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Dores Do Mundo- Schopenhauer

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Coleção Filosofia.

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  • SCHOPENHAUER

    DORES DO MUNDO

    O Amor A Morte A Arte A Moral A Religio A Poltica O Homem e a Sociedade

    EDICES DE OURO

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  • INDICE Introduo Dores do mundo O amor

    I Metafsica do amor II Esboo acerca das mulheres

    A Morte

    A Arte A Moral

    I O egosmo II A piedade

    III Resignao, renncia, ascetismo e libertao Pensamentos diversos

    A religio

    A poltica

    O Homem e a sociedade

  • INTRODUO

    Schopenhauer nasceu em Dantzig, no dia 22 de fevereiro de 1788. Seu pai era um negociante conhecido por sua habilidade, gnio forte, independncia de carter e amor liberdade. Mudou-se para Hamburgo quando Artur tinha cinco anos, porque Dantzig perdera sua liberdade na anexao da Polnia em 1793. O jovem Schopenhauer, conseqentemente, cresceu num ambiente de negcios e finanas e apesar de cedo ter abandonado a carreira mercantil para o qual seu pai o empurrara ela deixou nele sua marca nos modos um tanto bruscos, na atitude mental realista e no conhecimento do mundo e dos homens; ela fez dele o antpoda daquele tipo de filsofo acadmico de quatro paredes a quem ele tanto desprezava. O pai morreu, aparentemente por suas prprias mos, em 1805. A av por parte de pai morrera louca.

    O carter ou vontade, diz Schopenhauer, " herdado do pai; o intelecto da me.(1) A me possua inteligncia tornou-se uma das mais populares escritoras de seu tempo mas tinha tambm muito temperamento e mau gnio. Tivera uma vida infeliz com seu prosaico marido e quando ele morreu entregou-se ao amor livre e mudou-se para Weimar por ser um ambiente mais apropriado para este tipo de vida. Artur Schopenhauer reagiu contra isso como Hamlet contra o segundo casamento de sua me; e suas brigas com sua me ensinaram-lhe uma grande parte daquelas meias-verdades sobre as mulheres com as quais iria permear sua filosofia. Uma das cartas dela ao filho revela o estado de coisas entre os dois: "Voc insuportvel e opressivo e muito difcil de se convi-ver; todas suas boas qualidades so obscurecidas por seu convencimento e tornadas inteis para o mundo porque voc no vode conter sua tendncia de criticar as outras pessoas(2). Ento decidiram morar separados; ele deveria ir v-la apenas nos dias em que estava em casa para receber os amigos e ser uma visita entre outras; dessa forma podiam se mostrar polidos um com o outro como estranhos em vez de se detestarem como parentes. Goethe, que gostava de Madame Schopenhauer porque ela o deixava trazer consigo sua Cristiane, tornou pior a situao ao dizer me que o filho se tornaria um homem muito famoso; a me nunca ouvira falar em dois gnios na mesma famlia. Finalmente, numa briga mais sria, a me empurrou escada abaixo o filho e rival, sendo que diante daquilo nosso filsofo cheio de amargor informou-a que a posteridade a conheceria somente atravs dele. Schopenhauer deixou Weimar pouco depois e apesar de sua me ter vivido mais vinte e quatro anos, ele nunca mais a viu. Byron, nascido tambm em 1788, parece ter passado por situao semelhante com sua me. Esses homens foram destinados ao pessimismo quase que pelas circunstncias: um homem aue no conheceu o amor da me e o que ainda pior, sofreu o dio de sua me, no tem motivos para ficar encantado com o mundo. Enquanto isso Schopenhauer passara pelo ginsio e pela universidade e aprendera mais do que o oferecido pelos currculos. Saiu de l com uma infeco venrea que afetou seu carter e sua filosofia.(3) Tornou-se sombrio, cnico e desconfiado; era obcecado por temores e vises sinistras; mantinha os cachimbos trancados a cadeado, nunca entregou o pescoo navalha de um barbeiro e dormia com pistolas carregadas ao lado da cama presumivelmente para convenincia do assaltante. No suportava barulho: "Tenho de h muito a opinio", escreve ele, "que a quantidade de rudo que algum pode suportar sem se perturbar est na proporo inversa de sua capacidade mental e conseqentemente pode ser tomada como medida razoavelmente justa da mesma... O rudo uma torturava para todas pessoas intelectuais... Essa superabundante demonstrao de vitalidade 1 O Mundo Como Vontade e Representao; Londres, 1883; iii. 300. 2 Em Wallace: Vida de Schopenhauer; Londres, sem data, p. 59. 3 Vide Wallace, 92

  • que toma a forma de bater as coisas, dar marteladas e atirar objetos de um lado para outro, tem sido para mim um tormento dirio durante toda minha vida"(1). Ele possua um sentido quase que paranico de grandeza no reconhecida; no alcanando a fama e o sucesso, voltou-se para dentro de si mesmo e roa sua prpria alma. No tinha me, nem esposa, nem filhos, nem pas. Estava inteiramente sozinho, sem um nico amigo e entre um s e nenhum h uma distncia infinita(2). Mais ainda do que Goethe era ele imune as febres nacionalistas de sua poca. Em 1813 ficou to dominado pela influncia do entusiasmo de Fichte por uma guerra de liberao contra Napoleo que pensou em se apresentar como voluntrio e at comprou armas. Mas a prudncia o apanhou a tempo; argumentou que "Napoleo afinal de contas apenas dava livre expanso quela auto-afirmao e quele apetite de vida intensa que os mortais comuns sentem mas por fora de circunstncias so obrigados a disfarar(3). Em vez de partir para a guerra foi para o campo e escreveu uma tese de doutorado de Filosofia.

    Aps essa dissertao sobre A quadrupla razo do princpio de razo suficiente (1813),(4) Schopenhauer dedicou todo seu tempo e devotou todas suas foras ao livro que seria sua obra-prima O Mundo Como Vontade e Representao. Enviou o manuscrito ao editor com os maiores elogios; ali, dizia ele, no estava uma simples reformulao de idias velhas, mas sim uma altamente coerente estrutura de pensamento original, "claramente inteligvel, vigorosa e no sem beleza"; um livro "que dali em diante seria a fonte e motivo para uma centena de outros livros".(5) Sendo que tudo que disse era atrozmente egosta e inteiramente verdadeiro. Muitos anos depois Schopenhauer estava to certo de ter dado soluo aos problemas principais da Filosofia que pensou em mandar cinzelar em seu anel de sinete uma imagem da Esfinge atirando-se ao abismo como prometera fazer quando seus enigmas fossem solucionados. No entanto, o livro quase no atraiu ateno; o mundo estava pobre e exausto demais para ler o que se dizia sobre sua pobreza e exausto. Dezesseis anos aps sua publicao, Schopenhauer foi informado de que a maior parte da edio fora vendida como papel velho. Em seu ensaio sobre a Fama, na "Sabedoria da Vida", ele cita, numa evidente aluso sua obra-prima, dois comentrios de Lichtenberger: Trabalhos como esse so como um espelho: se um burro se mirar nele no se pode esperar que a imagem refletida seja a de um anjo"; e "Quando uma cabea e um livro tm uma coliso e um deles ressoa como oco, ser que sempre o livro"? Schopenhauer prossegue num tom de vaidade ferida: "Quanto mais um homem pertence posteridade em outras palavras, humanidade em geral tanto mais estranho ele aos seus contemporneos; pois no se destinando o livro a eles por essa condio como tal, mas apenas por fazerem parte da humanidade em geral, no encontrado em seus trabalhos nem um pouco daquele colorido local familiar que lhes serviria de atrativo." E depois tornar-se to eloqente como a raposa da fbula: "Sentiria-se envaidecido um msico com os aplausos calorosos de uma platia se soubes-sem que eram quase todos surdos e que para ocultar sua enfermidade vira uma ou duas pessoas aplaudindo? E o que diria ele se descobrisse que essas uma ou duas pessoas haviam freqentemente aceito subornos para garantir aplausos os mais calorosos para o pior artista?". Em alguns homens o egotismo uma compensao para a ausncia de fama; em outros, o egotismo presta uma generosa cooperao sua presena.

    Schopenhauer colocou-se to completamente neste livro que suas obras posteriores no so seno

    1 O Mundo Como Vondade e Representao, II, 199; Ensaios "Do Rudo". 2 Nietzsche: Schopenhauer como Educador; Londres, 1910; p. 122. 3 Wallace: Artigo "Schopenhauer" na Enciclopdia Britnica. 4 Schopenhauer insiste, sem motivo suficiente para tanto e quase que a ponto de tcnica de venda, em que esse livro tem que ser lido para que se possa compreender O Mundo como Vontade e Representao. O leitor no entanto poder se contentar em ficar sabendo que "o princpio da razo suficiente" a "lei da causa e efeito" de quatro formas: 1 - Lgica, como a determinao da concluso pelas premissas; 2 - Fsica, como a determinao do efeito pela causa; 3 - Matemtica, como a determinao da estrutura pelas leis da matemtica e da mecnica; e 4 - Moral, como a determinao da contuta pelo carter. 5 Em Wallace. Vida de Schopenhauer, p. 107.

  • comentrios do mesmo; tornou-se talmudista de seu prprio Torah, exegeta de suas prprias Jeremiadas. Em 1836 publicou um ensaio, Da Vontade na Natureza, que at certo ponto foi incorporado edio aumentada de O Mundo Como Vontade e Representao que surgiu em 1844. Em 1841 veio o trabalho Os Dois Problemas Bsicos da tica e em 1851 apareceram dois substanciais volumes Parerga et Paralipomena literalmente "Acessrios e Remanescentes" que foram traduzidos para o ingls como "Essays". Por esse ltimo, que a sua obra de mais fcil leitura e que repleta de sabedoria e esprito, Schopenhauer recebeu, como remunerao total, dez exemplares grtis. O otimismo fica um tanto difcil nessas circunstncias.

    Apenas uma aventura perturbou a monotonia de sua laboriosa recluso depois de haver deixado Weimar. Ele tinha a esperana de ter uma oportunidade de apresentar sua filosofia em uma das grandes universidades da Alemanha; essa oportunidade apareceu em 1822, quando foi convidado a ir para Berlim como docente (privat-docent). Ele de propsito escolheu para suas conferncias as horas exatas em que o ento todo-poderoso Hegel dava suas aulas. Schopenhauer confiava em que os estudantes encarariam a ele e a Hegel com os olhos da posteridade. Mas os estudantes no podiam se antecipar tanto e Schopenhauer viu-se falando diante de cadeiras vazias. Pediu ento demisso e vingou-se com amargas diatribes contra Hegel que prejudicam as ltimas edies de sua obra-prima. Em 1831 espalhou-se em Berlim uma epidemia de clera; tanto Hegel como Schopenhauer fugiram, porm Hegel voltou prematuramente, apanhou a infeco e morreu em poucos dias. Schopenhauer no se deteve at chegar a Frankfurt, onde passou o restante de seus setenta e dois anos.

    Sendo um pessimista sensato, ele evitou aquela armadilha de otimistas a tentativa de ganhar a vida escrevendo. Ele havia herdado uma participao na firma de seu pai e vivia, com um conforto razovel, da renda que isso lhe dava. Investiu seu dinheiro com um tino que no ficava muito bem num filsofo. Quando uma companhia da qual possua aes faliu e os outros credores concordaram com um acerto de 70%, Schopenhauer lutou para conseguir pagamento integral e saiu vencedor. Ele tinha o suficiente para alugar dois aposentos numa penso e l viveu os ltimos trinta anos de sua vida, tendo por companheiro apenas um cachorro. Ele chamava o pequeno popdle de Atma (o termo bramnico para a Alma do Mundo), mas os brincalhes da cidade o chamavam de o jovem Schopenhauer. Fazia suas refeies, normalmente, no Hotel Ingls. Antes do incio de cada refeio colocava sempre uma moeda de ouro na mesa, diante dele, e ao fim guardava-a de volta no bolso. Foi certamente algum garo indignado que por fim lhe perguntou o significado daquele invarivel cerimonial. Schopenhauer respondeu que era uma aposta silenciosa que fazia consigo mesmo, comprometendo-se ele a depositar a moeda na caixa dos pobres no primeiro dia que os oficiais ingleses, tambm fregueses de l, falassem de alguma coisa que no fosse cavalos, mulheres ou cachorros.(1) As universidades ignoravam a ele e a seus livros, como que para comprovar que todos progressos em Filosofia so feitos fora dos muros acadmicos. "Nada", diz Nietzsche, "ofendia tanto aos sbios alemes como Schopenhauer ser to dissemelhante a eles. "Mas ele aprendera a ter pacincia; estava certo de que, ainda que tardio, viria o reconhecimento. E por fim, lentamente, ele veio. Homens da classe mdia advogados, mdicos, negociantes encontraram nele uma filosofia que lhes oferecia no um mero jargo de irrealidades metafsicas, mas sim um estudo inteligvel dos fenmenos da vida real. Uma Europa desiludida com os ideais e esforos de 1848, voltou-se quase que com aclamaes para essa filosofia que interpretara o desespero de 1815. O ataque da cincia sobre a teologia, a denncia socialista da pobreza e da guerra, a tenso biolgica na luta pela sobrevivncia, todos esses fatores foram de auxlio para que Schopenhauer atingisse finalmente a fama.

    Ainda no estava velho demais para gozar essa popularidade: lia com avidez todos artigos que apareciam sobre ele; pedia a seus amigos que lhe enviassem qualquer comentrio impresso que encontrassem ele mesmo pagaria o porte. Em 1854, Wagner lhe mandou uma cpia do Der Ring des Nibelungen, com uma palavra de apreciao favorvel filosofia da msica de Schopenhauer. E assim o grande pessimista tornou-se quase um otimista em sua velhice; tocava assiduamente a flauta aps o jantar e agradecia ao Tempo por t-lo libertado dos ardores da mocidade. Vinha gente do

    1 Wallace, 171.

  • mundo todo para v-lo e no seu septuagsimo aniversrio, em 1858, choveram sobre ele congratula-es de toda parte e de todos os continentes.

    O que sucedeu veio bem a tempo pois teve apenas mais dois anos de vida. Em 21 de setembro de 1860, sentou-se sozinho mesa do caf, aparentemente bem. Uma hora depois a dona da casa encontrou-o ainda sentado diante da mesa, j morto.

    DORES DO MUNDO

    S a dor positiva Tormentos da existncia O nada prefervel vida O fim da Filosofia no consolar O otimismo insustentvel de Leionitz Pecado original O mundo, um lugar de penitncia.

    Se a nossa existncia no tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que no tem razo alguma de ser no mundo. Porque absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da misria inerente vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e no o prprio fim. Cada desgraa particular parece, certo, uma exceo, mas a desgraa geral a regra.

    *** Assim como um regato corre sem mpetos, enquanto no encontra obstculos, do mesmo modo

    na natureza humana, como na natureza animal, a vida corre incosciente e descuidosa, quando coisa alguma se lhe ope vontade. Se a ateno desperta, porque a vontade no era livre e se produziu algum choque. Tudo o que se ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste, isto , tudo que h de desagradvel e de doloroso, sentimo-lo ato contnuo e muito nitidamente. No atentamos na sade geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro onde o sapato nos molesta; no apreciamos o conjunto prspero dos nossos negcios, e s pensamos numa ninharia insignificante que nos desgosta. O bem-estar e a felicidade so portanto negativos, s a dor positiva.

    No conheo nada mais absurdo que a maior parte dos sistemas metafsicos, que explicam o mal como uma coisa negativa; s ele, pelo contrrio, positivo, visto que se faz sentir... O bem, a felicidade, a satisfao so negativos, porque no fazem seno suprimir um desejo e terminar um desgosto.

    Acrescente-se a isto que em geral achamos as alegrias abaixo da nossa expectativa, ao passo que as dores a excedem grandemente.

    Se quereis num momento esclarecer-vos a este respeito, e saber se o prazer superior ao desgosto, ou se apenas se compensam, comparai a impresso do animal que devora outro, com a impresso do que devorado.

    *** A mais eficaz consolao em toda a desgraa, em todo o sofrimento, voltar os olhos para

    aqueles que so ainda mais desgraados do que ns: este remdio encontra-se ao alcance de todos. Mas que resulta da para o conjunto?

    Semelhantes aos carneiros que saltam no prado, enquanto, com o olhar, o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, no sabemos, nos nossos dias felizes, que desastre o destino nos prepara precisamente a essa hora doena, perseguio, runa, mutilao, cegueira, loucura, etc.

    Tudo o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que preciso vencer. Na vida dos povos, a Histria s nos aponta guerras e sedies: os anos de paz no passam de curtos intervalos de entreatos, uma vez por acaso. E da mesma maneira a vida do homem um combate perptuo, no s contra males abstratos, a misria ou o aborrecimento, mas tambm contra os outros homens. Em toda a parte se encontra um adversrio: a vida uma guerra sem trguas, e morre-se com as armas na mo.

    *** Ao tormento da existncia vem ainda juntar-se a rapidez do tempo, que nos inquieta, que nos

    no deixa respirar, e se conserva atrs de cada um de ns como um vigia dos forados de chicote em punho. Poupa apenas aqueles que entregou ao aborrecimento.

    *** Portanto, assim como o nosso corpo rebentaria se estivesse sujeito presso da atmosfera, do

    mesmo modo se o peso da misria, do desgosto, dos reveses e dos vos esforos fosse banido da vida

  • do homem, o excesso da sua arrogncia seria to desmedido, que o faria em bocados ou pelo menos o conduziria insnia mais desordenada e at loucura furiosa. Em todo o tempo, cada um precisa ter um certo nmero de cuidados, de dores ou de misria, do mesmo modo que o navio carece de lastro para se manter em equilbrio e andar direito.

    Trabalho, tormento, desgosto e misria, tal sem dvida durante a vida inteira o quinho de quase todos os homens. Mas se todos os desejos, apenas formados, fossem imediatamente realizados, com que se preencheria a vida humana, em que se empregaria o tempo? Coloque-se esta raa num pas de fadas, onde tudo cresceria espontaneamente, onde as calhandras voariam j assadas ao alcance de todas as bocas, onde todos encontrariam sem dificuldade a sua amada e a obteriam o mais facilmente possvel ver-se-ia ento os homens morrerem de tdio, ou enforcarem-se, outros disputarem, matarem-se, e causarem-se mutuamente mais sofrimentos do que a natureza agora lhes impe. Assim para semelhante raa nenhum outro teatro, nenhuma outra existncia conviriam.

    *** Na primeira mocidade, somos colocados em face do destino que se vai abrir diante de ns,

    como as crianas em frente do pano de um teatro, na expectativa alegre e impaciente das coisas que vo passar-se em cena; uma felicidade no podermos saber nada de antemo. Aos olhos daquele que sabe o que realmente se vai passar, as crianas so inocentes culpados condenados no morte mas vida, e que todavia no conhecem ainda o contedo da sua sentena. Nem por isso todos deixam de ter o desejo de chegar a uma idade avanada, isto , a um estado que se poderia exprimir deste modo: "Hoje mau, e cada dia o ser mais at que chegue o pior de todos."

    *** Quando se representa, tanto quanto possvel faz-lo de uma maneira aproximada, a soma de

    misria, de dor e de sofrimentos de todas as espcies que o Sol ilumina no seu curso, deve-se concordar que valeria muito mais que esse astro tivesse o mesmo poder na Terra para fazer surgir o fenmeno da vida que tem na Lua, e seria prefervel que a superfcie da Terra como a da Lua se mantivesse ainda no estado de cristal.

    Pode ainda considerar-se a nossa vida como um episdio que perturba inutilmente a beatitude e o repouso do nada. Seja como for, aquele para quem a existncia quase suportvel, medida que avana em idade, tem uma conscincia cada vez mais clara de que ela em todas as coisas um disappointment, nay, a cheat, em outros termos que ela possui o carter de uma grande mistificao, para no dizer de um logro...

    Algum que tenha sobrevivido a duas ou trs geraes encontra-se na mesma disposio de esprito que um espectador que, sentado numa barraca de saltimbancos na feira, v as mesmas farsas repetidas duas ou trs vezes sem interrupo: que as coisas estavam calculadas para uma nica re-presentao e j no fazem nenhum efeito, uma vez dissipadas a iluso e a novidade.

    Perder-se-ia a cabea, se se observasse a prodigalidade das disposies tomadas, essas estrelas fixas que brilham inumerveis no espao infinito, e no tm outro fim seno iluminar mundos, teatros da misria e dos gemidos, mundos que, no mais feliz dos casos, s produzem o tdio: pelo menos a apreciarmos a amostra que nos conhecida.

    Ningum verdadeiramente digno de inveja, e quantos so para lastimar! A vida uma tarefa que devemos desempenhar laboriosamente; e neste sentido, a palavra

    defunctus uma bela expresso. Imagine-se por um instante que o ato da gerao no era nem uma necessidade nem uma

    voluptuosidade, mas um caso de pura reflexo e de razo: a espcie humana subsistiria ainda? No sentiriam todos bastante piedade pela gerao futura, para lhe poupar o peso da existncia, ou, pelo menos, no hesitariam em impor-lha a sangue-frio?

    O mundo o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores.

    Certamente ainda terei de ouvir dizer que a minha filosofia carece de consolao e isso simplesmente porque digo a verdade, enquanto todos gostam de ouvir dizer: o Senhor Deus fez bem tudo quanto fez. Ide igreja e deixai os filsofos em paz. Pelo menos no exijam que eles ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo: o que fazem os indigentes e os filosofastros: a esses podem-se encomendar doutrinas ao gosto de cada um. Perturbar o otimismo obrigado dos professores de

  • Filosofia to fcil como agradvel. Brama produz o mundo por uma espcie de pecado ou desvario, e permanece ele prprio no

    mundo para expiar esse pecado at estar redimido. Muito bem! No Budismo, o mundo nasce em seguida a uma perturbao inexplicvel, que se produz aps um longo repouso nessa claridade do cu, nessa beatitude serena, chamada Nirvana, que ser reconquistada pela penitncia; como que uma espcie de fatalidade que se deve compreender no fundo de um sentido moral, ainda que essa explicao tenha uma analogia e uma imagem exatamente correspondente na natureza pela formao inexplicvel do mundo primitivo, vasta nebulosa donde surgir um sol. Mas os erros morais tornam mesmo o mundo fsico gradualmente pior e sempre pior, at ter tomado a sua triste forma atual.

    Para os gregos o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade insondvel. Esta explicao suportvel, porque nos satisfaz provisoriamente. Ormuzd vive em guerra com Ahriman: isto ainda se pode admitir. Mas um Deus como esse Jeov, que animi causa, por seu bel-prazer e muito voluntariamente produz este mundo de misria e de lamentaes, e que ainda se felicita e se aplaude, que demasiado forte! Consideremos, portanto, nesse ponto de vista, a religio dos judeus como a ltima entre as doutrinas religiosas dos povos civilizados; o que concorda perfeitamente com o fato de ser ela tambm a nica que no tem absolutamente nenhum vestgio de imortalidade.

    Ainda mesmo que a demonstrao de Leibnitz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre os mundos possveis este sempre o melhor, essa demonstrao no daria ainda nenhuma teocidia. Porque o criador no s criou o mundo, mas tambm a prpria possibilidade; portanto, devia ter tornado possvel um mundo melhor.

    A misria, que alastra por este mundo, protesta demasiado alto contra a hiptese de uma obra perfeita devida a um ser absolutamente sbio, absolutamente bom, e tambm todo-poderoso; e, de outra parte, a imperfeio evidente e mesmo a burlesca caricatura do mais acabado dos fenmenos da criao, o homem, so de uma evidncia demasiado sensvel. H a uma dissonncia que se no pode resolver. As dores e as misrias so, pelo contrrio, outras tantas provas em apoio, quando consideramos o mundo como a obra da nossa prpria culpa, e portanto como uma coisa que no podia ser melhor. Ao passo que na primeira hiptese, a misria do mundo se torna uma acusao amarga contra o criador e d margem aos sarcasmos, no segundo caso aparece como uma acusao contra o nosso ser e a nossa vontade, bem prpria para nos humilhar.

    Conduz-nos a este profundo pensamento que viemos ao mundo j viciados como os filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que se a nossa existncia de tal modo miservel, e tem por desenlace a morte, porque temos continuamente essa culpa a expiar. De um modo geral no h nada mais certo: a pesada culpa do mundo que causa os grandes e inmeros sofrimentos a que somos votados; e entendemos esta relao no sentido metafsico e no no fsico e emprico. Assim a histria do pecado original reconcilia-me com o antigo testamento; mesmo a meus olhos a nica verdade metafsica do livro, embora a se apresente sob o vu da alegoria. Porque a nossa existncia assemelha-se perfeitamente conseqncia de uma falta e de um desejo culpado...

    Quereis ter sempre ao alcance da mo uma bssola segura a fim de vos orientar na vida e de a encarar incessantemente sob o seu verdadeiro prisma, habituai-vos a considerar este mundo como um lugar de penitncia, como uma colnia penitenciria, como lhe chamaram j os mais antigos filsofos (Clem. Alex. Strom. L. III, c. 3, p. 399) e alguns padres da Igreja. (Augustin. De civit. Dei, L. XI, 23.)

    A sabedoria de todos os tempos, o Branamismo, o Budismo, Empdocles e Pitgoras confirmaram este modo de ver; Cicero (Fragmenta de philosophia, vol. 12, p. 316, ed. Bip.) conta que os sbios antigos na iniciao dos mistrios ensinavam: nos ob aliqua scelera sucepta in vita superiore, pnarum luendarum causa natos esse. Vanini, que acharam mais cmodo queimar que refutar, exprime essa idia da maneira mais enrgica, quando diz: Tot, tantisque homo repletus miseriis, ut si Christian religioni non repugnaret: dicere auderem, si dcemones dantur, ipsi, in hominum corpora transmigrantes, sceleris pnas luunt. (De admirandis naturse arcanis, dial. L. p. 353.) Mas, mesmo no puro Cristianismo bem compreendido, a nossa existncia considerada como a conseqncia de uma falta, de uma queda. Se nos familiarizarmos com esta idia, no esperaremos da vida seno o que ela pode dar e longe de considerarmos as suas contradies, sofrimentos, tormentos, misrias grandes ou pequenas, como uma coisa inesperada, contrria s regras, ach-los-emos perfeitamente naturais, sabendo bem que na Terra cada um sofre a pena da sua existncia, e cada um a

  • seu modo. Entre os males de um estabelecimento penitencirio, o menor no a sociedade que nele se encontra. O que a sociedade dos homens vale, sabem-no aqueles que mereceriam outra melhor, sem que seja necessrio que eu o diga. Uma bela alma, um gnio, podem por vezes experimentar a os sentimentos de um nobre prisioneiro do Estado que se encontra nas gals rodeado de celerados vulgares; e como ele procuram isolar-se. Em geral, porm, esta idia sobre o mundo torna-nos aptos a ver sem surpresa, e ainda mais, sem indignao, o que se chama as imperfeies, isto , a miservel constituio intelectual e moral da maior parte dos homens que a sua prpria fisionomia nos revela...

    A convico de que o mundo e por conseguinte o homem so tais que no deveriam existir, de molde que nos deve encher de indulgncia uns pelos outros; que se pode esperar, de fato, de uma tal espcie de seres? Penso s vezes que a maneira mais convincente dos homens se cumpri-mentarem em vez de ser Senhor, Sir etc, poderia ser: companheiro de sofrimentos, soc malorum, companheiro de misrias, my fellow-sufferer. Por muito original que isto parea, a expresso contudo fundada, lana sobre o prximo a luz mais verdadeira, e lembra a necessidade da tolerncia, da pacincia, da indulgncia, do amor do prximo, sem o que ningum pode passar, e de que, portanto, todos so devedores.

    II

    Desiluses Vs promessas de felicidade Dores sem trguas e sem descanso, metamorfoses do sofrimento: a misria e o tdio A vida um espetculo tragicmico, sob o reino do acaso e do erro O Inferno de Dante e o inferno do mundo ltimo alvo e ltimo naufrgio.

    Enquanto a primeira metade da vida apenas uma infatigvel aspirao de felicidade, a segunda metade, pelo contrrio, dominada por um sentimento doloroso de receio, porque se acaba por perceber mais ou menos claramente que toda a felicidade no passa de quimera, que s o sofrimento real. Por isso os espritos sensatos visam menos aos prazeres do que a uma ausncia de desgostos, a um estado de algum modo invulnervel. Nos meus anos de mocida-de, uma campainhada porta causava-me alegria porque pensava: "Bom! qualquer coisa que sucede." Mais tarde, experimentado pela vida, esse mesmo rudo despertava-me um sentimento vizinho do medo; dizia de mim para mim: "Que suceder?"

    *** Na velhice as paixes e os desejos extinguem-se uns aps outros, medida que os objetos

    dessas paixes se tornam indiferentes; a sensibilidade diminui, a fora da imaginao torna-se sempre mais fraca, as imagens empalidecem, as impresses j no aderem, passam sem deixar vestgios, os dias decorrem cada vez mais rpidos, os acontecimentos perdem a sua importncia, tudo se descolora. O homem acabrunhado pela idade passeia cambaleando ou repousa a um canto, no sendo mais do que a sombra, o fantasma do seu ser passado. Vem a morte, que lhe resta para destruir? Um dia a sonolncia muda-se em ltimo sono e os seus sonhos... j inquietavam Hamlet no clebre monlogo. Creio que desde esse momento sonhamos.

    *** Todo o homem que despertou dos primeiros sonhos da mocidade, que tem em considerao a

    sua prpria experincia e a dos outros, que estudou a histria do passado e a da sua poca, se quaisquer preconceitos demasiado arraigados no lhe perturbam o esprito, acabar por chegar concluso de que este mundo dos homens o reino do acaso e do erro, que o dominam e o governam a seu modo sem piedade alguma, auxiliados pela loucura e pela maldade, que no cessam de brandir o chicote. Por isso o que h de melhor entre os homens s aparece aps grandes esforos; qualquer inspirao nobre e sensata dificilmente encontra ocasio de se mostrar, de proceder, de se fazer ouvir, ao passo que o absurdo e a falsidade no domnio das idias, a banalidade e a vulgaridade nas regies da arte, a malcia e a velhacaria na vida prtica, reinam sem partilha, e quase sem interrupo; no h pensamento, obra excelente que no seja uma exceo, um caso imprevisto, singular, incrvel, perfeitamente isolado, como um aerlito produzido por uma ordem de coisas diferente daquela que nos governa. Com respeito a cada um em particular, a histria de uma existncia sempre a histria de um sofrimento, porque toda a carreira percorrida uma srie ininterrupta de reveses e de desgraas, que cada um procura ocultar porque sabe que longe de inspirar aos outros simpatia ou

  • piedade, d-lhes enorme satisfao, de tal modo se comprazem em pensar nos desgostos alheios a que escapam naquele momento; raro que um homem no fim da vida, sendo ao mesmo tempo sincero e ponderado, deseje recomear o caminho, e no prefira infinitamente o nada absoluto.

    *** No h nada fixo na vida fugitiva: nem dor infinita, nem alegria eterna, nem impresso

    permanente, nem entusiasmo duradouro, nem resoluo elevada que possa durar toda a vida! Tudo se dissolve na torrente dos anos. Os minutos, os inumerveis tomos de pequenas coisas, fragmentos de cada uma das nossas aes, so os vermes roedores que devastam tudo quanto grande e ousado... Nada se toma a srio na vida humana; o p no vale esse trabalho.

    *** Devemos considerar a vida como uma mentira contnua, tanto nas coisas pequenas como nas

    grandes. Prometeu? no cumpre a promessa, a no ser, para mostrar quanto o desejo era pouco desejvel: to depressa a esperana que nos ilude, como a coisa com que contvamos. Se nos deu, foi s para nos tornar a tirar. A magia da distncia apresenta-nos parasos, que desaparecem como vises, logo que nos deixamos seduzir.

    A felicidade, portanto, est sempre no futuro ou no passado, e o presente como uma pequena nuvem sombria que o vento impele sobre a plancie cheia de sol; diante dela, atrs dela, tudo luminoso, s ela projeta sempre uma sombra.

    *** O homem s vive no presente, que foge irresistivelmente para o passado, e afunda-se na morte: salvo as conseqncias que podem refletir-se no presente, e que so a obra dos seus atos e da sua vontade, a sua vida de ontem acha-se completamente morta, extinta: deveria portanto ser-lhe indife-rente razo que esse passado fosse feito de gozos ou de tristezas. O presente foge-lhe, e transforma-se incessantemente no passado; o futuro absolutamente incerto e sem durao... E assim como sob o ponto de vista fsico o andar no mais do que uma queda sempre evitada, da mesma maneira a vida do corpo a morte sempre suspensa, uma morte adiada, e a atividade do nosso esprito um tdio sempre combatido... preciso enfim que a morte triunfe, pois lhe pertencemos pelo prprio fato do nosso nascimento e ela no faz seno brincar com a presa antes de a devorar. deste modo que seguimos o curso da nossa existncia, com um interesse extraordinrio, com mil cuidados, mil precaues, durante todo o tempo possvel, como se sopra uma bola de sabo, aplicando-nos a ench-la o mais que podemos e durante muito tempo, no obstante a certeza que temos de que ela acabar por rebentar.

    *** A vida no se apresenta de modo algum como um mimo que nos dado gozar, mas antes como um dever, uma tarefa que tem de se cumprir fora de trabalho; da resulta, tanto nas grandes como nas pequenas coisas, uma misria geral, um trabalho sem descanso, uma concorrncia sem trguas, um combate sem fim, uma atividade imposta com uma tenso extrema de todas as foras do corpo e do esprito. Milhes de homens, reunidos em naes, concorrem para o bem pblico, procedendo assim cada indivduo em seu prprio interesse; caem, porm, milhares de vtimas para a salvao comum. Umas vezes so preconceitos insensatos, outras uma poltica sutil que excitam os povos guerra; urge que o suor e o sangue da grande massa corram em abundncia para levar a bom fim as fantasias de alguns, ou para expiar as suas faltas. Em tempo de paz, a indstria e o comrcio prosperam, as invenes operam maravilhas, os navios sulcam os mares e transportam coisas deliciosas de todas as partes do mundo, as ondas tragam milhares de homens. Tudo est em movimento, uns meditam, outros procedem, o tumulto indescritvel.

    Mas qual o alvo de tantos esforos? Manter durante um curto espao de tempo entes efmeros e atormentados, mant-los no caso mais favorvel em uma misria suportvel e uma ausncia de dor relativa que o tdio logo aproveita; depois a reproduo dessa raa e a renovao do seu curso habitual.

    *** Os esforos sem trguas para banir o sofrimento s tm o resultado de o fazer mudar de figura.

    Na origem aparece sob a forma da necessidade, do cuidado pelas coisas materiais da vida. Conseguindo-se, custa de penas, expulsar a dor sob esse aspecto, logo se transforma e toma mil

  • formas diferentes, segundo as idades e as circunstncias; o instinto sexual, o amor apaixonado, o cime, a inveja, o dio, a ambio, o medo, a avareza, a doena, etc., etc. Se no encontra outro acesso livre, toma o manto triste e pardo do tdio e da sociedade, e ento, para a combater, preciso forjar armas. Logrando-se expuls-la, no sem combate, volta s suas antigas metamorfoses, e a dana recomea...

    *** O que ocupa todos os vivos e os conserva em contnua atividade, a necessidade de assegurar

    a existncia. Mas feito isto, no sabem que mais ho de fazer. Assim o segundo esforo dos homens aliviar o peso da vida, torn-lo insensvel, matar o tempo, isto , fugir ao aborrecimento. Vemo-los, logo que se livram de toda a misria material e moral, logo que sacudiram dos ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos o peso da existncia, e considerarem como um ganho toda a hora que tm conseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa existncia, que se esforam por prolongar com tanto zelo. O aborrecimento no um mal para desdenhar: que desespero faz transparecer no rosto! Faz com que os homens, que se amam to pouco uns aos outros, se procurem com todo o entusiasmo; a origem do instinto social. O Estado considera-o como uma calamidade pblica, e por prudncia toma medidas para o combater.

    Este flagelo, que no menor que o seu extremo oposto, a fome, pode impelir os homens a todos os desvarios; o povo precisa panem et circenses. O rude sistema penitencirio de Filadlfia, fundado sobre o isolamento e a inatividade, faz do aborrecimento um instrumento de suplcio to terrvel, que mais de um condenado tem recorrido ao suicdio para lhe fugir. Se a misria o aguilho perptuo para o povo, o tdio -o igualmente para os ricos. Na vida civil, o domingo representa o aborrecimento, e os seis dias da semana a misria.

    *** A vida do homem oscila, como uma pndula, entre a dor e o tdio, tais so na realidade os seus

    dois ltimos elementos. Os homens tiveram que exprimir esta idia de um modo singular; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e de todos os sofrimentos, que ficou para o cu? justamente o aborrecimento.

    *** O homem o mais necessitado de todos os seres: no tem mais do que vontade, desejos

    encarnados, um composto de mil necessidades. E assim vive na Terra, abandonado a si prprio, incerto de tudo que no seja a misria e a necessidade que o oprime. Atravs as exigncias imperiosas, todos os dias renovadas, o cuidado da existncia preenche a vida humana. Ao mesmo tempo atormenta-o um segundo instinto, o de perpetuar a sua raa. Ameaado por todos os lados pelos perigos mais diversos, tem que usar de uma prudncia sempre vigilante para lhes escapar. Com passo inquieto, lanando em volta olhares cheios de angstia, segue o seu caminho lutando com os acasos e com os inimigos sem nmero. Assim como caminharia atravs os desertos selvagens, assim segue em plena vida civilizada; para ele, no existe a segurana: Qualibus in tenebris vit, quantisque periclis Degitur hoccvi, quodcunque est! (Lucr, II, 15.) A vida um mar cheio de escolhos e de turbilhes que o homem s evita fora de prudncia e de cuidados, embora saiba que mesmo que consiga escapar-lhes com percia e esforos, no pode contudo, medida que avana, retardar o grande, o total, o inevitvel naufrgio, a morte que parece correr-lhe ao encontro: esse o fim supremo de to laboriosa navegao, para ele infinitamente pior que todos os escolhos a que escapou. Sentimos a dor, mas no a ausncia da dor; sentimos a inquietao, mas no a ausncia da inquietao; o temor, mas no a segurana. Sentimos o desejo e o anelo, como sentimos a fome e a sede; mas apenas satisfeitos, tudo acaba, assim como o bocado que, uma vez engolido, deixa de existir para a nossa sensao. Enquanto possumos os trs maiores bens da vida, sade, mocidade e liberdade, no temos conscincia deles, e s os apreciamos depois de os havermos perdido, porque esses tambm so bens negativos. S notamos os dias felizes da nossa vida passada depois de darem lugar aos dias

  • de tristeza... medida que os nossos prazeres aumentam, tornam-nos cada vez mais insensveis; o hbito no j um prazer. Por isso mesmo a nossa faculdade de sofrer mais viva; todo o hbito suprimido causa um sentimento doloroso. As horas correm tanto mais rpidas quanto mais agradveis so, tanto mais demoradas quanto mais tristes, porque o gozo no positivo, mas sim a dor, cuja presena .se faz sentir. O aborrecimento d-nos a noo do tempo, a distrao tira-a. O que prova que a nossa existncia tanto mais feliz quanto menos a sentimos: de onde se segue que mais vale ver-nos livres dela. No se poderia absolutamente imaginar uma grande e viva alegria, se esta no sucedesse a uma grande misria porque nada h que possa atingir um estado de alegria serena e durvel; o mais que se consegue distrair, satisfazer a vaidade. por este motivo que todos os poetas so obrigados a colocar os seus heris em situaes cheias de ansiedades e de tormentos, a fim de os livrarem delas: drama e poesia pica s nos mostram homens que lutam, que sofrem mil torturas, e cada romance oferece-nos em espetculo os espasmos e as convulses do pobre corao humano. Voltaire, o feliz Voltaire, que to favorecido foi pela natureza, pensa como eu, quando diz: "A felicidade no passa de um sonho, s a dor real"; e acrescenta: "H oitenta anos que o experimento. No sei fazer outra coisa seno resignar-me, e dizer a mim mesmo que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os homens para serem devorados pelos pesares."

    *** A vida de cada homem, vista de longe e de alto, no seu conjunto e nas fases mais salientes,

    apresenta-nos sempre um espetculo trgico; mas se a analisarmos nas suas mincias, tem o carter de uma comdia o decurso e o tormento do dia, a incessante inquietao do momento, os desejos e os receios da semana, as desgraas de cada hora, sob a ao do acaso que procura sempre mistificar-nos, so outras tantas cenas de comdia. Mas as aspiraes iludidas, os esforos baldados, as esperanas que o destino esmaga implacavelmente, os erros funestos da vida inteira, com os sofrimentos que se acumulam e a morte no ltimo ato, eis a eterna tragdia. Parece que o destino quis juntar a irriso ao desespero da nossa existncia, quando encheu a nossa vida com todos os infortnios da tragdia, sem que possamos sequer sustentar a dignidade das personagens trgicas. Longe disso, na ampla particularidade da vida, representamos inevitavelmente o mesquinho papel de cmicos.

    verdadeiramente incrvel como a existncia da maior parte dos homens insignificante e destituda de interesse vista exteriormente, e como surda e obscura sentida interiormente. Consta apenas de tormentos, aspiraes impossveis, o andar cambaleante de um homem que sonha atravs as quatro pocas da vida at morte, com um cortejo de pensamentos triviais. Os homens assemelham-se relgios a que se d corda e trabalham sem saber por que; e sempre que vem um homem a este mundo, o relgio da vida humana recebe corda de novo para repetir mais uma vez o velho e gasto estribilho da eterna caixa de msica, frase por frase, compasso por compasso, com variaes quase insensveis.

    Cada indivduo, cada rosto humano e cada existncia humana so um sonho, um sonho efmero do esprito infinito da natureza, da vontade de viver persistente e teimosa, so uma imagem fugitiva que desenha na pgina infinita do espao e do tempo, que deixa subsistir alguns instantes de uma rapidez vertiginosa, e que logo apaga para dar lugar a outras. Contudo, e esse o lado da vida que faz pensar e refletir, urge que a vontade de viver, violenta e impetuosa, pague cada uma dessas imagens fugitivas, cada uma dessas fantasias vs ao preo de dores profundas e sem nmero, e de uma morte amarga por muito tempo temida e que afinal chega. Eis por que o aspecto de um cadver nos torna subitamente srios.

    *** Onde iria Dante procurar o modelo e assunto do seu inferno seno no nosso mundo real? E

    contudo, um perfeito inferno que ele nos pinta. Ao contrrio, quando ele tratou de descobrir o cu e os seus gozos, encontrou-se em frente de uma dificuldade invencvel, justamente porque o nosso mundo nada oferece de anlogo. Em lugar das alegrias do Paraso, viu-se reduzido a dar-nos parte das instrues que lhe deram os seus antepassados, a sua Beatriz e diversos santos. Daqui se deduz claramente que espcie de mundo o nosso.

    *** O inferno do mundo excede o Inferno de Dante, no ponto em que cada um o diabo do seu

    vizinho; h tambm um arquidiabo superior a todos os outros, o conquistador que dispe milhares de

  • homens em frente uns dos outros e lhes brada: "Sofrer, morrer, o vosso destino; portanto fuzilem-se, canhoneiem-se mutuamente!'' e eles assim procedem.

    *** Se se pudesse pr diante dos olhos de cada um as dores e os espantosos tormentos aos quais a

    sua vida se encontra incessantemente exposta, um tal aspecto ench-lo-ia de medo; e se se quisesse conduzir o otimista mais endurecido aos hospitais, aos lazaretos e aposentos de torturas cirrgicas, s prises, aos lugares de suplcios, s pocilgas dos escravos, aos campos de batalha e aos tribunais criminais, se se lhe abrissem todos os antros sombrios onde a misria se acolhe para fugir aos olhares de uma curiosidade fria, e se por fim o deixassem ver a torre de Ugolino, ento, com certeza, tambm ele acabaria por reconhecer de que espcie este melhor dos mundos possveis.

    *** Este mundo, campo de carnificina onde entes ansiosos e atormentados vivem devorando-se uns aos outros, onde todo o animal carnvoro se torna o tmulo vivo de tantos outros, e passa a vida numa longa srie de martrios, onde a capacidade de sofrer aumenta na proporo da inteligncia, e atinge portanto no homem o mais elevado grau; este mundo, quiseram os otimistas adapt-lo ao seu sistema, e apresent-lo a priori como o melhor dos mundos possveis. O absurdo evidente. Dizem-me para abrir os olhos e fit-los na beleza do mundo que o Sol ilumina, admirar-lhe as monta-nhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei eu! Ento o mundo uma lanterna mgica? Certamente que o espetculo esplndido vista, mas representar a um papel, outra coisa. Aps o otimista surge o homem das causas finais; esse exalta a sbia ordem que preserva os planetas de se chocarem no seu percurso, que impede a terra e o mar de se confundirem e os mantm devidamente separados, que faz com que o resto no se conserve num gelo eterno, ou seja consumido pelo calor, que, devido inclinao da eclptica, no permite primavera ser eterna e deixa amadurecer os frutos, etc... Mas tudo isso so simples conditiones sine quibus non. Porque se deve existir um mundo, se os seus planetas devem durar, embora, um perodo igual quele que o raio de uma estrela fixa e afastada leva para chegar at eles, e se no desapareceu como o filho de Lessing logo aps o nascimento, era preciso que as coisas estivessem mal arquitetadas, para que a base fundamental ameaasse j runa. Cheguemos agora aos resultados dessa obra to exaltada, consideremos os atos que se movem nesta cena to solidamente formada: vemos a dor aparecer ao mesmo temoo que a sensibilidade, e aumentar medida aue esta se torna inteligente, vemos o desejo e o sofrimento caminhando par a par, desenvolver-se sem limites, at que por fim a vida humana apenas oferece assunto de tragdias, ter-se- pouca disposio para entoar a Aleluia dos otimistas.

    *** Se um Deus fez este mundo, eu no gostaria de ser esse Deus: a misria do mundo esfacelar-me-ia o corao.

    *** Imaginando-se um demnio criador, ter-se-ia portanto o direito de lhe gritar mostrando-lhe a

    sua obra: "Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada, para fazer surgir uma tal massa de desgraa e de angstias?"

    *** Considerando a vida sob o aspecto do seu valor objetivo, pelo menos duvidoso que ela seja prefervel ao nada; e eu diria at que se a experincia e a reflexo se pudessem fazer elevariam a voz em favor do nada. Se batssemos nas pedras dos tmulos para perguntar aos mortos se querem ressuscitar, eles abanariam a cabea. tambm esta a opinio de Scrates na apologia de Plato, e at o amvel e alegre Voltaire no pde deixar de dizer: "Aprecia-se a vida; mas o nada tambm tem o seu lado bom"; e ainda: "No sei o que a vida eterna, esta, porm, um mau gracejo."

    *** Querer essencialmente sofrer, e como o viver querer, toda a existncia essencialmente dor. Quanto mais elevado o ser, mais sofre... A vida do homem no mais do que uma luta pela existncia com a certeza de ser vencido... A vida uma caada incessante onde, ora como caadores, ora como caa, os entes disputam entre si os restos de uma horrvel carnificina; uma histria natural da dor que se resume assim: querer sem motivo, sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer e assim sucessivamente pelos sculos dos sculos, at que o nosso planeta se faa em bocados.

  • O AMOR

    I

    METAFSICA DO AMOR O amor, assunto at agora reservado aos romancistas e aos poetas Insuficincia dos filsofos que tm tratado do assunto Deve-se estudar o amor na vida real O seu papel, a sua importncia, o interesse universal que ele inspira Todo o amor vulgar ou etreo tem origem no instinto sexual O seu fim a procriao de uma determinada criana: fixa desse modo a gerao futura A natureza do instinto proceder no interesse da espcie em detrimento do indivduo O instinto oferece ao ser egosta uma iluso falaz para chegar aos seus fins Ele guia, no amor, a escolha do homem e da mulher para as qualidades fsicas e morais mais aptas para assegurarem a reproduo, a conservao, a superioridade do tipo integral da espcie humana, sem considerao alguma pela flicidade das pessoas Deste conflito entre o gnio da espcie e os gnios protetores dos indivduos nascem o sublime e o pattico do amor Resultado trgico do amor infeliz, decepes do amor sofisticado Os amantes so traidores que perpetuando a vida perpetuam a dor Dafnis e Clo, dilogo Seriedade da volpia.

    vs, sbios, cuja cincia elevada e profunda, que meditastes e que sabeis onde, quando e como, tudo se une na natureza, para que so todos esses amores, esses beijos; vs, sublimes sbios, dizei-mo! Torturai o vosso esprito sutil e dizei-me onde, quando e como, me sucedeu amar, por que me foi dado amar? Brger.

    Est-se geralmente habituado a ver os poetas ocupados em pintar o amor. A pintura do amor o assunto principal de todas as obras dramticas, trgicas ou cmicas, romnticas ou clssicas, tanto nas ndias como na Europa: igualmente o mais fecundo de todos os assuntos tanto para a poesia lrica como para a poesia pica, sem falar da grande quantidade de romances, que, h sculos, se produzem todos os anos nos pases civilizados da Europa to regularmente como os frutos das estaes. Todas essas obras no fundo so descries variadas e mais ou menos desenvolvidas dessa paixo. As pinturas mais perfeitas, Romeu e Julieta, a nova Helosa, Werther, adquiriram glria imortal. Dizer como La Rochefoucauld que o amor apaixonado como os espectros de que todos falam, mas que ningum viu; ou ento contestar como Lichtenberger, no seu Ensaio sobre o poder do amor, a realidade dessa paixo e negar que seja conforme natureza, um grande erro. Porque impossvel conceber como um sentimento estranho ou contrrio natureza humana, como uma pura fantasia o que o gnio dos poetas no se cansa de pintar, nem a humanidade de colher com inabalvel simpatia; visto que sem verdade, no h arte completa. Nada to belo como a verdade; s a verdade agradvel. Boileau. Ademais a experincia geral, embora no se renove todos os dias prova que uma inclinao viva e ainda suscetvel de ser governada, pode, sob o imprio de certas circunstncias, aumentar e exceder pela sua violncia todas as outras paixes, desviar todas as consideraes, vencer todos os obstculos com uma fora e uma perseverana incrveis, ao ponto de se arriscar sem hesitao a vida para satisfazer o desejo, e perd-la at, se esse desejo sem esperana. No s nos romances que existem Werther e Jacopo Ortis; todos os anos, a Europa poderia apresentar pelo menos uma meia dzia: sed ignotis perierunt mortibus illi. So mortos desconhecidos, cujos sofrimentos tm apenas como cronista o empregado que registra os bitos, e como anais as notcias diversas da imprensa. As pessoas que lem os jornais franceses e ingleses podem atestar a exatido do que afirmo. Mas maior ainda o nmero daqueles a quem essa paixo conduz ao manicmio. Enfim verificam-se todos os

  • anos diversos casos de duplo suicdio, quando dois amantes desesperados se tornam vtimas das circunstncias exteriores que os separam; quanto a mim, nunca compreendi como que dois entes que se amam, e julgam encontrar nesse amor a suprema felicidade, no preferem romper violentamente com todas as convenes sociais e sofrer toda a espcie de vergonha, a abandonar a vida renunciando a uma felicidade alm da qual nada podem imaginar, Quanto aos graus inferiores, aos ligeiros ataques dessa paixo, todos os tm diariamente sob os olhos, e, por menos jovem que seja, tambm a maior parte do tempo no corao. No portanto permitido duvidar da realidade do amor, nem da sua importncia. Em vez de causar admirao que um filsofo procure tambm apoderar-se deste assunto, tema eterno de todos os poetas, deve antes surpreender que uma questo que representa na vida humana um papel to importante tenha sido, at agora, descurado pelos filsofos, e se encontre diante de ns como uma matria nova. De todos os filsofos, foi ainda Plato que mais se ocupou do amor, principalmente no Banquete e no Phedra. O que ele diz sobre o assunto entra no domnio dos mitos, das fbulas e dos ditos equvocos e sobretudo diz respeito ao amor grego. O pouco que sobre isso diz Rousseau no Discours sur lingalit, falso e insuficiente; Kant, na terceira parte do Trait sur le sentiment du beau et du sublime, trata um tal assunto de um modo demasiado superficial e por vezes inexato como quem no entende nada do caso. Platner, na sua antropologia, apenas nos oferece idias medocres e vulgares. A definio de Spinoza merece ser citada pela sua extrema simplicidade: Amor est titillatio, concomitante idea caus extern (Eth. IV, prop. 44, dem.). No tenho, portanto, que me servir dos meus predecessores, nem que os refutar. No foi pelos livros, foi pela observao da vida exterior que este assunto se me imps, e tomou lugar no conjunto das minhas consideraes sobre o mundo. No espero a aprovao nem o elogio dos amorosos que procuram naturalmente exprimir com as imagens mais sublimes e etreas a intensidade dos seus sentimentos: a esses, o meu ponto de vista h de parecer demasiado fsico, demasiado material, por muito metafsico e transcendente que ele seja no fundo. Possam eles notar, antes de me julgarem, que objeto do seu amor, que hoje exaltam em madrigais e sonetos, mal lhes teria obtido um olhar, se tivesse aparecido dezoito anos antes. Qualquer inclinao terna, seja qual for a atitude etrea que afete, tem, na realidade, todas as suas razes no instinto natural dos sexos; e no mesmo outra coisa seno esse instinto especial, determinado, e perfeitamente individualizado. Posto isto, se observarmos o papel importante que o amor representa em todos os graus e em todas as suas fases, no s nas comdias e nos romances, mas tambm no mundo real, onde , com o amor pela vida, a mais poderosa e a mais ativa de todas as molas; se pensarmos que ocupa continuamente as foras da parte mais jovem da humanidade, que o ltimo fim de quase todo o esforo humano, que tem uma influncia perturbadora nos negcios mais importantes, que interrompe a todo o momento as ocupaes mais srias, que por vezes altera os maiores espritos, que no tem escrpulo em lanar as suas frivolidades nas negociaes diplomticas e nos trabalhos dos sbios, que chega at a introduzir as suas cartas meigas e as suas madeixazinhas de cabelo nas pastas dos ministros e nos manuscritos dos filsofos, o que o no impede de ser todos os dias o promotor dos piores e mais intrincados negcios que rompe as mais preciosas relaes, quebra os mais slidos laos, torna vtimas ou ja vida ou a sade, a riqueza, a situao e a felicidade, faz do homem honesto um homem sem honra, do fiel um traidor, que parece ser qual demnio malfazejo que se esfora por alterar, transtornar e destruir tudo; sentir-nos-emos ento prontos a bradar: Para que tanto rudo? para que so esse esforos, essas violncias, essas ansiedades e essa misria? Contudo trata-se apenas de uma coisa bem simples, que cada Joo encontra a sua Joana (1). Por que que semelhante bagatela representa um papel to importante e leva incessantemente a perturbao e a discrdia vida bem regrada dos homens? Mas, para o pensador srio, o esprito da verdade desvenda a pouco e pouco esta resposta: no se trata de uma ninharia: longe disso, a importncia do assunto igual seriedade e violncia com que tratado. O fim definitivo de todo o empreendimento amoroso, quer descambe no trgico ou no cmico, realmente, entre os diversos fins da vida humana, o mais grave e o mais importante e merece a

    1 No posso empregar aqui o termo prprio, o leitor pode, porm, traduzir esta frase na linguagem de Aristfanes.

  • profunda seriedade com que todos se lhe dedicam. De fato, esta questo nada menos que a combinao da prxima gerao. Os dramatis person, os atores que ho de entrar em cena, quando dela sairmos, encontrar-se-o assim determinados na sua existncia e na sua natureza por essa paixo to frvola. Assim como o ser, a Existentia dessas pessoas futuras tem, como condio absoluta, o instinto do amor em geral; a prpria natureza do seu carter, a sua Essentia, depende absolutamente da escolha individual do amor dos sexos e encontra-se assim irrevogavelmente fixada a todos os respeitos. Eis a chave do problema: conhec-la-emos melhor quando tivermos percorrido todos os graus do amor desde a mais fugitiva inclinao at paixo mais veemente: reconheceremos ento que a sua diversidade nasce do grau da individualizao na escolha. Todas as paixes amorosas da gerao presente no so, portanto, para a humanidade inteira, seno a sria meditatio compositionis generationis futur, e qu iterum pendent innumer generationis. De fato, no se trata, como nas outras paixes humanas, de uma desgraa, ou de uma vantagem individual, mas da existncia e da constituio especial da humanidade futura: a vontade individual atinge, neste caso, o seu maior poder, transforma-se em vontade da espcie. sobre este grande interesse que repousam o pattico e o sublime do amor, os seus transportes, as suas dores infinitas que os poetas h muitos sculos no se cansam de representar em exemplos sem nmero. Que outro assunto seria superior em interesse quela que trata do bem ou do mal da espcie? porque o in-divduo para a espcie o que a superfcie dos corpos para os prprios corpos. por este fato que se torna to difcil despertar interesse num drama onde se no introduza uma intriga amorosa; e, contudo, no obstante o uso dirio que se lhe d, o assunto nunca se esgota. Quando o instinto dos sexos se manifesta na conscincia de cada indivduo de uma maneira vaga, geral e sem determinao precisa, a vontade de viver absoluta, fora de todo o fenmeno, que surge. Quando num ser consciente o instinto do amor se especializa num determinado indivduo, essa mesma vontade que aspira a viver num ente novo e distinto, exatamente determinado. E, neste caso, o instinto do amor todo subjetivo d iluso conscincia, e sabe muito bem cobrir-se com a mscara de uma admirao objetiva, porque a natureza carece deste estratagema para atingir os seus fins. Por muito desinteressada e ideal que possa parecer a admirao por uma pessoa amada, o alvo final na realidade a criao de um novo ser, determinado na sua natureza: prova-o o fato do amor no se contentar com um sentimento recproco, mas exigir a posse, o essencial, isto , o gozo fsico. A certeza de ser amado no poderia consolar a privao daquela que se ama; e, em semelhante caso, mais de um amante tem dado um tiro nos miolos. Sucede ao contrrio que h pessoas muito apaixonadas que, no conseguindo ser correspondidas, se contentam com a posse, isto , com o gozo fsico. D-se este caso em todos os casamentos obrigados, nos amores venais ou nos que se obtm pela violncia. Que uma criana seja gerada, esse o alvo nico, verdadeiro, de todo o romance de amor, embora os namorados no dem por isso: a intriga que conduz ao desenlace coisa acessria. - As almas nobres, sentimentais, ternamente apaixonadas, podem protestar contra o spero realismo da minha doutrina; os seus protestos no tm razo de ser. No a constituio e o carter preciso e determinado da gerao futura, um alvo infinitamente mais elevado, infinitamente mais nobre que os seus sentimentos impossveis e as suas quimeras ideais? E ento! entre todos os fins que tem a vida humana, pode haver um mais considervel? S este explica os profundos ardores do amor, a gravidade do papel que ele representa, a importncia que comunica aos mais ligeiros incidentes. No se deve perder de vista este fim real, se quisermos explicar tantas manobras, tantos rodeios, tantos esforos, e esses tormentos infinitos para se obter o ente amado, quando, primeira vista, parecem to desproporcionados. a gerao futura na sua determinao absolutamente individual, que caminha para a existncia atravs essas dores e esses esforos. Sim, ela prpria que se agita j na escolha circunspecta, determinada, teimosa, procurando satisfazer esse instinto que se chama o amor; j a vontade de viver do novo indivduo, que os amantes podem e desejam gerar; que digo eu? j, na troca dos olhares cheios de desejos, se ilumina uma vida nova, se anuncia um ente futuro, criao completa, harmoniosa. Aspiram a uma unio verdadeira, a uma fuso num nico ser; esse ente que vo gerar ser como que o prolongamento da sua existncia, ser a plenitude; nele as qualidades hereditrias dos pais, reunidas, continuam a viver.

  • Ao contrrio, uma antipatia recproca e obstinada entre um homem e uma donzela, sinal de que no podiam gerar seno um ente mal constitudo, sem harmonia e desgraado. portanto com um profundo sentido que Calderon representa a cruel Semramis a quem chama uma filha do ar, como o fruto de uma violao, seguida pelo assassnio do esposo. Esta fora soberana que atrai exclusivamente um para o outro dois indivduos de sexo diferente, a vontade de viver manifesta em toda a espcie: procura realizar-se segundo os seus fins na criana que deve nascer deles; ter do pai a vontade ou o carter; da me, a inteligncia, de ambos a constituio fsica; entretanto as feies reproduziro mais vezes as do pai, a figura semelhar-se- mais freqentemente da me... Se difcil explicar o carter muito especial e exclusivamente individual de cada homem, no menos difcil compreender o sentimento igualmente particular e exclusivo que impele duas pessoas uma para a outra; no fundo, estas duas coisas formam uma apenas. A paixo implicitamente, o que a individualidade explicitamente. O primeiro passo para a existncia, o verdadeiro punctum saliens da vida, na realidade o momento em que os nossos pais comeam a amar-se to fancy each other, segundo uma admirvel expresso inglesa, e, como dissemos j, do encontro e da atrao dos seus olhares ardentes que nasce o primeiro grmen do novo ente, grmen frgil, pronto a desaparecer como todos os grmenes. Esse novo indivduo de algum modo uma nova idia platnica: e como todos as idias empregam um esforo violento para chegarem a manifestar-se no mundo dos fenmenos, vidos de se apoderarem da matria favorvel que a lei da causalidade lhes d em partilha, assim essa idia particular de uma individualidade humana tende com uma violncia, um ardor extremo a realizar-se num fenmeno. Essa energia, essa impetuosidade, justamente a paixo que os futuros pais experimentam um pelo outro. Tem graus infinitos cujos dois extremos poderiam ser designados sob o nome de amor vulgar, e de amor divino: mas quanto essncia do amor, em toda a parte e sempre a mesma. Nos seus diversos graus tanto mais poderosa quanto mais individualizada, em outros termos, tanto mais forte quanto a pessoa amada, pelas suas qualidades e pelas suas maneiras de ser, mais capaz, com excluso de todas as pessoas, de responder ao desejo particular e necessidade determinada que fez nascer naquele que a ama. O amor, por essncia e ao primeiro movimento, impelido para a sade, para a fora, para a beleza, para a mocidade que sua expresso, porque a vontade deseja, antes de tudo, criar entes capazes de viver com o carter integral da espcie humana; o amor vulgar no vai mais longe. Depois sucedem-se outras exigncias mais especiais, que aumentam e fortificam a paixo. O amor forte s pode existir na perfeita conformidade de dois entes... E como no existem dois indivduos absolutamente semelhantes, todo o homem deve encontrar numa determinada mulher as qualidades que correspondam melhor s suas prprias qualidades, sempre sob o ponto de vista das crianas que ho de nascer. Quanto mais raro esse encontro, mais raro tambm o amor verdadeiramente apaixonado. precisamente porque cada um de ns tem em si esse grande amor, que compreendemos a descrio que o gnio dos poetas nos faz desse sentimento. Dado o caso dessa paixo ao amor visar exclusivamente o ente futuro e as qualidades que devem adorn-lo, pode suceder que entre um rapaz e uma rapariga, alis agradveis e bem conformados, nasa uma simpatia de sentimento, de carter e de esprito que d origem a uma amizade estranha ao amor; pode mesmo suceder que, sobre este ltimo ponto, haja entre eles uma certa antipatia. O resultado seria faltar s crianas que nascessem deles a harmonia intelectual ou fsica, e, numa palavra, a sua existncia e a sua constituio no corresponderiam aos planos que se prope a vontade de viver no interesse da espcie. Pode suceder, pelo contrrio, que a despeito da dessemelhana dos sentimentos, do carter e do esprito, a despeito da repugnncia e mesmo da averso que da resultem, o amor contudo nasa e subsista, porque cego sobre essas incompatibilidades. Se da resultar um casamento, esse enlace ser necessariamente muito infeliz. Profundemos agora o assunto. O egosmo tem em cada homem razes to fundas que os motivos egostas so os nicos com que se pode contar com segurana para excitar a atividade de um ser individual. A espcie, certo, tem sobre o indivduo um direito anterior, mais imediato e mais considervel que a individualidade efmera. Todavia, quando urge que o indivduo proceda e se sacrifique pela manuteno e pelo desenvolvimento da espcie, a sua inteligncia completamente dirigida para as aspiraes individuais, apenas compreende a necessidade desse sacrifcio, submete-se-

  • lhe logo. Para atingir o seu fim, portanto necessrio que a natureza engane o indivduo com alguma iluso, em virtude da qual ele veja a prpria felicidade no que no , realmente, seno a bem da espcie; o indivduo torna-se assim o escravo inconsciente da natureza, no momento em que julga obedecer apenas aos seus desejos. Uma pura quimera, logo desfeita, paira-lhe diante dos olhos e faz com que proceda. Esta iluso no mais do que o instinto. ele que, na maioria dos casos, representa o sentido da espcie, os interesses da espcie ante a vontade. Mas como aqui a vontade se torna individual, deve ser enganada de modo que conceba pelo sentido do indivduo os desgnios que o sentido da espcie tem sobre ela; assim, julga trabalhar em proveito do indivduo, quando na realidade apenas trabalha para a espcie, no sentido mais especial. no animal que o instinto representa o maior papel e que a sua manifestao exterior pode observar-se melhor; mas quanto aos caminhos secretos do instinto, como para tudo que interior, no podemos aprender a conhec-los seno em ns mesmos. Imagina-se, verdade, que o instinto tem pouco imprio no homem, ou pelo menos que s se manifesta no recm-nascido, procurando apoderar-se do seio da me. Mas na realidade, h um instinto muito determinado, muito manifesto e principalmente muito complicado, que nos guia na escolha to fina, to sria, to particular da pessoa que se ama e cuja posse se deseja. Se apenas se ocultasse sob o prazer dos sentidos a satisfao de uma necessidade imperiosa, a beleza ou a fealdade do outro indivduo seria indiferente. A procura apaixonada da beleza, o apreo que se lhe d, a escolha a que se procede, no dizem, pois, respeito ao interesse pessoal daquele que escolhe, embora assim o imagine, mas evidentemente ao interesse do futuro ente, no qual importa manter o mais possvel integral e puro o tipo da espcie. De fato, mil acidentes fsicos e mil desgraas morais podem causar um defeito no rosto humano: portanto, o verdadeiro tipo humano, em todo o seu conjunto, sempre novamente restabelecido, graas a esse sentimento da beleza que sempre domina e dirige o instinto dos sexos, sem o que o amor no passaria de uma necessidade revoltante. No h, pois, homem nenhum que primeiro no deseje ardentemente e no prefira as criaturas mais belas, porque realizam o tipo mais puro da espcie; depois h de procurar principalmente as qualidades que lhe faltam, ou as imperfeies opostas quelas que ele prprio tem e ach-las- belas: da vem, por exemplo, que as mulheres altas agradam aos homens baixos, e que os loiros gostam das morenas, etc. O entusiasmo vertiginoso que se apodera do homem vista de uma mulher cuja beleza responde ao seu ideal, e faz brilhar aos seus olhos a miragem da felicidade suprema se conseguir unir-se-lhe, no outra coisa seno o sentido da espcie que reconhece o seu cunho claro e brilhante, e que por ela gostaria de se perpetuar... Estas consideraes derramam uma luz viva sobre a natureza ntima de todo o instinto; como se depreende delas, o seu papel consiste quase sempre em fazer com que o indivduo proceda para bem da espcie. Porque, evidentemente, a solicitude de um inseto em encontrar uma certa flor, um determinado fruto, um excremento ou um bocado de carne, ou ento, como o icnumon, a larva de outro inseto para depor a os ovos, e a indiferena com que arrosta o trabalho e o perigo quando se trata de o conseguir, so muito anlogas preferncia exclusiva do homem por uma certa mulher, aquela cuja natureza individual corresponde sua: procura-a com to apaixonado zelo que, a despeito da razo, mais fcil sacrificar a felicidade da sua vida do que errar o seu alvo; no recua ante um casamento insensato, nem ante ligaes ruinosas, nem ante a desonra, nem ante atos criminosos, como o adultrio e a violao, e isto apenas para servir os fins da espcie, sob a lei soberana da natureza, em detrimento do prprio indivduo. Em toda a parte, o instinto parece dirigido por uma inteno individual, embora lhe seja completamente estranha. Todas as vezes que o indivduo, entregue a si prprio, seja incapaz de compreender os desgnios da natureza, ou impelido a resistir-lhe, ela faz surgir o instinto; eis por que este foi dado aos animais e mormente aos animais inferiores mais destitudos de inteligncia; porm, o homem no se lhe submete seno no caso especial de que nos ocupamos. No porque o homem fosse incapaz de compreender o fim da natureza, mas no o levaria a cabo com todo o necessrio zelo, mesmo custa da sua felicidade particular. Assim, neste instinto, como em todos os outros, a verdade reveste-se de iluso para atuar sobre a vontade. uma iluso de voluptuosidade que faz cintilar aos olhos do homem a imagem enganadora de uma felicidade soberana nos braos da formosura que a seu ver

  • nenhuma outra criatura humana iguala; outra iluso ainda, quando imagina que posse de um nico ente no mundo lhe assegura uma felicidade sem medida e sem limites. Julga sacrificar ao seu mero gozo a dificuldade e os esforos, enquanto na realidade s trabalha para a manuteno do tipo integral da espcie, para a procriao de um certo indivduo perfeitamente determinado que carece dessa unio para se realizar e entrar na existncia. tanto assim o carter do instinto proceder em vista de um fim de que, contudo, no tem a idia que o homem, levado pela iluso que o empolga, sente algumas vezes horror pelo fim a que conduzido, que a procriao dos seres; desejaria mesmo opor-se-lhe; o caso que se d em quase todas as ligaes fora do casamento. Satisfeita a paixo, todo o amante experimenta uma decepo estranha; admira-se de que o objeto de tantos desejos apaixonados s lhe proporciona um prazer efmero, seguido de um rpido desencanto. Esse desejo de fato, em comparao com outros desejos que agitam o corao do homem, como a espcie para o indivduo, como o infinito para o finito. S a espcie, pelo contrrio, aproveita da satisfao desse desejo, mas o indivduo no tem a conscincia disso; todos os sacrifcios que se imps, impelido pelo gnio da espcie, serviram para um fim que no era o seu. Tambm todo o amante, depois de realizada a grande obra da natureza, se encontra enganado; porque a iluso que o tornara vtima da espcie, desfez-se. Plato disse muito bem: Voluptas omnium maxime vaniloqua. Estas consideraes lanam nova luz sobre os instintos e o sentido esttico dos animais. Tambm estes so escravos dessa espcie de iluso que lhes oferece a miragem enganadora do prprio gozo, enquanto trabalham to assiduamente para a espcie e com to absoluto desinteresse: deste modo que o pssaro constri o ninho, o inseto procura o local adequado para depor os ovos, ou se entrega caa de uma presa de que ele no gozar, que deve servir de alimento s larvas futuras e que colocar ao lado dos ovos; assim tambm que a abelha, a vespa, a formiga trabalham nas suas construes futuras e tomam as mais complicadas disposies. O que dirige todos estes animais, evidentemente uma iluso que pe ao servio da espcie a mscara de um interesse egosta. esta a nica explicao verossmil do fenmeno interno e subjetivo que dirige as manifestaes do instinto. Mas vendo as coisas pelo exterior, notamos nos animais mais escravos do instinto, principalmente nos insetos, uma predominncia do sistema ganglionar, isto , do sistema nervoso subjetivo sobre o sis-tema cerebral ou objetivo; donde se conclui que os animais so impelidos no tanto por uma inteligncia objetiva e exata como por meio de representaes subjetivas excitando desejos que provm da ao do sistema ganglionar sobre o crebro, o que prova bem que se encontram sob o domnio de uma espcie de iluso: e essa ser a marcha fisiolgica de todo o instinto. Como esclarecimento, mencionarei ainda outro exemplo, menos caracterstico, certo, do instinto no homem: o apetite caprichoso das mulheres grvidas, que parece originar-se no fato do alimento do embrio exigir por vezes uma modificao particular ou determinada do sangue que a ele aflui: ento o alimento mais favorvel apresenta-se ato contnuo ao esprito da mulher grvida como objeto de vivo desejo, o que ainda uma iluso. A mulher teria portanto mais um instinto do que o homem. O sistema ganglionar tambm muito mais desenvolvido na mulher. A excessiva predominncia do crebro explica por que o homem tem menos instinto que os animais e por que que os seus instintos podem algumas vezes desviar-se da regra. Assim, por exemplo, o sentido da beleza que dirige a escolha na procura do amor, perde-se quando este degenera em vcio contra a natureza; deste modo uma certa mosca (musca vomitoria) em vez de dispor os ovos, segundo o seu instinto, sobre a carne em decomposio, depe-os sobre a flor do arum dracunculus enganada pelo cheiro cadavrico dessa planta. O amor tem, portanto, sempre por fundamento um instinto dirigido para a reproduo da espcie: esta verdade parecer-nos- clara at evidncia, se examinarmos o caso detidamente, como vamos fazer. Em primeiro lugar, deve-se consider que o homem por temperamento sujeito inconstncia no amor, a mulher felicidade. O amor do homem declina de um modo sensvel, desde o momento que foi satisfeito: dir-se-ia que todas as outras mulheres lhe oferecem mais atrativos do que a que possui; aspira mudana. O amor da mulher, pelo contrrio, aumenta a partir desse momento. essa uma conseqncia do fim da natureza que dirigido para a manuteno e por conseguinte para o aumento o mais considervel possvel da espcie. O homem, de fato, pode facilmente gerar mais de cem crianas num ano, se tiver outras tantas mulheres sua disposio; a mulher, embora tivesse o

  • mesmo nmero de maridos, no podia dar luz mais do que uma criana por ano, excetuando gmeos. Por isso o homem anda sempre em procura de outras mulheres, enquanto a mulher permanece fielmente dedicada a um s homem, porque a natureza a impele instintivamente e sem reflexo a conservar junto de si aquele que deve alimentar e proteger a pequena famlia futura. Da resulta que a fidelidade no casamento artificial para o homem e natural para a mulher, e portanto o adultrio da mulher, devido s conseqncias que acarreta, e porque contra a natureza, muito mais imperdovel que o do homem. Quero profundar a questo at ao mago para convencer e provar que o gosto pelas mulheres, por muito objetivo que possa parecer, no seno um instinto disfarado, isto , o sentido da espcie que se esfora por lhe manter o tipo. Devemos procurar mais de perto e examinar mais especialmente as consideraes que nos dirigem na perseguio desse prazer, embora faam uma figura singular numa obra filosfica as particularidades que passamos a indicar. Estas consideraes dividem-se as-sim: h primeiro as que dizem respeito diretamente ao tipo da espcie, isto , a beleza; h as que visam as qualidades psquicas, e por ltimo as consideraes puramente relativas, a necessidade de corrigir e de neutralizar umas pelas outras as disposies particulares e anormais dos dois indivduos. Examinemos separadamente cada uma destas divises. A primeira considerao que dirige a nossa inclinao e a nossa escolha, a idade. Em geral a mulher que escolhemos encontra-se na idade compreendida entre o comeo e o fim dos mnstruos; damos todavia uma preferncia decisiva ao perodo que decorre dos dezoito aos vinte e oito anos. Nenhuma mulher nos atrai no estando nas condies precedentes. Uma mulher idosa, isto , uma mulher incapaz de ter filhos, s nos inspira um sentimento de averso. A mocidade sem beleza sempre tem atrativo; a beleza sem mocidade no tem nenhum. Evidentemente a inteno inconsciente que nos dirige no outra seno a possibilidade geral de ter filhos; portanto qualquer indivduo perde em atrativo para o outro sexo, segundo se encontra mais ou menos afastado do perodo prprio para a gerao ou para a concepo. A segunda considerao a sade: as doenas agudas s perturbam as nossas inclinaes dum modo passageiro; as doenas crnicas, as caquexias, pelo contrrio, assustam ou afastam, porque se transmitem criana. A terceira considerao, o esqueleto, por-que a base do tipo da espcie. Depois da idade e da doena, o que sobretudo nos afasta uma conformao defeituosa: o mais lindo rosto no pode compensar um corpo deformado; mas um rosto feio num corpo direito ser sempre preferido. O que se nota mais um defeito do esqueleto, por exemplo, a estatura baixa numa pessoa gorda; as pernas demasiado curtas, ou ainda o andar cambaio, quando no conseqncia dum acidente exterior. Pelo contrrio um corpo notavelmente belo com-pensa muitos defeitos, encanta-nos. A extrema importncia que todos atribumos aos ps pequenos tambm se relaciona com estas consideraes; so de fato um carter essencial da espcie, pois nenhum outro animal tem o tarso e o metatarso reunidos to pequenos como o homem, o que lhe torna o andar vertical; um plantgrado. Jesus Sirach diz a este respeito (26, 23, segundo a traduo correta de Kraus): "uma mulher bem-feita e com bonitos ps comparvel a colunas de ouro sobre socos de prata". A importncia dos dentes no menor porque servem para a alimentao e so muito especialmente hereditrios. A quarta considerao uma certa abundncia de carnes, isto , a predominncia da faculdade vegetativa, da plasticidade, porque promete ao feto um alimento rico: por isso que uma mulher alta e magra desagrada ao homem dum modo surpreendente. Os seios bem redondos e bem conformados exercem uma fascinao notvel sobre os homens; pois encontrando-se em relao direta com as funes da gerao da mulher, prometem ao recm-nascido uma boa alimentao. As mulheres nutridas em excesso provocam a nossa repugnncia, porque esse estado mrbido sinal de atrofia do tero, e portanto uma marca de esterilidade; no a inteligncia que o sabe, o instinto. A beleza do rosto s se toma em considerao em ltimo lugar. Tambm neste ponto a parte ssea que se nota antes de tudo; procura-se principalmente um nariz bem-feito, enquanto um nariz pequeno, arrebitado, prejudica tudo. Uma leve inclinao no nariz, na parte superior ou inferior, tem decidido a sorte duma infinidade de raparigas, e com razo, pois se trata de manter o tipo da espcie. Uma boca pequena, formada de pequenos ossos maxilares muito essencial, como carter especfico do rosto humano, em oposio goela dos animais. Um queixo fugitivo e por assim dizer amputado,

  • particularmente desagradvel, visto que um queixo proeminente, mentum prominulum, um trao de carter da nossa espcie. Considera-se em ultimo lugar os olhos belos e a fonte, que se ligam s qualidades psquicas, principalmente s qualidades intelectuais, que fazem parte da herana da me. No podemos naturalmente enumerar com tanta exatido as consideraes inconscientes s quais se liga a inclinao das mulheres. Eis o que se pode afirmar dum modo geral. a idade de trinta a trinta e cinco anos que elas preferem a qualquer outra, mesmo dos jovens, que contudo re-presentam a flor da beleza masculina. A causa serem dirigidas no pelo gosto, mas pelo instinto, que reconhece nesses anos o apogeu da fora geradora. Em geral, do pouca importncia beleza, principalmente do rosto: como se elas s se encarregassem de a transmitir clllriana. acima de tudo a coragem e a fora do homem que lhes conquista o corao, porque essas qualidades so penhor de uma gerao de crianas robustas, e parecem assegurar-lhes no futuro um protetor corajoso. Qualquer defeito fsico do homem, qualquer desvio do tipo, pode a mulher suprimi-los na criana durante a gerao, se as partes correspondentes da sua constituio, defeituosas no homem, so nela irrepreensveis, ou ainda exageradas em sentido inverso. preciso excetuar apenas as qualidades do homem particulares ao seu sexo, e que me portanto no pode dar criana; por exemplo, a estrutura masculina do esqueleto, ombros largos, ancas estreitas, pernas direitas, fora dos msculos, coragem, barba, etc. Daqui procede que as mulheres amam muitas vezes homens feios, mas nunca homens efeminados, porque no podem neutralizar semelhante defeito. A segunda ordem de constituio importante no amor, diz respeito s qualidades psquicas. Encontraremos aqui o que so as qualidades de corao ou de carter do homem que atraem a mulher, porque a criana recebe esses predicados do pai. antes de tudo uma vontade firme, a deciso, a coragem e talvez ainda a retido e a bondade do corao que conquistam a mulher. As qualidades intelectuais, pelo contrrio, no exercem sobre ela nenhuma ao direta e instintiva, justamente porque o pai as no transmite aos filhos. A estupidez no prejudica os homens junto das mulheres: um esprito superior, ou mesmo o gnio pela sua desproporo tm muitas vezes um efeito deplorvel. V-se freqentemente um homem feio, estpido e grosseiro suplantar junto das mulheres um outro bem-feito, espirituoso, delicado. Observam-se igualmente casamentos de inclinao entre pessoas to diferentes quanto possvel sob o ponto de vista do esprito: ele, por exemplo, brutal, robusto e estpi-do; ela, meiga, impressionvel, pensando delicadamente, instruda, artista, etc; ou ento ele, muito sbio, cheio de talento; ela, uma pateta:

    Sic visum Veneri; cui placet impares Formas atque nimos sub juga anea

    Saevo mittere cum joco. A razo que as consideraes que predominam aqui nada tm de intelectual e dizem respeito ao instinto. No casamento o que se tem em vista no um colquio cheio de esprito, a procriao das crianas; o casamento uma unio de coraes e no de cabeas. Quando uma mulher afirma que est enamorada do esprito de um homem, uma pretenso v e ridcula, ou a exaltao de um ente degenerado. Os homens, pelo contrrio, no amor instintivo, no so determinados pelas qualidades de carter da mulher por essa razo que tantos Scrates encontraram as suas Xantipas, por exemplo Shakespeare, Albert Drer, Byron, etc. Todavia as qualidades intelectuais tm aqui uma grande influncia, porque so transmitidas pela me, mas a sua influncia facilmente excedida pela da beleza fsica que atua mais diretamente em pontos mais essenciais. Sucede contudo que muitas mes, instrudas pela experincia dessa influncia intelectual, mandam ensinar s filhas as belas-artes, as lnguas, etc, a fim de as tornar atraentes aos futuros maridos; procuram deste modo ajudar a inteligncia por meios artificiais, assim como, em caso de necessidade, procuram desenvolver as ancas e o peito. Notemos bem que neste caso apenas se trata de atrao instintiva e imediata, que s d origem verdadeira paixo do amor. Que uma mulher inteligente e instruda aprecie a inteligncia e o esprito num homem, que um homem razovel e refletido experimente o carter da noiva, e o tenha em considerao, isso nada influi neste caso: procede assim a razo no casamento quando ela que escolhe, mas no o amor apaixonado de que nos ocupamos exclusivamente. At agora apenas tenho tratado das consideraes absolutas, isto , daquelas que so de um

  • efeito geral; passo em seguida s consideraes relativas, que so individuais, porque nelas o fim retificar o tipo da espcie, j alterado, corrigir os defeitos do tipo que a prpria pessoa que escolhe tem em si, e voltar dessa maneira a uma pura representao desse tipo. A escolha individual, que se funda nessas consideraes puramente relativas, mais determinada, mais decidida e mais exclusiva que a escolha que se baseia nas consideraes absolutas; dessas consideraes relativas que nasce de ordinrio o amor apaixonado, enquanto os amores co-muns e passageiros s so guiados por consideraes absolutas. Nem sempre a beleza regular e perfeita que origina as grandes paixes. Para uma inclinao verdadeiramente apaixonada mister uma condio que s nos dado exprimir por uma metfora tirada qumica. As duas pessoas devem neutralizar-se, como um cido e um lcali formam um sal neutro. Toda a constituio sexual uma constituio incompleta; a imperfeio varia com os indivduos. Num e noutro sexo cada ser uma parte do todo incompleta e imperfeita. Essa parte, porm, pode ser mais ou menos considervel, segundo os temperamentos. Por isso cada indivduo encontra o seu complemento natural num determinado indivduo do sexo diferente que representa de algum modo a frao indispensvel ao tipo completo, que o acaba e lhe neutraliza os defeitos, e produz um tipo perfeito da humanidade no novo indivduo que deve nascer; porque sempre constituio desse futuro ser que tudo incessantemente converge. Os fisiologistas sabem que a sexualidade tanto no homem como na mulher tem inmeros graus; a virilidade pode descer at ao horrvel ginandro, at hipospadia, assim como h entre as mulheres graciosos andrginos; os dois sexos podem atingir o hermafroditismo completo, e esses indivduos, que conservam o justo meio entre os dois sexos e no pertencem a nenhum, so incapazes de se reproduzir. Para a neutralizao de duas individualidades uma pela outra, necessrio que o grau determinado de sexualidade num certo homem corresponda exatamente ao grau de sexualidade numa certa mulher, a fim de que essas duas disposies parciais se compensem justamente. por esta razo que o homem mais viril procurar a mulher por excelncia, e vice-versa. Os amantes medem por instinto esta parte proporcional necessria a cada um deles, e esse clculo inconsciente encontra-se com outras consideraes no fundo de todas as grandes paixes. Portanto, quando os enamorados falam num tom pattico da harmonia das suas almas, deve-se compreender a maior parte das vezes a harmonia das qualidades fsicas prprias de cada sexo, e de molde que dem origem a um ente perfeito; essa harmonia importa bem mais do que o acordo das suas almas, que, aps a cerimnia, se torna freqentemente num atroz desacordo. A isto acrescentam-se as consideraes relativas mais afastadas que repousam sobre o fato de que cada um procura neutralizar pela outra pessoa as suas fraquezas, imperfeies, e todos os defeitos do tipo normal, com receio que se perpetuem na criana futura, ou se exagerem e se tornem deformidades. Quanto mais fraco o homem sob o ponto de vista da fora muscular, mais h de procurar mulheres fortes; e a mulher proceder da mesma forma. Como todavia, uma lei da natureza ter a mulher uma fora muscular mais fraca, igualmente natural que as mulheres prefiram os homens robustos. A estatura tambm uma considerao importante. Os homens baixos tm uma tendncia decidida pelas mulheres altas e reciprocamente... A averso de uma mulher alta pelos homens altos , no fundo dos desgnios da natureza, para evitar uma raa gigantesca, quando a fora transmitida pela me fosse assaz fraca para assegurar uma longa durao a essa raa excepcional. Se uma mulher alta escolhe um marido alto, entre outros motivos para fazer melhor figura na sociedade, so os decendentes que ho de expiar essa loucura... At mesmo nas diversas partes do corpo cada um procura um corretivo aos prprios defeitos, e tanto maior o cuidado quanto a parte mais importante. Assim aqueles que tm o nariz chato contemplam com inexplicvel prazer um nariz aquilino, um perfil de papagaio; e assim com tudo o mais. Os homens magros e altos, admiram uma criaturinha demasiado cheia e pequena. Assim sucede com o temperamento; cada um prefere o que oposto ao seu e essa preferncia sempre proporcionada energia do seu temperamento. No quer isto dizer que uma pessoa perfeita num ponto qualquer goste das imperfeies contrrias; contudo suporta-as mais facilmente do que outros as su-portariam porque as crianas encontram nessas qualidades uma garantia contra uma imperfeio maior. Por exemplo, uma pessoa muito branca no sentir repugnncia por uma tez cor de azeitona; mas aos olhos de qualquer pessoa bastante morena um rosto extremamente branco parece divinamente belo. H casos excepcionais em que um homem se pode apaixonar por uma mulher decididamente

  • feia: e isto d-se de acordo com a lei da concordncia dos sexos, quando o conjunto dos defeitos e das irregularidades fsicas da mulher so a perfeita anttese e por conseguinte corretivo dos do homem. Neste caso a paixo atinge geralmente um grau extraordinrio. O indivduo obedece em tudo isto, sem qu