o leitor esmagado pela multiplicidade de pormenores com que o escritor o cumula num espao verbal limitado, e se torna fisicamente incapaz de ter uma noo de conjunto, de maneira que o retrato muitas vezes fica inutilizado."29

    bem de ver que o estilo metonmico de Uspenskij se inspira manifestamente no cnone literrio predominante em seu tempo, o "realismo" do fim do sculo XIX; mas o temperamento peculiar de Gleb Ivanovi o levava mais particularmente aseguir essa corrente artstica em suas manifestaes extremas, para deixar, finalmente, sua marca no aspecto verbal da doena mental do escritor. [pg.60]

    A competio entre os dois procedimentos, metonmico e metafrico, se torna manifesta em todo processo simblico, quer seja subjetivo, quer social. Eis por que numa investigao da estrutura dos sonhos, a questo decisiva saber se os smbolos e as seqncias temporais usadas se baseiam na contigidade ("transferncia" metonmica e "condensao" sinedquica de Freud) ou na similaridade ("identificao" e "simbolismo" freudianos).30 Os princpios que comandam os ritos mgicos foram resumidos por Frazer em dois tipos: os encantamentos baseados na lei da similaridade e os baseados na associao por contigidade. O primeiro desses dois grandes ramos da magia simptica foi chamado "homeoptico" ou "imitativo", e o

    29 A. Kamegulov, StilGlebaUspenskogo (Leningrado, 1930), pp. 65, 145. Eis um destes retratos desintegrados citados na monografia: "De sob um velho bon de palha, com uma mancha negra na viseira, espreitavam dois tufos de cabelo que lembravam as defesas de um javali; um queixo que se tornara adiposo e balouante estendera-se definitivamente por sobre o colarinho ensebado do peitilho de algodo e cobria de uma grossa camada o colarinho grosseiro do casaco de tela, apertadamente abotoado ao pescoo. Desse casaco emergiam, aos olhos do observador, mos macias com um anel que se afundara no dedo gordo, uma bengala com casto de cobre, um acentuado abaulamento do estmago e calas muita largas, de tecido semelhante a musselina, cujas largas bocas escondiam a ponta das botas." 30 S. Freud, Die Traumdeutung, 9. ed. (Viena, 1950).

  • segundo "magia por contgio".31 Essa diviso , na realidade, muito esclarecedora. Contudo, na maior parte dos casos, continua-se esquecendo o problema dos dois plos, a despeito de seu vasto alcance e importncia para o estudo de todos os comportamentos simblicos, particularmente do comportamento verbal e de seus distrbios. Qual a principal razo dessa negligncia?

    A similaridade das significaes relaciona os smbolos de uma metalinguagem com os smbolos da linguagem a que ela se refere. A similitude relaciona um termo metafrico com o termo a que substitui. Por conseguinte, quando o pesquisador constri uma metalinguagem para interpretar os tropos, possui elementos mais homogneos para manejar a metfora, ao passo que a metonmia, baseada num princpio diferente, desafia facilmente a interpretao. Eis por que nada de comparvel rica literatura sobre a metfora32 pode ser citado no que concerne teoria da metonmia. Pela mesma razo, percebe-se, em geral, que o Romantismo est vinculado estreitamente metfora, ao [pg.61] passo que fica quase sempre despercebida a ntima vinculao do Realismo com a metonmia. No somente o instrumento, mas o prprio objeto da anlise explicam a preponderncia da metfora sobre a metonmia nas pesquisas eruditas. De vez que a poesia visa ao signo, ao passo que a prosa pragmtica visa ao referente, estudaram-se os tropos e as figuras essencialmente como procedimentos poticos. O princpio de similaridade domina a poesia; o paralelismo mtrico dos versos ou a equivalncia fnica das rimas impem o problema da similitude e do contraste semnticos; existem, por exemplo, rimas gramaticais e antigramaticais, mas nunca rimas agramaticais. Pelo contrrio, a prosa gira essencialmente em torno de relaes de contigidade. Portanto, a metfora, para a poesia, e a metonmia, para a prosa, constituem a linha de menor resistncia, o que explica que as pesquisas acerca dos tropos poticos se orientem principalmente para a metfora. A estrutura bipolar efetiva foi substituda artificialmente, nessas pesquisas, por um esquema unipolar amputado que, de maneira bem evidente, coincide com uma das formas de afasia, mais precisamente, o distrbio da contigidade. [pg.62]

    31 J. G. Frazer, The Golden Bough: A Study in Magic and Religion, Parte I, 3. ed. (Viena, 1950), captulo III. 32 C. F. P. Stutterheim, Het begrip metaphoor (Amsterdam, 1941)