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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X DOMINAÇÃO MASCULINA, MEANDROS ETÍLICOS E VIAS DE FATO: RETRATOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CAMPO Alexandra Lopes da Costa 1 “Ele é tão bom, mas quando bebe...Resumo: Em busca do controle populacional a medicina higienista do século XIX trouxe a necessidade de uma intervenção profilática no combate aos vícios, entre os quais, a alcoolização. Esse discurso foi reforçado pelas campanhas antialcoólicas que despontaram no Brasil na década de 1920. Constrói-se a ideia de que o álcool incapacita o homem para o trabalho levando também à explosão dos instintos mais bárbaros e irracionais. A loucura alcoólica foi utilizada para absolver muitos crimes de violência contra a mulher sob a alegação de que os homens não estavam conscientes dos atos praticados. Este artigo discute o fenômeno da violência contra as mulheres no assentamento rural Bebedouro, no estado do Mato Grosso do Sul, analisando a influência do cenário sócio-cultural na formação das relações entre os sexos, consumo do álcool por homens e associações com atos de violência de gênero. A proposta traz a tona narrativas de mulheres e homens do campo que evidenciam traços dos discursos herdados das antigas campanhas antialcoólicas e dos dispositivos culturais e jurídicos de legítima defesa da honra. Tais discursos atualizam a dominação masculina no controle da liberdade das mulheres e justificam a violência de gênero, sobretudo, sob efeito da embriaguez. O trabalho evidencia também as dificuldades das assentadas em obter informações sobre a Lei Maria da Penha (LMP) e de acesso a Rede de Atenção à Mulher nesse espaço distante do centro urbano e dos órgãos de proteção e defesa de direitos. Palavras-chave: dominação masculina, violência contra a mulher, consumo do álcool, assentamento rural, Lei Maria da Penha. Em muitos discursos emitidos pela opinião pública o consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas aparecem relacionados a contextos de agressão urbana, violência doméstica, criminalidade e acidentes. A violência doméstica e familiar contra as mulheres, assim, quando cometida após o uso do álcool e de outras substâncias psicoativas (SPA’s) pelo parceiro tende a ser atenuada pela sociedade que minimiza o dolo ou mesmo transfere as responsabilidades do crime à substância ingerida. O álcool é considerado uma das substâncias mais antigas que se tem conhecimento na história das civilizações. Em muitas delas não foi associado à desordem, problemas e violências. Do uso sagrado ao profano, regular ou esporádico, os preparados alcoólicos foram utilizados de maneiras diversas ao longo do tempo. Largamente apreciados nas festividades, no bojo de práticas religiosas, como veículos facilitadores da comunicação com os deuses, pela medicina ou mesmo como abortivos, sem necessariamente estarem relacionados à violência (BUCHER, 1991; CARNEIRO, 2010). 1 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados.

DOMINAÇÃO MASCULINA, MEANDROS ETÍLICOS E VIAS DE … · cães, gatos, papagaios e galinhas, bem como o corte de lenha, plantio de verduras, legumes e frutas 2 Posteriormente, o

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

DOMINAÇÃO MASCULINA, MEANDROS ETÍLICOS

E VIAS DE FATO: RETRATOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

NO CAMPO

Alexandra Lopes da Costa1

“Ele é tão bom, mas quando bebe...”

Resumo: Em busca do controle populacional a medicina higienista do século XIX trouxe a necessidade de uma

intervenção profilática no combate aos vícios, entre os quais, a alcoolização. Esse discurso foi reforçado pelas

campanhas antialcoólicas que despontaram no Brasil na década de 1920. Constrói-se a ideia de que o álcool incapacita o

homem para o trabalho levando também à explosão dos instintos mais bárbaros e irracionais. A loucura alcoólica foi

utilizada para absolver muitos crimes de violência contra a mulher sob a alegação de que os homens não estavam

conscientes dos atos praticados. Este artigo discute o fenômeno da violência contra as mulheres no assentamento rural

Bebedouro, no estado do Mato Grosso do Sul, analisando a influência do cenário sócio-cultural na formação das

relações entre os sexos, consumo do álcool por homens e associações com atos de violência de gênero. A proposta traz

a tona narrativas de mulheres e homens do campo que evidenciam traços dos discursos herdados das antigas campanhas

antialcoólicas e dos dispositivos culturais e jurídicos de legítima defesa da honra. Tais discursos atualizam a dominação

masculina no controle da liberdade das mulheres e justificam a violência de gênero, sobretudo, sob efeito da

embriaguez. O trabalho evidencia também as dificuldades das assentadas em obter informações sobre a Lei Maria da

Penha (LMP) e de acesso a Rede de Atenção à Mulher nesse espaço distante do centro urbano e dos órgãos de proteção

e defesa de direitos.

Palavras-chave: dominação masculina, violência contra a mulher, consumo do álcool, assentamento rural, Lei Maria

da Penha.

Em muitos discursos emitidos pela opinião pública o consumo de bebidas alcoólicas e outras

drogas aparecem relacionados a contextos de agressão urbana, violência doméstica, criminalidade e

acidentes. A violência doméstica e familiar contra as mulheres, assim, quando cometida após o uso

do álcool e de outras substâncias psicoativas (SPA’s) pelo parceiro tende a ser atenuada pela

sociedade que minimiza o dolo ou mesmo transfere as responsabilidades do crime à substância

ingerida.

O álcool é considerado uma das substâncias mais antigas que se tem conhecimento na

história das civilizações. Em muitas delas não foi associado à desordem, problemas e violências. Do

uso sagrado ao profano, regular ou esporádico, os preparados alcoólicos foram utilizados de

maneiras diversas ao longo do tempo. Largamente apreciados nas festividades, no bojo de práticas

religiosas, como veículos facilitadores da comunicação com os deuses, pela medicina ou mesmo

como abortivos, sem necessariamente estarem relacionados à violência (BUCHER, 1991;

CARNEIRO, 2010).

1 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e mestre em História pela

Universidade Federal da Grande Dourados.

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Desse modo, o consumo problemático do álcool e a doença do alcoolismo foram

desconhecidos em diversas sociedades, mesmo naquelas em que a embriaguez era um costume

frequente e apreciado. Culturas distintas estabeleceram diversos padrões institucionalizados do

consumo de bebidas alcoólicas colocando em relevo os modos de produção, significados e

circunstâncias apropriadas ou não à ação social de alcoolização fornecendo scripts de uso para

diferentes ocasiões (NEVES, 2004).

Na Europa do século XIX, por exemplo, a medicina higienista primou pelo controle

populacional por meio de intervenções profiláticas de combate aos vícios, dentre os quais, a

alcoolização. Esse discurso higienista se difundiu intensamente no Brasil a partir dos anos 1920

reforçados pelas campanhas antialcoólicas da época que tinham como público alvo a população

masculina (MATOS, 2001).

Tais campanhas disseminavam a idéia de que o álcool incapacita os homens para o trabalho

e incita a explosão dos instintos mais bárbaros, incontroláveis e irracionais. A loucura alcoólica foi,

inclusive, utilizada como argumento empregado na absolvição de muitos homens em diversos

crimes de violência contra as mulheres sob a alegação de não estarem conscientes de seus próprios

atos (MATOS, 2001).

Diante dessas ponderações, cabe o questionamento: afinal por que muitas mulheres e a

sociedade tendem a depositar nas substâncias psicoativas, especialmente nas bebidas alcoólicas, os

motivos da agressão em diversos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres?

O presente artigo trata o fenômeno da violência contra as mulheres considerando a

influência do cenário sócio-cultural na formação das relações de gênero, no consumo do álcool por

homens e associações com atos de violência contra a mulher no assentamento de reforma agrária

Bebedouro, situado na zona rural do município de Nova Alvorada do Sul, no estado do Mato

Grosso do Sul.

Essa proposta traz do campo as narrativas de mulheres e homens que evidenciam traços de

discursos herdados das campanhas antialcoólicas e dos dispositivos culturais e jurídicos de legítima

defesa da honra que redesenham a dominação masculina no controle da liberdade das mulheres e

justificam a violência de gênero, sobretudo, sob efeito da embriaguez.

Nas próximas páginas, busco contextualizar o cenário do assentamento Bebedouro

evidenciando a divisão sexual do trabalho e características ligadas à socialização do gênero

feminino e masculino. Posteriormente, exploro questões relacionadas ao consumo do álcool por

homens no bojo de festas e bares e, por fim, analiso o fenômeno da violência contra a mulher

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associada ao consumo das bebidas alcoólicas visibilizando suas narrativas que reproduzem

elementos herdados das antigas campanhas antialcoólicas, além de destacar aspectos da dominação

masculina impregnados nas relações sociais nesse assentamento rural distante das cidades e das

políticas públicas de promoção e defesa das mulheres.

Tá na roça: a vida no Bebedouro

O Assentamento rural Bebedouro foi criado em 2004 e está situado a 30 quilômetros do

município de Nova Alvorada do Sul. Mas as primeiras ocupações da Fazenda Bebedouro ocorreram

no início dos anos 2000. Trata-se de uma área de 1.456 hectares com 103 famílias organizadas pela

Fetagri/MS (Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Mato Grosso do Sul), a maioria

oriunda de Nova Alvorada, Glória de Dourados, Fátima do Sul, Douradina, Nova Andradina e

outros municípios do interior do Mato Grosso do Sul. A população é superior a 400 pessoas que

sofrem com a precariedade de políticas públicas, limitação de recursos financeiros e acesso restrito

aos incentivos para produção e a outras formas de geração de emprego e renda.

Nesse cenário, o emprego na cidade, nas usinas ou nas fazendas vizinhas se tornou uma

estratégia de sobrevivência necessária para a permanência na terra. Muitos assentados, homens e

mulheres, trabalhavam ou já haviam trabalhado no corte braçal nas plantações de cana das usinas de

açúcar e álcool da região.

Em relação aos lotes dos assentados, são destinados 9,8 hectares de terra para cada família

(já excluídos a quantia determinada por lei à reserva ambiental). A geografia dos lotes se divide em

dois espaços, uma porção de três hectares é reservada à construção das moradias e 6,8 ha é

destinado à produção grupal numa grande extensão de terra afastada da região das casas, que é

definida pelo governo como área societária de trabalho. Esse espaço coletivo contém a soma dos 6,8

ha de terra de cada família. No entanto, a área societária de trabalho ao invés de aproximar tem

provocado uma série de desavenças e discórdias entre a população assentada por possuírem desejos,

experiências e habilidades muito distintas sobre o manejo e produção no campo2.

Cabe às mulheres o trabalho doméstico, uma atividade que não consiste apenas em cuidar e

educar os filhos, limpar a residência, lavar e passar roupas e preparar a comida. Elas cuidam de

cães, gatos, papagaios e galinhas, bem como o corte de lenha, plantio de verduras, legumes e frutas

2 Posteriormente, o lote coletivo foi dividido em cinco porções de terra, mas as crises ainda existem mesmo

com a substituição do modo original que no início era apenas uma grande área para a produção conjunta de

120 famílias.

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nos arredores da casa e colheita destes alimentos para o consumo da família. Tratam também do

gado, da entrega de leite, da confecção e o comércio de doces, no entanto, não gozam do status de

trabalhadoras rurais, em afinidade com os achados de outros estudos desenvolvidos em

assentamentos (FARIAS, 2008; MENEGAT, 2008; SOUZA, 2009).

Sobre esse assunto a pesquisa “Nosso trabalho tem valor! Mulher e Agricultura Familiar”,

desenvolvida em 2004 pelo SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, sediado no Recife,

reflete que as atividades atribuídas às mulheres pelos mecanismos de socialização, quando

transformadas em trabalho, são pouco reconhecidas e valorizadas socialmente. Deste modo, as

trabalhadoras rurais ao realizarem as atividades em um espaço de trabalho pouco delimitado entre

as funções domésticas e a lida na agricultura e criação de animais, tendem a sofrer invisibilidade

(SILVA; ÁVILA; FERREIRA, 2005).

Ou seja, as atividades na agricultura ao se confundirem com as obrigações ‘naturais’ do sexo

feminino são desvalorizadas e concebidas mais como ajuda do que trabalho. Essas características

geram ambiguidade quanto ao entendimento do trabalho feminino na agricultura familiar e revelam

faces de um sistema mais abrangente de valores e representações reprodutores das desigualdades de

gênero, como as idéias de complementaridade e reciprocidade entre os gêneros determinantes das

qualidades do que é ‘de mulher’ e ‘de homem’, que delimitam o universo feminino do masculino.

Assim, mesmo atividades executadas fora da designação própria atribuída ao sexo feminino, como

o trato do gado, por ocorrerem entrelaçadas às funções domésticas, são tidas como obrigações inatas

das mulheres e concebidas como auxílio (SILVA; ÁVILA, FERREIRA, 2005).

Enquanto as mulheres permanecem circunscritas ao espaço privado no assentamento, a

população masculina se dirige diariamente ao lote coletivo de trabalho e a outros serviços nas

fazendas da redondeza convivendo com outros homens e longe do seio familiar, ou seja, dos três

hectares que formam o pedaço de terra onde foram construídas as moradias.

Existem outros locais no Bebedouro onde a presença masculina é frequente e

preponderante: dois bares que conjugam uma espécie de mercearia com a venda de bebidas

alcoólicas, situados nas duas extremidades da área do assentamento, que funcionam anexados à

casa dos proprietários. Neste ambientes aparentemente familiares, a presença feminina é

praticamente limitada à compra de itens alimentícios e para o lar.

Segundo Grossi (2004) o trabalho nas sociedades camponesas é marcadamente segmentado

por relações de gênero tradicionais com a divisão de tarefas e papéis em femininos e masculinos.

Neste contexto, o aprendizado da divisão sexual do trabalho é transmitido pelas mulheres às

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meninas e aos meninos pelos homens, especialmente pais, mães e avós, que devem ensinar as

atividades apropriadas a cada sexo. A educação diferenciada dos filhos pode ser notada no relato da

assentada Luíza, como se pode observar neste trecho:

“A menina tem que cuidar mais, porque é mulher. Agora, filho homem tem que

ensinar a trabalhar. Não colocar para trabalhar, mas ensinar. Aqui em casa os meus

a gente ensina, tenho dois filhos homens e três mulheres. As meninas ficam em

casa, a gente ensina serviço de casa, limpar, fazer comida e os meninos serviço

fora. Então cada um de um jeito” (Luíza, Fev. 2012).

É através desse aprendizado e da observação do cotidiano sobre o poder da autoridade

varonil no seio da família, nas ideologias repassadas na escola, igreja, relações na comunidade e no

contexto sócio-cultural abrangente que os meninos aprendem a considerar o trabalho do homem

mais valorizado e importante se comparado ao feminino. No Bebedouro, as filhas são tratadas e

vigiadas pelos pais e também pelas mães que introjetaram o discurso masculino de forma diferente

dos filhos, sendo proibidas de namorar e sair de casa à noite.

Em “Senhores de si: uma interpretação antropológica das masculinidades”, Vale de

Almeida (2005) discute a construção antropológica das masculinidades na aldeia de Pardais, situada

no Alentejo português, desvelando as relações de gênero no vilarejo. Em Pardais, a rotina das mães

era o trabalho doméstico na própria casa ou em serviços sazonais dirigidos por homens.

No bojo dessa configuração até mesmo as mulheres que trabalhavam fora costumavam

permanecer em casa no tempo livre, saindo apenas para visitas aos parentes e compras, enquanto os

pais se ausentavam a maior parte do dia aparecendo no lar muito pontualmente.

Os homens possuíam uma rotina no espaço público. Eles saiam cedo de casa para o trabalho,

retornavam na hora do almoço e em seguida dirigiam-se novamente ao serviço, regressando ao lar

apenas no fim de tarde. Entretanto, após o asseio e o jantar era habitual uma escapada em direção

aos cafés.

Desse modo, ao observarem o movimento dos pais as crianças e adolescentes do sexo

masculino ensaiam as primeiras performances de saída da casa, um espaço fortemente feminilizado,

salienta Vale de Almeida (2005). Aos meninos é permitido circular com maior liberdade na

vizinhança, o que facilita o estabelecimento de relações com outras crianças do mesmo sexo e

brincadeiras no espaço público. Ao contrário das meninas que aprendem a co-dominar o ambiente

doméstico, brincando em espaços circunscritos a casa e saindo acompanhadas das mães.

Ainda que a interseccção entre os mundos do menino e da menina aconteçam de várias

maneiras no cotidiano do Bebedouro, identifica-se um padrão no qual as atividades domésticas são

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destinadas a elas, que se espelham no comportamento da mãe, aprendem a agir com passividade e

realizar as tarefas da casa carentes de visibilidade e remuneração. A conduta masculina mais ativa e

autoritária, as rotineiras saídas do pai para o labor e o espaço dos bares fornecem o exemplo do

modelo a ser seguido pelo menino.

Festas e bares: lazer, tensão, tônicos e sociabilidades

No Bebedouro o consumo habitual de bebidas alcoólicas é um costume tipicamente

masculino que ocorre nos bares ou festas. Isso não significa que as mulheres não possam beber

ocasionalmente nas festividades e em outras comemorações sociais, mas seguindo a etiqueta do

comedimento e discrição.

Apesar das festas proporcionarem um momento de descontração e diversão aos assentados,

também é palco para que antigos conflitos e rusgas sejam acertados, diferente do ambiente dos

bares. Para diversos moradores o consumo exacerbado de bebidas alcoólicas nas festividades

desperta a agressão masculina e incentiva a violência.

Muitas narrativas evocaram os problemas existentes na área societária, sobretudo sobre a

insegurança de suas posses ali, problemas com os animais da criação, e o ciúme de esposas e filhas

como fenômenos correlatos as agressões. Rosa, por exemplo, considera que o problema da violência

é deflagrado mais pela ignorância do que pelo álcool. “O maior problema não é por causa da

bebida, é a ignorância mesmo. É rolo, vaca que foi pro pasto do vizinho [no lote coletivo], esse tipo

de coisa... Aí um briga por causa da porteira, outro briga por outra coisa”.

A falta de cortesia e tolerância masculina após a ingestão de bebidas alcoólicas é um dos

aspectos apontados por Valentim para a violência. “Diversão aqui sai uma, duas e daí acaba [...] o

povo acaba por causa das brigas [...] Há muita briga por causa da bebida. Bebem e tudo acham

ruim, não conseguem tolerar os outros”. E Antônio explica, “as brigas são dos homens, mulher não

briga em festa, a maioria das brigas é por causa da cerveja, da cachaça mesmo. Essa última foi

porque um olhou a mulher do outro.”.

Socorro é outra moradora do Bebedouro que fala da violência masculina sob a ingestão do

álcool e relembra o episódio do esfaqueamento de um dos assentados durante uma festa. Ela afirma

que a maioria das brigas envolve apenas os homens e aponta que a bebida e uma certa dose de

ciúmes são estopins para briga “porque [nas festas] começa tudo bem e depois pro final começa

aquela ‘brigaiada’ danada. E aí já puxam faca um pro outro”. Ela, assim como outros

entrevistados, afirma que as mulheres não frequentam os bares.

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Diante dos casos expostos pelos moradores, pode se notar que a violência no ambiente das

festas acontece motivada pelo ciúme e tentativas de controle sobre as mulheres, tal como expressa a

narrativa de Otávio:

“A violência contra a mulher geralmente acontece por ciúme. Começa na festa. A

menina moça começa a namorar com um e com outro. Que é o que ‘nós fala’ que a

menina mulher namora com o sapo e não sabe qual é o macho e depois sai porrada.

E o casal é do mesmo jeito, a mulher começou a frequentar sua casa, de manhã,

meio dia, a tarde, aí já começa as polêmicas e sai as porradas” (Otávio, Fev. 2012).

Na visão destes homens, a infidelidade masculina é natural e, portanto, eles devem ser rivais

quando qualquer outro homem está próximo de algum familiar do sexo feminino. São receios e

inseguranças diante da possibilidade da mulher ser seduzida ou trair o marido. As brigas também

são demonstrações do homem, o chefe de família, de defesa da honra do sobrenome, da sua mulher

e da sua filha de possíveis tentativas de sedução nos espaços com outros homens.

Ser homem é portar a honra do homem, diz Machado (2001), que pontua, no universo do

código relacional, a honra de um homem não depende apenas de sua reputação, mas da honestidade

e fidelidade da esposa e a respeitabilidade de todas as mulheres de seu grupo de parentesco, como

filhas e irmãs. Assim, defender a honra de ‘suas mulheres’ contra os homens que se aproximam

delas é uma conduta que garante o domínio masculino sobre o sexo feminino e a preservação da

honra masculina.

Os problemas, rixas e desavenças ocorridas pelas contendas na área societária de produção

são outros elementos que aparecem nas narrativas como estopim para as brigas masculinas sob o

consumo do álcool. Em muitos casos, os antigos desafetos e desaforos mal resolvidos parecem

aflorar com a ingestão de bebidas alcoólicas, encorajando o ânimo mais exaltado, insuflando os

sentimentos de valentia, audácia, coragem e invulnerabilidade tão relacionados ao gênero

masculino.

Nesse cenário incomum, pois são poucas ocasiões festivas na região, acirram-se as relações

de poder e competição entre os próprios homens. Tais questões levam a crer que o consumo das

bebidas etílicas funciona como um lubrificante social que pode estreitar as relações e as distâncias,

sendo elas amistosas ou não. Adicionalmente, existe também a influência de estruturas pré-

construídas que produzem significados, parametrizam posturas e padrões de comportamento

masculino relacionados às bebidas alcoólicas.

Para Minayo e Deslandes (1998), a violência que ocorre sob o efeito de SPA’s contém

particularidades que envolvem diversos aspectos, subjetivos e contextualizados. Isto significa que

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há mais chances de ocorrer agressões em alguns lugares e situações, sob normas específicas e visões

de mundo que são retroalimentadas por grupos e indivíduos. Um exemplo dessa situação pode ser

constatado nas diferentes maneiras de beber e se comportar nas festas e bares do Bebedouro3.

Nos bares do assentamento, os homens estabelecem formas de sociabilidade e solidariedade,

dramatizam sofrimentos, compartilham experiências, trocam favores, fecham acordos, realizam

negócios e atualizam padrões de masculinidades por meio de performances do corpo, disputas de

jogos e conversas sobre o dia-a-dia, as mulheres, futebol e pescarias. A ingestão de bebidas deve ser

feita entre pares e nunca sozinho, sendo a embriaguez e a perda do controle sobre o beber atos

reprovados pelo grupo, pois incapacitam o homem para o cumprimento de suas responsabilidades

sociais e na família. Essas normas funcionam como um controle social informal a balizar a

utilização adequada do álcool pela freguesia dos bares. Embora o consumo desregrado e associado a

possíveis problemáticas (como a violência contra as mulheres) também exista, não constitui a regra

e o padrão de alcoolização convencionado nesses estabelecimentos4.

Misoginia e violência de gênero: da sobriedade à embriaguez

O sistema de dominação masculina é evidente no Bebedouro, pois existem inúmeros casos

de machismo envolvendo tentativas de controle da mulher pelos homens, tais como as práticas de

agressão físicas mais visíveis às sutilezas da opressão de gênero. Muitos dificultam, impõe limites,

coagem ou simplesmente proíbem a livre circulação de suas esposas no espaço até mesmo para

freqüentarem a escola. Nesses casos é comum a necessidade da permissão do marido para sair de

casa.

A limitação do direito de ir vir imputada pelo sexo masculino é um espelho das hierarquias

de gênero existentes no assentamento podendo configurar uma forma de violência psicológica

contra as mulheres. Ao impactar negativamente na auto-estima, a violência psicológica, o destrato e

as desqualificações do feminino aprisionam corpos e mentes na subordinação da servidão

voluntária, corroendo a autodeterminação, patrocinando e perpetuando o suposto consentimento da

submissão das mulheres.

3 Vale lembrar que os bares estão instalados na própria residência dos proprietários, isto é, no lugar de moradia da

família, enquanto as festas são em áreas públicas e capazes de atrair um número diversificado de assentados, que

dificilmente se reuniriam massivamente por outros motivos. 4 De acordo com o INCRA, o comércio de bebidas alcoólicas é proibido nos assentamentos rurais, o que pode contribuir

para a norma de ponderação no beber entre os assentados.

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“Os casos de machismo tem muito, de desvalorização da mulher, dos xingamentos,

humilhações, de controlar a mulher. Na verdade, o pessoal da zona rural eles não

estão preparados para serem diferente. A criação que eles tiveram é bem antiga. É

daquele tipo que a mulher é submissa ao marido. Aonde vai tem que pedir

permissão, não é comunicar. Você comunicar o marido que está indo é uma coisa,

agora você pedir é outra. Aqui há casos em que a mulher precisa pedir ao marido

para pode ir a algum lugar, ir à reunião [...] Até em relação ao sexo, eles falam das

esposas. A gente nem acha mais que é violência, de tanto ouvir falar” (Rita, Jan.

2011).

Nesse cenário a violência doméstica e familiar acontece com ou sem o consumo de bebidas

alcoólicas pelos homens, como revela o depoimento de Marialva, que sofreu violência do marido

durante os quatro anos em que foi casada. “Se fosse bebida tinha a desculpa da bebida, mas ele não

bebia”. As desigualdades nas relações de gênero estão diluídas no tecido social. São oriundas da

concretude da vida material a partir das relações sociais e desde cedo introjetadas e (re)produzidas

pelas mulheres e homens através dos mecanismos de socialização. Desse modo, constroem

verdades, envernizam identidades, delineiam percepções e subjetividades, normatizam padrões de

comportamento adequados e o próprio parâmetro de moralidade para cada sexo.

No cerne da moralidade construída para o sexo feminino no Bebedouro a vida doméstica

ocupa lugar central. A idéia corrente é de existirem mulheres dignas, aquelas que são mães

dedicadas, filhas comportadas, dóceis e prestativas, exímias donas de casa, trabalhadoras,

companheiras, fiéis e obedientes aos maridos. Destoar de aspectos desse padrão para cada fase da

vida das mulheres representa um ato de desvio das feminilidades dominantes no assentamento.

Algumas entrevistadas, inclusive, acreditam que há mulheres que merecem apanhar ao

fugirem dos padrões ideais. Dona Erminda, por exemplo, informou que, além de sua filha, tinha

conhecimento de outra mulher que sofria violência. Mas segundo a entrevistada essa assentada agia

de modo inadequado, pois tinha o hábito de usar roupas decotadas, como shorts curtos que

chamavam a atenção masculina. Nas considerações da entrevistada, está implícito uma idéia que

associa a violência à conduta inapropriada da mulher, sugerindo que por um lado existem mulheres

que provocam a violência ou merecem um corretivo, de outro, aquelas inocentes, como sua filha,

que sofrem esse tipo de violência sem motivo algum. Por esse prisma, essas últimas são as

verdadeiras vítimas da violência doméstica e familiar perpetrada por homens.

Ao questionar os homens se existiam mulheres que mereciam a violência, a reação

masculina diante do gravador foi de desconfiança, receio e suspeita. Entretanto, em conversas

informais pude notar um pensamento explícito de reprovação das mulheres que não cumprem as

tarefas domésticas, não ajudam no lote e demonstram sensualidade ao exibirem partes do corpo pelo

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uso de trajes curtos e o atrevimento de discordar do marido em público. A preocupação com a

infidelidade feminina, a traição de namoradas e esposas, foi um elemento bastante presente entre as

apreensões masculinas captadas durante o trabalho de campo.

Nessa direção, Evelin relata que o ciúme do marido era constante e serviu de motivação para

que ela apanhasse pelo menos três vezes sem esboçar resistência ou revidar. “Fiquei quieta, né?!?

Como todas as outras mulheres, tenho medo. Fiquei quieta. Com medo de reagir”, diz a assentada

relembrando as bebedeiras do marido em duas ocasiões de espancamento.

Ana sofreu violência do marido durante oito anos e associa a violência ao uso do álcool,

sublinhando que seu marido virava fera toda vez que bebia. Embora em seu relato seja perceptível

que o esposo a proibia de sair de casa mesmo sem o uso do álcool e que possuía outras atitudes

enérgicas sobre ela, a entrevistada acredita que a bebida inspirava a violência. Ela também disse

conhecer casos de outras mulheres no Bebedouro que passaram por situações semelhantes à

vivenciada por ela. “A minha vizinha ela sofreu muito também. O marido dela bebia e.... só que o

marido dela nunca bateu nela [...]”, mas gastava muito dinheiro com a bebida e ficava agressivo.

“Ela ia lá em casa e contava pra mim, chorava e tal. Aí voltava mais desabafada pra casa dela”.

Socorro é outra entrevistada que expressa a mesma opinião ao considerar que o álcool

provoca a violência praticada pelo marido. “Meu marido quando bebe fica doido. Fica diferente.

Então eu penso, às vezes eu até falo: óh meu deus do céu, eu só queria que viesse pessoa aqui e

impedisse de beber no bar, nos botecos daqui e de vender bebida alcoólica”.

Favorável ao veto às bebidas, pois o consumo exagerado já atingiu o genro e a filha,

Ermelinda sofre pela filha agredida pelo esposo. “Tá muito difícil viver aqui, perigoso sair até

morte por causa de bebida... Estou falando do meu próprio genro. Ele tá prejudicando muito a

filha. Quando a gente vai falar ele fala, “a casa é minha”. Manda você tomar lá... eu vou te furar”.

Flaviana, filha de Ermelinda, demonstra o mesmo pensamento da mãe sobre o consumo de

bebidas na região e o surgimento de casos de violência, mas se mostrou reticente e constrangida em

falar abertamente sobre a violência sofrida.

“Acho que a bebida pode levar a muita coisa, gera a violência. A pessoa bebe não

sabe o que tá fazendo, o álcool tá tomando conta... Meu marido bebe quase todo

dia. Daí ele fica machão querendo brigar. Quando ele tá bêbado ele enche o saco.

Grita, fica bravo, reclama da comida, gasta o dinheiro das compras. Mas tudo é a

bebida” (Flaviana, Fev. 2012).

O discurso da próxima entrevistada é diferente das histórias analisadas até aqui, pois aborda

o problema da dependência química do álcool pelo parceiro. Ao longo da entrevista com Rita foi

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possível perceber que, em diversos momentos, ela pareceu omitir, atenuar ou suavizar o

comportamento ríspido e agressivo do parceiro nos momentos de alcoolização, bem como transferir

o problema da agressividade para a doença e o ciúmes que aumentava após o uso da bebida.

“Nunca morei no campo, é a primeira vez. A minha maior dificuldade foi que eu

enfrentei o alcoolismo. Ele começou a beber no acampamento depois continuou.

Meu marido parou. Fez tratamento. Quando a pessoa bebe não quer parar. Antes

ele bebia na casa dos outros. O bêbado sempre fica bravo, né? Fica atacado com a

bebedeira” (Rita, Fev. 2011).

A história de Juliana é similar a vivenciada por Rita. Ambas possuem cicatrizes da

agressividade do esposo e não as percebem como sendo uma forma de violência contra mulheres,

mas resultado do alcoolismo enquanto patologia. Deste modo, a agressividade quando do uso das

bebidas alcoólicas foi vista como um elemento típico e decorrente do efeito do álcool, portanto, atos

não identificados pelas duas como de violência doméstica e familiar. É como se o ficar transtornado

pelo alcoolismo fosse uma conduta natural da patologia, aceita, permitida e legitimada socialmente.

Tais percepções remetem aos discursos da medicina eugenista de combate aos vícios do

século XIX, responsável pela criação de nosografias em torno do consumo do álcool, da própria

figura do ‘alcoólatra’ e delimitações de papéis femininos e masculinos. Na configuração desse

quadro, as mulheres foram incumbidas de zelar pela saúde da família com função especial na

reeducação dos filhos e maridos ‘caídos em vício’ (MATOS, 2001).

Em diversos casos de criminalidade, inclusive na questão da violência contra as mulheres, a

loucura alcoólica foi utilizada como meio de absolvição dos crimes sob o argumento de que os

homens não estavam cientes e conscientes das agressões cometidas. Em muitos processos

envolvendo crimes passionais foi julgado que, ao ter a honra arranhada ou por não ter controle das

situações, o homem foge da normalidade, ultrapassa os próprios limites e realiza atos agressivos sob

efeito insensato da embriaguez (MATOS, 2001). Unindo a alegação médica da loucura com os

dispositivos jurídicos de defesa da honra ou integridade moral verifica-se uma silhueta sob o

controle do corpo e liberdade das mulheres.

A propensão ao surgimento do ciúme masculino seria mais explícita após a ingestão do

álcool, motivando a incessante preocupação com a fidelidade feminina. Matos (2001) recorda que

um dos pilares da identidade masculina é a noção de honra, definida de acordo com a conduta moral

das mulheres na família. Deste modo, a virilidade além de configurar a potência da sexualidade

varonil, também exigia um teste constante de exercício do controle masculino da liberdade e

sexualidade das mulheres.

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Para Matos (2001) esse panorama cultural produzia uma órbita de relações altamente

propícias à tensão e desavenças com grande possibilidade de emergência da violência. Segundo ela,

o discurso propalado pelas campanhas antialcoólicas construiu um perfil masculino que reforça a

idéia do homem carregado de agressividade, na qual a legitimidade da violência aceita socialmente

tornou-se uma forma de iniciativa. “Incorporada à sua identidade, a agressão passou a ser, para o

homem, elemento de constituição que, sobreposto à virilidade, produz e alimenta a violência,

muitas vezes, provocada por alucinações e delírios causados pelo álcool” (MATOS, 2001, p. 74).

A ampla difusão deste discurso e suas atualizações para justiçar a violência após o consumo

de bebidas alcoólicas são hipóteses de uma moral que reprova o consumo até mesmo dentro das

normas aceitas pela comunidade funcionando como peças que movimentam a engrenagem do

controle social e que legitimam a violência doméstica e familiar contra as mulheres sob ingestão das

bebidas etílicas pelo homem. É como se o álcool se tornasse o grande vilão da história, capaz de

fazer homens agirem segundo os ímpetos da loucura provocada pela bebida, a exemplo do ciúme

desmedido, pressões morais sobre a companheira e condutas violentas em virtude dos delírios,

alucinações e desvarios alcoólicos.

O pouco conhecimento sobre a Lei Maria da Penha e outros direitos da população feminina

entre as assentadas também foi um elemento constatado na pesquisa, o que dificulta a busca por

direitos e o rompimento dos relacionamentos marcados pela violência masculina. A falta de uma

Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher em Nova Alvorada do Sul, cidade mais próxima

do Bebedouro, e a pouca qualificação de policiais e técnicos de muitas delegacias dos municípios

do interior do estado para o trato da violência doméstica e familiar contra a mulher por meio da Lei

Maria da Penha e a própria falta de profissionalização do atendimento às mulheres vítimas de

violência são outros entraves.

Considerações finais

O conteúdo deste trabalho questionou concepções que naturalizam a violência doméstica e

familiar contra as mulheres como resultado do uso do álcool por homens contrastando com

discursos enraizados no senso comum. Ao estudar as relações de gênero e desvelar traços

patriarcais e de dominação masculina presentes na cultura e vida social do Bebedouro, o texto

fornece dados que podem contribuir com análises sobre a violência doméstica nos assentamentos de

reforma agrária espalhados pelo território brasileiro.

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Chamar atenção para a dimensão cultural das relações sociais no campo, das relações de

gênero e hierarquias de poder entre homens e mulheres não significa desconsiderar as reações

fisiológicas do álcool no organismo de cada ser humano. Mas entender que os valores misóginos e a

violência imbuída no processo de socialização das masculinidades, muitas vezes, abastecem a

violência futura de parcela da população masculina na sociedade constituindo fatores que

conjugados ao consumo das bebidas alcoólicas podem aflorar a agressividade em inúmeros homens.

No cerne das relações de gênero no Bebedouro cabe às mulheres o trabalho doméstico

desvalorizado e sem remuneração, mas também as demais atividades do sítio, porém sem serem

reconhecidas como trabalhadoras. A geografia espacial do assentamento com a longa distância entre

o sítio e a área societária de produção contribui para reforçar a divisão sexual do trabalho e tornar o

ambiente doméstico da casa e seus arredores essencialmente femininos.

Quanto ao público masculino existe uma movimentação rotineira com destino ao lote

coletivo, mas também para fora dos limites do Bebedouro, especialmente em direção as fazendas da

região ou nas usinas constituindo uma alternativa para complementar a renda e viabilizar a

permanência dessas famílias na terra. É através dos mecanismos de socialização e da própria

observação das relações sociais que as crianças aprendem o comportamento ideal para cada sexo,

inclusive no tocante ao uso do álcool.

Os bares são locais de sociabilidade eminentemente masculinos com etiquetas e pedagogias

de ingestão de bebidas que recomendam o consumo grupal e não solitário, sendo a embriaguez e a

perda do controle sobre o beber atos reprovados pelos fregueses. E mesmo existindo no

assentamento e no próprio espaço dos bares o consumo desregrado e associado a possíveis

problemáticas (como a violência contra as mulheres), isso não constitui a regra e o padrão de

alcoolização partilhado nos bares.

Já nos eventos festivos do Bebedouro são comuns as brigas, facadas e discussões entre

homens aparentemente insufladas pelo ânimo exaltado desencadeado por efeitos das bebidas

alcoólicas. No entanto, por trás desses episódios de violência existem antigas rixas, desaforos e

desavenças mal resolvidas que em grande parte são relacionadas à produção na área societária de

trabalho.

Foi perceptível no assentamento pesquisado a existência de distintas formas de violência

contra as mulheres envolvendo ou não o uso do álcool pelo parceiro, incluindo desde as agressões

psicológicas das humilhações, coerções e xingamentos, aos danos materiais, morais, à violência

sexual e física dos mais variados matizes e intensidades.

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O exercício do poder masculino sob as mulheres dilui-se no cotidiano do Bebedouro

tornando-se uma realidade naturalizada, ou seja, muitas vezes, despercebida à população feminina.

A transgressão das responsabilidades, do recato e do comportamento ideal para o gênero feminino é

uma atitude reprovada pela população assentada de ambos os sexos. É dever dos homens proteger

‘suas’ mulheres da ameaça que lhes suscita a convivência delas com outros homens. Este fato

parece reconfigurar traços dos antigos dispositivos em torno dos preceitos de legítima defesa da

honra corroborando para a punição feminina e a moral permissiva em torno da violência doméstica

e familiar contra as mulheres. Tais questões contribuem para o desamparo da vítima, bem como a

perpetuação da violência e a impunidade dos agressores neste assentamento de reforma agrária,

onde as mulheres possuem pouco conhecimento sobre a Lei Maria da Penha e os seus direitos, pois

é um espaço distante do centro urbano e longe das políticas de promoção, proteção e garantia de

direitos.

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Male domination, meanders ethyl and conflicts: portraits of violence against women in the

rural area

Abstract: In 19th century, the medicine hygienist brought the need for prophylactic intervention in

combating addictions, including the alcohol consumption, as an attempt to control the population.

This discourse was consolidated by anti alcohol campaigns directed to male audience that emerged

in Brazil in the 1920s. Introduces the idea that alcohol incapacitates the man for the job also leading

to the explosion of the most barbarous and irrational instincts. The madness alcohol was used as a

means of absolution of many crimes of violence against women on the grounds that men were not

aware of actions taken. This article discusses the phenomenon of violence against women in rural

Bebedouro settlement, in Mato Grosso do Sul, analyzing the influence of socio-cultural scenario in

the formation of relationships between the sexes, alcohol consumption by men and associations

with violence gender. The proposal brings up stories of women and men from this rural area show

that inherited traits of speeches and anti alcoholics campaigns devices cultural and legal legitimate

defense of honor. This speeches updated male dominance in controlling the freedom of women and

justify gender-based violence, especially under the influence of drunkenness. The work also

highlights the difficulties of these rural women in obtaining information about the Maria da Penha

Law (LMP) and access to the Women's Care Network in this space far from the urban center and

the organs of protection and defense of rights.

Keywords: male domination, violence against women, alcohol consumption, rural settlement;

Maria da Penha Law.