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Dois ou três platôs de uma antropologia de esquerda ARTIGO / Marcio Goldman*// Conferência apresentada na Mesa de Abertura “Etnografia e Antropologia da Ciência e da Tecnologia: etnografia (não ciência?) da ciência (conhecimento habitado? experiência narrada?)” — organizada por Suely Kofes e Daniela Manica, e contando, ainda, com a participação de Otávio Velho — da IV Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (IV ReACT), realizada entre 24 e 26 de setembro de 2013, na Universidade Estadual de Campinas. —– Eu gostaria de começar agradecendo o convite feito por Suely Kofes e Daniela Manica para participar da mesa de abertura. E, claro, agradecer também a toda a organização desta IV ReACT, a segunda de que participo, já que em 2009 estive presente no segundo encontro, em Belo Horizonte. Naquela ocasião, comecei com algumas dúvidas que me vejo obrigado a repetir quatro anos depois: “convidado a participar de um encontro destinado a explorar o cada vez mais fecundo campo da antropologia da ciência e da tecnologia, perguntei a mim mesmo o que um antropólogo que não é, nem de longe, um ‘especialista’ nessa área, e que trabalha há muitos anos com temas afro-brasileiros, poderia dizer de interessante para quem nela efetivamente trabalha”. Naquele momento, minha saída foi “tentar imaginar o que o pensamento afro-brasileiro poderia

Dois Ou Três Platôs de Uma Antropologia de Esquerda

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Dois ou trs plats de uma antropologia de esquerdaARTIGO /

Marcio Goldman*//

Conferncia apresentada na Mesa de Abertura Etnografia e Antropologia da Cincia e da Tecnologia: etnografia (no cincia?) da cincia (conhecimento habitado? experincia narrada?) organizada por Suely Kofes e Daniela Manica, e contando, ainda, com a participao de Otvio Velho da IV Reunio de Antropologia da Cincia e da Tecnologia (IV ReACT), realizada entre 24 e 26 de setembro de 2013, na Universidade Estadual de Campinas.

Eu gostaria de comear agradecendo o convite feito por Suely Kofes e Daniela Manica para participar da mesa de abertura. E, claro, agradecer tambm a toda a organizao desta IV ReACT, a segunda de que participo, j que em 2009 estive presente no segundo encontro, em Belo Horizonte.

Naquela ocasio, comecei com algumas dvidas que me vejo obrigado a repetir quatro anos depois: convidado a participar de um encontro destinado a explorar o cada vez mais fecundo campo da antropologia da cincia e da tecnologia, perguntei a mim mesmo o que um antroplogo que no , nem de longe, um especialista nessa rea, e que trabalha h muitos anos com temas afro-brasileiros, poderia dizer de interessante para quem nela efetivamente trabalha. Naquele momento, minha sada foi tentar imaginar o que o pensamento afro-brasileiro poderia dizer da cincia se, por acaso, fosse obrigado a se interessar por ela.

Hoje, a situao um pouco mais complicada, uma vez que o tema proposto para esta mesa de abertura parece exigir algum tipo de pronunciamento sobre a questo mesma da antropologia da cincia e da tecnologia, da qual consegui escapar h quatro anos ao me refugiar no meu material etnogrfico em uma mesa sobre a agncia dos objetos.

Permitam-me, ento, comear pelo ttulo mesmo da mesa. A primeira parte se apoia na conjuno e (Etnografia e Antropologia; Cincia e Tecnologia). A segunda parte ope, interrogativamente, por um lado, etnografia e cincia, e, por outro, cincia e conhecimento habitado ou experincia narrada. O que nos remete quase inevitavelmente a um tema que uma verdadeira obsesso dos cientistas humanos em geral e dos antroplogos em particular. Desde a origem de suas disciplinas, todos parecem angustiados em saber se o que fazemos, afinal, , pode ser, deve ser ou vir a ser um dia uma verdadeira cincia.

H quase vinte anos, Bruno Latour (1996a) respondeu a uma questo desse tipo, levantada pela Associao Americana de Antropologia em seu boletim oficial, com um pequeno artigo cujo ttulo simplesmente Not the Question. H exatos dez anos, Eduardo Viveiros de Castro (2003) encarou a mesma questo, colocada desta vez pela Associao de Antropologia Social da Gr-Bretanha, sugerindo que no sintagma antropologia e cincia o mais interessante o e, que demonstra que se trata de uma relao possvel, no de uma identidade dada. E, h apenas trs anos, a Associao Americana de Antropologia, de novo, se viu envolvida numa polmica desta feita de propores muito maiores quando resolveu substituir, em seu plano de longo prazo, a expresso promover o avano da antropologia como a cincia que estuda a humanidade em todos os seus aspectos por os propsitos da associao devem ser a promoo do avano do entendimento pblico da humanidade em todos os seus aspectos.

Quem imagina que a troca de algo como a cincia que estuda a humanidade pela promoo do avano do entendimento pblico da humanidade s poderia receber a admirao geral est redondamente enganado. A AAA, quem diria, foi acusada de promover o obscurantismo, ao se tornar vtima de antroplogos ps-coloniais e/ou ps-modernos. Como sugeriu Isabelle Stengers (1995), sempre estranho que uma disciplina cientfica no consiga se estabelecer com tranquilidade sem uma contnua promoo de caas s bruxas. E se verdade que antroplogos perseguindo colegas taxados de irracionais parecem uma repetio em tom de farsa dos mdicos que perseguem eternamente seus charlates, os dois movimentos parecem igualmente estranhos quando encarados do ponto de vista da despreocupao com a qual os astrnomos parecem contemplar os astrlogos.

No Brasil, a polmica da AAA teve uma certa repercusso. A revista da Fapesp (n 181, maro de 2011) fez uma matria sobre o assunto, interrogando alguns antroplogos brasileiros, incluindo este que vos fala. Das dez questes que me foram submetidas e que respondi, a revista usou quatro linhas, ainda assim editadas e diretamente contestadas logo no pargrafo abaixo. Enfim, como dizem que Lenin dizia, jornalistas, nem os nossos

Meu ponto era muito simples e no muito original, na verdade. Perguntar se a antropologia uma cincia supe que se saiba inequivocamente o que cincia e quais os critrios para uma prtica compartilhar do estatuto de cincia. O problema, argumentei, que isso est muito longe de ser verdade e que, no fundo, as discrepncias entre diferentes concepes de cincia no so menores do que as discrepncias entre diferentes concepes de antropologia e entre diferentes concepes sobre as relaes entre ambas.

Mencionei, tambm, o artigo de 1996 de Latour, que demonstrava a impossibilidade de discutir essa questo sem esclarecer o que se entende por cincia. E, nesse caso, dizia ele, a situao se complicara, uma vez que um ramo da antropologia (ou das cincias sociais) vinha, j h algum tempo, investigando de modo emprico o prprio funcionamento das cincias. A antropologia ou sociologia da cincia, ou os estudos de cincia e tecnologia, teriam, pois, possibilitado ultrapassar os discursos de divulgao e propaganda que os prprios cientistas e outras instncias produzem, levando a discusso para o que Latour considerava o plano correto: no aquele pretensamente metodolgico, mas a discusso do contedo mesmo das prticas cientficas. Nesse contexto, e com um pouco de ironia, seria possvel, talvez, repetir a frase atribuda a Lacan ao responder se a psicanlise seria mesmo uma cincia. O problema, teria dito ele, no se a psicanlise resiste a testes de cientificidade, mas se a cincia capaz de resistir psicanlise.

claro, por outro lado, que as duas coisas so igualmente verdadeiras e que, como vem demonstrando Stengers (1993, 1997), as prticas cientficas so de uma heterogeneidade gigantesca. O que chamamos a cincia, diz ela, apenas um amlgama que precisamos dissolver a fim de reencontrar o que ela prefere chamar, justamente, de prticas cientficas. Imaginar que a matemtica, as fsicas, a biologia molecular ou a paleontologia so a mesma coisa porque so todas cientficas totalmente absurdo. Assim como absurdo imaginar que se elas so diferentes apenas porque algumas seriam cientficas e outras no. No vejo, alis, por que no se poderia acrescentar a antropologia a essa lista. Latour o fazia de bom grado, em 1996, escrevendo, de modo provocativo, que a antropologia j uma das mais avanadas, produtivas e cientficas de todas as disciplinas naturais ou sociais e que s a fsica comparvel capacidade da antropologia em gerar uma multiplicidade de agncias e hbridos.

Mas no pretendo aqui, de jeito nenhum, defender a antropologia mesmo porque nem creio que ela precise de defesa nem que uma prtica precise ser cientfica para ser, digamos, decente. A questo apenas que no se trata mais de perguntar verbalmente se a antropologia cientfica ou no cientfica, mas de examinar conceitualmente se o que os antroplogos fazem tem conexes empricas e tericas com as prticas cientficas mais consensualmente aceitas enquanto tais. Para isso, no deixa de ser de bom tom definir com clareza o que se est chamando de antropologia e o que se est chamando de cincia quando se deseja discutir a relao entre ambas.

Ocultar-se atrs da pretensa neutralidade das prticas cientficas no ajuda muito. H sculos qualquer cientista sabe (ainda que no o diga sempre) que neutralidade, iseno, objetividade, so termos de manual e que a prtica cientfica consiste, antes, na criao de uma situao de total artificialidade, que permite tirar concluses relativamente estveis relativamente, porque como todo mundo sabe mas ningum gosta de lembrar, a verdade cientfica muda todo dia.

Claro que em quase toda prtica cientfica, diz Stengers (2006), coloca-se a questo da sada do laboratrio. E nesse sentido, os problemas colocados s cincias humanas no so to diferentes daqueles colocados ao bilogo que quer tirar do laboratrio o OGM que produziu ou do fsico que v o tomo que dividiu explodir sobre Hiroshima. A estratgia habitual de se esconder atrs de uma cincia abstrata e misteriosa no capaz de ocultar o fato de que cada um tem que assumir suas responsabilidades nesses processos. No vejo por que o trabalho de campo e a etnografia dos antroplogos seriam muito diferentes. Os problemas da antropologia comeam quando ela tenta mimetizar um mtodo cientfico no qual nenhum cientista acredita.

Em outros termos, para um antroplogo a questo da cientificidade da antropologia deveria ser colocada de uma perspectiva propriamente antropolgica, ou seja, levando em conta a crtica ao etnocentrismo ocidental que caracteriza nosso saber. Um tipo de etnocentrismo que, como observaram Deleuze e Guattari (1980: 218) ao falar do racismo europeu, no admite realmente a alteridade, apenas pessoas que deveriam ser como ns e cujo crime no o serem. Penso que, hoje, essa crtica depende de uma perspectiva ao mesmo tempo ps ps-moderna ou seja, que leve em conta a crtica ps-moderna e faa algo de positivo a partir dela e ps-social e ps-cultural no sentido de abrir mo rigorosamente de todo pressuposto sobre a maior adequao de nossas categorias frente s dos demais.

claro, contudo, que essa crtica tambm deriva de algo que vem acontecendo ao menos desde a dcada de 1960 a saber, o que poderamos, talvez, chamar de estudos no epistemolgicos sobre a cincia. De um lado, os trabalhos empricos sobre as cincias, onde a antropologia da cincia pode aparecer claramente como antdoto antropologia como cincia da no cincia. Penso que Bruno Latour seria, hoje, a principal referncia dessa vertente.

De outro lado, creio que temos algo anterior e mais, digamos, filosfico. Algo que comea, talvez, com a obra de Michel Foucault, que representa uma grande ruptura com a tradio racionalista e evolucionista da filosofia da cincia e da epistemologia francesas. Imagino que Michel Serres tambm tem uma relao com esse movimento, e que mesmo Deleuze e Guattari esto de algum modo nele envolvidos. E penso, por fim, que Isabelle Stengers o pensador que, hoje, se encontra no cruzamento dessas linhas mais ou menos filosficas.

De todo modo, lembremos rapidamente o que dizia aquela tradio racionalista e evolucionista da filosofia da cincia e da epistemologia. Bachelard, Canguilhem, Althusser, Lacan, Bourdieu no cansam de repetir: para fazer cincia preciso romper com o senso comum. E mesmo a tradio mais empirista e positivista de outras epistemologias e filosofias da cincia (como Popper e a filosofia analtica, por exemplo) acaba indo na mesma direo, ao supor uma maior adequao entre a linguagem cientfica e o mundo, quando comparada quela entre este e o senso comum.

A questo, para um antroplogo, me parece bvia: como pde (e como pode) a antropologia aceitar uma posio como essa sem trair seu trao distintivo, a capacidade de ouvir as verdades dos outros enquanto verdades? Como escrevi em outro lugar, se a antropologia faz parte do trabalho milenar da razo ocidental para controlar e excluir a diferena (na medida em que foi destinada a explicar de modo racional a falta de razo ou a desrazo dos outros e at mesmo a nossa), ela jamais se limitou a ser apenas isso. O carter intrinsecamente paradoxal da antropologia foi explicitado h tempos por Pierre Clastres (1968), que sublinhou que o fato de que lidar com saberes dominados e mundos alternativos fez com que a antropologia, por mais enraizada que esteja na razo ocidental, jamais tenha conseguido se livrar de um impulso que a conduz ao dilogo com essas linguagens estranhas que o Ocidente no gosta de reconhecer.

A dupla herana da antropologia no deriva, como se costuma repetir com demasiada frequncia, de sua ligao com o Iluminismo, de um lado, e o Romantismo, de outro. Porque Iluminismo e Romantismo, claro, esto do mesmo lado, o nosso. A originalidade da antropologia s pode provir, como Clastres (1968) tambm sugeriu, de seu duplo vnculo com a grande partilha () entre a civilizao ocidental e as civilizaes primitivas duplo vnculo tambm no sentido de double bind, tal qual proposto por Gregory Bateson (1956: 206-207).

A primeira consequncia desse duplo vnculo que a antropologia no tem que se culpar por seu carter de prtica cientfica. Como Stengers observou, o problema de uma herana no o fato de a recebermos, mas o que fazemos com ela. Por outro lado, e para continuar no vocabulrio de Stengers, uma prtica cientfica impe obrigaes. No nosso caso, creio que a principal delas o respeito incondicional pelas verdades dos outros enquanto verdades. Ou seja, e como Bateson ensinou, o duplo vnculo s conduz esquizofrenia se no formos capazes de saltar do nvel em que a contradio insupervel para outro em que ela no apenas pode ser superada como se torna produtiva.

Ou, se preferssemos falar como Deleuze, no precisamos nos culpar pelo que fazemos, mas certamente deveramos ter um pouco de vergonha. Vergonha diante daqueles sobre quem escrevemos e diante do que escrevemos sobre eles. Vergonha que no conduz a nenhuma paralisia, mas, ao contrrio, uma poderosa fora de pensamento. Vergonha que consiste em assumir uma responsabilidade face quilo ou queles sobre quem se escreve, ou melhor, com quem ou diante de quem se escreve. Permitam-me a citao:

Nesse sentido, se o escritor algum que fora a linguagem at um limite, limite que separa a linguagem da animalidade, do grito, do canto, deve-se ento dizer que o escritor responsvel pelos animais que morrem, e ser responsvel pelos animais que morrem, responder por eles escrever no para eles, no vou escrever para meu gato, meu cachorro. Mas escrever no lugar dos animais que morrem levar a linguagem a esse limite (Deleuze 1988).

A segunda consequncia do duplo vnculo antropolgico tem a ver com os possveis efeitos da antropologia no pensamento ocidental em sentido mais amplo. Desde Frazer, passando por Lvy-Bruhl e Lvi-Strauss, conhecemos e nos orgulhamos dessa influncia. O que raramente lembramos, mas foi bem sublinhado por Lvinas (1957) a respeito de Lvy-Bruhl, que pode ser muito bem que, por meio dos antroplogos, seja o pensamento daqueles que eles estudam que esteja exercendo sua fora. Nesse sentido, no de espantar, por exemplo, que o chamado princpio de simetria que os estudiosos da cincia e da tecnologia adotam tenha uma de suas origens na resistncia mais geral dos saberes nativos a todas as tentativas de reduo e captura. A conexo necessria de uma filosofia da cincia no triunfalista com as ideias derrotadas nas controvrsias cientficas (Foucault, Stengers) est relacionada com a difcil relao dos antroplogos com os saberes minoritrios que em geral estudam. Por isso, e ao contrrio do que sustentou Latour, no estou certo de que foi preciso esperar os estudos para cima da antropologia da cincia para que a antropologia fosse afetada pela resistncia nativa a seus empreendimentos. Mas essa uma outra histria.

bem verdade que em geral temos a impresso de que a antropologia parece menos afetada do que outros saberes por esse movimento que, no entanto, emana dela mesmo. Um pouco como Freud, que escondia a revolucionria descoberta da sexualidade infantil debaixo do universal dipo familiar, os antroplogos logo se protegem de suas descobertas ameaadoras debaixo de valores absolutos, habitus, invenes da tradio, mdulos cognitivos, genes egostas e outras variantes de um universalismo inevitavelmente etnocntrico e reacionrio que supostamente visa tornar sua disciplina verdadeiramente cientfica. de fato curioso o sucesso da confuso entre determinismo e cientificidade.

nesse sentido que acredito que opor etnografia e antropologia (no sentido de que a primeira no seria cincia) no a questo. O e deveria mesmo ser tomado aqui literalmente, no sentido de que passamos em variao contnua de um polo mais analtico a um mais sinttico e vice-versa. Apenas esse movimento pode nos tornar capazes de dizer algo diferente dos saberes nativos sem supor que essa diferena seja uma superioridade caso do cientificismo ou uma inferioridade nas abordagens mais interpretativas ou fenomenolgicas sempre lamentando a perda da riqueza do mundo vivido etc. Em outros termos, eu substituiria de bom grado esse e por um hfen ainda que no fizesse o mesmo com o outro e, aquele de cincia e tecnologia (mas essa uma outra histria).

Finalmente, h uma terceira consequncia do duplo vnculo antropolgico e do fato de os antroplogos evitarem as consequncias mais radicais desse duplo vnculo. A saber, a falta de boa vontade de alguns aliados potenciais com a antropologia que, paradoxalmente, ao menos do ponto de vista de um antroplogo, parece alimentar seus trabalhos. Enfatizei, em outra ocasio, a aparente mudana de posio de Latour em relao antropologia. Se em 1991 (Latour 1991) ele anunciava uma antropologia simtrica que viria completar o trabalho da antropologia tradicional; se em 1996 (Latour 1996a), como vimos, ele colocava a antropologia entre as mais avanadas, produtivas e cientficas () disciplinas; em 2005 (Latour 2005), assumindo de bom grado o ttulo de socilogo, Latour condenava a antropologia por no ser capaz de ultrapassar a pluralidade das metafsicas e abordar a questo ontolgica da unidade desse mundo comum. Prisioneira do culturalismo e do exotismo, a antropologia se limitaria a reduzir as metafsicas que descobre a representaes, apelando para o relativismo cultural que, no final de contas, acaba por pressupor a unidade de um mundo natural explicvel pela cincia.

No entanto, o ceticismo de Isabelle Stengers para com a antropologia me parece mais interessante do que o duvidoso apelo latouriano a um mundo comum. Em certo sentido, ambos concordam que o problema bsico da antropologia residiria, nas palavras de Latour (1996b: 90), em tentar descrever a coerncia de um sistema de pensamento sem reconhecer que as diferenas no existem para serem respeitadas, ignoradas ou subsumidas, mas para servirem de chamariz para os sentimentos, de alimento para o pensamento.

Mas se Latour lamenta o solipsismo potencial da antropologia, Stengers, parece-me, vai na direo oposta:

Infelizmente, a antropologia consiste igualmente em ns mesmos, assim como na ambio de definir-descobrir o que h de humano no homem. Obstinar-se em tentar formular uma proposio annima, igualmente vlida para todos, , de fato, se afundar, manter a esperana do Baro de Mnchhausen em utilizar seus prprios recursos para transcend-los (Stengers 2007: 47).

O problema aqui parece, pois, ser a veleidade antropolgica em querer dizer a verdade dos outros. Claro que, para isso, o antroplogo tolerante: colocando as crenas aparentemente irracionais em seu contexto, ele mostra que, l, tambm pensaramos assim e, claro, que aqui no podemos pensar daquele modo de jeito nenhum. E esse exatamente o problema: a incapacidade de desterritorializar seu prprio pensamento por meio da desterritorializao do pensamento de outrem.

Um exemplo. Ao utilizar o termo feitiaria para qualificar o capitalismo no livro que escreveu com Philippe Pignarre, Stengers chama a ateno para a objeo que os antroplogos poderiam fazer a essa utilizao, alegando que o termo estaria sendo usado fora de seu contexto, uma vez que faz parte de sistemas culturais, e que, entre ns, s poderia existir de modo marginal, crena no cultivada, mas apenas sobrevivente. Peo licena para citar por extenso a resposta dos autores:

Nossa dmarche no tem nenhuma pretenso de convencer os etnlogos. A questo das prticas de feitiaria que sobrevivem aqui e ali na Frana no nossa questo. E se damos ao capitalismo o nome de sistema feiticeiro no para entrar na discusso a respeito da boa definio de um tal sistema. Alis, somos ns os modernos que batizamos com um mesmo nome uma multiplicidade de prticas, que as reunimos sob um mesmo gnero para em seguida distinguir espcies maneira dos bilogos classificadores. E se ns pudemos faz-lo com toda legitimidade, talvez porque ns, incluindo os etnlogos que estiveram entre os outros, nos estabelecemos com toda tranquilidade na diferenciao entre o que natural e as crenas no sobrenatural das quais estamos felizmente liberados (Pignarre e Stengers 2005: 58).

O modo como os antroplogos vm empregando o termo cosmopoltica colocado, ou recolocado, em circulao justamente por Stengers tambm ilustra o que considero uma espcie de mal-entendido. Na antropologia, esse termo vem sendo cada vez mais usado e usado de um modo que poderamos chamar de positivo, em um sentido que talvez esteja mais prximo daquele com que Bruno Latour usa, por vezes, o termo, e que pretende basicamente, e em pouqussimas palavras, aprimorar a descrio do contedo mesmo das formas de pensamento diferentes da nossa que estudamos. Assim, nas palavras do etnlogo Renato Sztutman (2012: 24), trata-se de (re)pensar a antropologia poltica tendo em vista essa noo de cosmopoltica, na qual se integram aos coletivos humanos agentes no humanos. Ou, nas de Tnia Stolze Lima (2011: 606), ainda no campo da etnologia indgena: tenho em mente aquelas potncias que os ndios afirmam existir mas no entram na pauta da antropologia poltica e das quais, como se sabe, incontornavelmente dependemos para a consistncia da ideia de cosmopoltica amerndia. Ou, finalmente, como afirma Jos Carlos dos Anjos (2008: 77), em outro campo da antropologia brasileira: a religiosidade afro-brasileira vem expondo outra possibilidade de articulao das diferenas tnico-raciais e essa emergncia se constitui como uma outra cosmopoltica divergente das que at aqui informam o sentido de nao.

O mal-entendido deriva, creio, do fato de que, ao reintroduzir o termo cosmopoltica em sua famosa srie sobre as cincias modernas e contemporneas publicada em 1997, Stengers prope que ele seja utilizado de um modo bem diferente daquele que os antroplogos viriam a implementar mais tarde. Se bem entendo a autora, esse modo de utilizao o de uma espcie de princpio de precauo uma questo ou proposio como diz ela que visa evitar a universalizao de nossa noo de poltica. Noo que, como sabemos, se constituiu exatamente pela expulso de tudo o que no humano do cosmos de seu campo de alcance. nesse sentido que Stengers pode escrever que:

O cosmos aqui deve ento ser distinguido de qualquer cosmos particular, ou de todo mundo particular, tal qual pode pens-lo uma tradio particular. O cosmos tal qual figura nesse termo, cosmopoltica, designa o desconhecido constitudo por esses mundos mltiplos, divergentes (Stengers 2007: 49).

Cosmopoltica seria, ento, um conceito nosso, que visa impedir que imaginemos que todos os povos da terra se movem ou devam se mover em um universo exclusivamente humano, ou seja, poltico. A cosmopoltica lembra a insistncia do cosmos no seio do poltico (Stengers 1997: 397) e no constitui, portanto, um conceito analtico ou descritivo, mas uma obrigao que ns temos que considerar quando pensamos nos outros. No limite, um princpio de indecidibilidade, que ecoa a sempre possvel reao desses outros a ns: as suas questes e as suas provas [preuves] no me concernem e no me interessam (Stengers 1997: 89). A via cosmopoltica consiste, pois, na inveno de dispositivos que faam existir ativamente, deliberadamente, essa indecidibilidade para todos os protagonistas (Stengers 1997: 128).

Desse ponto de vista, no muito difcil entender o mau humor de Stengers em relao antropologia se a entendermos como o que Stengers gosta de designar como uma busca daquilo que humano no homem. Mas isso, penso, conduz a encarar a disciplina no sentido muito limitado que prosperou especialmente na Frana proclamando sua filiao ao pensamento de Lvi-Strauss. No entrarei aqui no mrito dessa filiao, que Jeanne Favret-Saada (2000) batizou de pensamento-Lvi-Strauss, distinguindo-o do pensamento de Lvi-Strauss. Limito-me a constatar que essa vertente universalizante, meio cognitivista e sempre cientificista da antropologia, no corresponde de forma alguma ao conjunto do que se pratica hoje sob esse nome.

Assim, quando Anne Vile (pseudnimo da autora do Posfcio Feitiaria Capitalista) escreve que no sou antroploga, mas o que seria um mundo onde a antropologia teria como tarefa refletir sobre o ser com os outros, sejam eles humanos ou no humanos, e no tentar definir o que o Homem (Vile 2005: 208-209, nota 3), no podemos deixar de nos espantar com o fato de que para muitos de ns essa antropologia no s j existe como existe h um bom tempo e a mais interessante que existe!

Em outras palavras, qualquer conexo produtiva com a antropologia deveria ser efetuada a partir de suas prticas, no de suas teorias ou, pior, de suas proclamaes de f. Afinal, no vocabulrio de Stengers, o antroplogo tambm um praticien, e do meu ponto de vista nossa prtica consiste fundamentalmente na prtica etnogrfica, que envolve tanto o trabalho de campo propriamente dito quanto o esforo para conect-lo com outros trabalhos de campo e para traduzi-lo em termos que nos sejam compreensveis.

Nesse sentido, o modo como os antroplogos manipulam a noo de cosmopoltica no se ope necessariamente ao de Stengers, ainda que seja evidentemente distinto do dela. Mas justamente essa conexo entre heterogneos enquanto tais que poderia ser til para uns e para outros. Do lado de Stengers, imagino que as descries e anlises apresentadas pela antropologia s poderiam ratificar e enriquecer o princpio de precauo ou de indecidibilidade por ela proposto. Colaborar para a lucidez crtica que ela ope a esse esprito crtico que insiste em descobrir o que realmente existe por baixo do que as pessoas dizem e fazem. Do lado da antropologia, poderamos evitar o risco de o conceito de cosmopoltica se converter num mero sinnimo mais sofisticado de termos como cosmologia, por exemplo. Em outras palavras, imagino que um dos critrios para a qualidade de nossas descries e anlises seja sua capacidade de perturbar os modos dominantes de pensar.

Donde, novamente, o risco da oposio entre etnografia e antropologia. Como se a primeira fosse mesmo e apenas uma etapa preparatria para as generalizaes da segunda. Penso, ao contrrio, que a antropologia s pode ser imanente etnografia, o que, ao contrrio do que se imagina, no facilita em nada as coisas. Construir uma narrativa etnogrfica capaz, ao mesmo tempo, de descortinar um mundo desconhecido pelo leitor, articul-lo com outros mundos, conhecidos ou desconhecidos, e perturbar o modo como pensamos, me parece muito mais difcil do que inventar alguma teoria antropolgica geral ou universal.

O problema aqui, claro, que nem tudo, e talvez nem mesmo a maior parte do que se faz sob o nome de antropologia parece atualizar essa concepo da disciplina. Minha primeira tentao seria responder com a ideia de que existiriam pelo menos duas antropologias. Para usar termos de Flix Guattari, uma estaria preocupada com o j-a (as estruturas, os sistemas fechados etc.); a outra com as existncias em vias de (os processos de se pr a ser, os devires etc.). Mas o dualismo nunca leva muito longe, especialmente porque desde Scrates costuma ser um triadismo mal disfarado, com um dos termos em aparente oposio dual ocupando simultaneamente uma posio hierarquicamente superior. Se, ao contrrio, nos situarmos, como sugeria Clastres, na prpria partilha, possvel que um dualismo de partida nos conduza a formas de pluralismo mais interessantes.

Nesse sentido, se no h exatamente duas antropologias, talvez possamos dizer que as vrias antropologias que existem e podem existir so diferentemente atravessadas por distintas modalidades de foras. Talvez a questo pudesse ser resumida nos termos de um aforismo nietzschiano, de Humano Demasiado Humano:

Os espritos de tendncia clssica tanto quanto os de romntica (duas categorias que existem sempre ao mesmo tempo) nutrem uma viso do futuro; mas os primeiros apoiando-se sobre uma fora de sua poca, os ltimos sobre sua fraqueza.

Ou seja, trata-se de saber se vamos nos apoiar na fraqueza ou na fora dos outros. No texto de 1996, que mencionei acima, Latour j buscava enunciar um esquema que resumiria a histria da antropologia. Meio de brincadeira, batizou esse esquema de lei dos quatro estgios ou lei de Sahlins. Num primeiro momento, as culturas que a antropologia estuda so muito mais fortes do que ela, que busca simplesmente reduzi-las a alguns esquemas pr-fabricados; depois, a antropologia parece muito mais forte do que as culturas que estuda e trata de submet-las a todo tipo de regularidades e leis; em seguida, tanto a antropologia quanto as culturas que estuda so igualmente fracas: as segundas se limitam a tentar sobreviver globalizao triunfante e a inventar tradies, enquanto a primeira se dedica a projetar seus prprios valores e a lamentar sua falta de cientificidade. Finalmente, Latour acredita numa quarta fase, em que culturas e antropologias so igualmente fortes, onde no h mais que escolher entre representao e projeo porque entramos na zona de indiscernibilidade de um construcionismo generalizado.

De meu lado, eu sugeriria que esse quadro poderia ser completado se distingussemos e peo licena para usar esses termos uma antropologia de direita e uma antropologia de esquerda. Ou, para ser mais preciso, foras de direita e foras de esquerda que atravessam, e no apenas dividem, as diferentes antropologias. Sei dos riscos de empregar esse vocabulrio que hoje em dia passa por ultrapassado. Afinal, como a direita gosta de repetir, essa coisa de direita e esquerda simplesmente no existe. Aqui, contudo, podemos ser auxiliados pela reconceptualizao desses termos com que Deleuze nos presenteou nos ltimos anos de sua vida. Umas poucas pginas que, como escreveu Stengers, valem trs tratados.

Numa entrevista de 1985 e, em especial, na letra G comme Gauche do Abecedrio1, aprendemos que a direita pode ser entendida a partir de trs traos:

1. A negao da existncia de problemas (qual a questo?);

2. A tentativa de interromper os movimentos (no est acontecendo nada!);

3. Uma reflexo que comea sempre de si mesmo e s atinge os outros a posteriori e j devidamente modulada (vejamos os interesses envolvidos).

Logo, e em oposio, por esquerda deveramos entender sobretudo uma forma de percepo, como diz Deleuze. Essa forma de percepo (que corresponde, talvez ao que Guattari denominou paixo processual) implica uma posio que busca descobrir os problemas que a direita quer no apenas esconder a todo custo como deles se beneficiar. Isso significa uma resistncia tentao e mesmo ao direito de se aproveitar, que exige ao menos duas coisas. Primeiro, preciso exercitar o que Simmel denominava relao objetal, essa estranha capacidade que o ser humano possui de se apaixonar por coisas que no dizem respeito em nada a seus interesses. preciso que o pensamento comece de longe, do horizonte, como diz Deleuze, para s progressivamente chegar at ns mesmos. Alm disso, preciso no apenas pensar, mas contar com o pensamento dos outros: a esquerda realmente precisa () que as pessoas pensem (Deleuze 1985: 159). Finalmente, preciso reconhecer que a diferena entre direita e esquerda uma diferena de natureza, no uma mera oposio. O que significa que no se trata do mesmo pensamento e que um no tem rigorosamente nada a dizer ao outro. Comear de longe, levar a srio o que as pessoas pensam, pensar diferente, no seria essa uma bela definio do que h de melhor na antropologia?

Deleuze conclui sua reflexo sobre a letra G, no Abecedrio, afirmando que a esquerda o conjunto dos processos de devir minoritrio. Em outros termos, por esquerda no devemos entender nem uma posio nem mesmo uma orientao. Trata-se, antes, de um plat, no sentido que Gregory Bateson soube aprender dos balineses e soube transmitir para filsofos como Deleuze e Guattari:

Um plat est sempre no meio, nem incio nem fim (). Gregory Bateson serve-se da palavra plat para designar algo muito especial: uma regio contnua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientao sobre um ponto culminante ou em direo a uma finalidade exterior (Deleuze e Guattari 1980: 32).

Apesar das aparncias, nada disso abstrato. Para terminar, eu gostaria justamente de ilustrar esse ponto evocando uma controvrsia que parece longe de ter sido fechada a se julgar pela escandalosa poltica de incluso com mrito (Programa de Incluso com Mrito no Ensino Superior Pblico Paulista PIMEP) que as universidades estaduais paulistas vm discutindo. Como se sabe, no debate sobre a adoo de cotas tnico-raciais no ensino superior brasileiro, a cincia foi incessantemente brandida para justificar posicionamentos contrrios s cotas. Ora, qual era a imagem da cincia subjacente a esses posicionamentos? Uma imagem claramente derivada de uma viso iluminista, positivista e evolucionista da atividade cientfica, h muito deixada de lado na prtica efetiva dos cientistas mas que continua a informar suas tentativas de interveno no campo poltico mais amplo. Como escreveu, com naturalidade, um dos bilogos contrrio s cotas, certamente, a humanidade do futuro no acreditar em raas mais do que acreditamos hoje em bruxaria (Pena 2007: 37).

No entanto, mais estranho ainda do que declaraes como essas, foi o fato de tantos cientistas sociais terem aceito e adotado com facilidade esse tipo de posio. Afinal, no estamos acostumados a lidar com a construo social do conhecimento, com as misturas entre cincia e interesses, sabendo que, at outro dia, a noo de raa era cientfica e que em seu nome foram cometidos alguns dos maiores crimes da histria?

O que talvez explique essa aceitao o pressuposto de que a noo de raa seria perigosa porque divide uma unidade fundamental, a humanidade. Essa ontologia aparentemente monista desemboca inevitavelmente em uma epistemologia realista que se pergunta se raa existe ou no existe, e apresenta ou evoca o testemunho de cientistas que sabem que tal coisa simplesmente no existe. Mas por que no ir mais devagar, de forma mais modesta, e admitir que se as certezas passadas da cincia eram passageiras no h por que supor que as atuais sejam definitivas. Evidentemente, no apenas em bruxaria ou em raas que a humanidade do futuro no acreditar, mas tambm em genes e em estruturas sociais. Finalmente, e sem nenhuma pretenso de dizer aos praticantes o que devem fazer, talvez seja exatamente nesse ponto que os estudos de cincia e tecnologia possam ajudar a combater as imagens dominantes da cincia e os efeitos de poder a elas associados.

A palavra como ideograma em Antonin Artaud

Gilberto Rabelo Profeta

. Antonin ArtaudEm "O Teatro e seu duplo" [10] Artaud procura uma linguagem atravs dos signos, de gestos e objetos que se expresse pelas "formas objetivas"; o uso das palavras como "objetos slidos", com "a importncia que tm nos sonhos", palavras que reno segundo as leis do simbolismo e das analogias vivas dos ideogramas da China e dos velhos hierglifos egpcios, em um hermetismo bem calculado. Prescreve, para o teatro, o lugar da improvisao e o rigor matemtico com que as imagens devam ser apresentadas, as concluses deve o expectador tirar a partir de seus prprios pontos de vista. Fica sugerida uma liberdade de interpretao, mas Artaud a limita pelo uso de "palavras que precipitam (no sentido qumico) significados". O instrumento bsico de Artaud enquadra-se no que Berlyne [12] descreve como conflito conceitual e curiosidade epistmica, teoria nascida do associacionismo. H que se lhe atribuir duas originalidades. Primeiro, difere ele na qualidade do questionamento. Adota a dvida, j expressa em 1925, em "O Pesa nervos", a vida queimar perguntas, [8] o que deve reportar a Pedro Abelardo, [30 nota] dando um passo alm de Descartes: a dvida no deve ser apenas metdica at alcanar a evidncia, mas a atividade mental deve ser levada a um tal ponto de interrogar-se que chegue "destruio da evidncia". [1] Segundo, o conflito criado pelo questionamento s pode se resolver mediante a adoo de um processo de "queimar formas", anlises e snteses em destruies sucessivas em busca de uma forma final, no se interrompendo primeira hiptese que se anuncie como evidente. a condenao da mente ao suplcio de Tntalo, como diz em carta de 17/2/1932, [2] um sistema conceitual plenamente aberto, onde as evidncias so vistas como meras criaes a partir de pontos de vista veiculados por doutrinas e teorias. Deve-se esperar na obra de Artaud a ocorrncia de palavras (ou locues verbais) que funcionem como os ideogramas e hierglifos.

A definio de ideograma elemento de escrita pictrica que expressa no um som, mas uma idia, ou figuras que representam coisas ou pensamentos, como definido pelo Webster de 1913, [39] ou pelo Houaiss, [40] imagem, (imagem convencional ou smbolo) que representa um objeto ou uma idia, mas no uma palavra ou uma expresso que a designe; se imagem pictrica, simboliza no o objeto pintado, mas alguma coisa ou idia que se considera seja sugerida ou emblematizada por esse objeto. Tem-se que, sendo toda palavra escrita um sinal pictrico que expressa ou sugere uma idia, seria redundante dizer o uso da palavra como ideograma. Uma forma de explicar inserir o que se apreende ocorrer com algumas palavras e locues verbais de Artaud nas conceituaes ocorridas com signo-significado-significante. Artaud, em O Teatro e seu Duplo, no usa o termo significante, e, se h contribuio sua neste campo, , portanto, no mnimo, paralela Ferdinand de Saussure e de Ogden e Richards, O Significado de Significado, [33] que de 1923. [13] Simplificadamente, a entidade psquica de duas faces conceito x imagem acstica, no signo-significado-significante de Saussure, [32], o smbolo-(referencia ou pensamento)-referente, de Ogden e Richards, as elaboraes de Ullmann, Baldinger e Heger, chegam a Umberto Eco (experincia verbal)-(unidade cultural)-(objeto real) [13]. Eco, diz Blikstein, afirma que unidade cultural o significado de um termo e o objeto real campo impreciso de estmulos sensoriais. Eco, diz Blikstein, usa apenas o lado esquerdo do tringulo de Ogden e Richards, abandonando o referente, a coisa extra-lingustica. Artaud usa a coisa real como signo e adota tudo o que produza escoriaes nervosas no inconsciente como coisa real. Assim so coisas reais no apenas as coisas materiais, mas o gesto, o movimento, as relaes entre as coisas, os smbolos, os conceitos, as idias, as palavras, os sistemas que se formam dos interrelacionamentos, as leituras que da realidade se fazem. Artaud est ciente de que entre o real e eu, est eu e minha deformao pessoal dos fantasmas da realidade [8] e sua proposta de teatro , tambm, para fazer o abstrato aproximar-se do concreto [10], o subjetivo do objetivo.

Com a liberdade de quem no leu Umberto Eco na fonte, expande-se unidade cultural para significar o sistema de idias com que se l a realidade, tal como Filosofia da Mente de Hegel, uma unidade cultural inserida em outra, o hegelianismo, e procura-se demonstrar que, em Para acabar com o Julgamento de Deus, [5] Artaud faz uso de palavras e locues que devem ser lidas no apenas pelo sentido usual, ou que se busque delas um sentido em suas relaes dentro do texto, mas que deve atualizar na mente do leitor unidades culturais, como acima definido, dele prprio ou do caldo cultural social. No se pretende o detalhamento de cada palavra que surge em Para acabar com o julgamento de Deus (Para acabar), serviro de exemplo corpo sem rgos (CSO) Tutuguri e Julgamento de Deus.

"Para Acabar com o Julgamento de Deus" tem sido disponibilizado na ntegra ou excertos na internet, em portugus, francs, espanhol e ingls. Inicia-se com glossolalias, que surgem em maior quantidade na variao do texto. A seguir h o tema das guerras, o esprito blico americano e russo e a escolha: Tutuguri, os Tarahumaras e a "abolio da cruz". A fecalidade, esclarecendo que "onde fede a merda, fede a ser", a carne merda; de novo glossolalias, o finito e o infinito; Cristo que "aceitou viver sem corpo, o Invisvel; o "Julgamento de Deus". A conscincia, o desejo sexual, a libido, a fome, o "apetite de viver"; o Eu igual a Nada, sua dor fsica, "a presena infatigvel de seu corpo" e sua resposta "NO negao" quando o "questionam at que sai de si o seu alimento e seu leite". E as concluses: o princpio da crueldade, o tema da represso, a emasculao e a eviscerao do homem, para que liberto de todos os automatismos e lhe seja devolvida a verdadeira liberdade", para acabar com o Julgamento de Deus.

Melhor que tentar definir o CSO exemplificar o que se julga ele seja e o que no seja. Anlises apressadas vem o nascimento do CSO em Para acabar com o julgamento de Deus. Sem se consultar toda a obra, no se pode determinar o momento em que CSO aparece pela primeira vez na escrita artaudiana, mas est presente, em 1925, em "A vidraa do Amor", incrustrado em cabeas sem corpos, [6] em texto que faz referencia direta a Abelardo e a Helosa.

Faz-se necessrio abrir parnteses para relembrar a histria de amor, paixo e tragdia - de Abelardo e Helosa. [38] Pedro Abelardo, vivendo na Idade Mdia, apaixona-se por Helosa e a engravida. Abelardo cnego, arranjam-se os argumentos para um casamento que secretamente se faz. Descoberto o segredo, o tio de Helosa, que do segredo sabia e cuja funo era a de pai, com ajuda, o castra. O Amor entre Abelardo e Helosa subsiste maior vergonha medieval, a emasculao, cada um vivendo-o em seu claustro, amor que dura at morte, permanecendo Abelardo suas discusses teolgicas e filosficas, dentre elas a soluo da querela dos universais.

CSO por demais conhecido a partir de Deleuze-Guattari, mas no se interrogou o suficiente se estes autores conseguiram fazer jus ao pensamento de Artaud, em que pese o valor cultural e cientfico que os seus estudos sobre sua obra tenha conseguido. Acusa-se aqui um vis importante: o autor deste trabalho no leu o Anti-dipo. Mas Deleuze e Guattari leram Artaud e pecam em dois pontos. Primeiro, da anlise de o Anti-dipo J. Lyotard, usando a figura do golfinho para se referir s noes e princpios que vm superfcie que de de Artaud - pode concluir que CSO "socius" [21]. Ver o CSO como socius , ainda, a aderncia a uma viso biolgica do social, a sociedade ainda deificada. Segundo, Deleuze e Guattari viram o corpo sem rgos e no o corpo emasculado e eviscerado que pediu Artaud, em uma poca em que o sexual em Freud ainda era admitido ser genital, e negaram valor sua palavra bastante clara, "no" ao sexo e libido, fome e ao apetite de viver como mecanismos a que se possa reduzir a "apaixonante equao entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e os Objetos". Em Para acabar Artaud, apenas, relembra Tarde [11] sua poca e atual, preciso romper a sociologia de suas ligaes com a biologia.

A sociedade considerada um organismo biolgico no sculo 19 e incio do 20. [18] Artaud nega com o CSO. Gall viu a sociedade em que os indivduos so os rgos, o que fez Comte reservar aos "soberbos homens de elite" serem o crebro. [31] O organicismo alemo, aqui representado por Willmann, [18] viu como rgos da sociedade as instituies, que conservam em si o passado. Diz, da Frana, Le Bon: "as instituies so o invlucro exterior de uma alma interior", uma "espcie de vesturio susceptvel de adaptar-se a uma forma", "forma" igual a "alma". [24] Lvio de Castro, [17] aqui representando o evolucionismo de Mill, Spencer, Huxley e Taine, diz: a sociedade um organismo, onde "a funo faz o rgo, o meio faz a funo". A metfora organicista floresce. Franz de Hovre [18] declara, sem indicar a fonte, a Alemanha um organismo biolgico, agora um corpo humano, em que instituies e indivduos so os elementos que impulsionam o seu sangue e as Escolas (de conhecimento) os reservatrios deste sangue. Teorias e doutrinas sobre o mundo so sacralizadas. Diz, de Durkheim: a sociedade representada como o criador, o comeo e o fim de toda a vida. deificada.

Se Artaud est dizendo que preciso suprimir a analogia biolgica contida na metfora do sexo/Freud e da fome/Marx, na sociedade deificada a identidade outorgada ao indivduo. Artaud grita: van Gogh um suicidado pela sociedade! Diz o mesmo de si e acrescenta, pelo direito expresso total e integral de minha individualidade por mais singular que seja e por mais heterognea que possa parecer", [5] que se ponha fim ao julgamento de Deus sobre os homens, ou, em 1924, no h que se apressar em julgar os homens; h que lhes conceder crdito at ao absurdo. [3]

Ral Vzquez o tema da individualidade, que Artaud adjetiva com "radical. [7] No dele, vem de Fichte, em 1869, Cincia dos Direitos, que adjetiva com ultra-radical: o indivduo tem o direito supremo autodeterminao. [18] Para Artaud, na sociedade no est tudo predeterminado e as organizaes - em todos os sentidos - podem ser mudadas; o homem faz dinmica a cultura por destruies sucessivas incessantes onde se deve ler construo interminvel e no a negatividade extremada que viu Susan Sontag. [36] Antecipa Cornelius Castoriadis (1922-1997) com L'institution imaginaire de la socit, de 1975. O indivduo feito pela cultura ao mesmo tempo em que a faz, no par "legein/teukhein", o dizer e fazer da sociedade e a dialtica entre o individual e o social. [16] O meio no faz o rgo/homem, mas o homem faz o meio, a realidade est a ser criada. Julin Maras diz, de outro modo, do existencialismo que Artaud anuncia como o novo humanismo da Juventude de sua poca, a vida no est feita () e ela o que eu fao. [28] Artaud pensa o conhecimento como um sistema aberto ao propor a sua no cristalizao e conseqentes culturas congeladas. Em Preciso Acabar com as Obras-Primas, de 1936, [10] diz ser preciso no tomar a palavra escrita como a palavra final, congelante. O teatro artaudiano para levar o conhecimento s massas, busca o homem-agente-da-realidade e seu teatro para que se saia do marasmo e do tdio de tudo, ao invs de continuar a gemer diante da inrcia e da imbecilidade de tudo. O CSO o indivduo com direito individualidade radical, que seu inconsciente que no seja apenas rgo de registros, e cuja Vontade vai passar aos atos, [10] desmentindo o CSO como desejo de imobilidade que Furtos e Roussillon [21] demonstram a partir do corpo sem rgos de Deleuze-Guattari-Anti-dipo e da anlise das mquinas desejantes.

Ainda para se referir sociedade usa Artaud Tutuguri e os Taraumaras, e, assim, atualiza o pedido de retorno ao primitivo dos surrealistas. trazer a Para acabar todo o O Teatro e seu Duplo e Mensajes Revolucionarios. O Teatro da crueldade para reformar o interior do homem, pois Artaud no acredita que Revoluo alguma transforme o mundo, a verdadeira revoluo reformar o interior do homem. Tutuguri ideograma do tema da cultura unitria da poca, que Artaud aceita mas com a ressalva da individualidade radical.

O CSO o homem total. No segundo manifesto do Teatro da Crueldade, [10] em 1933, Artaud no quer o homem psicolgico, com o carter e sentimentos bem delimitados e destina seu teatro ao homem total. Pouco provvel que se baseie Artaud no que Mauss [29], em 1924, pede aos psiclogos. Mauss v, no objeto de estudo da sociologia, os fatos impressos em uma ordem a mais complexa imaginvel e denomina de "fenmeno de totalidade", em que no apenas os grupos sociais tomam parte, mas atravs deles "todas as personalidades, todos os indivduos na sua integridade moral, social, mental e, sobretudo, corporal ou material". Analisa as "participaes" que "Lvy-Bruhl pensou serem caractersticas das mentalidades chamadas de primitivas" - "o selvagem incapaz de conhecer precisamente um objeto isento de uma atitude motora e emocional, [34] o sujeito no se separa do objeto (a realidade atravessa o sujeito?). tambm o que Artaud pede ao solicitar um espetculo teatral que atravesse o espectador e o envolva, ser atravessado pelo espetculo a verdadeira participao. Para Mauss a contribuio da psicologia sociologia no vem do que se estuda de uma funo mental particularizada, mas do que se coloca da mentalidade do indivduo como um todo, "seu corpo, seus instintos, suas emoes, suas vontades e suas percepes, sua inteleco", e pede aos psiclogos "o estudo desse homem completo, no compartimentalizado". A este homem denomina Mauss de homem "total", encontrvel no apenas nas sociedades arcaicas ou atrasadas, mas "nas maiores camadas de nossas populaes e sobretudo nas mais atrasadas". o homem da "multido que pensa primordialmente com os sentidos, do primeiro manifesto de O Teatro da Crueldade" [10] e no o homem que racionaliza sobre a realidade que vivencia.

A carta a Pierre Loeb, de 23 de abril de 1947, [4] define o CSO: o homem-rvore, de que Anbal Fernandes encontra muitas referncias na obra de Artaud.. Se h "homem carcaa", que o plo oposto de CSO, de 1931, em A Encenao e a Metafsica, [10] h o "homem rvore, sem rgos, nem funo, mas de vontade", A Vontade Pura, que atualiza a Vontade vai passar ao ato e a realidade est para ser construda. Se no se perde de vista o corpo humano/humanidade, "rvore" pode reportar, de novo, aos esticos, pondo-se em contexto com "vontade decisria", "pensamento prprio" e redireciona a "viver integrado natureza", de que indicador Tutuguri-Tarahumaras. Malinowski [26] expressa a natureza humana como "o determinismo biolgico para a realizao de funes corporais humanas. A carta a Loeb, tambm, demonstra porque, para Artaud, a obra de Lewis Carroll [19] digestiva. Relacionar Malinowski, o "homem-carnia", o "homem-rvore", a crtica superficialidade de Lewis Carroll, cuja fala se origina na carne, putrescente, e no na profundidade, deve-se ver um Artaud preocupado com algo alm do corpo, com algo que habita o corpo.

Ral VzquezComo surrealista Artaud valorizou o automatismo do inconsciente, e, para terminar com o julgamento de Deus, pede que se retirem ao homem os rgos para dele obter o verdadeiro homem, o que habita o corpo. Tornando-se CSO, o homem re-obter sua liberdade ao perder seus automatismos/determinismos e poder exercer a sua Vontade Pura. Retirado ao corpo os rgos, o que resta? A realidade internalizada em uma mente cheia de mecanismos transformadores que possibilitam que o homem impavidamente se torne o senhor daquilo que ainda no existe, e o faz nascer. [10]

Se "A vidraa do Amor" cita "cabeas sem corpos", o tema se repete em 1932, em "O Teatro Alqumico: [10] "desse homem como se restasse apenas a cabea, uma espcie de cabea absolutamente desnuda () para que os princpios possam a desenvolver suas conseqncias de uma maneira sensvel e acabada". Neste sentido o CSO ocorre em Schopenhauer, [27] (melhor seria dizer do que dele Thomas Mann transmite): o homem mais que um sujeito conhecente (uma cabea de anjo com asas e sem corpo), mas tambm ele tem raiz nesse mundo; a se encontra como indivduo; isto , seu conhecimento condio e suporte do conjunto do mundo como representao, tendo como condio o corpo com suas impresses". O CSO se reduz ao o mecanismo conhecedor do mundo, que o mimetiza e o duplica, para us-lo pensamento situacional e cri-lo, pensamento operatrio e criativo, o homem conseguir estabelecer sua superioridade sobre o imprio da possibilidade (AV AT, O teatro da crueldade, texto de 1948).

Osso em Para acabar ideograma do tema da imortalidade do homem. O CSO o que no homem dura e imortal. Diz Artaud para existir () h que se ter OSSO, "esqueleto", que, para os esticos, smbolo daquilo que dura e imortal. Atualiza o Ka da egiptologia antiga. Em O Pesa Nervos, de 1925, ao abordar a dificuldade de o homem encontrar o seu lugar e restabelecer a comunicao consigo mesmo, enxerga faltar um ponto a ser encontrado no corpo/mente, um ponto fosforescente capaz de assistir a si prprio e onde est inscrita - e modificada - toda a realidade. Diz sofrer por causa do esprito-rgo, que se faz necessrio acabar com o esprito, reconhece a comunicao entre esprito e vida em todos os nveis. Pergunta se a vida no mais atingida por uma "descorporizao do pensamento", e, em todo o contexto, o pensamento corpreo. Incongruncia? "Descorporizao do pensamento" no o pensamento "deixar de ser corpo", o "pensamento sair do corpo", CSO. De "O Pesa Nervos" pode-se inferir que, para Artaud, o eu virtual, no-ser pois sua atividade refazer-se, vir-a-ser. Artaud nega o esprito como concebido at ento, que no est na vida e que no a vida. Nega o esprito-rgo, esprito-traduo. O esprito corpreo e o quer sem rgo, quer o Esprito/eu virtual.

Em 27 de janeiro de 1925, [6] Artaud afirma que o surrealismo " o meio de libertao total do esprito", ento, o CSO simplesmente alma, ligando corpo humano e imortalidade que percorrem sua obra. Artaud sai do surrealismo que adere ao marxismo, para continuar surrealista, por ser a vertente espiritualista do movimento. Santiago Bovisio, [14] a partir De "radiao e fosforescncia", liga o ka egpcio ao "O Pesa Nervos". Artaud referencia a origem de sua "libertao total do esprito", o Livro dos Mortos do Egito, e faz a inter-relao entre o que assimilava da psiquiatria-psicologia-psicanlise com os ensinamentos do Ka. Ka o duplo do homem, seus atributos mentais, sua personalidade abstrata que, aps a morte, toma a forma material e se torna ativo. O Ka identificado com a conscincia mental interna e o poder de pensamento; atributos mentais; personalidade, corprea; o inconsciente. [15] O Ka egpcio est ntido em "a morte tornando nossa alma mais sensvel s perspectivas espirituais do alm, comea por uma srie de entorpecimentos sucessivos, ela a separa do corpo". O CSO atualiza o Ka, sem nomear, j em "Excurso psquica" de 1922-23, [6] como "inteligncia depurada pelo grande despojamento de suas cascas corporais", circundado pelos temas da magia, encantamento, configurao espiritual do mundo, grande todo espiritual, a imortalidade, e, principalmente, "os egpcios conheciam as palavras e as foras que retinham a alma na margem da vida".

CSO pode estar no bramanismo como busca do autoconhecimento, conhecimento da alma. [37] Como conscincia de si, o CSO ainda pode se reportar Filosofia da Mente, de Hegel, um dos mananciais do surrealismo. Hegel [22] atualiza a Alma e a Mente, recorre noo de Liberdade como caracterstica formalmente essencial da mente, que o cerne da individualidade radical, e esta seria o CSO. A alma se desperta como conscincia e funda a Razo, que se emancipa objetividade e conscincia de sua unidade inteligente. Em Hegel encontra-se ainda o a conscincia nada do texto de Artaud, e uma viso da sociedade com Liberdade e Igualdade, no se tendo analisado se a viso de Hegel corresponde de Artaud para os Tarahumaras. A Filosofia da Mente traz, tambm, o Julgamento do Mundo.

Ral Vzquez

Artaud viu o Julgamento de Deus no Livro dos Mortos Egpcio [15]: no ps-morte, liberado do corpo, o Ka ser julgado por Osris/Deus, para se estabelecer se merecer a vida eterna, a imortalidade.

Inesperadamente, o texto de Artaud deve atualizar na mente do ouvinte, leitor ou expectador, a bblia, que estabelece Deus como Princpio Moral para os homens, com vrias citaes de promessas e ameaas que ilustram o fim dos tempos, quando os homens e as naes sero julgados em sua retido moral, o Julgamento de Deus. [23] O Julgamento divino se faz atravs das guerras, quando se trata das naes. Deus d aos inocentes a vitria, coisa que pensado ser da Idade Mdia, embora no o seja. Em 1952, o Arcebispo Fulton J. Sheen, fazia a leitura de "A guerra como Julgamento de Deus", [20] em seu programa de televiso Life is Worth Living, na ABC Network americana, [25] acentuando que, de 1496 A.C. a 1861, a humanidade somou apenas um dia de paz para cada 14 dias de guerra. O tema atualizado em 2004, por Daniel H. Shubin, [35], interpretando que "qualquer guerra iniciada dirigir o seu curso at o juzo de Deus ser realizado".

Para acabar com o julgamento de Deus , portanto, um pedido para se acabar com as guerras. interessante notar que no final do sculo 19 e incio do sculo 20 vrios foram os filsofos que pregaram a progresso moral do homem rumo ao Infinito, para se atingir uma situao de Harmonia e Virtude Moral. Razo tem Oscar del Barco ao apresentar Antonin Artaud, Textos 1923~1946 [9]: a proposta de Artaud a de uma tica, a de um mundo no desdobrado, mas se engana ao tomar este no desdobrado como materialismo. Se o surrealismo pretendeu que se manifestasse o inconsciente livre de represses, o inconsciente era, apesar de Freud e de Marx, a alma, e o foi at h bem pouco tempo atrs e ainda , em psic, se se pensar em grego.

Se pedir para acabar com o julgamento de Deus pedir fim s guerras Paz! deve-se retomar o tema inicial do CSO, Pedro Abelardo emasculado. O amor entre Abelardo e Helosa, persistindo aps a castrao de Aberlardo, denota a existncia do Amor Puro, assexuado, e o amor assexuado o amor fraterno, e, assim, Artaud est inserido no esprito de sua poca, Zeitgeist, na procura da Harmonia entre os homens e naes, pedindo Amor.

Agora que a histria j caminhou o suficiente como diria Artaud, e deve-se questionar se sua mensagem no chegou ao destino nos anos 60 - no decifrada, mas assimilada: Para acabar foi o primeiro grito de Paz e Amor!.

Deve-se comparar a funo de "me questionam at que sai de mim meu alimento e meu leite" com a funo que se pretende existir nas locues apontadas. apenas uma imagem para se referir psicanlise, mas esta no est em jogo em Para acabar, em que aparece apenas para ser negada.

Conclui-se que algumas palavras e locues verbais em Artaud so smbolos, na linguagem ocidental, ideogramas na linguagem oriental, de unidades culturais (como anteriormente definidas), unidades culturais estas que se articulam em um hermetismo bem calculado em Para Acabar com o Julgamento de Deus.

o que queria se demonstrar.

Artaud fundamenta sua proposta em uma diferena que percebe entre a cultura oriental e a ocidental. [10] Resta, ento, a questo, as lnguas orientais faladas comportam palavras ou locues verbais com a funo que se pretende tenham algumas palavras e locues verbais de Artaud? H diferenas entre a dinmica do pensamento entre as culturas orientais e ocidentais?.

Ral Vzquez

(Ponto final aps interrogao? Diro os puristas. apenas para representar que existem muitas questes que precisam ser levantadas a partir da proposta de Artaud e que o autor precisa colocar um ponto final para encerrar o artigo).DAS CHAMAS DO INFERNO PARA AS PGINAS DOS GIBIS: Super-heris demonacos, teocracia crist e cultura gregaPublicado em 11 de setembro de 2013 por QuotistaDD-Banner-01

demolidorcolunaQuando comecei a ler quadrinhos super-hericos, conhecia s os mais populares, que em algum momento tinham virado desenho animado (ou desanimado, no caso daquela srie da Marvel que era basicamente filmagem de HQ). Descobrir o Demolidor foi uma das coisas mais empolgantes da minha adolescncia. Encontrar os formatinhos Demolidor Especial (ed. Abril, outubro/1988, junho/1990, agosto/1991) nas vrias peregrinaes aos sebos do Centro consolidou o Homem-Sem-Medo entre os meus favoritos, mais at do que os X-Men! isso me fazia parecer um herege diante dos (poucos) amigos quadrinhfilos na poca. Particularmente, por causa do primeiro volume da srie, cresci acreditando que Frank Miller era um dos maiores roteiristas de todos os tempos o que durou s at eu ler O Cavaleiro das Trevas 2 (h quem goste) e desabou de vez depois que o tempo e o amadurecimento (t) me fizeram entender o contedo poltico dO Cavaleiro das Trevas (mas continuo achando uma boa histria; fascista, falacioso, descaracteriza o Morcego, mas uma boa histria #prontofalei).spawn194Vindo de uma slida formao crist protestante, a aparncia do Demolidor era uma coisa muito estranha pra mim. Eu j estava acostumado com heris aliengenas, cibernticos, mgicos, mutantes, etc, e at com heris disformes ou no-humanides. Mas o visual do Demolidor realmente me causava estranheza: como assim, um heri que se veste de diabo?! (E eu realmente acreditava que o Motoqueiro Fantasma fosse um vilo at ler pela primeira vez). Mas curti o Demolidor, assim como mais tarde me acostumei a Etrigan, Desafiador, Spawn, Hellboy e outros heris demonacos (se que podemos chamar Etrigan de heri).

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2058429-ghost_rider_by_harveytolibao_d40ytfrSe voc tem mais-ou-menos a minha idade e veio de um formao religiosa mais tradicional, bem possvel que tenha passado por esse mesmo estranhamento. Talvez seus pais ou avs pensassem que todos aqueles desenhos violentos fossem m-influncia pra voc. Eles certamente confiscariam todos os seus gibis e colocariam voc de castigo por meses quando vissem que entre os heris que voc tanto admirava havia um cara com cabea de caveira flamejante e que batia nas pessoas com correntes. Convenhamos: a noo at hoje tem muita fora no senso comum. No Brasil, onde o cristianismo (em suas vrias correntes) absolutamente dominante, pouca gente duvida que o Diabo seja mau.Lucifer-choices

A consolidao da teocracia crist no final da Idade Antiga para o incio da Idade Mdia foi marcada pela aproximao, apropriao e desqualificao de toda a religiosidade pag. Constantino procurou dar liturgia crist uma aparncia mais prxima ao culto pblico romano, de modo que seus sditos assimilassem mais rapidamente o processo de cristianizao do Imprio. As festas pags mais importantes tiveram seu significado substitudo pelos valores, marcos e heris (mais conhecidos como santos) da cristandade quando a Igreja percebeu que no havia como fazer o povo parar de comemorar certas datas. E o que no pde ser cristianizado foi mandado pro outro lado. Demnios se enquadram nessa terceira categoria.bprdexorcism1bDentro da tradio hebraica, o mundo assombrado por maus espritos. Eles podem enlouquecer pessoas, torn-las violentas e incontrolveis, provocar doenas, so enganadores, cruis, sdicos. No se pode esperar outra coisa dos servos de Satans. Entre os sculos III e I a.C., os tradutores responsveis pela Septuaginta (verso grega das Escrituras hebraicas) usaram damon (demnio) como traduo para seirim (seres peludos divindades semelhantes aos stiros) ou shedim (maus espritos). No dia-a-dia, os judeus usavam essas duas palavras para se referir genericamente aos deuses e dolos de outros povos, funo que foi igualmente associada ao termo grego e que os cristos simplesmente continuaram a usar.Mas o que os gregos entendiam quando se falava em demnios? Um documento mdico grego do sculo V diz que demnios maus induziam mulheres neurticas ao suicdio. Sim, voc leu corretamente: demnios maus. Se esse mdico achou necessrio especificar que isso era coisa de demnios maus, podemos concluir, ento, que ele acreditava na existncia de demnios bons.hellboy_small

957975Na tradio grega arcaica, demnios eram seres presentes na natureza habitavam os rios, as pedras, as rvores , imateriais como os deuses, mortais como os homens. Como muitas das criaturas fantsticas gregas, demnios no eram inerentemente bons ou maus; eram volveis e caprichosos. Camponeses faziam pequenos rituais, oferecendo presentes aos demnios para que protegessem (ou no prejudicassem) a colheita e os animais. Homero se referia a eles como espritos menores, potencialmente perigosos. Xencrates afirmava que um demnio bom ou mau dependendo das circunstncias. Ento, era melhor mant-los satisfeitos.deadmanHesodo d uma outra viso sobre demnios: mortos. Em O Trabalho e os Dias, os mortos da Era de Ouro (dos gregos, no dos quadrinhos) tornam-se demnios e, por vontade de Zeus, vagam pelo mundo para fazer o bem aos vivos, proteg-los de perigos, abenoar seu trabalho. Os homens no podem v-los, mas sentem sua presena e percebem sua ao. Demnios de heris recebiam santurios para que no precisassem vagar como demnios comuns. As pessoas iam at eles e pediam seus favores.homersimpsonangeldemonio-e1343276902884Plato d a entender que havia, em seu tempo, uma crena generalizada no demnio pessoal, que acompanhava e protegia uma pessoa desde o nascimento at a morte, mas no podia dirigir suas decises. Ainda segundo Plato, Scrates, seu mestre, dizia que seu demnio o advertia quando estava para fazer uma m escolha. (Mais ou menos como aquele anjinho que fica no seu ombro, mas sem o diabinho do outro lado). Os gnsticos neoplatonistas acreditavam que demnios fossem divindades inferiores, emanaes do logos (razo) universal to limitadas que eram acessveis aos homens, mas ainda sbias o bastante para gui-los Plato acredita que damon venha de damn (saber), embora os estudiosos hoje acreditam que a origem seja dai (distribuir sortes). J Herclito acreditava que o demnio de cada pessoa era seu prprio carter.Drunk-Heroes-HercNo perodo Helenstico, os gregos faziam distino entre agathodaimn (esprito nobre) e kakdaimn (esprito maligno). Diferentemente dos demnios pensados at aqui, esses demnios tinham a capacidade de entrar no corpo das pessoas, assumindo o controle de suas palavras e aes. Esse estado de ter um bom demnio dentro de si era chamado de eudaimonia e era associado ao bem-estar e felicidade. O ritual mais comum para se chegar eudaimonia consistia em beber. E beber muito. (Em ingls, spirit pode ser esprito, mas tambm qualquer bebida alcolica destilada. A idia deve ser a mesma dos gregos).A Septuaginta foi produzida sob influncia direta do perodo Helenstico e, portanto, reflete essa concepo de demnios opostos. Entre os judeus helenizados, o termo aggelos (mensageiro) passou a designar os emissrios espirituais de Deus, que incorporaram as caractersticas dos bons demnios. J o termo damon passou a ser visto como sinnimo do mau demnio, que acumulou, tambm, todos os aspectos do politesmo greco-romano que o cristianismo no pde assimilar, inclusive os ritos orgisticos e a embriaguez deliberada. Isso explica por qu, embora o prefixo eu sempre indique uma coisa boa, eudaimonia (endemoniamento) hoje uma coisa muito ruim.demonknights1b

Os gregos no costumavam fazer representaes artsticas de demnios. Ento, a aparncia de heris demonificados, endemoniados ou demnios mesmo poderia ser estranha para eles, mas a idia certamente no. Embora no tivessem papel ativo, demnios eram essenciais jornada herica. Eles protegiam e orientavam os heris, fossem lendrios ou verdadeiros. Alexandre, o Grande, por exemplo, atribua seu sucesso na unificao dos gregos e na expanso de sua cultura ao seu demnio. Era esse demnio que era adorado no culto pblico alexandrino, no a pessoa do prprio imperador, como geralmente se pensa.1223381-daredevil_v2_n3_c01s_400x400Juntemos os elementos: demnios inspiram e capacitam pessoas para atos hericos e, s vezes, recebem os crditos por isso. O traje do Demolidor no s um disfarce. Dentro e fora da histria, ele , obviamente, uma referncia ao imaginrio cristo medieval do Diabo como o responsvel por punir os maus (no nos esqueamos que Matt Murdock irlands e, portanto, catlico no-praticante, mas ). Mas o sentido menos bvio de seu traje que ele evidencia seu demnio interior. Em escala muito menor, o traje do Demolidor tem a mesma funo que o culto pblico alexandrino: mostrar que h algo sobre-humano, invisvel, mas sensvel, que move suas aes e que tira dele todo o medo para lan-lo no corao dos criminosos.9214-2333-10177-1-herculesO Demolidor um heri demonificado. Resta resolver a questo dos heris endemoniados e dos que so demnios (ou fantasmas, monstros, vampiros, qualquer criatura tradicionalmente associada ao mal). Para isso, vamos recorrer a um dos aspectos da jornada herica: a redeno. O papel do heri envolve sempre um ato de redeno, ou seja, salvao. Pagar pelos pecados, usar a maldio para proteger os inocentes, punir os maus em nome do Diabo Costumamos pensar no heri como aquele que salva outras pessoas, mas muitas das jornadas hericas tm incio a partir da necessidade de redeno do prprio heri. Hrcules e seus 12 trabalhos para pagar pelo assassinato da esposa e filhos o caso mais famoso da mitologia clssica.116189714721A jornada herica muitas vezes parece ser um desgnio divino sobre os mortais. E demnios, por mais poderosos que sejam, continuam sendo mortais se comparados aos deuses. Dentro da tradio judaico-crist, demnios so anjos cados. Se existe algum que compreende o preo da queda so eles. E, justamente por isso, alguns deles realmente buscam redeno, supondo que haja um caminho para isso. Esse parece ser o argumento por trs de tantos heris demnios ou endemoniados nas HQs.Longe de querer discutir se realmente existem demnios e qual seria sua natureza, o interesse aqui pensar sobre a existncia e longevidade de tantos heris demonacos nos quadrinhos. Acredito que a resposta esteja nessa combinao de sede de justia e esperana de redeno. Agrada-nos a idia de que os maus sejam punidos de corpo e alma, ainda mais se essa punio se der em nosso plano de existncia. Ao mesmo tempo, esperamos que nos seja oferecida uma possibilidade de redeno, mesmo quando todo o mundo nos considera irremediavelmente perdidos. No fundo, os heris demonacos so apenas a expresso do egosmo humano: punio para os outros, redeno para mim, mesmo que eu j tenha perdido minha alma.Eu realmente preferia quando ele s tentava comprar almasEu realmente preferia quando ele s tentava comprar almas