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Estudos Feministas, Florianópolis, 20(1): 344, janeiro-abril/2012 233 Novas práticas corporais no espaço Novas práticas corporais no espaço Novas práticas corporais no espaço Novas práticas corporais no espaço Novas práticas corporais no espaço doméstico: a domesticidade doméstico: a domesticidade doméstico: a domesticidade doméstico: a domesticidade doméstico: a domesticidade pop pop pop pop pop na revista na revista na revista na revista na revista Casa & Jardim Casa & Jardim Casa & Jardim Casa & Jardim Casa & Jardim durante os anos 1970 durante os anos 1970 durante os anos 1970 durante os anos 1970 durante os anos 1970 Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo: Neste artigo, destacamos as mudanças nas práticas corporais das mulheres mediante a análise dos modelos de domesticidade veiculados pela revista Casa & Jardim, sobretudo no intervalo que abarca o final dos anos 1960 e a primeira metade da década de 1970. Temos como objetivo evidenciar a incorporação da linguagem pop na decoração de interiores domésticos brasileiros como um dos aspectos da cultura jovem, forjada em escala internacional ao longo dos anos 1960. Alinhados com a revolução comportamental, com as ideias do feminismo e com a postura iconoclasta da juventude da época, os ambientes pop propunham novas formas de mediação entre as pessoas e os artefatos que contribuíram na transformação dos esquemas corporais associados às representações de feminilidades. Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave: design pop; interiores domésticos; revista Casa & Jardim; representações de feminilidades; relações de gênero. Marinês Ribeiro dos Santos Universidade Tecnológica Federal do Paraná Joana Maria Pedro Universidade Federal de Santa Catarina Carmen Rial Universidade Federal de Santa Catarina Copyright © 2012 by Revista Estudos Feministas. Introdução Introdução Introdução Introdução Introdução Durante a virada para a década de 1970, a revista Casa & Jardim promoveu a circulação de um tipo de domesticidade – voltada para as classes médias e identificada com a cultura jovem – que engendrava padrões de feminilidade diferentes dos modelos veiculados até então. Moças em poses descontraídas, com o corpo

doméstico: a domesticidade na revista durante os anos 1970 · de parâmetro para as formas de morar da família brasileira, esta última entendida a partir do modelo nuclear e heterossexual

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Novas práticas corporais no espaçoNovas práticas corporais no espaçoNovas práticas corporais no espaçoNovas práticas corporais no espaçoNovas práticas corporais no espaçodoméstico: a domesticidade doméstico: a domesticidade doméstico: a domesticidade doméstico: a domesticidade doméstico: a domesticidade poppoppoppoppop

na revista na revista na revista na revista na revista Casa & JardimCasa & JardimCasa & JardimCasa & JardimCasa & Jardimdurante os anos 1970durante os anos 1970durante os anos 1970durante os anos 1970durante os anos 1970

ResumoResumoResumoResumoResumo: Neste artigo, destacamos as mudanças nas práticas corporais das mulheres mediantea análise dos modelos de domesticidade veiculados pela revista Casa & Jardim, sobretudo nointervalo que abarca o final dos anos 1960 e a primeira metade da década de 1970. Temoscomo objetivo evidenciar a incorporação da linguagem pop na decoração de interioresdomésticos brasileiros como um dos aspectos da cultura jovem, forjada em escala internacionalao longo dos anos 1960. Alinhados com a revolução comportamental, com as ideias dofeminismo e com a postura iconoclasta da juventude da época, os ambientes pop propunhamnovas formas de mediação entre as pessoas e os artefatos que contribuíram na transformaçãodos esquemas corporais associados às representações de feminilidades.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: design pop; interiores domésticos; revista Casa & Jardim; representaçõesde feminilidades; relações de gênero.

Marinês Ribeiro dos SantosUniversidade Tecnológica Federal do Paraná

Joana Maria PedroUniversidade Federal de Santa Catarina

Carmen RialUniversidade Federal de Santa Catarina

Copyright © 2012 by RevistaEstudos Feministas.

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Durante a virada para a década de 1970, a revistaCasa & Jardim promoveu a circulação de um tipo dedomesticidade – voltada para as classes médias eidentificada com a cultura jovem – que engendravapadrões de feminilidade diferentes dos modelos veiculadosaté então. Moças em poses descontraídas, com o corpo

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relaxado, passaram a figurar como protagonistas nasrepresentações de ambientes domésticos inspirados nalinguagem pop. Como parte constitutiva da revoluçãocomportamental desencadeada nos anos 1960 em escalainternacional, a linguagem pop foi um dos meios utilizadospela juventude da época para expressar seus anseios pormudanças nas regras hegemônicas que organizavam avida social. Devido à sua ligação com as posturasiconoclastas experimentadas naquele momento, queremosargumentar que a domesticidade pop foi tanto informadapelas modificações ocorridas nas relações de gênerovigentes, quanto teve impacto nessas modificações. Aopropor novas práticas corporais, os móveis e ambientes popcontribuíram para a ampliação dos limites referentes aospadrões do comportamento feminino classificados comoaceitáveis até então.

A partir dos anos 1950, o processo de modernizaçãocapitalista da sociedade brasileira intensificou-sesignificativamente. Junto com a industrialização vieram aurbanização e a modificação nos padrões de consumo.Novas oportunidades de trabalho surgiram e o acesso àeducação formal foi ampliado, fatores que favoreceram aelevação do padrão de vida de uma parcela considerávelda população.1 Nesse cenário, houve crescimento nademanda de serviços nas áreas de arquitetura e construção,bem como ocorreu a profissionalização de atividades comoa decoração e o design de produtos.2 A revista Casa &Jardim veio na esteira de todos esses acontecimentos.Lançada em 1952, ela figura como o primeiro periódicoespecializado em decoração de interiores domésticospublicado no Brasil.

Desde o seu surgimento, Casa & Jardim deixou claraa intenção de contribuir com sugestões que pudessem servirde parâmetro para as formas de morar da família brasileira,esta última entendida a partir do modelo nuclear eheterossexual. Nas páginas da revista, a figura da “donade casa moderna” ganhou relevo como a principalresponsável tanto pelo bom funcionamento da rotinadoméstica, quanto pela atualização das práticas ligadasaos modelos de domesticidade em voga. Entre a décadade 1950 e a primeira metade dos anos 1970, quando alinguagem pop se firmou como uma tendência na revista,as variações nos modelos de domesticidade vieramacompanhadas de modificações nas representações dadona de casa. Tais modificações, além de indicativas denovas tipologias do feminino na vida em sociedade,também serviam como alternativas de identificaçãodisponíveis ao público leitor, implicando possíveis pontosde apego na constituição de subjetividades de gênero.3

3 Vale ressaltar que o gênero éentendido aqui partir de JudithBUTLER, 2003, como um conjuntode discursos e práticas regulado-ras que operam no sentido denaturalizar os limites impostos paraos sexos.

2 Ver José Carlos DURAND, 1989,e Rafael Cardoso DENIS, 2000.

1 João Manuel Cardoso de MELLOe Fernando NOVAIS, 1998.

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NOVAS PRÁTICAS CORPORAIS NO ESPAÇO DOMÉSTICO

Como estratégia de abordagem, vamos caracterizara revista Casa & Jardim a partir do conceito de “mídia deestilo de vida”. David Bell e Joanne Hollows consideram aprodução das mídias de estilo de vida como uma práticasocial significativa, mediante a qual circulam valores queinfluenciam a constituição de identidades individuais ecoletivas no interior da cultura do consumo contemporânea.4

São veículos que contribuem na produção, reprodução,reformulação ou dissolução de identificações sociais eculturais. A intermediação cultural desempenhada pelasmídias de estilo de vida assume o caráter de “voz daautoridade” capaz de interpretar e de traduzir, para parcelasparticulares da população, conhecimentos e padrões degosto relacionados às práticas cotidianas. Num período demodernização acelerada da sociedade brasileira, as donasde casa podiam orientar suas escolhas a partir das opiniõesde especialistas, veiculadas em Casa & Jardim. O contatocom a voz da autoridade oportunizava a atualização dosmodos de viver conforme o novo “espírito dos tempos”.

A modernização do espaço domésticoA modernização do espaço domésticoA modernização do espaço domésticoA modernização do espaço domésticoA modernização do espaço doméstico

Em Casa & Jardim, o contexto da industrialização eda urbanização da sociedade brasileira deu visibilidade àarquitetura e aos interiores modernistas. No intervalo queabarca os anos 1950 e 60, a atualização da casa envolvia apreferência pelos móveis e demais produtos industrializados,além da incorporação dos eletrodomésticos nas tarefascotidianas. A disposição interna da moradia deveria serplanejada de acordo com critérios racionais, visando àeficiência da rotina doméstica. Nesse período, a revistaempenhou-se em afirmar a ligação estreita entre o estilo devida moderno e o consumo de espaços e artefatos entendidoscomo funcionais. A orientação funcionalista, tributária davertente do Modernismo europeu conhecida como EstiloInternacional, firmou-se como uma tendência de vanguarda,passando a ser considerada como sinônimo de “bomdesign”.5

Ainda nessas décadas, o desenvolvimentoeconômico decorrente do projeto modernizadorencabeçado pelos governos brasileiros privilegiou ossegmentos médios da sociedade. Assim como os homens,as mulheres puderam contar com mais oportunidades deacesso ao trabalho e ao ensino superior.6 Além disso, ahomologação do Estatuto da Mulher Casada no início dosanos 1960 ampliou a autonomia feminina nas decisõesrelativas à vida em família, inclusive no que concerne aotrabalho fora de casa.7 Essas questões tiveram ressonâncianas representações da dona de casa em Casa & Jardim. O

4 BELL e HOLLOWS, 2006.

5 DENIS, 2000.

7 Céli Regina Jardim PINTO, 2003.

6 MELLO e NOVAIS, 1998.

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discurso da rotina prática no universo doméstico vinha aoencontro não só do desejo por mais tempo de lazer, comotambém da necessidade de dar conta da dupla jornada.Em contraste com uma postura mais conservadoracaracterística dos anos 1950 e mesmo lamentando emalgumas reportagens o prejuízo que isso podia significarpara a harmonia do lar, no final da década de 1960 arevista já assumia como certo que boa parte das donas decasa brasileiras de classe média trabalhava fora de casa.

Também foi nesse período que, combinando aorientação funcionalista do Estilo Internacional com amobilização pelo nacional popular,8 uma série de profissio-nais ligados ao setor moveleiro se envolveu com a concepçãode peças que pudessem ser reconhecidas como representa-tivas de uma produção brasileira.9 Em paralelo, peçasassinadas por designers estrangeiros consagrados passarama ser fabricadas sob licença no país.10 Esses dois tipos deiniciativa foram festejados em Casa & Jardim como exemplosde empenho pela melhoria da qualidade dos produtosproduzidos no Brasil e amplamente divulgados comoalternativas de consumo adequadas ao gosto pelo moderno.

O golpe militar deflagrado em meados da décadamodificou o quadro político brasileiro, impondo o regimeditatorial. No plano da produção cultural, e não de modoimediato, a derrota do projeto das esquerdas implicou arevisão crítica do ideário ligado ao nacional popular,abalando os alicerces da arte engajada que se apresentavacomo hegemônica nos círculos intelectualizados. Tal processoabriu brechas para a manifestação de afinidades porinfluências estrangeiras em diferentes frentes.11 Acompanhan-do a renovação no pensamento e nas práticas artísticas, nofinal dos anos 1960 a linguagem pop passou a figurar comouma influência importante no design de móveis e no planeja-mento dos interiores domésticos, conforme podemos ver nosregistros de Casa & Jardim.

A domesticidade A domesticidade A domesticidade A domesticidade A domesticidade poppoppoppoppop dos anos 1970 dos anos 1970 dos anos 1970 dos anos 1970 dos anos 1970

Irreverente, irônica e bem-humorada, a linguagempop se constituiu mediante a interação estreita entre as artesplásticas e o universo da indústria cultural. No contextointernacional, seu surgimento teve como pano de fundo aprosperidade econômica que caracterizou as sociedadesindustrializadas a partir de meados da década de 1950, ofenômeno da Guerra Fria e os movimentos de contracultura.Conforme esclarece Nigel Whiteley, em princípio, o termo“pop” correspondia à abreviação de “cultura popular”,entendida como a produção veiculada pelas mídias demassa, entre elas o cinema, a televisão e as revistas ilustradas

8 Para mais informações acercada influência do nacional-popularna produção cultural brasileira dosanos 1960, ver Heloisa Buarquede HOLLANDA, 2004.9 DENIS, 2000.10 Maria Cecilia Loschiavo dosSANTOS, 1995.

11 Heloisa Buarque de HOLLANDAe Marcos Augusto GONÇALVES,1995.

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NOVAS PRÁTICAS CORPORAIS NO ESPAÇO DOMÉSTICO

de grande circulação.12 A partir dos anos 1950, sobretudodurante os anos 1960, com a emergência de artistas edesigners interessadas/os em incorporar referências dessaprodução em seus trabalhos, o termo “pop” passou a integrartambém o léxico das artes plásticas, da música e do design.

O envolvimento com a linguagem pop no design deprodutos privilegiou concepções lúdicas e informais,alinhadas à cultura jovem forjada na época. Soluções degrande impacto visual, porém efêmeras e de baixo custo,possibilitavam o consumo contínuo de mercadorias emresposta ao desejo por novidades.13 Em contraposição aosvalores austeros do Modernismo, como a simplificaçãoformal, a perenidade e a padronização, o pop firmou suasbases na irreverência, no humor, na expressão pessoal e natrivialidade. O vocabulário estético engendrado pelo popserviu como suporte para os segmentos da juventudeinteressados em demarcar um espaço identitário capaz dediferenciá-los dos padrões convencionais, sendo utilizadocomo um marcador geracional.

No cerne da cultura jovem estava a chamadarevolução comportamental, que envolveu o combate àsinstituições sociais fundadas em relações hierárquicas dedesigualdade nos âmbitos público e privado. Junto comoutras mobilizações de jovens, entre elas o movimentoestudantil, o movimento hippie e o movimento negro, asreivindicações e conquistas do movimento feminista informa-ram os investimentos nas transgressões de comportamentoexperimentadas na época.14 A família tradicional foi alvo decríticas, entendida como um reduto de hipocrisia e opressão.

No Brasil, as modificações comportamentais e ascríticas aos moldes do casamento tradicional adquiriram ocontorno de enfrentamento ao caráter conservador do regimemilitar. A maioria das mulheres envolvidas com as demandasfeministas era militante ou simpatizante do combate àditadura, fato que lhes solicitou o esforço de administrar astensões oriundas da participação simultânea nessas duasfrentes de luta. Se para os militares a “dissolução dos costumes”era vista como parte da subversão fomentada pelomovimento comunista internacional, para as organizaçõesde esquerda as demandas específicas do feminismosignificavam questões secundárias diante da problemáticamaior da desigualdade social. Mesmo enfrentandopreconceitos, as ideias acerca do que se chamava na épocade “condição feminina” circulavam nas conversas, nosdebates, nas revistas e nos livros.15

Já nos anos 1970, o retorno de brasileiras que haviamparticipado dos chamados “grupos de consciência” noexterior incrementou a articulação feminista no país.16 Areprodução do modelo por elas experienciado propiciou a

12 WHITELEY, 1987.

13 WHITELEY, 1987.

14 Joana Maria PEDRO, 2008b.

15 PEDRO, 2008a.16 Os “grupos de consciência”fazem parte das estratégias de lutados feminismos dos anos 1960 e70. Vamos retomar esse assuntona sequência.

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multiplicação de fóruns de discussão formados exclusiva-mente por mulheres. Em 1975, a criação do Centro deDesenvolvimento da Mulher Brasileira no Rio de Janeiro serviucomo marco da institucionalização do movimento feministano Brasil.17 Vale ressaltar que, durante os primeiros anos dessadécada, os discursos feministas foram incorporados aorepertório dos anúncios publicitários veiculados em Casa &Jardim, servindo como recurso retórico para a atualizaçãodas representações da dona de casa. Sem questionar aassociação das mulheres com o serviço e o consumodomésticos, tais discursos foram usados na construção depontes entre práticas tradicionais e o comportamentofeminino de vanguarda.18

Na virada para a década de 70, a domesticidadepop em Casa & Jardim começou a ser forjada como ummeio para a configuração de “espaços jovens” nos interioresdomésticos. A ressonância da cultura jovem na organizaçãodas moradias teve como locus privilegiado os dormitórios desolteira/o e os apartamentos pequenos, tais como os “quartoe sala” e os “conjugados”. Os dormitórios de jovens passarama ser concebidos tanto como recantos individuais quantocomo espaços destinados para as reuniões entre amigas/os,borrando a delimitação das fronteiras entre as zonas enten-didas como íntimas e sociais. Tal situação também pode serobservada no caso dos apartamentos conjugados, uma vezque as funções destinadas à sala de visitas, à sala derefeições e ao dormitório concentram-se no mesmo espaço.Os apartamentos pequenos aparecem frequentemente comomoradias provisórias, direcionadas para estudantes ou jovenscasais.19

Durante a primeira metade dos anos 1970, arecorrência à linguagem pop tornou-se a principal estratégiaempregada pela revista Casa & Jardim na expressão dedomesticidades jovens. Apresentada pela revista como umtipo de modernidade específica daquela década, adomesticidade pop privilegiava a mobilidade dos espaçose a interferência das pessoas na configuração do entorno. Omobiliário deveria permitir a modificação dos ambientes nodecorrer do tempo, de acordo com a variação de desejos oudemandas. Na retórica pop adotada pela revista, os espaçosdomésticos deixavam de ser considerados como “espaçosfuncionais” para tornarem-se “cenários de vivência”,devendo, além de responder às necessidades de ordemprática, significar um determinado estilo de vida. Adurabilidade dos móveis e as tipologias convencionais forampostas em xeque pelas estratégias do descartável e dadesmaterialização. Os recursos do humor e da brincadeiraganharam destaque em peças inusitadas que, muitas vezes,davam suporte para usos diferenciados mediante a

17 PINTO, 2003.

18 Para uma discussão maisaprofundada sobre esse assunto,ver Marinês Ribeiro dos SANTOS,2010.

19 Ainda que, de fato, sejammoradias bem mais permanentes,como mostrou a pesquisa deGilberto VELHO, 1973, emCopacabana.

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NOVAS PRÁTICAS CORPORAIS NO ESPAÇO DOMÉSTICO

possibilidade de diversos arranjos e combinações,engendrando novas formas de percepção dos artefatos eambientes.

A retórica A retórica A retórica A retórica A retórica poppoppoppoppop em em em em em Casa & JardimCasa & JardimCasa & JardimCasa & JardimCasa & Jardim

Embora referências à linguagem pop possam serencontradas nas páginas de Casa & Jardim durante o finalda década de 1960, foi no ano de 1970 que a revista sepronunciou de forma mais explícita quanto ao impacto daabordagem pop na configuração dos espaços domésticos.O editorial intitulado “Os novos rumos da decoração”,publicado na edição de outubro, é particularmenteimportante nesse sentido. O texto indica mudanças no jeitode entender a decoração de interiores em virtude deinfluências das artes plásticas, das artes gráficas e dapublicidade, responsáveis por alterações significativas noentorno visual. Além disso, afirma que o aspecto dinâmicopresente nos costumes, na moda e na paisagem urbanatambém se fazia notar nas novas configurações dos artefatose ambientes. Diz o texto: “dentro desta dinâmica, a palavradecoração ainda tem sentido? Muitos a usam para definiralgo que não existe mais: considerando o decorador comoum profissional do bom gôstobom gôstobom gôstobom gôstobom gôsto”.20

O advento da cultura do consumo e a proliferaçãodas mídias de massa tornaram problemática a noção debom gosto e, junto com ela, a de “boa forma”. O papel dodesign se estendeu para além da necessidade deharmonia entre forma e função, assumindo uma posiçãocentral na interface com o público consumidor. Além disso,com a afluência da juventude urbana e das classes médias,novos padrões de gosto foram se impondo diante dosmodelos definidos pelas elites privilegiadas em termos declasse e educação.21 Na visão do editorial restaria o gostode cada pessoa, formado a partir de preferências plurais esubjetivas. O texto ressalta que a ideia de gosto, muitas vezesconsiderada a partir de um enfoque individualizado, seriadecorrente de valores compartilhados por grupos sociais.Sendo assim, o consenso acerca dos critérios relativos àdecoração de ambientes até então correspondia àorganização racional dos espaços de uso:

O decorador era o profissional capacitado a organizarfunções, dentro de um critério estético. Os móveis, oselementos de cada ambiente, tendiam a atenderfunções definidas e o planejamento de interiorespropunha soluções úteis, agradáveis, mas estáticas,pois atendia a necessidades reais, consideradasdefinitivas, no tempo e no espaço.22

20 “Os novos rumos da decora-ção”. Casa Jardim, v. 189, out.1970, p. 106, grifo no original.Nesta e nas demais citações deexcertos da revista, reproduzimosa convenção ortográfica vigentena época.

21 Philippe GARNER, 1996.

22 “Os novos rumos da decora-ção”. Casa & Jardim, v. 189, out.1970, p. 106.

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O editorial questiona a validade da abordagemfuncionalista, considerando-a insuficiente diante das de-mandas da nova cultura urbana. Nesse contexto,

os elementos em nossa volta, cidade, rua, lojas,residências, roupas, não são mais considerados apenasobjetos de uso, mas devem poder ser usufruídos: o serhumano passa a ser considerado como fator dinâmicotambém. A elaboração dos cenários de vida se tornaentão uma programação visual, como um cartaz, umavitrina ou um anúncio. É um meio de comunicação.23

Propostas atualizadas se caracterizariam pela fluidez.Os ambientes, além de apresentarem boas condições defuncionamento, deveriam prever possibilidades de transfor-mação. Atentos ao caráter comunicativo dos ambientes, as/os profissionais de decoração estariam empenhados emconceber espaços que pudessem ser modificados namedida em que são usados:

Esta proposta chega até o Brasil, nas tentativas decriar móveis versáteis, combináveis, transformáveis.Outro caráter dos elementos que se encaixam nestanova tendência é o sentido lúdico, de jôgo, queultrapassa completamente a noção de função paraapelar, ao contrário, à imaginação e à participaçãode cada indivíduo.24

Sendo assim, a decoração deixaria de ser uma práticaassentada em soluções tidas como definitivas, dando lugarà elaboração de espaços conceitualmente mais maleáveis,mediante a combinação de elementos que poderiam mudarde lugar, de cor e até de forma, de acordo com necessidadese desejos particulares. O convite à participação e, com ela, oenvolvimento do corpo na experiência sensível é umaprerrogativa compartilhada entre as vanguardas artísticas eo design pop. Tal vertente foi inaugurada no país por artistascomo Helio Oiticica e Lygia Clark durante a virada para adécada de1960, obtendo repercussão internacional tantopela qualidade quanto pelo caráter pioneiro das propostas.25

No editorial em questão, Casa & Jardim incorporouo discurso pop corroborando o seu antagonismo ao dogmamodernista. A desconfiança em relação às interpretaçõesuniversais e o deslocamento da preocupação com a razãoem favor das sensações ficam demarcados nas opções pelafluidez, pela diversão e pela expressão subjetiva. Em quemedida a opção por características tradicionalmenteclassificadas como femininas teve impacto nas relações degênero é uma questão a ser investigada. Vejamos comoesses aspectos são materializados em algumas reportagensdurante o início da década de 1970. É pertinente lembrarque as propostas modernistas não desapareceram da

23 “Os novos rumos da decora-ção”. Casa & Jardim, v. 189, out.1970, p. 106.

24 “Os novos rumos da decora-ção”. Casa & Jardim, v. 189, out.1970, p. 106.

25 Ligia CANONGIA, 2005.

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NOVAS PRÁTICAS CORPORAIS NO ESPAÇO DOMÉSTICO

revista, mas, isto sim, passaram a conviver com a alternativapop, muitas vezes integrando alguns elementos do seuvocabulário. Em janeiro de 1970, Casa & Jardim abriu oano estampando na capa uma ambientação idealizadapara o showroom da empresa Forma. Na imagem, cubosde acrílico colorido, objetos decorativos feitos em plástico eum conjunto de assentos em espuma batizado de Malitteremetem à reportagem “Novas côres, novas formas”, cujotexto esclarece:

Com a procura sempre constante de novas formas eo aparecimento de fibras sintéticas cada vez maisversáteis e resistentes, o desenho industrial tomou umimpulso realmente espetacular. Os estilistas – que muitasvêzes também são arquitetos – dão asas à suaimaginação e, explorando as novas possibilidadeslançam peças ousadas, completamente diversas dasformas habituais. Nada de compromissosanteriormente assumidos. Nada de padrõesconvencionais. Surgem, então móveis de fibrassintéticas, bem coloridas, e estofados nos quais aestrutura de madeira foi eliminada – ou quase –restando apenas a espuma de borracha compacta,para dar-lhes a forma. E essa espuma é revestida detecido ou de plástico em côres berrantes e originais.26

A incorporação dos materiais plásticos no projeto deprodutos foi um fator de importância fundamental para aconstrução da linguagem pop, favorecendo abordagensinusitadas que visavam a dar relevo para significados comoa “desconstrução” das formas convencionais e a mudançade foco do produto para a agência das pessoas no uso. Aespuma de poliuretano mostrou-se bastante eficaz namaterialização de propostas concebidas sob essaspremissas. Vamos nos apoiar no conjunto de assentos queilustra a capa de Casa & Jardim para discorrer sobre essaquestão. O sistema Malitte – idealizado em 1965 para umafábrica italiana pelo designer chileno Roberto SebástianMatta27 – consiste em cinco peças diferentes feitas a partirde blocos de espuma que se encaixavam na vertical, comoum quebra cabeças.28 Na concepção de Matta, o conjuntodeveria formar uma “parede escultural” quando fora de uso.Uma vez distribuídas no ambiente, as peças setransformavam em um jogo completo para sala de estar.Nessa disposição, elas podiam ser combinadas entre si ouusadas de maneira independente.29

26 “Novas côres, novas formas”.Casa & Jardim, v. 180, jan. 1970,p. 41.

28 A Forma adquiriu os direitos parafabricação desse produto no Brasiljunto à empresa norte-americanaKnoll Internacional. Ver: “Novafase na decoração dos laresbrasileiros“. Casa e Jardim, n. 59,dez. 1959, p. 60.29 Charlotte FIELL e Peter FIELL,1997.

27 Cara GREENBERG, 1999.

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A qualidade estrutural da espuma foi explorada naproposição de formatos incomuns. Reportando se ao caráterinusitado dos móveis, um anúncio publicitário da Formapergunta: “Isso é uma escultura? Ou uma sala de visitas?”.30

Neste mesmo anúncio também podemos perceber asposturas relaxadas proporcionadas pelo sistema Malitte(Figura 1). A imagem fotográfica mostra as peças dispostasem situação de uso e, ao fundo, o conjunto montado navertical. Junto aos móveis estão três mulheres jovens vestindocalças compridas e blusas que lembram túnicas indianas.Uma das moças aparece de pé, ao lado da “paredeescultural”. As outras estão recostadas sobre os assentos.Para ressaltar a ideia de liberdade aliada ao conforto, todasestão descalças. A possibilidade de combinar as peças

30 “Isso é uma escultura? Ou umasala de visitas?” Casa & Jardim, v.187, ago. 1970, p. 79.

FIGURA 1 – Imagem publicitária do sistema Malitte. Casa &Jardim, vol. 187, agosto de 1970, p. 79. Acervo de periódi-cos da Biblioteca Pública do Paraná.

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NOVAS PRÁTICAS CORPORAIS NO ESPAÇO DOMÉSTICO

de acordo com o desejo ou a conveniência do momentofavorece o envolvimento das pessoas na configuração doentorno mediante o princípio das “formas flexíveis”.31

FIGURA 2 – Poltrona “Sacco”, fabricada no Brasil. Casa &Jardim, vol. 187, agosto de 1970, p. 39. Acervo deperiódicos da Biblioteca Pública do Paraná.

31 Penny SPARKE, 1992.

O material plástico também foi usado de outrasmaneiras na busca do efeito das “formas flexíveis”. Em 1969os italianos Piero Gatti, Cesare Paolini e Franco Teodorolançaram a poltrona Sacco, uma das tipologias maisemblemáticas da cultura pop. Feita a partir de um saco detecido vinílico recheado com bolinhas de poliuretanoexpandido, o formato da poltrona acompanha as posturasassumidas pelas pessoas durante o sentar.32 Casa & Jardimmostra a introdução desse conceito no mercado brasileiroem 1970: “esta poltrona pode tomar qualquer forma para se

32 FIELL e FIELL, 1997.

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adaptar às mais diversas posições. É a poltrona Sacco,criada pela Ampla Decorações, onde custa Cr$ 450,00”.33

O texto não faz menção à origem oficial do produto,indicando que a sua apropriação não foi necessariamentefeita sob licença. Na imagem, uma moça de shorts sentadasobre a poltrona com as pernas cruzadas desafia o públicoleitor com uma expressão de indiferença (Figura 2). Nova-mente a modelo está descalça. Tanto nesta representaçãoda figura feminina quanto na imagem das modelos dosistema Malitte podemos ressaltar algumas características:juventude, expressões de ousadia e posturas corporaisdescontraídas. Um texto sobre a feira de tendênciasEurodomus, realizada em 1972 na cidade de Turim, ajuda aesclarecer melhor a questão comportamental pelo viés dainterpretação pop:

Não mais nos sentamos, mas sim caímos no chão. Ossofás com pernas e encostos são tremendamenteantiquados. Os sofás de hoje – se ainda podem serchamados assim, são representados por umamontoado de almofadas ou trouxas que permitemuma livre composição. Existem almofadas de feitioregular, outras confeccionadas de forma a encaixaruma na outra, como parte de um “puzzle”. Existemtambém verdadeiras trouxas amarradas com cintos eoutros meios vários, os quais com um elemento rígidoadicional, podem ser agrupados, desamarrados emultiplicados. Sendo assim, o “cantinho” do bate-papoe do relax pode chegar a ocupar todo o chão doestar.34

Mais uma vez a decoração é definida como “umjogo, que permite variações pessoais, de acordo com asnecessidades e o humor do momento”.35 Contudo, existemrestrições que devem ser observadas:

Esta moda é particularmente indicada para os jovens,pois quem já passou dos 40 e se deixa tentar pelamorbidez daquelas almofadas macias, na hora de selevantar, vai descobrir que a coisa “não é tão fácil”. Épor isso que os produtores e desenhistas tentam manter“jovem” também o material empregado – eles usamtecidos simples, tais como lona, fazenda de colchõese blue jeans.36

A Eurodomus tinha como objetivo discutir aviabilidade de espaços de vivência mais adequados àsexigências da época, pelo menos no que diz respeito aosjovens. A principal preocupação foi mostrar “uma casa quese adapte ao homem de hoje e não o homem à casa”.37 Orecurso privilegiado para este fim foi o favorecimento deestruturas flexíveis capazes de sustentar variações no espaçoe no tempo. De acordo com Penny Sparke, tal estratégia

33 “Sente-se. É um convite”. Casa& Jardim, v. 187, go. 1970, p. 39.

34 “Eurodomus: a habitação dehoje e amanhã”. Casa & Jardim,v. 212, p. 20-22, aspas no original.

35 “Eurodomus: a habitação dehoje e amanhã”. Casa & Jardim,v. 212, p. 22.

36 “Eurodomus: a habitação dehoje e amanhã”. Casa & Jardim,v. 212, p. 22, aspas no original.

37 “Eurodomus: a habitação dehoje e amanhã”. Casa & Jardim,v. 212, p. 22.

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posicionava a concepção dos artefatos pop como“metáforas de libertação”.38 Em 1972, os assentos em espumaaparecem na revista Casa & Jardim como artigosobrigatórios em qualquer decoração “moderna e informal”:

Parece que estão desaparecendo aqueles tradicio-nais móveis amplos, com pernas, encostos e braços.Atualmente, surgiram no mercado diversos tipos de“puffs”, almofadões, que substituem, com maiorversatilidade, os antigos e pesados sofás confortáveis.39

Voltando aos materiais plásticos, a incorporação dopoliéster reforçado com fibra de vidro na produção nacionalé mais uma das novidades registradas em Casa & Jardim.O emprego dessa tecnologia aparece nas reportagens“Móveis de jardim”, “Poltronas novas para seu jardim” e“Móveis para você aproveitar melhor o seu verão”.40 Nas trêsmatérias, o “fiberglass” é associado aos ambientes externosem decorrência da sua alta resistência às intempéries. Osprodutos apresentados nessas reportagens são inspiradosem peças estrangeiras, entre elas a linha de cadeiras emesas conhecida como Pedestal Group, concebida pelodinamarquês Eero Saarinen em meados dos anos 1950.41

A versão “oficial” dessa linha, ou seja, aquela fabricadamediante licença, foi comercializada no Brasil pela empresaForma na variante direcionada para os interioresdomésticos.42 Sustentados por meio de pedestais cônicosque lembram a base de uma taça, os móveis de Saarinendispensavam o tradicional apoio em quatro pernas. A qualidade fluida das formas orgânicas combinada com aorigem sintética do material plástico proporcionou aoPedestal Group um aspecto “futurista”, fórmula resgatadapela cultura pop na construção de representações ligadasao imaginário da “era espacial”.43

A temática “futurista” inspirou uma sala de jantar daMobilínea, veiculada na revista no mês de julho de 1970.44

Em uma reportagem sobre essa empresa, Casa & Jardimdestinou uma página inteira para exibir tal ambiente (Figura3). Na imagem, os móveis foram distribuídos em um espaçocom piso e paredes brancos. Um carrinho de apoio divide oprimeiro plano com dois vasos de vidro colocados sobre ochão. Um pouco mais atrás estão dispostas uma mesa equatro cadeiras. As estruturas dos móveis são de açocromado. Vale observar a configuração dos pés da mesa:feitos por meio de arcos, eles remetem aos pedestais deSaarinen, embora o apoio em quatro pontos seja mantido.

38 SPARKE, 1992.

39 “Essa é a bossa dos almofa-dões”. Casa & Jardim, v. 215, dez.1972, p. 4, aspas no original.

40 Ver: “Móveis de jardim”. Casa &Jardim, v. 192, jan. 1971, p. 58-61; “Poltronas novas para seujardim”. Casa & Jardim, v. 252,jan. 1976, p. 68-69; “Móveis paravocê aproveitar melhor o seuverão”. Casa & Jardim, v. 253,fev. 1976, p. 86-90.41 FIELL e FIELL, 2000.

42 “C J visita Forma”. Casa &Jardim, nov. 1970, p. 33-41.

43 Lesley JACKSON, 2000.

44 “C J visita... Mobilínea”. Casa &Jardim, jul. 1970, p. 45-53.

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Os assentos e encostos das cadeiras, assim como otampo da mesa, são de poliéster reforçado com fibra devidro na cor branca. A atmosfera “fria” e “tecnológica”promovida pelas superfícies polidas é intensificada pelopredomínio do branco e pelo jogo de reflexos do cromado.Como pano de fundo, uma divisória feita em feltro preto“recortado, em rebuscado desenho oriental”, serve decontraponto. O texto da revista tece o seguinte comentáriosobre o ambiente: “estamos vivendo na época do plástico,da eletrônica e da comunicação visual. [...] O conjunto,simples, valoriza formas e texturas ultracontemporâneas: açocromado rígido nas estruturas e plástico brilhante nassuperfícies planas”.45

FIGURA 3 – Sala de jantar “futurista” da Mobilínea. Fotografiade Ramon Chust. Casa & Jardim, julho de 1970, p. 47. Acervode periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.

45 “C J visita... Mobilínea”. Casa& Jardim, jul. 1970, p. 46.

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Aqui também temos a presença da figura feminina.Ela é jovem e veste um conjunto branco de calça e blusa,justo ao corpo. Mesmo sentada em uma cadeiraconvencional, sua postura corporal remete a certadisplicência. Ela apoia os cotovelos na mesa e, dobrando otronco, inclina as pernas para o lado. Em uma outra imagemdo mesmo ambiente, localizada na página anterior darevista, a modelo aparece em uma pose ainda maisnegligente. Desta vez ela tem a cabeça deitada sobre obraço, que, por sua vez, é sustentado pelo tampo da mesa.Seu corpo escorregou pelo assento, no sentido lateral dacadeira, como se ela quisesse se recostar. As pernas, meioesticadas, estão cruzadas e os pés, descalços.

FIGURA 4 – Anúncio publicitário da Mobilínea. Casa &Jardim, julho de 1970, p. 27. Acervo de periódicos daBiblioteca Pública do Paraná.

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Esse ambiente “futurista” foi o cenário escolhido parailustrar o anúncio publicitário da Mobilínea, veiculado duranteaquele ano (Figura 4). Nessa variante, a imagem fotográficaaparece recortada em um círculo, formato associado naépoca ao imaginário espacial, pois lembrava os capacetesdos trajes de astronautas. O corpo “amolecido” e os pésdescalços da modelo estão em destaque. Séria, ela olhapara as/os leitoras/es com ar insolente. A mensagem textualdesenha um semicírculo sobreposto ao da imagem,começando em letras pequenas, que vão aumentando acada linha. Tal recurso gráfico insinua a sensação deprofundidade e remete às legendas de filmes de ficçãocientífica. Com bastante ironia, o texto apresenta umpanorama de concepções que se pretendem arrojadas, entreas quais estão algumas alusões à emancipação feminina:

Você que acredita que a terra é redonda, que acasinha no fundo do quintal não é a última palavraem higiene, que eletricidade não é bruxaria, que amáquina voadora é uma realidade, você que deixoude usar espartilho e ceroulas, que não acha imoralmulher sair sozinha na rua, que não faz questão deusar chapéu, que sabe que a dignidade do móvelnão está na pata do leão, que maillot sem saiote nãoé indecente, que arte não precisa ser acadêmica,que o phonógrafo está superado, que Cadillac “rabode peixe” não representa o máximo em elegância,que decoração não se faz com aparador “pé depalito”, que abandonou o sapato pontudo de saltinhofino, entre na década de 70 com móveis de açocromado e poliéster da Mobilínea.46

O “você” utilizado na mensagem publicitária oscilaentre a imagem da moça e a pessoa que lê. Dessa maneira,o discurso evoca a cumplicidade do público com a posiçãode sujeito construída para as mulheres no anúncio, a saber,ousada, livre e informal. Na reportagem sobre a Mobilíneaainda temos mais uma figura feminina nos mesmos moldes,associada com outro ambiente inspirado na linguagempop. Ela acompanha a proposta direcionada para a salade estar, onde foram reunidos vários atributos do vocabuláriopop. Para começar, o ambiente retratado tem como mote aflexibilidade no uso mediante o envolvimento das pessoasna configuração do espaço. Os assentos utilizados comosofás são formados por módulos de espuma recobertos comcapas de tecido colorido. Também está presente a ideia dolúdico e da interferência na percepção do entorno, mediantea aplicação de espelhos no teto e de pinturas decorativasno chão e nas paredes (Figura 5). Vejamos o texto:

Na hora do descanso, precisamos, para nos liberar, deum espaço diferente. Os recursos usados para mudar

46 “Mobilínea”. Casa & Jardim, jul.1970, p. 27.

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esta sala – espelhos, desenhos no chão que sobempelas paredes, transformaram o cubo de morar, numasala de viver. As medidas reais se perdem, deixandolugar ao multidimensional. A iluminação, de baixo paracima, também ajuda a criar um clima todo diferente,tão útil para nos desligarmos da racional vida urbana.As almofadas das poltronas se encaixam na estruturade aço, como peças de um brinquedo. Tudo aquipede participação. Pode entrar no jogo e relaxar.47

Conforme podemos conferir na imagem, relaxar nessecontexto significa deitar o corpo no assento de espuma,colocar as pernas para cima e ter os pés descalços. Nalegenda, o seguinte comentário: “não se sabe muito bemonde pára a realidade e começa a ilusão, mas tudocontinua prático”.48 As capas das espumas são removíveise as pinturas do piso e das paredes plastificadas, portantolaváveis. O texto que abre a matéria salienta o caráterinovador da Mobilínea, que, na opinião da revista, “nuncafoi tão jovem, tão atual, tão moderna”.49

47 “C J visita... Mobilínea”. Casa &Jardim, jul. 1970, p. 50.

48 “C J visita... Mobilínea”. Casa &Jardim, jul. 1970, p. 50.

49 “C J visita... Mobilínea”. Casa &Jardim, jul. 1970, p. 45.

FIGURA 5 – Proposta pop para sala de estar, da Mobilínea.Fotografia de Ramon Chust. Casa & Jardim, julho de 1970,p. 51. Acervo de periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.

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As técnicas corporais do As técnicas corporais do As técnicas corporais do As técnicas corporais do As técnicas corporais do poppoppoppoppop

De acordo com os exemplos elencados, a orientaçãopop deu suporte para novas práticas de consumo queenvolveram a necessidade de técnicas corporais diferencia-das daquelas mediadas pelo mobiliário tradicional. Vamospensar a questão das técnicas do corpo a partir daabordagem de Jean Pierre Warnier.50 Dando continuidade àherança de Marcel Mauss – autor que inaugurou os estudosantropológicos sobre essa questão ainda nos anos 193051 –Warnier entende as condutas corporais como práticasprofundamente articuladas à cultura material, esta últimadefinida como o conjunto de artefatos, sejam elesmanufaturados ou não, que integram a dimensão materialda vida humana. Conforme explica Marcelo Rede, paraWarnier,

não apenas a conduta corporal se estabelece emfunção de parâmetros materiais (que lhe oferecemas possibilidades e os limites), mas também,aprofundando ainda mais o postulado, pode-se dizerque o universo material é parte constitutiva da própriacorporalidade, que o corpo se constrói pelamaterialidade que lhe é exterior a princípio. Mais doque uma prótese do corpo – que lhe supriria, então,uma lacuna –, a cultura material participa de umasíntese que, longe de ser estática, implica interaçãodinâmica entre os elementos em jogo: corpo, objeto,espaço.52

A ideia de síntese ou esquema corporal está relaciona-da à percepção que os sujeitos têm acerca de si mesmos, desuas condutas motoras e das posições que ocupam noespaço. Tais esquemas mobilizam os sentidos na articulaçãoentre o próprio corpo e a cultura material. Eles são resultantesde aprendizagens mantidas ao longo da vida e extrapolamaspectos de ordem biológica, na medida em que sãoadquiridos e atualizados no intercurso social. Rede explicaque Warnier enfatiza a participação ativa dos sujeitos naoperacionalização de diferentes níveis de experiência, asaber, o biológico, o individual e o social. No centro dos seusinteresses, “está o modo singularizado pelo qual o sujeito seapropria das diversas variantes e reproduz, à sua maneira, aexistência”.53 Nesse sentido, Warnier entende as condutasmotoras mediadas pela cultura material como modalidadesde subjetivação, ou seja, como um locus propício para aprodução de identidades e diferenças individuais. Logo, osesquemas corporais também constituem sistemas designificados mediante os quais as posturas das pessoaspodem ser classificadas como adequadas ou não paradeterminados contextos. Assim como em outros fenômenos de

50 WARNIER, 1999

51 MAUSS, 2003.

52 REDE, 2001, p. 283-284.

53 REDE, 2001, p. 284.

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natureza simbólica, tais leituras e julgamentos passam pelocrivo dos valores que permeiam as relações de classe, raça/etnia, geração e gênero. Referindo-se às narrativas acercadas atitudes corporais nas representações do gênero, VâniaCarneiro de Carvalho afirma:

Os recursos retóricos, imagéticos e cenográficosmobilizados para a descrição de uma personagemliterária ou de um cenário ficcional, o uso de umajanela, o ritual de comer ou mesmo a necessidadede sentar, deitar, recostar, relaxar não são açõessexualmente neutras. […] Isso significa dizer que ocaráter performático da vida social é indissociável daprodução de sentidos e valores.54

A autora discute as implicações marcadas pelogênero do ato de sentar no Brasil do início do século XX. Elaargumenta que a introdução das cadeiras nos interioresdomésticos das classes abastadas exigiu das mulheres,anteriormente acostumadas a usar o chão ou as redes, ocondicionamento do corpo para o sentar ereto. A disciplinaexigida para manter a coluna tesa, os joelhos unidos e asplantas dos pés apoiadas sobre o chão conotava distinçãoe elegância feminina. A diferença quanto ao sentarmasculino estava no grau de relaxamento mais elevadopermitido aos homens, devido à sua associação com afigura do provedor que recorre à casa como lugar dedescanso. Para exemplificar tais diferenças, Carvalhocomenta a ilustração de um anúncio publicitário publicadono jornal O Estado de São Paulo em maio de 1919:

A imagem de masculinidade reforça-se pela posturacom que se apresenta o modelo de pijamas. Ele sesenta de forma pouco convencional – uma das pernaspende sobre o braço da poltrona, a outra encontra-se estirada, o tronco recostado reclina-se para o ladodeixando cair, solto, um dos braços pela lateral dapoltrona. Nem mesmo dentro de casa, longe dosolhares estranhos, deveria a mulher apresentar-sedessa maneira. O que para o homem era relaxamentoe informalidade, para a mulher era desleixo.55

A autora conclui suas reflexões sobre a imagemargumentado que as mulheres ainda teriam de esperar muitoaté que pudessem assumir uma postura corporal desse tipo.Pois em Casa & Jardim esse tempo chegou com a entradada década de 1970. As técnicas do corpo moduladas pelopop estavam alinhadas com a postura iconoclasta dajuventude da época. A imagem das mulheres permaneciacolada ao espaço doméstico, porém em posturas relaxadase pés descalços. Ousadas, elas ao mesmo tempo refletiam emodelavam padrões de conduta associados à liberalização

54 CARVALHO, 2008, p. 181.

55 CARVALHO, 2008, p. 213.

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dos costumes desencadeada ainda nos anos 1960. Duranteo período em que o corpo adquiriu estatuto político, sobretudopara as mulheres, os ambientes pop serviram como metáforasda libertação do corpo no ambiente doméstico.

Conforme já comentamos anteriormente, o movimentofeminista foi uma das mobilizações sociais que informaram arevolução comportamental.56 Além das preocupações coma falta de representatividade feminina nas áreas do poder edas reivindicações não apenas pelo acesso ao trabalhoremunerado, mas também pela paridade quanto àsoportunidades e salários disponíveis aos homens, aschamadas “políticas do corpo” ocuparam um lugar centralnas agendas feministas dos anos 1960 e 70. Yasmine Ergasexplica que as políticas do corpo abarcavam uma série dequestões, cujas mais salientes nos países ocidentais foram ado direito ao aborto e a do combate à violência sexual,inclusive aquela praticada no próprio ambiente doméstico.57

Além disso, tais políticas também contemplavam interessescompartilhados com outros movimentos de jovens da época,a saber, a liberação do desejo e o direito ao prazer sexual. Deacordo com Moema Toscano e Mirian Goldenberg,

os anos 1960 caracterizam-se por uma verdadeiraexplosão da sexualidade. Perder a virgindade o maiscedo possível, ter múltiplos parceiros (ou parceiras) enão reprimir qualquer desejo era a regra, agora nãoapenas para os homens, mas também para asmulheres.O feminismo teve importante peso nessa luta pelaigualdade entre homens e mulheres no campo dasexualidade. A pílula e outros métodos anticonceptivostambém foram fundamentais. Agora, como nuncaantes, o prazer sexual estava dissociado da procriação.[...] “Nosso corpo nos pertence” foi a palavra deordem.58

A temática da autonomia sobre o próprio corpo estevepresente nas discussões promovidas pelos “grupos deconsciência”. Unindo mulheres em redes de amizade esolidariedade – cada célula reunia entre 6 e 24 integrantesinteressadas em compartilhar suas experiências vividas –, ameta buscada pelas participantes estava em alcançar uma“coletividade revolucionária”. Mediante a percepção de queos problemas que afligiam as mulheres não eram de foroindividual, o processo de autoconsciência pessoal deveriaresultar em uma “consciência de grupo”, deslocando sualocalização do privado para o político.59 A defesa de que opessoal também é político servia não apenas como basepara sustentar o desejo de evitar que questões relativas àsubordinação na esfera doméstica ou à violência sexualficassem reféns dos julgamentos morais particulares, assim

56 É pertinente lembrar que asmobilizações da juventude nosanos 1960, entre elas omovimento negro, o movimentohippie e o movimento estudantil,contaram com a participação dasmulheres. As tendências e práticasdesses movimentos tiveramressonância nas organizaçõesfeministas. Inclusive, as atitudes dediscriminação sofridas pelasmulheres no interior dessesmovimentos contribuíram para aopção pelo separatismo. SegundoJoana Pedro, “foi a partir destaparticipação em diferentesmovimentos radicais que asmulheres encontraram inspiraçãopara lutas e, ao mesmo tempo,razões para afastamento”. VerPEDRO, 2008b, p. 67.57 ERGAS, 1991.

58 TOSCANO e GOLDENBERG,1992, p. 70-71.

59 PEDRO, 2008a.

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como também indicava a necessidade da reconstrução dosujeito feminino diante da sociedade. Como afirma MabelCampagnoli, o âmbito do pessoal representava tanto umprojeto quanto um espaço de luta política.60

Para Joana Maria Pedro, estava premente a buscapor uma nova “imagem de si”. As mulheres envolvidas comas lutas feministas almejavam construir uma identidadediferente daquela que lhes havia reservado a culturaandrocêntrica, no interior da qual se sentiam depreciadas.A partir da revisão de estereótipos e preconceitos, visavama forjar uma imagem de “Mulher” da qual pudessem seorgulhar.61 Almejavam ser reconhecidas como agentes desuas próprias vidas: pessoas capazes de expressar suasopiniões, de defender seus interesses específicos e degovernar seus corpos, suas sexualidades, seus desejos.

O humor, a irreverência e os comportamentostransgressores, típicos das manifestações da juventude dosanos 1960, fizeram parte das estratégias usadas paraexpressar esse desejo. Durante o ano de 1968, por exemplo,mulheres norte-americanas dramatizaram o “enterro dafeminilidade tradicional” no Cemitério Nacional de Arlington,coroaram um carneiro como “Miss América” e depositaramsutiãs, cintas e cílios postiços na “lata de lixo da liberdade”.62

Sendo assim, é preciso reconhecer a contribuição dasmulheres como parte constitutiva das transformaçõescomportamentais que informaram o design pop e foraminformadas por ele.

Também é pertinente ressaltar que as imagens dasmoças vinculadas aos artefatos e ambientes pop em Casa& Jardim, suas expressões ousadas e posturas irreverentes,mesmo que apresentadas em uma versão adaptada parao consumo de massa, certamente dialogavam com o esforçofeminista em promover novas configurações para o sujeitofeminino. No Brasil, conforme destaca Pedro, embora aarticulação das lutas feministas seja reconhecida comopertinente aos anos 1970, as discussões já vinhamacontecendo desde os anos 1960.63 Ainda no início dadécada, em 1963, a jornalista Carmem da Silva inauguroua popular coluna A Arte de Ser Mulher na revista Cláudia.Nesse espaço editorial,

Carmem respondia a cartas de leitoras que contavamsuas insatisfações com a vida sexual e afetiva,estimulando-as a enfrentar desafios, romper comrelações fracassadas, buscar um trabalho remuneradoe não mais se satisfazer com o seu papel de dona decasa, buscarem outras formas de auto-realização enão mais aceitarem o paternalismo e o machismobrasileiros.64

60 CAMPAGNOLI, 2005.

61 PEDRO, 2008a.

62 ERGAS, 1991.

63 PEDRO, 2008b, p. 62. Aqui,estamos nos referindo especifica-mente ao movimento feminista de“segunda onda” que se desenvol-veu após a Segunda GuerraMundial, dando prioridade às lutaspelo direito ao corpo, ao prazer econtra a subordinação das mulhe-res pelo poder masculino. Certa-mente essa vertente do feminismoé tributária da “primeira onda”,deflagrada ainda no século XIX ecentrada na reivindicação dedireitos políticos, sociais e econô-micos. Para uma discussão maisaprofundada, ver PEDRO, 2005,p. 77-98.64 TOSCANO e GOLDEMBERG,1992, p. 32-33.

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Assim como Carmem da Silva, outras mulheresposteriormente reconhecidas como feministas também vinhamdivulgando suas ideias. Entre elas podemos destacar RoseMarie Muraro, que em 1967 lançou o livro A mulher naconstrução do futuro, e a professora Heleieth Saffioti, que em1969 publicou o livro A mulher na sociedade de classes:mito e realidade, resultado da sua livre docência defendidaem 1967.65 Várias mulheres brasileiras que nessa épocaestavam no exterior, na maioria das vezes como refugiadasdo regime militar, seja pela militância pessoal ouacompanhando seus companheiros perseguidos peladitadura, tiveram a oportunidade de participar de grupos deconsciência na Europa ou nos Estados Unidos. Já nos anos1970, o regresso delas ao Brasil motivou a organização localdesses grupos.66 Periódicos feministas foram editados e em1974 o livro da jornalista Heloneida Studart intitulado Mulher,objeto de cama e mesa, escrito em estilo simples e direto,tornou-se rapidamente “um best-seller, atingindo mulheresde todo o País”.67

As representações do feminino ligadas ao pop sedistanciam do modelo de dona de casa tradicional, tãocombatido pelos discursos feministas. Elas não lembram, porexemplo, a imagem caracterizada por Betty Friedan como a“mística feminina”, um tipo de feminilidade construído aolongo do pós-guerra que, segundo a autora, oprimia grandeparte das mulheres norte americanas de classe média nosanos 1960: “aquela imagem da mulher completamenterealizada em seu papel de esposa do marido, mãe dos filhos,servindo às necessidades físicas do marido, das crianças,do lar”.68 No seu livro, lançado nos Estados Unidos em 1963,Friedan chegou a caracterizar o espaço doméstico como um“confortável campo de concentração”.69 Segundo AnaDuarte, a polêmica despertada pelas ideias acerca da“mística feminina” alcançou o Brasil primeiro por meio daimprensa e, em seguida, mediante a tradução do livro pelaEditora Vozes em 1971, alimentando as discussões promovidaspelas mulheres brasileiras.70 Conforme podemos observar, asatitudes das moças retratadas junto ao mobiliário pop nãoremetem nem ao trabalho doméstico, nem à vida em família.Elas usufruem do espaço doméstico para o descanso, emposes relaxadas. Além disso, aparecem sozinhas ou nacompanhia de outras mulheres, o que lhes confere uma aurade independência.

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

O ideário pop exigia novas práticas de consumo queenvolviam técnicas corporais diferenciadas daquelassustentadas pelo mobiliário modernista. Alinhadas com a

70 Na ocasião do lançamento dolivro A mística feminina, BettyFriedan veio ao Brasil, recebendogrande atenção da mídia. Ver AnaRita Fonteles DUARTE, 2006.

65 PEDRO, 2008b.

66 PEDRO, 2008b.

67 TOSCANO e GOLDEMBERG,1992, p. 32.

68 FRIEDAN, 1983, p. 30.

69 Apud PEDRO, 2008b.

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NOVAS PRÁTICAS CORPORAIS NO ESPAÇO DOMÉSTICO

postura iconoclasta da juventude da época, as técnicas docorpo moduladas pelo pop privilegiavam o corpo relaxadoe descontraído. Podemos ver exemplos desses padrõescorporais nas imagens que ilustram anúncios publicitários ereportagens destinadas para a divulgação de móveisproduzidos por empresas brasileiras interessadas em explorara linguagem pop. Nessas imagens, mulheres jovens sãoretratadas em poses relaxadas e, para ressaltar as ideias deconforto e informalidade, apresentam os pés descalços.

Assim como nos anúncios publicitários inspirados nosdiscursos feministas veiculados em Casa & Jardim durante omesmo período, o comportamento feminino de vanguardatambém serviu de referência na construção das imagens dasmulheres que aparecem na revista usufruindo dos móveis eambientes pop. Tais imagens engendram um tipo defeminilidade característica dos anos 1970, relacionada composturas corporais transgressoras que certamentedialogavam, ainda que em uma versão adaptada para oconsumo de massa, com o esforço feminista em promoveralternativas de identificação para o sujeito feminino na vidasocial. Na época em que, para a juventude, o corpo tornou-se um veículo de transgressão e adquiriu status decontestação política, os móveis e ambientes pop serviramcomo veículos materiais e simbólicos para a libertação docorpo, notadamente do corpo feminino, no espaço doméstico.

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[Recebido em 1º de junho de 2010 e aceito para publicação em 16 de dezembro de 2010]

New Corporal Practices within Dwelling Spaces: Pop Domesticity in New Corporal Practices within Dwelling Spaces: Pop Domesticity in New Corporal Practices within Dwelling Spaces: Pop Domesticity in New Corporal Practices within Dwelling Spaces: Pop Domesticity in New Corporal Practices within Dwelling Spaces: Pop Domesticity in Casa & JardimCasa & JardimCasa & JardimCasa & JardimCasa & JardimMagazine during the 1960-70sMagazine during the 1960-70sMagazine during the 1960-70sMagazine during the 1960-70sMagazine during the 1960-70sAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: In this article, we bring to the fore some changes of women corporal practices that wehave identified through the analysis of models of domesticity we found on issues of the popularmagazine Casa & Jardim, printed from the end of the 1960s to the mid 1970s. We want to emphasizethe appropriation of Pop language in the decoration of Brazilian domestic interiors as one of thefacets of youth culture, which diffused internationally during the 1960s. Aligned with feminist ideas,revolutions of behaviors, and iconoclast attitudes of the youth of the time, Pop spaces haveembodied new forms of mediation among people and artifacts and also have contributed to thetransformation of corporal schemata, indeed associated with the representations of femininity.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Pop Design; Domestic Interiors; Casa & Jardim Magazine; Representations ofFemininities; Gender Relations.