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ROGÉRIO DONNINI ODUVALDO DONNINI Imprensa livre, mídias sociais, pós-verdade, fake news e deepfake RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO 2ª edição Revista e atualizada 2022

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ROGÉRIO DONNINI

ODUVALDO DONNINI

Imprensa livre, mídias sociais, pós-verdade, fake news e deepfake

RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

2ª ediçãoRevista e atualizada

2022

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Imprensa livre

“Uma imprensa livre pode ser boa ou ruim; mas certa-mente, sem liberdade uma imprensa nunca será nada além de ruim.”

(Albert Camus)

A noção de liberdade é tema dos mais árduos e a filosofia vem se preocupando com essa questão desde a Antiguidade1, bem assim a

1. “Berço do pensamento ocidental, a liberdade para os gregos é analisada a partir de trêstitãs do pensamento: Sócrates, Platão e Aristóteles. Esses autores constituem sua filosofiaem um período decadente da polis, na qual a liberdade era uma expressão eminentemente política: livres eram somente aqueles que podiam se liberar das preocupações mundanaspara assumir as questões coletivas e participar de suas decisões. Não obstante Platão tenha se desiludido com a cidade após a condenação de Sócrates, a preocupação desses autoresera enunciar a melhor forma de governo possível. A coletividade era uma categoria central para o homem grego, que poderia atingir o status de virtuosidade somente na vida pública, na presença dos demais cidadãos. Nesta medida, Sócrates estabelece a divisão entre liber-dade interior e a exterior (política). A educação está implicitamente relacionada com a pri-meira, pois livre era todo aquele capaz de conter suas paixões. A liberdade exterior é aque-la encontrada na polis, no espaço público compartilhado com os demais. Nesse sentido, aeducação política ofertada para aqueles que eram aptos à vida pública era a ponte entre as duas formas de liberdade: os que adentravam na política deveriam receber maior educação e serem os mais contidos em relação aos seus impulsos. A pedagogia socrática denunciavaos sofismos à sua volta, o que custou a Sócrates inúmeros desafetos e sua condenação àmorte.” (PANSIERI, Flávio. In Enciclopédia Jurídica da PUCSP – https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/114/edicao-1/liberdade-no-pensamento-ocidental,-a).

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sociologia, o direito, a antropologia e as ciências políticas mais recen-temente. Tem amplo significado a palavra liberdade, pois é utilizada para designar a liberdade de locomoção, liberdade de associação, li-berdade religiosa, liberdade contratual, liberdade de decisão, liberda-de de imprensa e liberdade de pensamento e de expressão. Há relação direta entre justiça e liberdade, haja vista que a luta para a obtenção da primeira é parte fundamental da busca pela segunda2.

Etimologicamente, a palavra liberdade provém do latim liberta-te(m), acusativo de libertas, libertatis, de livre. Para os romanos, liber era o oposto de servus (escravo)3. A liberdade era o maior bem, visto que o escravo era equiparado às coisas (res)4. Na Roma antiga, nos períodos pré-clássico, clássico e pós-clássico5, para que um ser huma-no possuísse personalidade jurídica era indispensável ser livre e cida-dão romano. Para ter capacidade jurídica plena não bastavam as duas qualidades anteriores, era necessário ainda ser chefe de família (pater familias). Portanto, essas posições das pessoas eram conhecidas como status (estados): status libertatis, status civitatis e status familiae6.

2. MONTORO, André Franco. Estudos de Filosofia do Direito, 3a ed., São Paulo: Saraiva, 1999,p. 257.

3. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. I, Rio de Ja-neiro: Forense Universitária, 1990, p. 95. Como ensina Fritz Schulz, “Ao conceito romano deliberdade é imanente a limitação: por isso, o princípio de liberdade pode ser, em Roma, um princípio da configuração do direito. Para os romanos, a liberdade nunca é a capacidade de pode fazer ou deixar de fazer o que se quiser, de viver segundo o próprio talante; não-livre, para eles, é somente aquele que tem um dominus, um senhor que o governe e em face doqual lhe falte todo direito de autodeterminação. Assim, o indivíduo não é livre, se for escra-vo; todo um povo não é livre, se à sua cabeça estiver um monarca absoluto, ou se ele estiver submetido à dominação de um Estado estrangeiro. (SCHULZ, Fritz. Princípios do DireitoRomano, trad. Josué Modesto Passos, São João da Boa Vista – São Paulo: Editora Filomática Sorocabana, 2020, p. 100).

4. CRETELA JÚNIOR, José. Direito Romano, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1963, p.43.

5. O direito antigo ou pré-clássico é aquele compreendido entre as origens de Roma e a LeiAebutia, de data incerta, aproximadamente entre 149 e 126 a.C. O direito clássico está com-preendido dessa última data ao fim do reinado de Diocleciano, em 305 d.C. Dessa data atéa morte de Justiniano, em 565 d. C., denomina-se período pós-clássico (ALVES, José CarlosMoreira. Direito Romano, v. I, 13. ed., Forense, 2004, p. 68).

6. SANTOS JUSTO, A., Direito Privado Romano – I, Parte Geral, Coimbra: Coimbra Editora, 4ªed., 2008, p. 110 e s.

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Há, na realidade, três teorias fundamentais para a noção de li-berdade, ao longo dos tempos. A primeira tem como característica a autodeterminação, para a qual a liberdade significa ausência de li-mites, condições7. Liberdade, portanto, como causa sui. A segunda concepção vincula liberdade com necessidade e, embora haja simili-tude com a primeira noção, não seria ela atribuída à pessoa, mas ao todo (ordem cósmica, à substância, ao absoluto, ao Estado), em uma visão estoica8. Para a terceira concepção, liberdade seria uma escolha motivada, condicionada9.

Ronald Dworkin afirma que há uma verdadeira simbiose cons-titucional entre o aumento da liberdade e de poder da imprensa e a necessidade de imposição de limites à atuação estatal:

“A influência da imprensa decorre em grande parte da justificada crença do público de que uma imprensa livre e poderosa serve para impor bem-vindas restrições às

7. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, trad. de Pietro Nassetti, São Paulo: Martin Claret, 2002, p.64 (III, 5, 1113 b 10): “Desse modo, como o objeto de escolha é uma coisa que está ao nosso alcance e que desejamos após deliberação, a escolha é um desejo deliberado de coisas que estão ao nosso alcance, pois, após decidir em decorrência de uma deliberação, passamos a desejar de acordo com o que deliberamos.”

8. RUSSEL, Bertrand. História do pensamento ocidental, trad. de Laura Alves Aurélio Rebello,3ª ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 171. Preleciona esse autor que a maior preocupa-ção do estoicismo foi de caráter ético. Ensina, ainda, que Zenão ou Zenon, cipriota fenício,nascido na segunda metade do século IV a.C., foi o fundador do estoicismo. Preleciona,ainda, que “As atividades comerciais da sua família levaram pela primeira vez o jovem para Atenas, onde despertou seu interesse pela filosofia. Abandonou o comércio e instalou umaescola própria. Costumava dar aulas em Stoa Poikilé, que significa pórtico coberto e pinta-do de muitas cores. Foi devido a essa edificação que a doutrina se chamou estoicismo”. Essa corrente filosófica influenciou diretamente a cultura romana, em especial no período clás-sico. O aristotelismo e o estoicismo foram, inegavelmente, as doutrinas filosóficas que mais preponderaram no pensamento ocidental. A primeira corrente, com a teoria da justiça, teve influência direta na Antiguidade e na Idade Média. Da sua noção de ética surgem os siste-mas filosóficos da Escolástica e o Tomismo, além de vários outros pensamentos filosóficosdos séculos XIX e XX. O estoicismo, criado por Zenão e Cício, como dissemos, e difundidopelos filósofos Cleante de Axo, Crisipo de Soles e, posteriormente, Cícero e Sêneca, traduz a ideia de que a natureza é dominada pela razão e, desta forma, o natural também é racional. Portanto, o direito natural e o direito da razão coincidem e correspondem ao Logos e, assim, à essência do justo, o que leva ao ético.

9. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, trad. Alfredo Bosi, São Paulo: Martins Fontes,2007, p. 699 e s.

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atitudes de segredo e desinformação por parte do Es-tado [...]. A intenção é criar um sistema equilibrado de restrições ao poder; o papel político da imprensa, agin-do dentro de uma imunidade limitada em relação aos seus próprios erros, parece agora um elemento essen-cial desses sistema – pelo fato mesmo de a imprensa ser a única instituição dotada da flexibilidade, do âmbito e da iniciativa necessárias para descobrir e publicar as mazelas secretas do Executivo, deixado a cargo das ou-tras instituições do sistema a tarefa de saber o que fazer com essas descobertas.”10

Atualmente, a ideia de liberdade está relacionada à medida, às condições e aos limites, em qualquer campo de atuação, visto que se trata não mais de simples escolha, mas uma real possibilidade de opção.

A liberdade somente tem importância e significado no momento em que passa a existir a noção de autoridade. Nesse momento é que se dá o conflito entre a capacidade de uma pessoa agir livremente, possuindo o Estado apenas o poder de polícia, e de outro lado uma admissão da legitimidade da autoridade e, como consequência, o de-lineamento da renúncia à liberdade individual, diante da liberdade de todos e o poder controlador do Estado11.

Para o direito, a liberdade é um bem supremo, visto que integra o rol de suas funções, daí a sua importância. Entre as tarefas, que são

10. DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana, trad. Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 299-300. No que se refere especificamente à liberdade de expressão, John Stuart Mill pontifica: “Se toda espécie hu-mana fosse de uma opinião e apenas uma pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não estaria mais justificada ao silenciar essa única pessoa do que esta, se tivesse o poder,estaria justificada em silenciar a humanidade.” (MORRIS, Clarence et al. Os grandes filóso-fos do direito, trad. Reinaldo Guarany, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 386).

11. FERNANDES NETO, Antonio. Jornalismo e Liberdade (De Locke a Kennedy), São Paulo: Edi-ção Pannartz, 1980, p. 17. A primeira corrente é inspirada em John Locke, individualistaliberal, segundo a qual o homem poderia fazer tudo o que sua consciência designava como correto. A segunda, baseada nos ensinamentos de Thomas Hobbes, individualista autoritá-rio, autor de Leviatã, ou a Matéria, a Forma e o Poder de um Estado Eclesiástico e Civil.

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finalidades do direito, a ordem de liberdade se encontra em um plano superior, juntamente com as ordens de paz, segurança social, coo-peração e integração12. Todavia, a noção de liberdade é a de estar no direito e, ao mesmo tempo, ele nos impõe uma opressão, nos demove dessa mesma liberdade13, o que evidencia a complexidade do direito e da ideia de liberdade14.

2.1. O RECONHECIMENTO DO DIREITO DE EXPRESSÃO E IN-FORMAÇÃO NO ÂMBITO INTERNACIONAL

“A liberdade é a faculdade natural de fazer aquilo que apraz a cada um, salvo o que seja impedido pela força ou pelo Direito.” (Libertas est naturalis facultas ejus, quod cuique facere libet, nisi si quid vi, aut jure prohibetur)15 (Fiorentinus)

12. HORN, Norbert. Introdução à Ciência do Direito e à Filosofia Jurídica, trad. de Elisete Anto-niuk, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2005, p. 61 e s.

13. FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, 5ª ed., São Paulo, Atlas,2007, p. 21.

14. Norberto Bobbio, a respeito da ideia de liberdade e seu desenvolvimento, afirma: "Além deprocessos de conversão em direito positivo, de generalização e de internacionalização, aos quais me referi no início, manifestou-se nestes últimos anos uma nova linha de tendência,que se pode chamar de especificação; ela consiste na passagem gradual, porém cada vezmais acentuada, para uma ulterior determinação dos sujeitos titulares de direitos. Ocorreu, com relação aos sujeitos, o que desde o início ocorrera com relação à ideia abstrata deliberdade, que se foi progressivamente determinando em liberdades singulares e concre-tas (de consciência, de opinião, de imprensa, de reunião, de associação), numa progressãoininterrupta que prossegue até hoje: basta pensar na tutela da própria imagem diante dainvasão dos meios de reprodução e difusão de coisas do mundo exterior, ou na tutela daprivacidade diante do aumento da capacidade dos poderes públicos de memorizar nos pró-prios arquivos os dados privados da vida de cada pessoa. Assim, com relação ao abstratosujeito “homem”, que já encontrara uma primeira especificação no “cidadão” (no sentido de que podiam ser atribuídos ao cidadão novos direitos com relação ao homem em geral), fez--se valer a exigência de responder com nova especificação à seguinte questão: que homem, que cidadão?" (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio deJaneiro: Editora Campus/Elsevier, 2004, p. 31).

15. Digesto, liv. 1º, tít. 5º – De statu hominum, frag. 4, de Florentino. (MAXIMILIANO, Carlos. Her-menêutica e Aplicação do Direito, São Paulo: Editora Forense, 18ª ed., 2000, p. 231).

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O direito à livre manifestação do pensamento, hoje reconheci-do e enaltecido pelas nações democráticas, que o elevam à categoria de direito fundamental, historicamente é uma garantia ao cidadão bastante recente e conditio sine qua non para a existência do regime democrático. Tanto é certo que partidos com viés totalitário, mesmo que eleitos democraticamente, autodesignados de direita ou esquer-da, procuram incessantemente calar a imprensa, o que leva à aspira-ção de perpetuação no poder.

O primeiro país a instituir as liberdades públicas, a criar um sis-tema mais eficaz de proteção da pessoa diante do Estado soberano, foi a Inglaterra. Em 1695, os ingleses tornaram sem efeito o ato que esta-belecia a censura prévia, denominado Licensing Act. The fundamental rights ou civil liberties foram protegidos, em especial a garantia de uma pessoa não ser detida arbitrariamente (freedom from arrest), condição de todas as outras liberdades consideradas particulares, tais como a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião. De registrar-se, ain-da, o inegável desenvolvimento do direito constitucional16 e da forma democrática de governo na Inglaterra, com a Magna Carta, de 1215, o Habeas Corpus Act, de 1679, e o Bill of Rights, de 168917.

Em França, no Antigo Regime, a imprensa estava completamen-te submetida à censura. A Declaração Real, de 10 de maio de 1728,

16. No ordenamento jurídico inglês não há um texto que possa ser chamado de Constituição.Na realidade, existem normas escritas antigas (Magna Carta, Bill of Rights, Act of Settle-ment), assim como convenções não-escritas, tais como a doutrina do precedent obrigatório, a Rule of Law, que equivale ao Estado de Direito, e a regra dos Tribunais de obediênciaàs leis parlamentares. (ZITSCHER, Harriet Christiane. Introdução ao Direito Civil Alemão eInglês, trad. Marco Antônio Schmitt et al, Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 182 e 183.

17. DAVID, René. O Direito Inglês, trad. Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 76 e 77. Preleciona esse mesmo autor (p. 77) o pioneirismo dos ingleses na defesa do indivíduo frente ao poder arbitrário do Estado, por meio do habeas corpus. Aduz, ainda, o seguinte:“Em primeiro lugar, o que significam as próprias palavras, um tanto enigmáticas, habeas corpus? As palavras habeas corpus são, originalmente, duas palavras que constavam nafórmula do writ – escritas em latim –, pelo qual o soberano ordenava que uma pessoa, emcerto processo, comparecesse e se explicasse na justiça. “Tu deténs injustamente um denossos súditos, X..., dizia essa fórmula: liberta-o, ou, então, vem explicar perante meus juízes por que causa tu o detiveste e, nesse caso, traz esse indivíduo contigo (habeas corpus) àaudiência para a qual tu estás citado.”

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estabelecia o banimento de todo autor que atentasse contra a auto-ridade real, a religião e a paz pública, fixando uma pena à coleira18 aos gráficos e, na hipótese de reincidência, ao trabalho forçado19. Somente em 26 de agosto de 1789, o art. 11 da Declaração dos Direi-tos do Homem e do Cidadão, prescrevia que: “la libre communication des pensées et des opinions comme un des droits les plus précieux de l’homme20”.

A Constituição francesa, de 1791, da mesma forma, garantia: “La liberté à tout homme de parler, d’écrire, d’imprimer et publier sés pen-sées sans que les écrits puissent être soumis à aucune censure ni inspec-tion avant leur publication...”21

É digna de registro a Lei de 29 de junho de 1881, ainda utiliza-da, que considera a liberdade de imprensa como uma liberdade do espírito, permitindo, dessa forma, a livre manifestação de crítica, ao governo, inclusive.

Também são pioneiros nesse tema os norte-americanos, que no Bill of Rights do Estado de Virgínia, de 1776, em seu art. 1º prescrevia o seguinte:

“Que todos os homens são, por natureza, igualmente li-vres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não po-dem por qualquer acordo privar ou despojar seus pós-teros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança.”

18. Condenação à coleira de ferro era uma das penas na França do Século XIX, juntamente com o açoite, marcação com ferrete, entre outros suplícios (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 20ª ed., 1999, p. 29).

19. ISRAEL, Jean-Jacques. Direito das Liberdades Fundamentais, trad. de Carlos Souza, Barueri/SP: Manole, 2005, p. 538.

20. Tradução livre: “a livre manifestação do pensamento e das opiniões como um dos direitosmais preciosos do homem.”

21. Tradução livre: “A liberdade, a todos os homens, de falar, escrever, imprimir e publicar seus pensamentos sem que seus escritos possam ser submetidos a qualquer censura ou inspeção antes da publicação...”

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A Constituição do Estado de Virgínia, alguns dias antes da in-dependência, na Seção 12, consagrou a liberdade de imprensa, ao dispor: “That the freedom of the press is one of the great bulwarks of liberty, and can never be restrained by despotic governments” (Que a li-berdade de imprensa é um dos grandes baluartes da liberdade e nun-ca pode ser restringida pelos governos despóticos”. Embora também constante nas Constituições estaduais de Massachusetts, Maryland, Delaware e Pensilvânia, esse texto não foi adotado na Convenção Constituinte. Posteriormente, outros Estados pleitearam a amplia-ção das garantias individuais, entre elas a liberdade de imprensa, por meio de uma emenda constitucional, o que aconteceu em 1791, na Primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, inspirada nos princípios de Locke, na obra Ensaio sobre o Governo Civil, de 1691, e na doutrina de William Blackstone22.

No âmbito internacional, o direito de informar foi universal-mente reconhecido com a aprovação, na Assembleia Geral da Orga-nização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O art. XIX estatui: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independente-mente de fronteiras.”

No mesmo ano de 1948, em Bogotá, foi aprovada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que em seu art. IV pres-creve: “Toda pessoa tem direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão, e de difusão do pensamento por qualquer meio.”

Em Roma, no ano de 1950, foi aprovada a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos. O art. 10 estabelece a am-pla liberdade de expressão, consistente na liberdade de opinião e de

22. Sir William Blackstone, em seus Comentaries on the laws of England, asseverava que a li-berdade de imprensa era fundamental para um Estado livre e consistia em não estabelecer uma censura prévia às publicações, excetuada a aplicação de leis criminais após a publica-ção. (http://lonang.com/library/reference/blackstone-commentaries-law-england/).

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receber ou veicular informações ou ideias, sem a ingerência de auto-ridades públicas e sem a consideração de fronteiras. Prevê, contudo, a possibilidade de os Estados submeterem as empresas de radiodifusão, cinematográfica ou de televisão a um regime de autorização prévia. O exercício dessa atividade, enaltece esse dispositivo, contém deveres e responsabilidades e pode estar sujeita a determinadas formalidades, condições, restrições ou sanções previstas em lei, medidas essas ne-cessárias para a defesa da ordem e a prevenção do delito, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da reputação ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

No ano de 1966, novamente a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que estabelece no art. 19, a liberdade de expressão e, como consectário, que ninguém poderá ser molestado em razão de suas opiniões, resguardado, no entanto, o direito daqueles injustamente atingidos na sua reputação, diante do exercício desse direito, além do resguardo da segurança nacional, saúde e da ordem moral pública.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhe-cida como Pacto de São José da Costa Rica, firmado em 1969, com o escopo de afiançar os direitos humanos nas Américas, estabelece,em seu art. 13, de maneira análoga aos outros diplomas legais aquimencionados, que todos têm direito à liberdade de pensamento ede expressão, que abarca a liberdade de buscar, receber e difundirinformações e ideias de toda sorte, sem limitações, na forma oral,por escrito, impressa, artística ou por qualquer outra forma. Ressalta,ainda, esse artigo que esse direito não está sujeito a censura prévia ouqualquer tipo de controle ou restrição, mas somente a responsabili-dades posteriores, que devem estar expressamente previstas em lei enecessárias para assegurar o respeito aos direitos ou a reputação, oua proteção da segurança nacional, a ordem pública, saúde ou moral,entre outras disposições.

A tutela da liberdade de expressão, atualmente, é uma demanda global, a despeito do nominalismo jurídico adotado: seja um direito fundamental, uma autêntica liberdade pública do cidadão em face do

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Estado, seja um direito da personalidade imprescindível ao seu livre desenvolvimento. A internacionalização desse direito não se encerra no seu caráter meramente declaratório, mas busca dimensionar efe-tivas formas de sua proteção que ultrapassam as fronteiras dos seus Estados-membros.

Em que pese toda essa vasta gama de leis que permite a liberdade de imprensa, há um ranking de liberdade de imprensa no mundo que atesta as violações aos órgãos de imprensa e jornalistas. Na realida-de, poucos são os países em que a cobertura de assuntos políticos não gera transgressões à livre imprensa, com a interferência direta do Estado na mídia, o que resulta na insegurança na atividade jornalísti-ca, resultando em ataques virtuais, agressões e mortes de jornalistas. O Brasil, no plano mundial, é considerado um País perigoso para o exercício do jornalismo e integra o que denomina zona vermelha, na medida em que ocupa a posição 111ª nessa listagem de liberdade de imprensa23.

O panorama internacional influenciou diretamente a tutela ju-rídica interna das nações mundo afora, assim como veremos seus reflexos na normatização pátria acerca da liberdade de expressão e informação.

2.2. A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE EX-PRESSÃO E INFORMAÇÃO

“Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a mor-te o seu direito de dizê-lo.” (Evelyn Beatrice Hall)

A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em 1787, não assegurava, como dissemos, o direito à livre manifestação do pensamento. Todavia, a Magna Carta norte-americana foi emen-dada, desde a sua aprovação, vinte e seis vezes, sendo as dez primeiras,

23. https://rsf.org/pt/ranking-mundial-da-liberdade-de-imprensa-2021-vacina-contra-desinfor-macao-o-jornalismo-segue. Acesso em 22/04/2021.

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ratificadas em 1791, denominadas Bill of Rights. Na primeira Emenda (The First Amendment) a omissão do texto constitucional quanto à liberdade de informação foi sanada, ao ser prevista a liberdade de pa-lavra ou de imprensa24.

Na Alemanha, a alínea “1” do art. 5º da Lei Fundamental garante a liberdade de manifestação de opinião e informação, a liberdade de imprensa e de reportagem por radiodifusão e filme, proibida qual-quer forma de censura. Todavia, não há essa proteção à manifestação de opinião se a informação está relacionada a fatos falsos25.

A Constituição da República Italiana, no art. 21, estabelece, entre outros direitos, a livre manifestação do pensamento através da pala-vra, escrito ou qualquer outro meio de veiculação. Prevê, ainda, que a imprensa não pode se sujeitar a autorizações ou censura.

Os arts. 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa, de 1976, dispõem sobre a liberdade de expressão e informação e li-berdade de imprensa e meios de comunicação social. No que diz respeito à liberdade de imprensa, o texto constitucional português a assegura e ressalta que ela implica na liberdade de expressão dos jornalistas e colaboradores, assim como o acesso às fontes de infor-mação e à proteção da independência e do sigilo profissionais, entre outros direitos.

24. A 1ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América Americana estatui que “O Con-gresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercíciodos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos”,estabelecendo, assim, a mais ampla proteção da liberdade de imprensa, vedando, ainda,qualquer limitação legal.

25. Em tradução livre: “Artigo 5: [Liberdade de opinião, de arte e ciência] (1) Todos têm o direito de expressar e divulgar livremente o seu pensamento por via oral,por escrito e por imagem, bem como de informar-se, sem impedimentos, em fontes de aces-so geral. A liberdade de imprensa e a liberdade de informar através da radiodifusão e dofilme ficam garantidas. Não será exercida censura.(2) Estes direitos têm por limites as disposições das leis gerais, os regulamentos legais para a proteção da juventude e o direito da honra pessoal.(3) A arte e a ciência, a pesquisa e o ensino são livres. A liberdade de ensino não dispensada fidelidade à Constituição”.

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A Constituição espanhola, de 1978, em seu art. 20, protege o di-reito de opinião, o direito de expressão e o direito de informação. Garantias semelhantes são constatadas nos artigos 14 e 32 da Consti-tuição argentina26. Na mesma direção prevê a Lei Maior do Uruguai27.

No Brasil, a Constituição Federal assegura a liberdade de expres-são da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sem qualquer censura ou licença (art. 5º, IX). Trata-se de um direito fundamental. A liberdade de expressão e informação advém da livre manifestação do pensamento (CF, art. 5º, IV). Esta, por si só, teria pouca importância se não estivesse diretamente relacionada à possi-bilidade de uma pessoa expressar, de manifestar, concretamente, suas ideias.

O inciso XIV do art. 5º de nossa Lei Maior assegura a todos o acesso à informação e protege o sigilo da fonte, quando indispensável ao exercício profissional.

Da mesma forma, ao regular a comunicação social nos arts. 220 a 224, reforça ainda mais a liberdade de expressão28 e veda toda e qualquer forma de censura, seja ela política, ideológica ou artística (§ 2º do art. 220).

26. Art. 14. “Todos los habitantes de la Nación gozan de los siguientes derechos conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio: de trabajar y ejercer toda industria lícita; de navegar ycomerciar; de peticionar a las autoridades; de entrar, permanecer, transitar y salir del ter-ritorio argentino; de publicar sus ideas por la prensa sin censura previa; de usar y disponersu propiedad; de asociarse con fines útiles; de profesar libremente su culto; de enseñar yaprender.” Art. 32. “El Congreso federal no dictará leyes que restrinjan la libertad de impren-ta o establezcan sobre ella la jurisdicción federal.”

27. Art. 29. “Es enteramente libre en toda materia la comunicación de pensamientos por pala-bras, escritos privados o publicados em la prensa o por cualquier otra forma de divulgación, sin necesidad de previa censura; quedando responsable el autor y, en su caso, el impresor o emisor, con arreglo a la ley por los abusos que cometieren.”

28. Art. 220. “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qual-quer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nes-ta Constituição.” No § 1º desse dispositivo está previsto que: “Nenhuma lei conterá dispositi-vo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”.

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O poder constituinte criou, assim, o denominado “bloco do di-reito à informação”29, composto pela liberdade de pensamento (inci-so IV), liberdade de expressão (inciso IX), liberdade jornalística (ar-tigo 220) e o direito à informação propriamente dito, que se insere na comunicação social (arts. 221 a 224).

O texto constitucional confere a esse bloco de direitos plena liberdade, no sentido de não se estabelecer requisitos que visem a atingir o próprio conteúdo da informação e especificamente na ati-vidade de imprensa, a própria notícia30. Portanto, depreende-se que a liberdade de expressão e de informação é um direito fundamental, facultada a qualquer pessoa a livre manifestação do pensamento, opi-niões e ideias, por intermédio de escritos, imagem, palavra ou qual-quer outro meio, digital, inclusive, assim como o direito de informar ou receber informações31. Nas sociedades democráticas essa garantia tem sido constante, visto que inexiste democracia sem a liberdade de expressão e informação32.

Contudo, veremos no decorrer da presente obra que o exercício de tal direito não deve violar outros direitos fundamentais de mes-ma envergadura normativo-constitucional. Em que pese a vedação à censura, na hipótese de abuso do exercício do direito de expressão, cabe ao Poder Judiciário decidir sobre a existência ou não de eventual

29. Expressão disseminada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Arguição de Des-cumprimento de Preceito Fundamento (ADPF) nº 130. Os detalhes do julgamento serão ana-lisados no deslinde do presente tópico.

30. OLIVEIRA, Adriano Elias, ob. cit., p. 101.

31. (STJ – AREsp: 707926 SC 2015/0113761-1, Relator: Ministro MARCO BUZZI, Data de Publica-ção: DJ 02/06/2015).

32. “APELAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. MATÉRIA VEICULADA EM JOR-NAL POLÍTICO. IMPROCEDÊNCIA NA ORIGEM. RECURSO DO AUTOR. COLISÃO ENTRE DI-REITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS DIREITOS INDIVI-DUAIS. NECESSIDADE DE PONDERAÇÃO DE ACORDO COM O CASO CONCRETO. TEOR DADECLARAÇÃO QUE NÃO EXCEDE OS LIMITES DA MERA CRÍTICA DE CUNHO POLÍTICO E IDE-OLÓGICO. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. SENTENÇA MANTIDA RECURSO DESPRO-VIDO.” (TJ-SC – AC: 00297651520078240038 Joinville 0029765-15.2007.8.24.0038, Relator:Rodolfo Cezar Ribeiro Da Silva Tridapalli, Data de Julgamento: 11/10/2018, Quarta Câmara de Direito Civil)

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ilícito praticado, bem como limitar possível comportamento excessi-vo e, ainda, em hipóteses restritíssimas, autorizadas constitucional-mente, evitar a ocorrência do dano.

2.3. LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, CRÍTICA JOR-NALÍSTICA, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFOR-MAÇÃO

“Sujeitar a imprensa ao poder restritivo de um censor, como havia antes da revolução, é submeter a liberdade de pensamento de todos em prejuízo de um só homem e torná-lo o juiz arbitrário e infalível dos temas con-trovertidos de literatura, religião e política.” (William Blackstone)

A natureza gregária do ser humano o leva necessariamente à co-municação com seus pares. O isolamento social, sob a forma de alie-nação informativa, não é recomendável numa sociedade civilizada, tampouco crível na contemporaneidade. E a liberdade de expressão, manifestada por suas inúmeras facetas, notadamente o direito à in-formação, é fundamental para o desenvolvimento da sociedade de forma transparente e pluralista.

2.3.1. A livre manifestação do pensamento (direito de opinião)

“Se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não que-rem ouvir.” (George Orwell)

A livre manifestação do pensamento é o que se denomina di-reito de opinião, que nada mais é do que a emissão de um juízo de valor a respeito de um fato ou tema. Esse direito pode ser exercido da maneira mais ampla possível, por qualquer pessoa. Assim, a crítica nada mais é do que esse direito de opinião, com o único diferencial que a no âmbito jornalístico se refere à opinião que se transforma em notícia. O art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal estabelece que

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“É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”33. Destarte, o direito de crítica jornalística está amparado nesse dispo-sitivo constitucional.

33. O Plenário do Supremo Tribunal Federal referendou, com efeito vinculante e eficácia contratodos, decisão monocrática que, em arguição de descumprimento de preceito fundamental(ADPF), suspendeu os efeitos de atos judiciais ou administrativos emanados de autoridade pú-blica que possibilitem, determinem ou promovam o ingresso de agentes públicos em univer-sidades públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debatesou manifestações de docentes e discentes universitários, a atividade disciplinar docente e dis-cente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento em ambientes universitários ou em equipamentos soba administração de universidades públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos.A arguição impugnava decisões proferidas por juízes eleitorais que determinaram a busca eapreensão do que seriam ‘panfletos’ e materiais de campanha eleitoral em universidades enas dependências das sedes de associações de docentes e que proibiram aulas com temáticaeleitoral e reuniões e assembleias de natureza política, impondo a interrupção de manifesta-ções públicas de apreço ou reprovação a candidatos nas eleições gerais de 2018, em ambiente virtual ou físico de universidades federais e estaduais. Em alguns casos, policiais executaramessas ações sem comprovação de ato judicial que o respaldasse. As medidas tiveram comofundamento jurídico o art. 37 da Lei 9.504/1997, que estabelece normas para as eleições. (...)Observou que, às vésperas do pleito eleitoral de 2018, denso e tenso, as providências judiciais e os comportamentos administrativos interrompem atos pelos quais se expressam ideias e ide-ologias, preferências, propostas e percepções do que se quer no processo político. Asseverou,ainda, que as normas jurídicas impeditivas de práticas durante o processo eleitoral devem ser interpretadas de acordo com sua finalidade e nos limites por elas contemplados, sem trans-gredir princípios constitucionais. Caso se extrapole o limite necessário ao resguardo de todasas formas de manifestação livre de pensar e do espaço livre de cada um agir segundo seupensamento político, ocorre abuso não por parte de quem se expressa, mas de quem limita aexpressão. A finalidade do art. 37 da Lei 9.504/1997, que regulamenta a propaganda eleitorale impõe proibição de alguns comportamentos em períodos que especifica, é a de impedir oabuso do poder econômico e político e de preservar a igualdade entre os candidatos no pro-cesso. A norma visa resguardar a liberdade do cidadão, o amplo acesso às informações, paraque ele decida conforme sua livre convicção, sem cerceamento direto ou indireto a seu direito de escolha. A vedação por ela estabelecida possui a finalidade específica de lisura do processo eleitoral. O que não estiver dentro dos limites dessa finalidade e, diversamente, atingir a livremanifestação do cidadão não se afina com a teleologia da norma eleitoral nem com os prin-cípios constitucionais garantidores da liberdade de pensamento, manifestação, informação,ensino e aprendizagem. Portanto, as providências judiciais e administrativas impugnadas naADPF, além de ferir o princípio garantidor de todas as formas de manifestação da liberdade,desrespeitam a autonomia das universidades e a liberdade dos docentes e discentes. As con-dutas limitadas pelos atos questionados restringem não os direitos dos candidatos, mas o livre pensar dos cidadãos. O Colegiado esclareceu que os dispositivos da Lei 9.504/1997 somentetêm interpretação válida em sua adequação e compatibilidade com os princípios previstosno art. 5º, IV, IX e XVI, da CF, por meio dos quais são asseguradas todas as formas de manifes-tação da liberdade de pensamento, de divulgação de ideias e de reunião dos cidadãos.(ADPF548-MC-REF, rel. min. Cármen Lúcia, j. 31-10-2018), Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%2030, acesso em 20 de julho de 2019.

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2.3.2. Crítica jornalística, violação da honra (calúnia, injúria e difamação) e a sátira

“São necessários dois anos para aprendermos a falar e sessenta para aprendermos a calar.” (Ernest Hemin-gway)

A palavra crítica34 significa uma apreciação minuciosa, um juí-zo de valores a respeito de uma obra literária, artística ou científica. Embora possa ter esse significado, a crítica jornalística não se resume a uma apreciação desfavorável sobre algo, mas uma noção, um con-ceito favorável ou não sobre um fato ou uma opinião35.

A crítica e a notícia compõem, portanto, o que se denomina di-reito à informação jornalística, conceito mais atual da liberdade de imprensa, haja vista que abarca todas as formas de mídia: digital, im-pressa, falada, televisiva, entre outras.

A palavra notícia (do latim notitia, de notoriedade, ato de conhe-cer)36 é a nota, o apontamento sobre um acontecimento ou a respeito de uma pessoa, sem a existência de valoração, sem a atribuição de va-lores. Trata-se, é bem de ver, da simples narrativa ou demonstração dos acontecimentos. A mera veiculação da notícia, por inexistir juízo de valores, não decorre qualquer responsabilidade do jornalista ou da empresa jornalística, pois não há que se falar em violação ao direito à honra, a menos que a notícia seja falsa ou haja a real intenção de calu-niar, difamar ou injuriar, o que não se constituirá na divulgação de fato isento de valores, mas na prática de eventuais ilícitos civis ou penais37.

34. Do latim criticus, no sentido de apreciação, julgamento, adaptado do grego kritik�, críti-ca, arte de julgar, de criticar. (Dicionário Houaiss – https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v5-4/html/index.php#2).

35. NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A proteção constitucional da informação e o direito à crítica jornalística, São Paulo: Editora FTD, 1997, p. 77.

36 Vocabolario Etimologico della Lingua Italiana di Ottorino Pianigiani -http://etimo.it/?ter-m=notizia&find=Cerca

37. Art. 953 do Código Civil: “A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na re-paração do dano que delas resulte ao ofendido.”