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1142 DOIS PENSAMENTOS, UMA PROPOSTA: OS PROJETOS DE NAÇÃO E DE ESTADO DE OLIVEIRA VIANA E PRIMO DE RIVERA Patrícia Dyonisio de Carvalho 1 PUCRS [email protected] A crise do liberalismo econômico iniciada após a Primeira Guerra Mundial e aprofundada após 1929, com a Grande Depressão, propiciou a disseminação de críticas cada vez mais intensas à liberal-democracia. O resultado do colapso econômico deixou apenas três alternativas políticas aos países: o comunismo soviético, o capitalismo de livre mercado com uma moderada social-democracia de movimentos trabalhistas não comunistas e, por fim, o fascismo (HOBSBAWM, 1995, p. 111-112). Diante desse quadro de incertezas, a estabilidade política e os valores da sociedade liberal do século XIX também foram seriamente questionados e criticados, o que resultou, nas décadas de 1920 e 1930, na ampla difusão de ideias conservadoras – que já vinham sendo debatidas desde o final do século XIX 2 . No Brasil e na Espanha tais ideias envolveram não apenas o meio político, mas também o intelectual. Assim, o objetivo deste artigo é analisar, de forma comparativa, o pensamento conservador e autoritário de Oliveira Viana e o de Antônio Primo de Rivera, nas décadas de 1920 e 1930. Como principal eixo de análise teremos os projetos de Nação de ambos, no que diz respeito a duas fundamentais questões: o centralismo e o liberalismo político. A definição de nacionalismo que adotaremos nesse artigo será a de Antony D. Smith, que o compreende como um movimento ideológico que tem como objetivo central conquistar ou manter a autonomia, promover a unidade e “construir” ou preservar a identidade nacional. Na linha de argumentação de Smith, existe, entre os diferentes tipos de nacionalismo, uma característica em comum: o interesse pela nação (SMITH, 2004, p. 22-24). Dentro dessa concepção de Smith – e de sua posterior categorização em diferentes tipos de nacionalismo –, evidencia-se que ambos os autores, Viana e Rivera, estavam enquadrados em um paradigma essencialista, que consiste em “una reducción de la 1 Mestranda em História na PUCRS, bolsista CNPq. 2 Na Espanha, José Pemartín (1888-1954), recuperou as ideias nacional-católicas do século XIX e as fun- diu com uma nova concepção de Estado-nação. Seus ideais anteciparam o que seria, no século XX, grande parte dos elementos utilizados pelo franquismo: “a unidade nacional, o catolicismo como parte constitutiva da nação, a nação como integradora e superadora da luta de classes, o desprezo pelo pensamento raciona- lista ilustrado e liberal-democrático, a ideia de um partido nacional único, nem de direita nem de esquerda, que una a cidadania patriótica e o mito da conjuração judaico-maçonica-bolchevique como ameaça cons- tante da pátria” (GARCÍA, 2010, p. 468).

DOIS PENSAMENTOS, UMA PROPOSTA: OS PROJETOS DE … · identidade nacional. Na linha de argumentação de Smith, existe, entre os diferentes tipos de nacionalismo, uma característica

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DOIS PENSAMENTOS, UMA PROPOSTA: OS PROJETOS DE NAÇÃO E DE ESTADO DE OLIVEIRA VIANA E PRIMO DE RIVERA

Patrícia Dyonisio de Carvalho1

[email protected]

A crise do liberalismo econômico iniciada após a Primeira Guerra Mundial e aprofundada após 1929, com a Grande Depressão, propiciou a disseminação de críticas cada vez mais intensas à liberal-democracia. O resultado do colapso econômico deixou apenas três alternativas políticas aos países: o comunismo soviético, o capitalismo de livre mercado com uma moderada social-democracia de movimentos trabalhistas não comunistas e, por fim, o fascismo (HOBSBAWM, 1995, p. 111-112).

Diante desse quadro de incertezas, a estabilidade política e os valores da sociedade liberal do século XIX também foram seriamente questionados e criticados, o que resultou, nas décadas de 1920 e 1930, na ampla difusão de ideias conservadoras – que já vinham sendo debatidas desde o final do século XIX2. No Brasil e na Espanha tais ideias envolveram não apenas o meio político, mas também o intelectual.

Assim, o objetivo deste artigo é analisar, de forma comparativa, o pensamento conservador e autoritário de Oliveira Viana e o de Antônio Primo de Rivera, nas décadas de 1920 e 1930. Como principal eixo de análise teremos os projetos de Nação de ambos, no que diz respeito a duas fundamentais questões: o centralismo e o liberalismo político.

A definição de nacionalismo que adotaremos nesse artigo será a de Antony D. Smith, que o compreende como um movimento ideológico que tem como objetivo central conquistar ou manter a autonomia, promover a unidade e “construir” ou preservar a identidade nacional. Na linha de argumentação de Smith, existe, entre os diferentes tipos de nacionalismo, uma característica em comum: o interesse pela nação (SMITH, 2004, p. 22-24).

Dentro dessa concepção de Smith – e de sua posterior categorização em diferentes tipos de nacionalismo –, evidencia-se que ambos os autores, Viana e Rivera, estavam enquadrados em um paradigma essencialista, que consiste em “una reducción de la

1 Mestranda em História na PUCRS, bolsista CNPq.2 Na Espanha, José Pemartín (1888-1954), recuperou as ideias nacional-católicas do século XIX e as fun-diu com uma nova concepção de Estado-nação. Seus ideais anteciparam o que seria, no século XX, grande parte dos elementos utilizados pelo franquismo: “a unidade nacional, o catolicismo como parte constitutiva da nação, a nação como integradora e superadora da luta de classes, o desprezo pelo pensamento raciona-lista ilustrado e liberal-democrático, a ideia de um partido nacional único, nem de direita nem de esquerda, que una a cidadania patriótica e o mito da conjuração judaico-maçonica-bolchevique como ameaça cons-tante da pátria” (GARCÍA, 2010, p. 468).

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diversidad en la población hacia un criterio único que se tiene como constituyente de la esencia que lo define y de su carácter crucial” (CALHOUN, 2007, p. 38). De acordo com essa compreensão, seria imprescindível, segundo Viana e Rivera, a busca pela essência da nação, isto é, a busca por suas origens remotas e autênticas.

O brasileiro Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951) formou-se Bacharel em Direito (1906) e exerceu funções como jurista, historiador e sociólogo. O seu valor intelectual reside, principalmente, nas suas obras sobre a formação do povo brasileiro, por serem esses os textos que representam, de forma clara, o pensamento vigente no Brasil, na primeira metade do século XX. Toda argumentação do autor está baseada na ideia de que o país precisa ter um modelo político e econômico adequado a sua realidade social e, é nesse sentido que afirma compreender os benefícios de um liberalismo político, mas que este não seria adequado ao Brasil3.

As primeiras obras4 de Viana foram escritas ainda durante a República Velha (1889-1930), na qual predominava sobre os presidentes a influência de São Paulo e Minas Gerais, produtores de café e leite, respectivamente. Devido à insatisfação dos demais setores agrários, não beneficiados com tal modelo eleitoral, ao movimento tenentista iniciado na década de 19205 e à própria crise mundial de 19296, ocorreu um movimento armado e a posterior instituição do Governo Provisório, sob a presidência de Getúlio Vargas (SKIDMORE, 1982, p. 21-42).

A Revolução de 1930 iniciou após um descontentamento das elites dos grandes Estados após a insistência de Washington Luís na candidatura de um paulista. A revolução insere-se em uma conjuntura de instabilidade, gerada, principalmente, pela crise mundial de 29. Os vencedores do movimento de 1930 fazem parte de um grupo heterogêneo, tanto social quanto politicamente, unidos apenas pelo adversário em comum: os velhos oligarcas, representantes das classes dominantes regionais.

O que ocorreu, na realidade, foi uma troca de elite no poder; saíram os quadros oligárquicos tradicionais e subiram os militares, técnicos diplomados, jovens políticos e industriais (FAUSTO, 2002, p. 178-183). Foi neste contexto em que Viana iniciou

3 Os motivos para afirmativas como esta por parte do autor, serão expostas ao longo do presente artigo. São elas: Populações Meridionais do Brasil (1920), Pequenos Estudos de Psicologia Social (1921), O Idealismo na Evolução Política do Império e da República (1922), Evolução do Povo Brasileiro (1923), O Ocaso do Império (1925), O Idealismo na Constituição (1927) e Problemas de Política Objetiva (1930).4 São elas: Populações Meridionais do Brasil (1920), Pequenos Estudos de Psicologia Social (1921), O Idealismo na Evolução Política do Império e da República (1922), Evolução do Povo Brasileiro (1923), O Ocaso do Império (1925), O Idealismo na Constituição (1927) e Problemas de Política Objetiva (1930).5 Movimento que teve como principais integrantes oficiais de nível intermediário do Exército (tenentes e capitães). A insatisfação do grupo era com relação às eleições e às sucessões presidenciais das oligarquias. Sobre isso ver: FAUSTO, 2002, p. 171-176.6 A crise de 29 agravou a situação da cafeicultura, causando o endividamento de muitos fazendeiros e uma insatisfação por parte do grupo com relação ao governo de Washington Luís.

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seus escritos, em um primeiro momento (1920-1930) criticando as formas de governos vigentes; e em um segundo, continuando suas críticas à forma como o Brasil vinha sendo governado antes da Revolução de 30, e também fazendo análises do governo que iniciava sua vigência.

Na Espanha, o contexto do final do século XIX e início do XX foi marcado por uma profunda crise econômica e instabilidade política. A solução encontrada pelos militares para resolver esses problemas foi o Golpe de Estado protagonizado por Miguel Primo de Rivera, em setembro de 1923. Em 1931, um ano após sua abdicação e morte, proclamou-se a II República. Esta tinha como principais características uma ampla proteção dos direitos e liberdades individuais, sufrágio ativo aos cidadãos de ambos os sexos maiores de 23 anos e separação do Estado e da Igreja. Conforme assegura Francisco Salvadó:

Na verdade a proclamação da República não poderia ter chegado em momento pior: 1931 foi o início de uma era de radicalismo político, extremismo ideológico e crise econômica mundial nunca antes vistos. A Espanha parecia ir contra a corrente dos tempos. Enquanto a República representava o primeiro exercício democrático do país, em outros lugares a política pendia para o lado das ditaduras e do fascismo. (SALVADÓ, 2008, p. 54).

Este foi o contexto interno7 no qual o advogado José Antônio Primo de Rivera (1903-1936), filho do ditador, começou sua participação política efetivamente. Ele, assim como Viana, tinha uma proposta conservadora para seu país: a defesa de uma Espanha unificada que fosse além dos conflitos de classe e dos nacionalismos periféricos8. E, com o propósito de alcançar este objetivo, ele fundou um movimento fascista no país: a Falange Espanhola, com a finalidade de “plantear su doctrina nacionalista y del Estado” (CUERVAS, 1999, p. 234-240).

As semelhanças entre Falange e o fascismo são grandes (CAMPOS, 2004, p. 38-39) – movimentos nacionalistas de estrutura hierárquica e autoritária e de ideologias antiliberais, antidemocráticos e anti-socialistas –, entretanto, é preciso ter cuidado ao comparar dois movimentos que tinham características muito parecidas, mas que foram pensadas para países diferentes. De acordo com Daniele Alves Lima:

[...] não podemos considerar esta noção de Estado, como entendem os falangistas, como apenas um transporte do modelo italiano. Afinal, o projeto fascista italiano foi uma resposta à crise italiana. A crise espanhola, em si, é bastante diferenciada. Perguntas diferentes exigem respostas diferentes.

7 É preciso salientar que, além do contexto espanhol da época, as ideias antiliberais de Rivera remontam a finais do século XVIII e início do XIX, através de jornais como El Censor de Cádiz, El Sol de Cádiz e Procurador general de la nación. Nestes periódicos já estavam presentes questões que serão abordadas por Rivera ao longo de seus artigos e discursos. Cf. GARCÍA, 2010, p. 441-447.8 As principais regiões que reivindicavam suas autonomias foram a Catalunha e o País Basco, não apenas no período anterior à Guerra Civil, mas também durante a ditadura de Franco e a transição democrática.

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(LIMA).

Posteriormente, com o início da Guerra Civil, em 1936, a base social do movimento que antes era reduzida a um pequeno número de estudantes, militares, intelectuais da classe média, pequena burguesia, membros da aristocracia e trabalhadores, transformou-se – com a decisão de que a Falange passava a ser o partido único espanhol, em 1937 – na base inicial que pretendia garantir a legitimidade ideológica de Francisco Franco.

Oliveira Viana e Primo de Rivera são considerados importantes referências para que se possa compreender os pensamentos antiliberais e conservadores que se seguiram a eles. Viana é de fundamental importância por ter sistematizado propostas de construção de um modelo político e de sociedade para o Brasil, que estavam presentes no país desde o século XIX. Rivera, por sua vez, foi um dos fundadores da Falange, movimento que fundamentou grande parte dos ideais franquistas. Assim, faz-se necessário analisar alguns textos/discursos de Primo de Rivera, bem como trechos das obras de Oliveira Viana, a fim de observar de que forma o pensamento do espanhol e do brasileiro estão relacionados.

As propostas de um Brasil centralizado e de uma “España Una”Antes de adentrar no tema do centralismo político na concepção de cada um dos

autores, faz-se necessário expor uma questão presente tanto nos livros de Viana quanto nos discursos e artigos de Rivera: a objetividade e pretensa cientificidade que garantem permear seus pontos de vista. Essa é a forma através da qual ambos tentam legitimar seus discursos.

A obra de Viana era repleta de notas de rodapé e a sua linguagem tinha, em grande parte do tempo, um teor científico, com argumentos que tentavam garantir a veracidade e objetividade de cada ponto por ele levantado. Dessa forma, ele omitia o caráter essencialmente político de seus textos e os legitimava através de pressupostos científicos. Essa característica é evidenciada no prefácio de seu primeiro livro, quando ele pondera:

Para a perfeita compreensão do passado, a investigação científica arma hoje os estudiosos com um sistema de métodos e uma variedade de instrumentos, que lhes dão meios para obterem dele uma reconstituição, tanto quanto possível, rigorosa e exata. [...] Este livro é uma tentativa de aplicação desses critérios novos à interpretação da nossa História e ao estudo da nossa formação nacional. (VIANA, 2005, p. 50-51).

A necessidade de legitimação do discurso de Rivera ocorreu como uma tentativa de comprovação de que uma ditadura era novamente necessária para a sociedade espanhola e, por ser filho do ditador de mesmo nome, precisava garantir que sua opinião não estava embasada apenas em uma influência familiar. Em um discurso pronunciado ainda em

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1934, ele garante que seu posicionamento nada tem a ver com a sua descendência:

Porque cuando yo preguntaba eso al señor ministro de Hacienda no adoptaba ninguna actitud sentimental, sino simplemente aventuraba una teoría, ya defendida por mí en otras ocasiones […] aventuraba, digo, una teoría rigurosamente objetiva, rigurosamente jurídica […] Ved cómo dejo a un lado todo género de afectos, y me desprendo de toda pasión, que sería disculpable, para examinar desde este punto de vista la obra y el fracaso de la Dictadura. (CISNEROS, 1950, p. 200-205).

Para Viana, por sua vez, era fundamental que o Brasil tivesse um modelo adequado a sua realidade, apenas assim, seria possível a construção da identidade brasileira. Para isso, seria preciso um conhecimento apurado dos usos e costumes da sociedade, tanto de seu presente quanto de seu passado, este seria o ponto principal para os idealistas orgânicos, pois eles pregavam um idealismo baseado na experiência. O contrário disso, o autor classifica como idealistas utópicos, isto é, aqueles que não observam as condições reais e orgânicas da sociedade antes de dirigi-la (VIANA, 1939, p. 10-11).

A concepção de Rivera era muito semelhante, no sentido em que ele assumia ser possível a importação de um modelo estrangeiro, mas este também deveria adequar-se a realidade local.9 Dessa forma, em outubro 1933 – seis dias antes da fundação da Falange Espanhola –, quando Rivera ainda mostrava-se adepto ao fascismo – por isso se encaixaria na realidade espanhola – o fundador da Falange pondera:

Ahora bien, y esta es la cuestión: ¿por qué habla del Imperio romano de Mussolini? Habla del Imperio romano porque quiere encontrar en él la vena tradicional del Imperio. En España buscará la tradición de nuestro Imperio. […] El fascismo es como una inyección que tuviera la virtud de resucitar: la inyección podría ser la misma para todos, pero cada cual resucitaría como fue. (RIVERA, Al volver).

A partir dessas concepções pode-se tentar compreender qual era a proposta de Estado que eles consideravam adequada à realidade do Brasil e da Espanha. Apesar de se mostrar bastante próximo aos ideais fascistas, principalmente até 1933, apenas um ano depois, Riveira anuncia que “la Falange Española de las J.O.N.S . no es un movimiento fascista” (CISNEROS, 1950, p. 797), e acrescenta que o movimento teria apenas alguns pontos – universais – em comum. Um possível motivo para esse afastamento – aparente, pois as bases dos dois movimentos eram semelhantes, ficando a negação do fascismo, neste primeiro momento, mais em nível de discurso, pois na prática as semelhanças eram grandes – foi a questão do tradicionalismo presente nas ideias de Rivera e pouco visíveis

9 Assim como Viana, que reconhecia as qualidades dos modelos britânico e americano, mas ponderava que a realidade brasileira não era adequada para a implantação de tais formas políticas, principalmente por conta do espírito de clã. Sobre isso ver: VIANA, 1930, p. 61-63.

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no fascismo. De acordo com Hobsbawm:

[...] embora o fascismo também se especializasse na retórica da volta ao passado tradicional [...] não era de modo algum um movimento tradicionalista como, digamos, os carlistas da Navarra, que formaram um dos principais corpos de apoio a Franco na Guerra Civil [...] os movimentos fascistas – o italiano e o alemão – não apelavam aos guardiões históricos da ordem conservadora, a Igreja e o rei, mas ao contrário buscavam complementá-los com um princípio de liderança inteiramente não tradicional, corporificado no homem que se faz a si mesmo, legitimizado pelo apoio das massas, por ideologias seculares e às vezes cultas. (HOBSBAWM, 1995, p. 121).

Para Viana a solução não estava em um governo fascista, mas sim em um regime forte, no qual o governante - e não “políticos medíocres” – tivesse liberdade de ação: “Para os grandes políticos não ha propriamente bons, nem maus regimes, por que, dentro das aparência do regime que simulam obedecer, o que eles realizam, na verdade, é um regime seu – o regime da sua personalidade ou do seu gênio” (VIANA, 1930, p. 59-60). Além disso, o autor acrescenta que seria necessária uma Constituição que revelasse apenas as boas qualidades da “raça”, que ajudasse o país a não mostrar a influência nociva dos considerados maus governos. É com base nessa afirmação que Viana defende a observação do passado, das tradições, mas apenas aquelas que servem como exemplo, a República Velha, não entraria nesta classificação.

Existem dois períodos distintos claramente observáveis nas obras de Viana: os escritos antes da implantação do Estado Novo e os de considerações sobre o regime já implantado. É possível fazer comparações entre a idealização de Estado do brasileiro na primeira parte da década de 1930 e as análises e sugestões dele ao governo de Getúlio Vargas, após 1937. Tal análise não é possível para Rivera, visto que o espanhol foi condenado e morto no ano de 1936, no início da Guerra Civil Espanhola, desta forma, não esteve presente durante a implantação do franquismo, a partir de 1939.

Assim, em 1939, Viana lança a segunda edição de O idealismo da Constituição, na qual acrescenta capítulos às partes constitutivas de seu livro realizando uma análise do que ele chama de “Primado do Poder Executivo”, que seria o Estado Novo. Ele inicia um capítulo do referido livro afirmando que o sistema de governo instituído na carta de 10 de Novembro de 1937 era o de uma república democrática e representativa, que esta residiria na soberania do povo, mas que o Chefe da Nação teria um poder maior do que antes lhe era concedido (VIANA, 1939, p. 121). Mesmo anunciando que o sistema de governo era uma república, em outra obra, ele afirma que o Estado, por si só era autoritário, consistindo em um pleonasmo a expressão “Estado autoritário” (VIANA, 1930, p. 149). Dessa forma, os objetivos do novo Estado eram: aumento do poder e da competência da União; primado do Executivo Federal em face aos outros poderes federais e estaduais; e a ampliação da

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base democrática do governo e da administração pública (VIANA, 1930, p. 121-125).

Nesta Constituição, a peça mais importante passava a ser o Presidente, não mais o Parlamento. O centralismo político de Viana estava pautado nessa premissa, o Presidente deveria, como o Estado Novo definiu, concentrar todas as decisões políticas do país. Nessa lógica, os interesses das coletividades estaduais passavam a ser ditados pelo interesse nacional, ocorrendo uma inversão na lógica vigente durante a República.

Rivera seguia o mesmo sentido argumentativo do brasileiro, o que deveria ser implantado na Espanha era um sistema autoritário, que não servisse apenas a uma classe ou a algum partido: “En un Estado fuerte, al servicio de la idea historica de la Patria. En subordinar los intereses individuales al interés nacional; en sujetar las clases, impidiendo que atropellen y amparándolas para que no sean atropelladas” (RIVERA, Juventud española).

O espanhol foi ainda além na sua análise do modelo de Estado ideal, ao diferenciar o governo autoritário do socialista: “Tenemos un Gobierno que no es rencoroso, pero que tampoco es revolucionario, y tenemos, por el otro lado a vosotros los socialistas devueltos a vuestro interés de clase y desligados de aquella misión nacional que en un momento asumisteis” (CISNEROS, 1950, p. 208). Para ele, os socialistas não teriam o mesmo objetivo final dos autoritários, que seria a unificação da Nação, por isso, para eles, não teria problema algum em incentivar a luta de classes – esta considerada desagregadora para Rivera.

Nesse sentido, o argumento para justificar o autoritarismo era o mesmo em ambos os autores: falta de solidariedade ou fraternidade dos seus povos10. Rivera, quando questionado em uma entrevista em agosto de 1933, se temia o individualismo espanhol e se este poderia fracassar com seus planos de Nação, ele respondeu: “Temer, no. […] Pero si no lo temo, no dejo tampoco de tenerlo en cuenta. Falta a nuestro pueblo educación como colectividad” (RIVERA, Juventud española).

Ao justificar porque o modelo americano ou inglês de pequenas comunidades sem intervenção do poder central não era adequado ao Brasil, Viana utiliza a mesma linha de argumentação do espanhol, ao afirmar que no Brasil não existia povo, massas populares esclarecidas e independentes, mas sim uma população sem pão, sem terra, sem vontade, sem consciência cívica, agrupada em clãs, sob a proteção de grandes proprietários rurais. Tal característica impedia a unificação nacional do Brasil (VIANA, 1939, p. 59-64)

Essa população destituída do sentimento de interesses comuns causaria problemas na Espanha com relação ao sentimento separatista. Em um discurso pronunciado em janeiro de 1934, Primo de Rivera declara:

10 Argumento que será utilizado novamente na opção de ambos pelo antiliberalismo.

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Yo quisiera que el señor presidente y quisiera que la Cámara separase, si es que admite que alguien falto a eso, a los que, cuando pasamos por esa coyuntura, pensamos como siempre, sin reservas mentales, en España y nada más que en España; porque España es más que una forma constitucional; porque España es más que una circunstancia histórica; porque España no se puede ser nunca nada que se oponga al conjunto de sus tierra y cada una de esas tierras. […] Nosotros amamos a Cataluña por española, y porque amamos a Cataluña la queremos más española cada vez, como al país vasco, como a las demás regiones. […] una nación es una unidad en lo universal […] (CISNEROS, 1950, p. 183-184).

Essa parte do discurso de Rivera demonstra o essencialismo/ primordialismo da sua concepção de nacionalismo, ao reafirmar os vínculos do povo espanhol e a necessidade de levá-los em conta (SMITH, 2004, p. 73). Viana também compartilha essa opinião, ao garantir que “o passado vive em nós, latente, obscuro nas células do nosso subconsciente. Ele é que nos dirige ainda hoje com a sua influência invisível, mas inelutável e fatal” (VIANA, 1930, p. 49). Os argumentos de ambos objetivam, em última análise, à coerção da população de que ela realmente divide um mesmo passado histórico, o que a obrigaria a se manter unida e solidária.

Liberalismo políticoA justificativa dos dois autores para a não adoção do liberalismo centrava-se,

novamente, na insolidariedade tanto dos brasileiros quando dos espanhóis. Tal argumento era utilizado, principalmente, para explicar a impossibilidade da existência de partidos políticos e a falta de necessidade de haver eleições. Para o brasileiro o que existia no país não era uma democracia, ao passo que os partidos não representavam os ideais da população, mas sim de clãs, ou seja, de pequena parte da população (oligarquias) que detinha o poder. De acordo com Viana:

Esta é, afinal, a verdadeira realidade dos partidos políticos em nossa terra. [...] eles não passam de simples clãs, mais ou menos organizados e mais ou menos vastos, que disputam pela conquista do poder, para o fim exclusivo de explorar, em proveito dos seus membros, burocraticamente, o País. [...] Nada mais justo e lógico, pois, que se pusesse termo a esta ficção ridícula: a resolução do Governo, que decretou a extinção dos partidos políticos, objetivada no Dec. 37, foi um ato do mais puro realismo político. (VIANA, 1939, p. 185-195).

Entretanto, o maior problema, os grupos locais – que faziam a política dos municípios – seguiam existindo. Para ele, esses clãs territoriais precisariam ser dissolvidos e em seus lugares deveria ser estabelecida uma representação profissional: “Porque a pedra de toque da possibilidade do governo do povo pelo povo em nosso país está nisto: na capacidade das nossas classes produtoras de organizarem-se profissionalmente” (VIANA, 1939, p.

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248). Esta seria a saída para que as classes profissionais se sentissem representadas dentro do governo e não recorressem a métodos antidemocráticos.

Tal concepção encaminhava-se para a formação de um Estado corporativo, que teria como ponto de partida a formação da solidariedade brasileira. De acordo com Angela Gomes, a arquitetura política de Viana:

[...] tem como ponto de partida a organização de sindicatos, isto é, a geração de solidariedade por meio dos interesses comuns das profissões. Se não tínhamos instâncias – políticas e/ou morais – para ‘organizar a nação’ [...], certamente tínhamos ou poderíamos produzir instâncias econômicos-corporativas. (GOMES, 2010, p. 209).

A argumentação de Rivera inicia afirmando que o Estado Liberal não acredita em nada, sequer nele próprio, por isso, não teria um projeto, apenas deixaria o destino seguir seu rumo. A única limitação deste tipo de governo seria a lei, representante da vontade soberana da maioria eleitoral. Entretanto, ele pondera: “La libertad no puede vivir sin el amparo de un principio fuerte, permanente. […] sólo hay libertad para los acordes con la mayoría. Las minorías están llamadas a sufrir y callar” (RIVERA, Orientaciones hacia un nuevo Estado). E completa afirmando que o Estado Liberal dizia-se fundamentado em três palavras: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mas que, na prática, não ocorria nenhuma das três.

Nessa linha de argumentação, ambos os autores colocam um exemplo de como o Estado Liberal tinha, na realidade, pouca vantagem ou característica de fato liberal. Viana exemplifica com o domínio dos norte-americanos sobre o Haiti, que foram invadidos pelos EUA, no início do século XX, a fim de cobrar uma dívida externa: “É justo ou injusto o domínio atualmente exercido pelos norte-americanos no Haiti?” (VIANA, 1930, p. 69). Todo argumento do brasileiro estava fundamentado na ideia de que o Haiti livre, no qual o povo era soberano, não seguia o princípio básico da ordem e a situação financeira era muito precária, não seria de fato liberal, visto que as liberdades de alimentação, escola e segurança, por exemplo, não existiam. Por outro lado, existia o Haiti escravizado11, no qual o país tinha toda a cobertura do Estado norte-americano, porém era destituído dos princípios básicos da liberdade política, tais como o direito ao voto.

Uma análise muito semelhante é tecida por Rivera, quando ele argumenta que o respeito aos direitos individuais são relativos. O espanhol também exemplifica com uma história, porém ficcional, de uma viúva de trabalhador que, ao viver em um Estado Liberal, teria o direito a comer, entretanto, não teria comida para alimentar seus filhos. Dessa forma, Rivera argumenta que “Las leyes lo permiten todo; pero la organización económica, social, no se cuida de que tales permisos puedan concretarse en realidad” e

11 Tanto o conceito escravizado quanto livre são utilizados pelo próprio autor em seu livro.

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completa, dirigindo-se diretamente ao leitor: “Lector: si vive usted en un Estado liberal procure ser millonario, y guapo, y listo y fuerte” (RIVERA, Liberalismo).

Assim como Viana, Rivera também desacredita na ação dos partidos políticos, pois quando estes existem, ocorre uma divisão na sociedade entre maioria e minoria, esta, sempre com mais condições econômicas e sociais. Esse caminho seria, para ele, o criador do ódio entre as classes e, segundo a sua análise, ódio e divisão são incompatíveis com a fraternidade.

Para combater tal desigualdade, ele propõe um Novo Estado espanhol, que seria resumido pela palavra unidade – fusão entre todos os espanhóis. A construção de tal Estado deveria apoiar-se em dois princípios básicos: “En cuanto a su fin, el Estado habrá de ser instrumento puesto al servicio de aquella Unidad, en la que tiene que creer. […] En cuanto a su forma, el Estado no puede asentarse sino sobre un régimen de solidaridad nacional, de cooperación animosa y fraterna” (RIVERA, Orientaciones hacia un nuevo Estado). E, novamente, é possível estabelecer uma relação entre o espanhol e o fascismo, quando, em 1933, ele escreve uma carta ao diretor do jornal ABC:

El fascismo no es una táctica – la violencia –. Es una idea – la unidad –. Frente al marxismo, que afirma como dogma la lucha de clases, y frente al liberalismo, que exige como mecánica la lucha de partidos, el fascismo sostiene que hay algo sobre los partidos y sobre las clases, algo de naturaleza permanente, transcendente, suprema: la unidad histórica llamada Patria. […] La Patria, que no es meramente el territorio donde se despedazan […] Sino la unidad entrañable de todos al servicio de una misión histórica, de un supremo destino común, que asigna a cada cual su tarea, sus derechos y sus sacrificios. (CISNEROS, 1950, p. 695-696).

Além dos pressupostos de caráter marcadamente fascistas, fica clara a defesa de um nacionalismo que busca justificar suas ações na origem do povo e na missão histórica de um destino único para todos espanhóis. E, para isso, seria necessária a extinção dos partidos políticos12:

Que desaparezcan los partidos políticos. Nadie ha nacido nunca miembro de un partido político; en cambio, nacemos todos miembros de una familia; somos todos vecinos de un Municipio; nos afanamos todos en el ejercicio de un trabajo. Pues si ésas son nuestras unidades naturales, si la familia y el Municipio y la corporación es en lo que de veras vivimos […] (CISNEROS, 1950, p. 20-21).

Viana avançava um pouco mais e afirmava que a eleição não era a única forma

12 Neste momento, Rivera está propondo a extinção dos partidos, de acordo com o discurso de fundação da Falange Espanhola, o que ele está criando é um movimento, não um partido. Apenas em 1937, a poste-rior FE e as J.O.N.S, é proclamada o partido único espanhol. Dessa forma, consistiria em um anacronismo afirmar que Rivera está propondo a extinção do pluripartidarismo no contexto de 1933.

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de constituir governos democráticos: “Donde se pode concluir que o voto não é condição essencial para que a opinião popular se possa manifestar [...]. Não seria absurdo imaginar-se a possibilidade de uma perfeita democracia funccionando sem eleições...” (VIANA, 1939, p. 229-230). O voto seria uma alternativa apenas para os governos nos quais houvesse uma cooperação e solidariedade entre as classes, como no britânico, por exemplo. No Brasil, seria preciso encontrar outra forma de organização da opinião pública e da expressão da liberdade política da população. E a saída encontrada por ele seria a organização das classes produtoras, ou seja, do corporativismo, como foi citado anteriormente.

Enfim, tais reflexões evidentemente não esgotam a temática ora proposta, nem tiveram tal pretensão, mas nos permitem pensar de forma comparativa sobre as diferentes correntes de pensamento conservador que se difundiam entre os países ocidentais durante os anos 1920 e 1930.

A partir desse estudo, portanto, foi possível perceber o quão semelhante são algumas ideias presentes nos discursos de ambos os autores, tais como a falta de solidariedade ou de fraternidade, a não necessidade de partidos políticos, a necessidade de um Estado centralizado e forte – ainda que um negasse estar propondo uma ditadura e outro tivesse ideias muito próximas das concepções fascistas –, entre outras características. Assim, fica evidente a forma como os países e as ideias que neles circulam, muitas vezes, alimentam-se e/ou divergem uma das outras – por mais que não se tenha como afirmar que os autores leram um ao outro, é possível perceber semelhanças em seus pensamentos.

No caso dos dois autores estudados, o principal ponto de convergência encontrado foi a forma como eles se utilizam de um discurso nacionalista essencialista – ao buscarem a origem do povo espanhol e brasileiro e tentarem impor um destino histórico a ambos – para legitimarem, cada um a sua maneira, a implantação de um Estado forte, com muitas características ditatoriais e até fascistas. Dessa forma, é possível inferir que ambos utilizam concepções antiliberais e centralistas na construção de seus argumentos.

Por fim, é importante salientar como as ideias de Viana e Rivera – evidentemente influenciadas por intelectuais conservadores e antiliberais de finais do século XVIII e XIX – tiveram ampla repercussão até parte da segunda metade do século XX, quando tanto no Brasil quanto na Espanha ainda existiam regimes ditatoriais.

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