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Dos Direitos dos Animais 20 de dezembro de 2012 “A questão não é: eles podem raciocinar? Ou então, eles podem falar? Mas, eles podem sofrer?Jeremy Bentham 1. Contextualização. A preocupação com o sofrimento animal pode ser encontrada no pensamento hindu, e na ideia budista de compaixão universal, estendendo-se aos animais assim como aos seres humanos, mas não há nada semelhante a ser encontrado nas tradições ocidentais. Há algumas leis que indicam alguma consciência do bem-estar animal no Antigo Testamento, mas nada no Novo, nem na principal corrente de pensamento cristão em seus primeiros 1800 anos. Paulo rejeita com desdém o pensamento de que Deus possa se preocupar com o bem-estar de bois, e o incidente de Gadara, (com algumas discrepâncias, em: Marcos 5:1-20, Mateus 8:28-34 e Lucas 8:26-39) em que Jesus é descrito exorcizando um geraseno - ou gadareno - e enviando uma legião de demônios para uma vara de porcos fazendo-os se afogar no mar, é explicado por Agostinho como se pretendesse ensinar que os seres humanos não tem deveres para com os animais. Esta interpretação foi aceita por Tomás de Aquino, que afirmou que a única objeção possível à crueldade para com os animais é que isso pode levar a crueldade para com os seres humanos - de acordo com Aquino, não havia nada de errado em fazer os animais sofrerem. Isso se tornou o ponto de vista oficial da Igreja Católica Romana com tão bom - ou mau - efeito que mais tarde, em meados do século XIX, o Papa Pio IX recusou a permissão para a fundação de uma Sociedade para a Prevenção da Crueldade contra os Animais em Roma, sobre o fundamento de que a concessão de permissão implicaria que os seres humanos têm deveres para com as criaturas inferiores. Mesmo na Inglaterra, que tem uma reputação de ser peculiar com os animais, os primeiros esforços para obter proteção legal para os membros de outras espécies foram feitas apenas cerca de 200 anos atrás. Tais esforços foram recebidos com desprezo. O jornal The Times foi tão carente de valorização da ideia de que o sofrimento dos animais deve ser evitado, que atacou as propostas de legislação que iriam parar com o "esporte" bull-baiting. Disse o jornal de agosto: "O que quer que se meta com a disposição pessoal privada de tempo do homem, ou sua propriedade, é tirania". Animais, claramente, eram apenas propriedade.

Dos direitos dos animais - Roberto Brusnicki

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Dos Direitos dos Animais

20 de dezembro de 2012

“A questão não é: eles podem raciocinar? Ou então, eles podem falar?

Mas, eles podem sofrer?”

Jeremy Bentham

1. Contextualização.

A preocupação com o sofrimento animal pode ser encontrada no pensamento hindu,

e na ideia budista de compaixão universal, estendendo-se aos animais assim como aos

seres humanos, mas não há nada semelhante a ser encontrado nas tradições ocidentais.

Há algumas leis que indicam alguma consciência do bem-estar animal no Antigo

Testamento, mas nada no Novo, nem na principal corrente de pensamento cristão em

seus primeiros 1800 anos.

Paulo rejeita com desdém o pensamento de que Deus possa se preocupar com o

bem-estar de bois, e o incidente de Gadara, (com algumas discrepâncias, em: Marcos

5:1-20, Mateus 8:28-34 e Lucas 8:26-39) em que Jesus é descrito exorcizando um

geraseno - ou gadareno - e enviando uma legião de demônios para uma vara de porcos

fazendo-os se afogar no mar, é explicado por Agostinho como se pretendesse ensinar

que os seres humanos não tem deveres para com os animais.

Esta interpretação foi aceita por Tomás de Aquino, que afirmou que a única objeção

possível à crueldade para com os animais é que isso pode levar a crueldade para com os

seres humanos - de acordo com Aquino, não havia nada de errado em fazer os animais

sofrerem. Isso se tornou o ponto de vista oficial da Igreja Católica Romana com tão

bom - ou mau - efeito que mais tarde, em meados do século XIX, o Papa Pio IX recusou

a permissão para a fundação de uma Sociedade para a Prevenção da Crueldade contra os

Animais em Roma, sobre o fundamento de que a concessão de permissão implicaria que

os seres humanos têm deveres para com as criaturas inferiores.

Mesmo na Inglaterra, que tem uma reputação de ser peculiar com os animais, os

primeiros esforços para obter proteção legal para os membros de outras espécies foram

feitas apenas cerca de 200 anos atrás. Tais esforços foram recebidos com desprezo. O

jornal The Times foi tão carente de valorização da ideia de que o sofrimento dos animais

deve ser evitado, que atacou as propostas de legislação que iriam parar com o "esporte"

bull-baiting. Disse o jornal de agosto: "O que quer que se meta com a disposição

pessoal privada de tempo do homem, ou sua propriedade, é tirania". Animais,

claramente, eram apenas propriedade.

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Isso foi em 1800, aquele projeto foi derrotado. Foram necessários mais 20 anos para

se obter a primeira lei anti-crueldade nos estatutos britânicos. Dar qualquer

consideração, apesar de tudo, aos interesses dos animais foi um passo significativo além

da ideia de que a fronteira da nossa espécie é também a fronteira da moralidade. No

entanto, este passo foi restrito, já que não desafiava o nosso direito de fazer o que quer

que queiramos com outras espécies. Apenas crueldade - causando dor quando não havia

razão para fazê-lo - sadismo ou pura indiferença foi proibida. Os agricultores que

privam seus porcos de espaço para movimentarem-se não ofendem este conceito de

crueldade, pois eles estão apenas fazendo o que acham necessário para a produção de

bacon. Similarmente, os cientistas que envenenam uma centena de ratos a fim de

encontrar a dose letal de um agente aromatizante novo para uma pasta de dentes não são

cruéis, só se preocupam em seguir os procedimentos aceitos para testes de segurança de

novos produtos.

O movimento anti-crueldade do século XIX foi construído sobre o pressuposto de

que os interesses dos animais não humanos merecem proteção apenas quando graves

interesses humanos não estão em jogo. Os animais permaneceram muito claramente

"criaturas inferiores"; seres humanos eram bastante distintos, e infinitamente muito

acima de todas as formas de vida animal. Se houvesse conflito de nossos interesses com

os deles, não poderia haver nenhuma dúvida sobre cujos interesses devem ser

sacrificados: em todos os casos, seriam os interesses dos animais.

Muitos dos novos movimentos desafiam essa suposição. Questionam o direito da

espécie humana de assumir que os interesses do ser humano devem sempre prevalecer.

Eles procuraram - por mais absurdo que deve soar a primeira vista - estender tais noções

como a igualdade e direitos para animais não humanos.

2. Igualdade.

2.1. Todos os animais são iguais.

O princípio ético sobre o qual assenta a igualdade humana obriga que se tenha igual

consideração para com os animais. Quão plausível é esta extensão? É realmente

possível levar a sério o slogan do livro de George Orwell, Revolução dos Bichos:

“Todos os animais são iguais”? A resposta é: sim; mas a fim de evitar um mau

entendimento do que se quer dizer com isto, é necessário fazer-se a priori uma digressão

sobre a ideia de igualdade.

Será útil começar com a alegação mais familiar de que todos os seres humanos são

iguais. Quando se diz que todos os seres humanos, independentemente de sua raça,

credo ou sexo são iguais, o que é que se está afirmando? Aqueles que desejam defender

uma sociedade hierárquica e desigual, muitas vezes apontam que por qualquer teste que

escolhermos, simplesmente não é verdade que todos os seres humanos são iguais.

Goste-se ou não, deve-se encarar o fato de que os seres humanos vêm em formas e

tamanhos diferentes, pois eles vêm com diferentes capacidades morais, diferentes

capacidades intelectuais, diferentes quantidades de sentimento benevolente e

sensibilidade para as necessidades dos outros, diferentes capacidades de se comunicar

de forma eficaz, e diferente capacidade de sentir prazer e dor. Em suma, se a demanda

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por igualdade for baseadas na igualdade real de todos os seres humanos, teríamos de

parar de exigir igualdade. Seria um demanda injustificável.

Felizmente o caso para defender a igualdade dos seres humanos não depende de

igualdade de inteligência, capacidade moral, força física, ou de quaisquer outras

matérias de fato deste tipo. Igualdade é um ideal moral, e não uma simples afirmação de

um fato. Não há nenhuma razão lógica convincente para assumir que a diferença factual

na capacidade entre duas pessoas justifica qualquer diferença na quantidade de

consideração que damos a satisfazer as suas necessidades e interesses. O princípio da

igualdade de seres humanos, não é uma descrição de uma suposta igualdade real: é uma

prescrição de como se devem tratar os seres humanos.

Jeremy Bentham incorporou a base essencial da igualdade moral no seu sistema

utilitarista de ética na fórmula: "Cada um conta por um e nenhum por mais de um". Em

outras palavras, os interesses de todos - afetados por uma ação - deverão ser levados em

conta, e deve ser dado o mesmo peso aos mesmos interesses de qualquer outro ser.

É uma implicação deste princípio de igualdade que a preocupação para com os

outros não deve depender de como eles são, ou o que habilidades eles possuem -

embora exatamente o que esta preocupação requer que se faça pode variar de acordo

com as características das pessoas afetadas por aquilo que se faz. É sobre esta base que

o caso contra o racismo e o caso contra o sexismo devem ambos finalmente descansar, e

é de acordo com este princípio que o especismo é também a ser condenado. Se

possuindo um maior grau de inteligência não autoriza um ser humano a usar outro para

seus próprios fins, como pode conferir aos seres humanos o direito de explorar seres não

humanos?

Muitos filósofos têm proposto o princípio da igual consideração de interesses de

alguma forma ou outra, como um princípio moral básico, mas muitos deles não têm

reconhecido que este princípio aplica-se a membros de outras espécies, bem como a

nossa própria. Bentham foi um dos poucos que percebeu isso. Em uma passagem

referindo-se ao futuro, escrita em um momento em que os escravos negros em domínios

da Inglaterra ainda estavam sendo tratados como se trata os animais não humanos hoje,

Bentham escreveu:

"Chegará o dia em que o restante da criação vai adquirir aqueles direitos que

nunca poderiam ter sido tirados deles senão pela mão da tirania. Os franceses já

descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser seja abandonado,

irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se

reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro

são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo

destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou

talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou

um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê

de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não

fossem assim, que importância teria o fato? A questão não é saber se são capazes de

raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim se são passíveis de sofrimento".

Nesta passagem, Bentham aponta a capacidade de sofrimento como característica

vital que dá a um ser o direito a igual consideração. A capacidade de sofrimento - ou,

mais rigorosamente, para o sofrimento e/ou gozo da felicidade - não é apenas outra

característica, como a capacidade para a linguagem, ou para matemática superior.

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Bentham não está dizendo que aqueles que tentam marcar "a linha insuperável" que

determina se os interesses de um ser devem ser considerados como tendo selecionado a

característica errada. A capacidade de sofrimento e de sentir prazer é um pré-requisito

por ter interesses em tudo, uma condição que deve ser satisfeita antes que possamos

falar de interesses de maneira significativa. Seria um absurdo dizer que não é do

interesse de uma pedra para ser chutada ao longo da estrada por uma criança. Uma

pedra não tem interesse porque não pode sofrer. Nada que possamos fazer para ela

poderia fazer alguma diferença para o seu bem-estar. Um rato, por outro lado, tem um

interesse em não ser atormentado, porque ele vai sofrer se for.

Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar levar seu sofrimento

em consideração. Não importa a natureza do ser, o princípio da igualdade exige que o

seu sofrimento seja contado igualmente como igual sofrimento - na medida em que as

comparações grosseiras possam ser feitas - de qualquer outro ser. Se um ser não é capaz

de sofrer, ou de sentir prazer ou felicidade, não há nada para ser levado em conta. É por

isto que o limite de sensibilidade (utilizando o termo como uma conveniente, se não

estritamente precisa, taquigrafia para a capacidade de sofrer ou experimentar prazer ou

felicidade) é a única fronteira defensável de preocupação para os interesses dos outros.

Marcar este limite por alguma característica como a inteligência ou a racionalidade seria

marcá-lo de forma arbitrária. Porque não escolher alguma outra característica, como a

cor da pele?

Racistas violam o princípio da igualdade, dando maior peso aos interesses dos

membros da sua própria raça, quando há um conflito entre os seus interesses e os

interesses daqueles que de outra raça. Da mesma forma especistas permitem que os

interesses de sua própria espécie se sobreponham aos interesses maiores dos membros

de outras espécies.

2.2. Igual consideração de interesses.

Se o caso da igualdade animal é ouvido, o que se segue a partir dele? Não se segue,

naturalmente, que os animais devem ter todos os direitos que se pensa que os seres

humanos devem ter - incluindo, por exemplo, o direito de voto. É a igualdade de

consideração de interesses, não igualdade de direitos, que o caso de igualdade de

animais procura estabelecer. Mas o que exatamente isso significa, em termos práticos?

Isto precisa ser explicitado um pouco.

Se derem em um cavalo um tapa em seu traseiro com a mão aberta, o cavalo pode

começar a andar, mas provavelmente sentirá pouca dor. Sua pele é grossa o suficiente

para protegê-lo contra um tapa simples. Se baterem em um bebê da mesma forma, no

entanto, o bebê vai chorar e, presumivelmente, sente dor, porque sua pele é mais

sensível. Por isso, é pior bater em um bebê do que em um cavalo, se ambas os tapas são

administrados com igual força. Mas deve haver algum tipo de golpe - talvez um golpe

com um pedaço de pau pesado - que faria com que o cavalo sentisse tanta dor como

causa a um bebê golpeá-lo com a mão. Isso é o que entendesse por “mesma quantidade

de dor”, e se é considerado errado infligir tanta dor em um bebê sem um bom motivo,

então se deve, a menos que se seja especista, considerar igualmente errado infligir a

mesma quantidade de dor em um cavalo sem uma boa razão.

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Há outras diferenças entre seres humanos e animais que causam outras

complicações. Seres humanos adultos normais têm capacidades mentais que, em

determinadas circunstâncias, leva-os a sofrer mais do que os animais o fariam nas

mesmas circunstâncias. Se, por exemplo, decidir-se realizar experimentos científicos

extremamente dolorosos ou letais em seres humanos adultos normais, raptados ao acaso

de parques públicos para esse fim, todos os adultos que entram em um parque ficariam

com medo de serem sequestrados. O terror resultante seria uma forma de sofrimento

adicional para a dor da experiência.

Os mesmos experimentos realizados em alguns animais não humanos poderiam

causar menos sofrimento, já que tais animais não teriam o medo antecipatório de ser

sequestrados e usados em experimentos. Isto não significa, obviamente, que seria

correto realizar estas experiências em animais, mas apenas que há uma razão, que não é

especista, para preferir utilizar animais, em vez de seres humanos adultos normais, se a

experiência deve ser feita. Note-se, porém, que esse mesmo argumento nos dá uma

razão para preferir usar bebês humanos - órfãos, talvez - ou seres humanos retardados

para experiências, em vez de adultos, já que bebês e seres humanos retardados também

não têm ideia do que esta prestes a acontecer com eles.

Até onde este argumento diz respeito, animais não humanos, crianças e seres

humanos retardados estão na mesma categoria, e se for usado esse argumento para

justificar experiências em animais não humanos, tem-se de perguntar se também esta

preparado para permitir experimentos com bebês humanos e adultos com retardo. Se

fizermos uma distinção entre os animais e esses seres humanos, em que base podemos

fazer isso, além de uma descarada - e moralmente indefensável - preferência para os

membros da nossa própria espécie?

Há muitas áreas em que as capacidades mentais superiores dos seres humanos

adultos normais fazem a diferença: antecipação, memória mais detalhada, maior

conhecimento do que está acontecendo, e assim por diante. No entanto, estas diferenças

não apontam em conjunto para um maior sofrimento por parte do ser humano normal.

Às vezes, os animais podem sofrer mais por causa de sua compreensão mais limitada.

Se, por exemplo, tiver-se capturado prisioneiros em tempos de guerra, pode-se explicar-

lhes que, enquanto eles estiverem submissos à captura, pesquisa e confinamento, não

vão ser prejudicados e serão libertados no final das hostilidades. Se se captura um

animal selvagem, no entanto, não se pode explicar que não se esta ameaçando sua vida.

Um animal selvagem não pode distinguir uma tentativa de dominar e limitar de uma

tentativa de matar, uma causa tanto terror quanto a outra.

Pode-se objetar que as comparações dos sofrimentos de diferentes espécies são

impossíveis de se fazer, e que, por isso, quando os interesses de animais e seres

humanos colidirem, o princípio da igualdade não dá nenhuma orientação. É

provavelmente verdade que as comparações de sofrimento entre membros de diferentes

espécies não podem ser feitas com precisão, mas a precisão não é essencial. Mesmo que

fosse para evitar a imposição de sofrimento aos animais apenas quando é quase certo

que os interesses dos seres humanos não serão afetados, seria-se forçado a fazer

mudanças radicais no tratamento dos animais que envolvem a dieta humana, os métodos

agrícolas usados, os procedimentos experimentais em muitos campos da ciência, a

abordagem à vida selvagem e ao aprisionamento de caça, uso de peles, e as áreas de

entretenimento, como circos, rodeios e zoológicos. Como resultado, uma grande

quantidade de sofrimento seria evitada.

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2.3. Matança.

Até agora muito foi dito sobre a imposição de sofrimento aos animais, mas nada

sobre matá-los. Esta omissão foi deliberada. A aplicação do princípio da igualdade para

a imposição de sofrimento é, pelo menos em teoria, bastante simples. A dor e o

sofrimento são ruins e deveriam ser evitados ou minimizados, independentemente da

raça, sexo ou espécie do ser que sofre. Quão ruim é uma dor depende de quão intensa

ela é, e quanto tempo dura, mas dores da mesma magnitude são igualmente ruins

independentemente da espécie.

Enquanto a autoconsciência, a inteligência, a capacidade de relações significativas

com os outros, e assim por diante não são relevantes para a questão de infligir dor - já

que dor é dor, qualquer que sejam as outras capacidades, além da capacidade de sentir

dor, que o ser possa ter - estas capacidades podem ser relevantes para a questão de tirar

a vida. Não é arbitrário considerar que a vida de um ser autoconsciente, capaz de

pensamento abstrato, de planejamento para o futuro, de atos complexos de

comunicação, e assim por diante, é mais valioso do que a vida de um ser sem estas

capacidades.

Para ver a diferença entre as questões de infligir dor e tirar a vida, pode-se pensar

em como se poderia escolher dentro de própria espécie humana. Se houvesse a

necessidade de escolher entre salvar a vida de um ser humano normal ou de um ser

humano deficiente mental, provavelmente se escolheria salvar a vida do normal, mas se

houvesse que escolher entre evitar a dor no ser humano normal ou no deficiente mental

- imaginando que ambos receberam lesões dolorosas, mas superficiais, e só houvesse

analgésico suficiente para um deles - não é tão claro qual deveria ser escolhido. O

mesmo é verdadeiro quando se considera outras espécies. O mal da dor não é, em si,

afetado pelas outras características do ser que sente a dor, o valor da vida é afetado por

essas outras características.

Normalmente, isto significa que, se houver a necessidade de escolher entre a vida de

um ser humano e a vida de outro animal, deve-se escolher salvar a vida do ser humano,

mas pode haver casos especiais em que o inverso é verdadeiro, porque o ser humano em

questão não tem as capacidades de um ser humano normal. Portanto, esta visão não é

especista, embora possa parecer à primeira vista. A preferência, em casos normais, para

salvar uma vida humana sobre a vida de um animal, quando a escolha tem que ser feita,

é uma preferência baseada nas características que os seres humanos normais têm, e não

no simples fato de que eles são membros da própria espécie humana. É por isso que

quando se considera membros da própria espécie que não possuem as características dos

seres humanos normais não se pode mais dizer que suas vidas são sempre preferíveis às

de outros animais. Em geral, porém, a questão de quando é errado matar (sem dor) um

animal é uma questão que se precisa dar uma resposta imprecisa. Enquanto for

lembrado de que se deve dar o mesmo respeito à vida dos animais como se da à vida

dos seres humanos em nível mental semelhante, não se deve estar indo muito errado.

Page 7: Dos direitos dos animais - Roberto Brusnicki

3. Especismo na prática.

3.1 . Experimentação em animais.

Especismo pode ser visto na prática generalizada de fazer experimentos em outras

espécies, a fim de ver se determinadas substâncias são seguras para os seres humanos,

ou para testar uma teoria psicológica sobre os efeitos da punição severa na

aprendizagem, ou para experimentar vários novos compostos apenas no caso de algo

acontecer. As pessoas às vezes pensam que tudo isso é para propósitos médicos vitais, e

assim reduzir o sofrimento geral. Essa crença confortável esta muito longe da verdade.

Por exemplo, há um teste comum realizado por empresas de cosméticos como

Revlon, Avon e Bristol-Myers com muitas substâncias que pretendem colocar em seus

produtos. É o chamado Teste de Draize, devido ao homem que o desenvolveu. Começa-

se com seis coelhos albinos. Segurando firmemente cada animal, puxa-se a pálpebra

inferior para longe do globo ocular de modo a formar um pequeno copo. Dentro deste

copo se pinga 100 mililitros de tudo o que se deseja testar. Prendem-se as pálpebras do

coelho fechadas por um segundo e, em seguida, deixa-o. Um dia depois se inspeciona se

as pálpebras estão inchadas, a íris inflamada, a córnea ulcerada, ou se o coelho ficou

cego deste olho.

Este é um teste padrão, realizado sem anestesia com praticamente toda substância

vendida que pode cair no olho de alguém. Outros testes comerciais incluem o LD 50 - o

"LD" significa "Letal Dose" e "50" refere-se à percentagem de animais para a qual a

dose é para ser feita letal. Em outras palavras, em um teste LD 50, se pega uma amostra

de animais - ratos, camundongos, cães ou o que for - e alimenta-os com quantidades

concentradas da substância que esta se testando, até que mate-se metade deles por

envenenamento. Então se descobriu qual dose é letal para 50 por cento de sua amostra.

Isto é conhecido como o "valor LD50" e é suposto dar uma indicação de como a

substância é perigosa para os humanos. Além da angústia que causa aos animais, os

quais costumam ficar muito doentes, e metade dos quais, naturalmente, ficam tão doente

que morrem, o teste não é de todo confiável como um guia para a segurança humana.

Existem muitas variações entre as espécies. Talidomida, para dar apenas um exemplo

notório, não produz deformidades em muitas espécies animais, apesar de fazê-lo em

humanos.

Estes são testes padrões em laboratórios comerciais. Nas universidades também

existem muitas experiências que não poderiam ser consideradas justificadas por alguém

que leva a sério os interesses dos animais não humanos. Nos departamentos de

psicologia, experimentadores concebem infinitas variações e repetições de experimentos

que eram de pouco valor em primeiro lugar. Animais serão punidos com choques

elétricos, ou criados em isolamento para ver como isso os torna neuróticos.

3.2. Animais como alimento.

Para a grande maioria dos seres humanos, especialmente em áreas urbanas, as

sociedades industrializadas, a forma mais direta de contato com membros de outras

espécies é por vezes a refeição, os comem. Ao fazer isso, os tratam apenas como meios

para seus fins. Consideram a vida e bem-estar dos animais como subordinados ao gosto

por um determinado tipo de prato. "Gosto" deliberadamente - isto é puramente uma

Page 8: Dos direitos dos animais - Roberto Brusnicki

questão de agradar o paladar. Não pode haver defesa para comer carne em termos de

satisfação das necessidades nutricionais, uma vez que foi estabelecido acima de

qualquer dúvida que se pode satisfazer nossa necessidade de proteína e outros nutrientes

essenciais muito mais eficiente com uma dieta que substituiu a carne animal por

produtos de alta proteína vegetal .

Não é apenas o ato de matar que indica o que os humanos estão prontos para fazer

às outras espécies, a fim de satisfazer seus paladares. O sofrimento que infligem aos

animais enquanto estão vivos é talvez uma indicação ainda mais clara de seu especismo

do que o fato de que estão preparados para matá-los. Para se ter carne na mesa por um

preço que as pessoas possam pagar, a nossa sociedade tolera métodos de produção de

carne que confinam os animais sencientes em limitadas e inadequadas condições

durante suas vidas inteiras. Os animais são tratados como máquinas que convertem

pasto em carne, e qualquer inovação que resulta em uma "taxa de conversão" mais

elevada é suscetível de ser adotada.

Como certa autoridade no assunto disse: "crueldade é reconhecida somente quando a

rentabilidade se cessa". Assim, gaiolas são lotadas com três ou quatro galinhas, cada

gaiola com uma área útil de 40 cm por 45 cm, ou menos do que o tamanho de uma

única página de um jornal diário. As gaiolas têm o soalho de arame, uma vez que isto

reduz os custos de limpeza, embora o arame não seja adequado para os pés das galinhas,

o soalho possui um declive, uma vez que isto possibilita que os ovos rolem abaixo para

fácil coleta, embora isto faça com que seja mais difícil para as galinhas descansarem

confortavelmente. Nessas condições todos os instintos naturais das aves são frustrados:

elas não podem esticar as asas plenamente, andar livremente, banhar-se com pó, riscar o

chão ou construir um ninho. Apesar de nunca ter conhecido outras condições,

observadores notaram que os pássaros tentam realizar essas ações. Frustrados com a sua

incapacidade de fazer isso, eles muitas vezes desenvolvem o que os criadores chamam

de "vícios" e bicam uns aos outros até a morte. Para evitar isso, os bicos das aves jovens

são cortados.

Este tipo de tratamento não está limitado a aves domésticas. Porcos também são

agora criados em chiqueiros dentro de galpões. Estes animais são comparáveis aos cães

em inteligência, e precisam de um ambiente variado e estimulante, se não estão a sofrer

de estresse e tédio. Quaisquer pessoas que mantivessem um cão na forma como os

animais são frequentemente mantidos seriam suscetíveis de acusação, mas porque o

interesse em explorar suínos é maior do que o interesse em explorar cães, opõem-se a

crueldade para com os cães enquanto consomem o produto de crueldade contra os

porcos.

3.3. Outras formas de especismo.

Concentrou-se aqui na utilização de animais como alimentos e, em pesquisas, uma

vez que estes são exemplos de especismo sistemático em grande escala. Eles não são,

naturalmente, as únicas áreas em que o princípio da igual consideração de interesses,

estendido para além da espécie humana, tem implicações práticas. Existem muitas

outras áreas que suscitam problemas semelhantes, incluindo o comércio de peles, a caça

em todas as suas diferentes formas, circos, rodeios, zoológicos e o comércio de animais

de estimação. Desde que as questões filosóficas levantadas por estas questões não são

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muito diferentes das que se colocam quanto à utilização de animais como comida e na

pesquisa, deixa-se para o leitor aplicar os princípios éticos adequados a elas.

4. Algumas objeções, e suas refutações.

4.1. Como sabemos que os animais podem sentir dor?

Nós nunca podemos experimentar diretamente a dor de outro ser, quer seja o ser

humano ou não. Quando se vê uma criança cair e ralar o joelho, sabe-se que ela sente

dor por causa da forma como se comporta - ela chora, diz que o joelho dói, esfrega o

local dolorido, e assim por diante. Cada um sabe que se comportaria de certa forma

similar - talvez mais inibida - quando sente dor, e por isso aceita que a criança sente

algo parecido com o que se sente quando rala o próprio joelho.

A base na crença de que os animais podem sentir dor é semelhante à base da crença

de que a criança pode sentir dor. Animais comportam-se na dor da mesma maneira

como os seres humanos, e seu comportamento é suficiente para justificar a crença de

que eles sentem dor. É verdade que, com a exceção dos macacos que foram ensinados a

se comunicar por linguagem de sinais, eles não podem realmente dizer que eles estão

sentindo dor, mas as crianças quando são mais jovens não podem falar também. No

entanto, ambos encontram outras maneiras de fazer seus estados internos aparentes para

demonstrar que podemos ter a certeza de que um ser está sentindo dor, mesmo que o ser

não possa usar a linguagem falada.

Para reforçar a inferência do comportamento animal, pode-se apontar para o fato de

que os sistemas nervosos de todos os vertebrados, e especialmente de aves e mamíferos,

são fundamentalmente semelhantes. As partes do sistema nervoso humano que se

preocupam com a dor e sentimento são relativamente antigas, em termos evolutivos. Ao

contrário do córtex cerebral, que se desenvolveu somente após os ancestrais humanos

divergirem de outros mamíferos, o sistema nervoso básico evoluiu em ancestrais mais

distantes comuns ao homem e os outros animais "superiores". Este paralelo anatômico

faz com que seja provável que a capacidade de os animais sentirem seja semelhante a

capacidade humana.

É significativo que nenhum dos motivos existentes para acreditar que os animais

sentem dor espera se aplica às plantas. Não se tem observado comportamento sugerindo

a dor - alegações sensacionalistas em contrário não foram comprovadas - e plantas não

têm um sistema nervoso central organizado como o nosso.

4.2. Os animais comem uns aos outros, então por que não

deveríamos comê-los?

Isso pode ser chamado de Objeção Benjamin Franklin. Franklin relata em sua

autobiografia que ele foi por um tempo um vegetariano, mas sua abstinência de carne

animal chegou ao fim quando ele estava assistindo alguns amigos se preparem para

fritar um peixe que tinham acabado pegar. Quando o peixe foi cortado e aberto,

verificou-se ter um peixe menor no estômago. 'Bem', Franklin disse para si mesmo: "se

vocês comem uns aos outros, eu não vejo por que não possa comer você”, e começou a

fazê-lo.

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Franklin era pelo menos honesto. Ao contar essa história, ele confessa que ele se

convenceu da validade da objeção só depois de o peixe já estar na frigideira e cheirar

"admiravelmente bem", e ele observa que uma das vantagens de ser uma "criatura

racional" é que se pode encontrar uma razão para o que se quer fazer. As respostas que

podem ser feitas a essa objeção são tão óbvias que a aceitação de Franklin a ela

testemunha mais o seu amor a peixe frito do que aos seus poderes de raciocínio. Para

começar, a maioria dos animais que mata para se alimentar não seria capaz de

sobreviver se não o fizesse, enquanto humanos não tem necessidade de comer carne

animal. Em seguida, é estranho que os seres humanos, que normalmente pensam do

comportamento dos animais como "bestial", deveriam, quando lhes convém, usar um

argumento que implica que devemos olhar para os animais para orientação moral. O

ponto decisivo, no entanto, é que os animais não humanos não são capazes de

considerar as alternativas abertas a eles ou de refletir sobre a ética da sua dieta. Por isso,

é impossível manter os animais responsáveis pelo que fazem, ou julgar que por causa

das suas matanças eles “mereçam” ser tratados de maneira similar. Aqueles que leem

estas linhas, por outro lado, devem considerar a justificabilidade de seus hábitos

alimentares. Não se pode fugir à responsabilidade imitando seres que são incapazes de

fazer essa escolha.

Algumas vezes as pessoas apontam para o fato de que os animais comem uns aos

outros, a fim de fazer um ponto ligeiramente diferente. Este fato sugere, eles pensam,

não que os animais merecem ser comidos, mas sim que existe uma lei natural, segundo

a qual o mais forte alimenta-se do mais fraco, uma espécie darwinista de "sobrevivência

do mais apto", em que ao comer animais estamos apenas a fazer nossa parte.

Esta interpretação da objeção faz dois erros básicos, um erro com relação aos fatos e

o outro um erro de raciocínio. O erro factual reside no pressuposto de que o nosso

próprio consumo de animais faz parte do processo natural de evolução. Isso pode ser

verdade para algumas culturas primitivas, que ainda caçam por comida, mas não tem

nada a ver com a produção em massa de animais domésticos em fazendas industriais.

Suponha que se casse a própria comida, e que isso foi parte de algum processo

evolutivo natural. Ainda haveria um erro de raciocínio no pressuposto de que, porque

este processo é natural, é certo. É, sem dúvida, "natural" para as mulheres produzir uma

criança a cada ano ou dois desde a puberdade até a menopausa, mas isso não quer dizer

que é errado interferir com este processo. É preciso se conhecer as leis naturais que

afetam a humanidade de modo a estimar as consequências do que se faz, mas não há

necessidade de assumir que a forma natural de fazer algo é incapaz de melhoria.