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Antonio Candido REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANDIDO, A. A organização do 2.º Congresso. In: ANTUNES, B.; FERREIRA, S. (Org.). 50 anos depois: estudos literários no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2014. CANDIDO, A. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 8, p. 67-89, 1970. CANDIDO, A. Discurso de paraninfo. In: ______. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins, 1959. CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965. CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964. transforma em interno, como é que o social e o psíquico deixam de ser social e psíquico para se tornarem realidade estética” (2014). Com a mesma clareza dispensada às aulas, Antonio Candido dedicou-se aos ensaios, mui- tos dos quais se tornaram referência obrigatória para o estudo de autores e temas e mesmo para a constituição de um método de análise literária. Nesse sentido, “Uma dialética da malandragem” (1970), dedicado a Memórias de um sargento de milícias, mudou a história desse romance e colo- cou em prática de forma consistente e sugestiva a metodologia de leitura da obra em sua relação com a história e a sociedade que ele vinha ela- borando desde a década anterior. Antonio Candido formou muitos professores e intelectuais brasileiros. Construiu, na verda- de, uma tradição da crítica dialética no Brasil. Muitos de seus textos tornaram-se populares, não apenas porque são lidos nas salas de aula, mas porque emprestam argumentos e métodos a muitos leitores que buscam neles esclareci- mentos sobre literatura, cultura, política, hu- manismo. Suas ideias sobre a literatura como um direito humano são pioneiras e de larga aceitação no âmbito das ciências humanas. Nos ensaios em que trata do assunto, consegue uma das façanhas só possíveis a um grande in- telectual que nunca perdeu o chão da história e das contradições de seu tempo: expor a um público heterogêneo as questões mais urgentes do ponto de vista social e artístico sem perder o rigor e o equilíbrio que elas exigem. Das atividades que exerceu, sua maior voca- ção talvez tenha sido a de professor, cuja mis- são sintetiza em discurso de paraninfo para a turma de Sociologia de 1947: “viver a aventura do pensamento junto com os alunos; procurar enriquecer de tal maneira a nossa sensibilidade e a nossa visão das coisas, que nos seja possível transmitir, ao lado e acima da noção e da ideia, o sentimento imponderável de calor e de harmonia que permite estender com maturidade os olhos sobre o mundo e o semelhante” (2002). Por tudo isso, pode-se dizer que a figura de Antonio Candido não encontrará um substituto tão cedo. Não é nenhum exagero afirmar que O HUMANISMO DE ANTONIO CANDIDO BENEDITO ANTUNES C onsiderado um dos maiores intelectuais bra- sileiros de todos os tempos, Antonio Candi- do (1918-2018) foi, como poucos, um humanista convicto, que aplicou seus princípios em tudo o que fez ao longo da vida. Professor, pensador e militante político, teve em todas essas atividades uma atuação notável, que quase não encontra paralelo. Recordar sua bela figura e principal- mente refletir sobre sua obra é uma forma de se contrapor às adversidades do presente. Como professor, Antonio Candido foi caris- mático pela inteligência, humor e clareza na ex- posição da matéria. Suas aulas sempre atraíram inúmeros alunos e mesmo colegas, que não per- diam a oportunidade de sorver os conhecimen- tos generosamente ali distribuídos e, de quebra, aprender um pouco com ele a ser professor. Como pensador, deixou uma obra incomum, da qual talvez a Formação da Literatura Brasileira (1959) seja o título mais expressivo, pela originalidade, densidade e atualidade. Costuma ser citado como um dos estudos fundamentais para se entender Benedito Antunes é professor de Literatura Brasileira da UNESP de Assis © Wikimedia / Ministério da Cultura Antonio Candido PROFESSOR, PENSADOR E MILITANTE POLÍTICO, ELE TEVE UMA ATUAÇÃO NOTÁVEL Dossiê Antonio Candido o Brasil. Mas há também o clássico Os parcei- ros do Rio Bonito (1964), sua tese de Sociologia, e Literatura e Sociedade (1965), em que expõe seu original método de análise da obra literária. Como militante político, lutou incansavelmente pela igualdade social em várias frentes, tanto es- crevendo textos “de ocasião” como participando de atos e eventos ou atuando partidariamente. Além de militante do antigo Partido Socialista Brasileiro, foi um dos fundadores do PT, por acre- ditar que esse partido poderia contribuir para a diminuição da injustiça social no País. Antonio Candido ingressou na carreira aca- dêmica em 1942, como professor de Sociologia da USP, mas em 1958 passou a ensinar Lite- ratura Brasileira na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, que ajudou a criar. Costumava repetir a amigos que era grato a essa Faculdade por lhe ter da- do a oportunidade de dedicar-se à sua maior vocação: os estudos literários. A esse propósito, declarou que foi no Segundo Congresso Brasi- leiro de Crítica e História Literária, realizado em Assis, em 1961, que expôs os princípios de seu conhecido método crítico, num “primeiro esforço para mostrar como é que o externo se foi único na interpretação do Brasil por meio da literatura. Seu estilo claro, elegante, envolvente, cultivado conscientemente como parte de sua missão de professor, serviu para enfrentar as principais contradições de seu tempo com ex- tremo respeito ao próximo, discutindo ideias e fenômenos, e não pessoas, tornando-se, por isso, uma verdadeira unanimidade entre os que o co- nheceram como aluno, amigo ou leitor. Mesmo depois de afastado de suas atividades profissionais, Antonio Candido continuava ati- vo, recebendo pesquisadores, colegas e amigos. Conversar com ele foi sempre uma atividade cativante e prazerosa. Sua prodigiosa memória lhe permitia evocar fatos, personalidades artísti- cas e históricas com rara lucidez. Ultimamente, segundo costumava dizer, mais relia do que lia. Machado de Assis era um dos autores preferidos nessa atividade. E a seu respeito afirmou certa vez que o escritor era bom em qualquer língua, independentemente da tradução. Sempre muito agudo em suas observações, Antonio Candido nunca perdeu o humor e a visão otimista que alimentava do ser humano. Para ele, apesar de tudo, havia progresso na história do homem, uma espécie de triunfo do socialismo, perspectiva que resumia seu ideal de humanização. UNESPCIÊNCIA | JULHO 2018 30 31 JULHO 2018 | UNESPCIÊNCIA

Dossiê Antonio Candido - unespciencia.com.br · Antonio Candido Antonio Candido professores, Amora procurou convocar, em sua grande maioria, profissionais recém-habi - litados,

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Antonio Candido

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

CANDIDO, A. A organização do 2.º Congresso. In: ANTUNES, B.; FERREIRA, S. (Org.). 50 anos depois: estudos literários no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

CANDIDO, A. Dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 8, p. 67-89, 1970.

CANDIDO, A. Discurso de paraninfo. In: ______. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2002.

CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins, 1959.

CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.

CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

transforma em interno, como é que o social e o psíquico deixam de ser social e psíquico para se tornarem realidade estética” (2014).

Com a mesma clareza dispensada às aulas, Antonio Candido dedicou-se aos ensaios, mui-tos dos quais se tornaram referência obrigatória para o estudo de autores e temas e mesmo para a constituição de um método de análise literária. Nesse sentido, “Uma dialética da malandragem” (1970), dedicado a Memórias de um sargento de milícias, mudou a história desse romance e colo-cou em prática de forma consistente e sugestiva a metodologia de leitura da obra em sua relação com a história e a sociedade que ele vinha ela-borando desde a década anterior.

Antonio Candido formou muitos professores e intelectuais brasileiros. Construiu, na verda-de, uma tradição da crítica dialética no Brasil. Muitos de seus textos tornaram-se populares, não apenas porque são lidos nas salas de aula, mas porque emprestam argumentos e métodos a muitos leitores que buscam neles esclareci-mentos sobre literatura, cultura, política, hu-manismo. Suas ideias sobre a literatura como um direito humano são pioneiras e de larga aceitação no âmbito das ciências humanas. Nos ensaios em que trata do assunto, consegue uma das façanhas só possíveis a um grande in-telectual que nunca perdeu o chão da história e das contradições de seu tempo: expor a um público heterogêneo as questões mais urgentes do ponto de vista social e artístico sem perder o rigor e o equilíbrio que elas exigem.

Das atividades que exerceu, sua maior voca-ção talvez tenha sido a de professor, cuja mis-são sintetiza em discurso de paraninfo para a turma de Sociologia de 1947: “viver a aventura do pensamento junto com os alunos; procurar enriquecer de tal maneira a nossa sensibilidade e a nossa visão das coisas, que nos seja possível transmitir, ao lado e acima da noção e da ideia, o sentimento imponderável de calor e de harmonia que permite estender com maturidade os olhos sobre o mundo e o semelhante” (2002).

Por tudo isso, pode-se dizer que a figura de Antonio Candido não encontrará um substituto tão cedo. Não é nenhum exagero afirmar que

O HUMANISMO DE ANTONIO CANDIDOBENEDITO ANTUNES

C onsiderado um dos maiores intelectuais bra-sileiros de todos os tempos, Antonio Candi-

do (1918-2018) foi, como poucos, um humanista convicto, que aplicou seus princípios em tudo o que fez ao longo da vida. Professor, pensador e militante político, teve em todas essas atividades uma atuação notável, que quase não encontra paralelo. Recordar sua bela figura e principal-mente refletir sobre sua obra é uma forma de se contrapor às adversidades do presente.

Como professor, Antonio Candido foi caris-mático pela inteligência, humor e clareza na ex-posição da matéria. Suas aulas sempre atraíram inúmeros alunos e mesmo colegas, que não per-diam a oportunidade de sorver os conhecimen-tos generosamente ali distribuídos e, de quebra, aprender um pouco com ele a ser professor. Como pensador, deixou uma obra incomum, da qual talvez a Formação da Literatura Brasileira (1959) seja o título mais expressivo, pela originalidade, densidade e atualidade. Costuma ser citado como um dos estudos fundamentais para se entender

Benedito Antunes é professor de Literatura Brasileira da UNESP de Assis

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Antonio Candido

PROFESSOR, PENSADOR E MILITANTE POLÍTICO, ELE TEVE UMA ATUAÇÃO NOTÁVEL

Dossiê Antonio Candido o Brasil. Mas há também o clássico Os parcei-ros do Rio Bonito (1964), sua tese de Sociologia, e Literatura e Sociedade (1965), em que expõe seu original método de análise da obra literária. Como militante político, lutou incansavelmente pela igualdade social em várias frentes, tanto es-crevendo textos “de ocasião” como participando de atos e eventos ou atuando partidariamente. Além de militante do antigo Partido Socialista Brasileiro, foi um dos fundadores do PT, por acre-ditar que esse partido poderia contribuir para a diminuição da injustiça social no País.

Antonio Candido ingressou na carreira aca-dêmica em 1942, como professor de Sociologia da USP, mas em 1958 passou a ensinar Lite-ratura Brasileira na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, que ajudou a criar. Costumava repetir a amigos que era grato a essa Faculdade por lhe ter da-do a oportunidade de dedicar-se à sua maior vocação: os estudos literários. A esse propósito, declarou que foi no Segundo Congresso Brasi-leiro de Crítica e História Literária, realizado em Assis, em 1961, que expôs os princípios de seu conhecido método crítico, num “primeiro esforço para mostrar como é que o externo se

foi único na interpretação do Brasil por meio da literatura. Seu estilo claro, elegante, envolvente, cultivado conscientemente como parte de sua missão de professor, serviu para enfrentar as principais contradições de seu tempo com ex-tremo respeito ao próximo, discutindo ideias e fenômenos, e não pessoas, tornando-se, por isso, uma verdadeira unanimidade entre os que o co-nheceram como aluno, amigo ou leitor.

Mesmo depois de afastado de suas atividades profissionais, Antonio Candido continuava ati-vo, recebendo pesquisadores, colegas e amigos. Conversar com ele foi sempre uma atividade cativante e prazerosa. Sua prodigiosa memória lhe permitia evocar fatos, personalidades artísti-cas e históricas com rara lucidez. Ultimamente, segundo costumava dizer, mais relia do que lia. Machado de Assis era um dos autores preferidos nessa atividade. E a seu respeito afirmou certa vez que o escritor era bom em qualquer língua, independentemente da tradução. Sempre muito agudo em suas observações, Antonio Candido nunca perdeu o humor e a visão otimista que alimentava do ser humano. Para ele, apesar de tudo, havia progresso na história do homem, uma espécie de triunfo do socialismo, perspectiva que resumia seu ideal de humanização.

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Antonio CandidoAntonio Candido

A PASSAGEM DE ANTONIO CANDIDO POR ASSISRODRIGO RAMASSOTE

Em 1958, Antonio Candido decidiu desligar--se da cadeira de Sociologia II da Facul-

dade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP), na qual exercera atividades de docência e de pesqui-sa na área de sociologia durante dezesseis anos. Iria assumir a regência da disciplina de Literatura Brasileira no curso de Letras da recém-inaugurada Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras de Assis, do Instituto Isolado de Ensino Superior do Governo do Estado de São Paulo (atualmente integrado à Unesp). Tal atitude não deixou de causar surpresa e certa perplexidade mesmo entre seus amigos mais próximos. Quem relata é o próprio Candido, num registro eloquente da estranheza provocada pela situação. Diz ele que, ao receber a notícia na Europa, Paulo Emílio Salles Gomes, estudioso de cinema e companheiro intelectual desde os idos da revista Clima, teria exclamado:

lectual. Neste texto, gostaria de registrar certas implicações que ainda não foram devidamente avaliadas, destacando: a) em primeiro lugar, a consolidação de sua identidade profissio-nal como professor e pesquisador no campo das Letras; b) em seguida, o delineamento de uma plataforma de ensino que irá, em gran-de medida, nortear a constituição do curso de Teoria Literária e Literatura Comparada, inaugurado e coordenado por ele, a partir de 2 dezembro de 1960, na FFCL-USP; c) por fim, a cristalização dos fundamentos de um método crítico preocupado em equacionar de maneira sofisticada as interfaces entre litera-tura e sociedade.

Sob a coordenação geral de Antonio Soares Amora (1917-1999), professor titular da Cadeira de Literatura Portuguesa do curso de Letras da FFCL-USP, começaram a ser realizadas, a partir de 1957, as primeiras providências necessárias para a implantação institucional da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em Assis. Sua criação, ocorrida em sessão solene no dia 16 de agosto de 1958, deu-se no contexto de expansão do ensino superior público para o interior do Estado, tendo co-mo objetivo atender à demanda estudantil por vagas no ensino superior, bem como ampliar o contingente de professores formados para o exercício do magistério secundário.

Com o desafio de implantar numa peque-na cidade distante da capital uma instituição universitária de alto nível de excelência aca-dêmica, foi iniciado no mesmo ano o “trabalho preparatório do corpo docente por meio de reuniões prévias, ainda em São Paulo, a fim de que a equipe se entrosasse na medida do possível e definisse seu espírito” (Candido, 1992:250). Para compor a equipe inicial de

“Que coisa extraordinária! An-tonio Candido vai poder afinal se dedicar à literatura, e ensinando literatura brasileira naquela pai-sagem da Umbria! Que coisa ex-traordinária! [risos]. Ele imaginou que seria uma faculdade italiana e me viu em Assis, na Úmbria”. Quando foi alertado de que se tra-tava na verdade de uma pacata cidadezinha situada no interior paulista, o crítico de cinema teria bradado: “Assis da Sorocabana? Então o Antonio é uma besta!” (Candido, 2001, p. 113).

Mal-entendido à parte, a resposta de Paulo Emílio dá notícia da radicalidade da decisão tomada por Candido. Curta, porém decisiva, a passagem de dois anos e meio por Assis, ocorrida entre o segundo semestre de 1958 e o final de 1960, demarcou, no entanto, uma inflexão em sua trajetória profissional e inte-

EM 1958, CANDIDO DESLIGOU-SE DA USP PARA ASSUMIR A REGÊNCIA DA DISCIPLINA DE LITERATURA BRASILEIRA NO CURSO DE LETRAS DA RECÉM-INAUGURADA FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS

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Antonio CandidoAntonio Candido

professores, Amora procurou convocar, em sua grande maioria, profissionais recém-habi-litados, mas já com contribuições intelectuais significativas, oriundos tanto dos quadros da FFLC/USP, quanto de centros universitários estrangeiros. Informado por um colega em co-mum do interesse de Candido em afastar-se das funções de professor-assistente da Cadeira de Sociologia II para lecionar na área de Le-tras, Amora decidiu convidá-lo para integrar o grupo, oferecendo-lhe a vaga na cadeira de Literatura Brasileira. Sem hesitar, Candido aceitou o convite e começou a participar das reuniões periódicas: “Minha decisão foi imedia-ta. Era hora de mudar e Assis foi fundamental na minha vida” (Candido, 2001, p. 113). Como compreender tal reviravolta?

Intelectual maduro, prestes a completar quarenta anos de idade, Candido encontrava--se, em fins de 1957, num momento delicado de sua carreira profissional e acadêmica. For-mado em Ciências Sociais pela FFLC-USP (1939-1941), ele iniciou suas atividades inte-lectuais como crítico literário da revista Cli-ma, periódico cultural fundado e dirigido por um grupo talentoso de alunos da universidade (2). Com a formação e o prestígio obtidos em Clima, ingressou na grande imprensa paulis-ta, assumindo a coluna de crítica literária do jornal Folha da Manhã [atualmente Folha de S.Paulo] (1943-1945), e, após uma interrup-ção de sete meses, do Correio de São Paulo (1945 1947) (3). Ao mesmo tempo, tornou-se professor-assistente da Cadeira de Sociologia II, lecionando disciplinas introdutórias em cursos de graduação na USP.

Em julho de 1945, participa do concurso para provimento da Cadeira de Literatura Brasileira na FFCL-USP. Para concorrer ao posto, redige

o estudo Introdução ao método crítico de Sílvio Romero (4), releitura crítica dos fundamentos teórico-conceituais e limites interpretativos do pensamento crítico do intelectual sergipano. Embora não tenha conquistado a colocação, em decisão polêmica decretada pela Conselho Universitário (5), obtém o título de Livre-Do-cente na área da cadeira, o que lhe garantiu as credenciais necessárias para sua futura trans-ferência para o campo das letras.

Deixando de lado os estudos literários, Can-dido inicia, em 1947, uma nova fase de sua trajetória, na qual passa a investir na área de sua formação acadêmica inicial. Surgem, então, os primeiros artigos de sociologia, que perfi-zeram, no conjunto, doze escritos publicados entre 1947 e 1956 (6). Em paralelo, principia a pesquisa que subsidiou sua tese de doutorado sobre a obtenção dos meios de vida e as formas correlatas de sociabilidade dos caipiras paulis-tas, a partir de pesquisa de campo realizada em terras da Fazenda Bela Aliança, situada na área rural do município de Bofete (SP). Defendida em 1954, a tese, originalmente intitulada “Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre a crise nos meios de subsistência do caipira paulista” (7), tornou-se paulatinamente uma referência incontornável para a análise do meio rural e um clássico da sociologia brasileira.

A partir da primeira metade da década de 1950, o progressivo avanço do processo de institucionalização das ciências sociais e a crescente hegemonia de um padrão de traba-lho intelectual e de uma agenda de pesquisas marcadas pela ênfase em técnicas e metodo-logias quantitativas e por questões histórico--estruturais provocaram uma reconfiguração no exercício profissional da sociologia em São Paulo. Sob a liderança de Florestan Fernandes (1920-1995), à frente da Cadeira de Sociolo-gia I, a oposição entre atividades culturais e científicas tornou-se cada vez mais polariza-da e aguda, criando condições desfavoráveis para Candido prosseguir com seus interesses intelectuais (8).

No final de 1957, essa tensão profissional começa a ser dissolvida, com o convite de

Amora. À maneira de um ritual de passagem (9) , os dois anos e meio passados em Assis demarcaram uma nítida transição entre as etapas da trajetória de Candido. Essencial no processo de reconversão simbólica de sua identidade profissional, a passagem por Assis, acima de tudo, garantiu-lhe o respaldo acadê-mico necessário para legitimar sua condição de professor e pesquisador da área deLetras. E tal fato não passou despercebido aos seus olhos: “foi bom passar dois anos fora da USP.Quando voltei, no começo de 1961, as pessoas já estavam habituadas à minha nova condição” (Candido, 1993: 37).

A partir do segundo semestre de 1958, Can-dido passa a oferecer as primeiras disciplinas no curso de Letras. Para os alunos ingressantes, leciona, com a colaboração de Nief Sáfady, o curso “Introdução aos estudos literários”. Em 1961, ao regressar à USP para assumir o curso de Teoria Literária e Literatura Comparada, o mesmo conteúdo será oferecido, estimulando a consolidação de uma modalidade de pesquisa que viria a ser decisiva na produção crítica de alguns de seus mais destacados alunos (10).

No ano seguinte, Candido oferece o cur-so optativo “O romance romântico brasilei-ro: Manuel Antonio de Almeida e Alencar”. Durante as aulas, explorou, com a “única aluna que escolheu literatura brasileira”, a leitura e análise dos romances Memória de um Sargento de Milícias (1853) e Senhora (1875). De acordo com Teresa Vara, a aluna em questão, a composição do entrecho do romance foi esmiuçada de modo exaustivo, na tentativa de “captar a trama, o tecido, a combinação dos fios narrativos, os elementos de ligação de um capítulo para o outro (os elementos conectivos como ele denominava), os cortes e a costura, até chegar bem próxi-mo de entender o princípio estrutural que explicava o romance como um todo” (Vara, 1999: 230). Quase dez anos depois viria a pú-blico o resultado desse esforço interpretativo: “Dialética da malandragem” (1970), um de seus ensaios mais conhecidos e influentes, no qual ele reavalia um romance até então considerado pouco expressivo, renovando sua compreensão e interferindo no destino posterior de sua recepção crítica.

A PASSAGEM POR ASSIS GARANTIU AO INTECTUAL O RESPALDO ACADÊMICO NECESSÁRIO PARA LEGITIMAR SUA CONDIÇÃO DE PROFESSOR E PESQUISADOR DA ÁREA DE LETRAS

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Antonio CandidoAntonio Candido

No plano da produção crítica, o ambiente encontrado em Assis representou “uma espécie de renascimento intelectual” (Candido, 2001, p. 251). Entre 1958 e 1960, Candido publica no Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo um expressivo número de artigos sobre literatura nacional e estrangeira, parte dos quais foi recolhido na coletânea O obser-vador literário (1959).

Entre 24 e 30 de julho de 1961, realizou-se em Assis o II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, evento de especial im-portância. Sugerida durante o “I Congresso de Crítica e Histórias Literária”, ocorrido em 1960 na cidade de Recife (PE), após a desis-tência de Fortaleza (CE), por “impossibilida-des de ordem programática”, a proposta de realização da segunda edição na “pequena, ainda que progressiva” (Anais, 1963, p. 17) (11) cidade de Assis, foi aprovada por aclamação pelos participantes da plenária final. Embora já tivesse retornado para a FFCL/USP, para assumir a direção do curso de Teoria Literá-

ria e Literatura Comparada, Candido par-ticipa da comissão organizadora do evento, encarregando-se, juntamente com o Antonio Soares Amora e Rolando Morel Pinto, da Co-missão Coordenadora das Teses e Relatórios. Como lembra Vara: “ali, naquela cidadezinha pacata do interior paulista”, reuniram-se “os bambas da crítica, figuras do porte de Sérgio Buarque de Holanda, Anatol Rosenfeld, Pau-lo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Wilson Martins, Wilson Cardoso, Jo-el Pontes, Hélcio Martins, Benedito Nunes, Adolfo Casais Monteiro, Afonso Romano de Sant’Anna, Roberto Schwarz, João Alexandre Barbosa, Décio Pignatari, Augusto de Cam-pos, Haroldo de Campos” (Vara, 1999: 234).

Na ocasião, Antonio Candido fez a leitura de uma versão preliminar do ensaio “Crítica e sociologia” (12) , no qual são apresentadas as premissas básicas de suas formulações so-bre as interfaces entre literatura e sociedade, reivindicando uma leitura crítica que levasse em conta os elementos externos à obra co-mo fatores integrantes da estrutura literária. Definiram-se aí os fundamentos de uma pro-posta crítica, que vinha sendo amadurecida desde a conclusão da redação da Formação da Literatura Brasileira e que ele designaria, posteriormente, de “redução estrutural”, isto é, o “processo por cujo intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa fic-cional, componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mes-ma, como algo autônomo” (Candido, 1993: 9).

Com o II Congresso de Crítica e História Literária, encerra-se em definitivo a partici-pação de Candido na Faculdade de Filoso-fia, Ciências e Letras de Assis. Em 1961, ele retorna à USP, para tornar-se o responsável pela implantação do curso de Teoria Literária e Literatura Comparada. A partir de então, fi-cava para trás, em definitivo, os percalços de uma trajetória inicialmente indefinida entre os afazeres acadêmicos da sociologia e produ-ção intelectual na área de estudos literários, para cujo desfecho e resolução a passagem por Assis foi fundamental.

REFERÊNCIAS

[1] Rodrigo Ramassote é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Realizou mestrado e doutorado no Departamento de Antropologia Social da Unicamp. Atualmente, finaliza seu pós-doutorado no Departamento de Antropologia Social da USP e é técnico em Ciências Sociais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E-mail: [email protected]

[2] Cf. Pontes, 1998.

[3] Sobre os rodapés, ver: Ramassote (2013).

[4] Cf. Candido (1988).

[5] Sobre o concurso, ver: Ramassote (2013).

[6] Sobre o assunto, cf. Jackson (2002)

[7] A primeira edição foi publicada em 1964, pela editora José Olympio, com o título de: Os parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação de seus meios de vida (1964). Sobre a importância do estudo, cf. Jackson (2002).

[8] Cf. Pontes (1998).

[9] Cf. Van Gennep (1978).

[10] Refiro-me, em especial, a Walnice Nogueira Galvão e a Telê Ancona Lopez, responsáveis pelas edições críticas de, respectivamente, Grande sertão: veredas, e Os Sertões (1985) e Macunaíma (1978). [11] Cf. Anais do II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária (1963).

REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICASAnais do segundo Congresso Brasileiro de crítica e História Literária. Assis, 24 – 30 de julho de 1961. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, 1963.Candido, Antonio. O método crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Edusp, 1988._________. “Crítica e Sociologia” In: ______. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Nacional, 1965._________. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2001. [12] Cf. Candido (1965)._________. “Discurso”. In: ____ . Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Ed. da UNESP, 1992._________. “Prefácio”. In: ____. O discurso e a cidade. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1993._________. “Entrevista concedida a Décio de Almeida Prado”. In: MARTINS, Marília e ABRANTES, Paulo (Org.). Três Antônios e um Jobim. Rio de Janeiro: Relume/Dumará, 2001._________. Noções de análise histórico - literária. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Editora Vozes, 1978.JACKSON, Luiz Carlos. A Tradição Esquecida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do grupo Clima em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.RAMASSOTE, Rodrigo M. A formação dos desconfiados: Antonio Candido e a crítica literária acadêmica (1961 – 1978). Dissertação de mestrado, Campinas,

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, 2006.________. A vida social das formas literárias: crítica literária e ciências sociais no pensamento de Antonio Candido. Tese de Doutorado, Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, 2013.VARA, Teresa. “Esboço de figurino” In: AGUIAR, Flávio (org.). Antonio Candido: pensamento e militância. São Paulo: Humanitas/Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999.

Rodrigo Ramassote é técnicoem Ciências Sociaisdo Instituto do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional(Iphan). Atualmentefinaliza seu pós-doutoradono Departamento deAntropologia Social da USP.E-mail: [email protected]

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