Dois Cães Como Objeto: Elementos Surrealistas Em João Cabral de Melo Neto, Aproximação com o cinema - Jose Roberto Araujo Godoy

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURA COMPARADA

    DOIS CES COMO OBJETO: ELEMENTOS SURREALISTAS EM

    JOO CABRAL DE MELO NETO. APROXIMAES COM O

    CINEMA.

    Dissertao apresentada Banca Examinadorada Universidade de So Paulo como exigncia parcial para aobteno do ttulo de Mestre em Teoria Literria e Literatura

    Comparada.

    Orientador: Prof. Dr. Roberto Zular

    Jos Roberto Arajo de Godoy

    So Paulo2009

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    A meus avs maternos a quem no conheci. A Joo Cabral de Melo Neto que os trouxe

    mais prximos.

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    Agradecimentos

    Agradeo banca examinadora que participou de meu exame de qualificao,

    Profa. Dra. Betina Bishof e Prof. Dr. Aguinaldo Jos Gonalves, pela generosa acolhida a

    este trabalho de natureza incomum. Particularizo aqui o agradecimento ao Prof.

    Aguinaldo, um dos precursores nos estudos comparados entre a obra de Joo Cabral de

    Melo Neto e outras prticas artsticas.

    A meu orientador, Prof. Dr. Roberto Zular, pelo dilogo constante, pela relao de

    amizade, pelos instigantes desafios intelectuais que me props, possibilitando um contato

    mais prximo com as mltiplas lacunas de minha formao.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico pela

    concesso de uma bolsa de estudos que muito auxiliou-me durante a produo deste

    trabalho.

    Aos companheiros do Grupo de Estudo comandado pelo Prof. Zular, em especial a

    Fernando Augusto Monteiro, grande amigo e agudo pesquisador da obra de Joo Cabral.

    Aos funcionrios da Fundao Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro pelo auxlio

    em minha pesquisa junto ao arquivo de Joo Cabral de Melo Neto, fundamental na

    produo desta dissertao.

    A meus pais, Pedro e Ivete, que sempre fizeram da educao prioridade entre seusfilhos.

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    A Mariza, pelo apoio nestes mais de trs anos de trabalho. Parceira, cuja

    compreenso da importncia desta dissertao em minha trajetria acadmica e pessoal,

    foi determinante para o seu feitio.

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    Resumo

    Esta dissertao analisa a presena de elementos surrealistas na obra do poeta Joo

    Cabral de Melo Neto (1920 1999), na primeira dcada de sua produo potica operodo que vai de sua estria literria, em 1942, com Pedra do sono, a 1950, ano de

    lanamento de O co sem plumas.

    Nesse livro-poema, produzido em sua longa temporada afastado do pas, nos

    deteremos com maior acuidade, estabelecendo relaes com procedimentos do cinema

    surrealista, em especial as conexes entre montagem e metfora e a utilizao do smile

    como modo de composio do poeta. Alm da anlise de marcas textuais que delimitam o

    itinerrio temtico das relaes entre Joo Cabral, expresses surrealistas e a criao

    cinematogrfica.

    Alm disso, perpassar nosso percurso o dilogo do poeta, ainda no Recife, com

    dois personagens fundamentais na sua formao intelectual: Willy Lewin e Joaquim

    Cardozo. Interlocutores cuja influncia pode ser percebida no conjunto de sua produo

    potica.

    Palavras-chave: Joo Cabral de Melo Neto, Surrealismo, O co sem plumas, Luis

    Buuel, Literatura Comparada.

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    Abstract

    This dissertation examines the presence of surrealistic elements in the poetic work

    of the poet Joo Cabral de Melo Neto (19201999), from his literary debut withPedra do

    sono, in 1942, until O co sem plumas (1950).

    This work, written by the poet during his long sojourn abroad, it will be the main

    object of this study, the corpus where well describe the relation between the surrealistic

    procedure, mainly its filmic aspect, and procedures operated by the poet, like the relation

    between montage and metaphor, and the use of simile as a way of composition by the

    poet. It will help us to point textual marks that makes possible a kind of thematic itinerary

    of the relation among Joo Cabral, surrealistic expression and film creation.

    At last, well recompose the poets dialogue with two characters from his Recifes

    background: Willy Lewin and Joaquim Cardozo. Detailing the way them influences will

    be noted in the body of his work.

    Key-words: Joo Cabral de Melo Neto, Surrealism, O co sem plumas, Luis Buuel,

    Comparative Literature

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    SUMRIO:

    Introduo............................................................................................................................. 9

    Captulo I- Primeiros passos do poetabreve itinerrio de sua formao ........................ 15

    1)

    Antes da pedra, o sonho ............................................................................................. 15

    2)Alm das epgrafesAnotaes aPedra do sono.................................................... 18

    3)A Willy Lewin, vivo .................................................................................................. 20

    4)Tenses poticas em Fbula de Anfion.................................................................. 27

    5)

    O lxico entrePrimeiros poemase O engenheiro. Intertextualidades ...................... 30

    Captulo IIO poeta vai ao cinemaAproximaes ........................................................ 40

    Introduo ............................................................................................................................. 40

    1)O cinema como tema ................................................................................................. 42

    2)Modos de composio ............................................................................................... 47

    3)

    Processos flmicos ..................................................................................................... 54

    4)Anexo: Episdios para cinema............................................................................... 57

    Captulo IIIO co sem plumas....................................................................................... 59

    1)Figuraes de linguagem: Joaquim Cardozo, parte do Recife .................................. 60

    2)Novos modos de intertextualidade ............................................................................ 71

    3)Os porqus do aquele ................................................................................................. 73

    4)Uma narratividade cindida ......................................................................................... 77

    5)

    Uma nova potica ...................................................................................................... 82

    6)Sob o domnio da metfora e a transfuso do smile ................................................. 90

    Consideraes Finais: Cabral, Mir, Buuel ................................................................ 99

    AnexoO Surrealismo flmico ................................................................................... 106

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    1)

    A cidade e seu inconsciente ..................................................................................... 110

    2)Um mtodo a decifrar .............................................................................................. 112

    3)A cidade como cenrio ............................................................................................ 114

    Referncias Bibliogrficas.............................................................................................. 120

    1)De Joo Cabral de Melo Neto .................................................................................. 120

    2)Sobre Joo Cabral de Melo ...................................................................................... 120

    3)Sobre Surrealismo.................................................................................................... 121

    4)Sobre cinema e Luis Buuel .................................................................................... 123

    5)

    Bibliografia Geral .................................................................................................... 124

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    Eu fui um falso surrealista.1

    Joo Cabral de Melo Neto

    Introduo

    O objetivo desta dissertao de mestrado, desenvolvida para o programa de Teoria

    Literria e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da

    Universidade de So Paulo, averiguar processos comuns potica de Joo Cabral de

    Melo Neto e o movimento artstico nomeado Surrealismo.

    Tal interseco apontada desde a primeira aproximao crtica obra do poeta

    o artigo que Antonio Candido escreve a respeito da estria literria de Cabral, com Pedra

    do sono, para a coluna Notas de Crtica Literria, publicada naFolha da Manh, em 13

    de junho de 1943, em que fica exposta uma articulao em mo dupla: do mesmo modo

    que o dilogo de Cabral com o grupo de Breton afirmado, delimita-se tal influncia a

    este momento inicial de sua produo.

    Assim, o processo de maturao cabralino se daria a partir de uma premissa de

    rompimento, em que o poeta contraporia aos elementos que compem seu primeiro livro

    [...] imagens livremente associadas ou pescadas no sonho, sobre os quais o autor age

    como moderador2 os temas e parmetros estticos que passam a identific-lo at os

    nossos dias, a saber: o antilirismo, a poesia de base social, a reflexo sobre o fazer potico,

    a quadra como molde dos versos, a importao de procedimentos da Arte Mayor

    espanhola etc.

    nosso interesse averiguar de que modo se d esse rompimento.

    1CASTELLO, Jos.Joo Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2006, p. 47.2CANDIDO, Antonio. Um velho artigo In:Revista Colquio/Letras, nmero 157/158, Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2000, p. 15.

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    Com este intuito, nos deteremos na primeira dcada da produo de Joo Cabral

    que vai de sua primeira fixao em livro em 1942, at 1950, ano de publicao de O co

    sem plumas, ponto de partida em sua longa temporada afastado do pas e objeto principal

    desta anlise.

    Livro-poema produzido em Barcelona quando o poeta contava 29 anos, cabe-nos

    verificar se nesta obra, produzida oito anos aps a publicao de Pedra do sono,

    desaparece por completo a presena surrealista em sua potica. Ou, se tal influncia j fora

    absorvida no amplo processo de construo artstica a qual o poeta se dedicara ao longo da

    dcada, e no qual a primeira obra de seu perodo espanhol surge como pea mais bem

    acabada.

    Se por um lado O co sem plumas lana as pedras fundamentais da potica que

    Cabral consolidaria no prosseguimento de sua produo; de outro, a obra apresenta

    especificidades inditas no mais reproduzidas ao longo de sua trajetria artstica: um

    instrumental retrico, a ordenao estrfica e a abordagem do contexto social atravs de

    novos modos de articulao. Alm de imagens, figuraes lingsticas, nas quais o smile

    desempenha papel fundamental, e que se abrem a dilogos em princpio insuspeitados.

    So esses elementos inditos que desejamos cotejar s prticas surrealistas, porm,

    contornando os estudos comparados restritos a um mesmo campo artstico3. desse modo

    que esta anlise se dar no embate das complexas relaes entre campos e prticas

    artsticas distintas, especificamente, a poesia e o cinema.

    Constitui-se assim nosso propsito, mesmo com os riscos que a proposta apresenta,

    de cotejar O co sem plumas vertente flmica do Surrealismo, delimitada na abordagem

    3Seguiremos nesta dissertao o conceito de campo artstico desenvolvido por Pierre Bordieu emAs regrasda arte.So Paulo: Cia das Letras, 1996.

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    de Un chien andalou, de Luis Buuel. Tal proposta, to ambiciosa quanto arriscada, traz

    em seu cerne o franco desejo de reconfigurar a rede de influncias do cinema sobre outras

    expresses do sculo XX; repensar a recepo do Surrealismo em nosso pas; e reler, se

    assim formos capazes, a trajetria de Joo Cabral em nova chave e perspectiva.

    Uma hiptese e seus complicadores

    A veces digo que el Surrealismo triunfo en lo accesorio y fracas en lo esencial.4

    Luis Buuel

    Na produo inicial de Joo Cabral de Melo Neto, notadamente seu livro de

    estria, Pedra do sono, e em seus primeiros poemas, escritos nos anos derradeiros da

    dcada de 1930 e coligidos por Antonio Carlos Secchin em 19905, Cabral ir se valer de

    processos definidos pelo prprio poeta sob o conceito de forja:

    A situao era a seguinte: aquele grupo que eu freqentava no Recife era profundamenteinfluenciado pelo Surrealismo. Mas, o Surrealismo, na minha opinio, sempre foi o traumatismoda escrita. Como eu era absolutamente incapaz de fazer a tal escrita automtica, com a qual eu noconcordava, e, ao mesmo tempo, desejava continuar fazendo parte do grupo do Caf Lafayette, eu

    forjeium tipo de Surrealismo, quer dizer, meu Surrealismo era algo construdo.6

    (grifo meu).

    Como afirma o poeta, seus versos eram fabricados a partir de uma espcie de

    Surrealismo muito peculiar, racionalizado. Um Surrealismo construdo, distante de

    procedimentos como o automatismo, da necessria ateno s frases mais ou menos

    fragmentrias que, quando estamos inteiramente sozinhos e prestes a adormecer, afloram

    superfcie da mente, como afirmava Breton7. Realizado no interior da obra atravs de um

    4BUUEL, Luis.Mi ltimo suspiro. Barcelona: DeBolsillo, 2004, p. 139.5Primeiros poemas, de Joo Cabral, reaparecem no primeiro volume da reedio de sua obra pela editoraObjetiva, em 2007.6Entrevista a Cadernos de literatura brasileira, So Paulo: IMS, 1996, p. 24.7BRETON, Andr.Primeiro Manifesto Surrealista. Nau Editora: Rio de Janeiro, 2001, p. 34.

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    prvio trabalho de composio, distante das associaes da obra artstica a uma espcie de

    receptculo de contedos revelados, ou de um ditado do pensamento, suspenso qualquer

    controle exercido pela razo.8

    Tal percepo expe o fio tnue em que caminha esta anlise. Se o Surrealismo

    como o entendemos, como o abordaremos nesta dissertao, notadamente um processo

    de construo artstica, por mais que seus prprios criadores desejassem imant-lo numa

    nuvem difusa a invadir a conscincia adentro que, em muita medida, a prpria origem

    das diluies que o reduzem ao nonsense9. De imediato somos desafiados a cotejar o modo

    com que Cabral diz imitar seus resultados, com os procedimentos que seus fundadores

    estabeleceram como modelo de criao, mesmo que desconfiemos da distncia entre este

    discurso e suaprxis.

    Ora, se o Surrealismo procedimento, ou uma srie de processos constitutivos

    reproduzidos na materialidade de cada obra, a hiptese cabralina passa a ser reduzida a

    uma nica alternativa: um modelo de reinterpretao destas prticas.

    Este o nosso primeiro complicador.

    O segundo permear esta anlise a partir de seu adensamento. A quem analisa a

    obra de Joo Cabral de Melo Neto, retroativamente, a partir dos dias de hoje, percorrendo

    a acumulao das mais diversas leituras, e tendo na mirada uma obra encerrada, como

    acreditar que o poeta pde realizar um projeto artstico como o seu, em que a construo

    se choca com a imitao de determinados procedimentos? Por mais que o choque entre a

    autonomia da linguagem, na qual a escrita automtica surrealista exemplo freqente, e a

    8idem. Ibidem. p.40.9As pessoas acham que, para ser surrealista, preciso obrigatoriamente colocar uma lata de lixo na cabea.Meu sogro me disse um dia: Henri, voc no tem bom senso!. O bom senso no foi uma qualidade

    primordial para os surrealistas. O Surrealismo no o chapu engraado, mais do que isso. Entrevista deHenri Cartier-Bresson para Miguel Guerrin. Reproduzido porFolha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, SoPaulo, 06/08/2004.

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    construo potica, esteja no cerne do trabalho do poeta moderno, entre o manual de

    processos dos surrealistas e a composio atravs da construo de fora para dentro do

    poema, h um fosso que impe tenses profundas a um poeta como Cabral, consciente do

    distinto funcionamento dessas vertentes de criao.

    Diante de tal impasse, do cinema de expresso surrealista que retiramos

    elementos que podem nos auxiliar a dar conta das contradies em que o poeta nos lana.

    H no Surrealismo flmico, limitadores, aspectos tcnicos e de linguagem, que

    propiciaro o surgimento de um modo prprio de composio, distinto das vertentes

    pictrica e potica do movimento. Essas solues s quais cineastas como Luis Buuel se

    valero em suas pelculas nos fazem refletir a respeito do modo como Joo Cabral

    empreende sua construo potica, e as imitaes de processos surrealistas a que se lana

    em suas primeiras experincias artsticas.

    Em princpio, os filmes surrealistas rompem com as noes de automatismo e

    arbitrariedade possveis s expresses poticas e pictricas. Entre o automatismo de um

    roteiro e o resultado final na pelcula, uma pesada intermediao tcnica e de

    colaboradores interposta, transformando o arbitrrio em procedimento tcnico. Com o

    advento da montagem, o cinema passa a ter dentro da materialidade que lhe prpria, um

    mecanismo de combinaison et de lagencement10, que atua sobre os sintagmas visuais

    (flmicos) em chave prxima ao desdobramentos da metfora no campo potico 11. Diante

    desses elementos, possibilidades insuspeitadas se abrem no campo dos estudos

    10AUMONT, Jacques... [et al.].Esthtique du film. Paris: Armand Colin Cinma, 2008, p. 37.11Modesto Carone prope que a montagem seja pensada como um conjunto de metforas visuais agrupadassem necessidade lgica, ou seja, reunidas num sistema semiolgico em que uma no decorrenecessariamente da outra, e complementa: a montagem uma metfora, na medida em que se apresentacomo idia que salta da coliso de signos ou imagens justapostas. CARONE, Modesto.Metfora emontagem. So Paulo: Perspectiva, 1974, p. 15.

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    comparados, e nos motivam a aproximar-nos, de modo mais acurado, do entroncamento

    entre a potica de Joo Cabral de Melo Neto e elementos da composio flmica.

    Por fim, as diferentes etapas de maturao artstica de Joo Cabral e Luis Buuel

    ao produzirem os objetos desta dissertaoenquanto Cabral lanava sua quinta coletnea

    de poemas, Buuel estreava como cineastaalm das peculiaridades de cada campo

    artstico, e as dificuldades em cotejar linguagens to distintas, constituem nosso terceiro

    complicador.

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    Captulo 1 - Primeiros passos do poetabreve itinerrio de sua formao

    H um esprito novo: um esprito de construo e de sntese guiado por uma concepo clara.12

    Le Corbusier

    Neste primeiro captulo abordaremos os primrdios da produo de Joo Cabral de

    Melo Neto. Como se estruturam seus primeiros poemas na metade final dos anos 1930.

    Tema, referncias e as relaes de mediao que o poeta comea a empreender em seu

    projeto potico. Seguimos pelas coletneas da dcada de 1940, Pedra do sono (1942) eO

    engenheiro (1945) e pelo poema Fbula de anfion (1946/47), itinerrio que ir

    culminar em O co sem plumas, em1950. A partir desse corpusretornaremos a algumas

    influncias menos notadas, como a de Willy Lewin, e as relaes intertextuais entre Joo

    Cabral e o crtico e poeta pernambucano. Por fim, pontuaremos no corpo dos poemas

    analisados as diversas marcas textuais que remetem produo flmica e ao Surrealismo.

    1. Antes da pedra, o sonho

    A primeira dcada da produo potica de Joo Cabral de Melo Neto composta

    por quatro obras, alm de uma srie de poemas dispersos, produzidos entre 1937 e 1940,

    que iro reaparecer na edio dePrimeiros poemasque Antonio Carlos Secchin organiza

    em 199013.

    Neste percurso, deter-se por alguns instantes nas dedicatrias e epgrafes de tais

    obras pode nos servir como um primeiro orientador de algumas escolhas e influncias com

    as quais o poeta dialogou durante o itinerrio inicial de sua produo.

    12LE CORBUSIER, Programe de lesprit nouveau. APUD AZEVEDO, Ricardo Marques de. Metrpole:Abstrao. So Paulo: Perspectiva, 2006.13MELO NETO, Joo Cabral de. Antnio Carlos Secchin (org).Primeiros poemas. Rio de Janeiro:Faculdade de Letras da UFRJ, 1990.

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    Principiamos pela coletnea de seus primeiros exerccios poticos, dispersos, sem a

    estrutura de uma obra elaborada, que tardiamente vm a pblico em 1990.

    Dezenove poemas de temtica diversa. Destes, apenas um, O momento sem

    direo, de 1938, apresenta dedicatria ao poeta Carlos Drummond de Andrade. No

    eixo temtico, dois so nomeados com o nome do dramaturgo italiano Luigi Pirandello

    (Pirandello I e Pirandello II) e um com as iniciais do poeta de Itabira (C.D.A).

    Seguindo por sua estria literria, em 1942, com Pedra do sono, que reproduz o

    procedimento de Drummond em Brejo das almas, associando o ttulo da obra a uma

    pequena localidade de seu estado de origem14, Cabral volta a homenagear o poeta mineiro

    que, junto a seus pais e o crtico literrio e membro de seu grupo no Recife, Willy Lewin,

    formar a trinca de dedicatrias desse volume, somada epgrafe mallarmaica (Solitude,

    rcif, toile...).

    As homenagens a Drummond seguem em 1943, com o auto Os trs mal amados,

    inspirado em Quadrilha, poema da estria do poeta mineiro (Alguma poesia, de 1930). A

    epgrafe formada pelos dois primeiros versos do poema de Drummond. J em O

    engenheiro, de 1945, alm da epgrafe de Le Corbusier (Machin mouvoir...), a obra

    novamente dedicada a Drummond, secundada pela apresentao coloquial meu amigo,

    gesto especular epgrafe do livro de estria de Drummond, dedicado a Mrio de

    Andrade.

    O breve itinerrio de homenagens de que nos cercamos, se bem refora uma

    presena de Drummond como parmetro e influncia, nada nos diz sobre as obras citadas,

    14Drummond expe com clareza o procedimento amplamente relacionado ao modo modernista: A poesiamodernista foi, em grande parte, poesia de regio, de municpio e at de povoado, que se atribuiu a missode redescobrir o Brasil, considerando-o antes encoberto do que revelado pela tradio literria de cunhoeuropeu. ANDRADE, Carlos Drummond de.Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988, p.1441.

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    sobre a materialidade dessa influncia. Mas justamente essa averiguao que

    pretendemos evitar15. esse percurso sedimentado pela acumulao das leituras16, que

    precisamos obliterar para que nosso projeto caminhe.

    15Prova material da intensa influncia de Drummond sobre Cabral durante esse perodo o poema escritoem papel timbrado do Departamento Administrativo do Servio Pblico no Rio de Janeiro, onde Cabraltrabalhava em sua temporada na ento capital federal, endereado ao poeta mineiro, tambm funcionrio

    pblico no perodo, datado de 29/09/1943:

    Difcil ser funcionrioNesta segunda-feiraEu te telefono, Carlos,Pedindo conselho.

    No l fora o dia

    Que me deixa assim,Cinemas, avenidasE outros no-fazeres.

    a dor das coisas,O luto desta mesa; o regimento proibindoAssovios, versos, flores.

    Eu nunca suspeitariaTanta roupa preta;To pouco essas palavrasFuncionrios, sem amor.

    Carlos, h uma mquinaQue nunca escreve cartas;H uma garrafa de tintaQue nunca bebeu lcool.

    E os arquivos, Carlos,As caixas de papis:Tmulos para todosOs tamanhos do meu corpo.

    No me sinto corretoDe gravata de cor,E na cabea uma moa

    Em forma de lembrana

    No encontro a palavraQue diga a esses mveis.Se pudesse encarar...Fazer sem nojo meu...

    Carlos, dessa nuseaComo colher a flor?Eu te telefono, Carlos,

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    2. Alm das epgrafesAnotaes a Pedra do sono

    Os poemas produzidos em 1940 e 1941, que estaro presentes em Pedra do sono,

    delimitam o espao onrico s imagens e, em oportunidades menos constantes, ao tema. . O

    poeta busca um molde a partir do qual se diferencie essa produo de suas primeiras

    experincias (desprezadas em sua maioria nesta primeira coletnea), o que surge

    explicitado logo no poema de abertura.

    Em Poema17, pea em trs estrofes, j possvel atentar a um ritmo que se

    consolidaria em sua trajetria posterior, em que a quadra d liga ao andamento.

    Poema

    Meus olhos tm telescpios

    espiando a rua,

    espiando minha alma

    longe de mim mil metros.

    Mulheres vo e vm nadando

    em rios invisveis.

    Automveis como peixes cegos

    compem minhas vises mecnicas.

    H vinte anos no digo a palavra

    Pedindo conselho.Cadernos de literatura brasileiraJoo Cabral de Melo Neto, So Paulo: IMS, 1996, p.60-61.16Lugar comum da crtica cabralina: h duas guas na poesia de Joo Cabral, delimitadas pela diferenaentre realidade e poesia, e assim nomeadas, com as inevitveis e nem sempre negligenciveis variaesde idioma: a da referncia ao real e a da reflexo sobre a linguagem potica. Poesia que fala das coisas e damaneira de falar das coisas. Baptista, Abel Barros. Ortopedia do smile. In:Revista Colquio/Letras,nmero 157/158, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2000, p. 273.17MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 23.

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    que sempre espero de mim.

    Ficarei indefinidamente contemplando

    Meu retrato eu morto.

    No eixo temtico brotam referncias j descritas. Exemplo mais explcito o verso

    de abertura Meus olhos tm telescpios/espiando a rua, que remete a as casas espiam

    os homens/que correm atrs das mulheres, de Poema de sete faces, importante pea na

    estria do poeta de Itabira. Mas, se o verso, primeira quadra da trajetria que se inicia,

    reverencia seu precursor imediato, tambm j aponta as mediaes entre poeta e mundo.

    Os olhos deste tm telescpios, que captam a realidade atravs de um equipamento de

    ampliao, de uma lente, que ir distanci-lo do impalpvel, do inexplicvel, delimitados

    numa alma longe de mim mil metros. Do mesmo modo, Cabral logo anuncia neste

    primeiro poema uma percepo aguda da intensa presena da mquina, da exploso

    tecnolgica, na qual o cinema ter papel importante como prtica artstica capaz de dar

    conta do movimento, das novas relaes de deslocamento que passam a preencher o

    mundo, fartamente percebidas, nas dcadas anteriores, pelas expresses vanguardistas

    europias. Os versos que fecham a segunda quadra do poema trazem tona essa nova

    relao.

    Automveis como peixes cegos

    compem minhasvises mecnicas.

    Motivo comum produo flmica do perodo: automveis a atravessaravidamente

    as ruas das cidades, que se reconfiguram nas primeiras dcadas do sculo. Imagens que

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    remetem, por exemplo, aBallet mcaniquede Fernand Lger18, e aos primeiros filmes de

    LuisBuuel, Un chien andaloueLage dor.

    Nestes poemas iniciais, este compartilhamento de determinados temas, codificados

    em operaes de ordem semntica, a partir de interrelaes que passam quase

    despercebidas em meio presena macia de referenciais recorrentes o eixo de

    influncias, continuadamente reafirmado, formado por Drummond, Mallarm e Valry ,

    instiga-nos a detalhar outros dilogos pouco notados nas primeiras experincias do poeta.

    a partir dessas observaes que esta anlise se abre no detalhamento de uma influncia

    aparentemente difusa na configurao do projeto cabralino.

    3. A Willy Lewin, vivo

    A Willy Lewin morto

    Se escrevermos pensandocomo nos est julgando

    algum que em nosso ombrodobrado imaginamos,

    e o primeiro que assiste

    ao enredado e incertoque como no papel

    se vai nascendo o verso,e testemunha o aceso

    de quem est no estadodo arqueiro quando atira,mais tenso que seu arco,

    foste ainda o fantasmaque prele o que fao,

    e de quem busco tantoo sim e o desagrado.

    19

    Joo Cabral de Melo Neto

    18O caso da evoluo da forma do automvel um exemplo perturbador do que eu digo, mesmo curiosoque, quanto mais o carro se aproximou de seus fins teis, mais belo se tornou. F. LGER. Apud AZEVEDO,Ricardo Marques de.Metrpole: Abstrao. So Paulo: Perspectiva, 2006, p. 52.19MELO NETO, Joo Cabral de.A educao pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.72-73.

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    A um sutil ponto de bifurcao, observado em nossa breve passagem pela epgrafe

    de Pedra do sono, nos deteremos. Ao lado de Drummond, de seu pai e sua me, Cabral

    dedica seu livro de estria a Willy Lewin.

    Poeta, crtico, funcionrio pblico em Pernambuco, Lewin funciona no final dos

    anos 1930 e o incio dos anos 1940 como um catalisador cultural, impulsionando os

    estudos e as relaes de um grupo de jovens poetas, artistas plsticos e escritores no

    Recife, que contava, entre outros, com o pintor Vicente do Rego Monteiro, o poeta Ldo

    Ivo e Joo Cabral de Melo Neto20.

    Seguindo nesse fio biogrfico e ligando-o a referentes textuais na obra de Joo

    Cabral, ainda em Pedra do sono, em sua primeira edio, feita no Recife numa pequena

    tiragem21, iremos encontrar o prefcio de Lewin, que no deixa de nos surpreender ao

    localizar as influncias do jovem Cabral, e de notar o desejo do poeta em contorn-las:

    [...] claro que Joo Cabral de Melo Neto adora um Mallarm ou um Valry. Os seus

    versos, porm, podem se parecer com qualquer cousa, menos com Laprs-midi dun

    Faune ou um Cimetire Marin. O que merece ser salientado em nossos dias, quando o

    captulo influncias poticas em geral interpretado e justificadode maneira pouco

    diversa.22(grifo meu).

    O que Lewin observa, em texto contemporneo primeira fixao da obra do

    jovem poeta em livro, se ope ao eixo consolidado de influncias de Cabral, e que ser

    20CASTELLO, Jos.Joo Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2006,p. 46.21O livro, que sai em edio restrita, no sairia sem a ajuda do socilogo Gilberto Freyre, seu primo pelolado materno. Freyre acaba de lanar uma edio de um Guia de Olinda, em papel alemo importado. Cede asobra do papel ao primo.Pedra do sonosai em uma edio de cinqenta exemplares de luxo, [...] e outra deduzentos exemplares em papel comum.. In Jos Castello.Joo Cabral de Melo Neto: O homem sem alma &Dirio de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 49.22LEWIN, Willy, Joo Cabral de Melo Neto e sua poesia APUD MAMEDE, Zila. Civil Geometria. SoPaulo, Nobel: 1987, p. 358.

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    notado e referendado pela crtica a posteriori. Prximo obra no eixo temporal, o texto

    que serve, sobretudo, como apresentao, carto de visitas de uma carreira que se inicia

    dialoga com elementos que no poderiam ser notados pelos que estabeleceram contato

    com o poeta a partir de suas obras editadas: a saber, os primeiros exerccios poticos de

    Joo Cabral, o ambiente cultural em que o poeta se formou.

    O prprio Cabral ir, ao longo das dcadas seguintes, reduzir, limitar a influncia

    deste perodo, sobretudo ao estabelecer os textos de edies subseqentes, cortando

    poemas e procedendo modificaes nas estruturas de suas primeiras obras, de modo a

    fortalecer uma coerncia esttica a seu projeto potico desde seu nascedouro. Como

    exemplo, a pequena primeira edio de Pedra do sono composta por seis poemas que

    no foram mantidos nas edies posteriores. Na edio de Poesias reunidas, que a editora

    Orfeu lana em 1954, h trs poemas, sem ttulo, que s voltam a ser publicados como

    anexo, na edio da UFRJ de 1990. A asa, poema de O engenheiro, seria retirado das

    edies posteriores da obra, reaparecendo apenas na coletnea realizadas por Secchin, e,

    ainda, h a edio de 1982 dePoesia crtica, antologia de poemas em que o poeta exercita

    a verve crtica, selecionado poemas com esta temtica.

    As notas biogrficas acabam assim auxiliando-nos a reconstituir um perodo que o

    prprio poeta no tem maior interesse em preservar23, aproximando-nos de impresses

    iniciais, das primeiras observaes crticas e do conjunto bruto desta obra antes de sua

    fixao definitiva.

    23Mesmo antes de public-lo [aPedra do sono], eu j comeara a me impor outro caminho. Entrevista aJornal do Brasil. Apud MAMEDE, ZILA, Civil Geometria. So Paulo: Nobel, 1987, p. 130.

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    II

    EmPedra do sono, Dentro da perda da memria dedicado a Jos Guimares de

    Arajo, escritor pernambucano que apresenta Cabral a Lewin24. Formavam um grupo, que

    Cabral definia como profundamente influenciado pelo Surrealismo25, que se reunia no

    Caf Lafayette, no centro do Recife, homnimo do logradouro parisiense em que Breton

    localiza seu romance Nadja, para trocas literrias e indicaes de leituras. Os primeiros

    poemas de Joo Cabral so parte desseambiente, como Lewin sugere em seu prefcio.

    Retornando a Primeiros poemas, analisaremos as duas partes da homenagem de

    Cabral a Pirandello26, verso revista de Sugestes de Pirandello27, de 1937. Iniciamos

    com Pirandello I.

    Pirandello I28

    A paisagem parece um cenrio de teatro

    uma paisagem arrumada.

    Os homens passam tranqilamente

    com a conscincia de que esto representando.

    Todos passam indiferentes

    como se fosse a vida ela mesma.

    24O poeta o conhece por meio de Jos Guimares Arajo, em encontro casual numa livraria do Recife. InCASTELLO, Jos.Joo Cabral de Melo Neto: O homem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2006, p. 46.25Entrevista a Cadernos de literatura brasileiraJoo Cabral de Melo Neto. So Paulo: IMS, 1996, p. 24.26Cabral odeia teatro; mas, contradio que no o incomoda, considera Luigi Pirandello um dos grandes

    gnios do sculo XX. CASTELLO, Jos. Op. cit., p. 45.27De Sugestes a Pirandello, redigido originalmente em trs partes, restam duas: Pirandello (I) ePirandello (II), que s sero publicadas na tardia dcada de 1990. CASTELLO, Jos.Joo Cabral deMelo Neto: O homem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 45.28MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 159.

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    O cachorro que atravessa a rua

    e que deveria ser faminto

    tem um ar calmo de sesta.

    A vida ela prpria no parece representada:

    as nuvens correm no cu

    mas eu estou certo que a paisagem artificial

    eu que conheo a ordem do diretor:

    _ No olhem para a objetiva!

    e sei que os homens so grandes artistas

    o cachorro um grande artista.

    Neste poema, escrito em 1937, meses depois do falecimento do escritor italiano, j

    aparecem alguns elementos que se misturam pela primeira vez na obra do poeta. O

    primeiro verso j pontua a rede de relaes de intermediao, que mesmo precocemente

    Cabral identifica. O primeiro verso d o tom: A paisagem parece um cenrio deteatro

    (grifo meu). Se a operao reafirma de imediato a homenagem ao dramaturgo, em outra

    chave deixa clara a desconfiana do poeta em relaes no mediadas na linguagem. O

    poema prosseguir absorvendo um vocabulrio extrado da linguagem cinematogrfica (o

    diretor, a objetiva), que se mistura a elementos dramatrgicos (atores, cenrios etc.),

    ambos permeados por uma idia de representao, de mediao a partir dos artifcios que o

    artista se utiliza em seu trato com a realidade. Os homens tm conscincia de que esto

    representando, mas so to indiferentes que a vida parece ser ela mesma. Observa-se

    tambm no jovem poeta que o que viria a se tornar cido, crtico, corrosivo tem tons

    irnicos. O co de Pirandello I, ao contrrio do co de O co sem plumas (por demais

    espesso), um co artista e seu aspecto, que deveria ser famlico deveria estar

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    faminto , como faria o co vivo/dentro de um bolso, o co vivo debaixo dos lenis

    do livro-poema de 1950, tem um ar calmo de sesta.

    Em outra chave, um motivo ir ligar o poema de 1937 ao livro-poema de 1950: a

    movimentao do co, seu modo de deslocar-se na cidade. Os versos se equiparam numa

    notvel similaridade semntica, relacionando-se tambm a um campo de significados j

    delimitados nesta anlise ao repertrio flmico das vanguardas dos anos 1920. A estrofe de

    1937: o cachorro que atravessa a rua/e que deveria ser faminto, espelhado no trecho do

    poema de 1950: A cidade passada pelo rio/como uma rua/ passada por um cachorro.

    Cortar, passar, atravessar, este eixo de significados, que o poeta preservar em poemas to

    dspares de seu conjunto potico, alcana em interseco a obsessiva repetio desses atos

    transpostos em imagem de Un chien andalou, de Buuel. Na pelcula, o cineasta espanhol

    compe em cenas diferentes representaes desse campo de significados. Assim,

    observamos nos primeiros minutos de exibio:

    Um olho cortado, extirpado, uma rua deserta atravessada por um cachorro, um ser andrgino

    atravessaessa rua de bicicleta, um homem atropelado (atravessado por um carro)no meio da

    rua.

    Essas aproximaes semnticas reforam um repertrio de idias-fixas comuns a

    Cabral e Buuel, que as transformam em elementos estticos nas peculiaridades de cada

    expresso artstica de que se utilizam.

    Seguimos na anlise da segunda parte do poema a Pirandello, os grifos reforam

    trechos que detalham essas inflexes no poeta pernambucano.

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    Pirandello II29

    Sei que h milhares de homens

    se confundindo neste momento.

    O diretor apoderou-se de todas as conscincias

    num saco de vspora.

    Fez depois uma multiplicao

    que no era bem uma multiplicao de pes

    de um por dez por quarenta mil.

    Tinha um gesto de quem distribui flores.

    A mim me coube um frade

    um pianista e um carroceiro.

    Eu era um artista fracassado

    que correra todos os bastidores

    vivia cansado como os cavalos dos que no so heris

    serei um frade

    um carroceiro e um pianista

    e terei de me enforcar trs vezes.

    No jovem Cabral a conscincia vira joguete na mo de um diretor que estabelece

    os papis dos atores (dos homens) que esto misturados num saco de vspora (espcie de

    jogo de loto). Refm de uma entidade a quem obedece, e que no tem por base a religio,

    ao contrrio, que chega a ironiz-laFez depois uma multiplicao/que no era bem uma

    multiplicao de pes , mais se assemelhando ao acaso. Os homens sem conscincia se

    confundem, esperam pelo sorteio do diretor para seguir desempenhando os novos papis

    que lhe cabem a partir da nova ordem que o diretor (acaso) impetra. O narrador, e o termo

    no nos parece equivocado diante da funo que opera nesse poema prximo a um

    29MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 160.

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    episdio ou cena flmicos, por fim constata sua prpria relao de subordinao a partir da

    posio em que atua: A mim me coube um frade/ um pianista e um carroceiro [...]

    serei umfrade, um carroceiro e umpianista. [...] e terei de me enforcar trs vezes

    Constatao do poeta imaturo diante de sua incapacidade em domar a linguagem.

    4. Tenses poticas em Fbula de Anfion

    Retornamos a Lewin e s possveis aproximaes de seus poemas com a primeira

    dcada da produo de Joo Cabral. Seguimos com trecho do poema do crtico

    pernambucano, que servir de epgrafe para a conferncia que Cabral realizar no Primeiro

    Congresso de Poesia do Recife, em 1941.

    Trecho de Willy Lewin

    O sono, um mar de onde nasce

    Um mundo informe e absurdo,Vem molhar a minha face:

    Caio num ponto morto e surdo.30

    O que logo de incio nos desperta a ateno na quadra de Lewin a semelhana entre

    seus motivos e o desfecho de Fbula de Anfion, longo poema que Cabral produziria

    entre 1946 e 194731, e publicaria em 1947, junto a Psicologia da Composio e

    30MELO NETO, Joo Cabral de.Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.11.31Uma flauta: como prever

    suas modulaes,cavalo solto e louco?

    Como traar suas ondasantecipadamente, como faz,

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    Antiode. No derradeiro discurso de Anfionque dialoga com trechos dos primeiros

    poemas do poeta pernambucano, o acaso, imagem no explicitada, mas sugerida em

    Pirandello I, ressurgir nomeado na segunda das trs sees do poema O acaso ataca

    e faz soar a flauta , e se no poema-homenagem ao dramaturgo italiano este se traduz

    num jogo de azar, em Fbula de Anfion passa a funcionar como um violador da

    mudez32.

    O acaso ataca e faz soar a flauta

    acaso! O acaso

    sbito condensou:

    em esfinge, na

    cachorra de esfinge

    que lhe mordia

    a mo escassa;

    que lhe roia

    o osso antigo

    logo florescido

    de flauta extinta:

    ridas do exerccio

    puro do nada.33

    no tempo, o mar?

    A flauta, eu a jogueiaos peixes surdos-mudos do marMELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 120.

    32Mais que a tentao do silncio, a tentao da fala, aqui mediada pelo acaso, violador da mudezalcanada por Anfion no rigor do deserto.. CARONE, Modesto.A potica do silncio. So Paulo:Perspectiva, 1979, p. 89.33MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 116-117.

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    O que subjaz a Anfion a prpria impossibilidade, a incapacidade do discurso

    potico, em que o silncio tematizado a metfora eficiente do indizvel34. Esta

    percepo transformada em tenso potica de potncia, at ento indita na poesia de Joo

    Cabral, se d, em muita medida, no choque entre procedimento e composio que se

    desenrola nas obras da primeira dcada da produo do poeta. Fruto deste embate, o

    receiturio de procedimentos que demarcam o discurso dos surrealistas no se sustenta

    diante do peso que Cabral percebe no prprio exerccio do fazer potico. Neste ponto,

    descrer numa linguagem autonomizada, capaz de produzir a prpria poesia, condio

    primordial para prosseguir a escrever. O que vale dizer que, diante da conscincia deste

    impasse, prprio experincia da poesia moderna, s resta ao poeta dedicar-se ao

    controle permanente sobreo poema35, o que equivale a dizer que o exerccio de forjar

    processos s resistir no projeto cabralino, como modo constitutivo, quando reposto como

    metfora, smile, figuraes lingsticas dispostas no corpo do poema.

    O esforo que a construo de Fbula de Anfion demanda, e as dvidas que

    acompanham o poeta aps seu trmino sero verbalizadas nos anos seguintes, no perodo

    que separa a obra de 1947 da feitura de O co sem plumas. O livro-poema, produzido j

    em territrio espanhol, ser fruto assim do prosseguimento das tenses no campo da

    expresso e do profundo questionamento sobre sua prpria vocao potica.

    Fecha-se assim um ciclo de uma dcada, que separa os poemas em homenagem a

    Pirandello, da verso de Cabral para o libreto de Valry. Perodo em que a reflexo

    34CARONE, Modesto.A potica do silncio. So Paulo: Perspectiva, 1979, p. 89.35Idem. Ibidem, p. 91.

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    crtica36do poeta exercitada em seus poemas; se, por um lado, amplia-se numa linguagem

    cada vez mais sofisticada, produz um impasse entre esta e o fazer potico, no equilbrio

    entre expresso e composio. Cabral j sinaliza em Anfion que lidar com essas

    tenses atravs de uma composio que rearticula a sintaxe e os sintagmas, retirando da

    linguagem a funcionalidade com que seu uso rotineiro a imanta. Porm, a soluo no

    parece ser suficiente para a crise que atingir o poeta no final dos anos 1940. O salto que

    possibilitar o prosseguimento de sua carreira potica s ser possvel quando s

    conquistas de Anfion for somado o aperfeioamento das escolhas lexicais que o poeta j

    empreendera anteriormente, e que se realizaro amplificadas na composio de O co sem

    plumas.

    5. O lxico entre Primeir os poemase O engenheir o. Intertextualidades

    Vinte palavras sempre as mesmasde que conhece o funcionamento,

    a evaporao, a densidademenor que a do ar.

    37

    Joo Cabral de Melo Neto

    O perodo compreendido entre as experincias poticas do final dos anos 1930 e a

    trade de poemas produzidos no binio 1946/47 serviram como um longo aprendizado no

    trato do lxico por Joo Cabral de Melo Neto. E a correspondncia entre o poeta e Willy

    Lewin, junto aos espelhamentos entre as obras dos dois poetas pernambucanos, auxiliam-

    36Para poder continuar a freqentar o grupo, passei a escrever poesia. Mas tentei fazer poesia crtica: deautores, de realidades. Entrevista a Cadernos de literatura brasileiraJoo Cabral de Melo Neto. SoPaulo: IMS, 1996, p. 20.37A lio de poesia In Melo Neto, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p.94.

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    nos na anlise deste itinerrio. Em carta de 20 de dezembro de 1942 38, Lewin envia a

    Cabral dois poemas; o primeiro, Poema, texto homnimo abertura de Pedra do sono:

    Poema

    Willy Lewin

    A noite lambe a vidraa

    E beija os seios do jardim.

    A presena do inseto invisvel

    Destila um sono insuficiente.

    O copo e a luva esquecida

    Compem uma atmosfera

    Obscuramente perversaSobre a mesa, junto ao tinteiro.

    Que nascer da tua boca:

    Uma lmpada, a asa de um pssaro

    Ou um desejo em forma de pssego?

    Alm da homonmia do ttulo, o poema de Lewin parece compartilhar de um

    lxico prximo ao utilizado por Joo Cabral em seus Primeiros poemase que, alguns anos

    depois, seria fixado emPedra do sono.

    A obra de Lewin, e seu cotejamento produo de Cabral, possibilita-nos verificar

    que o aspecto lunar39ressaltado por Antonio Candido em seu texto crtico sobre Pedra do

    sono j se faz presente nas primeiras experincias poticas cabralinas. Esto l, por

    exemplo, termos caros temtica como a noite, um sonoe umaatmosfera obscura. Alm

    38Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de RuiBarbosa.39CANDIDO, Antonio. Um velho artigo In:Revista Colquio/Letras, nmero 157/158, Lisboa: FundaoCalouste Gulbenkian, 2000, p. 15.

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    de aproximaes a outros temas que j apontam para outras inflexes do poeta. Fiquemos

    com os exemplos que se seguem.

    O primeiro trecho de O sbio louco, poema de 1938:

    que caam como chuva

    que vinham nas asas das abelhas

    e nos sinais dos telgrafos Morse.40

    O segundo trecho de A poesia da noite, do mesmo ano:

    Sobre o pano da mesae nos jarros de um gosto improvvel

    colocaram flores e gestos de parentes extintos41

    Poemas contemporneos entre si, mas que formam um conjunto coeso em lxico e

    tema com o poema que Lewin enviaria a Cabral quatro anos depois. Os exemplos se

    repetem, mesmo em trechos sucintos como estes, em paralelismos explcitos. As asas das

    abelhas, em Cabral, a asa de um pssaro em Lewin Cabral voltaria a tematizar o

    vocbulo em A asa, possivelmente de 1944, poema de O engenheiro, posteriormente

    retirado da obra. Sobre o pano da mesa, em Cabral, reverbera em Sobre a mesa, em

    LewinCabral tambm retomaria ao tema em O engenheiro, com o poema A mesa. E

    neste eixo que se abre, em que o poema de Lewin acaba por facilitar conexes

    insuspeitadas entre os poemas iniciais de Cabral e O engenheiro, o melhor exemplo nos

    parece ser A bailarina, terceiro poema do livro lanado em 1945, com poemas

    produzidos entre 1942 e o ano de sua publicao.

    40MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 165.41Idem. Ibidem, p. 167.

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    A bailarina

    A bailarina feitade borracha e pssaro

    dana no pavimento

    anterior do sonho.

    A trs horas de sono,

    mas alm dos sonhos,

    nas secretas cmaras

    que a morte revela.

    Entre monstros feitosa tinta de escrever,

    a bailarina feita

    de borracha e pssaro.

    Da diria e lenta

    borracha que mastigo.

    Do inseto ou pssaro

    que no sei caar.42

    Seguindo pelos espelhamentos lexicais entre Poema de Lewin (tinteiro;

    inseto, pssaro) e A bailarina de Cabral (tinta de escrever; inseto, pssaro), e pela

    percepo da delimitao de ambos os poemas por uma percepo insone (ou de quase

    conscincia), j ntido o adensamento da potica de Joo Cabral no sentido da

    valorizao da composio potica e a custosa busca por uma articulao que d valor ao

    trabalho do poeta, mesmo que nesse momento este ainda seja realizado no pavimento

    anterior do sonho. Ciente das dificuldades que o ofcio lhe oferece, Joo Cabral expe a

    42MELO NETO, Joo Cabral de. O co sem plumas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007, p. 73.

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    clareza de quem visualiza em sonho a matria de sua poesia, mas que no sabe como

    preserv-la na conscincia, que em imagem potente se transmuta em inseto ou pssaro

    que no sei caar. Mas mesmo que no concretize em composio, ao menos j distancia

    Cabral de seu conterrneo.

    Lewin demarca as diferenas entre os poetas em carta a Cabral de 1943:

    pobre de mim que sou um bicho inquieto e pulador de galhos [...]43.

    O que acaba referendado na inquietao do poema enviado a Cabral se espelha no

    em esforo de construo potica, mas sim em ddiva do acaso (Que nascer da tua

    boca:/Uma lmpada, a asa de um pssaro/Ou um desejo em forma de pssego?). A

    interrogao expressa a passividade de seu estado. Limitado pela distncia geogrfica

    Cabral no Rio de Janeiro, Lewin em Recifeo contato entre os escritores passa a ser cada

    vez mais espaado, e a correspondncia entre Cabral no exterior e Lewin j no Rio, nos

    anos seguintes, praticamente inexiste. Como se a tomada de conscincia do jovem poeta

    sobre seu prprio projeto potico fosse conflitante com as antigas idias de seu mentor

    pernambucano.

    Como nota Luiz Costa Lima se O engenheiro representa uma etapa capital na

    elaborao potica de Cabral assim acontece porque nele entram em choque duas

    configuraes poticas opostas: uma em que se fundamentava a feitura de Pedra dosonoe

    outra que, embora neste livro de estria j pressentida, ainda no entrara em pleno

    funcionamento.44O certo que alguns dos poemas do livro de 1945 j estavam prontos

    quando do lanamento de sua obra de estria em 1942, e aparecem em O engenheirocomo

    43Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de Rui

    Barbosa.44LIMA, Luiz Costa. A traio conseqente ou a poesia de Cabral. InLira e antilira. Rio de Janeiro:Topbooks, 1995, p. 243.

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    espcie de sobra de seu livro anterior. E, ao menos desde 1943, o poeta j se dedicava

    maturao dos poemas que seriam fixados na obra. o que em carta de 23 de maro de

    1943, Lewin comenta sobre a obra do amigo, que j tinha at ttulo escolhido na data:

    "Acho que voc deve continuar construindo minuciosamente O engenheiro. No saberia, creio,

    imit-loao menos por enquantonessa determinao vigilante, nesse enrgico esprito de plano [...]45

    O segundo poema que Lewin envia a Cabral em dezembro de 1942 46 Os

    mistrios do mar (segundo Georges Mlis), em que o eixo temtico se abre em novas

    interpretaes. Exerccio em prosa, desde seu ttulo tematiza o cinema com a homenagem

    a Mlis, pioneiro da stima arte, precursor e inventor de novas tcnicas, que atuava

    tambm como mgico. O poema de Lewin mais se assemelha a um roteiro do que ao

    poema, em prosa, que pretende ser:

    Os mistrios do mar (segundo Georges Mlis)

    Willy Lewin

    A cena representa o convs de um navio.

    Os marinheiros a postos junto bomba de ar fazem os ltimos preparativos

    para o mergulho do escafandrista.

    Rpida mudana de dcor. Contemplamos agora o fundo do mar. O escafandrista atravessa

    lentamente a cena,

    arrastando com dificuldade os seus ps de chumbo.

    45Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de Rui

    Barbosa.46Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de RuiBarbosa.

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    Brandindo uma machadinha, cercado por uma miraculosa flora submarina, ele abre

    caminho entre as algas balanantes.

    Peixes triangulares e fosforescentes esbarram s vezes no vidro do seu capacete esfrico.

    Meio oculto pelo mastro partido de um veleiro naufragado, um polvo gigantesco distende

    preguiosamente os seus tentculos, pressentindo a aproximao do estranho ser de ferro e

    de borracha.

    Como o procedimento de Cabral em Pirandello I e II, Lewin vai construir seu

    poema atravs da descrio. Porm, o processo acaba se configurando num trabalho de

    objetivao em que o poeta atua mais como uma testemunha do que como participante do

    projeto. De qualquer modo, o que ir nos interessar na passagem a tematizao do

    cinema como objeto potico. Interesse mais do que explcito tambm nos primeiros

    poemas de Joo Cabral, como podemos averiguar a seguir:

    O tema surge em As estradas em long-shot todas/se reuniram numa s estrada/

    que corria entre representaes ideais, de Poema, de 1938. Em [...] os catlogos e os

    guias haviam sido executados por terem atacado a carruagem do rei. Tampouco entre as

    multides de extras do cinemafoi reconhecido. Ou (ele ainda no se retirara a despeito

    da catstrofe iminente que julguei ser para algum efeito surpreendente de montagem),

    ambos de Acontece que ele ignorava..., de 1940. E mais especificamente em Episdios

    para cinema, de 1938, ao qual nos deteremos no captulo seguinte desta dissertao.

    De todo modo, como tema que se desdobra em diversas imagens, o cinema um

    elemento bastante presente nessas primeiras experincias do poeta, e assim como sua

    relao com amigo e tutor Willy Lewin, essa matria que se es tabelece entre o convvio,

    o dilogo e o acesso a um repertrio cultural comum, fazem parte do Joo Cabral que

    segue para o Rio de Janeiro em 1942 e chega em 1947 Espanha.

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    II

    Em outro vis, o burilamento lexical entre a produo dos anos 1930 e a

    consolidao que o poeta realizar em Fbula de Anfion merecem maior detalhamento.

    Nesse processo vai se tornando mais ntida a predominncia e o amadurecimento de um

    projeto de composio potica. Deteremo-nos agora na ampliao do campo de

    significados de alguns termos na obra do poeta.

    Iniciemos pelas modificaes do vocbulo co ao longo do perodo estudado.

    Do ar calmo de sesta, na homenagem a Pirandello em 1937, passamos pelo

    deslocamento posio que este ocupar na obra subseqente de Cabral, cujo exemplo

    maior ser O co sem plumas. Mais do que uma objetivao da fome, transformada em

    exemplo, o co com sua capacidade de ao instintiva (e ainda em Pirandello, fruto do

    acaso) ir ser transposto para a posio de sujeito da ao cachorra de esfinge/que lhe

    mordia/a mo escassa;/que lhe roia/o osso antigo em Fbula de Anfion. Uma ao

    preciso que se digaincua, a expor o esvaziamento (ridas do exerccio puro do nada).

    Por outro lado essa cachorra de esfinge de quem se espera u ma imobilidade de esttua

    age como corpo vivo, limitado pela escassez prxima a mo escassa, o osso antigo

    que tenta roer. O salto em O co sem plumasse d num processo de preenchimento do

    vocbulo atravs de oposies, ou de uma caracterizao s avessas, operada a partir de

    aproximaes semnticas intermediadas pelo smile. interessante notar como logo na

    primeira apario do vocbulo no poema haja uma referncia explcita a Pirandello I.

    Se, em 1937, descrevia Cabral o cachorro que atravessa a rua/ e que deveria ser

    faminto/ tem um ar calmo de sesta., no livro-poema de 1950 ele retomar ao tema em seu

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    verso de abertura A cidade passada pelo rio/ como uma rua/ passada por um

    cachorro/. Os paralelismos aumentam ainda mais pela adjetivao do co em Pirandello

    famlico , num campo de significados muito prximo argumentao derradeira de

    O co sem plumas, em que em mltiplos desdobramentos co e fome figuram numa

    mesma cadeia de sentidos, combinados em valores semnticos, a vocbulos como espesso,

    sangue, ma47, que se concretizam na operao mais potente do poema, a de renomear o

    rio (Capibaribe) pelo somatrio de suas ausncias note-se que nessa articulao que

    ocorre em Discurso, parte derradeira do poema, o termo co passa a ser substitudo

    por seu sinnimo cachorro, em novo espelhamento a Pirandello I. A sofisticao do

    processo cabralino to intensa que as ligaes perceptveis imediatamente, como tendem

    a ser as semelhanas lexicais, apenas reforam o salto que o poeta empreende a partir da

    maturao de sua potica. assim que o que h de imediato nas conexes entre

    Pirandello I e II e O co sem plumas no resiste aos modos de rearticulao dos

    vocbulos que o poeta empreender na construo do poema de 1950.

    Retornando s articulaes do lxico, das figuraes na linguagem. Se para Lewin o

    mar48,na quadra j reproduzida, passa a ser o resultado da construo imagtica do sono,

    de seu material absurdo e sem formas, em Fbula de Anfion, Joo Cabral o

    preencher de contedos semnticos que o aproximam de uma idia de projeto

    antecipadamente, como faz,/no tempo, o mar? (grifo meu) , de controle sobre o que

    parece incontrolvel, ou que ainda no se sabe como controlar, reforado por um franco

    desejo de aprendizado Como traar suas ondas como faz, no tempo, o mar? (grifo

    47Como um cachorro/ mais espesso do que uma ma./Como mais espesso/um homem/do que o sanguede um cachorro.48O sono, um mar de onde nasce/Um mundo informe e absurdo In MELO NETO, Joo Cabral de. Prosa.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.11.

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    meu). O vocbulo ir reaparecer em O co sem plumas, mas j em nova chave. Atravs de

    metforas que lhe lanaro em outras relaes de significados, de interseces

    movimentadas pelo smile (como camisa ou lenol; podia ser uma bandeira), que

    possibilitaro ao termo extrapolar seus usos comuns, relacionando-se com significados a

    priori impensveis, como as caracterizaes de um co, ou de uma bandeira, vocbulo

    que, j metaforizado atravs de processo similar (uma bandeira que tivesse dentes)

    ganha caractersticas do campo semntico a que comparado os significados que se

    associam palavra co, tornando possvel a contaminao dessas novas caractersticas

    aos vocbulos que so tramados pelas relaes de comparao. assim que se o mar

    podia ser uma bandeira, este tambm est sempre com seus dentes e seu sabo roendo as

    praias.

    Essa operao, elaborada entre Fbula de Anfion e O co sem plumas ir encerrar

    em definitivo os dilogos entre Joo Cabral e Willy Lewin. A partir deste momento as

    poticas dos dois poetas pernambucanos iro bifurcar. Ambos se aproximam com a

    linguagem dos limites onde o real, intransponvel, se oferece como realidade. Lewin faz

    desse momento paralisia, expressa em tentativa fracassada, e se dedicar a um Surrealismo

    plido, em que a imaginao e o inconsciente no so preo para as limitaes operadas na

    articulao. J Cabral o transforma em negatividade, em no fazer, em no dizer,

    utilizando-se de sua potncia imagtica para estabelecer uma linguagem que mais do que a

    simplificao da reproduo mimtica, somada s imagens de efeito com que Lewin ir

    adornar sua obra, se formula internamente num potente processo de construo potica.

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    Captulo 2 - O poeta vai ao cinema - Aproximaes

    O movimento de Cultura Popular do Recife, dirigido por Germano Coelho e autarquia daPrefeitura de Recife, firmou convnio com um grupo de cineastas do Rio para Leon Hirshman,

    diretor de Pedreira de So Diego (uma das histrias de Cinco vezes favela) dirigir um filme doRecife. A histria escolhida foiMorte e Vida Severinae O rioincluso. Leon e eu faremos o roteiro

    e o filme ser todo rodado em Pernambuco, com capital pernambucano etc. O roteiro j estiniciado e est empolgando a turma. Falta: a sua autorizao para o uso da histria e quais as basesque voc determina: quanto quer de dinheiro pela histria? Se quer colaborar tambm na feitura do

    roteiro ou dos dilogos? se quer corrigir o roteiro e o dilogo? e todas essas coisas comerciais."(Carta de Flix Athayde, de 02/08/1962)49

    "Suspenda imediatamente qualquer providncia tomada qualquer propaganda ou notciasobre filme abraos Joo" (Telegrama de JCMN, em 17/09/1962)50

    Neste captulo a srie de mediaes com as quais Joo Cabral de Melo Neto, desde os

    momentos iniciais de sua produo, empreende seu projeto potico, cotejada ao campo

    flmico. Os elementos associados ao Surrealismo em seus primeiros poemas so

    analisados a partir dos procedimentos de composio surrealistas, ancorados pelas

    anlises que Michel Riffatere estabelece no contato com essas estruturas.

    Introduo

    Abrimos o captulo com a correspondncia entre Joo Cabral de Melo Neto e o

    jornalista e escritor Flix de Athayde, no incio dos anos 1960. A averso do poeta

    proposta de uma verso cinematogrfica de seus livros to notvel que ganha ares

    anedticos. Mas, se com um tom assertivo o poeta trata dos possveis desdobramentos de

    sua produo51, o cinema como tema ir aparecer em sua poesia muito precocemente,

    desde os primrdios de sua escrita.

    49Acervo Joo Cabral de Melo Neto. Arquivo Museu de Literatura BrasileiraFundao Casa de RuiBarbosa.50Idem51Um dia seu exlio voluntrio interrompido por uma carta em que os diretores do TUCA informamseudesejo de montarMorte e vida Severina. A carta acrescenta que o compositor escolhido o jovem Chico

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    O cinema tem sido um elemento pouco ressaltado nos estudos comparados que tem

    por objeto a produo potica do sculo XX. Os dilogos, influncias e interferncias

    desta arte sobre os demais campos de produo artstica so considerveis, e, de certo

    modo, os estudos poticos parecem os mais relutantes a tal aproximao.

    Especificamente nesta dissertao, alm do contato de Cabral com a linguagem

    flmica como espectador contemporneo de uma notvel produo, interessa-nos entender

    como se d sua relao com a vertente surrealista desta prtica artstica.

    De modo peculiar, o restrito repertrio de textos interdisciplinares a cotejar poesia

    e cinema compensado pela presena marcante de objetos flmicos na crtica artstica, em

    maior medida, a partir dos anos 1950 (algo que se combina mudana do eixo artstico

    para os EUA no ps-guerra). A presena intensa deste campo artstico, no sculo recm-

    encerrado, alimenta ainda mais o choque entre modelos de anlise que tendem a preservar

    parmetros da arte moderna, e outros que se interessam por elementos novos que adensam

    o repertrio de referenciais artsticos no sculo XX, alinhavando-se em movimentos de

    oposio e prosseguimento aos ideais modernistas.52

    Buarque de Holanda. O poeta desconhece completamente o trabalho de Chico. [...] A msica na verdade jest pronta. O poeta no pode impedir a montagem. In CASTELLO, Jos.Joo Cabral de Melo Neto: Ohomem sem alma & Dirio de tudo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 131.52O ps-moderno, novo clich dos anos 80, invadiu as Belas-Artesse ainda se pode falar assim, aliteratura, as artes plsticas, talvez a msica, mas antes de tudo a arquitetura e tambm a filosofia etc.,cansadas das vanguardas e de suas aporias, decepcionadas com a tradio da ruptura cada vez mais integrada

    ao fetichismo da mercadoria na sociedade de consumo. Desde os anos 60, a arte, como acabamos de ver,distingue-se cada vez menos da publicidade e do marketing. O ps-moderno compreende,incontestavelmente, uma reao contra o moderno, que se tornou o bode expiatrio. COMPAGNON,Antoine.In Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG: 2003, p. 103.Ocorre-nos, a partir das constataes de Compagnon, que a crtica obra de Joo Cabral tem diante de seusolhos a transformao de uma obra que nasce praticamente artesanal, bancada pelo autor, em pequenastiragens, com diversas de suas edies produzidas manualmente pelo poeta em sua prensa na Catalunha, eque a partir dos anos 1960 passa a circular de outro modo, com edies maiores feitas pelas grandes casaseditoriais, at que em data recente tenha se tornado motivo de disputas comerciais entre editoras, passandoatualmente por um processo de relanamento.

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    Assim a historiografia da (recente) arte cinematogrfica, se plenamente aceita

    como fonte de dilogo na obra de diversos produtores a partir de determinadas leituras,

    desconsiderada por abordagens mais tradicionalistas. Desse modo, obras surgidas entre a

    ecloso das vanguardas no comeo do sculo e o ps-guerra, como a de Joo Cabral de

    Melo Neto, situam-se numa zona cinzenta do possvel dilogo entre obras de campos

    distintos.

    1. O cinema como tema

    Interessa-nos aqui entender as relaes que Joo Cabral estabelece com a prtica

    flmica. O jovem Cabral que consolida esse interesse inicial, em lxico e tema, reafirmar

    textualmente ao longo de sua trajetria tal aproximao. Mais. Esse interesse internaliza-se

    no poeta, no mais como casca ou apreenso imediata da referncia textual, mas sim numa

    aproximao mais aguda, como fonte de processos de composio artstica.

    Em texto para revistaRenovao, de novembro de 1940, a respeito do primeiro

    Congresso de Poesia do Recife, o poeta j demonstra essa preocupao subscrevendo o

    texto junto a Vicente do Rgo Monteiro, Willy Lewin e Jos Guimares de Arajo:

    [...] um Congresso destinado a debater problemas de ordem exclusivamente

    potica, tomada a expresso no no seu sentido estrito (de arte potica), mas no de

    qualquer categoria de arte que receba o toque de valores legitimamente lricos: a pintura, o

    cinema, a fotografia, a arquitetura [...]53(grifo meu).

    53Joo Cabral de Melo Neto, Vicente do Rgo Monteiro, Willy Lewin e Jos Guimares de ArajoCongresso de Poesia do Recife In RevistaRenovao2, novembro de 1940, pp. 6-7. APUD: MAMEDE,Zila. Civil Geometria. So Paulo, Nobel: 1987, p. 127.

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    Dois anos antes, Cabral j havia realizado uma pea em que o cinema surge

    tematizado desde o ttulo: Episdios para cinema54.

    Poema em prosa, dividido em quatro partes, numeradas, mas no nomeadas. Mais

    nos parecem episdios sonhados ou imaginados. Sob uma atmosfera nonsense, o poeta

    mistura referncias cinematogrficas (como o heri Tom Mix) a personagens histricos

    (Napoleo), que de modo caricatural grita anunciando seu retorno a Culver City, centro de

    produo de filmes na Califrnia, sede dos estdios MGM. Implode-se a noo espacial

    misturando-se referenciais de culturas distintas num mesmo ambiente, numa mesma cena.

    Ao heri americano e ao general francs, so interpostas citaes da histria nacional,

    como a batalha do Riachuelo.

    A segunda parte iniciada com uma justificativa que tem por preceito a noo de

    continuidade da narrativa cinematogrfica:

    Na terceira esquina,sem transioaparecem os anjos. (grifo meu)

    A ligadura com que so realizados estes episdios no obedece a procedimentos

    narrativos como a preparao e o encadeamento, so cenas seqenciadas

    independentemente de suas relaes de proximidade semntica ou de noes de

    continuidade. importante que se note, no se trata aqui de colagem ou sobreposio, e

    sim de um seqenciamento que obedece a outra operao, espcie de montagem flmica

    juno artstica, j prevista no roteiro de seqncias de imagens e cenas individuais em

    situao espao-temporais diferentes, que no esto vinculadas por relaes objetivas de

    ao ou pensamento.55(grifo meu).

    54Em razo de sua extenso, o poema ser anexado no final deste captulo.55CARONE, Modesto.Montagem e metfora. So Paulo: Perspectiva, 1974, p. 101-102.

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    Nas partes III e IV, em que o tema prossegue como prolongamento, a idia de

    sonho, de um espao no realista, afirma-se no verso no meu quarto, s sextas-feiras, era

    comum reunirem-se algumas pessoas, quase sempre amigos que me tinham chegado em

    sucessivas viagens.. A partir da Cabral d vazo aos personagens que permeiam esse

    estado em que se fragiliza a apreenso amparada na realidade. Assim, vo se sucedendo

    personagens que no se podiam nunca libertar de certos instrumentos prprios de suas

    profisses. So encadeados a seguir, o eletricista com seus pombos-correio, um

    automobilista com sua mquina ltimo tipo, invlidos de guerra, acrobatas de circo e os

    fantasmas de um poeta silencioso que ganhava os maiores aplausos. Enquanto isso o

    rdio anunciava a volta de um famoso aviador (seria Charles Lindbergh, que atravessara o

    Atlntico anos antes?), que acaba se juntando aos demais. Soma-se a esses personagens a

    presena marcante da mquina, da tecnologia, dos expoentes do mundo que as vanguardas

    europias nas dcadas anteriores revelaram em suas obras: uma mquina ltimo modelo,

    automveis, avies, rdios etc. Mas no ambiente onrico que embala o poema, mais se

    percebe um tom de deslumbramento juvenil por esses equipamentos do que de qualquer

    processo mais crtico, como o realizado pelos surrealistas.

    O poema, escrito por Joo Cabral, aos 18 anos, ainda no consegue unir o tema aos

    procedimentos poticos, e no nos causa estranhamento que a experincia inicial tome

    forma a partir de uma sintaxe muito prxima a um exerccio de prosa, sem mtrica

    aparente, obedecendo a uma coerncia interna de sentido, que trazia como nica conexo,

    referentes externos, atravs de nomes, lugares e citaes que retrabalhados em novo

    contexto, ganham a encenao de uma atmosfera nonsense.

    Cabral ir precisar de alguns anos para extrapolar seu interesse mais bruto nos

    processos flmicos e na transformao de uma mentao surrealista inicial em

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    procedimento, livrando-se enfim das facilidades do estranhamento imediato e dedicando-

    se a um trabalho de construo potica. J emPedra do sono, a relao prossegue, e de

    onde retiramos Dois estudos:

    Dois estudos

    1

    Tu s a antecipao

    do ltimo filme que assistirei.

    Fazes calar os astros,

    os rdios, e as multides na praa pblica.Eu te assisto imvel e indiferente.

    A cada momento tu te voltas

    e lanas no meu encalo

    mquinas monstruosas que envenenam reservatrios

    sobre os quais ganhaste um domnio de morte.

    Trazes encerradas entre os dedos reservas formidveis de dinamite

    e de fatos diversos.

    2

    Tu no representa as 24 horas de um dia,

    Os fatos diversos,

    O livro e o jornal

    Que leio neste momento.

    Tu os completas e os transcendes.

    Tu s absolutamente revolucionria e criminosa,

    Porque sob teu manto

    E sob os pssaros de teu chapu

    Desconheo a minha rua,

    O meu amigo e o meu cavalo de sela.

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    O primeiro verso anuncia o eixo temtico. Tu s a antecipao/do ltimo filme

    que assistirei.Retornemos nota biogrfica.

    [...] o cinema, por exemplo, uma coisa que sempre me fascinou. Mas o cinema

    ambguo. O cinema, ao mesmo tempo em que ele espacial, porque voc est olhando a

    composio naquele momento, aquela imagem vai se transformando, de forma que uma

    srie de pinturas, de quadros, que seguem uma estrutura meldica. [...] os cineastas que

    mais me interessam so aqueles que exploram a beleza plstica, no aqueles que se

    interessam maispela coisa musical, que a continuidade.Porque, voc repare, o cinema

    so duas coisas: a coisa do tempo e, a cada momento, um corte no espao..56 (grifos

    meus).

    O modo com que Cabral utilizava-se da sintaxe para encadear Episdios para

    cinema no lhe serve mais. As mquinas que deslumbravam o poeta em Dois estudos

    so caracterizadas como monstruosas, a envenenar reservatrios. A mquina, na

    verdade, ser internalizada, e o poema, mquina potente, ter a funo de emocionar,

    como anunciar a epgrafe de O engenheiroque remete a Le Corbusier. A relao com o

    cortea cada momento, um corte no espao, diz o poeta , que associamos no

    vocabulrio potico cesura, possibilitar um maior grau de experimentao em

    elementos de construo, como o verso e a quadra. Se em Dois estudos o mecanismo

    ainda incipiente, em Infncia e Marinha, poemas dePedra do sono, o processo j

    outro.

    56Resposta a Sebastio Uchoa Leite, 34 Letras, Rio de Janeiro, no. 3, mar. 1989. Apud: ATHAYDE, Felix.Idias fixas de Joo Cabral de Melo Neto.Rio: Nova Fronteira, 1998, p. 20.

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    2. Modos de composio

    Abrimos com os dois poemas dePedra do sono, que nos serviro de exemplo.

    Infncia

    Sobre o lado mpar da memria

    o anjo da guarda esqueceu

    perguntas que no se respondem.

    Seriam hlices

    avies locomotivas

    timidamente precocidadebales-cativos si-bemol?

    Mas meus dez anos indiferentes

    rodaram mais uma vez

    nos mesmos interminveis carrossis.

    Marinha

    Os homens e as mulheres

    adormecidos na praia

    que nuvens procuram

    agarrar?

    No sono das mulheres

    cavalos passam correndo

    em ruas que soam

    como tambores.

    Os homens tm espelhos de bolso

    onde os gestos das amadas

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    (as amadas demoradas)

    se repetem.

    Vi apenas que no cu do sonho

    a lua morta j no mexia mais.

    Mesmo compostos em perodos prximos, e estarem organizados no corpo de

    Pedra do sono, h entre Dois estudos e Marinha (ou Infncia) um salto de processos

    na potica de Joo Cabral. Dois estudos o nico poema de sua estria literria

    organizado em partes (1 e 2), estrutura que s voltaria a ser repetida pelo poeta em O

    engenheirocom A lio de poesia este poema, com suas trs divises, j se utiliza de

    uma organizao sinttica e de versos moldados numa inflexo que seria recorrente em sua

    produo, especialmente a quadra. J Dois estudos nos parece o acaso de um domnio

    do tema sobre a composio, que marcou seus primeiros poemas. Como vimos em

    exemplos como Episdios para cinema e Pirandello I e II, em que o assunto tratado

    sobrepunha-se ao modo de faz-lo, Cabral passar a equilibrar essas tenses a partir de

    uma organizao rgida que permear sua produo subseqente.

    Em Marinha e Infncia o que verificamos a articulao de um verso seco, da

    dominante da quadra e do terceto e de combinaes entre estes, longe das amarras do

    soneto, utilizando-se de uma organizao em que as estrofes funcionam como limites da

    frase potica. A frma de seus versos passa assim a funcionar a partir de frases completas

    de sentido, que se subdividem em versos, dando coeso a cada uma das estruturas

    (quartetos, tercetos). A pontuao obedecer claramente essa organizao, principiando as

    estrofes em maisculas e respeitando a pontuao aps a ltima palavra do verso

    derradeiro de cada estrofe, como exemplo a quadra No sono das mulheres/cavalos

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    passam correndo/em ruas que soam/como tambores.. Essa conscincia da coeso das

    micro-estruturas, como apontamos brevemente em nossa tentativa de equiparar a

    linguagem potica das estruturas flmicas, ser de considervel importncia em nossa

    argumentao futura.

    Se tal organizao sinttica sinaliza claramente o amadurecimento do poeta em

    relao a seus poemas iniciais, esta torna ainda mais clara a presena de um ambiente

    onrico, que se em Marinha explicitado em lxico adormecidos na praia; sonho das

    mulheres; no cu do sonho em Infncia combina-se com a memria, em pleno

    contraste recuperao que Joo Cabral far de contedos memorialsticos em O co sem

    plumas. Em outra chave h uma tendncia do poeta de no mediar relaes que simulem

    as noes de arbitrariedade dos surrealistas, ou caractersticas como as que j descrevia

    Pierre Reverdy57 em 1918, resultando ora em ligaduras imediatas que no alcanam o

    deslocamento proposto pelo modelo automtico de escrita, como no trecho em que

    homens e mulheres do formatos s nuvens Os homens e as mulheres/adormecidos na

    praia/que nuvens procuram/agarrar?, ora em derivaes ainda muito presas a um desejo

    de compreenso por parte do leitor, como a relao entre cu e lua no verso final no cu

    do sonho/a luamorta no mexia mais.

    Como aponta Michel Riffaterre em relao poesia surrealista: o arbitrrio dessas

    imagens s existe em relao aos nossos hbitos lgicos, nossa atitude utilitria diante da

    realidade e da linguagem. [...] Impe-se uma lgica das palavras que nada tem a ver com a

    comunicao lingstica normal: ela cria um cdigo especial, um dialeto no seio da

    57Quanto mais as relaes das duas realidades aproximadas forem longnquase justas, mais a imagem serforte, mais fora emotiva e realidade potica ela ter. REVERDY, Pierre. Nort -Sud APUD Breton,Andr.Primeiro manifesto surrealista. Nau Editora: Rio de Janeiro, 2001, p. 35.

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    linguagem que suscita, no leitor, o deslocamento da sensao, considerado pelos

    surrealistas o essencial da experincia potica58.

    EmPedra do sono, talvez pela prpria desconfiana nesses princpios, ou por sua

    prpria imaturidade artstica, Joo Cabral no realizar esse intento por completo. Por

    outro lado, seus primeiros poemas funcionam como uma prvia do projeto de construo

    potica que ir empreender, possibilitando-lhe estabelecer os limites que regem as noes

    de arbitrariedade entre os signos lingsticos e os objetos. Como observa Jakobson 59essa

    arbitrariedade atende a determinadas gradaes. As sonoridades, as relaes entre fonemas

    distintos, so capazes de criar motivaes. Assim, como h no lxico, palavras em que

    sons e sentidos se equivalem. Nessas modulaes, variaes da arbitrariedade passam a

    ser matria do poeta a partir do momento em que se volta ao burilamento da linguagem. J

    h a conscincia, provavelmente desenvolvida a partir de seus primeiros poemas, dos

    limites da transposio do real em linguagem, mas falta ainda ao poeta testar os limites

    internos da expresso potica, dos sistemas interiores a esta. Nestes poemas de sua estria

    literria, o que Joo Cabral de Melo Neto aprender so as gradaes no trato dos signos

    lingsticos, a partir do momento em que estes se deslocam de sua funo utilitria. Um

    processo em que se modifica o modo de relacionar internamente as imagens e as noes de

    aceitabilidade dessas proposies.

    Riffaterre ir cunhar um termo para definir de que forma essas imagens se

    conectammetfora tecida. Uma srie de imagens ligadas umas s outras atravs da

    sintaxeelas fazem parte da mesma frase ou de uma mesma estrutura narrativa ou

    58RIFFATERRE, Michel. A metfora tecida na poesia surrealista InA produo do texto. So Paulo:Martins Fontes, 1989,p. 195.59Idem. Ibidem, p. 62.

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    descritivae atravs do sentido: cada uma exprime um aspecto particular de um todo,

    coisa ou conceito, que a primeira metfora da srie representa 60.

    Grifamos algumas passagens em Marinha:

    Os homens e as mulheres

    adormecidos na praia

    que nuvens procuram

    agarrar?

    No sono das mulheres

    cavalos passam correndoem ruas que soam

    como tambores.

    Os homens tm espelhos de bolso

    onde os gestos das amadas

    (as amadas demoradas)

    se repetem.

    Vi apenas que no cu do sonho

    a lua morta j no mexia mais.

    Desde a primeira estrofe o poeta localiza o leitor espacialmente (na praia), assim

    como caracteriza os objetos do poema: homens e mulheres adormecidos. A partir da

    dar incio s aproximaes internas de sentido, principiando pelas que compartilham um

    mesmo campo semnticoadormecidos/sonopara ento tramar relaes metafricas

    facilmente reconhecveis, como agarrar nuvens. Dessas primeiras operaes o que se

    60 Idem. Ibidem, p.195-196.

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    segue a extrapolao de sua proposio original. Assim que no sono das mulheres

    adormecidas h cavalos correndo em ruas que soam como tambores.

    Seguindo a terminologia de Riffaterre, a metfora tecida substitui a funo

    referencial da linguagem atravs de uma referncia prpriaformada mensagem

    lingstica atravs daquilo que Jakobson chama a funo potica que deve, segundo

    Breton, fazer o esprito apreender a interdependncia de dois objetos de pensamento

    situados em planos diferentes, entre os quais o funcionamento lgico do esprito no est

    apto a lanar qualquer ponte e se ope a priori a que qualquer espcie de ponte seja

    lanada61.

    O que pode ser notado nessas primeiras experincias de Cabral que a

    extrapolao ainda tmida. O poeta ao localizar o espao dessas imagens mais

    contrastantes no sono, e seus personagens-objetos como seres inanimados

    (adormecidos) fixa uma aproximao semntica que ainda mantm o leitor em ambiente

    conhecidono soa to absurdo que mulheres sonhem com cavalos em ruas trepidantes,

    nem que no cu do sonhoa lua oferea-se imvel. No soa absurdo, pois, quando

    localizamos textualmente essas aes no ambiente onrico, imediatamente flexibilizamos

    nossas relaes de verossimilhana.

    Em Infncia o poeta se desprende um pouco mais de suas ncoras de sentido. O

    verso inicial localiza as im